SOCIOLOGIA E MEDICINA - scielosp.org mas de patologia individual e social. A Sociologia Médica...

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SOCIOLOGIA E MEDICINA Nelly CANDEIAS (1) CANDEIAS, N. — Sociologia e medicina. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 5 :111-27, 1971. RESUMO — Em tôrno de alguns aspectos do desenvolvimento da Sociologia Médica na Grã-Bretanha, fazem-se considerações sobre a sistematização do campo de trabalho e categorização das áreas de pesquisa na Sociologia Médica, É ainda analisada a atuação do sociólogo na Medicina. UNITERMOS Sociologia*; Educação médica*; Sociologia médica (Siste- matização); Medicina e Sociologia (integração). Recebido para publicação em 15-3-1971. (1) Da Disciplina Educação em Saúde Pública, do Departamento de Prática de Saúde Pú- blica da Faculdade de Saúde Pública da USP — Av. Dr. Arnaldo, 715 — São Paulo, SP, Brasil. 1. INTRODUÇÃO A ciência médica lida habitualmente com padrões de doença que procedem, ìntimamente, das circunstâncias sociais existentes. Os mecanismos de prevenção e cura prendem-se, também, a fatôres de natureza sócio-cultural 12 . Daí o fato de se ter insistido, ùltimamente, na necessi- dade de médicos e demais profissionais de saúde aprofundarem seus conhecimen- tos a respeito dos fenômenos sociais ine- rentes à sociedade em que atuam, de modo a contribuir com algo mais científi- co e mais generalizável do que o simples resultado, nem sempre explorado, de suas próprias experiências. Foi esta a razão pela qual a Sociologia, como ciência bá- sica, passou a fazer parte do currículo médico, nos Estados Unidos e na Grã-Bre- tanha, vindo a adquirir posição cada vez mais relevante. Tem sido cada vez mais estreito o con- tato entre cientistas sociais e médicos, passando os primeiros a desenvolver ativi- dades de pesquisa e ensino ligados à Me- dicina, à Enfermagem e, mais especìfica- mente, à Saúde Pública 1, 2, 4, 6, 11, 15, 16, 19 . Que esta união se mostra necessária é ponto pacífico de discussão, consta- tação esta que veio abalar os alicerces da estrutura educacional, nas Escolas de Me- dicina e nas Escolas onde se desenvolvem cursos de Ciências Sociais. As mais re- centes discussões levam à disposição de formar, por um lado, médicos com conhe- cimentos sociológicos e, por outro, soció- logos com conhecimentos médicos, a fim de que, graças a um quadro de referência conceitual integrado, possam resolver jun- tos, uns complementando outros, proble- mas de patologia individual e social. A Sociologia Médica responde a esta reivin- dicação.

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S O C I O L O G I A E M E D I C I N A

Nelly CANDEIAS (1)

CANDEIAS, N. — Sociologia e medicina. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 5:111-27,1971.

RESUMO — Em tôrno de alguns aspectos do desenvolvimento da SociologiaMédica na Grã-Bretanha, fazem-se considerações sobre a sistematização docampo de trabalho e categorização das áreas de pesquisa na Sociologia Médica,É ainda analisada a atuação do sociólogo na Medicina.

UNITERMOS — Sociologia*; Educação médica*; Sociologia médica (Siste-matização); Medicina e Sociologia (integração).

Recebido para publicação em 15-3-1971.(1) Da Disciplina Educação em Saúde Pública, do Departamento de Prática de Saúde Pú-

blica da Faculdade de Saúde Pública da USP — Av. Dr. Arnaldo, 715 — São Paulo, SP,Brasil.

1. I N T R O D U Ç Ã O

A ciência médica lida habitualmentecom padrões de doença que procedem,ìntimamente, das circunstâncias sociaisexistentes. Os mecanismos de prevençãoe cura prendem-se, também, a fatôres denatureza sócio-cultural12. Daí o fato dese ter insistido, ùltimamente, na necessi-dade de médicos e demais profissionaisde saúde aprofundarem seus conhecimen-tos a respeito dos fenômenos sociais ine-

rentes à sociedade em que atuam, demodo a contribuir com algo mais científi-co e mais generalizável do que o simplesresultado, nem sempre explorado, de suaspróprias experiências. Foi esta a razãopela qual a Sociologia, como ciência bá-sica, passou a fazer parte do currículomédico, nos Estados Unidos e na Grã-Bre-tanha, vindo a adquirir posição cada vezmais relevante.

Tem sido cada vez mais estreito o con-tato entre cientistas sociais e médicos,passando os primeiros a desenvolver ativi-dades de pesquisa e ensino ligados à Me-dicina, à Enfermagem e, mais especìfica-mente, à Saúde Pública 1, 2, 4, 6, 11, 15, 16, 19.Que esta união se mostra necessária éjá ponto pacífico de discussão, consta-tação esta que veio abalar os alicerces daestrutura educacional, nas Escolas de Me-dicina e nas Escolas onde se desenvolvemcursos de Ciências Sociais. As mais re-centes discussões levam à disposição deformar, por um lado, médicos com conhe-cimentos sociológicos e, por outro, soció-logos com conhecimentos médicos, a fimde que, graças a um quadro de referênciaconceitual integrado, possam resolver jun-tos, uns complementando outros, proble-mas de patologia individual e social. ASociologia Médica responde a esta reivin-dicação.

Para o sociólogo, isto deixa transpare-cer o crescente consumo da sociologiaaplicada como instrumento heurístico eoperacional capaz de interferir no caótico"aqui e agora" da realidade social e anecessidade de ampliar seus conhecimen-tos a respeito das técnicas de contrôle deproblemas sociais, de modo a respondermelhor às exigências dos demais profis-sionais, sem perder de vista, ao mesmotempo, seus compromissos com a ciênciasociológica.

Para o profissional de saúde, emara-nhado nas veladas subtilezas dos fenôme-nos sociais, evidencia-se o fato de que amera percepção dos problemas nem sem-pre o leva, òbviamente, à sua solução.Nem os dilemas se resolvem pelo simplesacúmulo de dados empíricos, visto que no"totum revolutum" da realidade social épreciso saber o que e como procurar.Desta constatação nasceu a Sociologia, co-mo ciência.

Partindo do apriorismo que as CiênciasSociais em geral e a Sociologia Médica,especìficamente, podem contribuir de mo-do positivo para o ensino e desenvolvi-mento de pesquisas práticas relacionadasà Medicina, passam a ser êstes os objeti-vos de nosso trabalho:

— Apresentar, a título de exemplo, o es-tágio em que se encontra a SociologiaMédica na Grã-Bretanha;

— apontar algumas contribuições da So-ciologia, tendo em mente a sistemati-zação do campo de trabalho e a cate-gorização das áreas de pesquisa naSociologia Médica;

— justificar a atuação do sociólogo den-tro do campo da Medicina.

2. ESTÁGIO ATUAL DA SOCIOLOGIAMÉDICA NA GRÃ-BRETANHA

A apresentação que se segue, elabora-da a partir de nossos contatos com os

centros onde se concede, atualmente, maiorênfase aos cursos de Sociologia Médica,tem dupla intenção: em primeiro lugar,levar a informação ao conhecimento dosque já se mostram, no momento, interes-sados na construção de programas de So-ciologia dentro das Escolas de Medicina;em segundo lugar, mostrar aos responsá-veis pela elaboração de medidas sanitá-rias da comunidade, que sofrem perma-nentemente o impacto negativo de deter-minados fenômenos sociais, as perspecti-vas e enfoques sociológicos disponíveis pa-ra analisar e dominar o efeito daqueles.

Os centros a que acima nos referimossão: Unidade de Pesquisa Social do De-partamento de Sociologia do "BedfordCollege", Universidade de Londres; De-partamento de Medicina Preventiva e So-cial, Universidade de Manchester; De-partamento de Saúde Mental, Universi-dade de Bristol e Departamento de Socio-logia, Universidade de Aberdeen.

* * *O curso de pós-graduação ministrado

no "Bedford College", da Universidadede Londres, tem como objetivo centralpreparar cientistas sociais para o ensinoe a pesquisa no campo da Medicina. Jáem 1968 a "Royal Comission on MedicalEducation" considerara da maior impor-tância a inclusão no currículo médico dedisciplinas relacionadas com as CiênciasSociais, cujo ensino deveria em grandeparte recair sôbre os sociólogos. Em re-lação às escolas médicas de Londres, evi-denciou-se a urgência de preparar soció-logos e médicos especializados em Epide-miologia e Medicina Social. M. Jeffe-rys(1) considera que o desenvolvimentoperfeito de um programa de SociologiaMédica exige o respeito por dados requi-sitos. Em primeiro lugar, torna-se neces-sário que os sociólogos destacados para oensino de estudantes de medicina tenhamsólida noção dos problemas fundamentaisnos campos da saúde e da doença, assimcomo das soluções médicas ou paramédi-

(1) Comunicação pessoal.

cas disponíveis. Em segundo lugar, os so-ciólogos devem dispor não só de certa ex-periência de trabalho com pessoal médicodas Escolas de Medicina, Hospitais e Cen-tros de Saúde, como devem também sercapazes de participar em trabalhos de pes-quisa, realizados em colaboração com mé-dicos e administradores. Finalmente, osmédicos responsáveis pelo ensino de estu-dantes de medicina e treinamento profis-sional posterior devem dispor da oportu-nidade de discutir com o sociólogo osprogressos da Sociologia Médica e suasaplicações no ensino e prática da Medi-cina.

O curso do "Bedford College", abertopara sociólogos e, excepcionalmente, paramédicos familiarizados com os métodos econceitos da Sociologia, compreende osseguintes ítens:

Perspectiva histórica e comparativada assistência médica (30 aulas de11/2 horas de duração)

a) Assistência médica nos séculos XIXe XX, em têrmos de suas ideologias e pre-visões institucionais — assistência médi-ca hospitalar e domiciliar.

b) Assistência médica contemporâneae sistemas de manutenção da saúde, emtêrmos dos mecanismos de financiamen-to; atendimento do doente; assistênciabásica e especializada; fontes de mão deobra.

c) Problemas de planejamento; fatô-res determinantes das prioridades; meiosde avaliação; teorias de mudança socialaplicadas à organização médica.

d) Seleção profissional; treinamentoe desempenho de atividades nas ocupa-ções médicas e paramédicas. Interaçãoe sistemas de enfoque.

e) Relações inter-profissionais no hos-pital e outras instituições médicas, inclu-indo as de pessoal burocrático e profissio-nal; status; autoridade; conflito de pa-péis. Teoria de organização e suas apli-

cações na compreensão das instituiçõesmédicas.

f) Avaliação da eficiência dos ser-viços de saúde; objetivos relacionados coma medida dos resultados.

Fatôres sociais da doença e da res-posta à doença (30 aulas de 11/2

horas de duração)

a) Perspectivas comparadas da saúdee doença, incluindo as noções de normali-dade, doença, desvio, "handicap", inca-pacidade, saúde mental e ajustamento so-cial.

b) Resposta do paciente à doença —o estudo do "comportamento enfêrmo".

c) Relação paciente-médico: teoriasde conflito e de consenso.

d) Processos de tratamento e reabi-litação hospitalares e domiciliares. Teo-rias da interação simbólica e sua impor-tância nos processos de análise. Teoriade crise.

e) Envolvimento da família e da co-munidade na doença.

f) Morbidade e mortalidade — al-guns exemplos pormenorizados de estu-dos epidemiológicos.

g) Processos de tensão e doença.

h) Psiquiatria Social — fatôres so-ciais na etiologia e no desenlace da doen-ça mental.

Técnicas e planejamento de pesqui-sa social: conceito e perspectivas(30 aulas de 11/2 horas de dura-ção)

a) Medida e explicação da pesquisasocial; relação entre teoria, conceitos, da-dos e problemas de validade.

b) Estratégias globais de pesquisa;princípios do planejamento experimentale quase-experimental; levantamentos ex-ploratórios, descritivos e explicativos; es-

tudos retrospectivos e prospectivos; formu-lação e teste de hipóteses.

c) Coleta de dados; observação e en-trevista, fontes documentais; problemasde fidedignidade.

d) Análise e processamento de dados;estabelecimento de relações causais e tra-tamento com múltiplas variáveis; faláciasprovenientes de diferentes níveis de aná-lises.

e) Apresentação de relatório.

Métodos estatísticos e de medida(30 aulas de 11/2 horas de dura-ção)

Epidemiologia e Estatística Vital(10 aulas de 1 hora de duração)

Introdução elementar à Medicina(Não é feita referência ao númerode aulas).

O curso compreende ainda 30 sessõescom a duração de 11/2 horas, nas quaispesquisadores de áreas sócio-médicas dis-cutem os problemas das pesquisas emcurso e os progressos alcançados.

* * *

O Departamento de Medicina Preven-tiva e Social da Universidade de Man-chester(1) ministra um Curso de Pós-Gra-duação em Saúde Pública com dois anosde duração, compreendendo quatro temasdistintos:

a) Epidemiologia e Estatística Médi-ca.

b) Ciências Sociais e suas relaçõescom a Medicina.

c) Princípios de Administração Sa-nitária.

d) Progresso da Medicina e ServiçosSanitários.

O segundo tema abarca os seguintescampos de trabalho: Sociologia, com umtotal de 44 horas; Psicologia Social, comum total de 15 horas; Educação Sanitá-ria (ação sanitária e as Ciências Sociais),com um total de 45 horas; para discus-sões de grupo são destinadas 5 sessõescom a duração de 2 horas, cada uma.

Em relação à Sociologia, a finalidadeé fornecer aos estudantes elementos quelhes permitam avaliar a importância dosconceitos e métodos da Sociologia e Psi-cologia Social, para a melhor compreen-são da distribuição populacional da doen-ça. São também discutidos os fatôresque condicionam a utilização das organi-zações encarregadas da assistência sani-tária. Abordam-se, concomitantemente,os aspetos mais relevantes para a implan-tação proveitosa da mudança social aonível da comunidade.

No campo da Psicologia Social salien-tam-se, igualmente, os aspectos desta dis-ciplina de particular importância para aMedicina e para os serviços médicos.

Finalmente, em relação à Educação Sa-nitária dedicam-se 10 horas ao estudo doplanejamento da mudança, teorias da de-cisão, comunicação e organização comu-nitária; 5 horas para o estudo das popu-lações a atingir e do planejamento dosprogramas; 20 horas para o estudo dosproblemas de influência pessoal, dinâmi-ca de grupo, enfoque, avaliação e méto-dos; e, finalmente, 10 horas para estudosdos meios de comunicação de massa eaplicações específicas.

O Curso de Pós-Graduação em SaúdePública do Departamento de MedicinaPreventiva e Social da Universidade deManchester, desenvolve-se, como dissemos,ao longo de 2 anos divididos em 6 perío-dos. Pela Figura 1, pode ter-se uma idéiada distribuição e da importância relativadas matérias ministradas no referido cur-so.

(1) Comunicação pessoal.

Neste mesmo Departamento, desenvol-ve-se, paralelamente, um curso de Socio-logia Médica para enfermeiras, ministra-do em 3 dos seus 4 anos de formação.Observem-se os tópicos dêste curso:

1.° ano: Definições de saúde e doença

a) Diferenças culturais na percepção dadoença e no comportamento relacio-nado à doença e à saúde.

b) O papel de doente: o papel do pa-ciente no hospital: doenças crônicas.

c) O impacto da doença sôbre a famí-lia.

d) Angústia e morte.

2.° ano: Estudos sociológicos de hospitais

a) Padrões de autoridades: os profis-sionais em organizações burocráti-cas.

b) Padrões de comunicação entre e den-tro de grupos profissionais.

c) Objetivos e valôres dos diferentesgrupos em hospitais.

d) Comunicação entre pacientes e pes-soal hospitalar.

4.° ano: Revisão e extensão do curso doprimeiro ano

a) Estudos do comportamento do pa-ciente em relação à saúde e doençacom especial referência a:

— utilização de serviços de preven-ção;

— demora quanto à procura de as-sistência ;

— displicência pelos regimes médi-cos;

— convalescença e reabilitação;

b) A profissão de enfermeira.

c) Características de uma profissão: re-lações entre as profissões de saúde.

d) Papel presente e futuro da enfermei-ra dentro e fora do hospital.

* * *

O Departamento de Saúde Mental daUniversidade de Bristol(1) oferece umcurso de Ciências Sociais para estudantesde Medicina, com 40 aulas teóricas e 44horas de aulas práticas, distribuídas por16 semanas, no chamado "segundo" anopré-clínico. Neste curso a Psicologia ocupaposição central. As sessões práticas de-senvolvem-se dentro dos temas seguintes:

— Apresentação de pacientes. A finali-dade desta apresentação é demonstrara complexidade do comportamento,mostrando ao mesmo tempo que adoença exerce efeitos em numerososaspectos do comportamento e da expe-riência.

— Observação do comportamento. Apre-sentação de filmes sôbre o comporta-mento natural dos primatas e discus-são de grupo sôbre o estudo do com-portamento de espécies mais simplese o modo como êste pode contribuirpara a compreensão do homem.

— Retenção. A finalidade desta sessãoé levar os alunos a redigir um rela-tório sôbre as observações feitas naprimeira sessão, com o intuito de de-monstrar os efeitos do tempo sôbre asimpressões. Ao mesmo tempo, desen-volve-se uma discussão sôbre o proble-ma da transferência de informaçõesde pessoa a pessoa, em particular noambiente médico.

— Avaliação do grau de inteligência.Discussão dos métodos de inteligênciae aplicação de testes.

— A criança em seu ambiente natural.Visita a escolas primárias e discussãocom os professôres dos problemas deaprendizado, adaptação, etc..

— Resposta emocional e sua medida. Es-ta sessão dedica-se aos métodos utili-zados na medida física de grande emo-ção.

— Atitude e percepção. Demonstraçãodo efeito seletivo da atitude na per-cepção.

— O trabalho sob incentivo. Participa-ção dos alunos em atividades incenti-vadas ou não e posterior avaliação doresultado daquelas em têrmos da au-sência ou presença de incentivo.

— Comportamento em situações de ten-são. Demonstração, com a participa-ção dos alunos, do efeito de situaçõesde tensão sôbre o comportamento.

— Processos de grupo e tomada de deci-são. Participação de alunos em dis-cussão final sôbre tomada de decisãoem relação aos problemas clínicos esôbre a importância que os fatôres li-gados ao grupo têm para aquela.

— Hospital. Discussão dos problemas li-gados à hospitalização de crianças eda importância de um atendimentomédico carinhoso.

— Métodos e entrevista e avaliação dosresultados.

— Projeto de campo.

As sessões teóricas abordam os seguin-tes temas: importância da ciência do com-portamento (4 horas) ; o indivíduo e seuambiente (9 horas) ; personalidade e con-ceito do "eu" (3 horas); o "eu" e osoutros (5 horas); o ciclo vital (11 ho-ras); doença e sociedade (8 horas).

Embora o curso se fundamente princi-palmente sôbre temas pertinentes à Psi-cologia, ministram-se paralelamente uma

(1) Comunicação pessoal.

série de aulas de Sociologia, abrangendoestas os seguintes temas:

— Enfoque sociológico: possibilidades,problemas e métodos para o estudo dosindivíduos como membros de grupos.

— A meia-idade: reajustamento emtêrmos de papéis e de relações nos am-bientes familiar e de trabalho.

— Padrões de doença: diferenças nastaxas de morbidade nos diversos gru-pos da comunidade.

— Organizações de Assistência à Saúde:a estrutura social do hospital.

— Conceito e profissão: treinamento esocialização. Éticas profissionais. San-ções. Características peculiares à pro-fissão médica.

— O trabalho: significado e organiza-ção. Moral. Absenteísmo. Trabalhoem grupo. A mulher no trabalho.

* * *

Resta-nos considerar as atividades de-senvolvidas no Departamento de Sociolo-gia da Universidade de Aberdeen (1), on-de a Sociologia Médica é organizada numcurso de 20 aulas, abordando os seguintestemas:

— Conceitos e definições de saúde e doen-ça — variações intra-culturais, inter-culturais e históricas.

— Comportamento na doença: papel dodoente.

— Utilização dos serviços.

— Relação médico-paciente: papel domédico, papel do paciente, poder econflito.

— Sociologia do hospital: aspectos daorganização; tensões inerentes ao pa-pel da enfermeira; "despersonaliza-ção"; etc.

— Etiologia social da doença: enfoqueepidemiológico — o que pode e nãopode ser feito.

— Sistemas de assistência médica: cres-cimento e desenvolvimento a partir doséculo XIX; reformas do "NationalHealth Service"; análise e compara-ção com o que ocorre nos EstadosUnidos e URSS.

Os alunos dos cursos de pós-graduaçãodevem ainda especializar-se em um oumais dos tópicos que passamos a referir:história social da doença; tomada de de-cisão médica; reabilitação; enfoque dasdoenças mentais; sociologia da reprodu-ção; agonia e morte.

Existe, paralelamente, um curso de es-pecialização abrangendo problemas rela-tivos a utilização normal e abusiva dosserviços. A respeito dêste, considera-seque os indivíduos que não aproveitam osserviços assistenciais, fazem-no por nãonecessitarem dos mesmos, o que, de fato,está longe da verdade. Existem determi-nados grupos em que os rotulados como"necessitados" são em número muito in-ferior aos que passam despercebidos,muito embora necessitem de assistência.A evidência desta situação é posta a des-coberto no referido curso, abordando-seos seguintes temas:

— Distribuição das necessidades e con-ceito de "necessitado".

— Problemas existentes no estudo do usoe abuso dos serviços e o modo de en-focá-los.

— O "milieu" da classe trabalhadora debaixo nível e o uso e abuso dos ser-viços.

— O cliente frente ao profissional.

— Processos de tomada de decisão.

— Modo de distribuição dos serviços esua influência na utilização dos mes-mos.

(1) Comunicação pessoal.

Afora a parte diretamente relacionadacom os cursos que acabamos de referir,torna-se necessário não esquecer os tra-balhos de pesquisa, visto terem êstes gran-de pêso dentro do campo de conquistas daSociologia Médica. Na Grã-Bretanha,atualmente, 63 pesquisas estão em desen-volvimento nesta área, sendo possívelagrupá-las sob os seguintes tópicos: com-portamento na doença, organização daassistência médica, utilização e sub-utili-zação de serviços, profissões ligadas àsaúde, educação em saúde, doenças men-tais, utilização de drogas, velhice e morte.

Não foi nosso objetivo analisar exaus-tivamente as conquistas sócio-médicas rea-lizadas na Grã-Bretanha, porém citar al-go daquilo que tivemos a oportunidadede observar in loco. Muito embora o es-forço dispendido e os resultados obtidosna Grã-Bretanha nem de longe se apro-ximem do que já se realizou nos EstadosUnidos, parece-nos que a simples apre-sentação dos currículos escolares e a re-ferência às pesquisas, ainda que feitassumàriamente, mostram ao leitor atentoo dinamismo em vigor nestas áreas doconhecimento e do trabalho interdiscipli-nar.

3. SISTEMATIZAÇÃO DO CAMPO DE TRA-BALHO E DA LOCAÇÃO DAS ATIVIDADES

DA SOCIOLOGIA MÉDICA

As citações que passamos a fazer, ser-vem como indicação de alguns dos nu-merosos esforços realizados com o intuitode sistematizar e identificar o campo detrabalho da Sociologia Médica, refletindo-se aquêles na elaboração de programasde ensino e na organização de pesquisas.Com isto pretendemos fornecer um es-quema de referência aos interessados noassunto.

É curioso observar que se deve a ummédico, McINTIRE 9, o primeiro trabalhochamando a atenção para as potencialida-des da Sociologia Médica, trabalho êsteapresentado em 1894. Deve-se a êle,

também, a proposta de uma primeira sis-tematização, citada ainda hoje, pelo seuvalor pioneiro:

Estudo da prática médica.

a) Medicina como profissão, institui-ção e segmento da história social.

b) O status do médico, papéis e inte-rações sociais em relação ao diagnóstico,assistência, atividades e negócios adminis-trativos.

Saúde Pública.

a) Epidemiologia social e etiologia.b) Investigação e mudanças de atitu-

de.c) Especialidades suplementares e co-

nhecimento geral.

Posteriormente, a contribuição deSTRAUSS 17 veio representar um grandepasso na sistematização do campo de tra-balho. Propôs êste autor a divisão daSociologia Médica em: sociologia da me-dicina e sociologia na medicina. DizWILLIAMS 20 a respeito desta divisão:"The distinction proposed by Straus, . . .between the sociology of medicine andsociology in medicine is particular usefulfor the present discussion. The formeris a facet of sociology qua sociology, whichhappens to take medicine and related acti-vities as its subject matter. The latter isenmeshed in the medical field on a colla-borative basis".

Não se poderia marginalizar a contri-buição apresentada por MECHANIC 10 quefaz referência a 15 áreas de atividadesdentro da Sociologia Médica, apresentan-do breve descrição a seu respeito:

— Distribuição e etiologia da doença.

— Respostas sócio-culturais à doença.

— Aspectos sócio-culturais da assistênciamédica.

— Mortalidade.

— Epidemiologia social.

— Organização da prática médica.

— Sociologia das profissões ligadas àsaúde.

— Sociologia do hospital.

— Organizações comunitárias da saúde.

— Mudança social e assistência à saúde.

— Educação médica.

— Saúde Pública.

— Tensão e doença.

— Psiquiatria social e comunitária.

— Critérios e política de saúde.

KENDAL e MERTON 7, por sua vez, apre-sentam uma divisão no campo de traba-lho da Sociologia Médica, divisão esta queagrupa os assuntos à volta de quatroáreas: etiologia social, ecologia da doen-ça, componentes sociais na terapia e nareabilitação, medicina como instituiçãosocial e sociologia da educação médica.Esta divisão teve bastante sucesso, sendoutilizada freqüentemente nos trabalhosque procuram aperfeiçoar a sistematiza-ção da disciplina com o objetivo de fa-cilitar a elaboração de programas de en-sino ou a identificação de problemas pa-ra pesquisa. De fato, tem sido esta umadas mais citadas contribuições. A êsterespeito READER13 vai mais longe e con-sidera que, em qualquer das quatro áreasreferidas, a Sociologia pode tomar váriasposições: "Sociological contributions inmedicine must be descriptive, predictive,or modifying of practice. If they are tobe appreciated as immediately useful bythe health professions, they must dealwith prevention of illness (or causation),diagnosis, prognosis, or treatment. Theymay be formal — that is, the result of plann-ed research — or they may be informal— that is, the result of advice or specula-tion. They may be direct as a result ofobservations made in the medical settingor indirect from research in other areasthat is later found applicable to the healthfield".

Trabalhos desta natureza realizaram-se,também, em relação à Saúde Pública.SUCHMAN 18 menciona a análise de 565projetos de pesquisas desenvolvidas entre1954 e 1959, focalizando os seguintes tó-picos:

a) Fatôres sociais na doença e na saú-de.

— Fatôres sociais na etiologia e nadistribuição.

— Resposta e ajustamento à doença.

— Atitudes em relação à doença.

— Processo terapêutico.

— Níveis e necessidades da saúde.

— Relação da doença com váriosproblemas sociais.

b) Fatores sociais na organização daassistência médica.

— Serviços e facilidades.

— Pessoal.

— Sistemas sociais.

Ao mesmo tempo que se refere à divi-são proposta por KENDALL e MERTON 7,afirma que a Sociologia se mostrou efi-ciente em qualquer das áreas ocupadaspelo objeto em estudo: doença ou pro-blema de saúde; indivíduo ou públicoafetados; organização ou pessoal que for-nece programas. Em qualquer destas oude outras áreas propostas, sobejou fértilmaterial para a seleção de hipóteses re-ferentes à etiologia da doença, ao com-portamento face a problemas de saúde eà estrutura e funcionamento do grupo depessoal dos serviços responsáveis pela ela-boração dos programas de saúde.

As diversas contribuições, visando asistematização do campo de trabalho daSociologia Médica, levaram a um progres-so das pesquisas e, em seguida, ao desen-volvimento de estudos relativos à identi-

ficação da locação das atividades do so-ciólogo. Deu-se assim uni passo à fren-te, ao se passar da classificação do cam-po de trabalho em seus diversos níveis àsistematização do espaço adequado parao desempenho de tais funções. WIL-LIAMS 20 aponta, de modo esquemático, aestratégia a seguir na pesquisa sócio-mé-dica, abrindo ao mesmo tempo perspec-tivas para a compreensão do modo comoaquela deve ser aplicada, conforme o con-texto focalizado. Ou bem estamos preo-cupados com a pesquisa sócio-médica co-mo parte específica da ciência sistemáti-ca, ou para alcançar os objetivos propos-tos temos de resolver, de imediato, váriosproblemas de ordem institucional. Pren-de-se o autor a êste segundo aspecto,apresentando um esquema relativo à co-locação dos trabalhos sócio-médicos paraperguntar, ao mesmo tempo, se êstes de-vem desenvolver-se ao nível de órgãos desaúde ou dentro de ambiente universitá-rio. Salienta WILLIAMS que, no momen-to em que o sociólogo sai do seu espaçoacadêmico, passa a depender de numero-sos fatôres como, por exemplo, da próprianatureza da instituição onde se insere e,òbviamente, da relação desta com o sis-tema de ação global. É fácil compreen-der a relevância destes fatôres se nos lem-brarmos que a Sociologia é uma ciênciacujo desenvolvimento se processou emâmbito universitário. O abandono dêsteambiente coloca o sociólogo frente a umamultiplicidade de obstáculos que ultra-passam, por vêzes, o que êle pode supor-tar, como condições negativas a interfe-rirem na qualidade de seu trabalho, exa-tamente porque as novas estruturas estãoinstitucionalizadas de modo a atender ne-cessidades essencialmente médicas e nãomédico-sociológicas. Por exemplo, o sim-ples acesso aos dados médicos cataloga-dos sob o rótulo de "confidencial" repre-senta problema de difícil solução visto osociólogo interiorizar diferentemente oconceito de "confidencial".

Por outro lado, a presença dêste den-tro do ambiente médico, como parte do

sistema social, altera o próprio sistema,passando o sociólogo a ser encarado co-mo um estranho a expressar-se de formaestranha, disposto a desempenhar funçõesque os médicos não estão, em geral, pre-parados para entender.

A argumentação do autor leva a con-siderar, como ideal, a fixação do soció-logo em Escolas de Saúde Pública, Es-colas Médicas e Escolas de Enfermagem,onde em maior ou menor grau, desfrutade ambiente com características universi-tárias. Nesta posição podem então osserviços do sociólogo ser aproveitados porDepartamentos de Saúde, situação estaque vem ocorrendo nos Estados Unidosdesde 1952. Considera o autor que oplanejamento de pesquisas sócio-médicasdeve considerar, em primeiro lugar, asdiferentes áreas a estudar, utilizando-separa isto dos trabalhos supramencionados,particularmente os de STRAUSS 17 e KEN-DALL e MERTON 7, para então identificara locação adequada, prendendo-se êstes aEscolas de Saúde Pública, Enfermagem eMedicina, Departamentos de Sociologiaem Escolas de Ciências Sociais e, final-mente, organizações de saúde não perti-nentes à universidade. Estabelece assim,a par da sistematização do campo de tra-balho, a sistematização da locação dotrabalho.

Em síntese, não é difícil perceber aacentuada evolução da Sociologia Médi-ca, tanto ao nível do ensino quanto aonível da pesquisa básica ou prática. Taldesenvolvimento, que se processou em res-posta à solicitação de profissionais desaúde, preocupados com a incidência defenômenos sociais pràticamente insolúveis,desviou a atenção dos sociólogos para es-ta área de atividades, levando-os a am-pliar seus conhecimentos e a colaborarem esforços relativos a sistematização docampo de trabalhos, em todos os seus ní-veis.

Não seria preciso acrescentar que, ascontribuições supramencionadas, mere-cem, sem dúvida, análise mais prolongadae reflexão mais demorada; contudo, como

referimos anteriormente, nossa intençãofoi até aqui meramente informativa, pon-to de partida para os leitores interessa-dos em situar projetos de pesquisa sôbreum pano de fundo mais sistematizado.

Poder-se-ia, contudo, indagar e seriaprocedente: mas não podem os médicosresolver problemas médico-sociais semapelar à colaboração de especialistas emsociologia? Isto nos leva a outro nível dediscussão.

4. CAUSAS DA INTEGRAÇÃO DA SOCIOLO-GIA NO CAMPO DA MEDICINA.

4.1 O pensamento planificado

O conhecimento da tipologia de estru-turas de pensamento apresentada porMANNHEIM,8, contribui para a compreen-são lógica de uma ordem de fatôres res-ponsáveis pela aproximação da Sociologiae da Medicina. Analisa êste autor trêstipos de pensamento, apanhando-os emsua dimensão histórica. Em primeiro lu-gar, o pensamento baseado na descobertaocasional (finden) : nesta etapa a adap-tação do indivíduo ou do grupo dependeexclusivamente de experiências mais oumenos conscientes, adquiridas através demecanismo de "ensaio e êrro". A funçãodo pensamento resume-se ao ato de apre-ender a solução correta a fim de repetí-laem seguida.

O segundo tipo de pensamento, já maiscomplexo, prende-se à fase da invenção(erfinden), fase esta em que as institui-ções alteram-se e passam a organizar-seem tôrno da consecução de objetivos par-ticulares, inseridos numa sociedade ape-nas parcialmente regulamentada, onde aação social desenvolve-se dentro de com-partimentos estanques. Uma vez "inven-tados" métodos, objetivos e instituições,passa a haver uma seleção, alheia ao con-trôle dos interessados, que influirá na so-brevivência daqueles. É, digamos assim,o "struggle for life" ao nível da açãosocial.

Chega-se finalmente à terceira etapa,que corresponde à atuação do pensamen-to planificado, momento em que "o ho-mem e a sociedade passam da invençãodeliberada de objetivos e instruções iso-lados para a regulamentação deliberadae inteligente das relações entre êsses obje-tivos". O indivíduo desperta agora pa-ra a necessidade de controlar as brechasocasionadas pelo choque de objetivos, des-prendendo-se do esquema de finalidadesisoladas, para refletir sôbre problemas le-vantados pelas próprias relações existen-tes. Surge a questão de perceber até queponto os objetivos são mùtuamente com-patíveis. De fato, o pensamento planifi-cado representa a tomada de consciênciaperante a lógica de um todo integrado.

Òbviamente, à nova forma de pensarcorresponderá nova forma de agir. Pas-sa-se agora de um padrão unilateral, emque as primeiras fases de ação se iniciampela própria ação do pensamento semcontrôle paralelo das conseqüências den-tro do contexto global, para um padrãode natureza multidimensional. Neste, dá-se início a um movimento circular, ondeuns elementos são suplementados por ou-tros, dependendo o equilíbrio do sistemada compatibilidade dos objetivos em in-teração. O texto a seguir, embora redi-gido com outra intenção, ilustra bem aconsciência emergente das tensões criadaspelo pensamento inventivo e unilateral.Salienta ROSEN 14: "Social Scientists tendto emphasize the newness of Medical So-ciology. But if viewed as the study ofthe relationships between health pheno-mena and social factores and contexts,Medical Sociology is seen to have deephistorical roots. Long before the socialscientists identified Medical Sociology asa specialty, men concerned with affairsof state, economists, physicians, social re-formers, historians and administrators —were preoccupied with social-medical pro-blems and had made significant contri-butions to their solution. Indeed, in partthe science of sociology owns its originto this stream of development".

Na realidade, esta corrente de desen-volvimento, na medida em que traduziaaspirações de economistas, médicos histo-riadores, administradores e outros espe-cialistas e profissionais, representava jáa emergência do pensamento planificado.Parece-nos procedente afirmar que a So-ciologia Médica surge neste contexto co-mo clara manifestação daquele, pondo emxeque a sobrevivência de objetivos isola-dos.

Vejamos a seguir como o pensamentoplanificado se reflete no âmbito das Ciên-cias Sociais. Disciplinas como a Políti-ca, a Sociologia e a Economia rompemcírculos fechados e departamentos estan-ques para penetrar no padrão multidi-mensional da análise de objetivos mùtua-mente regulamentados. Surge, dêste mo-do, nôvo nível de precisão científica. Emconseqüência, passam aquelas a defron-tar-se com um conjunto mais ou menosorganizado de resistências, oriundas estasda própria situação de transição, que bus-ca impor nôvo pensamento e nôvo modode agir. Estas dão origem a conflitosespecíficos, na medida em que represen-tam estruturas de pensamentos pertinen-tes a estágios distintos. É fenômeno cor-rente a contemporaneidade de não con-temporâneo.

Tais divergências não se manifestarãoapenas no âmbito das Ciências Sociais edas Ciências Naturais, mas também, aose desencadear o processo de aproxima-ção entre estas duas esferas que, emborade natureza diversa, pertencem a umarealidade única. Se, por um lado, a ciên-cia em seu todo submete-se a uma frag-mentação gradativa, por outro exige, emdado momento, a recombinação dos resul-tados alcançados.

A noção de "pensamento planificado"facilita a análise que o investigador faráde determinados fenômenos, na medidaem que amplia sua percepção. De fato,um dos fatôres que influencia a percep-ção do especialista em relação a objetosou comportamento reside no sistema con-

ceitual que o observador possui, visto queaquêles fenômenos são percebidos em têr-mos de conceitos ou categorias.

Ao nível da medicina e da saúde le-vanta-se a questão de diagnosticar atéque ponto as respectivas atividades se en-quadram dentro de um ou de outro "es-tilo" de pensamento. À primeira vista,parece-nos procedente afirmar que a Saú-de Pública, por desenvolver-se dentro deum contexto multiprofissional mais evi-dente, estaria já na fase do pensamentoplanificado. Isto porque a formação dosanitarista exige conhecimentos própriosdas Ciências Sociais, visto voltar sua aten-ção para fenômenos comunitários; e tam-bém, porque o êxito em termos dos obje-tivos propostos depende, em grande parte,do ajustamento a finalidades de profis-sionais pertinentes a outras áreas de ati-vidades, como no caso, entre outros, dosaneamento. Dêste modo, os profissionaisde saúde, mostram-se conscientes, pelaprópria natureza de suas funções, da ne-cessidade de ajustar objetivos dentro deum movimento circular que visa a contro-lar conseqüências, tal como referimos an-teriormente.

O mesmo não ocorre quando se passada relação médico-comunidade para a re-lação médico-paciente. Nesta desenvolve-se um tipo de ação pertinente à umaúnica finalidade, a cura do paciente, di-minuindo a atenção do profissional em re-lação aos objetivos das demais esferas.Partindo do princípio de que, històrica-mente, a ação caminha rumo ao pensa-mento planificado, torna-se mais fácil com-preender os conflitos e tensões decorren-tes do encontro de duas mentalidades, ado sanitarista e a do médico, que con-correm para o desequilíbrio entre doistipos de atividades. O estudo de WOLFEe colabs. 21 deixa transparecer tal proble-ma. Suas considerações a partir de umestudo de caso realizado em Saskatchewan,no Canadá, levam à proposição de nume-rosas questões a respeito da eficiência dasatividades médicas, em têrmos dos servi-ços sanitários. Ao falar de eficiência,

têm os autores em mente um fator essen-cialmente econômico, que leva em contaa relação entre os gastos daquele tipo deatividade e os benefícios auferidos. Con-sidera-se ainda a possibilidade de modi-ficar o tipo de prestação de serviços e asimplicações daí resultantes.

A referência à tipologia de MANNHEIMteve dupla intenção: em primeiro lugar,serve para justificar a aproximação daSociologia à Medicina em têrmos da evo-lução histórica das estruturas do pensa-mento; em segundo lugar, ilustra comoinstrumentos analíticos construídos nocampo das Ciências Sociais podem ser uti-lizados na análise de problemas médicos,visto ampliarem o campo de percepçãodos pesquisadores.

4.2 A especialização da ciência

Outra ordem de fatôres é responsável,também, pela aproximação da Sociologiae da Medicina. A especialização, cadavez maior, do trabalho em função da rea-lidade social acabou por exigir e justifi-car a formação de nôvo tipo de especia-lista, o sociólogo, cujo preparo inclui amanipulação de métodos e técnicas depesquisa. A virtude do sociólogo residejustamente no preparo altamente especia-lizado a que foi submetido durante suaformação. Como assinala HYMAN 5:

"In distinguishing techniques from me-thodology we use the former to denotespecific, discreete research such as ques-tionnaires, construction, interviewing, anddate processing knowledge, each of whichcan be learned and put into practicewithout the understanding of scientificmethod and its sociological applications.Methodology, on the other hand, refersto the sociological application of scientificmethod".

Assim, ao nos referirmos à metodolo-gia, não estamos tão sòmente atentos a umconjunto de conhecimentos relativos àstécnicas utilizadas durante a investigação,mas a algo que transcende esta dimensão

e que se refere diretamente ao modo decolocar os problemas para estudá-los, oque leva o especialista à esfera dos enfo-ques conceituais dos fenômenos sociais,balizados pelos grandes esquemas de in-terpretações. Há, portanto, um terreno,intermediário entre os procedimentos téc-nicos da investigação e a formulação teó-rica do problema. O modo como o pes-quisador manipula as técnicas é condicio-nado, inexoràvelmente, pela posição quetoma frente àqueles esquemas de inter-pretação sociológica.

O preparo teórico representa, por as-sim dizer, a espinha dorsal sôbre a qualse desenvolverá o conjunto de procedi-mentos utilizados para alcançar o objeti-vo proposto. Dêste modo, o fato de o in-vestigador estar informado a respeito dedeterminadas técnicas como construção eutilização de questionário, entrevistas, co-leta de dados, etc., nem por isso significaque a pesquisa se enquadre no âmbito dainterpretação sociológica. É o profundoconhecimento dos enfoques sociológicosque contribuirá para o possível êxito dotrabalho a realizar. Há, assim, mil e umfatôres a atentar que, por definição, pren-dem-se à natureza e aos tipos de teoriasociológica, com os quais apenas os soció-logos estão devidamente familiarizados,visto constituirem tais conhecimentos ofulcro de sua formação. É justamentepor terem se submetido à leitura altamen-te especializada e acumulada que aquêles,após treino exaustivo e prolongado, mos-tram-se melhor equipados para construirpesquisas que tratam diretamente com fe-nômenos sociais. Com isto, diminuirãoo risco de se afundarem no empirismo va-zio, ou seja, na mera acumulação de da-dos inúteis. Não significa isto que, ês-tes também, não corram o risco de ex-cluir variáveis importantes; a nosso ver,entretanto, têm menos chance de fazê-lo.Na Sociologia, como em outras ciências, éa teoria que dá significado aos fatos e,portanto, direção e objetivo à pesquisaempírica. A investigação sociológica exi-ge do especialista preparo prolongado e

complexo. Não se trata apenas de "daruma olhada" mais ou menos intuitiva sô-bre os fatos sociais para classificá-los de"fatos sociológicos" sem distinguir, de ime-diato, a diferença entre social e sociológi-co. O conhecimento intuitivo dos fenô-menos sociais está para o sociólogo, comoa curandeira está para o médico. Aquê-les só se tornarão inteligíveis após seremsubmetidos à análise sociológica.

Mas não é só o conhecimento teóricoe metodológico que define o investigadorsocial: subjacente a êste está todo umcompromisso com um paradigma de aná-lise científica, que contribuirá para opróprio enriquecimento da ciência em seutodo. Observem-se as duas figuras apre-sentadas por DOBRINER3. Na Figura 2,notam-se seis níveis interrelacionados, co-meçando com a base de conhecimentos,constituída pelo acúmulo de conhecimen-tos conceituais, empírico-metodológicos e,

enfim, pela tradição teórica da Sociolo-gia. É esta base de conhecimentos quepermite ao investigador anunciar uma hi-pótese significativa. E que é a hipótesesenão o fio condutor de pesquisa cienti-ficamente elaborada? De fato, é ela quepermite a seleção de dados representati-vos que, por sua vez, levarão à constru-ção terminológica, ou seja, à formulaçãode conceitos que, devidamente relaciona-dos, alcançarão finalmente o estágio maiselevado do paradigma, o nível teórico.A Figura 3 mostra, de modo sucinto, co-mo DURKHEIM desenvolveu um estudosôbre o suicídio, exemplo clássico da me-todologia positivista.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo das várias áreas da sociologiamédica, os trabalhos realizados ao níveldo ensino e da pesquisa empírica paraaplicação imediata, os esforços acumula-dos no sentido de sistematizar o campode trabalho e, por último, o impressio-nante número de publicações de autoriade médicos e sociólogos deixam transpa-recer claramente a urgência de integrardois campos de conhecimento e de ativi-dades práticas. Dêste modo, recompõe-se, em esfôrço de síntese, a realidadefragmentada pela divisão cada vez maiordo trabalho social, sem o que corre-se orisco de não se melhorar, de fato, certasdimensões da saúde individual e comuni-

tária, já que de pouco têm valido as téc-nicas tradicionais de manipulação dosproblemas sociais, objetivo êste que cabe,evidentemente, às Ciências Sociais.

Contudo, a introdução do sociólogo naárea da Medicina no Brasil, seja a nívelde ensino, seja a nível de serviços ou depesquisas para aplicação mais ou menosimediata, não pode deixar de levantar mile uma conjeturas a respeito da qualidadedo trabalho e da eficiência deste especia-lista, a quem se atribui, errôneamente, ca-ráter essencialmente especulativo, mascuja ênfase em terreno especulativo, visajá ao estudo e ao conhecimento de técni-cas de contrôle da realidade social. Sãomuitos os obstáculos que dificultam o tra-balho do sociólogo, quando êste é levadoa estudar e solucionar problemas práticosde dada estrutura social. Embora tal in-tenção escape aos objetivos centrais dopresente trabalho, faremos a seguir su-cinta referência a alguns dêstes óbices.

Em primeiro lugar, a escassez crônicade recursos materiais e humanos, criandocondições desfavoráveis de trabalho namedida em que impede, de um lado, aaquisição de material necessário, de ou-tro a formação de uma equipe equilibra-da de especialistas. Subjacente a isto,há, de modo geral, a solicitação de traba-lhos a realizar em curto espaço de tem-po, cujo objetivo é o de fornecer "respos-tas rápidas" de imediata aplicação, soli-citação esta que angustia o investigadorconsciente dos perigos inerentes a tal si-tuação. São obstáculos de natureza ma-terial.

Em segundo lugar, a compreensão de-ficiente e falha dos objetivos da Sociolo-gia, ciência ainda jovem, levando à faltade clareza em têrmos da expectativa quese alimente em relação ao sociólogo. Nãoé raro encontrar leigos letrados e atémesmo cientistas sociais especializados emoutras matérias, opondo-se abertamente aafirmações cujas evidências se nutrem emresultados de investigações sociológicas

bastante rigorosas. São igualmente fre-qüentes alusões a Sociologia, deixandotransparecer conhecimento insuficiente arespeito dos seus objetivos, como ciência,e que se vão refletir na formulação ina-dequada de problemas para pesquisa.São obstáculos de caráter cultural.

Em terceiro lugar, o impacto produzi-do por conflitos de ênfase e de objetivos.A visão do indivíduo depende, entre ou-tras coisas, de sua formação profissionalComo afirma Schopenhauer, "cada ho-mem considera os limites de seu campode visão como sendo os limites do mun-do". Dêste modo, um mesmo assunto po-derá ser encarado sob dimensões totalmen-te diversas. O trabalho em comum exi-girá sempre um esfôrço de mútuo ajus-tamento e de redefinição, cujo êxito de-penderá, agora sim, menos de obstáculosextrínsecos, mas dos traços da persona-lidade de cada um. Trabalhar com in-divíduos de diferente formação, lidarcom disciplinas de natureza diversa, im-plica a busca de um nôvo padrão de co-nhecimento científico. É algo a mais,exigindo nôvo tipo de reflexão e deixan-do transparecer, ao mesmo tempo, umaconsciência mais profunda e mais exigen-te, visto romper o pano de fundo sôbreo qual repousam os padrões tradicionaisda formação profissional. Traduz o es-forço para superar deficiências passadase presentes, através de um pensamentoinovador e, portanto, inquieto em relaçãoa expectativas futuras. Dêste modo, quan-do se desenvolve e se nutre um trabalhode caráter multiprofissional e multidisci-plinar, ocorre, quase certamente, um con-flito de ênfase, ou seja, uma tendência avalorizar diferentes aspectos que, confron-tados, mostram-se conflitantes e até mù-tuamente exclusivos. Uns se voltarão pa-ra a ação a curto prazo, outros se inclina-rão a refletir a médio ou longo prazo;a própria seleção de metas a alcançar, re-fletirá a posição de cada um. O traba-lho interdisciplinar exigirá, de início, ati-tudes de conciliação e de compreensãomútua. E não representam estas, virtu-

des raras? Trata-se agora de obstáculosinerentes a trabalhos de natureza inter-disciplinar.

São êstes, a nosso ver, três ordens dis-tintas de obstáculos, que prejudicam otrabalho do sociólogo ao penetrar em ou-tros campos de atividades, seja ao nívelde ensino, seja ao nível de pesquisas eserviços.

Isto nos leva a outro assunto, o de re-ferir, em seguida, algumas condições que,pelo contrário, parecem favorecer o tra-balho dos sociólogos no Brasil, levando-osa dominar e ultrapassar os óbices supra-mencionados.

A Sociologia apresenta já saldo positi-vo em nosso país. A formação de espe-cialistas em Ciências Sociais com prepara-ção mais ou menos sólida deixou, há mui-to, o campo da improvisação e do ama-dorismo. Algumas instituições oficiais— temos presente a Universidade de SãoPaulo, como exemplo, formam atualmen-te especialistas em vários campos comoeducação, desenvolvimento, indústria etrabalho, etc.. Tais especialistas nemsempre permanecem em ambiente acadê-mico, sendo absorvidos, com freqüência,por outras organizações públicas e priva-das de múltipla natureza, onde aplicamos conhecimentos adquiridos na busca desoluções específicas a curto ou médio pra-zo. O fato de ter aumentado o númerode oportunidades ocupacionais levou, porsua vez, à melhoria do padrão de forma-ção dêsses especialistas. Por outro lado,os sociólogos brasileiros têm a seu favoro já indiscutível êxito da Sociologia Mé-dica na América do Norte e da Grã-Bre-tanha, levando à suposição, por analogia,que o mesmo deva ocorrer no Brasil.Tudo parece indicar que também no cam-po da Medicina serão aquêles bem suce-didos.

Assiste-se no momento à transformaçãodo sociólogo em técnico, alteração estaque não poderá deixar de se refletir nopróprio campo do conhecimento teóricoda Sociologia Aplicada, passando esta a

intensificar os trabalhos referentes à in-vestigação empírica dos problemas sociaise ao estudo da intervenção racional comoprocesso social.

A Sociologia impôs-se como ciência e,como tal, possui métodos sistemáticos pa-ra coligir dados, instrumentos analíticosrefinados e equipamentos conceituais ca-pazes de facilitar a abordagem científicade problemas médicos. Seu status deciência não se deve à "geração espontâ-nea"; deve-se, isto sim, ao fato de res-ponder a um tipo específico de questõesque, até seu aparecimento, escapavam àsdemais áreas de conhecimento.

Tentar resolver problemas de saúde,com implicações de natureza nitidamentesociológica, sem a colaboração de pesqui-sadores altamente especializados neste cam-po é, em primeiro lugar, desconhecer oestágio da Sociologia nos países maisadiantados e, em segundo lugar, tentarintroduzir um "surrealismo científico" aonível da Medicina, como ciência aplicada.Mas será o surrealismo compatível com aSociologia ou com a Medicina?

CANDEIAS, N. — [Sociology and medicine].Rev. Saúde públ., S. Paulo, 5:111-27, 1971.

SUMMARY — Some aspects of the develop-ment of Medical Sociology in Great Britainare analized and considered as a basicstructure for evaluation of the systematiza-tion of the research areas in Medical So-ciology. The activities of the sociologist inthe field of medicine are considered as well.

UNITERMS — Sociology*; Education, me-dical*; Sociology, medical (Systematiza-tion); Medicine and Sociology (Integra-gration).

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