Sociedade democrática

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Sociedade Democrática Marilena Chauí Introdução 1. Direitos, necessidades e interesses. 2. A criação de direitos 3. Os obstáculos à democracia 4. Dificuldades para a democracia no Brasil Conclusão - Uma democracia concreta Introdução Democracia parece ser um objetivo que todos defendem e todos perseguem. Mas como a democracia é definida correntemente? Em termos gerais, tanto para o liberalismo como para o Estado do Bem-Estar (ou social-democracia), democracia é o regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. O que isso quer dizer? Em primeiro lugar, que identificam liberdade e competição - tanto a competição econômica a chamada livre iniciativa, quanto a competição política entre partidos que disputam eleições. Em segundo lugar, que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria. Em terceiro lugar, que identificam a ordem com a potência do Executivo e do Judiciário para conter: limitar os conflitos sociais, impedindo o desenvolvimento da luta de classes, seja pela repressão, seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais (emprego, boas condições de trabalho e salário, educação, moradia, saúde, transporte, lazer). Em quarto lugar, que embora a democracia apareça justificada como valor ou como bem, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia. Em outras palavras: defendam a democracia porque lhes parece um regime favorável à apatia política (a política seria assunto dos representantes, que são políticos profissionais), que por seu turno favorece a formação de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado, dessa maneira evitando uma participação política que traria à cena extremistas e radicais da sociedade. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e se manifestando no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e em soluções técnicas (e não políticas) para os problemas sociais. Vista por esse prisma, a democracia é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico

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Sociedade Democrática Marilena Chauí

Introdução 1. Direitos, necessidades e interesses. 2. A criação de direitos

3. Os obstáculos à democracia

4. Dificuldades para a democracia no Brasil Conclusão - Uma democracia concreta

Introdução

Democracia parece ser um objetivo que todos defendem e todos perseguem. Mas

como a democracia é definida correntemente? Em termos gerais, tanto para o liberalismo

como para o Estado do Bem-Estar (ou social-democracia), democracia é o regime da lei e da

ordem para a garantia das liberdades individuais. O que isso quer dizer? Em primeiro lugar,

que identificam liberdade e competição - tanto a competição econômica a chamada livre

iniciativa, quanto a competição política entre partidos que disputam eleições. Em segundo

lugar, que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo

a sociedade contra a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria.

Em terceiro lugar, que identificam a ordem com a potência do Executivo e do Judiciário para

conter: limitar os conflitos sociais, impedindo o desenvolvimento da luta de classes, seja pela

repressão, seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais (emprego, boas condições

de trabalho e salário, educação, moradia, saúde, transporte, lazer). Em quarto lugar, que

embora a democracia apareça justificada como valor ou como bem, é encarada, de fato, pelo

critério da eficácia. Em outras palavras: defendam a democracia porque lhes parece um

regime favorável à apatia política (a política seria assunto dos representantes, que são

políticos profissionais), que por seu turno favorece a formação de uma elite de técnicos

competentes aos quais cabe a direção do Estado, dessa maneira evitando uma participação

política que traria à cena extremistas e radicais da sociedade.

A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz baseado na idéia de

cidadania organizada em partidos políticos e se manifestando no processo eleitoral de escolha

dos representantes, na rotatividade dos governantes e em soluções técnicas (e não

políticas) para os problemas sociais. Vista por esse prisma, a democracia é realmente uma

ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico

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que preside a idéia de direitos do cidadão (Marx, 1946-47). Desde a Revolução Francesa de

1789, essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade

está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a

maioria da população. A democracia é formal, não é concreta.

O objetivo deste texto é mostrar a origem deste formalismo, discutindo os

conceitos de liberdade, igualdade e participação política a partir do entrelaçamento de

direitos, necessidades e interesses em uma sociedade dividida em classes.

1. Direitos, necessidades e interesses

Uma ideologia não nasce do nada nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira

invertida, dissimulada e imaginária, as práxis social e histórica concretas. Isso se aplica à

ideologia democrática. Na pratica democrática e nas idéias democráticas há uma profundidade

e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa

perceber.

Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos

ou a alternância no poder. Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se

identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, é sempre um lugar vazio que os

cidadãos periodicamente preenchem com um representante, podendo revogar seu mandato se

não cumprir o que lhe foi e1egado para representar.

As idéias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser

respeitadas e garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade

não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem-comum obtido por consenso; mas,

ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem

expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que considera o conflito

legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade.

As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito

além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de

direitos e que onde não existam tais direitos, nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar

por eles e exigi-los. É este o cerne da democracia.

Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse. Uma

necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água;

outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes; outro, de hospitais. Há

tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais.

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Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes

brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos interesses dos estudantes argentinos. Os

interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os

dos bancários, diferentes dos banqueiros. Os dos índios, diferentes dos garimpeiros.

Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que numa região

de uma grande cidade as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches

para seus filhos; e que na mesma região outro grupo social, os favelados, tenha carência

de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas

não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar a outra.

Interesses também podem ser conflitantes. Suponhamos que a grandes

proprietários de terras interesse deixá-las inativas esperando valorização imobiliária, mas que

interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência. Temos

aí um conflito de interesses. Suponhamos que aos proprietários de empresas comerciais

interesse estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos

comerciários outro horário em que possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e

descansar. Temos aqui outro conflito de interesses.

Um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses não é particular e

específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais.

Assim, por exemplo, carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à

vida.

Carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o

direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à

informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho,o dos comerciários, o direito a

boas condições de trabalho.

Dizemos que uma sociedade - e não um simples regime de governo - é

democrática quando além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da

República, respeito à vontade da maioria e das minorias institui algo mais profundo, que é

condição do próprio regime político; ou seja, quando institui direitos.

2. Acriação de direitos

Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição

democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão:

igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os

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costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da

mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era

igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de

participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se

tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos e assalariados explorados,

mas fosse dado a cada um, segundo suas necessidades e segundo seu trabalho.

A observação de Aristóteles, e depois a de Marx, indicam algo preciso: a mera

declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da

igualdade através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras:

declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo

como direito real.

Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de expor em público seus

interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela

maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução

Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da

liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para

escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das

hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais.

Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, o de que todo

indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um

tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos

socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o

direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de

exploração e dominação social, econômica, cultural e política. Observamos aqui o mesmo que

na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas

abre o campo histórico para a criação desse direito pela praxis humana.

Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar

das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões. Esse direito

possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos

os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica

(eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre

administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto a interesses e

direitos da própria polis.

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A democracia ateniense, como se vê, era direta. A moderna, porém, é

representativa. O direito à participação tornou-se, portanto indireto, através da escolha de

representantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição

em lugar de ampliação. Essa aparência é falsa e é verdadeira. Falsa porque a democracia

moderna foi instituída na luta contra o antigo regime, portanto, em relação a este último

ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da representação.

Verdadeira porque, como vimos, a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos

proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média, aos

homens adultos independentes.

Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos

políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos e eleitores: homens,

mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores, índios) e a garantia da elegibilidade de

qualquer um que, não estando sob suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo. Vemos,

portanto, o mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples

declaração de um direito em direito real; ou seja, vemos aqui a criação de um direito.

As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis), e a

partir destes criaram os direitos sociais (trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer,

cultura), os direitos das chamadas minorias (mulheres, idosos, negros, homossexuais,

crianças, índios) e o direito à segurança planetária (as lutas ecológicas e contra as armas

nucleares). As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de

opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações

da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela

publicidade das decisões estatais.

A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação

de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com isso,

dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas:

1.) a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o

conflito legítimo. Não só trabalha politicamente conflitos de necessidades e de interesses

(disputas entre partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos),

mas procura instituí-los como direitos e exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do

que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações,

movimentos sociais e populares; classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um

contrapoder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado;

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2.) a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, aberta ao tempo, ao

possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela

existência dos contrapoderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma

para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas,

de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.

3. Os obstáculos à democracia

Liberdade, igualdade e participação conduziram à celebre formulação da política

democrática como governo do povo, pelo povo e para o povo. Entretanto, o povo da

sociedade democrática está dividido em classes sociais, sejam os ricos e os pobres

(Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), ou as classes sociais antagônicas (Marx).

É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões,

mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos

os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma

classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais.

É verdade que as lutas populares nos países que capitalismo avançado ampliaram

os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do

Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do

trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.

Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração, que ao melhorar a

igualdade e a liberdade dos trabalhadores duma parte do mundo agravou as condições de vida

e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que enquanto nos países capitalistas

avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram

implantados regimes autoritários e ditaduras com os quais os capitalistas desses países se

aliavam aos das grandes potências econômicas.

A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias

atuais, porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver

a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de neoliberalismo, implicou o

abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos

sociais) e retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista,

afastando a interferência do Estado no planejamento econômico.

O abandono das políticas sociais chama-se privatização. O do planejamento

econômico, desregulação. Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo,

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resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso de

novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a

automação da produção e da distribuição dos produtos.

Essa mudança nas forças produtivas (a tecnologia alterou o processo social do

trabalho) vem causando desemprego em massa nos países de capitalismo avançado,

movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de

grandes massas da população. O fenômeno começa a atingir alguns países do Terceiro

Mundo, como o Brasil.

Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas

populares estão em perigo, porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda.

De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção

crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de

consumo de produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força

produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do

mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e

consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se

em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores, porque não necessita de seus

trabalhos e serviços. Por isso, o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo

Estado Neoliberal, defensor da privatização das políticas sociais (educação, saúde, transporte,

moradia, alimentação).

O direito à participação política também encontra obstáculos. No capitalismo da

segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma

divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que

recebem a educação científica e tecnológica. São considerados portadores de saberes que os

tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não

possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem executar tarefas sem conhecer

as razões e as finalidades de sua ação, por isso considerados incompetentes e destinados a

obedecer.

Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a

sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades,

nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre competentes que sabem e

incompetentes que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos

específicos tornou-se um poder para mandar e decidir. Esta divisão social convenceu-se na

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ideologia da competência técnico-científica, na idéia de que quem possui conhecimentos está

naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de

comunicação de massa que a estimula diariamente, invadiu a política, que passou a ser

considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes, não uma

ação coletiva de todos os cidadãos. Não só o direito à representação política (ser

representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia

da competência oculta e dissimula que para ser competente é preciso ter recursos econômicos

para estudar e adquirir conhecimentos. Os competentes pertencem à classe economicamente

dominante, que dirige a política segundo seus interesses, não de acordo com a

universalidade dos direitos.

Outro obstáculo ao direito à participação política está posto pelos meios de

comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se

possuirmos informações corretas sobre o que vamos discutir e decidir. Como já vimos, meios

de comunicação de massa não informam, desinformam, transmitem informações de acordo

com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com

grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de

informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política.

Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo

contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.

4. Dificuldades para a democracia no Brasil

Periodicamente os brasileiros afirmam viver numa democracia, depois de

concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de

partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento

e de expressão. Por autoritarismo entendem o regime de governo em que o Estado é ocupado

através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos

políticos, o Poder Executivo domina o Legislativo e o Judiciário, há censura do pensamento e

da expressão e prisão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma,

democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado, e o

Estado é identificado como o modo de governo.

Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo

social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois em qualquer circunstância

divide as pessoas em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não

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há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é

autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência):

nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades

econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem

prática do direito à liberdade.

O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade

brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das

classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a

esfera dos direitos. Os interesses, por não se transformarem em direitos, tornam-se privilégios

de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os

privilegiados. Estes, por serem portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os

competentes, cabendo-lhes a direção da sociedade.

Como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se

num interesse comum nem se universa1izar num direito. Um privilégio, por definição, é

sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se

num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, democracia é criação e

garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue

ser democrática, pois não encontra meios para isto.

Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar

de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário. Assim, os

partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor

com seus eleitores; os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos

dirigentes partidários; e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família trata

seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da

participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Em lugar

de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, os representantes surgem como

chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os

representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.

A indústria política, isto é, a criação da imagem de políticos pelos meios de

comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores, aliada à estrutura

social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre

imaginadas como chefes salvadores da nação, messias escolhidos por Deus e referendados

pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos eleitores (os que escolhem), mas meros

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votantes (os que dão o voto para alguém). A imagem populista e messiânica dos governantes

indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu. Ainda se acredita no governante

como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por

si mesmo) e que sua vontade tem força de lei.

As leis, que exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos

governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontade e decisões públicas

coletivas. O Poder Judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e

numa autoridade quase mística. Aceitasse por isso mesmo que a legalidade seja, por um lado,

incompreensível; e por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?); e que a única

relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso jeitinho). Como se observa, a

democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.

Conclusão – Uma democracia concreta

Se a democracia no Brasil, embora declarada, ainda não está instituída, as lutas

sociais revigoradas conseguem questionar seu formalismo e buscar a instituição de direitos.

Neste processo, enquanto aproxima legalidade e legitimidade, desvela a ideologia da

competência técnico-científica, sustentáculo ideológico da divisão social, inventando a

democracia na concretude.