Sociologia Jurídica

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SOCIOLOGIA JURÍDICA

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SOCIOLOGIA JURÍDICA

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Ijuí2012

SOCIOLOGIA JURÍDICA

Coleção Direito, Política e Cidadania, 25

Enio Waldir da Silva

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2012, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 98700-000 – Ijuí – RS – Brasil – Fone: (0__55) 3332-0217 Fax: (0__55) 3332-0216 E-mail: [email protected] Http://www.editoraunijui.com.br www.twitter.com/editora_unijui

Editor: Gilmar Antonio Bedin

Editor-Adjunto: Joel Corso

Capa: Elias Ricardo Schüssler

Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)

Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí

S586s Silva, Enio Waldir da.Sociologia jurídica / Enio Waldir da Silva. – Ijuí : Ed.

Unijuí, 2012. – 304 p. – (Coleção direito, política e cidada-nia ; 35).

ISBN 978-85-7429-987-71. Sociologia. 2. Ciências sociais. 3. Direito. 4. Cidadania.

I. Título. II. Série. CDU : 301 301:34

Associação Brasileira das Editoras Universitárias

Editora Unijuí afiliada:

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A Coleção Direito, Política e Cidadania é uma iniciativa editorial do De-partamento de Estudos Jurídicos da Unijuí e da Editora Unijuí, voltada à publicação de textos que privilegiam a pesquisa jurídica interdiscipli-nar e a reflexão crítica sobre o direito e suas relações com as diversas ciências humanas e sociais. O objetivo da Coleção é disponibilizar, aos leitores interessados, um conjunto de publicações que contribuam para qualificar o debate sobre os principais temas da área e que auxiliem no desenvolvimento da cidadania.

Conselho editorialDr. José Eduardo Faria (USP – SP)Dr. Darcísio Corrêa (Unijuí – RS)Dr. Gilmar A. Bedin (Unijuí – RS) Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM – RS)Dra. Odete Maria de Oliveira (UFSC – SC)Dr. Sergio Augustin (UCS – RS)Dra. Claudia Rosane Roesler (Univali e Cesusc – SC)Dr. Leonel Severo Rocha (Unisinos – RS)Dr. Arno Dal Ri Júnior (Fondazione Cassamarca de Treviso – Itália)Dr. José L. Bolzan de Morais (Unisinos – RS)Dra. Silvana Winckler (Unochapecó – SC)Dr. Otávio C. Fischer (Universidade Tuiti do Paraná e Unicemp – PR)Dr. Celso L. Ludwig (UFPR-PR)Dra. Maria Claudia Crespo Brauner (UCS – RS)Dra. Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (UCS-RS)Dra. Sandra Regina Leal (Faplan – RS)Dra. Sandra Regina Martini Vial (Unisc – Unisinos)

Comitê editorial

Dr. Doglas Cesar LucasMsc. Fabiana PadoinMsc. Patricia Borges MouraMsc. Sérgio Luiz Leal Rodrigues

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SUmáRIO

APRESENTAÇÃO ..................................................................................9

INTRODUÇÃO: Sociologia e a Sociologia Jurídica ...........................15

CAPÍTULO 1

AFIRMAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ..29

Trabalho e Sociedade .......................................................................31

Pensamento Social ...........................................................................39

CAPÍTULO 2

A MODERNIDADE – A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS .................................................................51

Razão Positivista e Sistema Social ..................................................65

A Direito Funcionalista e Moral Social .........................................72

Direito, Racionalidade e Legitimidade .........................................89

CAPÍTULO 3

RAZÃO CRÍTICA, DIREITO E LIBERDADE ............................101

A Revolução Social e a Ordem Justa ............................................103

Direito como Concretização dos Entendimentos Coletivos .......115

Direito e o Pensamento Alternativo .............................................132

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CAPÍTULO 4 ......................................................................................155

TEMAS DE SOCIOLOGIA JURÍDICA ATUAL ...........................155

O Direito como Sistema Autopoiético ..........................................160

Direitos Culturais ...........................................................................194

Direito e Movimentos Sociais .......................................................216

Direito, Conflitualidade e Violência .............................................237

Direito, Mídia e Tecnologia na Sociedade Global .......................271

REFERÊNCIAS ..................................................................................281

Saiba Mais .......................................................................................294

Textos de Boaventura de Sousa Santos: .......................................302

Títulos das Obras no Google. <www.google.br> .........................303

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APRESENTAÇÃO

A Sociologia Jurídica tem uma história nos cursos de Graduação

em Direito e Sociologia da Unijuí. Por meio dela procuramos pensar o

Direito para além da “teoria pura”, no sentido de que a norma jurídica

não pode ser tratada de forma isolada ou separada dos contextos sociais

que lhe dão origem e fundamento. São os homens, como seres sociais

concretos, que produzem as estruturas jurídicas de regulação da vida

social, considerando os interesses e os lugares que efetivamente ocupam

na sociedade.

A sociedade humana pode ser definida de várias formas; todas elas,

no entanto, partem da totalidade como princípio geral. O Direito, assim

como a economia, a política, a cultura, é parte que só adquire significado

(ou concreticidade) quando devidamente inserido na totalidade. Não

significa que a parte não seja também um “sujeito” que produz a vida

social. Compreender a especificidade das estruturas jurídicas na produção

da vida social é a tarefa da Sociologia Jurídica.

A história da Sociologia é um campo de intensa luta social. A

multiplicidade de leituras (possíveis) da sociedade produz sujeitos

portadores de diferentes projetos de sociedade. Isto ocorre em todos os

campos específicos da Sociologia. Isso, contudo ,isto é mais evidente

nas chamadas teorias clássicas da Sociologia – Comte/Durkheim, Marx e

Engels e Weber. Cada uma expressa uma leitura diferente da sociedade,

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com repercussão no mundo da política. Pode-se afirmar que os grandes

confrontos sociais nos séculos 19 e 20 tiveram a inspiração nas teorias

sociológicas citadas.

Esta breve introdução é necessária para contextualizar o livro do

professor Enio Waldir da Silva. Trata-se de uma obra de cunho didático,

que servirá de base para o componente curricular de Sociologia Jurídica

dos cursos de Graduação da Unijuí. Uma obra didática sempre se cons-

trói com uma linguagem mais acessível, considerando que os leitores

(alunos) não são ainda especialistas nas temáticas desenvolvidas. Ela não

pode, contudo, perder o rigor teórico, sob pena de não contribuir para o

processo de produção de conhecimento.

O livro Sociologia Jurídica está estruturado em quatro capítulos.

O primeiro – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica – discute as

questões gerais e introdutórias da temática do livro: a relação ente socie-

dade e Direito. A recuperação de momentos importantes da História da

humanidade a partir de categorias sociológicas básicas, como trabalho,

classe social e Estado, torna possível a visualização da função social do

Direito e, ao mesmo tempo, evidenciar sua historicidade. As estruturas

jurídicas mudam com a mudança do seu substrato social, e esta é uma

tese fundamental da Sociologia Jurídica.

O segundo capítulo – A Modernidade – Judicialização das Relações

Sociais – reconstrói os processos teóricos e sociais de constituição das

relações jurídicas a partir das relações sociais. Tendo como pano de

fundo o processo de constituição da Sociologia, avalia a própria relação

entre Direito e sociedade que se constitui como campo específico de

investigação. Destacam-se Comte e Durkheim como fundadores de

uma corrente importante do pensamento sociológico: o positivismo.

Reafirma-se a grande e valiosa contribuição de Durkheim para o enten-

dimento do Direito como fato social. O autor da Divisão do Trabalho

Social demonstra que a fonte do Direito está na sociedade mediante a

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11Apresentação

construção relacional dos conceitos de solidariedade mecânica e Direito Penal e solidariedade orgânica e Direito Restitutivo. Formas diferentes de sociabilidade produzem formas diferentes de Direito.

Outro autor analisado neste capítulo é Max Weber. Suas reflexões instigantes a partir do conceito de racionalização do mundo ocidental são fundamentais para a formação da Sociologia Jurídica. Weber aborda a economia, a política, a cultura e o Direito como tipos de relações sociais que tendem a ser envolvidas pelo processo de racionalização. Esta é a grande transformação do mundo ocidental que Weber designou como “desencantamento do mundo”. O Direito moderno afirma-se como um tipo de ação social racional com relação afins. A dimensão substantiva tende a ser dominada pela dimensão lógico-formal.

Durkheim e Weber contribuem de forma decisiva para que o Direito se torne uma das práticas fundamentais de legitimação da or-dem social moderna. Durkheim percebe o poder do direito de produzir solidariedade (ou integração social), identificado por ele como o processo constituinte do homem como ser social. Na modernidade o problema da integração social desloca-se da manutenção das semelhanças para o desenvolvimento das diferenças geradas pela divisão do trabalho. A situação de anomia que vive o mundo moderno será superada pelo desenvolvimento pleno do Direito Restitutivo. A leitura de Weber dos problemas da modernidade não é contraditória à de Durkheim, na medida em que entende o Direito como a ação humana que articula a dominação legal racional. O “império da lei” é a grande força coatora que integra os homens e consensualiza seus interesses.

O terceiro capítulo – razão crítica, direito e liberdade – expõe a formação do pensamento social crítico, teoricamente elaborado por Karl Marx e Friedrich Engels. O materialismo histórico assentou as bases para pensar criticamente o capitalismo e o papel do direito na sua reprodução, ou seja, o direito como a forma jurídica da dominação de classe. Como o próprio Marx afirmou na XI Tese sobre Feuerbach que “os filósofos nada mais fizeram do que interpretar de diverso modo o mundo; mas trata-se,

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antes, de transformá-lo”, a sua teoria é também um apelo à transformação

radical da sociedade, sustentando que o capitalismo gerou os sujeitos da

sua própria destruição: os trabalhadores assalariados.

O capítulo também aborda outros autores de pensamento crítico,

notadamente Jürgen Habermas e Boaventura de Sousa Santos. Para o

primeiro, a emancipação humana está ligada ao desenvolvimento das

ações comunicativas, ressaltando o papel do Direito na concretização do

entendimento coletivo, produzido na esfera pública e pelos processos

democráticos. Importante também é a contribuição do eminente soció-

logo português Boaventura de Sousa Santos, negando a possibilidade de

emancipação humana sob o capitalismo. A sua reflexão resgata a ideia

do pluralismo jurídico, enfatizando os direitos humanos, a partir de uma

perspectiva multicultural, como elemento fundamental para a conquista

da autonomia dos homens.

O quarto capítulo – Temas da Sociologia Jurídica Atual – propõe uma

atualização do debate sobre a relação Direito e sociedade. Um aspecto

relevante refere-se à capacidade explicativa das teorias sociológicas

clássicas, considerando que a sociedade vive um momento de grandes

transformações. Em certa medida as duas dimensões fundamentais do

capitalismo atual - global e informacional – foram genericamente detecta-

das pelas teorias clássicas. Muitos autores entendem que os fundamentos

da sociedade não mudaram, apenas adquiriram novas configurações,

determinando, assim, a atualidade dos clássicos.

O esforço da teoria sociológica é compreender as novas dimensões

da vida social, como as novas formas de exclusão social, de violência e

criminalidade, a sociedade do risco, a comunicação. Por exemplo, o de-

semprego sempre foi estrutural, porém a sua forma atual parece eviden-

ciar que a busca do pleno emprego é uma ilusão. Mesmo com elevados

índices de crescimento econômico, o desemprego mantém-se alto. É

claro que se criaram novas condições de empregabilidade, determinadas

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13Apresentação

pela dimensão informacional – tecnologias inteligentes – dos processos

sociais, mas também de exclusão. Como isso impacta na ordem jurídica

é uma pergunta recorrente na Sociologia Jurídica.

Uma resposta significativa tem sido elaborada por inúmeros soció-

logos: as transformações sociais causadoras da reestruturação produtiva,

da globalização dos mercados, da crise do Estado-Nação e da crise da

identidade nacional provocam uma crise profunda no paradigma forma-

lista do Direito. O Direito Positivo (estatal) e as instituições judiciais

da modernidade estão em desacordo com as novas relações sociais, por

isso não conseguem mais ser um instrumento de regulação dos conflitos.

As soluções não convencionais ampliam a crise do Direito Positivo e o

impasse se aprofunda.

É neste contexto que surgem autores que questionam a moderni-

dade em seus fundamentos, como é o caso de Niklas Luhmann e Alain

Touraine. Este sociólogo francês, com importante presença no estudo

dos movimentos sociais na América Latina, abandonou o paradigma da

modernidade, definido a partir da dimensão social. Em seu entendi-

mento, estamos vivenciando o “fim do social e todos os fenômenos de

decomposição social e de dessocialização”; um novo paradigma está em

construção, centrado no sujeito e nos direitos culturais.

Niklas Luhmann é mais radical: a partir da teoria dos sistemas au-

topoiéticos – a sociedade seria um deles – critica o conceito de sociedade

como uma estrutura sistêmica de órgãos e funções interdependentes tal

como os funcionalistas a definiram. Nesse sentido, o Direito seria um sis-

tema autopoiético, autorreferente e operacionalmente fechado, tal como

a economia, a política, a ciência, a educação e a cultura. Cada sistema

autopoiético opera com o seu próprio código, portanto não depende do

outro para sua existência. As sociedades mais desenvolvidas já teriam

alcançado uma diferenciação funcional, de tal modo que os sistemas,

que antes as compunham de forma integrada e interdependente, agora

são autônomos ou (autopoiéticos).

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Outra dimensão fundamental para compreender o Direito é a sua relação com as mídias e as tecnologias inteligentes. Qual o papel dos meios de comunicação de massa na sociedade atual? E sobre as institui-ções judiciais? Seguramente não podemos considerá-los apenas como meios de divulgação de informações. Mais do que isso, tem-se constatado que se trata de uma nova instituição, em que as dimensões econômica, política e cultural se fundem, constituindo um novo sujeito. Este novo sujeito tem poder de articulação do conjunto do sistema econômico (ele mesmo é um ator econômico), de formulação da agenda política e de formação da opinião pública. Não há dúvida, portanto, que este poderoso sujeito interfere nas instituições judiciais.

Percebe-se que o debate – que faz parte da história da Sociologia – se intensificou. Por isso, a Sociologia é um campo do conhecimento científico indispensável para a compreensão da vida social, sua estrutu-ração, seus movimentos e possibilidades de transformação. Por extensão, a compreensão da normatividade jurídica atual não se esgota com o de-senvolvimento e institucionalização da ciência do Direito; a Sociologia Jurídica é o contraponto crítico fundamental, pois – vale insistir – não há Direito sem sociedade ou onde há sociedade também há Direito.

É para ajudar a desbravar nosso mundo humano, contraditório e cheio de armadilhas que este livro foi escrito: ele nos instiga a construir caminhos.

Suimar João Bressan

Professor de Sociologia e Ciência Política – DCJS – Unijuí

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INTRODUÇÃO: Sociologia e a Sociologia Jurídica

Estudar a sociedade, sociabilidades e as relações sociais tornou-se

uma determinação ética de quem está estudando na universidade e para

quem está buscando a fortificação de sua cidadania, o rigor da cultura

jurídica e posturas racionais mais coerentes. Torna-se ainda mais impres-

cindível aos indivíduos que buscam ocupar lugares sociais nos quais se

condensam interesses coletivos.

Quem nos fornece as melhores abordagens metodológicas e te-

óricas para este estudo é a Sociologia. Como uma das Ciências Sociais

emergentes nos tempos modernos, a Sociologia criou sua autonomia ao

fundamentar sua abordagem em metodologia clara, em construir con-

ceitos específicos, em fazer demonstrações de suas descobertas e em

criar teorias sociais. Estas descobertas, fundamentadas no rigor reflexivo,

auxiliaram na criação de muitas instituições sociais e assessoram muitos

procedimentos de indivíduos que procuram atender os interesses das

populações, pois além de estudar e sistematizar estes interesses (organizá-

los e expressá-los) a Sociologia também orientou ações de grupos que

buscavam autonomia e direitos sociais. Dificilmente estudantes e pesqui-

sadores da Sociologia deixaram de se tornar militantes de causas sociais,

pois não se contentam em entender as causas dos problemas humanos e

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16E n i o W a l d i r d a S i l v a

não contribuir para a solução deles. Dados de estudos epistemológicos mostram que quem procura estudar a Sociologia são indivíduos preocu-pados com a situação das vivências sociais (suas e as dos outros) e que estão procurando um mundo mais justo. Podemos afirmar, então, que a Sociologia se tornou a ciência das populações e das instituições e foi criada justamente com a perspectiva de resolver seus problemas.

Além disso, a criação da Sociologia possibilitou a afirmação do caráter social da condição humana, constituiu-se em um conhecimento da sociedade que incide sobre ela, exercendo uma ação decisiva na produção e reprodução da sociedade, no sentido da conservação ou da transformação das relações sociais. É, também, um ato social porque seus conceitos não são apropriados apenas pelo sociólogo, mas por todos os sujeitos intérpretes dos problemas humanos. A institucionalização da Sociologia permitiu a pesquisa de temáticas diversas, estabelecendo vá-rias especialidades, compondo o que hoje denominamos como Ciências Sociais particulares ou campos teóricos: rural, urbana, trabalho, direito, religião, cultura, política, economia, a natureza, a história, a comunica-ção, a assistência social, etc. Mesmo que cada ciência tenha um campo particular, elas possuem uma identidade e um fundamento comuns: a existência social do homem. Como Ciências Sociais precisam enfrentar os mesmos problemas metodológicos que caracterizaram a história da Sociologia (Bressan, 2003).

Trataremos mais tarde dos fenômenos que influenciaram na ori-gem da Sociologia, mas é importante destacar aqui que ela vai nascer como um reflexo dos problemas sociais resultantes do processo de con-solidação da modernidade, expresso em três transformações:

1 – A generalização do processo de produção de mercadorias (Revolução Industrial);

2 – A formação do Estado moderno (Revolução Francesa de 1789);

3 – Da nova cultura a partir dos valores da liberdade, da racionalidade e da ciência (Idealismo Alemão).

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17Introdução

Nestes contextos os iniciantes da Sociologia poderiam ser assim

destacados: Charles de Montesquieu (1689-1755), Auguste Comte

(1796-1857), Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917) e

MaxWeber (1864-1920), embora não possamos negligenciar estudos

realizados por outros pensadores sociais da época, como Charles de

Montesquieu (1689-1755), Friedrich Engels (1820-1895), Saint-Simon

(1760-1825), Stuart Mill (1806-1873), Condorcet, Herbert Spencer

(1820-1903) e Wilfredo Pareto, Harriet Maritineau (1802-1876), Ernest

Mach (1834-1916), Wilhelm Dilthey (1833-1911), etc., que enunciaram

os temas básicos da Sociologia, sua metodologia, e os detalharam de

forma ampla na aplicação do entendimento das mudanças abrangentes

que ocorreram nas sociedades humanas, nos modos de construir ma-

terialmente as sociedades ocidentais, na forma de sua organização, na

maneira de pensá-las e nas mudanças nas vidas das pessoas no decorrer

dos últimos três séculos.

Neste sentido, devido à complexidade dos interesses que movem

os sujeitos ao estudo da Sociologia, faz-se necessário destacar os seus

possíveis conceitos. Um dos conceitos mais aceitos de Sociologia é de

que ela se constitui em uma ciência que estuda as relações sociais, entretanto

não há um consenso quanto a seu conceito. Silva (2008a) recolheu as

seguintes possíveis definições:

– A Sociologia é uma ciência que estuda as relações sociais que são, ao

mesmo tempo, produtos e produtoras da sociedade;

– ... é um conjunto de conceitos, de métodos e de técnicas de investiga-

ção produzidos para explicar os elementos potencializadores da vida

social;

– ... é um estudo sistemático da realidade social do homem...

– ... é o estudo das mediações produtoras dos potenciais das práticas;

– ... é uma construção teórica, resultado do esforço de compreender a

sociedade em sua realidade objetiva e subjetiva;

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– ... é o estudo das formas de como o homem passa de um resultado da estrutura estruturada para uma estrutura estruturante, ou seja, o estudo das condições que produzem os lugares sociais ocupados pelo homem;

– ... é o estudo de como o homem entende a sociedade, como ele a aceita, a legitima ou a transforma;

– ... é o estudo que pode levar o homem a ser livre por entender o seu lugar no processo histórico;

– ... é o estudo da própria vontade do homem em conhecer-se e a conhe-cer sua sociedade;

– ... é o estudo das razões que impulsionam o mundo prático e dos re-sultados destas...

Apesar destas definições, é mais fácil compreender a Sociologia pelos objetivos pelos quais a ela se recorre: procurar potenciais reflexi-vos capazes de alargar a compreensão dos processos humanos e adquirir uma base de conhecimentos que leve a entendimentos das forças que compelem o homem ao controle destas forças, dando-lhes significados e orientando-as para a construção da vida individual e coletiva, justa e solidária. Estas forças, como observa Norbert Elias (1970), são forças sociais exercidas pelas pessoas sobre outras pessoas e sobre elas mesmas (aquilo que liga uma pessoa a outra...). Geralmente, as explicações sobre estas forças têm por base as representações que se formam sobre elas. Isso faz com que o próprio pensador não se exclua daquilo que está pen-sando. Além de interpretar as forças que agem sobre as pessoas, nos seus grupos e sociedades empiricamente observáveis, também interpreta os discursos e pensamentos relativos a estas forças e assim vai produzindo seus próprios conceitos mais adequados ao entendimento das vivências humanas.

É isto que queremos mostrar: a Sociologia é uma ciência dedicada a compreender as interações, as ligações ou as teias que conectam os indivíduos entre si, os indivíduos aos grupos, os grupos entre si e estes

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19Introdução

com a sociedade como um todo. Esta rede produz potenciais orientadores

de sociabilidades e identifica as sociedades. Assim, o todo está na parte

e a parte está no todo, ou seja, os indivíduos são produtos e produtores

da sociedade, os Outros estão contidos no Eu (o eu é multideterminado

– pela família, natureza, cultura...), como indica o esquema a seguir.

©Anthropos Consulting 9

HUMANIDADE DA

VIDA

ETHOS

CULTURADEMENSSAPIENS

A figura anterior mostra algumas das mais importantes implicações

deste conceito de que a Sociologia aborda as relações sociais: este objeto

específico é importante de ser compreendido mais cientificamente.

Quer dizer: quando nascemos já existia a sociedade. Fomos preparados

para entrar para ela. Posteriormente agimos de acordo com a estrutura

estruturada. A família é o ponto de partida de nossa socialização. É ali

que começamos nossas relações sociais, criamos os laços sociais mais

profundos de nossa existência. Por isso muitas justificativas de nossas

ações e entendimentos podem ser encontramos na nossa trajetória fami-

liar. A estrutura de nossa personalidade, as potências afetivas de nossa

vida, a valorização do outro, o respeito ao trabalho e a ordem social, etc.,

encontram-se na família, pois são produto e produtora da sociedade. Já a

escola é onde aprendemos nossas potencialidades simbólicas e culturais

e adquirimos capacidade para o controle objetivo do mundo expresso

Natureza Os Outros

Mídias

TrabalhoReligião

Escola

Família

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20E n i o W a l d i r d a S i l v a

na escrita. Ali, os elementos racionais e universais da existência huma-na tomam novo sentido e somos pugnados para o social, o coletivo, a ordem social, a autoridade e a força da ciência... Estes dois espaços são fundamentais para entendermos as formas de ligações entres as pessoas, as redes que os conectam entre si e ao mundo social e assim seguem os estudos da Sociologia buscando compreender empiricamente a im-plicações da cultura, da economia, da natureza, da mídia, do Estado, da religião na constituição da dimensão social dos indivíduos.

Estes estudos foram se ampliando cada vez mais ao longo do tem-po. A preocupação com o conhecimento científico surge no momento em que se percebe que o homem é um ser social que não se basta a si mesmo e que possui uma relação de dependência e complementaridade com a natureza, com os outros homens e com os esforços em ampliar seu entendimento do mundo que o envolve (ciência – pensamento sistematizado). O ser humano se distingue das demais espécies porque nem tudo o que ele faz surge de sua estrutura genética, nem se desen-volve automaticamente em sua relação com a natureza, mas necessita de aprendizado de uma série de atividades fundamentais para sua sobrevivência e reprodução. A construção desse aprendizado se faz por meio da relação com outros seres humanos. A partir dessa relação ele começa a instituir a sociedade como sua forma de existência. Ele passa a entender que sua vida e seu aprendizado se constroem na relação e é essa relação que se transforma em experiência vivida e é transmitida às gerações posteriores.

Essas experiências construídas, refletidas e simbolizadas, coleti-vamente, fornecem ao ser humano a capacidade de entender a natureza, compreender a si mesmo e construir sua história. Essa capacidade de buscar o significado das coisas que o cercam fez o ser humano produzir cultura e elaborar as próprias ciências, uma delas a Sociologia. Alguns pesquisadores dizem que a humanidade triunfou diante dos outros ani-mais devido à mobilidade da força de sua inteligência capaz de modificar o ambiente natural e criar outro ambiente adequado a sua existência,

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21Introdução

concretizado em vilas, aldeias e cidades. Foi quando agiu em grupos e com atividades solidárias que notamos as mais grandiosas realizações. Quando concorreu entre si vemos os desastres, as guerras e a violência destrutivas.

Inteligentemente o ser humano aperfeiçoou seu modo de viver em grupo, criando normas, regras e regulamentos que permitiram inte-rações mais intensas. Inicialmente suas ações eram determinadas pelo instinto de vida. O encontro com outros diferentes provocou ações mais planejadas e combinadas.

A organização humana em sociedades, a capacidade de interven-ção do homem na natureza aumentaram. Suas criações são chamadas de culturas e estas foram aos poucos se separando das atividades práticas e ao mesmo tempo possibilitando orientações de ações.

Nossas escolhas, nossas ações são orientadas pelo lugar que ocupa-mos na estrutura social. Quando entendemos como se forma esta estrutura e como fomos preparados para viver dentro dela mais podemos orientar de modo criativo nossas ações e mais liberdade teremos. Assim, a Sociologia é uma ciência da liberdade, pois permite que se crie uma vida coletiva de modo regulado estruturado e sempre em aperfeiçoamento.

Nos últimos tempos tem crescido o interesse em entender a densidade das relações sociais que estão produzindo conflitualidades para além dos sistemas de controle existentes. É a este assunto que vamos nos dedicar daqui para a frente, denominado de Sociologia Jurí-dica, reconstruindo os elementos que tornaram o Direito uma ciência e uma prática da sociedade, as crises e as críticas a ele dedicada e por último nos dedicaremos a mostrar as pesquisas atuais da Sociologia que ajudam a entender os processos regulatórios e emancipatórios presentes na sociedade.

As pesquisas sociológicas procuram explicar os problemas sociais e apontar soluções para eles. Grande parte destes problemas refletem no Direito e, muitas vezes, este, o Direito, se torna parte dos problemas.

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22E n i o W a l d i r d a S i l v a

Ou seja, a Sociologia Jurídica aponta a realidades sociais que envolvem

o Direito, as normas, as leis e as estruturas jurídicas; estuda as crenças e

descrenças dos grupos na validade do Direito e mostra como este orienta

as condutas humanas.

Podemos dizer inicialmente que a Sociologia Jurídica faz a tradu-

ção da relação que existe entre a ação e a estrutura social, entre liberdade

e regulação social.Os aspectos regulatórios e emancipatórios da socieda-

de, que a Sociologia Jurídica estuda são todos aqueles elementos cujas

funções são assegurar o controle social: Estado, Judiciário, Ministério

Público, polícia, exército, prisões, burocracia, lei e instituições (criadas

para um setor: ex. meio ambiente, comércio internacional, estatutos de

profissões, remédios, energias)... Aspectos emancipatórios são as ações

de indivíduos em seus mais variados aspectos, a cultura, o esporte, a

arte, a ciência, etc... então a Sociologia Jurídica estuda as relações entre

indivíduos e as leis, a sociedade e o Direito, a liberdade e obediência

às leis.

No caso específico da Sociologia Jurídica, o que interessa aqui é

contribuir para entender o Direito como um dos fatos sociais mais perti-

nentes da atualidade histórica, constituído de elementos – forças capazes

de constituir a sociedade, consolidar convivências humanas e organizar

o todo social, tarefas de todo cidadão. Ou melhor, se não soubermos

como funciona o poder e quem o detém, dificilmente conseguiremos

propor mudanças e atuarmos na construção de uma sociedade mais jus-

ta. A cidadania é a expressão do nosso compromisso, do nosso dever em

participar da organização da sociedade em que vivemos, e o direito de

usufruir dos resultados da participação nas ações coletivas. Só podemos

ser livres se desatarmos as amarras do poder hegemônico que negamos,

mas para tanto é preciso saber que sociedade queremos.

A sociedade é resultado do complexo de relações sociais em forma

de teias, de redes ou nexos, as instituições, os indivíduos, a cultura, os

comportamentos, as normas e os valores compartilhados.

Page 23: Sociologia Jurídica

23Introdução

Foram os sociólogos que distinguiram mais amplamente o conceito

de sociedade desta compreensão de que ela era um nome coletivo para

muitos indivíduos. Eles entendiam que a sociedade tem uma identi-

dade que lhe é característica e que transcende os indivíduos que a ela

pertencem. Trata-se de uma coletividade organizada que se mantém por

vínculos cooperativos para garantir a sobrevivência, para perpetuar-se,

partilhando uma cultura sob as orientações de estruturas institucionais.

Como é possível perceber, todas as definições apresentadas são amplas

e geraram muita controversa (Silva, 2008a).

Em uma formação social, os grupos, os setores ou as classes estabe-

lecem relações de força. Os vencedores asseguram para si instrumentos

que permitem controlar o poder/espaço por um determinado tempo, a

ponto de impedir os resistentes de vencê-los. A hegemonia do grupo

vencedor está em fazer valer a sua vontade como se fosse de todos e

de garantir instrumentos de manutenção, ou seja, pode até existir a

contestação, a discordância, mas estes são obrigados à conivência com

quem detém a força. Ou seja, somos levados a entrar para uma socieda-

de pelos mecanismos de socialização existentes e só com muito esforço

reflexivo conseguiremos entender as forças que nos compelem à ação,

às formas de pensar.

Nenhuma sociedade funciona sem que o comportamento da

maior parte das pessoas possa ser prevista ou controlada, uma vez que os

indivíduos não são autossuficientes. O ser humano interioriza as normas

moldadas pelos grupos existentes anteriormente e depois exterioriza-as

em suas ações e pensamentos. A coerência entre interiorização e ex-

teriorização vai depender dos processos de socialização instalados na

sociedade capazes de fazer a coerção e a coação para que os indivíduos

aprendam ao longo do tempo os comportamentos aceitos e quais os que

seriam reprovados. Estas diferenças se concretizam nos papéis sociais

(funções) assumidos.

Page 24: Sociologia Jurídica

24E n i o W a l d i r d a S i l v a

Quando as pessoas seguem aquilo que lhes foi ensinado aprovar

diz-se que temos a ordem social. A disciplina de uma sociedade repousa

na rede de papéis de acordo com a qual cada pessoa aceita certos deveres

em relação aos demais e exige, por sua vez, certos direitos. Quanto mais

se motiva condutas recíprocas de indivíduos, quanto mais se fizer com

que eles se abstenham de certos atos que, por alguma razão, são consi-

derados nocivos à sociedade, e se fizer com que executem outros que,

por alguma razão são considerados úteis à sociedade, mais civilizados

somos e mais ordem teremos (Kelsen, 2005).

É neste processo que a Sociologia entende que entra o Direito, pois

é nele que se percebe as relações sociais constituidoras da sociedade. No

Direito, há sempre referências às relações sociais que se desenvolvem

em sociedade, e da mesma forma, onde existem relações sociais pode

ser encontrado o Direito. Em cada momento, em cada povo o Direito

determina o modo de ser da sociedade, o perfil da estrutura básica é

resultado da ação do Direito, que exerce a função do controle social e

é condicionado pelas crenças religiosas, pelas convicções éticas, pelas

ideologias, os costumes, os interesses econômicos, políticos, culturais,

os avanços técnicos e científicos, etc. (Dias, 2009, p. 22).

Ao pesquisar empiricamente as ações características de grupos

sociais, a Sociologia foi consolidando métodos que contribuíram para

que a própria ciência jurídica fosse se tornando um estudo sistematizado

e autônomo. Assim, desde os primeiros cursos de Direito a Sociologia

contribuiu para dar rigor às compreensões sobre o social. Os estudos

sociojurídicos possuem sempre um caráter interdisciplinar, em que se

pressupõe a colaboração equilibrada entre juristas e sociólogos que

compreendem não apenas o Direito em sentido estrito, mas também os

modos de regulação de conflitos que dele se aproximam ou com ele se

relacionam. Isso requer a compreensão de que há uma interação objeto/

sujeito e noção de que as realidades sociais podem ser diferentemente

representadas nas teorias, necessitando diálogos entre elas.

Page 25: Sociologia Jurídica

25Introdução

Para sintetizar podemos destacar o seguinte conceito da Sociologia Jurídica: é um ramo especializado da Sociologia que busca compre-ender as expressões das relações sociais presentes na organização normativa da sociedade. Ou seja, estuda:

– As realidades sociais no entorno da ordem jurídica;

– As relações sociais efetivamente registradas/concretizadas na socieda-de;

– As aproximações e os distanciamentos entre a regulação e as vivências sociais;

– O lugar e o papel do Direito na sociedade;

– As possíveis respostas que a sociedade fornece aos sistemas regulató-rios;

– A cultura jurídica dos agentes sociais e dos cidadãos da sociedade civil;

– As estruturas regulatórias e as ações;

– As forças das regras e a legitimidade destas;

– Como são construídas as leis, quais os interesses em jogo nessa cons-trução;

– Os espaços estruturais do jurídico;

– As estruturas para garantir o acesso ao jurídico e à Justiça;

– As relações sociais entre os sujeitos do Direito;

– Os impactos sociais da ação do jurídico, etc.

Então, a Sociologia Jurídica procura entender as relações entre liberdade e regulação, compreender como ocorre a relação entre a sociedade e o Direito, como uma sociedade se organiza para criar sua vida jurídica e como esta passa a refletir na sociedade. Pressupomos, pois, que o comportamento social é resultante das repostas que as pessoas dão a vários fenômenos complexos que somente podem

Page 26: Sociologia Jurídica

26E n i o W a l d i r d a S i l v a

ser analisados no contexto do ambiente no qual sua socialização se

realizou. É este o peso empírico que a Sociologia carrega: estudar os

comportamentos dos indivíduos em seus aspectos internos e externos1

conforme os contextos que estão sempre em mudança.

À medida que os indivíduos vão continuamente se adaptando,

como seres sociais, às exigências do grupo de convívio, o seu compor-

tamento torna-se parecido ao dos outros membros e as expectativas

de comportamento são possíveis de serem estudadas, de serem padro-

nizadas e mesmo controladas. O controle, a padronização nunca são

completos e nem os estudos são exatos, pois a conduta humana é bem

mais do que simples respostas aos estímulos externos e internos, uma

vez que lhe é possível planejar ações visando a algum objetivo.

Quando os estudos do homem enquanto ser social começaram a

se ampliar percebeu-se que seria possível verificar algumas tendências

que se confirmavam. Daí resultou a cultura de que todos precisamos

de regras para nossas condutas que sejam claras, conhecidas e ajusta-

das ao grupo. E assim teve origem o controle social que muitas vezes

entrou em choque quando um grupo tenta impor a outros o seu modo

de ver, de sentir o mundo a sua volta.

Para entender melhor este momento de afirmação da cultura jurídi-

ca vamos fazer uma rápida revisão da evolução da sociedade descrita pela

Sociologia e depois retornaremos ao contexto da modernidade, período

histórico de intensas demanda por controle social. Antes, porém, vamos

ver esta excelente descrição da Sociologia Jurídica criada por Souto:

1 Conforme Souto (1981), ao lado dos elementos considerados externos ao comportamen-to temos os outros, objetos, conhecimentos e do mundo interno como as substâncias químicas, as pressões e distensões mecânicas de nosso organismo.... a fome, a sede, o sono, por exemplo, são expressões dos estímulos provocados pelo meio interno. E isso não é objeto necessariamente da Psicologia, mas a Sociologia pode se valer de saberes de outras ciências (Souto; Souto, 1981).

Page 27: Sociologia Jurídica

27Introdução

O fenômeno jurídico pode ser percebido como norma ou como condu-ta.Tanto numa visualização como noutra, norma e conduta jurídica se implicam, pois conduta jurídica é sempre normada e a norma sempre se refere à conduta social. A norma jurídica se origina de uma conduta humana específica. Por isso o direito é fenômeno claramente social... se o jurídico é fato social este é preocupação constante da Sociologia Jurídica. Esta estuda este em sua correlação com a realidade social... A perspectiva sócio-científica do jurídico tem-se afirmado internacio-nalmente de forma clara e progressiva, e não pode ser ignorada por um país em desenvolvimento como o Brasil. Com efeito a expansão das sociedades e de seus problemas de contato social, o aumento da comunicação interna e externa, as necessidades da vida nacional e internacional, tudo parece demandar um tipo de controle social adaptável à sociedade: um controle menos formal, menos dogmático, mais dinâmico, que corresponda à rápida mudanças ocorrida dentro das sociedades particulares e à natureza da sociedade internacional, que permanece sendo, em grande escala, uma sociedade informal (Souto; Souto, 1981, p. 13).

Page 28: Sociologia Jurídica
Page 29: Sociologia Jurídica

CAPÍTULO 1

AFIRmAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA

Page 30: Sociologia Jurídica
Page 31: Sociologia Jurídica

A sociedade iniciou quando os homens, permeados pelas neces-

sidades humanas, tiveram de assentar-se sobre um território, produzir

alimentos, construir seu hábitat e assegurar suas vidas. Esses diferentes

processos foram chamados de formalização da natureza, ou humanização

da natureza. Como não podia fazer isso de modo individual, o homem

uniu-se a outros que tinham os mesmos interesses, formou famílias e

iniciou atividades coordenadas para transformar a natureza. Essas ações

coordenadas foram chamadas de trabalho e os pactos formados para

viverem juntos foram denominados de normatização do coletivo (leis). A

primeira forma organizativa e normatizada foi a família, que além de ser

fruto da organização bio-lógica, tornou-se a forma elementar, básica e

inicial da vida em sociedade. Em torno dela e para sua defesa criaram-se

muitas disposições culturais e se aumentou a capacidade de trabalho.

Veremos primeiramente a evolução do trabalho do homem e em seguida

a institucionalização dos entendimentos sobre a ordem social.1

Trabalho e Sociedade

Segundo Cristiano da Paixão Araújo Pinto, pode-se ilustrar a transição

das formas arcaicas de sociedade para as primeiras civilizações da

Antiguidade mediante três fatores históricos:

a) o surgimento das cidades cuja origem pode-se situar no Paleolítico,

na Mesopotâmia. Pode-se dizer que o processo de destribalização teve

início no século IV a.C., tendo-se notícia da formação de cidades nos

anos 3100-2900 a.C., na Baixa Mesopotâmia, isto é, região designada

por Suméria, nas margens do Rio Eufrates, mais próxima ao Golfo

Pérsico. No período histórico imediatamente subseqüente (dinástico

primitivo 2900-2334 a.C.) menciona-se a formação de outras cidades,

entre as quais Nipuur e Ur;

1 Este texto foi adaptado de Silva, Enio Waldir. Sociedade, política e cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008.

Page 32: Sociologia Jurídica

32E n i o W a l d i r d a S i l v a

b) a invenção e domínio da escrita, estreitamente ligada ao surgimento das cidades, cujas primeiras manifestações (cuneiformes) se deram na Mesopotâmia, por volta de 3100 a.C e

c) o advento do comércio e, numa etapa posterior, da moeda metálica, por um sistema de trocas de mercadorias e venda em mercados ou na navegação. Na clássica lição de Engels,2 a origem do comércio localiza-se na divisão do trabalho gerada pela apropriação individual dos produtos antes distribuídos no seio da comunidade; com a re-tenção do excedente, a criação de uma camada de comerciantes e a atribuição de valor a determinados bens, o homem deixa de ser senhor do processo de produção. Inaugura-se, então, ainda segundo Engels, uma assimetria no interior da comunidade, com a introdução da distinção rico-pobre... Porém, falar em um direito arcaico ou primi-tivo implica, contudo, ter presente uma diferenciação da pré-história e da história do direito e ainda, quanto aos horizontes de diversas civilizações, no sentido de precisar o surgimento dos primeiros textos jurídicos com o aparecimento da escrita, tudo dependendo do grau de evolução e complexidade de cada povo... o direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade da pré-história fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais a considerar do que a base geradora do jurídico encontra-se, primeiramente, nos laços de consangüinidade, nas práticas do convívio familiar de um mesmo grupo social, unido por crenças e tradições (Tavares).3

A interpretação da sociedade pode ser feita pelo estudo do modo

como o homem organizou-se para o trabalho. Neste caso, nas comunida-

des primitivas o “trabalho” era visto como uma resposta do ser humano

às suas necessidades básicas: fome, abrigo, vestimenta, defesa, etc., não

podendo ser separado dos demais aspectos da vida social: ritos, mitos,

festas, artes, sistema de parentesco, entre outros. Ele não tinha valor em

si, ou seja, separado dos demais aspectos da vida social (Rotta, 2006).

2 Engels, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3. ed. São Paulo: Global, 1986.

3 O Direito nas Sociedades Primitivas: Algumas Considerações. Disponível em: <www.fmd.pucminas.br/virtuajus/ano1_08_2003>.

Page 33: Sociologia Jurídica

33Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

Embora tendo diversidade, a maior parte das sociedades tribais praticava uma separação do trabalho por sexo e idade. Dividiam as tarefas para dar conta das necessidades e para garantir o processo de aprendiza-gem e reprodução do grupo.4

O esquema a seguir mostra a evolução das formas organizativas do homem:

1

GENS GENSGENS

REUNIÃO DE FAMILIAS - FPM

REUNIÃO DE GENS - CLÃS

CLÃSG

G

GCLÃS

G G

G

As ações dos sujeitos resumiam-se na busca de alimentos e no su-primento de necessidades. Quando ocorreu a escassez de alimento alguns grupos se deslocaram para longe e outros ficaram próximos, assentados em territórios. Ali formaram os primeiros grupos humanos, cujo centro se dava em torno das atividades da mãe: a Família Poligâmica Matriarcal – FPM. A união para defesa gerou as Gens (união da FPM). A estratégia de manutenção, reprodução e defesa levou às clãs... depois se formaram as tribos, e sucessivamente os impérios... É neste último momento que se passou da FPM para a FMP – Família Monogâmica Patriarcal, e com ela a complexificação da sociedade em classes sociais

4 Rotta, Edemar, citado por Silva, 2008a.

1

GENS GENSGENS

REUNIÃO DE FAMILIAS - FPM

REUNIÃO DE GENS - CLÃS

CLÃSG

G

GCLÃS

G G

G

Page 34: Sociologia Jurídica

34E n i o W a l d i r d a S i l v a

As atividades de trabalho estavam em harmonia com o processo

natural. Conheciam profundamente o meio em que habitavam e pro-

curavam aproveitar sua capacidade de trabalho para usufruir, da melhor

maneira possível, dos recursos proporcionados pela natureza.

As técnicas utilizadas eram simples, mas davam conta das neces-

sidades do trato com a natureza. Isso não quer dizer que não houvesse

inovação. O trabalho era, acima de tudo, uma atividade social, pois estava

voltado para o bem da coletividade e não para um processo de acumula-

ção, sendo desenvolvido de forma coletiva.

No momento em que o trabalho passa a ser visto como atividade

autônoma e ser orientado para a acumulação, tem-se o rompimento com

as sociedades tribais e a transição para a formação dos reinos e impérios

que vão dar origem às grandes civilizações da Antiguidade: os persas, os

egípcios, os gregos, os romanos, etc. Temos aí a sociedade escravista.

TRIBOS TRIBOSTRIBOS

REUNIÃO DE CLÃS - TRIBOS

REUNIÃO TRIBOS - IMPÉRIOS

T

T

T T T

T

FMP – FAMILIA MONOGAMICA PATRIARCAL

As disputas entre os diferentes povos levaram os vencedores a se

apossarem das riquezas dos vencidos: terras, animais e pessoas. O direito

de conquista submete o vencido à condição de escravo (Grécia e Roma)

ou de pagador de tributos (persas e egípcios).

Page 35: Sociologia Jurídica

35Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

Opera-se aí uma nova divisão do trabalho que vai substituir a divisão por sexo e idade. É a divisão entre trabalho braçal e trabalho intelectual. O trabalho manual, de quem labuta na terra, e o intelectual, que planeja e ordena a vida social.

– Trabalho braçal: que exige a força bruta e reduzida habilidade; ativi-dade passiva e sujeita ao ritmo da natureza, típica dos agricultores e escravos;

– Trabalho manual: cuja ênfase recai sobre o fazer, o ato de fabricar, de criar alguma coisa por meio do uso de instrumentos ou das próprias mãos. É o trabalho do artesão, do escultor, em que o produto pode permanecer para além da vida de quem o fabrica;

– Trabalho intelectual (práxis): é a atividade que tem a palavra como seu principal instrumento. O trabalho livre, dos cidadãos, dedicado a discutir os assuntos da vida pública (negócios públicos: administração, gestão, poder, artes, Filosofia, etc.) e a dispor, da melhor maneira possível, os produtos postos à disposição pelas outras formas de tra-balho.

Essa divisão era vista como um processo natural, decorrente da competência das pessoas, por uma superioridade ou inferioridade natural.

A condição de escravo, independentemente do ofício a que era submetido, gerava uma submissão natural ao seu senhor, a quem deveria servir até a morte ou a conquista da liberdade. O escravo poderia ser vendido, trocado, alugado, etc. É nesse sentido que se produz uma visão negativa do trabalho, visto como castigo e sofrimento; com a desagre-gação dos grandes impérios, desencadeia-se um retorno ao meio rural e às atividades agrárias. A escravidão vai cedendo lugar à servidão. Uma relação de mútuos direitos e obrigações entre o servo e o seu senhor. O senhor não é mais proprietário do trabalhador, mas da terra e dos instru-mentos de trabalho e os arrenda ao trabalhador em troca de obrigações que este deve prestar-lhe.

Page 36: Sociologia Jurídica

36E n i o W a l d i r d a S i l v a

Estabelece-se uma relação contratual; as relações servis acabam produzindo uma sociedade com espaços definidos e funções determi-nadas na divisão do trabalho; essa divisão era entendida como natural e legitimada por um discurso religioso; a produção do feudo servia para atender às suas necessidades. O excedente era consumido em festas ou trocado com feudos vizinhos. A tecnologia utilizada era simples e seu avanço muito lento. Estava ligada ao mundo prático da vida e ao ciclo da natureza. Isto é muito próprio do feudalismo.

Apesar de as atividades dominantes estarem ligadas à terra, havia o desenvolvimento de outras atividades que, aos poucos, foram conquistando espaço e gerando profissões reconhecidas e organizadas, as corporações de ofício. A partir delas, porém, já vamos ter uma nova forma de organizar o trabalho que vai rompendo com o modo dominante do contrato e preparando as relações assalariadas.

FEUDALISMO

• -SENHORES• -VASSALOS/CLERO• -SERVOS

SEDE/CIDADE

CONTRATOS

SERVIÇOS

PRODUTOS

TRIBUTOS

A crise do feudalismo, na Europa, vai proporcionar o maior desen-volvimento das atividades urbanas, em especial do comércio e artesanato, levando à afirmação de uma nova compreensão de trabalho.

A desagregação do feudalismo na Europa está ligada a um conjunto de fenômenos: esgotamento das terras e das tecnologias, aumento da população, crises de fome e doenças, desenvolvimento do comércio e das atividades urbanas, etc. O desenvolvimento do comércio e das ativida-des urbanas vai gerar um novo grupo social composto por comerciantes e artesãos que precisam afirmar o seu trabalho como a origem dos bens

Page 37: Sociologia Jurídica

37Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

que vão se acumulando. Assim, passam a gerar um sentido positivo ao

trabalho e a demandar novas teorias que possam justificar esse sentido

positivo. As teorias liberais vão dar sustentação a essa compreensão.

Locke atribuiu ao trabalho a fonte de toda a propriedade. Adam

Smith afirmou que o trabalho é a fonte de toda a riqueza. Marx, embora

não concordando com as ideias liberais, consolidou essa compreensão

ao referir o trabalho como fonte de toda a produtividade e a expressão

da própria humanidade do homem.

As novas ideias afirmaram a compreensão positiva do trabalho, que

passa a ser visto como a fonte de riqueza de uma Nação. A capacidade

de acumular riquezas passou a depender da aptidão de trabalho e não

apenas da posse de recursos naturais, da balança comercial favorável ou

do acúmulo de metais preciosos por processos de exploração colonial.

Assim tem início o capitalismo.

O domínio de atividades urbanas ligadas ao comércio e ao artesa-

nato vai desencadear também uma intensificação do ritmo tecnológico,

principalmente nessas áreas; os comerciantes e artesãos aliam-se aos

reis e fortalecem seu poder, contrapondo-se à nobreza e ao clero e pre-

parando uma consequente conquista de ascensão ao poder do Estado; o

desenvolvimento das cidades vai gerar um mercado de trabalho urbano

submetido a novas regras, cada vez mais orientadas para o assalariamento,

para a separação entre o trabalho e os meios de produção e para o cultivo

de uma “ética do trabalho” (Rotta, 2006).

CLASSES FUNDAMENTAIS

• PROPRIETÁRIOS X NÃO-PROPRIETÁRIOS

BURGUESIA PROLETARIAO

SOCIEDADE CIVILSOCIEDADE POLITICA

Page 38: Sociologia Jurídica

38E n i o W a l d i r d a S i l v a

O ambiente urbano prepara a consolidação da ideia de que é com

o trabalho que a pessoa tem possibilidade de ascender socialmente,

superando as visões antigas, baseadas em laços de sangue, de heredita-

riedade e de títulos.

Função do trabalho no capitalismo: lucrar/acumulação; fonte de

riqueza –individual e coletiva; fonte da liberdade; força da competição;

universalização do cidadão; moral profissional; força do mercado. É nesse

contexto que começam aparecer estudos sociológicos sobre: condições

de vida, legislação trabalhista, saúde, mortalidade infantil, moradia,

formação profissional, composição racional, salário, jornada de trabalho,

gestão de mão de obra, trabalho das mulheres, crianças e idosos, aciden-

tes de trabalho, exclusão, sofrimento no trabalho, organização urbana,

assistência ao trabalhador e sua família, papel do Estado, conflitos entre

patrões e empregados, resistências individuais e coletivas, associações

e sindicatos de trabalhadores, etc. O que vai assegurar a estruturação da

vida moderna pode ser interpretado pelo esquema a seguir:

Fontes para a ordem Moderna• ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA

• Ciência• Educação• Direito• Estado• Indústria• Comércio• Mercado• A Propriedade• A Competição• O Positivismo

Elite

Burocratas

Classe Média

Operários

Fortalece-se a compreensão dos direitos da pessoa no trabalho,

aumentam as leis trabalhistas, crescem os movimentos sociais e sindicatos

(patronais/trabalhadores); criam-se instituições do trabalho; o trabalho

abstrato amplia-se; aplica-se a ciência para efetivar o resultado do tra-

balho com taylorismo/fordismo; muitos países fazem alianças nacionais

Page 39: Sociologia Jurídica

39Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

– imperialismo do capital – para organização do trabalho, etc. Enfim,

muda o comportamento das pessoas, inclusive são treinadas em escolas

para agir no trabalho, com o trabalho – uma ação encadeada... Quem se

adaptou criou uma nova moral... foi convencido que pelo trabalho cresce

na vida... se salva.... não é vagabundo, vadio, etc... Inclusive diversas leis

emergem para regular o trabalho... cidades inteiras foram organizadas em

torno do trabalho do homem... a “ética” justifica as diferenças sociais, as

posições dos ricos, a moral, a valoração... inclusive o fascismo vai pregar o

trabalho como fim último do homem (lavoro, lavoro, lavoro), invertendo

seu sentido.

Vamos agora recuperar a trajetória do pensamento social que

expressou a evolução do Direito ou, no mínimo, influenciou esta evo-

lução.

Pensamento Social

Na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de

controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar

os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito

ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão

social (Wolkmer)5.... a comparação das crenças e das leis demonstra que

as famílias grega e romana foram constituídas por uma religião primiti-

va, que estabeleceu o casamento e a autoridade paterna, fixou os graus de

parentesco, consagrou o direito de propriedade e o direito de herança. Esta

mesma religião, por haver difundido e ampliado a família, formou uma

associação maior, a cidade, e nela reinou do mesmo modo que reinava na

família. Desta se originaram todas as instituições como todo o direito privado

5 O direito nas sociedades primitivas. In: Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 20.

Page 40: Sociologia Jurídica

40E n i o W a l d i r d a S i l v a

dos antigos. Foi dela que a cidade extraiu seus princípios, suas regras, seus usos e sua magistratura [...] É mister, pois, estudar antes de tudo, as crenças destes povos (Coulanges).6

A origem do Direito está, como referimos, lá no momento em que

o homem começou a viver em grupo e sentiu necessidade de controlar

as condutas humanas (Souto; Souto, 1981). O pensamento sobre o social,

no entanto, surge mais tarde, depois dos mitos, dos totens, das religiões

e junto com a Filosofia. Nasceu com estas perguntas: Como poderíamos

programar as causas da ação humana, especialmente aquelas condutas

relacionadas a sua vida coletiva? Como a vivência junto poderia aprimorar

a civilização e como um homem pode ser o complemento da construção

do outro?

Os estudos sobre a política mostram que o primeiro ato político

do homem foi aquela ação que cometeu em relação aos outros ou da ex-

pectativa que tinha em relação à ação dos outros. Com as aproximações

humanas a política passou a se constituir em atos especificamente criados

para a vida coletiva. Foi necessário, portanto, criar um saber específico

sobre estes temas, para entender a confluência de forças existentes em

uma comunidade que orientam a vida coletiva.7

No início dos estudos políticos a preocupação estava em definir

como o homem poderia ser mais político que a sua dimensão natural,

ou seja, o homem é um ser político por natureza, mas como ele poderia

adquirir capacidades para agir de modo universal, pela coletividade e para

coletividade de modo a tornar cada vez mais justa a vida em sociedade.

A esquematização das respostas poderia ser assim apresentada:

6 Refere-se a Coulanges, Fustel. A cidade antiga. 2. ed. São Paulo: Edipro, 1999. p. 13-14. Citado por Fernando Horta Tavares. Disponível em: <www.fmd.pucminas.br/virtuajus/ano1_08_2003>.

7 Silva, Enio Waldir. Sociedade, Política e Cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008a.

Page 41: Sociologia Jurídica

41Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

JUSTIÇA SOCIAL

NECESSIDADES PRIMORDIAIS: NATURAIS: ALIMENTO –AFETO

SOCIAIS: MEDOS (MORTE) E DESEJOS (SER FELIZ)

AÇÃO FUNDAMENTAL: O TRABALHO E A EDUCAÇÃO

TRANSFORMAR A NATUREZA – ALIMENTO E CASA

CONHECIMENTO E FÉ

Os elementos deste esquema poderiam ser entendidos como os

passos da evolução da organização política. Parte da criação do pensa-

mento social foi para justificar maneiras de administrar o espaço universal

público (chamado de polis, cidade, sociedade). No centro do espaço

público está o Estado: a instituição fruto da razão humana e a mais

complexa para assegurar a vida coletiva. Ele tornou-se um lugar no qual

se condensou grande parte das intenções de controle social e para onde

atividades coletivas se voltavam para conflitos sociais e as disputas dos

grupos. Passou a ser a expressão estruturada do poder, tendo elementos

coativos e coercitivos, e se colocou acima de todas as outras instituições

reconhecidas: a família, a escola, a empresa, a religião...

Page 42: Sociologia Jurídica

42E n i o W a l d i r d a S i l v a

4

ESTADOEXPRESSÃO ESTRUTURADA DO PODER COLETIVO

2

1

4

5

5

3

1

32

4 5

5

COAÇÃOCOERÇÃO

Coação: Todos os elementos sociais que atuam no convencimento à ordem social.

Coerção: Todos elementos de força que obrigam o indivíduo a seguir a ordem social.

A história política do homem passa pela história do Estado, das

doutrinas sobre melhor governo, das instituições criadas para assegurá-lo

e pelos movimentos sociais para conquistá-los. Podemos esquematizar

assim a história do pensamento sobre as relações sociais constituídas

juridicamente:

EVOLUÇÃO DA ORDEM SOCIAL

GREGOS

CRISTÃOS

MODERNIDADE

PÓS-MODERNIDADE

CULTURA JURÍDICAATUAL

ROMANOS

Assim, iniciamos no século 6º a.C. a perceber os registros sobre

regras do coletivo e segundo Châtelet (1984), a cultura política do

mediterrâneo europeu tem como uma das fontes a civilização grega

Page 43: Sociologia Jurídica

43Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

clássica. O conjunto de invenções institucionais, literárias, artísticas,

científicas, teóricas e técnicas, condensadas na forma política da cidade

(polis), destaca a grandeza desta civilização que teve seu período de ouro

entre o século 6º a.C. e o século 1º a.C. A origem dessa forma política

de vivência está nos acordos feitos pelas populações em conflito, pois

precisam criar regras para o jogo das vivências sociais. Drácon e Sólon

foram os primeiros legisladores do Ocidente ao enunciarem ideias sobre

a participação de cada um na gestão da cidade, nas decisões das questões

de interesses coletivos, bem como a forma de arbitragem dos conflitos e

a punição dos crimes e dos delitos.

A lei passou a ser a orientadora das pessoas, e poderia ser obede-

cida sem temor, como era a obediência por medo de quem obedecia a

um outro, um senhor. Com textos claros e conhecidos e que tornavam

públicos os julgamentos, a lei era como um princípio de organização

política e, por isso, talvez, a invenção política mais notória da Grécia

clássica (Châtelet, 1984, p. 14).

Se a lei é alguma coisa de alma, de razão, a cidade é algo concreto

e espaço onde vivem os homens, em sua cotidianidade e em sua forma

histórica, como animal político (Aristóteles – A Política). Ou seja, para os

gregos a sociabilidade é produzida pela natureza, no entanto é preciso

ordená-la para que a virtude do homem possa realizar-se em sua pleni-

tude. A cidade é uma comunidade consciente, uma organização fundada

não sobre a força bruta, não sobre interesses passageiros, mas sim uma

forma política que expressa a essência humana, a possibilidade da justi-

ça e da satisfação dos desejos legítimos dos indivíduos.8 A estrutura da

sociedade pode ser descrita como no quadro a seguir:

8 Silva, Enio Waldir. Sociedade, política e cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008a.

Page 44: Sociologia Jurídica

44E n i o W a l d i r d a S i l v a

A ordem Gregos Clássicos• ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA

• Filosofia/Educação• Ação Política/Cidadã• Lei/Justiça• Cidade/Ágora• República/Estado• Democracia• Arte da Guerra• Beleza/esporte

SÁBIO

GUERREIRO

Trabalhadores

Já os romanos colocaram em prática muitas ideias políticas dos gregos. De uma forma ou de outra, elas estão presentes nas instituições mais sólidas, como é o caso do Direito, do Império e da República.

O Direito Romano tinha por base a Lei das Doze Tábuas e se instituía tendo como objeto primeiro a família. O cidadão, o homem livre, é o pater familias, senhor absoluto da casa, cabe-lhe representar junto aos juízes quando julgar que ele próprio, os seus ou suas propriedades sofreram algum dano, bem como exigir reparação e penas adequadas. Mais tarde o Direito se estende aos peregrinos; depois a todos os que adquirirem cidadania. O Direito Romano espalhou-se pelo mundo entre-meado pelos caminhos do império. Mesmo reduzindo o espaço territorial o Direito ficou onde foi o império, pois era fruto de racionalidades e se enraizou como uma forma de ordenação do mundo, regulamentando o que é e o que não é, e, ainda, propondo um dever-ser (Châtelet, 1984, p. 23).

Políbio (200-125 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.) foram os principais pensadores sociais que trataram de descrever como deveria ser o Império

Romano, mostrando que era uma comunidade que tinha sua unidade baseada num vínculo jurídico e numa ordem política bem determinada. Roma é a cidade ecumênica que guarda as maiores semelhanças com a cidade ideal descrita pelos gregos. O imperador e seus cônsules estavam no topo, eram os governantes, representavam o cérebro governamental; mais abaixo estavam os guerreiros que defendiam a cidade, mantendo

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45Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

sua glória simbólica; bem embaixo estão os artesãos e os agricultores, que proveem as necessidades materiais da cidade. A estrutura social pode ser assim descrita:

Lei e Ordem para os Romanos• ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA

• A República• A Cidade de Roma• O Direito• A Arte da Guerra• O Senado• O Consulado• Artes e Ofícios

Cesar/Império

Guerreiros/Legiões

Cidadãos/estrangeiros

O problema da sucessão de César (César deveria preparar seu herdeiro), a quebra da cultura de onipotência do imperador (vindo de Cristo), a expansão territorial (conquistaram mais território do que podiam controlar) e o aumento da centralidade da Igreja Católica cristã levaram a um enfraquecimento e à dispersão do Império Romano. Nos anos 300 d.C. o cristianismo virou religião oficial do império. O fim do império deu-se em 410. Inicia-se, então, uma nova fase de compreensão sobre o social e o modo de conceber a ordem social, as noções de liberdade, responsabilidade e ação histórica. Serão o cristianismo e o islamismo que irão marcar duradouramente as ideias e os costumes posteriores.

Essa nova ordem social é justificada nas proposições filosóficas

de Santo Agostinho (354-430). Sua obra, carregada de expressões polí-

ticas, foi A Cidade de Deus. Seguiu-se a compreensão de que tudo o que

existe é criação de Deus ou por sua vontade. Os preceitos teológicos do

Deus Único e a concepção do homem como uma criatura de Deus vão

se afirmando pela Idade Média, quando foram fundadas cidades cristãs

baseadas num vínculo religioso e não nos vínculos jurídicos. Assim, as

ideias aristotélicas de ação política vão ser redirecionadas para demarcar

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46E n i o W a l d i r d a S i l v a

os deveres e os direitos da cristandade. A dimensão histórica e explica-

tiva agora não é mais natural, mas fruto da ordem divina: Deus criou o

homem. Este ato foi o começo. A morte não é o fim, mas a ressurreição.

O espaço entre o nascer e o ressuscitar é da provação em que o cristão

paga ao Criador a dívida pela criação. O modo de pagar é rezando e tra-

balhando, conforme pode ser representado no quadro a seguir:

PROVAÇÃO

TRABALHAR

ORAR NA IGREJA

PAGAR O DÍZIMO

FIM: RESSURREIÇÃO

INÍCIO -A CRIAÇÃO

CÉU - DEUS

INFERNO - DIABO

Os representantes de Deus na Terra orientavam a vida coletiva e

individual e vão encomendando a alma dos fiéis. Se fizerem como man-

dam vão para o céu; se não o fizerem, irão para o inferno. O crime passa

a ser chamado de pecado. O modo como vai sendo medido o pagamento

da dívida divina é pela presença do homem nos sacramentos da Igreja e

pelo depósito do dízimo.

A Igreja, a exemplo do Império Romano e da cultura grega, vai

garantir algumas estruturas para se afirmar: o Direito Canônico, as or-

dens religiosas e o exército de Cristo. Uma série de pensadores cristãos

(chamados de Santos) deram o contorno desta nova forma de entender

o mundo (Boécio 480-521; Santo Anselmo 1033-1099; Santo Abelardo

1079-1142; Santo Tomás de Aquino 1225-1274; São Boaventura 1221-

1274; Duns Scot 1265-1308; Gulherme de Occam 1290-1349; Nicolau de

Cusa 1401-1464; Marcílio de Pádua 1275-1313...). A estrutura do poder

nesse período poderia ser assim imaginado:

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47Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

Fé e Ordem Social Teocrática• ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA

• A Palavra Sagrada• A Fé• O Direito Canônico• A Evangelização• As Ordens Religiosas• As Cerimônias• A Preparação p/ Céu

Deus/Papa

Padres / Igreja

Comunidade de Fiéis

Nos reinos vão se desenvolvendo noções novas e elaboram-se

técnicas de gestão que substituem as hierarquias tradicionais por rela-

ções contratuais. O desenvolvimento do comércio e dos negócios torna

indispensável uma moralização da atividade mercantil; e o estatuto do

sujeito mercantil vai se ampliando na medida em que ele vai participando

do bem-estar da comunidade ou usa as riquezas adquiridas para o bem

comum. A cidade profana amplia-se e se enche de regras e princípios

e o poder de governar passa a ser cada vez mais cobiçado. Os múltiplos

abalos do período de 1400-1500 irão radicalizar essa orientação, inclusive

passando a ser denominado de Renascimento.

Um dos reforços para a emergência dessa nova fase histórica que

se convencionou chamar Modernidade, em que prevalece no poder

coletivo a dimensão racional, jurídica e científica das relações sociais, é

Martinho Lutero. Em 1517 ele vai expor mais de 90 teses denunciando o

poder da Igreja de Roma. Havia tráfico de indulgências para obter ganhos

materiais e exercer pressões morais sobre seus fiéis. Isto reforça o poder

dos príncipes nos reinos e faz explodir a Reforma, uma tendência que

contestava o poder da Igreja: a inspiração dos reformadores é, ao mesmo

tempo, teológica, moral e política. Teológica, porque se fundamenta no

cristianismo primitivo com o dogma de que a essência da religião está

na fé e não na idolatria de imagens e riquezas; Moral, porque se opõe à

corrupção do alto clero, mais preocupado com o poder e o luxo, esquecen-

Fé e Ordem Social Teocrática• ESTRUTURA/BASE • SUPERESTRUTURA

• A Palavra Sagrada• A Fé• O Direito Canônico• A Evangelização• As Ordens Religiosas• As Cerimônias• A Preparação p/ Céu

Deus/Papa

Padres / Igreja

Comunidade de Fiéis

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48E n i o W a l d i r d a S i l v a

do a caridade e a piedade, e Política, porque a palavra de Deus, a Bíblia,

passa a ser experimentada em sua dimensão prática, na língua dos povos

que a leem. Os espaços que deveriam ser da Igreja e os que deverão ser

do Estado têm forte expressão nas palavras de Lutero:

Meu reino não é deste mundo”. Tomando a palavra de Cristo ao pé da letra, Lutero deixa de certo modo o campo livre para a onipotência do Estado no mundo terreno; confere-lhe o monopólio da decisão e da repressão. Deixa-se ao cristão a possibilidade de intervir pela palavra e pelo exemplo, a fim de que sejam respeitados os mandamentos de Deus e afirmada a força espiritual da comunidade dos fiéis... Lutero, Münzer e Calvino (1536-1559) vão ser reformadores que colaboram para a afirmação das realidades nacionais e o poder do Estado e abrir um importante capítulo do pensamento político moderno: o das relações entre comunidades religiosas e o Estado convertido em potência laica, capítulo que é freqüentemente, ao mesmo tempo, o das relações entre exigências morais e necessidade política (Châtelet, 1984, p. 43).

Nos esquemas a seguir vamos sintetizar a visão sociológica sobre

a história do pensamento social e a visão sobre a evolução das normas

sobre o coletivo:

CONCEPÇÕES DE MUNDO NAS TRÊS FASES HISTÓRICAS DO PENSAMENTO SOCIAL

Concepções Grego Clássico Teocratismo Cristão ModernidadeHOMEM É um ser político

que pensa e entende suas necessidades e as formas de satisfa-zê-las. Quanto mais estende suas ideias e as concretiza na ação, mais poder tem.

É criatura de Deus, depen-dente de Sua vontade e tem uma dívida com seu Criador. Quanto mais pagar essa dívida (rezar e trabalhar: ir à Igreja e pagar o dízimo), mais chance tem de ser perdoado e voltar ao seu Criador (Céu).

É um ser natural criador: pensa, fala e age (trabalha). Por convenção ou pacto, obedece a uma ordem criada por ele: Direito, Estado e Ciência.

SOCIEDADE É criação humana, uma estrutura que resulta da justa ideia e da disposição de viver juntos de modo civilizado.

É o conjunto dos fiéis que contribuem para o sucesso da Igreja; é a rede de relações religiosas que cumprem as ordens divinas e lugar de provação.

É a organização criada pelo ho-mem para melhor desenvolver e potencializar sua natureza: pensar-ciência; falar – contratos/pactos; agir – trabalhar/usar seu corpo. Assim é o conjunto dos indivíduos/instituições dispostos de forma mais ou menos lógica para se viver bem.

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49Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica

ESQUEMAS SOBRE A EVOLUÇÃO DO DIREITO9

9 Interpretação possível do texto de Fernando Horta Tavares: O Direito nas sociedades primitivas: algumas considerações, 2003.

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CAPÍTULO 2

A mODERNIDADE – A JUDICIALIZAÇÃO

DAS RELAÇÕES SOCIAIS

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Nesta parte propomos a estudar as dimensões científicas das

abordagens da ordem social, a necessidade destas e as constelações

compreensivas que influenciaram na formatação da cultura jurídica que

marcam a historicidade atual.

A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa essa correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores reli-giosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade (Touraine, 1994, p. 9).

Ao pesquisar empiricamente as ações características de grupos

sociais, a Sociologia foi consolidando métodos que contribuíram para

que a própria Ciência Jurídica fosse se tornando um estudo sistematizado

e autônomo. Assim, desde os primeiros cursos de Direito a Sociologia

contribuiu para dar rigor às compreensões sobre o social. Os estudos

sociojurídicos possuem sempre um caráter interdisciplinar, em que se

pressupõe a colaboração equilibrada entre juristas e sociólogos que

compreendem não apenas o Direito em sentido estrito, mas também os

modos de regulação de conflitos que dele se aproximam ou com ele se

relacionam. Isso requer a compreensão de que há uma interação objeto/

sujeito e noção de que as realidades sociais podem ser diferentemente

representadas nas teorias, necessitando diálogos entre elas.

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54E n i o W a l d i r d a S i l v a

Para entendermos porque somos hoje tão dependentes das de-terminações jurídicas presentes na sociedade precisamos reconstituir as fontes que deram bases a essas necessidades de judicialização das relações sociais na cultura jurídica moderna. Ela tem bases no mundo da produção e arrastaram o desenvolvimento da vida urbana, do tráfego comercial na-cional e internacional, da produção manufatureira, da atividade bancária, etc. Nos centros europeus aparece cada vez mais o saber econômico, que passa de uma técnica de gerir patrimônios de famílias ou encher cofres de reinos para as ciências complexas que medem, proveem e preveem os atos de produção, circulação e consumo em espaços territoriais agora chamados de nação, a economia política.

A sociedade moderna consiste na crescente submissão das mais diversas esferas da vida pública e privada à calculabilidade, à impesso-alidade e à uniformidade características do formalismo burocrático sob o regime de dominação tipicamente racional-legal, como afirma Max Weber (1999a). A modernidade se definiu a partir de dois componentes: O primeiro princípio é a crença na razão e na ação racional: a ciência e a tecnologia, o cálculo e a precisão, a aplicação dos resultados da ciência a campos cada vez mais diversos de nossa vida e da sociedade, passam ser componentes necessários, e quase evidentes, da civilização moderna. O segundo princípio fundador da modernidade é o reconhecimento dos direitos

do indivíduo, isto é, a afirmação de um universalismo que dá a todos os indivíduos os mesmos direitos. A ação racional e o reconhecimento de direitos universais a todos os indivíduos.

No que tange à formação das ideias modernas acerca do Estado e do Direito é o legado clássico do pensamento greco-romano e às trans-formações trazidas pela Igreja Romana Ocidental. A Filosofia grega, a República, o Direito Romano e Direito Canônico são raízes históricas mais antigas que deram origem aos valores político-jurídicos e às insti-tuições modernas dos séculos 14 e 16. Juntos (e misturados) também provocaram os fenômenos de dissolução das instituições até então he-gemônicas (Igreja Romana), o aumento do poder real com o surgimento

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55Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

das monarquias nacionais (França, Inglaterra), o enfraquecimento do

papado, a emergência do reformismo filosófico, o aparecimento cultural

do humanismo renascentista e a secularização da política... reproduzindo

as condições para o desenvolvimento de uma cultura jurídica no interior

das relações histórico-sociais da sociedade moderna europeia.

Segundo Wolkmer (2005), muitos pensadores conseguiram captar a

dinâmica destas mudanças estruturais e mostrar que elas desencadearam,

conjuntamente com o complexo e plural sistema herdado de legalidade

(Direito Romano, Canônico, Germânico, Feudal e Mercantil), as bases

fundantes da moderna cultura jurídica europeia. Em verdade, nesse

horizonte de continuidades e de rupturas em que se forja os pensamen-

tos políticos e jurídicos modernos, é que se destacam, com muita força

e criatividade, os movimentos do Humanismo Jurídico e da Reforma

Protestante.1

No âmbito da economia agrário-senhoril, o Direito serviu para

a instituição da produtividade econômica de mercado livre, pela siste-

matização do comércio por meio das trocas monetárias e pela força de

trabalho assalariado, constituindo-se no capitalismo como um conjunto

de práticas comerciais, ao empreendimento individualista e competitivo,

bem como ao afã de lucro ilimitado, ao cálculo previsível e ao procedi-

mento administrativo racionalizado (Weber, 1999a). Um novo grupo social

diferente do clero e da nobreza vai se apropriando dos meios produtivos,

impondo uma hegemonia de valores e ideias ao controlar os instrumentos

políticos: a burguesia. Com a riqueza acumulada e concentrada nos meios

urbanos passam a dar as coordenadas para a vida prática e profissional

os prestigiados que começa a aparecer: médicos, advogados, contadores,

administradores...

1 Ver artigo de Wolkmer na Revista Seqüência, n. 50, p. 9-27, jul. 2005 e em sua obra: Cultura Jurídica Moderna, Humanismo Renascentista e Reforma Protestante. In: Revista Sequëncia, n. 50, p. 9-27, jul. 2005.

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A “alma” burguesa começa a ser reconhecidas em todos os cenários onde o dinheiro era seu fim, as empresas seu meio. A nova virtuosi-dade deste grupo que parecia estar acima de todos os outros grupos passa a ser velada e interpretada como se fosse o máximo entendi-mento humano. Crescem seus asseclas intelectuais que se instalam na administração das esferas públicas e vão dar roupagem científica às suas vontades e desejos, como foi a doutrina do liberalismo-individualista. Assim, o liberalismo torna-se a manifestação mais autêntica de uma ética individualista, voltada basicamente para a noção de liberdade e que está presente em todos os aspectos da realidade, desde o filosófico até o social, o econômico, o político, o religioso etc. (Wolkmer, 2005).

Ideias não bastavam, era preciso a estruturação do poder que

efetivasse e mantivesse as classes dominantes: O Estado, o Direito, a

burocracia, a escola passaram a ser redimensionados para garantir esta

nova ordenação. Segundo o sociólogo Max Weber, o Estado moderno

materializou uma associação humana institucionalizada, detendo o

“monopólio da coação física legítima”, fundado na economia capitalista

mercantil, na burocracia de agentes profissionais e na construção de uma

legalidade formal e racionalizada. O poder agora passa a estar centralizado

no Estado Nacional, liberal e representativo, que gerencia as leis do livre

mercado e das relações privadas competitivas.2 Esta nova organização é

fortalecida pelas descobertas científicas (racionalismo), pelas explorações

nas novas terras descobertas (colonialismo) e pelo envolvimento das pes-

soas nas novas atividades produtivas (industrialismo), tudo necessitando

ser garantido por uma cultura jurídica.

A unidade política, a elite cultural, instituições eficazes, a hierar-

quia da autoridade, a técnicas documentais, processuais e notariais, além

de um ensino escolar organizado, passaram a fazer parte deste horizonte

vislumbrado para a nova cultura jurídica, para a consciência de viver com

bases em relações jurídicas. Claro está que a nascente ciência jurídica

2 Idem Wolkmer, 2005.

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57Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

moderna não só se revela como produção de uma específica formação

social e econômica, mas principalmente consolida-se no processo de

junção histórica entre a legalidade estatal e a centralização burocrática.

O ápice teórico de convergência entre a unicidade do poder político e a nova ordenação do Direito pode ser encontrado na filosofia política de pensadores da época, como Thomas Hobbes. Certamente, assinala-se que Hobbes não é apenas um dos construtores do moderno Estado absolutista, mas igualmente um dos primeiros intérpretes a identificar o Direito como manifestação do Direito do soberano. Tratava-se da tendência, que acabará sendo predominante, do Direito identificado com a legislação posta pela autoridade revestida do poder máximo e, ainda mais, o Direito como criação do Estado. Assim, um dos traços marcantes do Direito Moderno emergente entre os séculos XVI e XVII está na íntima relação do Direito com o poder estatal e na sua identificação com a lei escrita. Trata-se da instrumentalização do jurídico como significação dos interesses da burguesia e da dinâmica produtiva capitalista (Wolkmer, 2005).

Assim, destes fenômenos emergiram de modo acelerado outras

necessidades, tais como: o processo de secularização de atitudes e dos

modos de compreender a natureza humana, a origem e o funcionamen-

to das instituições sociais e os motivos do comportamento humano; o

processo de racionalização que projetou, na esfera da ação coletiva, a

ambição de conhecer, explicar e dirigir o curso dos acontecimentos, das

relações dos homens com o universo às condições de existência social.

O programa moderno estava embasado no desenvolvimento implacável

das ciências objetivas, das bases universalistas da ética e de uma arte

autônoma. Seriam, então, libertadas as forças cognitivas acumuladas,

tendo em vista a organização racional das condições de vida em socie-

dade. Os proponentes da modernidade cultivavam ainda a expectativa

de que as artes e as ciências não somente aperfeiçoariam o controle das

forças da natureza, como também a compreensão do ser e do mundo, o

progresso moral, a justiça nas instituições sociais e até mesmo a felici-

dade humana.

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Percebia-se então que a ampliação da judicialização das relações sociais no período histórico da Modernidade se justificava para: regular as práticas econômicas em franca expansão; garantia da paridade nos negócios; afirmar a nação como espaço de produção e distribuição; pre-ver e prover ações planejadas; garantir a impessoalidade no trato com as questões coletivas e nas relações sociais; uniformidade nos tratamentos pessoais (burocracia); garantir o direito da pessoa, da propriedade, do lucro e da acumulação; enfraquecer o controle da Igreja e admitir necessidade de outra centralidade social; garantir a secularização da política; regular as concorrências; fortalecer o mercado como lugar de trocas; garantir a organização empresarial e industrial; controlar as imigrações e migrações populacionais; fortalecer as profissões e divisão do trabalho social, garantir o comércio internacional...

A base para a realização dos objetivos do projeto da modernidade seria garantido, no plano histórico, pelo equilíbrio entre os vetores socie-tários de regulação e emancipação. As forças regulatórias englobariam as instâncias de controle e heteronomia. De outro lado, as forças emancipa-tórias expressariam as alternativas de expansão da personalidade humana, oportunizando rupturas, descontinuidades e transformações.

Nas suas conotações mais positivas, o conceito de modernidade indica uma formação social que multiplicava sua capacidade produtiva, pelo aproveitamento mais eficaz dos recursos humanos e materiais, graças ao desenvolvimento técnico e científico, de modo que as necessidades sociais pudessem ser respondidas com o uso mais rigoroso e sistemático da razão

Neste sentido, discorre Boaventura de Sousa Santos (2004):

O projecto sócio-cultural da modernidade é um projecto muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. São pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três prin-cípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado,

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59Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.

O programa da modernidade fundar-se-ia na estabilidade dos re-

feridos pilares, assegurada pela correlação existente entre os princípios

regulatórios e as lógicas emancipatórias. Sendo assim, a racionalidade

ético-prática, que rege o Direito seria relacionada ao princípio do Esta-

do, uma vez que o Estado moderno era concebido como o detentor do

monopólio de produção e aplicação das normas jurídicas. A racionalidade

cognitivo-instrumental, por seu turno, seria alinhada ao princípio do

mercado, porquanto a ciência e a técnica afiguravam-se como as molas

mestras da expansão do sistema capitalista.

A dinâmica da Sociologia está ligada ao contexto seu surgimento:

emergiu do interior do pensamento social da modernidade chamado de

muitas formas: racionalismo, iluminismo, jusnaturalismo, evolucionis-

mo, contratualismo, constitucionalismo, idealismo, etc., que partia do

pressuposto de que o homem é o centro de todas as coisas; de que o

homem é o principal ser natural capaz de pensar, falar, agir e usar seu

corpo do modo que mais lhe convier. Assim, para esta compreensão,

bastava criarmos forças capazes de ordenar estas potências naturais para

criar outra potência artificial – positivar o existente que o submeteria (o

social submeteria o natural). Ou seja, a principal potência que deveria

ser bem preparada seria o pensamento, pois este coordenaria as outras,

as palavras e a ação (diziam os racionalistas, iluministas e idealistas – as

ideias iluminarão o mundo).

Esta compreensão levou à recuperação de outra potência histórica

necessária para ordenar o mundo: a quarta potência se tornou impres-

cindível, a potência da escrita, ou seja, não basta saber pensar, saber

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falar ou saber agir ordenadamente (racionalmente), era preciso colocar tudo isso por escrito no papel, para que todos possam seguir as melho-res orientações (afirmavam os contratualistas, os constitucionalistas, os jusnaturalistas). Assim, para preparar as ideias e escrever o melhor delas era preciso institucionalizar a educação, que também era uma herança da cultura ocidental, ou melhor, já havia muitas experiências de educa-ção escolarizada, mas agora ela faz parte do mundo social e vai se tornar universal, atingir a todos os sujeitos, pois precisam ser preparados para viverem o social, sair do natural. Para assegurar que estas potências sejam desenvolvidas foram redimensionadas e fortalecidas mais duas potências sociais, o Estado e o Direito (Sousa Santos, 2004), além das que já existiam.

AÇÃOH

RAZÃO/CIENCIAEDUCAÇÃO

DIREITO/ESTADO

Isso que se passava nos contornos do pensamento social se enterrou no mundo prático e vai ser chamado de alta modernidade.

Antecedentes igualmente notáveis estão nas teorias contratualistas de T. Hobbes, J. Locke e J. J. Rousseau. Do desenvolvimento de temas destas filosofias sociais depreendem-se concepções significativas acerca das funções que o Direito assumiria em decorrência do contrato social. As principais conclusões giravam em torno da garantia dos direitos na-turais de liberdade, vida e propriedade. Montesquieu, por outro lado, usa a estratégia de aplicar o princípio da causalidade física à sociedade. O autor afasta as concepções normativas do fato jurídico, explicando o Direito enquanto fenômeno social inserido em um contexto histórico-social particular, adotando uma visão empírica e relativista do Direito.

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61Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

Montesquieu introduzia novos elementos na reflexão sobre o

Direito Positivo e sobre suas relações com o Direito Natural. Este novo

“espírito” consistia em procurar o conjunto de relações que as leis podem

ter com as condições climáticas e geográficas, os tipos de vida, a religião,

o comércio e os costumes, e não só tratar de desvendar as relações que

as leis podem ter entre si e com a intenção do legislador. Relacionava o

Direito com todos os elementos do contexto político, social, econômico

e cultural, assim como com o entorno físico e geográfico. O resultado

era já uma Sociologia Jurídica, só que revestida com a linguagem do

século 18.3

O impacto destes estudos deveu-se mais às situações de perplexi-

dade que se via na época: rejeitava-se uma ordem social, mas não se sabia

qual ordem iria lhe substituí-la. A intelectualidade mostra-se preocupada

com a situação de desordem e entrega-se à missão de restabelecer a

“ordem e a paz”. Para isso, sente a necessidade de conhecer as leis que

regem o funcionamento da sociedade, sua organização, as relações dos

grupos, etc. Intui, portanto, uma “ciência da sociedade” que pudesse dar

respostas àquilo que passou a denominar de “crise moral”. Os primeiros

sociólogos propõem revalorizar determinadas instituições que, segundo

eles, desempenhariam papel fundamental na integração e na coesão da

vida social. A jovem ciência, a Sociologia, assumia a tarefa de repensar o

problema da “ordem social”, enfatizando as instituições, a autoridade, as

leis e normas de conduta, procurando descobrir onde havia se perdido a

coesão social e indicar como esta poderia ser reconstituída.

A nova ciência adota uma postura reformista, buscando legitimar

intelectualmente a nova ordem estabelecida, encontrar uma solução para

os problemas que se apresentavam. Contra os que pregavam a volta ao

passado, queriam a volta da monarquia (os “restauradores”), estavam os

3 Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de; Rojo, Raúl Enrique. Sociedade, direito, justiça. Relações conflituosas, relações harmoniosas? Revista Sociologias, Porto Alegre: UFRGS, ano 7, n. 13, p. 16-34, jan./jun. 2005.

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62E n i o W a l d i r d a S i l v a

“positivistas”,4 que propunham restabelecer a ordem como condição para

a continuidade do progresso desencadeado pela revolução econômica,

política, social e cultural por que passava a sociedade europeia. Para eles,

a raiz dos problemas estava na falta de uma classe, grupo ou instituição

que conduzisse o processo de mudança preservando a ordem por meio

da autoridade. Propunha a união dos industriais com os cientistas para

formar uma elite esclarecida capaz de conduzir os rumos da sociedade.

A tarefa da Sociologia seria ajudar esta “elite” a detectar os pro-

blemas e apontar as soluções que seriam postas em prática pela liderança

política estabelecida no poder do Estado. Assim estaria restabelecida a

normalidade social e criadas as condições para o progresso. Na sequência

dos positivistas (dedicado a fundamentar uma moral social), os funcionalis-

tas (dedicados a entender a sociedade a partir das funções exercidas pelos

indivíduos) reafirmavam a ideia de que a nova realidade surgida havia

alterado o equilíbrio social em função da falta de regulamentação jurídica

das novas profissões surgidas com a revolução industrial. Era necessário

que estas profissões organizassem suas corporações para regulamentar

o trabalho e, a partir das corporações, criar um novo código de conduta

socioprofissional e um novo sentido de pertença à sociedade. Com isso

reconstitui-se a divisão do trabalho e a solidariedade, fundamental para

o equilíbrio social.

4 Cella, José Renato Gaziero. Positivismo jurídico no século XIX: relações entre direito e moral do ancien régime à modernidade. Texto direto do autor disponível em seu site: <www.cella.com.br>. O autor adverte que não se pode fazer nenhuma analogia entre o chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se cair em erros grosseiros. Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto Bobbio, a “expressão ‘positivismo jurídico’ não deriva daquela de ‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado [século XIX] tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada têm a ver com o positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’ deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. Para compreender o significado do positivismo jurídico, portanto, é necessário esclarecer o sentido da expressão direito positivo” (Bobbio, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 15).

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63Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

O positivismo refere-se a toda a construção humana que se impõe sobre o mundo natural. Trata-se de todo este processo artificial que ordena e até substitui a natureza, nega qualquer concepção de valores e pretende ser o reflexo do que é e não do que poderia ser. Desta asser-tiva de que o mundo natural precisa ser dominado e organizado nasce uma abordagem nova para as Ciências Sociais com a perspectiva de ser objetiva e útil da doutrinação da sociedade, de sua ordenação. Foi esta concepção que predominou no Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial. Elimina do Direito qualquer referência à ideia de Justiça e, da Filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto o Direito como a Filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e im-pessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário. Ou seja, o Direito pode ser subdividido em Direito Natural e Direito Positivo (adquirido), sendo o primeiro inato a cada indivíduo e o segundo provém da vontade do legislador.

Conforme se depreende, a ideia moderna de que os homens encontravam-se aptos a delinear um projeto racional informa as defini-ções clássicas de lei e Constituição. As normas legais afiguram-se como instrumentos de uma razão planificante, capaz de engendrar a codificação do ordenamento jurídico e a regulamentação pormenorizada dos proble-mas sociais. A Constituição, produto de uma razão imanente e universal que organiza o mundo, cristaliza, em última análise, o pacto fundador de toda a sociedade civil.

O fenômeno da positivação é, pois, expressão da modernidade jurídica, permitindo a compreensão do Direito como um conjunto de normas postas. Ocorrido, em larga medida, a partir século 19, corresponde à legitimidade legal-burocrática preconizada por Max Weber, porquanto fundada em ritos e mecanismos de natureza formal. A positivação des-ponta como um novo processo de filtragem, mediante procedimentos decisórios, das valorações e expectativas comportamentais presentes na sociedade, que são, assim, convertidas em normas dotadas de validez jurídica. A lei, resultado de um conjunto de atos e procedimentos formais

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(iniciativa, discussão, quórum, deliberação) torna-se, destarte, a mani-

festação cristalina do Direito. Daí advém a identificação moderna entre

Direito e lei, restringindo o âmbito da experiência jurídica.

A análise global da conjuntura da época possibilita o entendi-

mento do sentido desta idolatria à lei. O apego excessivo à norma legal

refletia a postura conservadora de uma classe ascendente. A burguesia,

ao encampar o poder político, passou a utilizar a aparelhagem jurídica

em conformidade com seus interesses.

Os estudos da Sociologia Jurídica ampliaram-se no século 20. Na-

quele período havia aumentado a quantidade de atores do Estado e no

controle social: Judiciário, polícia, prisões, burocracia, escolas e mesmo

assim a desordem se ampliava. Então, a Sociologia procurou entender

como funcionavam os mecanismos regulatórios e como os indivíduos se

relacionam com o Direito, as normas, as regras, as distâncias e aproxima-

ções entre Direito e sociedade, as razões para a desordem, os fracassos

dos mecanismos controladores... As transformações principais ou mais

notáveis deram-se no mundo da produção e arrastaram o desenvolvi-

mento da vida urbana, do tráfego comercial nacional e internacional, da

produção manufatureira, da atividade bancária, etc., assim como provo-

caram mudanças nas relações sociais e culturais. Nos centros europeus

aparece cada vez mais o saber econômico, que passa de uma técnica de

gerir patrimônios de famílias ou encher cofres de reinos para uma das

ciências complexas que mede, provê e prevê os atos de produção, cir-

culação e consumo em espaços territoriais agora chamados de nações. A

expansão da complexidade nas relações sociais e as dimensões práticas

que estas proposições tiveram fizeram surgir vários estudos sociológicos

sobre as dimensões da vida regulada e o esforço em se viver em liberdade,

chamados de Sociologia Jurídica ou Sociologia do Direito.

A Sociologia do Direito vai criando sua identidade diante da

importância crescente dos marcos não nacionais e das redes regionais

e internacionais, do desenvolvimento das instituições que asseguram a

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65Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

produção (e a reprodução) do Direito: os tribunais, as profissões jurídicas, a polícia, etc. Em segundo lugar as pesquisas que se referem à efetividade e aos efeitos do Direito: estes concernem às vezes a domínios particulares (a família, a empresa, a proteção do meio ambiente, etc.), focalizam-se nos fenômenos de ineficácia (marginalidade e divergência), ou avaliam ainda a eficácia dos instrumentos jurídicos na prevenção ou resolução dos conflitos ou das demandas renovadas (políticas e sociais) de uma instância simbólica que deve agir seguindo formas adjudicatórias e que deveriam dizer o que é justo. Vêm depois outras duas categorias: por um lado, o estudo dos fenômenos de pluralismo normativo e, por outro, o dos fenômenos de produção do Direito, dos processos legislativos e de seu contexto social.

Vamos nos dedicar agora a este esforço para criar uma positividade do mundo, justa e ordenada a ponto de ser obedecida por ser racional e, portanto, incontestável.

Razão Positivista e Sistema Social

Auguste Comte (1798-1857) reposicionou a ideia de se criar um sistema social, lógico e controlado que fosse expressão das necessidades coletivas e das estruturas lógicas naturais dos indivíduos. Comte defende, com sua teoria, as necessidades de uma orientação prática para a vida moderna organizada juridicamente. Defendeu uma ciência síntese, forte tanto quanto as verdades da Física ou da Biologia. Essa ciência síntese foi inicialmente chamada de física social e mais tarde Sociologia e traçou os contornos para que ela fosse uma ciência autônoma. Ele tratou a Sociologia como uma ciência positiva que construía conhecimentos por meio da interdependência entre teorias e observações empíricas. Se não é possível fazer observações sem ter uma teoria que seleciona os fatos a observar e uma definição do problema científico ao qual vamos resolver, também seria uma insensatez considerar que as teorias surgiram isoladas dos fatos sociais históricos em que os teóricos estavam inseridos. Esta é a

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grande contribuição de Comte para separar o modo de pensar da tradição filosófica, que acreditava ser possível formular hipóteses especulativas a partir de outra hipótese, de operação mental à operação mental, sem serem confrontadas com os fatos.

Comte mostra que é possível entender as vivências humanas com base em critérios científicos, partindo do pressuposto de que era possível conhecer o homem, suas ações e seu pensamento de modo exato e, inclusive, prever as consequências do pensar e do agir. Essa concepção estava impregnada em todos os pensadores sociais a partir de 1500, que desvinculavam o conhecimento do mundo dos preceitos religiosos e percebiam a natureza, a vida e a sociedade como algo possível de ser conhecido, controlado e planejado. Para este autor, o homem não é criação de Deus e sim um ser natural sujeito à lei de causa e efeito. Bastaria conhecer essas leis e, a partir delas, fundar a sociedade humana e agir sobre ela.

Comte propõe esta física social como campo de conhecimento necessário para compreender as leis que explicam a organização e o fun-cionamento da sociedade humana. Esta ciência particular seria a forma mais evoluída do conhecimento, iniciado com a Matemática e seguido, respectivamente, da Astronomia, da Física, da Química e da Biologia. A positividade da física social exige que se abandone definitivamente a busca das causas e das essências para pesquisar as leis invariáveis, isto é, as relações constantes que existem entre os fenômenos observados. O pressuposto da época era de que a ciência deveria fazer a abordagem de todos os problemas humanos, como verdades pesquisadas e expe-rimentadas, sem especulações abstratas. É a matematização de tudo, a busca da certeza, a procura do útil, do empírico e a decorrente aplica-ção dessas verdades nos atos humanos: a sociedade não é uma simples aglomeração de seres vivos... pelo contrário, é uma verdadeira máquina organizada, cujas partes, cada uma, contribui de uma maneira diferente para o avanço do conjunto, dizia Saint-Simon. Como máquina, o homem é resultado das leis de causa e efeito e, na sociedade, cumpre funções

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67Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

a ele designadas. Por isso, todos deveriam ser preparados para ser um

elemento do conjunto, uma célula do corpo social, uma parte do todo.

Conforme as funções que desempenhavam, exerciam sua moral e sua

autoridade sobre os demais.

Estas concepções presentes no positivismo de Comte esboçavam

uma história e uma topografia administrativa do mundo industrial, da

sociedade moderna, mas também sua política, seu saber e sua nova

religião. Segundo Comte, as sociedades modernas estavam em uma

situação caótica, em “anarquia”, em “desordem,” e era preciso afirmar

a nova sociedade que nascia, criando uma racionalidade que fizesse a

adequação dos homens aos novos tempos de produção industrial. Um

pensamento sistemático e positivista deveria ser, também, o intérprete

da sociedade moderna, marcada pelo desenvolvimento da vida urbana,

do tráfego comercial nacional e internacional, da produção manufaturei-

ra, da atividade bancária, assim como pelas transformações nas relações

sociais, migrações de populações e presença constante do econômico

nos reinos da Europa Ocidental.

A grande tarefa da Sociologia fundada por Comte seria contribuir

para criar essa moral e preparar o homem moderno em sua adaptação

a essas verdades científicas, de forma a não necessitar de imposições

externas para essa obediência, esse respeito às leis. Na sua proposta de

sociedade, Comte propôs a substituição do culto aos santos pelo culto à

humanidade, aos homens que foram capazes de criar coisas para melhorar

a vivência do homem (grandes homens, vultos de nossa História), que

trouxeram razões (ideias) fortes, que criaram instituições para ordenar

a sociedade. Os governantes que organizaram comunidades, respeita-

ram e aperfeiçoaram instituições, proporcionaram felicidade ao povo,

deveriam ter um busto em praça pública para veneração. A sociedade,

para Comte, é o conjunto dos seres passados, presentes e futuros que

concorrem para o aperfeiçoamento da ordem universal. A humanidade

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é guiada – diz Comte – por uma só lei, “viver para os outros,” e por essa

razão não haveria nada mais santificado do que aqueles que viveram para

os outros (Silva, 2008a).

Sua proposta de um novo “sistema social” todo articulado marcou

os pensamentos maios pragmáticos da modernidade. O sistema seria

criado e coordenado pelos cientistas que teriam o poder espiritual, a

direção educativa e sistemática da civilização. As ideias se concretiza-

riam nas leis e estas funcionam como os “nervos” no sistema social. A

sociedade não poderia ser resolvida sem pôr à frente da sociedade os

grandes industriais e os homens da ciência, pois o interesse da indústria

coincidia com os interesses de todos, posto que nenhum homem é capaz

de satisfazer suas necessidades sozinho. A indústria, a empresa racional,

o comércio, junto com a ciência, seriam, então, a salvação do homem

moderno e, por isso, nenhum obstáculo ao seu desenvolvimento deveria

existir. Especialmente a indústria deve ao processo das ciências o seu

contínuo desenvolvimento e a sua crescente influência na vida social.

Assim, a direção espiritual deveria passar aos cientistas e o cuidado pelos

interesses materiais para os industrialistas e comerciantes.

Os partidários das Luzes, da Ideologia, e outros mais, já proclamavam o

desejo generalizado de adquirir conhecimentos “positivos”... O século

(1800) herda um mundo em efervescência. Depois dos recorrentes

tumultos revolucionários, anseia-se por reconstruções e reorganiza-

ções; deseja-se sair do negativo. Espera-se uma sociedade de paz, um

regime político estabilizado em que os desenvolvimentos científicos e

industriais tragam o progresso e felicidade. Procura-se, então dominar

os saberes e assegurar os poderes, para reorganizar as idéias e refazer

o mundo. Comte integra, em 1814, a Escola Politécnica, onde essas

questões são ardentemente debatidas... (Petit, 1999).

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O positivismo de Comte sai do plano das ideias e se torna bandeira

política de defesa moral no novo tempo, fundando, inclusive, associação

para instrução positiva do povo em 1848, o que levou ao aumento dos

partidários do positivismo, criando escolas, sociedades, igrejas e repre-

sentações (na Europa e América).5

A ordem social desenvolve-se segundo uma lei necessária no

sentido do aumento da diferenciação e da complexidade. Esse movi-

mento pode ser considerado a partir das causas modificadoras da sua

velocidade – a raça, o clima e a ação política – e dos fatores efetivos de

mudança social – o tédio, o suceder das gerações e o aumento da po-

pulação. Desta forma, supera-se a ilusão metafísica sobre o aumento da

felicidade humana nos diversos estágios da civilização para afirmar-se o

princípio científico “do desenvolvimento contínuo da natureza humana,

considerada sob todos esses aspectos essenciais, seguindo uma harmonia

constante e de conformidade com leis invariáveis de evolução” (Comte

apud Bressan, 2003).

Entre os cientistas deve ser constituída uma nova classe: os espe-

cialistas em Física Social, responsáveis pela elaboração dos estudos sobre

a sociedade. Além disso, entre os cientistas propriamente ditos e os pro-

dutores, tende a se formar uma classe intermediária, a dos engenheiros,

“cuja destinação especial é organizar as relações entre teoria e prática”. A

concepção social de Comte não pretende a eliminação da relação capital e

trabalho da sociedade industrial, segundo a proposta dos socialistas, nem

deixar essa relação ao livre jogo do mercado, como propõem os liberais.

O seu programa trabalhista visa a garantir ao proletário “todos os mate-

riais de seu uso exclusivo e contínuo, dele próprio ou de sua família” e

5 Neste sentido, ler Petit, Anne. História de um sistema: o positivismo comtiano. In: Trindade, Helgio (Org.). O positivismo: teoria e prática. Porto Alegre: Ed. Universidade; UFRGS, 1999.

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a afirmação da natureza social da propriedade. Para isso, a propriedade privada deve ser regulada pelo poder espiritual positivista, o que significa a sua subordinação às necessidades sociais (Silva, 2008a).

O autor assim se referia a esta necessidade de interiorizar uma ordem:

... É preciso fazer com que ele acredite na reorganização de sua vida prática. Logo, o erro do povo se traduz a partir desta grande “desvia-ção” primitiva, dado sua filiação às antigas orientações.

O fim da sociedade para o autor é definido através de dois objetivos. O primeiro se refere à ação violenta sobre o resto da espécie humana ou à conquista; e o segundo é a ação sobre a natureza para modifi-car e para assim dela tirar proveito e produção. Deste modo, toda a sociedade que não estiver organizada para um ou para outro não passa de uma associação bastarda ou sem caráter. No antigo sistema a finalidade era a militar, na nova sociedade que passa a se constituir é a industrial. O primeiro passo para a nova sociedade é a afirmação da sua proposição (industrial). Como isso não foi feito, a mesma continua a viver no antigo sistema, apesar de acreditar no progresso. E assim o erro da sociedade está na atenção dispensada tão somente para a parte prática desta, deixando de lado o modo de conceber e repensar a sociedade. A tentativa de reorganizar a sociedade em vista da lacuna existente se deu através de uma série de leis e artigos configurados como pertencentes ao sistema, logo, o resultado disso tudo foi uma tentativa de regulamentação da sociedade. Em vista disso se acreditava que as mudanças estavam ocorrendo, mudanças essas que não passavam de pequenas alterações, ou seja, no fundo tudo continuou tal qual, apenas fracionando os antigos poderes do Estado. No intuito de instaurar as modificações e caracterizar as mes-mas enquanto modificações para a sociedade como um todo frente aos sistemas feudal e teológico e estes constituídos como orgânicos, institui-se os poderes (legislativo e executivo) como subdivisão dos poderes. Na verdade, segundo Comte, a institucionalização destas leis foram propagadas como importantes para a efetivação do processo de reorganização da sociedade, a ponto delas serem naturalmente incorporadas e percebidas como necessárias. Diante da iminência da crise em que a sociedade vivia, se fez necessário repensar o antigo sistema e propor algo que realmente acompanhasse o progresso do espírito humano, não permitindo que a sociedade chegasse ao abismo.

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Faz-se necessário pensar a reorganização a partir de duas perspectivas, uma teórica e outra prática, uma como conseqüência da outra. Assim, cabe ao cientista a tarefa de articular, diante daquilo que se apresenta, as mais diferentes teorias e procurar apresentar possíveis caminhos para propor o reordenamento da sociedade, instituindo os elementos fundamentais do governo com moral, com capacidade e autoridade. Seria um poder centralizado com possibilidades de estabelecer soli-damente as estruturas da nova cultura, com capacidade de propor a nova doutrina orgânica e com a qualidade de uma nova constituição intelectual (Comte, 1977, p. 51).

A reforma intelectual desenhada por Comte pode ser assim ana-

lisada: o homem nasce numa família e é nela orientado até os 7 anos,

conforme a moral afetiva dos pais; dos 7 aos 14 anos deveria ir para a

escola e aprender a se orientar para o mundo do trabalho a partir da inte-

riorização da razão historicamente formada; aos 18 anos seria preparado

pelo Estado, ou seja, todos os homens deveriam servir à pátria, ir para o

quartel e sair de lá só após a maioridade, quando estaria preparado para

assumir seus deveres e direitos, constituir sua própria família e orientar

os filhos para a ordem. No Estado (simbolicamente representado pelo

quartel) o indivíduo é submetido à ordem estabelecida, leva um choque

civilizacional, aprende à força a respeitar a ordem, a hierarquia, a auto-

ridade e enraíza seu amor à pátria.

Assim teríamos em poucos anos a evolução verdadeira, o pro-

gresso social, a moral da civilização orientada pela razão científica. Se

durante estes 21 anos, entretanto, o indivíduo ainda não se organizou,

não aprendeu a ordem social, então teríamos de vigiá-lo pelos órgãos de

coerção, para orientá-lo (subsistema policial, subsistema penitenciário,

etc.). Quem não se adequasse teria como castigo as penas da pobreza ou

da cadeia (Silva, 2008a). A figura a seguir concretiza a ideia de sistema

social de Comte:

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FAMÍLIA

ESCOLA

TRABALHO ESTADO

MAIORIDADE

PRISÃOPOBREZA

O SISTEMA SOCIAL

Desta forma a positividade do Direito estaria ligada à ideia de que

as leis são frutos da razão humana, de sua máxima, e se instaura como uma

demonstração clara do eu é preciso ser ordenado porque é útil ser assim.

Ou seja, você pode contestar a lei, mas nunca desobedecê-la: você é um

homem social, e como tal depende dos outros e por depender precisa

colaborar com ele. Nas linhas retas da lei está a forma desta colaboração.

Ou seja, o positivismo é método (de conhecimento, de ciência) e ideologia

(propõe uma moral de viver).

A Direito Funcionalista e moral Social

Tanto é assim que obteve vários seguidores. Émile Durkheim

(1858-1917) reposicionou a Sociologia como método na sua condição de

ciência da sociedade, embora tenha proposto também uma forma ordena-

da de sociedade. Seus estudos influenciaram muito no desenvolvimento

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73Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

do pensamento social do século 20 e a produção de pesquisa em Ciências Sociais como a Sociologia, Antropologia, a Ciência Política, a Arqueologia, a História, a Geografia, a Etnografia, e Economia, o Direito e outras. A influência dos problemas sociais da época – 1860-1920 – é sentido em toda sua obra, pois mostrava-se preocupado com as mudanças que estavam acontecendo na sociedade industrial, especialmente a crescente divisão do trabalho e o colapso das formas de solidariedade.

Suas criações foram chamadas, inclusive, de escola durkheimiana na França, pois de suas teorias emergiram muitas teses formadoras de sociólogos. Testemunhou fatos relevantes da história francesa e euro-peia, ao mesmo tempo que sentia a presença dos ideais da Revolução Francesa de 1789 ainda ecoarem como postulado de um ideal ainda em formação e que tinha tendências de se afirmar como individualismo e não como uma consciência coletiva de todos pela igualdade, fraternida-de e liberdade. A Revolução tinha sido bem-sucedida, pois elementos conservadores mantinham fortes influências sobre governo e sociedade (como a Igreja Católica e nos campesinatos). A ordem social que estava em transição exigia a realização ou instituição concreta dos ideais da Revolução Francesa.

Émile Durkheim outorgava uma importância muito grande ao Direito na sua teoria da consciência coletiva e das solidariedades sociais. Em sua opinião, é segundo o tipo de Direito que se pode distinguir em-piricamente a solidariedade mecânica da solidariedade orgânica, pois a primeira está dominada pelo Direito repressivo, assim como a segunda se caracteriza pelo Direito restitutivo. O Direito repressivo é a expressão de uma consciência coletiva forte, enquanto o Direito restitutivo progride nas sociedades nas quais a consciência individual se desenvolve, ao passo que retrocede o império da consciência coletiva (Durkheim, 1986).

Para Durkheim, o Direito não só permite distinguir os dois tipos fundamentais de solidariedade social, mas também proporcionar seguir a evolução das sociedades. A passagem do Direito repressivo para o Di-reito restitutivo é o índice da transição de um tipo de sociedade arcaica

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para um tipo de sociedade na qual a divisão do trabalho se faz mais

elaborada e onde, por consequência, a solidariedade orgânica substitui

a solidariedade mecânica (Azevedo, 2005).

A pesquisa de Durkheim sobre o fato social Suicídio,6 no ano de

1897, emergiu de suas reflexões na tese A Divisão do Trabalho. Assim,

divisão orgânica do trabalho é parte do desenvolvimento normal das

socieda des humanas. É importante para a ordem social a diferenciação

dos indivíduos e das profissões; a regressão da autoridade da tradição; o

domínio crescente da razão, o desenvolvimento da parte que foi deixada

à iniciativa pessoal. O homem, porém, não se sente necessariamente

mais feliz com sua sorte nas sociedades modernas, e registra, de passa-

gem, o aumento do número dos suicídios, expressão e prova de certos

traços, talvez patológicos, da organização atual da vida coletiva.

Só estaremos imunizados contra o suicídio se estivermos socializados... não podemos deixar que o vazio ocupe nossa existência... o lugar que mais socializa é a associação, a corporação, o grupo profissional... o mal-estar que sentimos não é provocado por um aumento quantitativo e qualitativo das causas objetivas de sofrimento; revela uma maior miséria econômica, mas uma alarmante miséria moral (Durkheim, 1986).

Já o crime demonstração da permanência do crime em todas as

sociedades, constituiu o fator determinante da sua integração no pen-

samento sociológico sistemático, cujo contributo mais significativo se

deve a Durkheim em três das suas obras fundamentais, que são De la

Division du Travail Social (1893), Les Règles de la Méthode Sociologique (1895)

e Le Suicide (1897). Será legítimo, todavia, situar o início da Sociologia

criminal a partir do segundo quartel do século 19, altura em que foram

desenvolvidos inúmeros estudos, em diversos países (França, Bélgica,

6 Embora possa se ter títulos diferentes nas diversas publicações existentes, nossas referência aqui usadas estão em Durkheim, Émile. O suicídio – estudos sociológicos. Lisboa. Editora Presença, 1996.

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Alemanha e Grã-Bretanha), com aplicação de métodos e instrumentos so-ciológicos, nomeadamente a recolha e interpretação de dados estatísticos. É efetivamente com os trabalhos de Lacassagne, Gabriel Tarde e Émile Durkheim, porém, que a Sociologia criminal adquire o seu estatuto de ciência, especialmente a partir do 3º Congresso de Antropologia Criminal, realizado em Bruxelas, em 1892, que marca a virada das explicações da escola positiva em favor das teorias sociológicas.

A Sociologia criminal aparece-nos assim como uma ciência muito recente, muito depois do Direito Penal, cuja origem remonta à Antigui-dade, e depois ainda da criminologia, cuja origem se poderá situar na escola clássica, muito embora apenas tenha atingido a sua forma siste-mática com a escola positiva italiana. Se ao Direito Criminal importa a definição do tipo de crime e a sua consequência sancionatória, entretanto, à criminologia importa a compreensão da realidade criminal em todos os seus aspectos. Numa primeira fase, a criminologia debruçou-se sobre a pessoa do delinquente, servindo-se de métodos próprios da Biologia e da Psiquiatria – aquilo que alguns autores designaram por criminologia “clínica”. Numa fase mais avançada da reflexão criminal, o criminólogo deslocou o seu estudo para o meio social onde se gerou a prática deliti-va – a acentuação deste aspecto da criminologia deu lugar à Sociologia criminal que apareceu também como um novo ramo da Sociologia. A partir do momento em que se compreende que não existe sociedade sem crime, não só não é concebível uma Sociologia que ignore este fe-nômeno, como não é possível estudar o crime, considerado em abstrato, sem evocar o meio social no qual se desenvolve.

A obra de Durkheim deve uma grande parte da sua importância ao fato de ter compreendido esta relação entre o crime e a sociedade numa altura em que as escolas positivas se refugiavam por detrás das concepções individualistas. Este autor compreendeu que a sociedade não era simplesmente o produto da acção e da consciência individual, pelo contrário, “as maneiras coletivas de agir e de pensar têm uma rea-lidade exterior aos indivíduos que, em cada momento do tempo, a elas

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se conformam e, mais que isso, são não só exteriores ao indivíduo, como dotados dum poder imperativo e coercivo em virtude do qual se lhe impõem. O tratamento do crime como um fato social, de caráter normal e até necessário, permitir-lhe-á reabilitar cientificamente o fenômeno criminal e demonstrar que a prática de um crime poderá depender não tanto do indivíduo que, de acordo com esta concepção, age e pensa sob a pressão dos múltiplos constrangimentos que se desenvolvem na so-ciedade mas, diversamente, poderá apresentar em abstrato uma ampla raiz de imputação social.

A Teoria da Anomia. A consideração sociológica da anomia, que etimologicamente não significa senão “ausência de normas”, apesar dos vários desenvolvimentos que conheceu, em Merton, Cloward, Ohlin, Par-sons, Dubin e Opp, remonta aos estudos desenvolvidos por Durkheim, particularmente em A Divisão do Trabalho Social e em O Suicídio. O fato de o homem não viver num ambiente de eleição, mas sujeito a uma ordem “imposta”, permite a Durkheim formular a sua concepção da anomia e estabelecer as condições da produção do crime.

A Divisão do Trabalho Social, cujo tema central incide sobre a relação do indivíduo e a coletividade, está dominada pela ideia de que a divisão do trabalho é portadora de uma nova forma de coesão social, a solidariedade orgânica. Nas solidariedades mecânicas, características das sociedades ditas “primitivas”, a consciência coletiva cobre a maior parte das consciências individuais, pelo que se poderá dizer que o indivíduo está estreitamente integrado no tecido social. No caso das sociedades orgânicas, dominadas pela divisão do trabalho, a consciência coletiva apresenta uma menor extensão ante o indivíduo que se determina com uma maior autonomia, porém compreender a solidariedade orgânica como correspondente a uma sociedade contratualista – marcada pela atomização do indivíduo cujos contratos se efetivariam num dado con-texto interindividual – sem uma consciência coletiva mínima, não só constituiria uma paradoxal sociedade sem sociedade como “implicaria a desintegração social”. O normal será que a sociedade desenvolva os

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seus mecanismos de solidariedade, ainda que estejamos perante uma sociedade assentada na diferenciação social e marcada pela especialização das funções. Isso não significa que não existam, no âmbito do processo de desenvolvimento da solidariedade social, algumas patologias na di-visão do trabalho, como é o caso da divisão forçada e da divisão anômica do trabalho. Assim, se não existir uma adequada interação de funções e um eficaz sistema normativo capaz de regular essa interação, estaremos perante uma anomia na divisão do trabalho.

A teoria da anomia aparece também desenvolvida em O Suicídio, que se revela, além do mais, como a primeira etapa da teoria do controle social. O estudo do suicídio, que é um fenômeno especificamente in-dividual, apesar de só em aparência, permitirá a Durkheim demonstrar as fortes relações entre o indivíduo e a coletividade. A estrutura da obra assenta-se no pressuposto da existência de três tipos de suicídios: o suicí-dio egoísta, que resulta de uma individualização excessiva e cujo grau de integração do indivíduo na sociedade não se apresenta suficientemente forte; o suicídio altruísta, que ao contrário, resulta de uma individualização insuficiente; e o suicídio anômico, que se relaciona com uma situação de desregramento, típica dos períodos de crise, que impede o indivíduo de encontrar uma solução bem definida para os seus problemas, situação que favorece um sucessivo acumular de fracassos e decepções propícias ao suicídio. Pela observação de estatísticas oficiais, este autor detectou que o suicídio era mais frequente nas comunidades protestantes que nas comunidades católicas, fenômeno que explicou pela noção de integração religiosa. No mesmo sentido, Durkheim verificou que o suicídio ocorria menos entre os indivíduos casados que entre os celibatários, viúvos e divorciados, situação que, segundo ele, se explicaria por meio da noção de integração familiar. Nesse estudo, percebeu ainda que a taxa de suicí-dios diminuía em períodos de grandes acontecimentos políticos, em que aumentava a coesão sociopolítica em torno da ideia de nacionalidade. A partir destas observações, o sociólogo francês pôde assim concluir que o suicídio variava na razão inversa do grau de integração da sociedade religiosa, familiar e política.

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O suicídio altruísta apresenta-se como a situação oposta ao suicí-dio egoísta. Um exemplo deste tipo de suicídio é o existente entre os esquimós, em que um velho que se torne um fardo para a coletividade se deixa morrer ao frio; um outro, que ocorre na Índia, é o suicídio da mulher ou dos servidores de um defunto, os quais se deixam imolar no dia do seu funeral. Em qualquer dos casos, o indivíduo determina a sua morte por força de um imperativo social interiorizado, obedecendo ao que o grupo ordena a ponto de asfixiar dentro de si próprio o instinto de conservação.

O terceiro tipo de suicídio, o anômico, é estudado por meio do relacionamento do suicídio com os movimentos econômicos. A análise das estatísticas revelou que os suicídios aumentavam tanto em períodos de recessão quanto de crescimento econômico. O que se observa desses resultados é que se a influência reguladora da sociedade deixa de se exer-cer, o indivíduo deixa de ser capaz de encontrar em si próprio razões para se autoimpor limites. Numa época de rápidas transformações econômicas a ação reguladora da sociedade não pode ser exercida de modo eficaz e de forma a garantir ao indivíduo um conjunto normativo conciliável com as suas aspirações. Ora, esta situação de desregramento, que lança o indivíduo num universo sem referências, caracteriza uma situação de anomia que corresponde, no fundo, a uma situação de dissociação da individualidade diante da consciência coletiva.

As conclusões extraídas do estudo do suicídio permitem, como se referiu, enquadrar a construção durkheimiana nas teorias do controle so-cial. Com efeito, um dos postulados definidos ao longo da sua obra foi o da necessária integração social do indivíduo que revela uma maior tendência para a prática de certas “patologias” sociais, como o suicídio e o crime, quando excluído do grupo social a que pertence. O fato de se verificar que as instituições tradicionais de coesão social (a família, a religião, etc.) não constituírem um fator de agregação eficaz das sociedades modernas, leva Durkheim a defender que o único grupo social capaz de favorecer a integração social é a profissão ou a empresa. Ora, se uma integração social

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do indivíduo poderá diminuir a sua tendência para se conformar com os imperativos sociais, isso significará de certa maneira que a sociedade terá de encarar uma grande parte das condutas suicidas como perfeitamente normais numa sociedade caracteristicamente dinâmica.

A Tese da Normalidade. A definição dos fatos sociais normais per-mitiu a Durkheim importantes considerações acerca da natureza normal ou patológica do crime, como resulta do seu estudo em As Regras do Método Sociológico.

O crime, definido como um “ato que ofende certos sentimentos coletivos”, apesar da sua natureza aparentemente patológica, não deixa de ser considerado como um fenômeno normal, no entanto, com algumas precauções. O que é normal é que exista uma criminalidade, contanto que atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, um certo nível. A sociedade constrói-se, na verdade, em torno de sentimentos mais ou menos fortes, sentimentos cuja dignidade parece tanto mais inquestionável quanto mais forem respeitados. Isso, no entanto, não quer dizer que todos os membros da coletividade partilhem dos mesmos sentimentos com a mesma intensidade. De fato, alguns indivíduos tenderão a interiorizar mais esses sentimentos que outros, o que explica que possam existir condutas que, pelo seu grau de desvio, venham a se apresentar como criminosas. Isso explicará naturalmente a natureza do crime como um fato de Sociologia normal. Essa constatação não impede, contudo, que se considerem algumas condutas como particularmente anormais, o que será perfeitamente admissível, segundo Durkheim, tendo em conside-ração alguns fatores de ordem biológica e psicológica na constituição da pessoa do delinquente .

Para além disso, o crime deverá ser reconhecido não como um “mal”, mas pela sua função utilitária enquanto um indicador da sanidade do sistema de valores que constitui a consciência coletiva. Nesse sentido, o crime será mesmo um elemento promotor da mudança e da evolução da sociedade. É a este propósito que Durkheim refere peculiarmente que, diante dos sentimentos atenienses, a condenação de Sócrates nada tinha

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de injusto. Efetivamente, será esta dimensão do crime que explica que a mesma conduta poderá ser censurada por uma determinada sociedade num determinado momento da sua evolução cultural, como poderá nada ter de censurável na mesma sociedade num outro e diferente momento da sua evolução cultural. Isso permitir-nos-á compreender que um ato criminoso transpõe, de modo negativo, uma construção valorativa, de tal modo que se poderá dizer que não há ato algum que seja, em si mesmo, um crime. Por mais graves que sejam os danos que ele possa causar, o seu autor só será considerado criminoso se a opinião comum da respectiva sociedade o considerar como tal.

Um dos aspectos mais salientes da Sociologia de Durkheim passa pela consideração obrigatória de uma estreita relação entre as determi-nações individuais e as construções sociais, donde resulta, antes que tudo, uma clara ascendência da consciência coletiva sobre a consciência individual. Ao contrário do que defendiam os contratualistas, que imagi-navam uma sociedade de indivíduos, a sociedade não é o mero somatório das partes, pois ainda assim não passaria de um conjunto heterogêneo de afirmações diferenciais. A sociedade, muito pelo contrário, é, para Durkheim, um depositório de valores que de uma forma mais ou menos regular se consensualiza.

Esta visão da sociedade não deixou de ter a sua projeção no modelo sociocriminal que Durkheim defendeu. Antes de tudo porque o crime, embora de modo algo ambíguo, passou a ser considerado não apenas como o resultado de condutas antissociais, mas como condutas contex-tualizadas socialmente. O crime, mais que um fenômeno do criminoso, passou a ser encarado como uma realidade social cuja importância era inquestionável para o estudo sociológico, nomeadamente para a com-preensão das grandes estruturas de sedimentação e desenvolvimento social. A um crime tão atomizado na sua explicação como o foi o homem desde a escola clássica até à escola positiva opôs-se, por meio desta nova dimensão da criminologia, uma explicação das causas do crime que procura a solução do problema criminal não apenas na responsabilização

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exclusiva do delinquente, mas na responsabilização do comportamento

criminal por elementos típicos da própria sociedade que funciona como

um ambiente verdadeiramente condicionador da ação individual. Mais

que isso, porém, a concepção de Durkheim explica já que as causas do

crime poderão estar em relação direta com as disfuncionalidades fáticas

e normativas do conjunto inter-relacional, como poderão resultar das

opções consensuais dos ordenamentos sociais de cada época.

Já a teoria do suicídio de Durkheim pode ser assim resumida: os

suicídios são fenômenos individuais, cujas causas são, contudo, essencial-

mente sociais. Há “correntes suicidógenas” (terminologia de Durkheim)

que atra vessam a sociedade, originando-se não no indivíduo, mas na

coletividade, e que são a causa real e determinante dos suicídios. Indu-

bitavelmente estas correntes “suicidógenas” não atingem indiscrimina-

damente qualquer indivíduo. Quem se suicida provavelmente estava

predisposto a esse ato pela sua constituição psicológica, por fraqueza

nervosa ou distúrbios neuróticos. Da mesma forma, as circunstâncias

sociais que criam correntes “suicidógenas” originam também estas pre-

disposições psicológicas, porque os indivíduos, vivendo nas condições

peculiares da sociedade moderna, são mais sensíveis e, por conseguinte,

mais vulneráveis (Aron, 1987, p. 315).

As causas reais dos suicídios são, em suma, forças sociais que va-

riam de sociedade para sociedade, de grupo para grupo e de religião

para religião. Emanam do grupo e não dos indivíduos isoladamente.

Uma vez mais, encontra-se aqui o tema fundamental da Sociologia de

Durkheim, a saber, o fato de que em si as sociedades são de natureza

diferente dos indivíduos. Existem fenômenos e forças cujo suporte é

a coletividade e não a soma dos indivíduos. Estes, em conjunto, fazem

surgir fenômenos ou forças que só podem ser explicadas pela sua con-

junção. Há fenômenos sociais específicos que comandam os fenômenos

individuais; um exemplo mais notável e mais eloquente é justamente

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o das correntes sociais que levam os indiví duos à morte, embora cada um deles pense que está obedecendo apenas a si mesmo, quando na realidade é um joguete dessas forças coletivas.

Para extrair as consequências práticas do estudo do suicídio, convém indagar sobre o caráter normal ou patológico deste fenômeno. Durkheim considera o crime um fenômeno socialmente normal, o que não significa que os criminosos não sejam muitas vezes psiquicamente anormais, nem que o crime não mereça ser condenado e punido. Sabe-mos, contudo, que em todas as sociedades um certo número de crimes são cometidos; assim, se queremos nos referir ao que se passa regular-mente, o crime não é um fenômeno patológico. Pelo mesmo motivo, uma certa taxa de suicídios pode ser considerada normal, própria das sociedades complexas que se caracterizam pela diferenciação social, a solidariedade orgânica, a densidade da população, a intensidade das comunicações e a luta pela vida. Todos esses fatos, ligados à essência da sociedade moderna, não devem ser considerados em si mesmos anor-mais. As sociedades modernas apresentam certos sintomas patológicos, principalmente a insuficiente integração do indivíduo na coletividade, em todos os casos em que se produz um exagero da atividade e uma ampliação das trocas e das rivalidades. Estes fenômenos são insepará-veis das sociedades em que vivemos, mas, a partir de um determinado limiar, tornam-se patológicos.7

Há razão para crer que esse agravamento (da taxa de suicídio) deve-se não à natureza intrínseca do progresso, mas às condições particulares em que ele se realiza em nossos dias, e nada nos assegura que essas condições sejam normais. Com efeito, não nos devemos deixar cegar pelo brilho do desenvolvimento das ciências, das artes e da indústria ao qual assistimos. Indubitavelmente ele se realiza no meio de uma efervescência doentia, cujos efeitos dolorosos todos sentimos.

7 Texto já publicado em Silva, Enio Waldir da; Bressan. Suimar; Correa, Ricardo. Teoria sociológica II. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009.

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É muito possível, portanto, e até mesmo verossímil, que o aumento

do número de suicídios se origine num estado patológico que acom-

panha atualmente a marcha da civilização, embora não constitua uma

condição necessária. Como argumenta Aron:

A rapidez com que o número de suicídios tem aumentado não autoriza nem mesmo outra hipótese. Em menos de cinqüenta anos esse número triplicou, quadruplicou ou quintuplicou, de acordo com o país. Por outro lado, sabemos que esses suicídios estão associados ao que há de mais entranhado na constituição das sociedades, cujo temperamento exprimem. E o temperamento dos povos, como o dos indivíduos, reflete o estado do organismo no que ele tem de mais fundamental. É preciso, portanto, que nossa organização social se tenha modificado profundamente no curso deste século, para ter determinado tal elevação da taxa de suicídios. Ora, é impossível que uma alteração ao mesmo tempo tão grave e tão rápida não seja mórbida, pois uma sociedade não pode mudar de estrutura com tanta rapidez. Ela só adquire outras características mediante uma série de modificações lentas e quase imperceptíveis; e ainda assim as transformações possíveis são limitadas. Uma vez que o tipo social se fixa, ele deixa de ser indefi nidamente flexível; atinge rapidamente um limite que não pode ser ultrapassado. Portanto, as modificações implicadas pela estatística dos suicídios atuais não podem ser normais. Mesmo sem saber precisamente em que consistem pode-se afirmar antecipadamente que resultam não de uma evolução regular, mas de um abalo mórbido que pode ter desenraizado as instituições do passado, sem, con tudo, substituí-las, porque não é em poucos anos que se pode refazer a obra dos séculos. Ora, se a causa é anormal, o efeito não pode ser normal. Conseqüente-mente, o que atesta a maré montante dos suicídios não é o brilho da nossa civili zação, mas um estado de crise e de perturbação que não se pode prolongar sem trazer perigo (1987, p. 316).

Para Durkheim há a possibilidade de restaurar a integração do

indivíduo na coletividade. Ele mostra isso ao rever o posicionamento

social, a função social do grupo familiar, o grupo religioso e o político,

em particular o Estado, procurando demonstrar que nenhum desses três

grupos proporciona o contexto social próximo do indivíduo que daria a

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este segurança, embora sujeitando-o às exigências da solidariedade. Vê com cautela a solução na reintegração no grupo familiar por duas razões. De um lado, a taxa de suicídio anômico não aumenta menos entre os casados do que entre os solteiros, o que indica que o grupo familiar não oferece proteção mais eficaz contra a corrente “suicidógena”. Seria vão, portanto, contar com a família para que o indivíduo passasse a ter um ambiente mais próximo e capaz de lhe impor disciplina. De ou-tro lado, as funções da família estão em declínio na sociedade moderna. Cada vez mais limitada, seu papel econômico se reduz constantemente. A família não pode, portanto, servir de intermediária entre o indivíduo e a coletividade, porque ela é atingida em cheio pelo mundo exterior. Enquanto comunidade afetiva pode ser um espaço de assegurar muitas fortificações da personalidade integrativa, mas como não está isolada dos outros órgãos sociais não é suficiente para ser o antídoto do suicídio.

O Estado, ou o grupo político, está muito afastado do indivíduo, é excessivamente abstrato e autoritário para proporcionar o contexto necessário à integração.

A religião, enfim, não pode fazer desaparecer a anomia, eliminan-do as causas profundas do mal. Durkheim espera uma disciplina do grupo que deve agir como órgão de reintegração. É preciso que os indivíduos consintam em limitar seus desejos, obedecendo aos imperativos que ao mesmo tempo determinam os objetivos que podem adotar e os meios que têm o direito de empregar. Nas sociedades modernas as religiões apresentam cada vez mais um caráter abstrato, intelectual, mais puro, mas perdem em parte sua função de coerção8 social. Incitam os indivíduos a

8 Coerção: uma força contida em um comportamento que é capaz de influenciar ou de-terminar outro comportamento. É o mecanismo da efetivação das sanções. Em uma sociedade repressiva a coerção expressa-se pela intimidação e pela violência usando abertamente a força contra grupos e pessoas. Significa também os elementos das san-ções sociais, o controle ou a disciplina social própria da organização social em que se força ou induz-se os comportamentos coletivos a uma conformidade, a uma integração. Os fins das sociedades, muitas vezes, contrariam os interesses individuais e somente pela instituição e organização da coação pode ser mantido o conjunto social que se

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transcender suas paixões e a viver em conformidade com a lei espiritual,

mas não conseguem mais precisar as obrigações ou as regras às quais os

homens devem submeter-se na vida profana. Em suma, não constituem

escolas de disciplina, no mesmo grau em que o foram no passado. Ora, o

que Durkheim procura, para remediar os males da sociedade moderna,

não são teorias ou ideias abstratas, mas morais em ação.

O único grupo social que pode favorecer a integração dos indi-

víduos na coletividade é, por conseguinte, a profissão ou, para empre-

gar o termo usado por Durkheim, a corporação, como instituições que

respondem às exigên cias da ordem moral. Chama de corporações, de

modo geral, as organiza ções profissionais que, reunindo empregadores

e empregados, estariam suficientemente próximas do indivíduo para

constituir escolas de disci plina, seriam suficientemente superiores a

cada um para se beneficiar de prestígio e autoridade. Além disso, as

corporações responderiam ao caráter das sociedades modernas, em que

predomina a atividade econômica.

Nessa discussão sobre o caráter patológico das taxas atuais de sui-

cídio e a busca de uma terapêutica, entretanto, surge uma ideia central

da Sociologia de Durkheim: abandonado a si mesmo, o homem é movido

por desejos ilimitados; quer sempre mais do que tem, e se decepciona

sempre com as satisfações que obtém numa existência difícil. O funcio-

namento da vida individual não exige que os homens se detenham aqui

e não acolá; prova disso é o fato de que desde o começo da História

os homens não pararam de se desenvolver, sempre obtiveram satis-

acredita ser fruto da razão histórica. Durkheim usa o conceito para definir o fato social, pois este só reconhecido pelo poder de coerção externa que exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos. A presença desse poder se identifica por meio de sanções determinadas. O fato só é social porque é obrigatório, mas não é somente os artifícios criados pelos homens, mas sim todas as forças naturais em que os indivíduos se inclinam convencidos ou não. Quando a coerção é expressa em leis ela vira coação, convencer pela compreensão ou pela força institucionalizada. Coação seria constrangimento eficiente exercido sobre uma pessoa de maneira direta ou indireta, com o escopo de lhe impedir a livre manifestação da vontade. A coação pode ser física ou moral.

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fações cada vez mais completas, e nem por isso a saúde média foi

se enfraquecendo. Não há uma sociedade na qual os homens estejam

igualmente satisfeitos nos diferentes graus da hierarquia social, contudo

em seus traços essenciais a natureza humana é basica mente a mesma.

Assim, não é ela que poderá conferir às necessidades esse limite variá-

vel que lhes seria necessário. Em consequência, na medida em que

dependem só do indivíduo, elas são ilimitadas.

O homem individual é um homem de desejos, e, por isso, a pri-

meira necessidade da moral e da sociedade é a disciplina. O homem

precisa ser disciplinado por uma força superior, autoritária e amável,

isto é, digna de ser amada. Esta força, que ao mesmo tempo se impõe

e atrai, só pode ser a própria sociedade.

Alguns problemas para pesquisar o suicídio são inevitáveis: o

primeiro é o fato de que os suicídios quase sempre só são conhecidos

pelas declarações das famílias. Alguns são conhecidos porque as próprias

circunstâncias do ato desespe rado os tornam públicos; no entanto, um

bom número deles são cometidos em condições tais que as autoridades

só os registram mediante a declaração das famílias. E a proporção dos

suicídios não confessados pode variar de acordo com o meio social, a

época e outros fatores. O segundo tem a ver com a frequência dos sui-

cídios frustrados ou das tentativas. Durkheim não chegou a estudar

este problema, que aliás só recentemente foi levado em consideração.

É, na verdade, muito complexo, pois seria necessário um estudo de cada

caso a fim de saber se a intenção suicida era verdadeira ou não.

Os psicólogos e os sociólogos estão de acordo sobre um fato: a maio-

ria dos que se suicidam têm constituição nervosa ou psíquica vulnerável,

embora não necessariamente anormal: situam-se nos limites extremos

da normalidade. Em palavras mais simples, muitos dos que se matam

são, de um modo ou de outro, doentes nervosos do tipo ansioso. O

próprio Durkheim não tinha dificuldade em aceitar esta observação, mas

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comentava que nem todos os neuropatas se suicidam, afirmando que

o caráter neuropático constitui apenas uma circunstância favorável à ação

da corrente “suicidógena” que escolhe suas vítimas.

Em síntese: o suicídio egoísta se manifestará por um estado

de apatia e pela ausência de vinculação com a vida; o suicídio altruísta,

pela energia e a paixão; o anômico, enfim, pela irritação associada às

numerosas situações de decepção oferecidas pela vida moderna, por um

desgosto resultante da tomada de consciência da desproporção entre as

aspirações e as satisfações.

Nota-se que mesmo vivendo próximos uns dos outros, os indivídu-

os não têm tempo para observar bem o outro e buscar nele os elementos

coletivos de integração. Embora presente, esta intuição de solidariedade

fica sufocada pelas muitas atividades que a pessoa faz, sufocada por

muitas coisas que, pelos barulhos que ouve, seu cérebro não elabora

tudo, não seleciona tudo que precisa e passa a desconfiar, a se proteger,

a se fechar. Isto tudo leva a uma vida de estranhamento, dos outros e de

si. Suas próprias ações ficam desordenadas, ilógicas e incompreensíveis.

Realmente, é muito difícil viver coletivamente, mas muito mais difícil

seria viver isoladamente. A racionalidade adquirida não é suficiente para

solucionar nossos problemas e a própria morte circula na mente como

uma coisa natural, fácil e desejada, como se fosse uma solução para a má

sorte, logo, aos fracos a depressão, o assassinato, o suicídio...

Por fim, a função do Direito em Durkheim seria consolidar a moral

solidária e manter a divisão do trabalho social. As funções da divisão do

trabalho proposta por Durkheim eram:9

Produzir civilizações: A divisão do trabalho torna as funções especializa-das solidárias entre si, criando uma interdependência que se estende por todo o corpo social, desde o nível das relações inter-pessoais mais simples, como as familiares, até as mais complexas, como as existentes

9 In Silva, 2008a.

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entre empregados e sindicatos ou entre estes e as empresas, criando grupos sociais que geram civilizações. Sem a divisão, os indivíduos seriam independentes.

Organizar a sociedade: Em uma sociedade onde a divisão do trabalho encontra-se em alto grau de evolução, cada indivíduo tem sua função definida; deste modo contribui para a coletividade com seu trabalho e exerce seu papel nos diferentes âmbitos sociais. Isto leva o organismo social a uma maior organização, pois as células (indivíduos) deste encontram-se dispostas de forma a otimizar seu funcionamento.

Criar a solidariedade social: A divisão do trabalho gera a especialização do indivíduo: por só lidar e sobreviver com um determinado nicho de atividade, este é obrigado a entrar em contato com os demais. Neste processo, é criada uma nova solidariedade entre os membros da so-ciedade, a solidariedade orgânica, que aumenta proporcionalmente com a evolução da divisão do trabalho.

Aumentar a força produtiva: A divisão do trabalho propicia um maior dinamismo no processo produtivo. A modernização das linhas de produção pós-fordismo provam que o trabalho dividido em etapas especializadas é mais eficaz que aquele onde uma pessoa concentra diversas funções.

Aumentar a destreza do trabalhador: A divisão do trabalho opta pela especialização em detrimento da multidisciplinaridade. Assim poten-cializa o saber especializado do trabalhador, aliando educação voltada ao desenvolvimento profissional e a busca pela eficiência produtiva dos atores sociais, levando a um conseqüente aumento do saber específico destes e da capacidade produtiva total da coletividade. Durkheim classifica as críticas que falam da super-especialização como teorias particulares dos críticos que não condizem com a realidade e, ainda, defende que o sociólogo deve despir-se das opiniões pessoais para analisar corretamente os fatos em si.

Reorganização moral da sociedade: A divisão do trabalho gera o apare-cimento da corporação, que, de acordo com Durkheim, deve assumir o papel integrador, coercivo e moralmente organizador, antigamente exercido pela Religião, Família e Estado. A sociedade industrial é centrada na economia e esta não estabelece limites morais. Assim, como as demais instituições perderam essa função, resta à corporação reintegrar o indivíduo à sociedade.

Organização educacional da sociedade: A educação específica ensinada pelas escolas é vista como um modo de despertar no indivíduo uma pré-disposição à especialização, que será futuramente aprofundada

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no mundo profissional. Na escola é socializado o entendimento de que não cabe a um homem querer fazer tudo, mas sim escolher uma função e, através desta, ser útil à sociedade.

Equilibrar a hierarquia social: Com a divisão do trabalho, cada ator social assume seu papel no “organismo social”, agindo conforme este para o funcionamento correto da sociedade. A hierarquização social está diretamente ligada ao conceito de ordem social. Neste ponto, Durkheim encontra-se novamente com o positivismo de Comte, e dá margem aos críticos que o acusam de ignorar o embate de classes como fato social relevante.

Fortalecer instituições sociais: Assim como os indivíduos assumem, na concepção de Durkheim, o papel de células no organismo social, as instituições assumem o papel de órgãos, agrupamentos sociais com funções específicas. Essas instituições (Escola, Corporação, Estado) tornam-se importantes dentro de seu campo de atuação, pois incutem e reforçam as premissas da divisão do trabalho como fato indispensável ao desenvolvimento e à manutenção da sociedade.

Todas estas funções são vistas pelo autor como uma necessidade de repostas às consequências danosas produzidas pela sociedade industrial sobre os indivíduos e não podem ser explicadas pela divisão do trabalho. As críticas que a acusam de reduzir o indivíduo à condição de máquina são equivocadas porque seus autores não percebem que essa divisão poderia ser fonte de sociabilidade e não o contrário. Nesse sentido, de nada adiantaria dar aos trabalhadores, além de conhecimento técnico, uma cultura geral (Silva, 2008a).

Direito, Racionalidade e Legitimidade

Um estudo muito fecundo das relações entre Direito, racionalidade social e legitimidade foi realizado por Max Weber.10 A ele devemos os pri-meiros elementos de uma teoria da Sociologia jurídica, cuja influência foi

10 Max Weber nasceu em 21 de abril de 1864. Foi o primogênito de oito filhos. Morreu em Munique a 14 de junho de 1920, vítima da gripe espanhola. Em 1903 recebeu o título de professor honorário da Universidade de Heidelberg. A maior parte da produção

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e continua sendo determinante. Poder-se-ia dizer, contudo, que, apesar de que a abordagem sociológica do Direito ocupou um lugar proeminen-te na teoria sociológica geral de Max Weber, seus comentadores a têm inexplicavelmente negligenciado. Weber desenvolveu uma Sociologia do Direito de caráter histórico, discutindo paradigmas epistemológicos acerca das divergências metodológicas entre a Dogmática Jurídica e a Sociologia do Direito. Diversamente dos cofundadores da Sociologia, We-ber entende esta disciplina a partir da metodologia compreensiva e não puramente descritiva. Este autor revela a diferença clara existente entre o método sociológico e o jurídico-dogmático: o primeiro busca saber qual é o comportamento dos membros de um grupo em relação à ordem jurídica em vigor, enquanto o segundo visa a estabelecer a coerência lógica das proposições jurídicas. Em suma, as duas perspectivas encontram-se em planos diferentes: uma no plano do que é (sociológico) e outra no plano do dever-ser (jurídico). E assim Weber realça a existência de um outro método de análise da Ciência Jurídica (o método sociológico) que pode se relacionar complementarmente com o método dogmático-jurídico. Ele se utiliza de tipos ideais e da antítese formal/material, sendo o Direito racional-formal aquele que combina a previsibilidade com os critérios de decisão do sistema jurídico considerado, e o Direito racional-material, um tipo calculável, mas que apela para sistemas exteriores (religioso, ético, político) ao jurídico nos processos decisórios. Ou seja, o governo das leis representa muito uma garantia ao regular funcionamento do Estado de Direito e a própria racionalidade da atividade governamental. O Direito moderno insere-se no progresso das ciências, na crença na capacidade humana para criar suas sociabilidades humanas.

que lhe deu fama foi realizada em três períodos de quatro anos cada – de 1903 a 1906, de 1911 a 1913 e de 1916 a 1919. No primeiro período publicou sua pesquisa mais conhecida, A ética protestante e o espírito do capitalismo. No segundo período redigiu o essencial de sua obra maior, Economia e Sociedade. No último período redigiu três dos seus quatro estudos previstos sobre a ética econômica das religiões mundiais. Ver Correa, Ricardo; Bressan, Suimar; Max Weber: a racionalização da vida social. In: Silva, Enio Waldir da; Bressan. Suimar; Correa, Ricardo. Teoria sociológica II. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009.

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A Sociologia de Weber é percebida também no interior de sua

análise do capitalismo em um dos seus mais famosos livros, A Ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo. Para este estudo, ele parte de es-

tatísticas de certos países capitalistas desenvolvidos, nos quais se verifica

que entre os proprietários de capital, empresários e integrantes de classes

superiores se encontram indivíduos de confissão protestante, além de

também serem protestantes os “indivíduos qualificados”, ou melhor, a

mão de obra denominada qualificada, que são os indivíduos de mais alta

qualificação técnica e comercial das empresas, em que procura examinar

alguns fatores desta ética protestante que, no seu entender, contribuíram

para formar o espírito do capitalismo, ou seja, o racionalismo econômico

característico do capitalismo ocidental (Weber, 2004, p. 29).

Interessava a Weber entender para discutir a tese os protestantes

ajudarem a desenvolver o moderno capitalismo mesmo trabalhando

apenas para alcançarem a salvação no reino de Deus. Como coloca

Weber (2001, p. 93), o [...] homem [o protestante, no caso] é apenas

um guardião dos bens que lhe foram confiados pela graça de Deus.

Como o servo da parábola, deve prestar conta até o último centavo,

não lhe sendo, pois, nem um pouco imaginável gastar o que quer que

fosse sem uma finalidade que não a glória de Deus [...]...Lembrando,

ainda, que este é o tipo ideal histórico mais abrangente, mas Weber

menciona outros tipos na Ética Protestante, é o caso do tipo de “em-

presário capitalista” (Weber, 2004, p. 63). Escreve Weber sobre este

tipo: [ele] se esquiva à ostentação e à despesa inútil, bem como ao

gozo consciente de seu poder, e sente-se antes incomodado com os

sinais externos da deferência social de que desfruta. Sua conduta de

vida, noutras palavras, comporta quase sempre certo lance ascético,

tal como veio à luz com clareza no citado “sermão” de Franklin [...].

Ou seja, não é raro, mas bastante freqüente, encontrar nele uma dose

de fria modéstia que é substancialmente mais sincera do que aquela

reserva que Benjamin Franklin soube tão bem aconselhar. De sua

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riqueza “nada tem” para si mesmo, a não ser a irracional sensação de “cumprimento do dever profissional11” (Silva; Bressan; Correa, 2009, p. 144).

Assim, podemos concluir que para Weber a Sociologia Jurídica tem duas funções: a) o estudo do comportamento dos indivíduos perante as normas vigentes e a determinação em que grau se verifica a orientação dos homens por esse conjunto de leis (ordem legítima); b) investigar, no plano da realidade, do acontecer fático, o que se sucede no comportamen-to das pessoas que se submetem a um ordenamento e de que maneira se verifica sua orientação segundo esta ordem legítima

[...] a ordem jurídica ideal da teoria do direito não tem diretamente nada a ver com o cosmos das ações [...] efetivas [objeto da sociologia jurídica], uma vez que ambos se encontram em planos diferentes: a primeira, no plano ideal de vigência pretendida; o segundo, no dos acontecimentos reais... (Weber, 1999, v. I, p. 209).

– [...] tem por objeto compreender o comportamento significativo dos membros de um grupamento quanto às leis em vigor e determinar o sentido da crença em sua validade ou na ordem que elas estabelece-ram. Procura, pois, apreender até que ponto as regras de direito são observadas, e como os indivíduos orientam de acordo com elas a sua conduta (Julien Freund sobre Weber).

Weber, ao estudar os motivos do desenvolvimento do capitalismo no mundo ocidental, percebe que o Estado é fruto desta cultura racio-nal do Ocidente verificada nas práticas econômicas, na organização do poder coletivo, na ética (comportamento) e na ciência (educação). Este contexto alavanca o Estado, a burocracia e o Direito e um conjunto de atos legitimados juridicamente, organizando um sistema de conexões permanente entre vários indivíduos, no qual cada um exerce uma fun-

11 Quando Weber afirma que o protestantismo desenvolveu um ascetismo racional, que o protestante que quisesse se salvar deveria trabalhar, ele está apenas usando uma tipologia: não é possível saber se todos os protestantes agiam assim ou se o protestante era impelido “sempre” por esse motivo.

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93Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

ção especializada e impessoal, de acordo com a lei e os regulamentos.

Pelo Direito organizou-se um sistema jurídico de atos normativos que

atribui competências aos agentes estatais para emitirem comandos a

serem obedecidos.12

O Ocidente dispôs de um Direito formalmente desenvolvido, produto

do gênio romano, e os funcionários, formados segundo o espírito desse

Direito, eram, como técnicos da administração, superiores a todos

os demais. Para a história da economia este fato revestiu-se de certa

importância porque a aliança entre o Estado e a jurisprudência formal

favoreceu, indiretamente, o capitalismo (Weber, 1974b).

Segundo Weber, há três tipos (puros) de dominação: a dominação

tradicional, a dominação carismática e a dominação legal. Esses tipos de

dominação podem ser resumidos da seguinte forma:

[...] a autoridade do “passado eterno”, ou seja, dos costumes santifica-

dos pela validez imemorial e pelo hábito, enraizados nos homens, de

respeitá-los. Assim se apresenta o “poder tradicional”, que o patriarca

ou o senhor de terras exercia antigamente. Em segundo lugar, existe

a autoridade que se baseia em dons pessoais e extraordinários de

um indivíduo (carisma) – devoção e confiança estritamente pessoais

depositadas em alguém que se diferencia por qualidades prodigiosas,

por heroísmo ou por outras qualidades exemplares que dele fazem o

chefe. Desse jeito é o poder “carismático”, exercido pelo profeta ou

– no domínio político – pelo dirigente guerreiro eleito, pelo soberano

escolhido por meio de plebiscito, pelo grande demagogo ou pelo

dirigente de um partido político. Em suma, existe a autoridade que

se impõe pela “legalidade”, pela crença na validade de um estatuto

legal e de uma “competência” positiva, estruturada em regras racio-

nalmente estabelecidas ou, em outras palavras, a autoridade fincada

na obediência, que reconhece obrigações concernentes ao estatuto

12 Ver texto de Bezerra, André Augusto Salvador. Da dominação legal weberiana à inflação normativa: o caráter racional do Estado contemporâneo. In: Revista Sociologia Jurídica. Disponível em: <www.sociologiajuridica.net.br-08>. Acesso em: set. 2010.

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estabelecido. Assim é o poder, tal qual o exerce o “servidor do Estado” atualmente e como o exercem todos os detentores do poder que dele se aproximam sob esse aspecto (2003, p. 61).

A obediência dos indivíduos em relação aos poderes dominantes

(tradicional, carismático ou legal) pode se dar, segundo Weber, por inte-

resses dos mais variados tipos e também por sentimentos como o medo e

a esperança. Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma

ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis;

disciplina é a probabilidade de encontrar obediência pronta, automática e

esquemática a uma ordem, entre uma pluralidade indicável de pessoas,

em virtude de atividades treinadas. O conceito de “disciplina” inclui o

“treino” na obediência em massa, sem crítica nem resistência. A situa-

ção de dominação está ligada à presença efetiva de alguém mandando

eficazmente em outros, mas não necessariamente à existência de um

quadro administrativo nem de uma associação; porém certamente – pelo

menos em todos os casos normais – à existência de um dos dois. Temos

uma associação de dominação na medida em que seus membros, como

tais, estejam submetidos a relações de dominação, em virtude da ordem

vigente (Weber, 2000, p. 33).

Segundo interpretam Correa e Bressan (2009) conceito de raciona-

lidade é central na obra de Max Weber, mas num sentido bem diferente

daquele que se consolidou na economia a partir da tradição britânica.

Para Weber, racionalização é um longo processo histórico que resulta na

formação dos próprios pilares do Ocidente, de uma civilização caracte-

rizada, como é dito na primeira frase de A Ética Protestante e o Espírito do

Capitalismo, por “fenômenos culturais dotados... de um desenvolvimento

universal em seu valor e significado”. Quem ler a dezena de páginas da

Introdução da Ética Protestante verá, de forma surpreendente, o processo

de racionalização tomando conta de todas as dimensões da vida social: da

música, da arquitetura, da história, da ciência, do Estado, do capitalismo

e até mesmo da religião (1999a, p. 11).

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95Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

A passagem anterior deixa claro “o centro das atenções” de Max Weber: o racionalismo, ou a conduta racional da vida em relação a fins. Esse racionalismo, específico da cultura ocidental, é que será o fator principal para a empresa capitalista moderna, em outras palavras, “a disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional” (Weber, 1999a, p. 14).

Certamente que outras civilizações tiveram processos de racionali-zação da vida, mas apenas no Ocidente é que a racionalização “dominou” o conjunto da vida em sociedade. Para Freund (1977, p. 107), a racio-nalização se apresenta como uma intelectualização progressiva da vida; despoja o mundo de seus encantos e de sua poesia; a intelectualização é desencanto. Em suma, o mundo torna-se cada vez mais a obra artificial do homem, que o governa quase como se comandasse uma máquina. Não há, pois, motivo de espanto ante o impulso formidável da técnica e de seu corolário, a especialização, graças a uma divisão e uma subdivisão cada vez mais avançadas do trabalho. Referente ao conceito de racionalização, é que Weber jamais atribuiu qualquer superioridade intelectual ao homem ocidental, envolvido no processo de racionalização do mundo.

Sem dúvida nenhuma o progresso científico é um fragmento, o mais importante do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas adotam, atualmente, posição estranhamente negativa. A característica principal do mundo ocidental estava relacionada ao mundo, segundo Max Weber, indiferente a Deus e aos profetas. Uma época caracterizada pela racionalização, pela intelectualização e pelo desencantamento13 do

13 Desencantamento significa: “mágicas” para os fenômenos que eles não entendiam. Ex.: O trovão ocorria porque o deus do trovão estava zangado. Os raios eram atirados pelo deus Zeus. A chuva é enviada por São Pedro. A partir da Modernidade, porém, com a racionalização, a evolução da ciência e as tecnologias de comunicação, as pessoas não utilizaram mais essas explicações “fantasiosas” para essas coisas. Hoje se acontece um terremoto, a gente sabe que não é um fenômeno sobrenatural e sim que pode ser por causa da movimentação das placas tectônicas, etc. Por isso Weber disse que houve um “desencantamento”, as pessoas não se apoiam mais em coisas “mágicas” para explicar

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mundo, em que os valores “sublimes” foram banidos da vida pública.

“Àquele que não é capaz de suportar estoicamente esse sistema de nossa

época, resta apenas dar o seguinte conselho: volta em silêncio, sem dar

ao teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e

reconhecimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas

igrejas” (Weber, 2003, p. 58).

Mais propriamente do Direito em Weber (1974b) podemos

perceber a ligação que o autor faz a esta cultura racional, a economia

planejada e necessidade de controle das ações. Isso seria impensável

sem o desenvolvimento de uma burocracia:14 A burocratização oferece,

acima de tudo, a possibilidade ótima de colocar-se em prática o princípio

de especialização das funções administrativas, de acordo com consi-

derações exclusivamente objetivas. Tarefas individuais são atribuídas

a funcionários que têm treinamento especializado e que, pela prática

constante, aprendem cada vez mais. O cumprimento “objetivo” das

tarefas significa, primordialmente, um cumprimento de tarefas segundo

regras calculáveis e “sem relação com pessoas. A peculiaridade da cultura

moderna, e especificamente de sua base técnica e econômica, exige essa

“calculabilidade” de resultados. Sua natureza específica, bem recebida

pelo capitalismo, desenvolve-se mais perfeitamente na medida em que a

burocracia é “desumanizada”, na medida em que consegue eliminar dos

negócios oficiais o amor, o ódio e todos os elementos pessoais, irracionais

e emocionais que fogem ao cálculo. É essa a natureza específica da bu-

rocracia, louvada como sua virtude especial. A estrutura burocrática vai

de mãos dadas com a concentração dos meios materiais de administração

as coisas. E foram as seitas puritanas seus radicais e autoconfiantes portadores na época pioneira da gestação histórica da moderna civilização do trabalho, seu ponto de chegada religioso, depois do qual, então, se transitou até a primazia da ciência moderna, “o destino do nosso tempo”, que reduz o mundo a um mero mecanismo causal.

14 Todas estas citações foram baseadas em Weber, Max. Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo ideal. In: Campos, Eduardo (Org.). Sociologia da burocracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, buscada e interpretada por Correa; Bressan, 2009.

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97Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

nas mãos do senhor. Essa concentração ocorre, por exemplo, de modo bem conhecido e típico no desenvolvimento das grandes empresas ca-pitalistas, que encontram nesse processo suas características essenciais. Um processo semelhante ocorre nas organizações públicas.

O burocrata individual não pode esquivar-se do aparato ao qual está atrelado. O burocrata profissional está preso à sua atividade por toda a sua existência material e ideal. Na grande maioria dos casos ele é apenas uma engrenagem num mecanismo sempre em movimento, que lhe determina um caminho fixo. O funcionário recebe tarefas especiali-zadas e normalmente o mecanismo não pode ser posto em movimento ou detido por ele, iniciativa esta que tem de partir do alto.

Somente com a burocratização do Estado e do Direito em geral, vemos uma possibilidade definida de separar, clara e conceitualmente, uma ordem jurídica “objetiva” dos “direitos subjetivos” do indivíduo, que ela garante; de separar o Direito “Público” do Direito “Privado”. O primeiro regulamenta as interrelações das autoridades públicas e suas relações com os “súditos”. O Direito Privado regulamenta as relações dos indivíduos governados entre si. Essa separação conceitual pres-supõe a separação da conceituação do “Estado”, como um portador abstrato de prerrogativas soberanas e o criador de “normas jurídicas”, das “autorizações” pessoais dos indivíduos (Correa; Bressan, 2009).

A racionalidade capitalista caracteriza, portanto, a existência de indivíduos que se movem no sentido de maximizar benefícios e mini-mizar custos, sejam eles capitalistas, trabalhadores ou genericamente consumidores. Na verdade, a racionalidade que se afirma como paradigma da civilização ocidental é uma racionalidade instrumental, cujo móvel é o cálculo da relação custo/benefício. Vale lembrar ainda que a racionalidade capitalista não determina as outras formas de racionalidade, como a da política, do Direito e da cultura.

Ao Direito moderno, nesse andar do modo de produção capita-lista, coube um papel muito importante: o de ser um racionalizador de segunda ordem da vida social, uma espécie de elemento substituto ao

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gerenciamento científico da sociedade. O Direito para cumprir esse papel teve de se adequar. A sua adaptação ocorreu via científica. Ajustando-se à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna, o Direito tornou-se científico. Ocorre que a cientificização do Direito também de-mandou a sua estatização, haja vista que a manutenção e predominância da ordem política sobre a desordem e o caos foram atribuídas ao Estado moderno. A regulação jurídica é confiada ao Estado.

O Estado exerce uma dominação legal, diferente do carisma (do-minação carismática), em que os membros da sociedade são motivados a obedecer por razões próprias (pela racionalidade nele – Direito/Estado – impregnada) e por acreditarem na legalidade das ordens dos responsáveis pelos comandos ou controladores da ordem, pois é uma obediência não relacionada diretamente a pessoas (detentores do poder), mas no próprio conteúdo obrigatório das normas jurídicas. A fé aqui esboçada é a crença na legitimidade do Direito e da política, bem como na impessoalidade das ordens emanadas e cumpridas pelo aparelho burocrático que é fruto do caráter racional da vida em si. As normas jurídicas representavam tal racionalidade: gerais, abstratas e impessoais, devendo ser cumprida uni-formemente por todos, coadunando-se, perfeitamente, com a realidade progressiva do pensamento científico coordenando e potencializando a capacidade racional do ser humano.15

Para concluir esta rápida abordagem sobre o direito em Weber, cabe destacar a observação de André Augusto Salvador Bezerra:

Passados quase cem anos do contexto estudado por Max Weber, im-pende saber se as normas ainda possuem essa mesma simbologia no meio social contemporâneo – globalizado, caracterizado por uma série de limitações aos particulares e de imposição de tarefas ao Estado, visando à efetivação de direitos sociais. Impende saber, em outros termos, se ainda representam a racionalidade da realidade estatal hodierna... Na verdade, tamanha a atividade normativa do Estado

15 Weber, Max. História geral da economia – Coleção Os Pensadores, vol. XXVII. Trad. Maurício Tragtenberg. São Paulo: Abril Cultural, 1974a.

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99Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais

que, muitas vezes, nem mesmo os membros da burocracia interna sabem quais normas a seguir: se determinada portaria, ordem de ser-viço, comunicado ou qualquer outro ato interna corporis que venha a regular um mesmo assunto. O que é mais grave é que são tantos os atos internos da administração, muitos dos quais incompatíveis uns com os outros, que constantemente deixa o servidor de levar em conta normas hierarquicamente superiores, como as leis e, até mesmo, dispositivos constitucionais, tudo, à evidência, em prejuízo do bom andamento dos trabalhos administrativos e dos direitos do administrado a uma administração pública eficaz.

Se para o membro da burocracia, a situação não é singela, o que dizer para o cidadão que, para planejar os atos de sua vida privada, não sabe se deve levar em conta um regulamento que vem a receber caráter verdadeiramente autônomo, uma lei, uma medida provisória ou uma decisão judicial proferida em ação coletiva, que podem reger um mesmo assunto e serem incompatíveis entre si. Não sabe se deve seguir um decreto de uma agência reguladora, uma portaria de um órgão de proteção ao consumidor ou uma lei que regula a mesma matéria, mas de forma mais genérica. Não sabe, nem mesmo, que dispositivo constitucional levar em consideração, ainda mais porque, muitas vezes, são promulgadas emendas constitucionais que visam dar implementação a programas de governos, em verdadeira inversão de papéis, pois, como é cediço, são os governantes que devem obediência à Constituição e não o contrário.

... O Estado contemporâneo não quer, portanto, ser mais o Estado excludente vigente na época de Weber. Essas conclusões, entretanto, ainda não explicam o papel das normas jurídicas na sociedade mo-derna, pois, por mais que se queira solucionar o problema, a inflação normativa aparece como um fenômeno inexorável ante a comple-xidade das tarefas assumidas pelo aparelho estatal. Sendo assim, a única solução possível para esse problema é considerar que o que dá legitimidade ao Estado capitalista moderno não são mais apenas as normas jurídicas. As leis e as demais espécies normativas aparecem apenas como um de outros fatores que têm de guiar a atividade pú-blica. Deve-se também considerar, em idêntico patamar, toda a série de direitos fundamentais que estão consagrados nos ordenamentos dos povos democráticos, desde tradicionais institutos do sistema capitalista (como a propriedade privada e a livre iniciativa), a outros direitos que foram tutelados no decorrer dos anos, como saúde, educação, previdência social e meio ambiente. A ação racional que se espera do agente estatal, apta a dar segurança e estabilidade aos

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atos privados dos cidadãos, deve agora, pois, estar guiada não mais apenas para o cumprimento das normas jurídicas, mas para a efeti-vação dos valores levados à qualidade de direitos fundamentais. O Estado racional, portanto, perdura no tempo, assim como o sistema capitalista, mas sob a roupagem, não mais da legalidade estrita, mas de proteção a toda uma gama de direitos fundamentais, que refletem o caráter plural da sociedade (2010).

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CAPÍTULO 3

RAZÃO CRÍTICA, DIREITO E

LIBERDADE

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A Revolução Social e a Ordem Justa

A problemática da ordem social, do controle da sociedade e da

justiça igualitária sempre foi a principal razão das pesquisas em Ciências

Sociais. Abordaremos agora a contribuição da teoria de Karl H. Marx

(1818-1883), chamada também de Materialismo Histórico e Dialético

ou Marxismo.

A teoria de Marx insere-se profundamente nas Ciências Sociais

tentando explicar a sociedade, sua constituição e suas transformações.

Ela é chamada de materialista por ter sua base na realidade sensível

vivenciada pelos homens (no mundo do trabalho, da economia), mas é

também uma teoria propositiva que pretende fazer uma revolução nas

ideias, nas formas de interpretações das realidades (com seu método

dialético), além de ser uma teoria histórica que recupera a história da

sociedade pela visão dos vencidos e por pretender fazer uma revolução

nas formas de organização social da sociedade (com sua teoria do poder,

da política e da dominação). Ou seja, podemos ler nas milhares de páginas

escritas por Marx a diversidade de temas tratados, ora tentando elaborar

um conjunto de novas concepções globais de sociedade, de homem e de

mundo e ora querendo contribuir modestamente, por meio de pesquisas,

para a luta revolucionária do movimento operário.1

É possível argumentar que se trata de uma proposta científica

(baseada em métodos de pesquisa), uma teoria do conhecimento que

recupera a dialética (que nos desafia a buscar um motivo para buscar

saberes), uma teoria da economia política (propondo uma sociedade

igualitária) e também uma ciência da sociedade. A fonte de suas teori-

zações são:

1 Texto já publicado em Silva, Enio Waldir. Teoria Sociológica I. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008b.

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a) Enquanto realidade econômica é o industrialismo inglês e enquanto teoria a economia política mobilizada por Adam Smith e David Ri-cardo. Recupera a noção de trabalho-valor, observando, porém, que a realização do capital não é produzida pelo trabalho em qualquer de suas formas, mas pelo trabalho não pago.

b) Enquanto política no socialismo utópico e no liberalismo francês. O socialismo utópico, que denunciou a miséria da vida sob o capitalis-mo, a exploração do homem pelo homem. Deste, o autor retoma a exploração, mas não sob uma ótica dos princípios liberais com as necessidades emergentes do operariado, mas sob uma perspectiva de constatação de que, em verdade, os desacordos entre os interesses da burguesia e os do proletariado constituem uma mola que move o sistema capitalista e que é essencial a sua existência. Para o autor, as tentativas de união de ideias paradoxais são meramente ilusórias, restando ao proletariado, portanto, a alternativa revolucionária de modo a interromper as contradições brutais do capitalismo.

c) Enquanto análise da ideologia, no idealismo filosófico alemão. O pensamento clássico da Alemanha era representado principalmente por Feuerbach e Hegel. Destes estudos Marx elabora a compreensão de que a sociedade, o Estado e o Direito não surgem de decretos divinos, mas dependem da ação concreta dos homens na História. Especialmente de Hegel, o autor recupera a sua dialética, que diz ser o mundo movido por contradições (natureza/homem, capital/trabalho, campo/cidade), sendo que em vez da natureza circular da dialética de Hegel, formada por tese, antítese e síntese, Marx propõe uma espiral, na qual a “síntese” seria também uma “tese” para uma nova “antítese”.

Marx reconhece as sociedades como sistemas de relações entre os seres humanos, das quais as relações que objetivam a produção e a reprodução são as principais. Estes sistemas mantêm-se funcionando graças aos seus elementos internos e externos que os instituíram, mesmo que contraditórios e conflitantes, passíveis de serem transformados. Sua

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105Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

perspectiva de revolução concretiza uma teoria da emancipação social,

da liberdade, no entanto não elaborou uma fórmula, uma doutrina ou

dogma a quem se dedicar para estudar a sociedade, para entendê-la e

para transformá-la, uma vez que, estudando pelo método dialético é

impossível não se posicionar ao lado da vida, da maioria das vidas ou,

ao menos, não se tocar com a miséria humana que sustenta benesses para

uma pequena minoria.

Isso, no entanto, pode ser lido de forma superficial ou demasiada-

mente ideológica. Por isso é preciso estudar os argumentos que reforçam

a teoria sociológica de Marx, a teoria que compreende os problemas

centrais da nossa sociabilidade humana e propõe soluções que não são

somente na lógica pensada, mas na prática social, como é o caso das teses

que procuram encontrar uma teoria do Direito nas suas obras.

O método dialético não pode ser usado de forma dogmática, fixa

ou artificialmente. Ele permite que conheçamos a nós mesmos no e pelo

processo de conhecimento da sociedade em que vivemos. A dialética é

o movimento recíproco entre teoria e prática, entre sujeito e objeto e é

um processo de constante passagem fluida de uma determinação a outra

no processo histórico (Silva, 2008b). Assim teríamos quatro passos para

aplicação do método :

a) Tudo se Relaciona (conexão universal do todo – Relação).

b) Tudo se Transforma (tudo muda constantemente – Transformação.

c) Tudo tem o seu Contrário (há sempre no mínimo dois lados das coisas

– Contradição).

d) Tudo pode ser Negado (não há verdades eternas – Negação da Ne-

gação).

Para Lukács a dialética é revolucionária. A importância dessa

determinação, responsável, de certo modo, por um novo desenho da

dialética, vai além de sua capacidade em configurar, à maneira de um

polo magnético, uma reorganização geral das articulações metodológicas,

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o método dialético, “essência teórica da teoria” marxista, que possibilita

uma outra redefinição pela qual a teoria passa a ser concebida como

“expressão pensada do próprio processo revolucionário”. Os desdobra-

mentos da “essência prática da teoria”, consolidados no lema “unidade

de teoria e prática”, dependem da elevação conceitual do proletariado

à condição de sujeito e objeto do processo histórico, mediando assim a

relação entre consciência e realidade (Lukács, 1989).

Na visão de Marx, o sistema social moderno é um sistema criado

por uma classe, a burguesia, com mecanismos para garantir o controle e

a ordem que lhe interessa. Tudo fica submetido à lógica deste sistema.

Esta lógica é distribuída pela ideologia, pelas práticas econômicas e

pelo conjunto de instituições que agrega poderes de organização e co-

ação. Assim, dentro da estrutura geral do Estado e do sistema jurídico

capitalista, a atividade humana é realizada como uma “atividade alheia,

imposta”, como um “trabalho forçado”, como uma atividade que está

“sob o domínio, a coação e o jugo de outro homem”. Dessa forma, embora

o princípio fundamental que governa a nova sociedade seja econômico

(em oposição ao princípio regulador da sociedade feudal, que era essen-

cialmente político), não pode ser divorciado da estrutura política na qual

opera. A tarefa da “emancipação humana universal”, portanto, deve ser

formulada “na forma política da emancipação dos trabalhadores”, o que

implica uma “atitude praticamente crítica” para com o Estado, com a

ordem que explora e se impõe contra a maioria.

O autor propõe um modelo de análise dividindo o esqueleto so-

cial em duas partes: a infraestrutura e a superestrutura. Revela estar a

infraestrutura afastada das percepções sensoriais do homem e, de outro

lado, ilustra que os componentes da superestrutura, isto é, a política, a

ideologia e o Direito são captáveis pelos sentidos humanos.2

2 Assis, Marselha Silvério de. Direito e Estado sob A óptica de Karl Marx. In: Revista Sociologia Jurídica. Disponível em: <www.sociologiajuridica.net.br-10>. Acesso em: 15 set. 2011.

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107Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Na infraestrutura, ou base material, desenvolver-se-iam todas as relações sociais de produção por meio das forças produtivas, isto é, as ferramentas por intermédio das quais poder-se-ia obter produtividade: força de trabalho + tecnologia + terras + conhecimento. As relações sociais de produção, por sua vez, significam as interações entre os indivíduos, ou destes com a natureza, ocorridas na infraestrutura.

Sobre essa infraestrutura material levantar-se-ia a superestrutura. Esta reproduziria a dominação estabelecida naquela e seria composta por duas instâncias: uma delas é a jurídico-política, que tem por função mediar as relações materiais e tem como expressões máximas: o Direito (demonstração da luta de classes, com a lei sendo vista como a consa-gração da ideologia burguesa) e a burocracia, definida como um corpo de funcionários orientados a perpetuar as condições vividas na infra-estrutura. A outra instância é a ideológica, na qual seriam construídos valores, ideias e representações que afirmariam as discrepâncias entre as classes sociais.

As classes sociais constituem a base de todo o pensamento do autor. Elas são determinadas pela posição que um grupo de indivíduos possui nas relações sociais de produção. Essa posição seria determinada pela propriedade ou não de bens. O grupo que os possuísse seria a clas-se dominante e o que não os detivesse, a classe dominada. As relações entre essas classes nascem na infraestrutura, sendo afirmadas, mantidas e reproduzidas pela esfera superestrutural (que também tem o papel de reprimir ataques ao status quo). Em última instância, Marx consi-dera que as relações econômicas (infraestrutura) determinam o corpo superestrutural.

A relação entre as estruturas do modo de produção, entretanto, não é a simples reflexão, expressão ou determinação, no sentido de bai-xo para cima. Em que pese se possa afirmar também que o Direito do Trabalho não nasce para unir o capital e o trabalho num mesmo objetivo, porque isso seria impossível. O que se quer destacar é que o Direito do Trabalho promove como “justo” o intercâmbio da compra e venda

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da força de trabalho, mas ao mesmo tempo promove institutos, como o

salário, o jus postulandi e toda a redoma protetiva do trabalhador, a fim

de garantir um mínimo ético nas relações trabalhistas.3

O Estado, para o autor, compõe a esfera superestrutural, sendo seu

surgimento necessário para ordenar essa luta de classes, amenizando-a.

Fazendo isso, ele atende aos interesses dos proprietários, posto que a

intensificação dos conflitos pode gerar uma superação da realidade e à

classe dominante interessa a permanência da situação vigente.

Assim, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos inte-

resses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados

dos meios de produção ou classe dominante. Ele não é uma imposição

divina aos homens nem é o resultado de um pacto ou contrato social,

mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma

sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre

o todo social.

O Direito expressa-se como um fenômeno social, ocupante da

posição superestrutural, determinada dialeticamente pela economia, que

compreende a base material, mas que incorpora valores sociais que se

inscrevem no contexto do exercício do poder em uma sociedade.

Karl Marx organizou uma tese em que o Direito moderno, como

regra de conduta coercitiva, nasce da ideologia da classe dominante, que

é precisamente a classe burguesa. Assim, qualquer que seja a forma que

o Direito assuma (lei, jurisprudência, costume), a essência do Direito está

sempre referida à vontade da classe dominante, que nunca é a vontade

do conjunto do corpo social. O Direito é percebido como síntese de um

processo dialético de conflito de interesses entre as classes sociais, que

Marx denominou de luta de classes.

3 Idem.

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109Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Tanto as relações jurídicas quanto as formas de Estado não podem ser compreendidas nem por si mesmas, nem pela chamada revolução geral do espírito humano, mas antes têm suas raízes nas condições materiais de existência. Ademais, o Direito não nasce espontaneamente dessas relações, mas é posto pela vontade. O problema que se verifica é que tal vontade é somente aquela dos que possuem o poder estatal, ou seja, a vontade da classe dominante, sendo o Direito expresso de um lado pela lei e, de outro, como o conteúdo determinado dessa lei. Assim, a dominação econômica de uns poucos sobre tantos outros se legitima por intermédio de um Estado de Direito, cujo princípio capital é a lei.

O momento vivido por Marx e sua posição de contrastar os gigantes do pensamento burguês (como Hegel), fizeram dele um pesquisador inquieto com as injustiças sociais vividas na época. Na dimensão eco-nômica a injustiça estava representada nas formas jurídicas e, assim, a insurgência contra o modelo liberal do Direito de propriedade, uma vez que a liberdade no capitalismo clássico é meramente formal, e sem um amparo da igualdade material. O Direito e seus institutos, nesse momen-O Direito e seus institutos, nesse momen-to, se constituíam em fenômenos ideológicos, parte da realidade social e cultural capitalista, seja no processo de elaboração das leis, seja no de sua aplicação pelos magistrados. Não podemos deixar de historicizar, porém, as posições de Marx e ver seus ensinamentos sobre o Direito acoplados a sua concepção de homem enquanto produto e produtor da realidade social em que vive. O Direito, pensado sob a constelação da liberdade, da igualdade e da justiça, poderia se tornar uma arma revolucionária.

No interior da obra de Marx há uma série de razões argumentativas para pôr um fim na exploração do homem pelo homem; para promover uma organização da produção igual e da distribuição igual, a partir da autogestão e cogestão; promover o fim das classes sociais, o fim dos pri-vilégios dos lugares sociais e o fim de estruturas políticas que asseguram estes privilégios e a desigualdade, criando um novo Estado, como uma nova esfera pública. Vemos também proposições para tornar o trabalho como livres disposições de iguais, não uma obrigação externa imposta

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110E n i o W a l d i r d a S i l v a

por outrem; argumentos pelo fim da propriedade privada e a favor do

livre desenvolvimento cultural do homem – promoção da igualdade da

totalidade do gênero humano.

A liberdade em relação aos laços políticos e a certos tipos de restri-

ções foi uma condição elementar do novo desenvolvimento social: tanto

no sentido de libertar todos os homens, para permitir-lhes estabelecer

relações contratuais, como em referência à “inalienabilidade da terra” e

à legitimidade do lucro sem a “alienação do capital”. Tão logo o direito

à igualdade é aplicado à aquisição e à posse, contudo, torna-se neces-

sariamente abstrato (igualdade como mera posse de direitos), porque é

impossível possuir alguma coisa em termos individualistas (exclusiva-

mente) e ao mesmo tempo partilhá-la com alguém.

A análise das relações de propriedade capitalista mostra que o

homem não pode exercer seus poderes essenciais, as restrições e limi-

tações desse tipo estão destinadas a ter repercussões negativas sobre o

grau de liberdade conseguido pela sociedade capitalista no sentido da

necessidade natural e no sentido do poder de interferência de outros

homens.

Assim, se considerarmos o aspecto da liberdade que ao contrastar

as relações de propriedade capitalistas e feudais veremos claramente que

o tremendo aumento na capacidade produtiva da sociedade fez avançar

muito – potencialmente – a liberdade humana. Marx, no entanto, argu-

menta que essa grande potencialidade positiva é neutralizada por dois

fatores importantes: primeiro: as forças produtivas, cada vez maiores,

não são governadas pelo princípio da “associação consciente”; segundo:

embora as crescentes forças produtivas pudessem realmente satisfazer as

necessidades humanas reais, dado o caráter irracional do processo como

um todo (chamado por Engels de “condição inconsciente da humanida-

de”), as necessidades parciais da propriedade privada – as necessidades

abstratas da expansão da produção e do lucro – predominam sobre as

necessidades humanas reais. Nas palavras do próprio Marx: “O aumento

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111Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

da quantidade dos objetos é acompanhado por uma extensão da esfera

dos poderes estranhos, a que o homem está sujeito, e cada novo produto

representa uma nova possibilidade de trapaça e embuste mútuo”.

Assim, a força libertadora potencial das novas capacidades produ-

tivas é desgastada. A esfera dos poderes estranhos a que o homem está

sujeito, como adverte Marx, é ampliada, e não reduzida.

Então, a assertiva que parece ser a mais central nesta teoria da li-

berdade é esta: o homem só será livre quando o trabalho for livre. Para chegar

a esta liberdade, no entanto, é preciso se libertar da ideologia burguesa

(uma outra lógica para pensar o mundo que a dialética proporciona –

revolução no pensamento, como diria hoje Edgar Morin – como queres

liberdade se não sabes o que te prende? Se souber o que te prende é

preciso saber como se libertar e depois de liberto deves saber o que fazer

com tua liberdade); para fazer isso é preciso se organizar (organizar quer

dizer planejar, decidir e agir e isso é política – por isso, no tempo de Marx,

o canal concreto é o partido político); no entanto, de fato, a liberdade

só é conseguida quando o mundo da necessidade não reinar mais entre os

homens (por isso mudar o modo de produzir, distribuir e consumir – e

isso é economia de fato).

Na opinião de Marx, os homens possuem poderes essenciais que

caminham para este fim. A história de lutas dos homens foi contra a

perda deste poder de solidariedade que estava entre eles. Estas forças

solidárias são poderes especificamente humanos, isto é, que distinguem

o homem das outras partes da natureza. Este poder é que a burguesia

não quer deixar aparecer e o encobre com o discurso da concorrência e

do trabalho “útil”. “O trabalho é a propriedade ativa do homem”, e como

tal é considerado como propriedade interna que se deve manifestar numa

“atividade espontânea”. O trabalho é, portanto, específico no homem

como uma atividade livre, sendo contrastado com as “funções animais –

comer, beber, procriar” –, que pertencem à esfera da necessidade.

Page 112: Sociologia Jurídica

112E n i o W a l d i r d a S i l v a

O poder que tem o homem de se objetivar por meio de seu trabalho também é especificamente humano; manifesta-se como a “objetivação da vida do homem como ser genérico” e encerra características inerentemen-te humanas, na medida em que permite ao homem “contemplar-se num mundo que ele criou” e não apenas no pensamento (Silva, 2008b).

Marx descreve o homem como “um ser universal e, portanto, li-vre”, e o poder que lhe permite ser esse “ser” é derivado da sociabilidade (ou solidariedade). Isso significa que há uma conexão direta entre a liber-dade, como universalidade do homem, e a sociabilidade. Como sabemos, de acordo com Marx, “a essência humana da natureza só começa a existir para o homem social”, e acrescenta que a verdadeira individualidade não pode ser compreendida se nos abstraímos da sociabilidade.

O denominador comum de todos esses poderes humanos é a sociabilidade. Assim, a questão crucial é: as novas relações de proprieda-de estimulam ou dificultam o progresso da sociabilidade, como base de todos os poderes especificamente humanos? “A propriedade privada isola cada um em sua própria solidão brutal”, dizem Marx e Engels (no Manifesto de 1848).

Por isso o trabalho é a categoria central que sintetiza a essência da vida e onde se condensam as dimensões políticas, sociais, culturais e econômicas do homem. O trabalho, que deveria ser uma propriedade interna, ativa, do homem, em consequência da alienação capitalista, torna-se exterior ao trabalhador (“o trabalho é exterior ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser essencial; [...] O trabalhador, portanto, só se sente ele mesmo fora de seu trabalho, e em seu trabalho sente-se fora de si mesmo”). Não é atividade de vida, na qual o homem afirma-se, mas mero meio para a sua existência/sobrevivência individual, autone-gação que “mortifica-lhe o corpo e arruína-lhe a mente”. A alienação transforma a atividade espontânea no “trabalho forçado”, uma atividade que é um simples meio de obter fins essencialmente animais (comer, beber, procriar), e com isso “O que é animal se torna humano e o que é humano se torna animal”. Para agravar ainda mais as coisas, mesmo essa

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113Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

forma alienada de atividade – mas necessária à mera sobrevivência – é

com frequência negada ao trabalhador, porque o “próprio trabalho se

torna um objeto de que ele só pode dispor com o maior esforço e com

as interrupções mais irregulares” (Mészáros, 1998, p. 41).

A objetivação em condições nas quais o trabalho se torna exterior

ao homem assume a forma de um poder estranho que enfrenta-o de uma

maneira hostil. Esse poder exterior, a propriedade privada, é “o produto,

o resultado, a conseqüência necessária, do trabalho alienado, da relação

exterior entre o trabalhador e a natureza, entre o trabalhador e ele próprio”.

Assim, se o resultado desse tipo de objetivação é a produção de um poder

hostil, então o homem não pode realmente “contemplar-se num mundo

por ele criado”, mas, sujeitado a um poder exterior e privado do sentido

de sua própria atividade, ele inventa um mundo irreal, submete-se a ele,

e com isso restringe ainda mais a sua própria liberdade:

No capitalismo o trabalho do homem se objetiva na mercadoria (esta mercadoria, circulando no mercado, é a transfiguração do próprio homem que circula e, ao assim fazer, se divide, se desintegra) e o valor do homem está relacionado com a capacidade de produzir e fazer circular as mercadorias. O homem torna-se um ser dependente (alienado) do todo que não conhece, submetendo-se às leis do mer-cado (leis racionais), preso ao espaço e ao tempo concedidos pelas necessidades objetivas da racionalização, apagando-se diante de seu trabalho. Marx mostra-nos que o trabalho alienado, como no capita-lismo, destrói a humanidade do homem e faz dele um ser que apenas existe para cumprir hora na execução da produção do próprio modo de produzir. O tempo é tudo e o homem não é nada, é quando muito a carcaça do tempo, estranho a sua própria personalidade espectadora e impotente (Silva, 2008b, p. 73).

Se o homem é alienado dos outros homens e da natureza, então

os poderes que lhe pertencem como um “ser universal” não podem,

evidentemente, ser exercidos. A universalidade é abstraída do homem

e transformada num poder impessoal que se contrapõe a ele na forma

do dinheiro, esse “grilhão de todos os grilhões”, “o agente universal da

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114E n i o W a l d i r d a S i l v a

separação”. O quadro que surge da crítica de Marx é o de uma sociedade

fragmentada e de um indivíduo empobrecido. Como transcender posi-

tivamente esse estado de coisas? É uma pergunta que se acha na base

da análise de Marx, pois sem procurar uma resposta para ela a própria

crítica permaneceria insoluvelmente abstrata, totalmente destituída de

significado.

A destruição do Estado capitalista e a eliminação das restrições jurí-

dicas por ele impostas resolveriam o problema? Evidentemente não, pois,

segundo Marx, mesmo a anulação do Estado (de qualquer Estado) ainda

deixará partes da tarefa sem solução. Conceber a tarefa da transcendência

simplesmente em termos políticos poderia resultar no “restabelecimento

da ‘Sociedade’ como uma abstração frente ao indivíduo”, contra o que

Marx fez uma advertência. E isso restabeleceria a alienação numa forma

diferente. A grande dificuldade está no fato de que a transcendência

(superação) positiva deve começar com medidas políticas, porque numa

sociedade alienada não existem agentes sociais que possam restringir

efetivamente, e muito menos superar, a alienação.

Se, porém, o processo começar com um agente político que deve

estabelecer as precondições da transcendência, seu êxito dependerá da

autoconsciência desse agente. Em outras palavras, se esse agente, por

qualquer motivo, não puder reconhecer seus próprios limites e ao mes-

mo tempo limitar suas próprias ações a tais limites, então os perigos do

“restabelecimento da ‘Sociedade’ como abstração frente ao indivíduo”

restarão acentuados.

Nesse sentido, a política deve ser concebida como uma atividade

cujo objetivo final é sua própria anulação, por meio do preenchimento de

sua função determinada como uma fase necessária no processo comple-

xo de transcendência. É assim que Marx descreve o comunismo como

um princípio político. Ele ressalta sua função como a negação da negação

e, portanto, limita-o à “fase seguinte do desenvolvimento histórico”,

chamando-o de “princípio dinâmico do futuro imediato”.

Page 115: Sociologia Jurídica

115Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Mészáros (1998) refere-se a este aspecto da política alertando

que

...toda política está ligada, em maior ou menor grau, à parcialidade. Isso está claramente implícito em Marx, quando ele diz que a emancipação da sociedade em relação à propriedade privada se expressa na forma política da emancipação do trabalhador. Esperar, portanto, que a par-cialidade realize a universalidade da transcendência positiva seria uma atitude prática pelo menos ingênua e, como teoria, contraditória.

A transcendência positiva não pode, portanto, ser simplesmente vista como a “negação da negação”, isto é, em termos meramente políticos. Sua realização só pode ser concebida na universalidade da prática social como um todo. Ao mesmo tempo, porém, devemos ressaltar que, como um elo intermediário necessário, o papel de uma política cônscia de seus limites, bem como de suas funções estratégicas na totalidade da prática social, é crucial para o êxito de uma transformação socialista da sociedade (p. 144).

Esta proposta objetiva de socialismo, todavia, não pode ser super-

ficializada como se fez no bandeirismo partidário. Se é para o socialismo

que Marx apontava, não ficou muito claramente descrito como funcio-

naria este modo de produção.

Direito como Concretização dos Entendimentos Coletivos

A amplitude da obra de Habermas permite-nos deduzir que um

dos temas centrais ali tratados é a democracia. Existe, no entanto, uma

infinidade de compreensões das reflexões que este autor empreende,

mas poucos negam que ele é um dos raros pensadores atuais que ainda

mantêm um discurso teleológico, metanarrativo, totalizante e, ao mesmo

tempo, dialético. Discorre sobre o poder, a razão, a linguagem, a sociedade

e emancipação humana, desafiando-nos a elevar nossos interesses a uma

dimensão universal, o que o torna um pensador que mais se aproxima,

metodologicamente, de Karl Marx.

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116E n i o W a l d i r d a S i l v a

Das relações da razão, linguagem e lei Habermas parece querer

buscar uma democracia comunicativa (dialógica) motivadora de ações que

organize a sociedade. Este diálogo possui regras que tornam possíveis

a todos argumentar de forma franca, sem coerção e coação de modo a

produzir uma compreensão a partir dos interesses mais comuns, de onde

se pode retirar um consenso mínimo que oriente as normas.

A sociedade democrática seria, para Habermas, então, aquela que

apresenta condições para a produção de consensos parciais baseados na

argumentação. A vida democrática depende do dinamismo de uma esfera

pública para além do Estado que tematiza a agenda política em relação

à qual o Estado deve reagir. A tradução desta linguagem comum para

códigos mais sistemáticos e vice-versa seria feita pelo Direito.

O mundo da vida, em que as experiências encontram repercussão

e que é dominado pela rotina, é lugar onde se pode perceber problemas,

tematizá-los nos diálogos de forma a chamar a atenção dos procedimentos

democráticos institucionalizados, pressionar as instâncias decisivas. A

sociedade civil institucional e voluntária seria como base desta esfera

política pública e composta por associações, movimentos sociais, orga-

nizações. Esta conexão entre sociedade civil, esfera pública e sistema

político é que garante que as massas não sejam manipuladas para fins

plebiscitários.

Uma das maiores contribuições de Habermas está na possibili-

dade de compreender que o advento da modernidade significou uma

incorporação da razão prática como propriedade da subjetividade hu-

mana. Consequentemente, a compreensão ontológica desta faculdade

significaria a compreensão de um aspecto fundamental para realizar a

efetivação do espírito humano em sua forma social e política. A realização

desta natureza foi vista em sua forma mais absoluta na constituição do

Estado moderno, modelo político em que o particular converge para a

forma universal. A sociedade realiza-se, assim, de acordo com a concepção

moderna, na ideia do Estado moderno.

Page 117: Sociologia Jurídica

117Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

A crítica a esta concepção apareceu, ainda na forma moderna, inci-

dindo sobre a separação entre política e economia. Tendo seu expoente

máximo em Karl Marx, esta abordagem nega a existência de duas facul-

dades humanas distintas, sendo uma própria da consciência, buscando a

efetivação do espírito humano na realização da dialética particular/ geral

– basicamente a fusão do indivíduo particular na forma política universal

representada pelo Estado moderno –, e outra funcionando quase como

um inconsciente coletivo (não há aqui referência ao conceito psicanalítico

e sim a ideia de um mecanismo coletivo de autoajuste) responsável pelo

equilíbrio natural da economia, como podemos ver na ótica econômica de

Adam Smith na forma da “mão invisível do mercado”. Nesta perspectiva

crítica, todas as formas de gestão coletiva estariam comprometidas de

uma forma ou de outra com a orientação econômica, entre elas, e prin-

cipalmente, o Estado e as formas do Direito Público. Por uma outra via,

representando uma crítica radical à modernidade aparece a crítica pós-

nietzschiana que, ao duvidar radicalmente de toda metafísica, acaba por

detonar uma crise tanto no sujeito moderno quanto na ideia de Estado

como unidade da diversidade

Resgatando a tradição racionalista Habermas desloca o mecanis-

mo da racionalidade da essência da subjetividade humana para a ação

comunicativa intencional que ocorre entre dois ou mais sujeitos que

argumentam em busca de entendimentos, para se estabelecer um acordo

consensual, mínimo e provisório. Assim, da razão prática fundamentada

na subjetividade humana, a racionalidade desloca-se para a razão comu-

nicativa gerada em processos intersubjetivos. É nesta ideia básica que se

fundamenta a teoria do Direito e da democracia habermasiana: “... ela

toma como ponto de partida a força social integradora de processos de

integração não violentos, racionalmente motivadores, capazes de salva-

guardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base de manutenção de

uma comunhão de convicções” (Habermas, 1997c, p. 22).

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118E n i o W a l d i r d a S i l v a

Um traço característico da Filosofia política habermasiana é pre-servar elementos do idealismo. Apesar disto o autor propõe a superação da metafísica kantiana e da dialética hegeliana. Esta superação dá-se pela passagem de uma Filosofia da subjetividade para uma Filosofia da intersubjetividade. Nesta passagem a razão abandona a condição teleológica para ocupar o lugar de ferramenta preliminar dos processos comunicativos, assumindo, portanto, características psicológicas. Neste processo, imperativos de validade universal devem ser buscados não no plano metafísico, mas em processos fáticos da consciência aplicados aos atos comunicativos.

Esta guinada linguística aponta também para uma distinção entre representações particulares e pensamentos universais, conduzindo então a uma dialética da intersubjetividade que busca estados sintéticos no acordo consensual entre sujeitos racionais comunicativamente livres: “a idealidade, apoiada em sinais lingüísticos e regras gramaticais, caracteriza um pensamento geral, idêntico consigo mesmo aberto e acessível, algo transcendente em relação à consciência individual, não se confundindo com representações particulares episódicas, acessíveis apenas privadamente à consciência” (idem, p. 23).

A ideia de verdade, como aceitabilidade racional interespacial e intertemporal é garantida nesta estrutura intersubjetiva, fundamentada na articulação proposicional dos pensamentos.

Para Habermas a crise da modernidade é uma crise dos modelos fundamentados na racionalidade teleológica. Desde os contratualistas, passando pela metafísica kantiana, até a Filosofia política hegeliana sempre se manteve, apesar das profundas distinções entre sistemas, uma concepção teleológica da razão, seja na forma do Direito natural, de imperativos categóricos, ou de consciência universal. A materialização factual, ou melhor, a facticidade de um corpo normativo racionalmente fundamentado e constituído depende, por consequência, de uma acei-tabilidade moral por parte dos influenciados por estas estruturas. Assim, a facticidade da racionalidade teleológica confronta-se com critérios de

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119Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

validade fundamentados numa moral tradicional. Desta forma, confor-me a visão habermasiana, a crise da modernidade reflete-se numa crise entre facticidade e validade: “A legitimidade de uma regra independe do fato dela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social como a obediência fáctica varia de acordo com a fé de seus membros na comunidade de direito na legitimidade, e esta fé, por sua vez, apóia-se na suposição da legitimidade, isto é, da fundamentabilidade das respectivas normas” (ibidem, p. 50).

A complexificação das relações sociais na modernidade, o acrésci-mo de poder atribuído ao setor econômico e de mercado, o crescimento do poder administrativo, ampliam cada vez mais a já problemática relação entre facticidade e validade, necessária para a estruturação dos sistemas político jurídico, o que dá origem a uma defasagem entre Direito Constitucional e ordem jurídica: “A tensão entre o idealismo da ordem constitucional e o materialismo de uma ordem jurídica especialmente de um direito econômico, que simplesmente reflete a distribuição desigual do poder social, encontra seu eco no desencontro entre as abordagens filosóficas e empíricas do direito” (ibidem, p. 63).

A perspectiva habermasiana, seguindo a guinada linguística, pro-põe que a reflexão sobre este movimento conflitual exige a percepção da ordem jurídica como centrada e atuante nos processos intercomuni-cativos. O direito passa a ser mais que uma estrutura abstrata reguladora, constituindo-se então como uma força dinâmica e ativa. Mais que um sistema de saber, é um sistema de ação, que faz parte do “mundo da vida”.

Com respeito a este conceito é necessário considerar que, do mesmo modo que a ordem jurídica que de uma estrutura abstrata refle-xiva passa a ocupar uma posição ativa (numa fusão entre elementos do idealismo com a crítica materialista) o mundo da vida, difere, também, da ideia de sociedade civil tanto numa perspectiva liberal – que a vê como totalidade regulada pela interação de vontades livres iguais garantidas pelo sistema jurídico abstrato – como da perspectiva da crítica marxista

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120E n i o W a l d i r d a S i l v a

que a vê aprisionada por forças históricas movimentadas pela luta entre

classes antagônicas. A perspectiva habermasiana segue o viés linguístico

passando a entender o mundo da vida como: “...uma rede ramificada de

ações comunicativas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas; e as

ações comunicativas, (que) não somente se alimentam das fontes das tradições

culturais e das ordens legítimas, como também dependem das identidades dos

indivíduos socializados” (ibidem, p. 111).

Desta forma ocorre uma relação mais imediata entre a normativi-

dade jurídica e as proposições de entendimento ocorridas cotidianamente

nas inter-relações comunicativas que se dão no mundo da vida. O Direito

passa a ser então componente social do mundo da vida, contribuindo

como força de integração entre facticidade e validade:

Todavia o código do direito não mantém contato apenas com o me-

dium da linguagem coloquial ordinária pelo qual passam as realizações

de entendimento, socialmente integradoras, do mundo da vida; ele

também traz mensagens dessa procedência para uma forma na qual

o mundo da vida se torna compreensível para os códigos especiais

da administração, dirigida pelo poder, e da economia, dirigida pelo

dinheiro (ibidem, p. 112).

A proposta habermasiana é, assim, de ordem democratizadora,

deslocando a construção racional jurídica do idealismo teleológico para

a materialidade das ações comunicativas:

A integração social que se realiza através das normas, valores e en-

tendimento, só passa a ser inteiramente tarefa dos que agem comu-

nicativamente na medida em que normas e valores forem diluídos

comunicativamente e expostos ao jogo livre de argumentos mobiliza-

dores, e na medida em que levamos em conta a diferença categorial

entre aceitabilidade e simples aceitação (ibidem, p. 58).

Page 121: Sociologia Jurídica

121Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Ficam estabelecidos novos termos conflituais colocados entre regras de aceitabilidade e somatório de aceitações. A conciliação deste conflito pode fornecer uma chave conceitual capaz de operacionalizar o dilema da democracia moderna estabelecido na oposição entre “direitos humanos” e “soberania do povo”.

A substituição de normas morais por leis fundamentadas na auto-conscientização dos povos – que buscam garantir a compatibilidade das liberdades de ação – conforme institui o Direito moderno, na opinião de Habermas, coloca em choque as ideias de autodeterminação dos povos, tomada como parâmetro de direitos humanos, e a autorrealização ética, que representa a soberania do povo.

Tais ideias apresentam-se contraditórias por não representarem apenas temas diferentes, mas tipos distintos de discursos que emergem de questionamentos éticos difereciados. A interpretação dual destas ques-tões polarizou-se entre uma metafísica jurídica e uma teoria da vontade geral, não apresentando, segundo o autor, respostas convincentes.

Habermas opera um deslocamento de enfoque buscando o nexo interno entre autodeterminação moral e autorrealização ética não na formulação de leis gerais, mas na formação discursiva da opinião e da vontade. Conforme dito anteriormente, a guinada linguística da teoria da ação comunicativa transfere a produção da teoria jurídica de processos metafísicos para a interação comunicativa. Neste modelo tanto as regras de aceitabilidade como a simples aceitação particular se estabeleceriam na ação discursiva em busca de consenso. Assim, de modelo dual passa-ríamos a um modelo de integração progressiva, como afirma o autor:

A co-originariedade da autonomia privada e pública somente se mos-tra, quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislação através da teoria do discurso, que ensina serem os destinatários simultanea-mente os autores de seus direitos. A substância dos direitos humanos insere-se, então, nas condições formais para a institucionalização jurídica deste tipo de formação discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do povo assume a forma jurídica (ibidem, p. 139).

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122E n i o W a l d i r d a S i l v a

Todo este processo acompanha a progressiva racionalização do

mundo da vida, no qual a força moral, que servia como garantia interna

de coesão social, dá lugar ao código jurídico que procura manter, por meio

de garantias externas, a manutenção das condições de possibilidade ne-

cessárias para que proliferem formas dialógicas operantes em condições

equânimes de comunicabilidade.

Faz-se necessário então mecanismos externos (uma vez que me-

canismos morais internos perderam sua capacidade de interferência)

que garantam estas condições de argumentação. Neste ponto deve-se

atentar para que não caiamos novamente numa metafísica jurídica que

justamente é o alvo crítico da guinada linguística habermasiana.

É preciso manter, para que a discussão prossiga, a perspectiva da

formação das regras de comunicabilidade nos próprios processos interco-

municativos. Não obstante temos de lembrar que o autor chama a atenção

para a complexificação das relações sociais modernas e para o progressivo

aumento da importância das relações econômicas e administrativas na

organização do mundo da vida.

O perigo encontra-se na dificuldade de manutenção da equidade

argumentativa. É importante, neste ponto, considerar algumas questões:

para Habermas, a formação dos processos normativos dá-se nos dialógicos

argumentativos; da mesma forma, ele defende que o sistema de direitos

é além de um saber, um modo de ação. Ocorre aí uma inter-relação entre

poder político e normatividade jurídica, como destaca o autor:

O direito constitui poder político e vice-versa; isso cria entre ambos

um nexo que abre e perpetua a possibilidade latente de uma ins-

trumentalização do direito para o emprego estratégico do poder. A

idéia do Estado de direito exige em contrapartida uma organização

do poder público que obriga o poder político, constituído conforme

o direito, a se legitimar, por seu turno, pelo direito legitimamente

instituído (ibidem, p. 212).

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123Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Neste sentido a equidade dialógica exige a garantia de um con-

junto de direitos fundamentais:

a) direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas;

b) direito ao status de membro de uma associação voluntária de parceiros

do Direito;

c) possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração

politicamente autônoma da proteção jurídica individual;

d) direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances em

processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis

exercitam sua autonomia política e por meio dos quais eles criam o

direito legítimo;

e) direitos fundamentais a condições de vida garantidas de forma social,

técnica e ecológica (ibidem, p. 159-160).

Tais pressupostos indicam também a orientação democratizante

da perspectiva habermasiana, tomando a orientação democrática não

apenas como normatização processual, mas como o próprio ambiente

de gestão do sistema jurídico. A democracia identifica-se com forma-

ção argumentativa da opinião e da vontade, bem como é responsável

pelas garantias externas da continuidade deste processo. Para o autor,

“o princípio da democracia refere-se ao nível da institucionalização externa e

eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da

vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo direito”

(ibidem, p. 146).

Acena neste momento o sentido conceitual da ideia habermasia-

na de Estado, mais precisamente de Estado de direito. Estado porque

representa um corpo jurídico encarregado de fornecer garantias externas

à equidade argumentativa de todos os membros de uma livre associação

de parceiros de direito; “de direito” pois o mesmo origina-se do mesmo

princípio democrático argumentativo fundamental que dá origem ao

sistema jurídico, entendido tanto como sistema de poder quanto sistema

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124E n i o W a l d i r d a S i l v a

de saber. O sistema jurídico gera e controla o sistema político, ao mesmo

tempo que o sistema político gera e controla o sistema jurídico. Nas

palavras do autor: “A idéia do Estado de direito pode ser interpretada

então como a exigência de ligar o sistema administrativo, comandado

pelo código do poder, ao poder comunicativo estatuidor do direito, e de

mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da implantação

fáctica de interesses privilegiados” (ibidem, p. 190).

Esta nova situação, caracteristicamente moderna, exige uma

transformação no sentido da institucionalizaçao que transfira as atri-

buições judiciais e sancionais das pessoas jurídicas para um corpus

normativo dotado de poder fáctico de controle sobre comportamentos

antidemocráticos (considerando democracia conforme o sentido aqui

estabelecido). Tal instituição teria o sentido de substituir organizações

legitimadas por atribuições morais que ameacem ruir mediante a mo-

dernização social: “O Estado é necessário como poder de organização,

de sanção e de execução, porque a comunidade de direito necessita de

uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade,

e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser

implementados” (ibidem, p. 171).

Para caracterizar este novo modelo institucional, é importante

ressaltar a “interligação conceitual entre direito e poder político”. A partir

daí, podemos enumerar alguns princípios fundamentais que norteariam

este aparelho institucional

O que ficaria resguardado por esta instituição seria a formação

democrática da vontade na teoria do discurso. Isto significa dizer que a

primeira questão a ser apontada como princípio de democracia seria a

ampla e livre participação de todos os membros de uma sociedade de

membros do Direito nos processos comunicativos que levam a acordos

normativos que compõem a formação democrática da vontade. Assim,

um primeiro princípio a ser resguardado é que:

Page 125: Sociologia Jurídica

125Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

a) Todo poder deve emanar do “poder comunicativo dos cidadãos” – na prática

este princípio aponta para poderes parlamentares representativos

e deliberativos. Uma segunda questão importante, imediatamente

ligada a primeira, é o resguardo legal do direitos do indivíduo à equa-

nimiedade argumentativa, para isto faz-se necessário que a instância

jurídica resguarde-se da instrumentalização política. Este aspecto é

garantido por meio de uma:

b) Justiça independente – é fundamental também, da mesma forma que a

necessidade de restrição da instrumentalização do sistema jurídico,

a garantia de restrição do sistema administrativo de interferência

estratégica nos processos comunicativos de formação da vontade. Ou

seja, o poder administrativo não pode interferir nos princípios que

fundamentam a orientação de sua decisão. Este princípio traduz-se

pela:

c) Legalidade da administração e controle judicial e parlamentar da admi-

nistração – por fim faz-se necessário um controle relativo aos proces-

sos argumentativos que lhe resguarde de interferências sociais não

constantes ao acordo comunicativo e realizadas entre os membros

da sociedade de Direito e que possam fazer que “o poder social se

transforme em poder administrativo antes de passar pelo filtro comu-

nicativo”. Para o autor isto se faz necessário, pois “A sociedade civil

precisa amortecer e neutralizar a divisão desigual de posições sociais

de poder” (ibidem, p. 219).

Este princípio traduz-se como

d) Separação entre Estado e Sociedade – temos aí a ideia de um Estado de

Direito fundamentado na vontade surgida no livre fluxo comunicativo

e resultado sintético da fusão entre saber institucionalizado jurídico e

ação política. Como afirma o autor: “...de um lado, o Estado de Direito

institucionaliza o uso público das liberdades comunicativas; de outro,

ele regula a transformação do poder comunicativo em administrativo”

(idem, p. 221).

Page 126: Sociologia Jurídica

126E n i o W a l d i r d a S i l v a

Em síntese cremos que Habermas desenvolve a perspectiva lin-

guística do sistema político por meio do deslocamento o núcleo racional

fundamental do Estado de uma metafísica ontológica para os processos

de livre interação comunicativa centradas nos processos argumentativos

de busca de consenso. O objetivo deste processo é a produção racional

da vontade e da opinião. O Direito seria resultado deste processo pas-

sando então a ser entendido tanto como sistema de saber quanto sistema

de ação. Sendo assim, é fundamental para este processo, a garantia de

equidade argumentativa entre os participantes, o que representaria um

resguardo contra a intrumentalização deste sistema pelo poder social de-

sequilibrado pelos desnivelamentos econômicos. Neste sentido torna-se

necessário a produção de princípios garantidores da livre argumentação

dos membros da sociedade de Direito. Isso, porém, só não basta, são

necessários, também, a existência de instituições com poderes fácticos

de fazer valer as prerrogativas destes princípios. Surge, assim, um sistema

jurídico fundamentado na livre argumentação, dotado de ação política

com vistas a sua própria preservação. Este sistema daria origem a um

nível de institucionalização que acabaria por elevar o poder do sistema

administrativo. Novamente aí são necessárias garantias de controle para

que esta força não interfira nos princípios reguladores de sua própria

natureza.

A institucionalização deste conjunto de princípios dá origem à

ideia do Estado de Direito. Nas palavras do autor:

...E se pretendemos manter não apenas o Estado de Direito, mas o

Estado Democrático de Direito e, com isso a idéia de auto-organização

da comunidade jurídica, então a constituição não pode mais ser

entendida apenas como uma “ordem” que regula primariamente

a relação entre Estado e os Cidadãos. O poder social econômico e

administrativo necessita de disciplinamento por parte do Estado de

direito (ibidem, p. 326).

Page 127: Sociologia Jurídica

127Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Temos assim o modelo político habermasiano orientado sob princí-

pios da teoria da ação comunicativa. Fundamentalmente sua característica

é centrar a racionalidade nos processos intercomunicativos. Segundo o

autor, como vimos na citação anterior, esta guinada comunicativa não só

opera uma transformação na ideia do Estado e de sua correlação concei-

tual com o Direito, mas representa também uma via democratizadora,

uma vez que desloca sua fundamentação política de uma metafísica da

subjetividade para processos argumentativos orientados para o acordo

consensual.

Lei e democracia são conceitos que possuem uma forte relação

em Habermas, bem como entre igualdade legal e igualdade de fato. O

processo democrático deve assegurar simultaneamente a autonomia

privada e pública dos sujeitos jurídicos, que também são frutos dos pro-

cessos comunicativos que formam opinião e vontade comuns racionais.

A democracia é a prática institucional dos cidadãos que estruturam os

conhecimentos racionais discursivos. Assim, “o direito não é um sistema

narcisisticamente fechado sobre si mesmo, mas é alimentado pela vida

ética democrática de cidadãos emancipados e por uma cultura política...”

(Habermas, 1997c, p. 53).

O Direito legítimo como estrutura pode ser interpretada como

o uso público da razão dos indivíduos livres comunicativamente e que

serve como integração de indivíduos com interesses tão distintos. A

República democrática deve:

– contar com uma cultura política ressonante e é executada como pro-

jeto na consciência de uma revolução que se tornou permanente e

cotidiana;

– uma consciência que não poder ser tomada por instrumentalismos ou

melancolias;

– uma razão que tenha assegurado seus conteúdos orientadores, com

princípios normativos enraizados na mente;

Page 128: Sociologia Jurídica

128E n i o W a l d i r d a S i l v a

– um Estado de Direito democrático; um conjunto de condições neces-

sárias para formas emancipadas de vida, sobre as quais os envolvidos

teriam, eles mesmos, de entrar em acordo;

– formas de comunicação com condições para a institucionalização da

vontade formada;

– uma comunicação formadora de imagem de sociedade sobre si mesma

como um todo;

– democratização dos próprios processos de formação de opinião e

vontade;

– um poder político gerado comunicativamente que atua sobre o sistema

político que o pool de fundamentos a partir do qual as decisões têm

de ser racionalizados;

– as decisões devem se dar de maneira discursiva;

– a formação já institucionalizada de opinião e vontade deve se tornar

autônoma;

– as premissas para a decisão não podem ser dadas de antemão ideolo-

gicamente;

– os argumentos das comunicações devem envolver as questões de

valores;

– um poder gerado de maneira comunicativa e utilizado administrati-

vamente;

– o sistema político deve traduzir os dados normativos – produzidos

a partir de processos de formação de opinião e vontade – para sua

linguagem, onde se conta com critérios de racionalidade e eficácia de

instituição de programas;

Page 129: Sociologia Jurídica

129Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

– prática pública de poder comunicativo que estabilize um espaço público

político não distorcido para a formação democrática da vontade;

– poder que tem como retaguarda a cultura política, as maneiras de pen-

sar de uma população habituada à liberdade política – que tem moral

cívica e interesse próprio entrelaçado com seu ethos; – para que o

poder não seja de quem domina a palavra – os intelectuais – é que são

necessários os procedimentos democráticos de formação de vontade,

em que a participação ampla requer o pano de fundo de uma cultura

política igualitária, desprovida dos privilégios de formação;

– uma cultura com estímulos para que não seja absorvida por meras ne-

cessidades de compensação (Habermas, 1990ª, p. 105-113 et seq.).

Enfim a saída habermasiana seria: só as normas motivadas racional-

mente podem ter pretensão de validade, podem ser certas. Esta certeza é

fruto da comunidade de comunicação em que os participantes testam os

discursos práticos. A validade da norma é fundamentada no consenso dos

participantes por meio da argumentação racional. Até mesmo os valores,

crenças anteriores podem ser criticados argumentativamente.

Os discursos são projetos de motivações, são formas de comu-

nicação que foram removidas dos contextos de experiências e de ação

que nos asseguram que nos atos ideais de fala seu objeto seja discutido;

que não haja restrições a participantes; que nenhuma força, a não ser

do argumento, seja exercitada; que permaneçam apenas os motivos da

cooperativa de verdade (o chamado conflito sem força ou comunicação

livre da força).

Só daí emergem: uma “vontade racional”; interesses comuns

combinados, sem decepção; interesses generalizáveis; desejos realizá-

veis – como resultante de desejos intersubjetivos Uma comunidade de

comunicação é uma comunidade de interação, de ação de discursos para

emancipação (Habermas, 1980, p. 137).

Page 130: Sociologia Jurídica

130E n i o W a l d i r d a S i l v a

RAZÃO ADAPTATIVA E POSITIVISTA X

RAZÃO ETICA COMUNICATIVA EMANCIPATÓRIA

RR

AA

ZZ

ÃÃ

OO

PODERPODER

LLUUCCRROO

SOCIEDADE

EU

E

OUTROS

RAZÃODIALÓGICA

INSTRUMENTAÇÃO COLONIZANTE

EMANCIPAÇÃO DEMOCRÁTICA

Se as relações sociais democráticas advêm de uma cultura do diálo-go, do entendimento, então a grande questão é como fazer esse diálogo. Por isso, o autor vai apontar algumas regras para a ética do diálogo. Toda a proposta do autor centra-se na criação de uma razão dialógica para fortalecer a democracia. O diálogo, no entanto, como quer Habermas, não é fácil de ser estabelecido. Vamos citar algumas regras que deveriam estar presentes em um discurso democrático.

1 – Franqueza: exige transparência das partes, como uma fala sincera e pura.

2 – Honestidade: Deve haver um sentimento de altruísmo nos interlo-cutores, querendo a colaboração dos parceiro(s) para construir um entendimento. Ninguém pode querer pensar só em si e que só a sua visão deve prevalecer (discurso desarmado, desideologizado).

3 – Face a Face – É o cara a cara, o olhar de frente, que oportunize acompanhar o falar e o sentir do outro.

4 – Democracia: Diálogo é falar e ouvir, ceder, conquistar. O deixar falar é estímulo para que o outro fale sentindo, compreendendo o que diz, se assegurando na reflexão que está fazendo.

5 – Ressonância: Observar o impacto do que se diz em quem ouve, suas reações, seus gestos, etc. Ter cuidado no tom de voz, que precisa ser firme, convincente e, ao mesmo tempo, adequada ao ambiente da comunicação.

Page 131: Sociologia Jurídica

131Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

6 – Produção do Ambiente: Fazer a adequação do contexto (lugares,

luzes, outras falas, outros sons) da fala, para que nada desvie o in-

teresse pela fala.

7 – Intersubjetividade: Manter a diferença e buscar o que é comum, não

querer encobrir o outro, falsear seus discursos, enterrar o que ele

diz no teu discurso. É como falar com o coração (sentir, entender).

Sempre incluir a fala do outro, dizer sobre o que o outro disse (entrar

no discurso do outro), não fazer pouco caso da palavra do outro.

8 – Motivação: Colocar vontade, vitalidade no falar, encorajar, valorizar o

que o outro diz, refletindo sobre a fala dele e aumentando a possibi-

lidade de ele refletir mais sobre o que disse e sobre o complemento

feito pelo interlocutor.

9 – Conquista: Aprender a deixar-se seduzir e, também, seduzir pelo

diálogo, com atitudes de respeito, sinceridade e esforço de clareza

do interesse universal que os move no discurso.

10 – Decisão: O diálogo tem de trazer a solução, a luz final ao tema ou

à verdade momentânea, conquistada e consensualmente compar-

tilhada.

11 – Autonomia: Ela precisa expressar poder de ser instituída, com a

certeza de que a verdade não é mero ideologismo e, por isso, os

sujeitos devem ter direitos a, racionalmente, discordar dela.

12 – Validade: A verdade construída deve ter um valor moral e ético de

sujeitos participantes.

13 – Legitimidade: Se houve participantes então é legítima, porque o

modo de proceder foi aberto à participação, sem restrições.

14 – Universalidade: A norma oriunda da verdade coletivamente cons-

truída pelos sujeitos imersos no mundo da vida deve ter caráter de

aplicação a todos os homens (todos são capazes de linguagem).

Page 132: Sociologia Jurídica

132E n i o W a l d i r d a S i l v a

15 – Facticidade – mesmo que tenham um tom idealista, as proposições

devem ser possíveis de prática; ser executáveis.

Direito e o Pensamento Alternativo

A perspectiva do autor era recuperar as vivências inovadoras des-

consideradas – desperdiçadas – pelas pesquisas sociológicas, para conectar

redes existentes e as possíveis redes de inovação que vierem a existir.

Trata-se de oxigenar a democracia, refundando a autoridade compartilha-

da a ela inerente. A esperança é numa pós-modernidade que equilibre

os elementos emancipatórios e regulatórios, uma ciência que produza

conhecimentos prudentes, descentes, emergentes e urgentes.

Santos faz uma releitura da modernidade para entender como ela

se instituiu em suas dimensões sociais, culturais, políticas e jurídicas.

Destaca os elementos emancipatórios da Ciência, do Direito e do Es-

tado, da luta dos excluídos e incluídos e procura reunir as experiências

democráticas e democratizantes para traçar um novo mapa do futuro

fortalecedor do pensamento alternativo ao capitalismo.

Na análise da crise da modernidade, Boventura de Sousa Santos

aponta o esgotamento dos mecanismos econômicos, sociais e jurídicos

da fase do chamado capitalismo organizado, ao mesmo tempo em que

aborda a incapacidade dos referenciais teóricos da dogmática jurídica em

lidar com as transformações sociais.

A revisão paradigmática torna-se evidente perante a globalização

econômica, pela monopolização crescente do capital e pela hegemonia

ideológica que sustenta as sociedades contemporâneas. Esse quadro traz

como consequência a deterioração dos ordenamentos jurídicos nacionais

cujo ideais de igualdade formal e segurança jurídica entraram em colapso.

Entra em colapso também o equilíbrio entre a divisão dos poderes do

Estado que acompanha o processo de mundialização da economia frag-

mentando o poder estatal, pressionado tanto pela ordem interna quanto

Page 133: Sociologia Jurídica

133Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

pela ordem internacional. Assim, o instrumental teórico da dogmática,

produzido nos dois últimos séculos, precisa ser revisto, em razão da sua

estrutura obsoleta e ineficaz perante as transformações sociais.

Nesse contexto, de enfraquecimento do Estado perante a ordem

internacional e de pressões das ordens infranacionais por mais autonomia,

a problemática acerca do pluralismo jurídico toma novo fôlego, agora com

duas estratégias distintas que de um lado busca a criação de um novo

ordenamento jurídico, em que prevalece a autorregulação; e de outro a

busca de uma adaptação evolutiva do próprio Direito Positivo.4

Boaventura de Sousa Santos divide a época moderna em três pe-

ríodos para que se tenha uma visão do pluralismo jurídico no contexto

das sociedades capitalistas.

A modernidade estrutura-se em dois pilares fundamentais, quais

sejam: o pilar da regulação e o da emancipação. O polo ou pilar da regu-

lação é orientado pelos princípios do Estado (Hobbes), pelo princípio do

mercado (Locke) e pelo princípio da comunidade (Rosseau). Já o polo

da emancipação é orientado por três lógicas: a racionalidade estético-

expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática do Direito

e a racionalidade cognitiva-instrumental da ciência e da técnica.

A articulação entre os dois polos, seus princípios e suas lógicas

fazem do projeto da modernidade um projeto ambicioso para o devir

humano. A modernidade busca, com essa vinculação, uma estruturação

4 Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de. Informalidade da Justiça e controle social – estu-do sociológico da implantação dos juizados especiais criminais em Porto Alegre. São Paulo: IBCCCRIM, 2000. Na parte inicial deste livro o autor constrói um referencial teórico importantíssimo para a Sociologia Jurídica. O fio condutor do texto de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é o pluralismo jurídico, faz uma análise de diversos teóricos que abordaram o tema. Começa com a obra clássica de Eugen Ehrlich, passa pela Sociologia francesa, na qual se destaca a obra de Gurvitch, e termina no pensamento contemporâneo de Boaventura de Sousa Santos.

Page 134: Sociologia Jurídica

134E n i o W a l d i r d a S i l v a

de valores tendencialmente opostos e contraditórios, como da justiça e da autonomia, da solidariedade e da identidade, da emancipação e da subjetividade, da igualdade e da liberdade.

As diferentes articulações estabelecidas pelos polos da eman-cipação e da regulação desenham o trajeto histórico da modernidade, estando estritamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo nos países centrais da Europa.

Assim, as diferentes formas de articulação entre os pilares da modernidade, estabelecidos nas sociedades européias, estão ligadas ao desenvolvimento do capitalismo, sendo que em cada período de seu desenvolvimento as diferentes articulações implicaram diferentes arranjos sociais que consequentemente acarretam no desenvolvimento de ordenamentos jurídicos peculiares a cada período.

Inicia-se no século 16 e chega ao seu auge no século 19, apresen-tando as seguintes características:

a – Polo da emancipação: domínio da racionalidade cognitiva-instru-mental, acarretando em um enorme desenvolvimento da ciência que é convertida em força produtiva, vinculando-se ao princípio do mercado; a racionalidade moral-prática caracteriza-se pelos processos de autonomização e especialização, manifestando-se na elaboração de uma microética liberal e no formalismo jurídico exacerbado; no domínio da racionalidade estético-expressiva ocorre uma crescente elitização em direção à chamada alta cultura.

b – Polo da regulação: não se concretiza o desenvolvimento harmonioso entre os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Pre-pondera o princípio do mercado de maneira quase absoluta, ante o desenvolvimento ambíguo do princípio do Estado e uma atrofia quase total do princípio da comunidade; limitação da intervenção estatal; o Estado protege os direitos individuais, por meio da crescente mo-nopolização dos meios de violência e do poder Judiciário; distinção entre Estado e sociedade civil.

Page 135: Sociologia Jurídica

135Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

O segundo período corresponde ao Welfare State no mundo

capitalista a à constituição do bloco socialista, que tem início no final

do século 19 e seu auge nas primeiras décadas após a Segunda Guerra

Mundial. Tem as seguintes características:

a) Polo da regulação: o princípio do mercado continua em expansão

no polo da regulação, mediante a concentração do capital industrial,

financeiro e comercial e pelo aprofundamento da luta imperialista

pelo controle de mercados e matérias-primas; destruição de solidarie-

dades tradicionais (família e território) por meio do desenvolvimento

industrial e o alargamento do sufrágio universal, inserido na lógica

abstrata da sociedade civil e do cidadão formalmente livre e igual; a

comunidade é materializada pela emergência de práticas de classe,

que passam a estruturar o espaço político; o Estado passa a ser um

agente ativo interferindo na comunidade e no mercado reduzindo a ca-

pacidade autorregulatória da sociedade civil (Sousa Santos, 2004).

b) Polo da emancipação: passagem da cultura da modernidade ao moder-

nismo cultural, representando o ápice da tendência de especialização

e diferenciação funcional dos diversos campos de racionalidade; a

racionalidade moral-prática está presente na forma política do Estado,

que penetra na sociedade mediante soluções legislativas, institucio-

nais e burocráticas e que afasta os cidadãos, aos quais solicita uma

obediência passiva no lugar da mobilização ativa; também se expressa

na consolidação de uma ciência jurídica dogmática e formalista, for-

mulada por Kelsen; a racionalidade congnitiva-instrumental é o ápice

da epistemologia positivista, com a constituição de um ethos científico

ascético e autônomo perante os valores e a política (Azevedo, 2000,

p. 51).

O terceiro período começa no final da década de 60 e prossegue

até hoje, sendo chamado de período do capitalismo desorganizado. Tem

as seguintes características:

Page 136: Sociologia Jurídica

136E n i o W a l d i r d a S i l v a

a) Polo da regulação: predominância total do princípio do mercado, que

extravasa o econômico para colonizar tanto o princípio do Estado

quanto o princípio da comunidade; plano econômico caracterizado

pelo crescimento do mercado por meio de empresas multinacionais,

contornando ou neutralizando a regulação nacional das relações de

trabalho; pela precarização das relações de trabalho; pela flexibili-

zação e automatização dos processos produtivos, com a emergência

de novos dinamismo locais; e pela expansão do mercado com a cres-

cente diferenciação de produtos de consumo e pela mercadorização

e digitalização da informação; no plano do Estado, ocorre a perda

acentuada da capacidade e da vontade política de regulação, com

privatizações, retração das políticas sociais, devolução à sociedade civil

de competências e funções que o Estado havia assumido no segundo

período; o aumento do autoritarismo, por meio de microdespotismos

burocráticos, combinados com a sua ineficiência, resultam na perda da

lealdade devida ao Estado como garantidor da liberdade e segurança

pessoais.

b) Polo da emancipação: o polo da emancipação chega ao seu esgota-

mento enquanto promessa inconclusa; na lógica da racionalidade

cognitivo-instrumental, as promessas da modernidade parecem

esvanecer-se diante dos perigos da proliferação nuclear e dos riscos

de catástrofe ecológica; agravamento das injustiças sociais, parale-

lamente ao crescimento econômico; a racionalidade moral-prática

enfrenta os dilemas do divórcio entre autonomia e práticas políticas

cotidianas, a regulação jurídica da vida social alimenta-se de si própria;

o cidadão é esmagado por um conhecimento jurídico especializado

e hermético e pela sobrejuridificação de sua vida, é confinado a uma

ética individualista, incapaz de conceber a responsabilidade coletiva

da humanidade pelas consequências das ações coletivas em escala

planetária; no plano da racionalidade estético-expressiva ocorre o es-

gotamento da alta cultura modernista, com a crítica radical do cânone

modernista, da normalização e do funcionalismo.

Page 137: Sociologia Jurídica

137Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Sousa Santos5 conclui a respeito da modernidade o seguinte: “O

que quer que falte concluir da modernidade, não pode ser concluído em

termos modernos, sob pena de nos mantermos prisioneiros da mega-

armadilha que a modernidade nos preparou: a transformação incessante

das energias emancipatórias em energias regulatórias.”

A legalidade estatal capitalista é formada por três componentes

básicos: a retórica, a burocracia e a violência. A retórica está alicerçada na

produção da persuasão e da adesão voluntária por meio da mobilização.

A burocracia baseia-se na imposição autoritária mediante a mobilização

do potencial demonstrativo do conhecimento profissional, das regras

formais gerais e procedimentos hierarquicamente organizados.

Já a violência baseia-se no uso ou ameaça da força física.

A legalidade capitalista apresenta uma articulação dessas estrutu-

ras de tal forma que há uma retração do elemento retórico e um gradual

incremento dos elementos burocráticos e coercitivos. Não poderia ser

diferente, pois quanto maior o nível de institucionalização burocrática da

produção jurídica, quanto mais poderosos os instrumentos de violência

a serviço da produção jurídica, menor o espaço retórico da estrutura e

do discurso jurídicos.

Assim, a legalidade estatal capitalista representa a imposição da

hegemonia do mercado por intermédio de mecanismos burocráticos e

coercitivos, que impedem a revitalização da lógica do mundo da vida

ou da sociedade civil. Essa estrutura legal não estabelece uma relação

dialógica com a sociedade, pelo contrário, impõe a ela uma crescente

homogeneização por meio de instrumentos burocráticos e coercitivos

(Sousa Santos, 2004).

5 Para saber mais sobre o autor acesse este site especial: <www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdf>.

Page 138: Sociologia Jurídica

138E n i o W a l d i r d a S i l v a

Seguindo essa lógica o Estado capitalista concentra os seus inves-

timentos em mecanismos de dispersão, no núcleo central da dominação,

em que Estado e não Estado são claramente distintos. Isso representa a

trajetória histórica do capitalismo que busca a hegemonia mediante um

poder central forte e massificador da sociedade, no qual é investido todo

o conhecimento profissional, dominação cognitiva. Ao mesmo tempo, é

incrementada a difusão do conhecimento não profissional nas áreas da

dominação periféricas.

Consequentemente, o poder central torna-se cada vez menos

acessível pela concentração de um conhecimento profissional que não

é universalizado, enquanto na periferia há a proliferação de um conheci-

mento trivial que possibilita um acesso maior ao poder. Até pelo ato de

que na periferia a distinção entre Estado e não Estado não é tão clara.

Essa assimetria, incrementada a partir dos anos 70 pela desregu-

lamentação e informalização da Justiça, tem um certo potencial eman-

cipador. Segundo Boaventura de Sousa Santos (1999), não existe uma

manipulação dessas reformas, pois a informalização e comunitarização

da Justiça estariam associadas ideologicamente a símbolos com forte

consolidação no imaginário social e com forte carga utópica, contendo

um elemento potencialmente emancipatório.

Na terceira fase do desenvolvimento do capitalismo fica evidencia-

do o esgotamento e limites do projeto da modernidade e a necessidade

de uma transformação paradigmática na análise social e sociojurídica.

Os fenômenos da desregulamentação e da informalização, ocorridos a

partir da década de 70, fazem com que a Sociologia Jurídica questione o

monopólio estatal da produção do Direito, admitindo uma pluralidade de

ordens jurídicas nas sociedades complexas do fim do século, ao mesmo

tempo em que se reconhece o ocultamento ou mesmo a supressão de

outras juridicidades como estratégia de dominação do Estado capitalista

(Azevedo, 2000, p. 53).

Page 139: Sociologia Jurídica

139Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Segundo Sousa Santos (2000), neste novo contexto, o Direito deve ser pensado de forma a superar as dicotomias fundantes do pensamento ocidental moderno, quais sejam: Natureza/Sociedade, Estado/Sociedade Civil, Formalismo/Comunitarismo. Isso seria feito por meio de uma du-pla hermenêutica, capaz de recuperar e reinventar tradições e práticas suprimidas pela vigência universal do cânone moderno.

Assim, a recontextualização do Direito deve partir do reconheci-mento de que todos os contextos em que se realizam práticas e discursos sociais são produtoras de Direito, constituindo tarefa da Sociologia a identificação dos contextos sociais cuja produção jurídica é suficiente-mente significativa para pôr em causa o monopólio estatal.

Acabando com a ficção do monismo estatal, vulgariza-se e conse-quentemente abala a dogmática jurídica, no entanto os demais contex-tos sociais do mapa estrutural da sociedade capitalista (domesticidade, produção, cidadania e mundialidade) não absorveram, como o Direito Estatal absorveu, algumas reivindicações democráticas dos movimentos emancipatórios da modernidade. Este fato decorre da própria ocultação promovida pela política liberal e do despotismo das demais ordens ju-rídicas, fazendo-se necessária a abertura e democratização de todas as esferas de produção do Direito.

Como vimos, a política liberal tentou reduzir o espaço de luta política ao Estado, esquecendo-se ou ocultando o caráter despótico das relações de poder difusas nos diferentes contextos da prática social.

Com essa perspectiva, Sousa Santos (2000) propõe uma revolução cultural, desmascarando as diversas formas de poder difusas na sociedade, estabelecendo uma luta cultural pelo desocultamento dos mecanismos de poder. Essa luta será travada de maneira diferenciada em cada contexto social, pois cada um tem suas formas próprias de ocultação.

Este autor (2004, p. 232) também propõe, como forma de ne-gociação à disposição dos sujeitos individuais e coletivos, a defesa dos direitos humanos. Estes são entendidos como expressão avançada de

Page 140: Sociologia Jurídica

140E n i o W a l d i r d a S i l v a

lutas pela reciprocidade, que até agora ficaram confinadas ao Direito

territorial estatal, no qual todos são formalmente iguais perante a lei, mas

com potencialidade para se estender ao Direito doméstico, da produção

e sistêmico.

Identifica a prática dos direitos humanos como uma prática contra-

hegemônica, contra a tradição da aplicação técnica (violência ou buro-

cracia), dominante no Direito territorial, opõe-se a aplicação edificante

do Direito, uma aplicação em que o know-how técnico se subordine ao

know-how ético; contra a tradição da aplicação violenta informal (violência

sem burocracia), dominante, de formas diferentes, nos outros três espaços

estruturais do Direito, opõe-se um aplicação retórica informal.

Azevedo (2000) observa que a discussão acerca do deslocamento e

da fragmentação da produção do Direito não está totalmente esclarecida,

afirmando que a crise do Estado moderno torna imprecisa suas distinções

da época feudal, quais sejam: a separação da esfera pública da privada

torna-se imprecisa, com a privatização do público e a publicização do

privado; a dissociação entre poder político (dominação legítima racional-

legal) e poder econômico (posse dos meios de produção) é reconfigurada

pela hegemonia cada vez maior do econômico sobre o político; a auto-

nomia da sociedade civil ante o Estado é abalada em uma infinidade de

promulgações e aplicação das regras jurídicas.

Assim, a modernidade nos deixou um legado que se caracteriza

pela falta de correspondência entre o ideal iluminista e a realidade social.

É a eterna armadilha da modernidade, que Weber chama de jaula de

ferro, pois a modernidade tende transformar as energias emancipatórias

em regulatórias.

É preciso identificar o predomínio da lógica do mercado sobre

as outras esferas e contextos sociais, e neste sentido o Direito, mesmo

que estatal, precisa de uma estrutura dialógica com o mundo da vida

para que as energias emancipatórias sejam resgatadas. Enfim é preciso

estabelecer práticas de participação, autogestão e solidariedade social,

Page 141: Sociologia Jurídica

141Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

potencializando a democracia radical para superar o domínio político e

econômico da contemporaneidade, sob pena de condenarmos a huma-

nidade a um modelo neofeudal dominado por empresas transacionais,

que impõem a ditadura da lógica de mercado.

Os esforços do autor são para descrever a crise do paradigma

dominante (positivismo) e identificar os traços principais do que de-

signa com o paradigma emergente, em que atribui às Ciências Sociais

antipositivistas uma nova centralidade, e defende que a ciência, em

geral, depois de ter rompido com o senso comum, deve transformar-se

num novo e mais esclarecido senso comum. Lança algumas perguntas:

“O progresso da ciência contribuirá para purificar ou para corromper os

nossos costumes? Há alguma razão para substituirmos o conhecimento

vulgar pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível

à maioria?”

E responde: não, pois não há sentido na distinção entre Ciências

Naturais e Ciências Sociais; a síntese que se deve operar entre elas tem

como polo catalisador as Ciências Sociais; estas terão de recusar todas as

formas de positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista

ou idealista com a consequente revalorização do que se convencionou

chamar humanidades ou estudos humanísticos (históricos, filológicos,

jurídicos, literários, filosóficos e teológicos); tal síntese não visa a uma

ciência unificada nem sequer uma teoria geral, mas tão só um conjunto

de galerias temáticas para onde convergem linhas de água que até agora

concebemos como objetos teóricos estanques; à medida que se der esta

síntese, a distinção hierárquica entre conhecimento científico e conheci-

mento vulgar tenderá a desaparecer (o antiPlatão) e a prática será o fazer

e o dizer da Filosofia da prática (Sousa Santos, 2003).

A consolidação de um pluralismo cultural faz com que a sociedade

e a própria ciência sejam desafiados a produzir novos conhecimentos

e compreensões a respeito da vida humana e dos processos sociais e

ambientais.

Page 142: Sociologia Jurídica

142E n i o W a l d i r d a S i l v a

Na seara da política, a abordagem de Sousa Santos (2000) refere-se

à globalização neoliberal hegemônica e não é a única. De par com ela

e em reação a ela, emerge uma outra globalização, constituída pelas re-

des e alianças transfronteiriças entre movimentos, lutas e organizações

locais ou nacionais, nos diferentes cantos do globo. Essa mobilização

se dá contra a exclusão social, a precarização do trabalho, o declínio das

políticas públicas, a destruição do meio ambiente e da biodiversidade, o

desemprego, as violações dos direitos humanos, os ódios interétnicos, etc.

e propõe outra globalização alternativa e contra-hegemônica, organizada

da base para o topo da sociedade (Silva, 2009b).

Diante das mudanças de paradigmas, a emancipação social ainda

é uma aspiração. O autor expõe que existem dois fatores fortíssimos

de legitimação: a Ciência e o Direito modernos. Quer um, quer outro,

reclamam de uma eficácia e de uma coerência, que, de fato, não têm e

nunca tiveram. Diante disso, os grupos sociais interessados na emanci-

pação não podem começar hoje uma luta pela coerência e eficácia das

alternativas emancipatórias, e veem como saída a utopia. Essa utopia

abrirá o conhecimento emancipatório e irá consolidar a sua trajetória

epistemológica, do colonialismo para a solidariedade. Identificar novos ca-

minhos emancipatórios é a proposta do autor e, sobretudo, na construção

das subjetividades capazes e desejosas de percorrê-los. Antes de apontar

novas propostas, Sousa Santos (2000, p. 330) trabalha seis pressupostos

que hoje subjazem ao momento utópico da sua reflexão.

O primeiro pressuposto é de que a Ciência e o Direito moder-

nos destruíram a tensão entre regulação e emancipação. O excesso de

regulação transformou-se, ele próprio, num problema fundamental. O

fato de a Ciência e de o Direito modernos não reconhecerem que não

Page 143: Sociologia Jurídica

143Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

existe uma solução no paradigma da modernidade, e a partir daí, pensar

na transição de um outro paradigma, transforma-os num problema fun-

damental adicional.6

O segundo pressuposto diz que a regulação social deve florescer

simplesmente porque a subjetividade é incapaz de conhecer e desejar

saber como conhecer e desejar para além da regulação. A partir daí nasce

a necessidade de reinventar um mapa emancipatório e uma subjetividade

individual e coletiva capaz de usar, e querer usar, esse mapa. Para Sousa

Santos (2000, p. 330), “esta é a única maneira de delinear um trajeto

progressista através da dupla transição, epistemológica e societal, que

começa agora a emergir”.

Dentro deste processo de reinvenção e construção, afirma Sousa

Santos (2000, p. 330) que existem alguns princípios orientadores, quais

sejam: criar novas formas de conhecimento baseadas numa nova retórica, que

seja dialógica e empenhada em constituir-se como tópica emancipatória,

ou seja, como tópica de novos sensos comuns emancipatórios, capaz de

facilitar uma resolução progressista da transição paradigmática. Para essa

tarefa duas representações inacabadas da modernidade são importantes:

o princípio da comunidade, assente nas ideias de solidariedade de par-

ticipação e o princípio estético expressivo assente nas ideias de prazer,

de autoria e de artefactualidade.

Também é possível incluir a separação do Direito moderno rela-

tivamente ao Estado e a sua rearticulação com a política e a revolução.

Diante desses campos analíticos, o autor argumenta que é possível realçar

as várias formas de opressão nas sociedades capitalistas, ao mesmo tempo

em que abrem novos espaços para uma política cosmopolita, para diálo-

gos interculturais, para a defesa da autodeterminação e da emancipação,

espaços possibilitados pela globalização das práticas sociais.

6 Esta compreensão de Boaventura de Sousa Santos já foi interpretada em Silva, Enio Waldir da. Teoria Sociológica III. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009b.

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144E n i o W a l d i r d a S i l v a

O percurso analítico de Sousa Santos (2000) tem como objetivo formular um conjunto de interrogações radicais sobre as sociedades capi-talistas contemporâneas e o sistema mundial que as integra, abrindo cami-nho para a dupla reinvenção, exigida pela própria transição paradigmática de um novo senso comum emancipatório e de uma nova subjetividade individual e coletiva com capacidade e vontade de emancipação.

O terceiro pressuposto é a difícil, mas importante tarefa de definir o paradigma emergencial. Difícil porque a modernidade classifica e fragmenta os grandes objetivos do progresso infinito em soluções técni-cas que se distinguem essencialmente pelo fato de a sua credibilidade transcender aquilo que a técnica pode garantir. As soluções técnicas têm excesso de credibilidade, ocultando e neutralizando o seu déficit de capacidade.

O autor afirma que o único caminho para pensar o futuro parece ser a utopia. E por utopia ele entende: a exploração, através da imaginação de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade, e a oposição da imaginação à necessidade do que existe, em nome de algo radicalmente melhor, porque vale a pena lutar pelo que a humanidade tem direito (Sousa Santos 2000, p. 331-332).

A utopia requer um profundo e abrangente conhecimento da realidade como meio de evitar que o radicalismo da imaginação venha a colidir com o seu realismo.

O quarto pressuposto é o fato de o pensamento utópico encontrar-se desacreditado. Em virtude da expansão da transição do estudo da natu-reza para o estudo da sociedade, foram criando um ambiente intelectual hostil ao pensamento utópico. Nesse sentido, é preciso que se recupere a capacidade imaginativa do homem para além do desenvolvimento técnico-científico da sociedade moderna.

O quinto pressuposto tratado por Sousa Santos (2000) diz que a utopia se assenta em duas condições: uma nova epistemologia e uma nova Psicologia. Essa nova epistemologia abre horizontes, expectativas

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145Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

e possibilidades, criando assim alternativas, enquanto que na nova Psico-

logia a utopia recusa a subjetividade do conformismo e cria a vontade de

lutar por alternativas. A nova epistemologia, portanto, busca alternativas

que a ciência, por sua vez, deixou de apontar.

O sexto pressuposto é uma proposta de heterotopia, ou seja, em

vez da invenção de um lugar situado algures ou nenhures, propõe uma

deslocação radical dentro do mesmo lugar: o nosso (Sousa Santos, 2000,

p. 333).

Esse deslocamento permite uma visão telescópica do centro e

uma visão microscópica de tudo o que existe no centro, porém negado.

Tem como objetivo experienciar a fronteira da sociabilidade enquanto

forma de sociabilidade.

As propostas utópicas de Sousa Santos trazem em seu seio a

convicção de que nenhuma transformação paradigmática será possível

sem a transformação paradigmática da subjetividade. Essa transição

paradigmática irá traduzir-se em emancipações sociais, que em lugar de

serem um ponto de chegada, constituem antes um ponto de partida para

pensar a transição paradigmática.

Dado que combate a regulação social existente, as lutas eman-

cipatórias devem necessariamente opor-se-lhe nos campos sociais em

que ela atualmente se reproduz. Seja como for, à medida que a transição

paradigmática progredir, as lutas emancipatórias deixarão de combater

as formas de regulação social que agora existem para combater as novas

formas de regulação, surgidas das próprias lutas emancipatórias paradig-

máticas (Sousa Santos, 2000, p. 334).

O paradigma emergente é construído dentro dos próprios espaços

estruturais, isto é, em vez de saídas globalizantes, saídas locais por meio

de uma tripla transformação: a transformação do poder em autoridade par-

tilhada; a transformação do direito despótico em direito democrático e a trans-

formação do conhecimento-regulação em conhecimento-emancipação (p. 334).

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146E n i o W a l d i r d a S i l v a

Essa tripla transformação, porém, para que não seja desacreditada

logo no início, precisa contar com coligações das formas alternativas de

sociabilidade. É aí que entra o papel político do Estado e a importância

da cidadania.

A função do Estado na transição paradigmática está centrada em

garantir as condições de experimentação de sociabilidades alternativas,

não lhe competindo avaliar o desempenho delas e sim ser avaliada pelas

forças sociais ativas nos campos sociais. Esses campos são comunidades

interpretativas ou campos de argumentação, cuja vontade e capacidade

emancipatória argumentarão na medida em que esta seja orientada pela

retórica dialógica (p. 335).

Esta retórica dialógica exige um diálogo entre o orador e o auditório

e, para ser eficaz, obriga a um conhecimento prévio da plateia que se

pretende influenciar: A contradição e a competição geral entre o paradigma

dominante e o paradigma emergente desdobram-se em contradições e competições

específicas em cada um dos espaços estruturais (p. 335).

Para apresentar os termos da contradição e da competição paradig-

mática o autor concentrou-se no paradigma societal emergente, no senso

comum emancipatório a ser construído por uma tópica retórica dialógica e

no novo Estado-providência. A maioria das visões ou utopias alternativas

concentraram-se nos espaços da produção e da cidadania.

No espaço doméstico a contradição e a competição ocorrem entre

o paradigma da família patriarcal e o paradigma das comunidades do-

mésticas cooperativas. O paradigma emergente baseia-se na autoridade

partilhada, em todas as formas alternativas de sociabilidade doméstica

e sexualidade, e na democratização do Direito doméstico. O novo senso

comum emancipatório do espaço doméstico baseia-se numa tópica retó-

rica da democracia da cooperação e da comunidade afetiva. Essas novas

formas alternativas assumem a garantia de experimentar a igualdade e

o acesso ao Direito social.

Page 147: Sociologia Jurídica

147Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

No espaço da produção, a contradição e competição ocorrem entre

o paradigma do expansionismo capitalista e o paradigma ecossocialista.

O paradigma ecossocialista organiza-se para uma produção democrática

de valores de uso, sem degradação da natureza. O novo senso comum

emancipatório do espaço da produção baseia-se numa tópica retórica,

orientada pelos topois da democracia e do socialismo e antiprodutivis-

mo ecológico. A área de produção de bens e serviços constitui uma das

primeiras formas de promoção da experimentação social que optou pelo

Estado-providência.

No espaço do mercado, a contradição e a competição ocorrem entre o

paradigma do consumismo individualista e o paradigma das necessidades

humanas, da satisfação decente e do consumo solidário.

No paradigma emergente, os meios de satisfação estão a serviço das necessidades. Sendo uma das formas de organização do consumo, o mercado e as necessidades são vistos como algo subjetivo de acordo com os contextos e as culturas. O novo senso comum emancipató-rio do espaço do mercado baseia-se numa tópica retórica orientada pelos topoi da democracia, das necessidades radicais e dos meios de satisfação genuínos (p. 338).

Neste espaço, a estruturação de providência social do Estado deve

assegurar a experimentação de formas alternativas de consumo, criando

condições para que grupos de consumidores se associem na produção

de alguns bens de consumo, sobretudo alimentar.

No espaço da comunidade, a contradição e a competição ocorrem

entre o paradigma das comunidades-fortaleza e o paradigma das comu-

nidades-amibas. Comunidades-fortaleza, Sousa Santos (2000, p. 339)

define que são formadas por grupos sociais dominantes, que se fecham

numa pretensa superioridade para não serem corrompidas por comuni-

dades supostamente inferiores. No paradigma das comunidades-amibas

a identidade é sempre múltipla, inacabada, em processo de reconstrução

e reinvenção.

Page 148: Sociologia Jurídica

148E n i o W a l d i r d a S i l v a

Abrem espaço para a inclusão, lançando pontes para outras comuni-

dades, procurando comparações interculturais que confiram o significado

mais profundo a sua concepção própria de dignidade humana. O paradig-

ma das comunidades-amibas objetiva construir um novo senso comum

emancipatório, guiado por uma hermenêutica democrática cosmopolita

multicultural e diatópica.

No espaço da cidadania, a contradição e a competição ocorrem en-

tre o paradigma da democracia autoritária e o paradigma da democracia

radical.

O paradigma emergente é o paradigma da democracia radical,

isto é, da democratização global das relações sociais assentes numa dupla

obrigação política: a obrigação política vertical entre o cidadão e o Estado,

e a obrigação política horizontal entre cidadãos e associações (p. 340).

O espaço da cidadania só é garantido quando está unido com a

democratização dos demais espaços.

O último espaço a ser trabalhado pelo autor é o espaço mundial.

No espaço mundial a contradição e a competição paradigmáticas ocorrem

entre o paradigma do desenvolvimento desigual e da soberania exclusiva

por um lado, e o paradigma das alternativas democráticas ao desenvolvi-

mento e da soberania reciprocamente permeável por outro (p. 341).

A visão do paradigma emergente sob a hierarquia Norte-Sul e o

desenvolvimento capitalista, expansionista e desigual que essa hierarquia

sustenta, constituem a maior e mais implacável violação dos direitos

humanos no mundo hoje. O paradigma emergente trabalha com a

ideia de:

Um novo sistema de relações internacionais e transnacionais orientado pelos princípios da globalização contra-hegemônica: o cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade. No novo modelo, a soberania deixa de ser exclusiva e absoluta, tornando-se recíproca e democra-ticamente permeável (p. 342).

Page 149: Sociologia Jurídica

149Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Neste paradigma os princípios de autodeterminação interna e ex-

terna têm importância de igual teor. Tenderão a desaparecer as distinções

entre cidadão e não cidadão, entre imigrantes e nacionais e, com isso,

a cidadania, assim como as nacionalidades, tenderão a ser plurais. No

espaço mundial a dimensão de providência social do Estado tem como

base assegurar a experimentação com novas formas de sociabilidade

internacional e transnacional, incluindo governos locais transnacional-

mente articulados em rede.

As propostas apresentadas pelo autor visam a uma experimen-

tação social como formas alternativas de sociabilidade. A essas formas

alternativas de sociabilidade compete ao Estado garantir a experimen-

tação, residindo nessa função a sua natureza de providência social. A

experimentação social é também uma autoexperimentação, sua autor-

reflexividade.

Nos termos que ora se apresentam, a contradição e a competição

paradigmáticas significam uma confrontação no campo social entre regu-

lação e emancipação. Na luta política paradigmática, a confrontação ocorre

entre a regulação socialmente construída pelo paradigma dominante e a

emancipação imaginada pelo paradigma emergente.

A transição paradigmática é epistemológica e societal. Ao unir

estas duas transições nasce o conceito de subjetividade. A subjetividade

é o grande mediador entre o conhecimento e a prática. Ela é, ao mesmo

tempo, individual e coletiva. O tipo de subjetividade capaz de explo-

rar, e de querer explorar, as possibilidades emancipatórias de transição

paradigmática,

tem de se reconhecer assim mesmo e ao mesmo tempo através do conhecimento-emancipação, recorrendo a uma retórica dialógica e a uma lógica emancipatória. Por outro lado, tem de ser capaz de conceber e desejar alternativas sociais assentes na transformação das relações de poder em relações de autoridade partilhada e nas transformações das ordens jurídicas despóticas em ordens jurídicas

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150E n i o W a l d i r d a S i l v a

democráticas. Em suma, há que inventar uma subjetividade constituída

pelo topos de um conhecimento prudente para uma vida decente

(Sousa Santos, 2000, p. 345).

A subjetividade da transição paradigmática é aquela para quem

o futuro é uma questão pessoal e de todos, pois o autor acredita que a

construção de uma subjetividade individual e coletiva que seja apta a

enfrentar as futuras competições paradigmáticas e disposta a explorar as

possibilidades emancipatórias por elas abertas deve ser guiada por três

grandes topoi: a fronteira, o barroco e o sul.

A fronteira surge como uma forma privilegiada de sociabilidade,

cujas principais características da vida

na fronteira são as seguintes: uso muito seletivo e instrumental das

tradições trazidas por pioneiros e imigrantes; invenção de novas formas

de sociabilidade; hierarquia fraca; pluralidade de poderes e de ordens

jurídicas; fluidez das relações sociais; promiscuidade entre estranhos

e íntimos; misturas de heranças e invenções [...] (p. 347).

Já o termo barroco é utilizado pelo autor enquanto metáfora

cultural para designar uma forma de subjetividade e de sociabilidade

capaz de explorar e querer explorar as potencialidades emancipatórias

da transição paradigmática (p. 357).

Ele não despreza, porém, os três outros sentidos, quer seja: como

estilo artístico, como época histórica e como ethos cultural, por ser con-

siderado um fenômeno latino e mediterrâneo, uma forma excêntrica de

modernidade, o Sul do Norte: a sua excentricidade decorre, em grande parte,

do fato de ter ocorrido em países e em momentos históricos em que o centro do

poder estava enfraquecido e tentava esconder a sua fraqueza dramatizando a

sociabilidade conformista (p. 357).

Page 151: Sociologia Jurídica

151Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

Como momento histórico, é conferido ao barroco um caráter aberto

e inacabado, que permite a autonomia e a criatividade das margens e

das periferias, em função da relativa ausência de poder central. Por ser

também um período de crise e de transição, a sociabilidade turbulenta

que ela promove alcança alguma semelhança com o momento atual.

Desse caráter aberto e inacabado da subjetividade e da sociabili-

dade barroca surge a sua disponibilidade para lutar por um novo acaba-

mento. O paradigma emergente é um processo feito de continuidade e

descontinuidade, e a subjetividade barroca privilegia a aparência barroca

enquanto medida transitória e compensatória.

O Sul é o terceiro e último topos que Sousa Santos (2000) propõe

para a constituição da subjetividade da transição paradigmática: tal como

a fronteira e o barroco, o Sul também é aqui usado como uma metáfora cultural,

isto é, como um lugar privilegiado para a escavação arqueológica da moderni-

dade, necessária à reinvenção das energias emancipatórias e da subjetividade

da pós-modernidade (p. 361).

O Sul e o Oriente são, ambos, produtos do império. Tanto o Sul

quanto o Oriente transformaram-se gradualmente em regiões periféricas

do sistema mundial, e dessa forma passaram a ser vítimas da dominação

cultural e econômica. O Sul, enquanto metáfora fundadora da subjeti-

vidade emergente, como símbolo de uma construção imperial, exprime

todas as formas de subordinação a que o sistema capitalista mundial deu

origem: expropriação, supressão, silenciamento, diferenciação desigual,

etc.

O Sul sob esta ótica está espalhado pelo mundo inteiro, inclusive

dentro do Norte e do Ocidente: o conceito de terceiro mundo interior, que

designa as formas extremas de desigualdades existentes nos países capitalistas

do centro, designa também o Sul dentro do Norte. O Sul significa a forma de

sofrimento humano causado pela modernidade capitalista (p. 368).

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152E n i o W a l d i r d a S i l v a

A subjetividade emergente é uma subjetividade do Sul e floresce no Sul. A subjetividade do Sul varia conforme as regiões do sistema mundial em que surge. Nos países do centro, a subjetividade do Sul constitui-se por meio da desfamiliarização do Norte imperial. Esta des-familiarização do Norte imperial é uma epistemologia complexa, feita de sucessivos atos de desaprendizagem nos termos do conhecimento-regulação (da ordem ao caos), e da reaprendizagem nos termos do conhecimento-emancipação (do colonialismo à solidariedade).

Nos países centrais, a desfamiliarização relativamente ao Norte imperial implica todo um processo de desaprendizagem das Ciências Sociais que constituíram o Sul como o “outro” e o Norte como “nós”: para se aprender a partir do Sul, devemos, antes de mais nada, deixar falar o Sul, pois o que melhor identifica o Sul é o fato de ter sido silenciado. Como o epistemicídio perpetrado pelo Norte foi quase sempre acom-panhado pelo “linguicídio”, o Sul foi duplamente excluído do discurso (Sousa Santos, 2000, p. 372).

A construção da subjetividade do Sul deve desenvolver-se por processos parcialmente distintos no centro e na periferia do sistema mundial. A construção da subjetividade do Sul tem de seguir um pro-cesso de desfamiliarização, tanto em relação ao Norte imperial quanto em relação ao Sul imperial.

Para finalizar, veja como o autor aborda a questão dos direitos humanos na citação a seguir:

Os Direitos Humanos Enquanto Guião Emancipatório

O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racio-nalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tende ser defendida da sociedade ou do Estado; a anatomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres. Uma vez que todos estes pressupostos são claramente ocidentais e facilmente desig-

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153Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade

náveis de outras concepções de dignidade humana em outras culturas, teremos de perguntar porque motivo a questão da universalidade dos direitos humanos se tornou tão acesamente debatida. Podemos enumerar as principais premissas de uma tal transformação. A primeira é a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente falso cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. A segunda premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebe em termos de direitos humanos. Torna-se, por isso, importante identificar preocu-pações isomórficas entre diferentes culturas. A terceira é que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade cultural, pois, se cada cultura fosse tão completa quanto se julga, existiria apenas uma só cultura. A idéia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem enfermar todas as culturas, e é por isso que a completude é mais facilmente perceptível do exterior, a partir perspectiva de uma outra cultura. Aumentar a consciência de incompletude cultural até o seu máximo possível é umas das tarefas mais cruciais para a constrição de uma concepção multicultural de direitos humanos. A quarta premissa é a que todas as culturas têm versões diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com círculo de reciproci-dade mais largo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidental desdobrou-se em duas concepções e práticas de direitos humanos profundamente divergentes – a liberal e a marxista – uma dando prioridades aos direitos cívicos e políticos, a outra dando prioridade aos direitos sociais e econômicos. Há que definir qual delas propõe um círculo de reciprocidade mais ampla. E por último, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de presença hierárquica. Um – o princípio da igualdade – opera através de hierarquias entre unidades homogêneas. O outro – o princípio da diferença – opera através da hierarquia entre identidades e diferenças consideradas únicas. Os dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais (Sousa Santos, 1997).

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CAPÍTULO 4

TEmAS DE SOCIOLOGIA

JURÍDICA ATUAL1

1 Para acompanhar as discussões práticas das pesquisas sociológicas acesse: <www.sociologiajuridica.net.br>.

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Os clássicos da Sociologia construíram um arsenal conceitual que se tornaram fontes estruturais e culturais das Ciências Sociais contem-porâneas. Estas teorias aplicadas sobre diferentes realidades marcaram o contornos das diferentes pesquisas da Sociologia Jurídica e dos refe-renciais das Ciências Jurídicas. É o historiador inglês do Direito, Henry Sumner Maine, cuja obra principal, que data de 1861, dá início à história sociológica do Direito dos países ocidentais. Sua teoria evolucionista da passagem da sociedade do estatuto à sociedade do contrato teria inspirado a Durkheim sua teoria da transformação das sociedades da solidarieda-de mecânica e do Direito repressivo em sociedades caracterizadas pela solidariedade orgânica e pelo Direito restitutivo.

Eugen Ehrlich nasceu em 1862 na cidade de Czernowitz (Buco-vina do Norte), que formava parte então do Império Austro-Húngaro e hoje, com o nome de Chernovtsy, integra a Ucrânia. Foi professor de Direito Romano e reitor da Universidade de sua cidade natal, cassado pelo antissemitismo ali prevalecente depois que, em 1919, a província passou ao controle da Romênia. De nada valeu seu brilhantismo nem sua conversão, ainda moço, ao catolicismo. Ehrlich morreu em Viena, amargurado e tuberculoso, em 1922, alguns meses antes de cumprir os 60 anos (Azevedo; Rojo, 2005).

O segundo dos “iniciadores” que gostaríamos de evocar aqui é o austríaco Eugen Ehrlich, que, em 1913, publicou o primeiro tratado de “Sociologia do Direito” e que por isto é reconhecido por alguns como o “pai” da disciplina. Quando menos, foi o primeiro a empregar esta denominação para designar a análise do “direito vivente”, quer dizer, do Direito tal como ele é aplicado e utilizado, em oposição ao Direito escrito ou teórico.

A posição quase hegemônica que a Sociologia Jurídica gozou na academia, a partir dos anos 60, foi a que Touraine (1987, p. 26) definiu como a “sociologia da suspeita e da caça ao ator”. Esta, traduzindo em termos sociológicos a versão que Louis Althusser dava à obra de Karl Marx, desdenhou o estudo do Direito, considerado mero produto su-

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158E n i o W a l d i r d a S i l v a

perestrutural das relações de produção e viu nas instituições espelhos deformados e deformantes dos sistemas de relações sociais, cuja realidade não podia (supostamente) reconhecer-se nelas.

Em verdade, foi apenas em meados dos anos 80 que os sociólogos começaram a reconciliar-se com a tradição dos precursores e dos fundado-res e foi aparecendo um renovado interesse por uma Sociologia Jurídica que não teria unicamente por objeto o Direito Penal e que progressiva-mente se difundiu não só nos países germânicos ou anglo-saxões, mas também nos de tradição latina, a um lado e outro do Atlântico, muitos dos quais estavam vivendo as sequelas de processos de democratização pós-ditatorial conhecidos como a terceira onda.

Hoje a Sociologia Jurídica está viva. No que se refere as suas orientações teóricas, o quadro se tem diversificado muito, ainda que se mencione com frequência a constante importância de alguns autores. Entre eles, os clássicos das Ciências Sociais: Marx, Durkheim e Weber, aos quais se acrescentam os clássicos da disciplina: Ehrlich, Theodor Geiger, Gurvitch ou, entre os mais recentes: Vilhelm Aubert, Carbonnier e Renato Treves. Alguns autores contemporâneos adquirem também uma importância comparável à dos clássicos, seja pelos trabalhos que inspiram ou pelas críticas que suscitam fora de seus países de origem. Trata-se amiúde de autores alemães, Luhmann e Habermas em primeiro lugar, assim como Foucault, Gunther Teubner ou ainda Donald J. Black. Um fenômeno particular é digno de menção: a importância, em muitos países, de autores que podem se considerar como “autores nacionais emblemáticos”. Entre estes podemos encontrar Petrazycki e Podgórecki na Polônia, Barna Horváth na Hungria, Boaventura de Sousa Santos em Portugal (e no mundo luso em geral), Per Stjernquist na Suécia ou Guy Rocher no Canadá (Azevedo; Rojo, 2005).

No que tange aos domínios de pesquisa, o melhor estudado, objeto de trabalhos em todo lugar onde a Sociologia Jurídica conhece um certo desenvolvimento empírico, é o das instituições que asseguram a produção (e a reprodução) do Direito: os tribunais, as profissões jurídicas, a polícia,

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159Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

etc. Vêm em segundo lugar as pesquisas que se referem à efetividade e

aos efeitos do Direito: estes concernem às vezes a domínios particulares

(a família, a empresa, a proteção do meio ambiente, etc.), focalizam-se

nos fenômenos de ineficácia (marginalidade e divergência), ou avaliam

ainda a eficácia dos instrumentos jurídicos na prevenção ou resolução

dos conflitos ou das demandas renovadas (políticas e sociais) de uma

instância simbólica que deve agir seguindo formas adjudicatórias e que

teria de dizer o que é justo. Vêm depois outras duas categorias: por um

lado, o estudo dos fenômenos de pluralismo normativo e, por outro, o

dos fenômenos de produção do Direito, dos processos legislativos e de

seu contexto social.2

Quanto a sua institucionalização, a Sociologia Jurídica revela, antes

de mais nada, uma grande diversidade. Não só a disciplina se acha mais

ou menos bem estabelecida, de acordo com o país de que se trate, como

sua instituição segue, em cada país, modalidades muito diferentes, dando,

por exemplo, preferência, em alguns deles, às instituições de pesquisa e,

em outros, ao ensino universitário. Diante da influência das instituições

estatais, observa-se uma importância variável das instituições privadas,

em particular das associações, das revistas ou ainda das coleções de tra-

balhos especializados. A este respeito não podemos deixar de mencionar

os que poderíamos denominar “momentos fortes” de nossa disciplina,

oferecidos pelos congressos e outros encontros científicos periódicos.

No universo da própria Sociologia Jurídica a evolução mais sensível

que, a nosso juízo, produziu-se nesses últimos tempos, é a importância

crescente dos marcos não nacionais, quer dizer, das redes regionais e

internacionais. Podemos, assim, reconhecer diversas regiões caracteri-

zadas por afinidades teóricas e até por relações mais ou menos institu-

cionalizadas de cooperação. Entre elas a Europa latina, estruturada em

2 Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de; Rojo, Raúl Enrique. Sociedade, direito, justiça. Relações conflituosas, relações harmoniosas? Revista Sociologias, Porto Alegre: UFRGS, ano 7, n. 13, p. 16-34. jan./jun. 2005.

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torno do “Cercle de Sociologie et de Nomologie Juridiques” que anima André-Jean Arnaud; a Europa germânica, onde se afirma o dinamismo das redes alemãs, seguido atentamente por Itália e os países da Europa Central e Oriental; a Escandinávia, dona de uma antiga tradição de cooperação, que também parece influenciada pelos trabalhos levados adiante na região germânica; os países anglo-saxões, nos quais a Law and Society Association tem criado fortes vínculos; e a América Latina, por fim, na qual se celebram, desde 1987, reuniões de jurisociólogos latino-americanos e onde é remarcável uma série de iniciativas adotadas pelo Instituto Latinoamericano de Servicios Sociales, entre elas a revista Más Allá del Derecho.

Vamos apresentar agora alguns estudos que enfocam temas per-tinentes para se compreender as dimensões atuais das relações entre sociedade e Direito.

O Direito como Sistema Autopoiético3

Sociedades sem pessoas

Luhmann introduz três premissas em sua análise da sociedade que produziram não apenas críticas vigorosas, mas também muita incompreensão, a ponto de ser acusado de ter um pensamento anti-humanista e cínico: 1. A sociedade não consiste de pessoas. Pessoas pertencem ao ambiente da sociedade. 2. A sociedade é um sistema autopoiético que consiste de comunicação e mais nada. 3. A sociedade só pode ser adequadamente entendida como sociedade mundial. O banimento das pessoas para o ambiente da sociedade completa a descentralização da cosmologia humanista. Tendo sido retirada do centro do universo na Renascença, desprovida de sua origem única ao ser colocada no contexto da evolução por Darwin, e desnudada de sua autonomia e autocontrole por Freud, o fato da humanidade agora ser libertada das amarras da sociedade por Luhmann parece

3 Grande parte deste texto já foi publicado em Silva, Enio Waldir da. Teoria Sociológica III. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009b. p. 27-43.

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161Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

ser uma extensão consistente dessa tendência. Enquanto a tradição clássica européia, com sua distinção entre humanos e animais, dotava os humanos de sentido, razão, vontade, consciência e sentimentos, a separação inexorável dos sistemas mentais e sociais que Luhmann substitui por homo socialis deixa claro que a sociedade é uma ordem sui generis emergente, que não pode ser descrita em termos antropoló-gicos. A sociedade não tem o caráter de um sujeito – nem mesmo no sentido enfático transcendental, como uma condição da possibilidade de idéias subjacentes definitivas ou de mecanismos de qualidades humanas. Não é um endereço para apelos humanos de ação, e certa-mente não um lugar para reinvindicar igualdade e justiça em nome de um sujeito autônomo. A sociedade é a redução comunicativa definitiva possível que separa o indeterminado do que é determiná-vel, ou o que é processável da complexidade improcessável. Numa análise detalhada, Luhmann traça a distinção cada vez maior entre o indivíduo e a sociedade. Só depois de uma clara separação ter sido feita entre sociedade e humanidade é que é possível ver o que pertence à sociedade e o que está alocado à humanidade. Isso abre as portas à pesquisa sobre a humanidade, a consciência humana e o funciona-mento da mente humana com base em medidas empírico-naturais. A tese da separação de sistemas sociais (ou sistemas da sociedade) e sistemas físicos torna possível entender claramente o relacionamento entre sociedade e humanidade e segui-lo através de sua histórica. Os dois são nesse sentido sistemas autopoiéticos, um operando na base da consciência e o outro na base da comunicação. Mas o que é sociedade? Sociedade, numa aproximação inicial, é o sistema social inteiro, incluindo tudo que é social, e consciente de nada social fora de si mesmo. No entanto, tudo que é social é identificado como co-municação. A comunicação “é uma operação genuinamente social (e a única que é conjunta socialmente). É genuinamente social porque pressupõe uma maioria de sistemas de consciência colaboradora ao mesmo tempo que não pode (exatamente por essa mesma razão) ser atribuída como uma unidade a nenhuma consciência individual”. Por outro lado, é também verdadeiro que qualquer coisa que pratique comunicação é uma sociedade. Isso envolve definições de grande abrangência4 (Bechmann; Stehr, Nico, 2001).

4 Bechmann, Gotthard; Stehr, Nico. Niklas Luhmann. Tempo Social, Rev. Sociol., São Paulo: USP, 13(2): 185-200, nov. 2001.

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Podemos afirmar que a Teoria do Sistema, em termos sociológicos,

tem seu início com Auguste Comte (1798-1857), e tem continuidade

com Herbert Spencer, Émile Durkheim e Talcott Parsons. Com Niklas

Luhmann ela é reedificada e retomada de forma mais profunda.

Niklas Luhmann formula uma teoria geral da sociedade de modo

a superar as desconexões entre micro e macro existentes em muitas te-

orias sociológicas, com conceitos precisos: Auto-organização, Autopoiésis,

Autorreferência, Autoidentificação, Autoproteção, Entorno, Meio Ambiente,

Heterorreferência, Diferenciação, Seleção, Complexidade, Comunicação, Ope-

ração Fechada, Sentido, Reflexividade, Intenção, Irritação, Entropia, Proces-

sualidade, Fechamento Operacional, Acoplamento Estrutural, Contingência...

Expressões que parecem pouco sociológicas ou filosóficas ou que, pelo

menos, há muito estes saberes não usavam expressões mais próprias das

Ciências Naturais.

Podemos afirmar que a teoria de Luhmann está dividida em

cinco blocos básicos: sistema social mundial; sistemas de comunicação

(as possibilidades dos códigos de linguagem como aceitação e rejeição);

teoria de evolução (da qual se tira a concepção de diferenciação entre

variação, seleção, estabilização) e uma dedicação à teoria da diferenciação

mostrando que um sistema se constitui de outro sistema desde dentro

(segmentações... cidade/campo... até a sociedade moderna na qual a di-

ferenciação é funcional) e, por último, sobre os aparatos de reflexão ou

autodescrição da sociedade (mecanismo de redução da complexidade –

código de sentido – autoidentificação – procedimento – dominância).

Segundo Luhmann existem três tipos de Sistemas: o Sistema Vivo

(natural ou a natureza), o Sistema Psíquico (os sujeitos) e o Sistema Social

(sociedade).

O Sistema Social é teorizado, inicialmente, de acordo com a teoria

dos sistemas abertos, que se relacionam com seu meio contando com

a absorção de insumos (inputs), devolvendo-lhes os resultados (outputs)

de suas próprias operações. Luhmann trabalhava com a ideia de dife-

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163Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

renciação social, que produz crescente complexidade. Sua teoria tinha, portanto, caráter fundamentalmente evolutivo, a exemplo de Parsons. Luhmann construiu sua obra essencialmente em torno da teoria geral da Sociologia, Sociologia do Direito, da Economia e das organizações.

Tais teorias tratam de matéria em movimento, em constante mudança. Sua vertente sociológica, revelada na teoria luhmanniana, aplica-se especialmente a um mundo social no qual ocorrem alterações velozes, inexplicáveis pelas teorias sociais tradicionais fixadas mais na questão da manutenção da ordem.5 Luhmann se contrapõe à visão tra-dicional de sociedade que defendia que ela se compõe de pessoas e/ou de relações entre elas; ou que a sociedade se constitui e se integra pelo consenso e pela complementaridade de opiniões e objetivos; ou ainda que as sociedades são unidades regionais, geograficamente delimitadas (sociedade brasileira, francesa, alemã, etc.). Estas teorias estavam crentes que as sociedades podem ser observadas de fora, tal como grupos de pessoas ou territórios.

Stockinger (2007) argumenta que na teoria sistêmica de Luhmann é afirmado que

o consenso e a complementaridade – caso existirem – são produto de processos sociais e não elementos constitutivos. A constituição/integração de sociedade não se dá por consenso, mas sim pela “cria-ção de identidades, referências, valores próprios e objetos através de processos de comunicação na sua própria continuação”, independente daquilo que os seres experimentam no confronto com ela. Devido à distinção axiomática feita pela teoria sistêmica entre “sistema” e “ambiente” (ou “meio”), o social enquanto sistema há de ser separado do seu ambiente psíquico e/ou biológico. O sistema social é composto unicamente por comunicações, isto é, de mensagens e informação. Os seres humanos enquanto pessoas e indivíduos não pertencem a este sistema. A distinção epistemológica feita pela teoria os enquadra no ambiente do sistema social, passam a ser algo como a “razão externa”

5 Stockinger, Gottfried. Sistemas sociais – a teoria sociológica de Niklas Luhmann. 2007. Disponível em: <Robertext.com/archiv06/sist_sociais.htm>. Acesso em: 30 nov. 2011.

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da existência do sistema. Tal mudança de visão, ao mesmo tempo que afeta a autopercepção do indivíduo frente a sociedade, muda o método de explicação para toda uma gama de fenômenos sociais como desigualdade social, formação de estratos e classes sociais, etc. Porque se o homem fizesse parte do sistema, tais diferenciações podiam ser explicados apenas como atos de discriminação social que contrariam os direitos universais, responsabilizando para tal os indivíduos (como o faz a jurisprudência arcaica ainda dominante na nossa sociedade).

Com isso teríamos uma visão mais científica, a diferenciação não é mais colocada dentro das pessoas, mas ocorre entre estas e o sistema social, é colocada portanto dentro do modo de comunicação, ou seja, agora temos a possibilidade de ver o homem, inteiramente, com corpo e alma, como parte do ambiente do sistema social. A sociedade seria percebida de modo global, sem fronteiras de comunicação e o sentido das sociedades territoriais desaparece.

A noção de limite ou fronteira entrou mais recentemente na teoria de sistemas, quando se começou a distinguir entre sistemas fechados e abertos, percebendo ambos os tipos não como contrários um do outro, mas sim como complementares. Limites ou fronteiras têm um papel ativo. Eles trabalham a interação entre o ambiente e o sistema. Tendo limites ativos, sistemas podem fechar-se e abrir-se, potencializando assim suas chances de (sobre-)vivência. Eles representam, portanto, uma conquista por excelência da evolução. Dentro de suas fronteiras, sistemas sociais se apresentam como operacionalmente fechados, embora continuem abertos no sentido termodinâmico (quer dizer que estão expostos a um fluxo energético, representado pelas informações provindas do ambien-te). Tal fechamento operacional lhes permite manterem-se e evoluírem num ambiente que, em relação ao sistema, é algo desordenado, caótico. A ligação do sistema social com o seu ambiente – o seu metabolismo energético em forma de informação – se dá por um processo chamado de “acoplamento estrutural”, que pode ser visto como a digitalização de relações analógicas, executada, por exemplo, pelas funções da lin-guagem. O pressuposto do fechamento operacional do sistema social

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165Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

aloca o indivíduo definitivamente no ambiente do sistema. O ponto de diferença para a Sociologia de tradição filosófica humanista é que nesta o ser humano foi visto como estando dentro e não fora da ordem social. Ele foi chamado de indivíduo, porque era para a sociedade um elemento indissolúvel. Era tido como zoon politikon e animal social. Quando se vê o ser humano como parte do ambiente da sociedade, as premissas das questões mudam. De repente, todas as mitologias sobre a formação de coletivos humanos são ultrapassadas, ou, melhor dito, elas são relegadas para o nível da autodescrição do sistema social (Stockinger, 2007).

Um sistema é chamado de complexo quando a quantidade de partes e sub-sistemas, que o compõem ultrapassa um determinado limiar a partir do qual não é mais possível de pôr todos os elementos em relação uns com os outros. Sempre que o número de elementos a conectar-se ultrapassa este limiar surgem necessidades de seleção, e se produz uma seletividade de fato de tudo que é realizado. É realizada uma seleção da totalidade de possibilidades de relacionamentos atuais de cada vez. Sistemas são selecionados como pontos de vista e temas ordenados, a partir das quais se pode acessar uma relação entre sistema e ambiente.

De modo a funcionalmente mostrarem-se bem-sucedidos, cabia aos siste mas então lidar com essa crescente complexidade, reduzindo-a a níveis, que tornassem possível a própria reprodução do sistema. Os meios dos sistemas proviam inúmeras possibilidades de esco lha; para se manterem enquanto sistemas, eles deviam selecionar alternativas, equacionadas segundo códigos binários (sim/não) que, no curso de seu processo de funcionamento, implicavam escolhas que reduziam aquela complexidade (por exemplo, o sistema jurí dico funciona de acordo com um código simples: legal/ilegal).

Os sistemas sociais, como qualquer outro sistema vivo, são comuni-cativos, quer dizer que produzem e processam informações, que podem ser vistas como matéria-prima básica. Informação é tida aqui no sentido de novidade, e não simplesmente como qualquer mensagem transmitida ou recebida. Uma mensagem, um símbolo, um código se transforma em

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informação, quando produzem um efeito seletivo num sistema, quando este pode escolher a partir de diferenças existentes. Um sistema social é constituído por comunicações, isto é por interações que contêm infor-mação. Comunicações conectam-se com comunicações. O sistema cessa – deixa de existir – quando a comunicação acaba. Sistemas sociais são auto-organizados (autopoiesis). A ação do sistema se dá a partir de um “self”, construído no e pelo imaginário inconsciente de um ambiente que lhe fornece os elementos (dados, informações, códigos, símbolos). Sistemas sociais representam uma “conexão dotada de sentido de ações que se referem umas às outras e que são delimitáveis no confronto com um ambiente” (Stockinger, 2007).

Por outro lado, as estruturas mantinham vivas as possibilidades des cartadas, que poderiam ser utilizadas adiante. Além disso, a ideia de meios de intercâmbio como formas de comunicação simbolicamente generalizadas vinha cumprir enorme papel em sua teoria, mais uma vez sob a influência de Parsons, com a radicalidade que o descarte dos atores sociais como tema introduzia na nova formulação de Luhmann. Dinheiro, poder, lei, amor, são meios de comunicação diversos que correspondem a sistemas sociais diferenciados, cada qual tendo, pois, seu próprio me-canismo de coordenação (Domingues, 2001, p. 50).

Explicando melhor: a teoria dos sistemas de Luhmann, assim como a de Habermas, tentava tirar a Sociologia de seu caráter mais pragmático e dar-lhe uma posição mais genérica na interpretação da sociedade como um todo. O sistema luhmanniano pretendia a construção de uma teoria geral da sociedade que servisse de sustentáculo para a observação crite-riosa do meio social em tempos de complexidade elevada.

Luhmann constata que a noção antiga de mundo, que estava relacionada com algo localizável e coisificado, está se dissolvendo com as possibilidades de comunicação mundial que não se reduzem com a distância. Mundo é aqui concebido enquanto mundo de vida (como o faz Habermas), e Luhmann encampa esta concepção. Enquanto sociedade mundial, ele representa o macrossistema da mais alta complexidade, não

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167Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

como uma coisa externa, mas presente no cotidiano, no mundo de vida de cada um. Hoje em dia sociedade mundial está implicada em cada e qualquer comunicação, independente da temática concreta e da distân-cia entre os participantes... Sociedade mundial é o acontecer de mundo na comunicação. Para assimilar esta visão, outras visões “mecanicistas” têm de ser descartadas. O mundo deixa de ser um aggregatio corporum ou universitas rerum, ou seja, a totalidade das coisas visíveis e invisíveis. Ele também não é mais o infinito a ser preenchido, nem o espaço ou tempo absolutos, enquanto entidade que contém tudo. O mundo não é nada mais do que o horizonte geral da vivência com sentido, quer esta se volte para dentro ou para fora, para frente ou para trás. O mundo não está fechado por fronteiras mas sim pelo sentido que pode ser ativado por ele. Enfim, o mundo passa a constituir uma correlação de opera-ções. Adotando uma concepção não territorial do mundo, Luhmann entra na questão das desigualdades regionais e do processo conhecido como globalização por uma outra via. Ele reconhece que os efeitos de sistemas funcionais diversos – nomeadamente os de tipo “tradicional” versus os de tipo “moderno” estão, hoje em dia, presentes em qualquer região global. Sobretudo os ambientes urbanos reproduzem mundos de vida semelhantes, qualquer que seja sua localização territorial. As diferenças existem, porque distintos sistemas funcionais “se reforçam ou se debilitam mutuamente por causa de condições locais e regionais, criando padrões diferentes”. Tais diferenças regionais – referindo-se ao seu aspecto econômico – podem ser atribuídas sobretudo à flutuações no mercado (financeiro) mundial. Sendo assim, a visão territorial deve ser substituída por uma sociedade mundial funcionalmente diferenciada, em qualquer lugar. A diferenciação funcional dos sistemas sociais está tão enraizada dentro da sociedade, que mesmo o uso de meios políticos e organizacionais dos mais fortes não consegue boicotá-la regionalmente (Stockinger, 2007).

Não é possível duvidar que Luhmann seja bastante original em sua construção teórica. Esta originalidade está em sua interdisciplinari-dade e também em sua inovação em não buscar mais uma unidade para

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o discurso sociológico, mas a diferença. Isto foge da tradição moderna,

mas jamais pode ser admitida como um discurso pós-moderno. Se tiver-

mos um discurso de unidade e ele entrou em crise e se passou a falar

em subjetividade ou sujeito como base de todo o conhecimento e ação,

temos agora, com Luhmann, uma nova semântica, mais adequada a uma

abordagem do real e diante de novas configurações sociais.

Nesta perspectiva, as teorias sociológicas sempre cometiam um

paradoxo ao pensar que se os sujeitos da ação residem na realidade

última da sociedade, então a constituição desta teria de ser pensada,

avaliada, de forma normativa, em virtude da natureza e razão daqueles.

Este subjetivismo, diz Luhmann, converteu sujeito em sinônimo de ser

humano, indivíduo e pessoa.

Aceitar a ideia de sociedade de sujeitos, implica também aceitar

que estes são múltiplos e se cada sujeito concebe a si mesmo como sendo

condição de possibilidade da constituição de tudo que experimenta e

assim são os outros, então este sujeito não é real e isso significa que não

há intersubjetividades ou que pelo menos esta não pode ser conteúdo

do social (Luhmann, 1998b, p. 5-33) .

A própria teoria da ação estava enlaçada neste sentido subjetivista.

Se constatarmos que os indivíduos agem, é preciso perceber que isto

ocorre sempre em um contexto. Torna-se, portanto, difícil discernirmos

até que ponto esta ação deve ser atribuída ao indivíduo ou ao contexto.

Devemos entender o processo de atribuição mesmo, posto que as ações

não são dados últimos que aparecem como elemento empiricamente

inquestionável, impondo-se por si mesmo as análises sociológicas. Elas,

as ações, são somente artifícios atributivos produzidos pela sociedade.

Ao entendermos o conceito de diferenciação funcional, podemos

perceber que se trata de um processo incessante de produção de novas

estruturas capazes de definir as ações admitidas e excluídas. A comuni-

cação e o concomitante processamento de informações se orientam em

diferenças, que possibilitam a formação de temas, valores e outros “ob-

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169Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

jetos” sociais em torno destes. Sistemas sociais emergentes não partem

de uma identidade, mas de uma diferença. Em todas as experiências da

vida social encontra-se uma diferença primária: a diferença entre o que

atualmente ocorre e aquilo que a partir daí é possível acontecer. Esta

diferença básica, que é reproduzida forçosamente em todo tipo de vivên-

cia, atribui a cada experiência o valor de uma informação, capaz de ser

processada e comunicada. Isso possibilita a atribuição de valores inclusive

a acontecimentos casuais e construir ordem a partir destas. Desta forma,

sistemas reduzem a complexidade infinita do mundo mediante a seleção

daquilo que á atualmente relevante (Stockinger, 2007).

Quando as teorias sociológicas esquecem isto, acabam trabalhan-

do com conceitos imprecisos, buscando modelos e sofisticando demais

as metodologias (como é o caso do “individualismo metodológico” e

a “teoria da escolha racional”). Isto não permite construir uma via de

acesso à realidade social e impossibilita à teoria sociológica enfrentar a

complexidade crescente da sociedade moderna (2007, p. 6-30).

A obra de Luhmann é complexa porque não se filia, integralmente,

a nenhuma tradição, como já mencionamos. Como teoria geral segue

de perto o modelo de Talcott Parsons, mas tem caráter mais teórico.

Fundamenta-se amplamente em relação ao parsionismo e pretende dar

uma resposta às análises marxistas e aos clássicos em geral, que lhes

parecia muito insuficiente para explicar a realidade de hoje.

A Sociologia necessitava, segundo Luhmann, fazer uma descrição

mais convincente das realidades e de forma interdisciplinar: teoria geral

dos sistemas, teoria da evolução, cibernética, Biologia, teoria da comu-

nicação, teorias de observação, etc. Luhmann justifica que usa estas

ciências e seus conceitos por serem mais precisos e completos e “iria

aprovechar el nivel ya alcanzado en la investigación para la teoría general de

la sociedad” (Luhmann, 1992b).

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Sua importância está efetivamente na pretensão de ter um alcance universal com o uso de conceitos com grande precisão, embora nos pareça que muitos deles resultem de um esforço de analogia entre máquina, organismo e sociedade.

O próprio autor, porém, alerta que isto é esforço de alta abstra-ção e não analogia que permite “formular con exactitud la distinción entre sistemas biológicos y sociales” (idem, p. 143), pois se a Biologia trata de questões momentaneamente estáveis como as células, as teorias socio-lógicas constituem-se sobre as bases de acontecimentos que, no mesmo momento que emergem, logo em seguida desaparecem. Assim ela não poderia descrever estes acontecimentos se não for a partir de dentro de sua estrutura.

Parece-nos que Luhmann faz uma defesa estridente do objetivis-mo ao se contrapor ao subjetivismo. Percebemos, no entanto, que ele é mais amplo. Se observarmos um certo funcionalismo em sua teoria certa-mente não se trata do funcionalismo clássico. Seu funcionalismo trata dos desequilíbrios do sistema não como simples eventos disfuncionais, e sim perturbações, irritações que têm de ser entendidas em razão da estabili-dade estrutural. As respostas do sistema são dadas, antes de tudo, diante da sensibilidade ambiental, a evolução e a estabilidade dinâmica.

A noção de ambiente não deve ser vista como uma categoria-resto. Ambiente não é aquilo que sobra quando se subtrai o sistema. Pelo contrário, a relação ambiente/sistema é constitutiva para a realidade, e não apenas no sentido de o ambiente estar aí apenas para a manutenção do sistema, seu abastecimento com energia e informação. Para a teoria de sistemas autorreferenciais o ambiente é antes de mais nada uma pressuposição da identidade do sistema, porque identidade é apenas possível quando há diferença. O sistema não é mais importante do que o ambiente, porque ambos são o que são apenas em relação ao outro. Desta forma, a superestimação própria da noção de sujeito, nomeadamente a tese da subjetividade da consciência, é revisada. A base do sistema so-cial não é o sujeito, mas sim o ambiente. Ambos formam uma unidade

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171Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

inseparável. Sua relação não é tanto de influência mútua, mas sim de cooperação possível dentro de um mundo instável exposto a flutuações casuísticas. A diferença entre sistema e seu ambiente é intermediada exclusivamente por limites de sentido. Áreas de sentido – campos cog-nitivos e do imaginário – passam a constituir os principais “territórios” na sociedade de informação. A territorialidade física perde seu valor e suas propriedades. A distinção sistema/ambiente se origina na teoria cibernética e da evolução. A teoria de sistemas cria mudança radical pelo fato de não mais falar-se de objetos, mas sim de diferenças, de distin-ções, de diferenciações. Estas não podem ser tratadas como coisas, quer dizer, como algo que já existe e que precisa apenas ser observado, ser percebido, ser analisado. Distinções são objetos virtuais, elas devem ser feitas, ser realizadas, senão não existem. Quando nenhuma diferença foi realizada, nada mais havia a ser comunicado. O sistema não continuaria, terminaria, entraria em colapso. A estabilidade e a duração do sistema depende, permanentemente, de novas diferenças e distinções a serem criadas (Stockinger, 2007).

Ou seja, há uma diferenciação entre o sistema e o entorno que o funcionalismo clássico não tratava. Para isto Luhmann desenvolve os conceitos de autorreferência e autopoiesis.

Autopoiesis: Autopoiesis ou auto-organização é uma qualidade interna do sistema, intocável de fora. O termo denomina a unidade que um elemento, um processo, um sistema é para si próprio, isto é, independentemente da interpretação ou observação por outros. Por meio de auto-organização o sistema constitui seus próprios elementos como unidades funcionais. A relação entre os elementos refere-se a sua autoconstituição, a qual é reproduzida, assim, permanentemente. Uma consequência importante que resulta forçosamente de uma cons-tituição auto-organizada de um sistema é a impossibilidade de controle unilateral. Nenhuma parte do sistema pode controlar outros, sem estar sujeito ao controle das outras partes. Uma estrutura de poder assimétrica, autoritária, requer, portanto, procedimentos especiais que reprimam a

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autoconstituição do sistema. Autopoiesis inclui autorreferência – a capa-cidade de se relacionar consigo próprio, de refletir-se. Ela permite uma enorme amplificação dos limites de capacidade de adaptação estrutural e da abrangência da comunicação interna. Na base da autopoiesis de sis-temas sociais Luhmann encontra um processo autocatalítico, construído a partir de uma situação de dupla contingência. O sistema social não surge, portanto, de uma concordância de opinião ou de ação, nem de uma coordenação de interesses e intenções de diversos atores. Sem solução do problema da dupla contingência nenhuma ação emerge, porque falta a possibilidade de sua determinação.

Um exemplo de uma situação de dupla contingência com quali-dades autocatalíticas, tirada do cotidiano, é dada pelo encontro de duas pessoas estranhas uma a outra, num elevador. Quem já presenciou, cer-tamente já experimentou esta sensação de referência vazia. Mostra-se num tipo de tensão que verdadeiramente clama para ser aliviada, por meio de uma comunicação qualquer. Uma vez iniciada, ela pode ter continuidade, constituindo até uma relação mais ou menos duradoura. Sob condições de dupla contingência de sistemas autorreferenciais cada acaso pode se tornar um impulso produtivo para a gênese de um siste-ma social. O sistema social baseia-se, portanto, em instabilidades, em flutuações permanentes às quais ele tem de resistir. A situação de dupla contingência possui, assim, as qualidades de um fator autocatalítico, o qual cria, sem ser “consumido”, estruturas num novo patamar de ordem. Em consequência diferencia-se de um sistema social, destacando se do seu pano de fundo psicobiológico. Ele forma seus próprios elementos e limites e se abre para o acaso. O surgimento de um ambiente casual (ruído) é primordial. Dupla contingência não combina com a pressupo-sição de uma natureza) e também não de um a priori. Ela libera níveis de ordem emergente, tornando-as autônomas em relação à especulações sobre noções como matéria ou espírito. No lugar de tais concepções de última segurança aparece a imaginação de um problema que se torna produtivo sempre que a complexidade de realidade dada fosse suficien-temente complexa.

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173Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

A autorreferência do sistema só pode se realizar quando este, em

suas operações, é capaz de identificar sua “mesmicidade”, uma iden-

tidade, uma referência a si, uma reflexividade, e de diferenciar isto de

qualquer outra realidade nelas causalmente imbricada, implicada. Os

sistemas autorreferenciais têm de manejar sempre a diferença e identi-

dade para poder se reproduzir.

Esta compreensão relativamente biologista do sistema torna muito

mais complexo pensarmos em termos de sistema social e as possíveis con-

duções de processos históricos, questões ausentes na teoria de Luhmann a

não ser como querer abstrato de observadores (voltaremos a este assunto

mais adiante). Luhmann mostra-nos que os sistemas autorreferenciais

têm a capacidade de controlar a sua produção e a distintividade de seus

elementos, pois estes lhes dão unidade e razão de o sistema ser inde-

componível (indescomponible).

O autor mostra isto recorrendo a conceitos da cibernética e da

Neurofisiologia como de “auto-organização” quando a ordem emerge

espontaneamente para retroalimentar o sistema, e “autopoiesis” quando

o sistema gera uma rede de produção e de transformação que as produziu.

Isto é, o sistema produz a si mesmo, pois constitui os elementos como

modo de unidades funcionais.

Não é possível afirmar que os sistemas são autorreferenciais,

autopoiéticos, sem mencionar o seu “entorno”. Todo o sistema é depen-

dente de seu entorno e a ele está acoplado. O sistema necessita estar no

entremeio das operações constantes do entorno que o provoca, instiga-o

e o estimula. Esta “irritação” não é obstáculo, mas obriga o sistema a

responder que só faz quando a tolerância se esgota ou é uma efetiva

ameaça quando provoca uma mudança sistêmica que é determinada pela

própria estrutura do sistema, como um autocontato operativo e cognitivo

(Neves, 1997, p. 10, 13).

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Neste sentido, parece-nos que há entre sistema e entorno uma

dependência e uma independência, na medida em que existe sempre

uma provocação do entorno que faz o sistema responder e, por outro

lado, não são todas as perturbações que são respondidas. Nesse aparente

paradoxo de circularidade fica em aberto a questão: O que faz com que

o entorno irrite o sistema? E a questão proposta por Habermas: Se o

sistema terá sempre condições de responder ou se em algum momento

ele não estará “saturado”, pois ao descomplexificar o entorno o sistema

se complexifica (Neves, 1997).

Se o sistema seleciona aspectos do entorno que são relevantes para

a constituição de seus próprios elementos, então o sistema é fechado em

sua estrutura e operação que tende a ser aberto, pois necessita responder

as suas ameaças. O sistema seria, então, autopoiético, autorreferente e

fechado.

A sociedade é um sistema complexo composto de muitos subsis-

temas que se diferenciam entre si interna e externamente. A sociedade

moderna tem muitas diferencialidades funcionais com conexões entre

si, difíceis de serem abordadas a não ser por uma teoria complexa.

A sociedade como sistema social autopoiético é interpretado

como comunicação. A comunicação são as operações sociais compulsó-

rias constituíveis somente por meio de uma rearticulação recursiva com

outras comunicações, ou seja, elas não ocorrem isoladamente (1997, p.

76). A comunicação é um fato emergente que se realiza pela seleção de

informações, expressão de informações e pela compreensão ou incom-

preensão das expressões e de sua informação.

Comunicação só pode ser produzida por meio da comunicação. A

sociedade é aquilo que ela comunica. A comunicação é componente da

sociedade que delimita o sistema em relação ao seu entorno, ao mesmo

tempo em que o opera e o irrita.

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175Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Comunicação, para Luhmann, não significa apenas uma síntese

de três aspectos: a informação, a mensagem e a compreensão, em que

ela não é somente “um fato emergente que se realiza pela seleção de

informações, expressão de informações e pela compreensão ou in-

compreensão das expressões e de sua informação”. Luhmann define

comunicação como a síntese de três seleções: mensagem, informação

e compreensão da diferença entre mensagem e informação. Luhmann

vê uma mensagem como nada mais do que uma “sugestão“ ou uma

“incitação“ – um impulso.

Apenas quando tal sugestão for aceita, quando ela produzir uma

excitação, a comunicação se torna existente. O ato de comunicar torna-se

um ato seletivo. Trata-se de um processo triplo e não apenas duplo. Não

bastam um “transmissor” e um “receptor”. A seletividade da informação

– como interveniente genuíno – é ela própria um momento importante

do processo comunicativo. Comunicação, para Luhmann, portanto, é um

processo de construção de significados; ela é conhecimento.

Quando Luhmann acentua a relação entre comunicação e sistema,

ele mostra que para os sistemas sociais a comunicação se constitui em

fator prioritário de afirmação de sua individualidade. Não são somente

indivíduos, no entanto, que se constituem em sujeitos da comunicação,

mas os próprios sistemas sociais. A sociedade emerge como um universo

de todas as comunicações.

A comunicação destina-se a produzir a eficácia simbólica gene-

ralizante que torna possível a regularização da vida social sob a forma

de uma organização sistêmica e, ao mesmo tempo, cria as condições de

estabilidade favoráveis a este tipo de organização social e ao seu desen-

volvimento (Neves, 1997, p. 9-33).

A comunicação é intrinsecamente seletiva e tem também função

de ordenamento. O social é composto de comunicações e não de pessoas.

A comunicação é o entorno do sistema que o obriga a dar respostas.

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O conceito de comunicação reconstruído por Luhmann é funda-mental para entendermos esta nova teoria dos sistemas. Nova porque foge da tradição europeia de compreender a sociedade como uma espécie de sistema soberano, que tem capacidade ilimitada de modelar seu meio ambiente. Para Luhmann, o meio ambiente não é só um municiador, “mas também contém” capacidade importante para definir os limites do próprio sistema. A razão sistêmica não é hegemônica, mas sim de-fensiva que acolhe e neutraliza as ameaças que proveem do meio, mas nunca o dominam. É por isso, também, que o sistema não é normativo e não tem caráter de ideal-tipo. É contingente e opera como rede plu-ridimensional.

Em termos mais amplos, Luhmann deixa de considerar o ho-mem como parte fundamental do organismo social e o trata como meio ambiente do sistema; é fonte geradora de problemas para o sistema, complexificador. Luhmann provocou a Sociologia com estas afirmações, tentando separar indivíduo de sociedade. Ao pretender “levar o indivíduo a sério” o autor quer mostrar a improbabilidade de os indivíduos se co-municarem com a sociedade porque, para ele, a comunicação é sempre uma operação interna do sistema.

Luhmann dá à comunicação uma imagem destituída de referên-cia ontológica e antropomórfica. Ao acentuar a relação sistema social e comunicação, ele a vê como um dispositivo fundamental do dinamismo evolutivo do sistema e como elemento simbolizante funcional que agrega coletividades. Com sua eficácia simbólica é também um sistema autorreferente e autônomo, que independe dos indivíduos, que torna possível regulações da vida social e cria condições para estabilidade. Tem caráter de seletividade. A comunicação é como um dispositivo ci-bernético destinado a normalizar as relações sistema-meio, mesmo que isto signifique consenso ou dissenso.

A comunicação é a alternativa de linguagem que vem substituir o seu antigo papel nas sociedades convencionais. Quando operam, no entanto, são mais que linguagens, e sim mecanismos de regulação dos

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177Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

processos sociais que pretendem dispensar a linguagem ou, pelo menos,

de problemas que a linguagem não é capaz de tratar. Isto é, a linguagem

não é vista como único meio de resolver problemas de compreensão. A

comunicação é autônoma em meio a um emaranhado de diversidade de

sentidos, inclusive a dos “códigos e semânticas” (Neves, 1997, p. 98).

Sem entrar na discussão ontológica do que é um sistema, Luhmann

parte do seu conceito que denomina uma “capacidade”, a de “produzir

relações”. Esta aptidão pode ser atribuída tanto a processos naturais

como sociais.

Ao definir sociedade como comunicação e, sendo a sociedade um

sistema social – sistema social mais abrangente –, que envolve a totali-

dade de todos os contatos possíveis – das comunicações – e partindo do

princípio de que a comunicação é um processo seletivo – quando base-

ado em sentido –, que estabelece os limites e o horizonte dos sistemas

sociais e possui função de ordenamento, que regulariza e constrói as

condições de estabilidade – de forma contingente –, das condições da

vida social, Luhmann elabora a teoria de sistemas sociais, que pode vir

a ser apreendida como parte de uma teoria sistêmica com características

gerais, ao mesmo tempo em que possibilita a descoberta de distinções

que só o social é capaz de criar: comunicações.

A partir desta perspectiva, Luhmann cria o método sistêmico, que

permite a elaboração de análise, pesquisa e intervenção na construção

da realidade social.

Como os sistemas sociais também produzem sua própria constitui-

ção, eles se compõem de comunicações. A comunicação seleciona, sintetiza

informações, comunicações, compreensões e, neste processo, ela produz

tanto o consenso como o dissenso. Não são os indivíduos que se ligam

uns aos outros, mas comunicações a comunicações. É assim que se forma

o sistema social. Os indivíduos são meios da sociedade e não parte dela,

estão fora do sistema social e fazem parte dos sistemas psíquicos:

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178E n i o W a l d i r d a S i l v a

[...] A sociedade não pode sair de si mesma com as próprias operações e abranger os indivíduos... o mesmo vale, em sentido inverso, para a vida e a consciência dos indivíduos... nenhum pensamento pode abandonar a consciência que ele reproduz... pois o que aconteceria e como eu poderia desenvolver individualidade, se os outros pudessem, com seus pensamentos, movimentar meus pensamentos e como se deveria poder imaginar a sociedade como uma hipnose de todos por todos?... ninguém é “eu”. Tampouco a palavra maçã é maçã (Neves; Samios, 1997, p.86).

O sistema mantém-se em funcionamento sem que se tenha uma

prioridade de fatores essenciais externos para isso. Opera dentro de um

limite e quando age se diferencia de seu entorno e cada um deles possui

um grau de complexidade. O sistema possui uma identidade em si, tem

uma circularidade em operação, fechada, mas com intencionalidade de se

abrir para acoplar, adaptar-se, posto que, como sistemas, são autopoiéticos,

mas uns se alimentam dos outros (ou pressupõe os outros). Por sua coe-

rência estrutural o outro é sempre um entorno. Os sistemas são dinâmicos

e estão baseados em instabilidades, porque o entorno é sempre mutante.

Entre o sistema e o sistema-mundo há múltiplas possibilidades.

Nessa linha, é impossível a um indivíduo conhecer positivamente

toda a sociedade. O sociólogo faz um esforço elevado de abstração e o

faz como um observador de segunda (ou mais) ordem e, às vezes, ele

não percebe o próprio sistema de observação que utiliza, pois o próprio

homem é um sistema que possui milhões de cromossomos e inúmeros

subsistemas. Como exemplo Luhmann nos mostra que é possível co-

nhecer o cérebro independente das ideias, pois ele “é um sistema real

que existe em condições ambientais complexas e intranquilas”.

Este ambiente em que vive o cérebro é amplo e não podemos

manter um contato com ele de maneira operacional. Isto quer dizer que

só poderemos conhecer uma coisa quando pudermos diferenciá-la de

outra, por isso o autor vai dizer que se um sistema é autopoiético ele

precisa ter fronteiras e se tem fronteiras ele é fechado e não aberto como

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179Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

vinham afirmando na Cibernética e na Biologia, pois é impossível que

uma coisa seja totalmente aberta se lhe é impossível ser fechada: “ser

aberto fundamenta-se em ser fechado” (Neves, 1997, p. 23).

Com Luhmann percebemos que é impossível teorizar sobre a

subjetividade como conteúdo do social. Cada sujeito é em si contingente,

como condição de possibilidade entre outras possibilidades do mundo

real. Suas ações são artifícios atribuitivos produzidos pela sociedade.

Expressam-se como se fossem subjetividade, mas que não podem ser

objetivadas como dados.

Assim, seria mais fácil estudar os mecanismos institucionais que

resolvem problemas imediatos da vida particular e coletiva do homem.

São as instituições legítimas da sociedade que cimentam tensões entre

um e outro. Estes subsistemas são vistos por Luhmann como meros

mecanismos funcionais auxiliadores do sistema social geral na solução de

irritações. Por isso eles têm caráter positivo e precisam de mais autonomia

para atingirem mais capacidade seletiva

... esta forma de legitimidade responde às características dos sistemas das sociedades desenvolvidas. Ali eles têm caráter autopoiético como mecanismo reflexivo do próprio sistema que lhes permite desdobra-mento auto-reflexivo, de forma a poder satisfazer as necessidades de plasticidade e estabilidade das suas estruturas num contexto altamente complexo (Neves, 1997, p. 17).

A constante evolução da complexidade do meio ambiente é

problemática para o sistema, pois implica que ele tenha de aumentar as

possibilidades de seleção, embora não um equivalente entre resposta

do sistema e descomplexificação (ou parada da evolução). O esforço do

sistema em reduzir a complexidade pode levá-lo a uma entropia e a uma

ameaça de morte. Esta eventualidade de catástrofe deve-se ter presente

em nossos esforços de observação para descrição do funcionamento da

sociedade.

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180E n i o W a l d i r d a S i l v a

Considerando a sociedade como o resultado de um processo de

evolução, de emergência do social a partir de acasos, de contingências

e de recombinações, Luhmann busca adequar a sua construção teórica

aos tempos atuais, em que a questão da mudança e da renovação da

sociedade se colocou no centro das atenções, relegando o tema “ordem

social” ao segundo plano. Ele constata que teorias da evolução tratam de

problemas genéticos, que não seguem uma lógica determinística, mas

que lidam com a “probabilidade do improvável”. Evolução significa, por

assim dizer, uma espera por acasos aproveitáveis. Isso pressupõe a exis-

tência de sistemas que se reproduzem, que se mantêm e que, portanto,

são capazes de esperar. Evolução não pode ser vista, portanto, como um

processo contínuo, linear, que segue leis predeterminadas. A Sociologia

tradicional sempre buscava a racionalidade nas projeções e ações sociais.

Ela foi tomada como um ponto de referência, quase como uma crença

numa harmonia social, em que o racional pudesse prevalecer apesar da

crescente complexidade da sociedade. Tais pressupostos, entretanto,

como o da “mão invisível” guiando a economia do mercado, são dei-

xados de lado pela teoria de sistemas complexos. A sociedade se guia,

se for o caso, por meio de flutuações, que obrigam sistemas funcionais

ou territoriais à auto-organização pelo processamento de informações

dissipativas.

Parece-nos que para Luhmann tudo é possível e impossível ao

mesmo tempo. Só se refere às possibilidades de catástrofes e não refere-se

às possibilidades de liberdade, à autonomia humana. Se no sistema de

Luhmann, no entanto, a liberdade não é tratada diretamente, assim

também não o é o totalitarismo. Este é, porém, mais possível de notar

quando ele trata da relação do homem e sociedade, pois se nenhum

sistema pode incorporar por inteiro a identidade do homem, logo não

há o perigo do totalitarismo. Ou seja, não dá para dizer que a teoria é

catastrofista ou otimista.

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181Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Com Luhmann vemos o anúncio da morte de qualquer teleologia;

morte de toda a intencionalidade e finalidades. Estas ficam somente na

intenção no observador; ele promove uma mudança radical em relação

ao pensamento que afirma que a estrutura determina a função (mas sim

da função que determina a estrutura) e a impossibilidade de separar

sujeito e objeto.

Com Luhmann não podemos mais falarde uma epistemologia

transcendental. São fragmentos nominalistas e idealistas que misturam

visibilidades diversas e uma diversidade de enfoques, como uma epis-

temologia natural.

É muito discutível em Luhmann o modo como ele dá por encer-

rado um determinado tempo histórico, a arbitrariedade com que postula

uma nova realidade absolutamente diferente que se abre à evolução

social. De certa forma, é uma idealização do processo de secularização

em que elimina os conflitos da racionalidade, neutraliza o problema da

reprodução social e dá à política uma visão improdutiva, neutralizante

e de hipertrofia.

Como observa Pissarra (1992):

O paradigma de Luhmann nos propõe ajuda na compreensão de

diferentes aspectos da realidade social e política contemporânea

(que outros paradigmas ignoram), mas dele não devemos esperar

mais do que pode nos dar. Do seu programa não constam as respostas

aos problemas da dinâmica social, das tendências inovadoras e da

mudança estrutural (p. 28).

Será que poderíamos afirmar, a partir de Luhmann, que o ser

humano é um sistema autopoiético que necessita se alimentar de um

meio ambiente que contenha liberdade, igualdade que o capitalismo

não tem? Poderíamos interpretar que a lógica capitalista “irrita” as vidas

humanas e que as respostas que vão dar é a eliminação daquele, como

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182E n i o W a l d i r d a S i l v a

forma da “aclopamento”? Ou que o sistema capitalista é capaz, por sua

seletividade, de incorporar em sua estrutura as necessidades humanas

e manter um equilíbrio eficaz?

Apesar destas preocupações mais teleológicas, cremos que uma

teoria é sempre viva, como a terra; podemos tirar dela aquilo que formos

capazes. Por exemplo, a grande contribuição desta teoria para entender

o Direito. Mediante a função desenvolvida em cada subsistema, pode-se

diferenciá-lo dos demais, uma vez que a sociedade moderna pode ser

descrita como um grande sistema social estruturado sobre a base de uma

diferenciação social. Essa delimitação dos subsistemas sociais permite

a verificação dos seus elementos específicos, possibilitando o estudo do

Direito, sem interferências de elementos estranhos as suas relações.

O sistema sociojurídico, segundo a teoria de Luhmann, é consti-

tuído por comunicação, pois é esta que torna a operação apropriada para

produzir e reproduzir o sistema jurídico. Para a teoria sistêmica, o que

deve ser privilegiado em uma sociedade são as comunicações entre os

sistemas e seus elementos. O que gera o sistema social são as comunica-

ções. A comunicação humana é a aprimoração das expectativas em um

ambiente social.

Nesse sentido, o Direito é apresentado como o padrão de ob-

servância das expectativas de um meio social, mas o indivíduo não fica

atrelado aos ditames das expectativas sociais quando busca suprir as suas

necessidades. Luhmann entende que o meio social propicia uma gama de

possibilidades de escolha para o indivíduo. Nesse sentido, ocorre o risco

de que a escolha realizada pelo indivíduo não seja a mais adequada.

A forma adotada pelo sistema social para reduzir essa infindável

quantidade de possibilidades é o emprego de sínteses comportamen-

tais, ou seja, essas sínteses almejam reduzir a complexidade do meio

permitindo ao indivíduo seguir uma generalização de expectativas que

simplifica o convívio social e dá sentido ao sistema social.

Page 183: Sociologia Jurídica

183Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

A teoria sistêmica de Luhmann apresenta-se como um postulado

científico inovador e mais adequado ao ambiente social, tomado por

incertezas e eivado de caos. Segundo Luhmann, um sistema é chama-

do de complexo quando a quantidade de partes e subsistemas que o

compõem ultrapassa um determinado limiar a partir do qual não é mais

possível pôr todos os elementos em relação uns com os outros. Sempre

que o número de elementos a se conectar ultrapassa este limiar surgem

necessidades de seleção e se produz uma seletividade de tudo o que é

realizado. É realizada uma seleção da totalidade de possibilidades de

relacionamentos atuais de cada vez.

Sistemas são selecionados como pontos de vista e temas orde-

nados, a partir dos quais se pode acessar uma relação entre sistema e

ambiente. Sistemas sociais se formam autoestimulavelmente para reduzir

a complexidade do mundo; o mundo que representa a unidade entre

sistema e meio e que contém todos os sistemas e todos os meios. A tarefa

principal dos sistemas sociais é a de reduzir a complexidade do mundo

de tal maneira que ela possa ser entendida pelas pessoas ou sistemas

psíquicos – na linguagem da teoria dos sistemas.

Complexidade é assim definida: um conjunto de elementos que

devido a restrições imanentes à capacidade de enlace, torna impossível

combinar cada elemento ao mesmo tempo com cada elemento. Ou,

em outras palavras, complexidade é o conjunto dos possíveis estados

e acontecimentos de um sistema. Assim, a complexidade do mundo é

sempre maior do que a complexidade de um sistema, que, por outro

lado, precisa de um grau de complexidade que lhe permita a redução

da complexidade no seu meio.

A complexidade é apresentada por meio das inúmeras interpre-

tações ou representações do mundo e sua “redução” ocorreria quando

uma das possíveis alternativas se concretizasse. Para os sistemas sociais

a redução da complexidade do mundo traduz-se no problema de como

enfrentar a dupla contingência.

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184E n i o W a l d i r d a S i l v a

O Direito pode e deve ser compreendido como um sistema

autopoiético, autorreferencial, e tem em si mesmo a capacidade de

determinar a sua própria evolução a partir da interação dos elementos

que o formam, que são produzidos e maturados por essa interação cir-

cular e recursiva que lhe dá existência. Para que isso possa acontecer é

necessário que o Direito, enquanto sistema, venha a ser compreendido

como um sistema fechado, pois somente assim será possível ao próprio

Direito definir-se, escolhendo a sua programação, seleção e evolução

(Sousa Santos, 2005).

Autopoiesis ou auto-organização é uma qualidade interna do sis-

tema, intocável de fora. O termo denomina a unidade que um elemento,

um processo, um sistema é para si próprio, isto é, independentemente

da interpretação ou observação de outros. Autopoiesis significa que um

sistema complexo reproduz os seus elementos e suas estruturas dentro

de um processo operacionalmente fechado, com a ajuda dos seus pró-

prios elementos.

Mediante a auto-organização o sistema constitui seus próprios ele-

mentos como unidades funcionais. A relação entre os elementos refere-se

a sua autoconstituição, a qual é reproduzida, assim, permanentemente.

Autopoiesis inclui autorreferência – a capacidade de se relacionar consigo

próprio, de se refletir. Ela permite uma enorme amplificação dos limites

de capacidade de adaptação estrutural e da abrangência da comunicação

interna.

Uma consequência importante que resulta forçosamente de uma

constituição auto-organizada de um sistema é a impossibilidade de

controle unilateral. Nenhuma parte do sistema pode controlar outros,

sem estar sujeito ao controle das outras partes. Uma estrutura de poder

assimétrica, autoritária, requer, portanto, procedimentos especiais que

reprimam a autoconstituição do sistema.

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185Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

O problema desencadeante de gênese e manutenção da ordem

social é designado em Luhmann com dois conceitos estreitamente

relacionados: complexidade e dupla contingência.Por complexidade

entende-se o conjunto de todos os eventos possíveis. Designa-se assim,

portanto, o campo ilimitado dos “mundos possíveis”. “Contingente”

é aquilo que não é nem necessário nem impossível, senão meramente

possível. No momento em que dois indivíduos entram em contato nesse

marco, cada um receberá essas contingências, tanto referida a si mesmo

como ao outro (Arnaud; Lopes Jr., 2004, p. 301).

O caráter fundador do social que possui esse valor comunicativo

de atuação reside em seu valor de conexão para a atuação da outra parte,

e assim sucessivamente. É por meio dele que pode ser gerado o com-

ponente central de toda estrutura social: expectativas compartilhadas

(Correa, 2003).

Como afirma Luhmann, portanto, a comunicação “é induzida pela

experiência da dupla contingência” e “conduz à formação de estruturas

que se conservam sob tais condições”. A operabilidade dos sistemas so-

ciais, seu enlace com uma realidade externa aos mesmos, nasce, assim,

da “fatalidade do acaso”, da “transformação de dados originados no acaso

em probabilidades estruturais” (Neves; Samios, 1997, p. 88).

O sistema social aparece desde o momento em que um evento

articula os indivíduos por meio de seu sentido partilhado, e tem com ele

o caráter de comunicação. Luhmann observa que, enquanto sistema, a

sociedade é composta por comunicações, tão somente de comunicações

e de todas as comunicações. Com efeito, apenas mediante comunicação

pode se estabelecer comunicação; não é possível comunicar sem parti-

cipar no sistema comunicativo. Isto implica que a sociedade, enquanto

composta de comunicações, se articula como sistema fechado (Arnaud;

Lopes Jr., 2004, p. 304).

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186E n i o W a l d i r d a S i l v a

É o sistema social global, ou sociedade, o primeiro passo nesse processo de redução da complexidade, que torna possível a inter-relação social. Parte-se do fato de que “surgem sistemas sociais na medida em que pessoas entram em inter-relação”. A sociedade não pode crescer enquanto a complexidade que ainda admite dentro de si não for reduzida, enquanto não for canalizada novamente. Quando o processo funciona sem qualquer crivo específico, toda complexidade se converte em in-formação e deixa, por isso mesmo, de servir como informação: não pode ser processada (Schäfer, 2005).

A solução dos problemas sociais consiste na geração, a partir do sistema social global, ou sociedade, de novos sistemas sociais, que são subsistemas seus, sem deixar de ser sistemas autênticos e autônomos. Mais precisamente, o fator fundamental na constituição de um (sub) sistema social reside na sua função, e esta não é outra que a de demarcar um âmbito determinado da complexidade operante na sociedade, com vistas a sua redução. Segundo Luhmann (1998b), a demarcação de um sistema ante seu meio significa “que surgem limites, dentro dos quais os processos seletivos transcorrem de modo diverso de como ocorrem no meio do sistema”.

Em suma, os sistemas se compõem de comunicações; todavia se delimita o pertencimento destas aos sistemas mediante o sentido. As relações entre os elementos do sistema aparecem estruturadas, e so-mente essa ordem estrutural interna permitirá a subsistência do sistema. A estrutura não é o fator originário do sistema, senão a consequência necessária do caráter limitado de seus elementos e dos enlaces possíveis entre eles.

É condição de sua operabilidade, não origem de sua constituição. As estruturas de cada sistema, portanto, têm a ver com o modelo de tornar possível que uma comunicação se siga de outras com respeito a uma certa ordem ou a um esquema simples. Sua função estabilizadora implica que as expectativas estruturadas dos sistemas sociais não possam ser de caráter meramente pontual ou individual (Arnaud; Lopes Jr, 2004).

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187Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Podemos sintetizar assim as ideias de Luhmann sobre o Direito e a autopoiese:

1 – O Direito é um sistema (ou subsistema) que se auto-organiza, se autoproduz e que tem sua autorreferência. Embora saibamos de sua existência material, é impossível conhecê-lo em seus limites, uma vez que se trata de um contexto, um ambiente amplo e impossível de ser compreendido objetiva e totalmente.

2 – Por outro lado, somente poderemos conhecer uma coisa quando pu-dermos diferenciá-la de outra. Se um sistema é autopoiético, precisa ter fronteiras e, se tem fronteiras, é fechado e não aberto. É impossível, no entanto, um sistema ser totalmente fechado e, ao mesmo tempo, é impossível que seja aberto se lhe é impossível ser fechado: “ser aberto fundamenta-se em ser fechado” (Luhmann, 1998a, p. 63).

3 – O Direito seria um subsistema que se movimenta constantemente para existir em um ambiente muito diverso e, para existir, como tal, precisa fechar-se (“fechamento operacional”) e se diferencia de outras instâncias sociais. Ao mesmo tempo, para existir, o Direito necessita do ambiente e busca, nele, elementos necessários à existência (aco-plamento estrutural).

4 – As instituições jurídicas, que se acham guardadoras do Direito, produ-zem-se e se reproduzem pela rede de operações que existe em si (e por elas criadas) e não operando no ambiente (setores sociais), assim como não é o ambiente que reproduz o sistema. Quando o Direto não sabe seus limites, corre o risco de operar fora de si, contra si.

5 – Não é porque a sociedade vai se tornando mais complexa que o Di-reito deve subsumir-se nela. Ele precisa resistir e necessariamente evoluir junto com o sistema social. Nesse sentido, há, entre o sistema e seu entorno, uma dependência e uma independência à medida que existe, sempre, uma provocação do entorno que faz o sistema responder e, por outro lado, não são todas as perturbações que devem ser respondidas.

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6 – Da mesma forma, não podemos definir o Direito pelos atores parti-culares que nele atuam diretamente, pois é impossível teorizar sobre a subjetividade como conteúdo do social. Cada sujeito é, em si, con-tingente, como condição de possibilidade entre outras possibilidades do mundo real. Suas ações são artifícios atributivos produzidos pela sociedade. Não podemos, portanto, entender o Direito somente pelo discurso que seus atores fazem dele. A variedade dos discursos expressa a estrutura do sistema a que estão submetidos e cumprindo suas funções. Visualizar os mecanismos estruturados pode nos dar um melhor entendimento do sistema.

7 – O Direito instituído, ao mesmo tempo em que não pode responder a todas as demandas (porque seria sua morte como sistema, fim de sua identidade), também não deve isolar-se delas (o que também levaria à exaustão e morte do sistema). Para evitar esta crise, o Direito deveria criar muitas formas de se comunicar com o mundo que o alimenta, mas estas comunicações só poderiam ser consideradas dentro da dinâ-mica operativa do Direito enquanto tal, ou seja, só pode determinar o que é comunicação o próprio Direito e não as irritações que vêm do meio ambiente e que atingem alguns indivíduos internos.

8 – O Direito, estando alerta e presente no entremeio das operações constantes do entorno que o provoca, instiga e estimula, conseguirá perceber que essas “irritações” não são obstáculos, mas próprio da sua natureza que obriga o sistema a responder, só o fazendo quando sua tolerância esgota-se. Isso pode se tornar uma efetiva ameaça quando a resposta provocar uma mudança sistêmica, determinada pela própria estrutura do sistema, como um autocontato operativo e cognitivo.

9 – Esta relação entre Direito e ambiente é feita pela comunicação, a qual é um fato emergente que se realiza pela seleção de informações, expressão e compreensão (ou incompreensão). A comunicação está no entorno do sistema que o obriga a dar resposta e não é apenas um municiador, “mas também contém” a importante capacidade de

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189Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

definir os limites do próprio sistema. A razão sistêmica não é hege-

mônica e sim defensiva. Acolhe e neutraliza as ameaças que provêm

do meio, mas nunca o domina. Por isso, o sistema é contingente e

opera como rede pluridimensional.

Campilongo (2000) tenta aplicar a teoria sistêmica para interpretar

o Brasil recente. Ele faz uma análise do período pós-Constituição de 1988,

para mostrar que tanto a promulgação quanto a regulamentação do texto

constitucional foram marcadas por dificuldades de ordem social, política,

cultural, institucional e representacional resultantes de uma trajetória

histórica sem democracia efetiva. As constantes mostras de falta de

representatividade do sistema político se refletem na incapacidade dos

partidos de agregar interesses e galvanizar os anseios da população numa

sociedade complexa e heterogênea. De outra parte, comprometendo se-

riamente o equilíbrio político, encontramos a distorcida proporcionalida-

de no Parlamento, no qual há super-representação de Estados-membros

com menor desenvolvimento econômico e de menor população.

No sistema econômico, a crise envolve problemas de eficiência,

dada a incapacidade do setor público de instituir políticas públicas que

efetivamente atinjam a maioria da população, combinada com as dificul-

dades advindas de fatores como dívida externa, desemprego e estagnação

que inibe a produção e o consumo.

Paralelamente, o sistema social enfrenta um processo de desinte-

gração acentuado, com visível crise de identidade das populações que

migraram do campo para a cidade. A industrialização, abarcando as popu-

lações rurais, provoca o rompimento de vínculos culturais e enfraquece

os mecanismos informais de controle social. Somemos a isto o crescente

empobrecimento da sociedade, a proletarização da classe média e os

alarmantes indicadores da criminalidade e da violência.

Chega-se, pois, a uma inequívoca crise de hegemonia, que se carac-

teriza pela ausência de projetos capazes de gerar o mínimo de consenso

e suporte, seja entre as elites, seja entre a população. Tudo isto leva

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ao rompimento da noção de sociedade unificada e do próprio Estado

unificado, com a existência de governos que não encontram suporte na

sociedade.

Embora a história brasileira esteja sempre marcada por crises

diversas, o que parece caracterizar o momento atual é que as crises ocor-

rem de modo concomitante. Se em outros tempos a crise de um sistema

era calibrada pela energia e vitalidade de outros, hoje o que se verifica

é uma grande e disseminada crise da matriz jurídico-organizacional do

Estado.

Diante desse quadro, podemos delinear um problema político-

constitucional, isto é, um conjunto de instituições sem capacidade de

regulação nem de repressão. E a ordem jurídica encontra-se num impasse,

situação que Campilongo denomina de “xadrez empatado”. O “xadrez

empatado” é uma expressão utilizada para definir o impasse institucional

da sociedade e da política brasileiras. Assim, deparamo-nos com bloqueios

decisórios constantes na esfera política, que emperram a concretização

de projetos sociais mais amplos.

A Constituição tem eficácia6 contida, visto que parcialmente

regulamentada; os direitos sociais são suspensos por falta de recursos

para sua efetivação, e o próprio Estado não respeita a legalidade por ele

instituída.

A ordem constitucional, igualitária em termos formais, não conse-

gue reverter a iniquidade social e não cria condições para a inclusão de

amplos setores populacionais. Os quadros da cidadania regulada são insig-

nificantes se considerado o conjunto da população brasileira. A existência

6 A não regulamentação constitucional é outro aspecto importante. A Constituição de 1988 já completa 12 anos, e muitos de seus dispositivos ainda não foram regulamentados, além de o texto constitucional sofrer constantes emendas e revisões. O texto foi escrito no primeiro triênio da década de 90, quando esta realidade era bem visível. Campilongo, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.

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191Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

deste grande apartheid social gera enormes dificuldades para o processo democrático, pois não se consegue compatibilizar as estruturas políticas existentes com a concreta instituição das decisões econômicas.

A “democracia delegativa” define a ideia de que a democracia representativa brasileira está deformada em suas bases jurídicas. O quadro político brasileiro denota uma mudança da democracia represen-tativa – com indivíduos iguais, independentes e capazes de se fazerem representar – para a democracia delegativa – constituída por indivíduos desiguais, dependentes e incapazes de se fazerem representar. No caso, o comportamento da população é que se caracteriza por ser delegativo, ou seja, quem vence a eleição governa como quiser. O eleitor dá um “cheque em branco” ao governante e ao legislador. Temos, pois, uma “cidadania de baixa intensidade”, em que, embora exista relativo respei-to aos direitos políticos, não há respeito aos direitos da maioria. Nossas instituições representativas atuais se caracterizam pela irresponsabilidade política, pois fogem de todas as formas de controle e prestação de contas, criando um abismo entre elas e a população. Sustentam a troca de favo-res, corrompendo a relação entre os poderes. O sistema político é capaz de produzir uma legalidade abrangente, normatizada, porém é incapaz de fazer o Estado presente na sua instituição, e tampouco a sociedade desorganizada consegue exigir a submissão do governo à legalidade. A “democracia delegativa”, que surge como perversa versão da democracia representativa, tem efeitos positivos e negativos na vida institucional do país, que podem ser assim sintetizados:

a) Rompimento do monismo jurídico e esvaziamento do monopólio estatal do Direito. Pluralismo jurídico (convivência de vários ordenamentos no mesmo espaço geopolítico, articulados e interpenetrados). Há quem veja como resistência, mas há quem veja o perigo de direitos extraestatais no crime organizado, máfias, etc. A “democracia delega-tiva”, que surge como perversa versão da democracia representativa, tem efeitos positivos e negativos na vida institucional do país, que podem ser assim sintetizados:

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b) Deslegalização e desregulamentação. Menos lei e mais mercado, alerta o pensamento neoliberal. Há quem entenda seja uma transferência à sociedade do poder de regular. A crítica, porém, é de que subtrai a dimensão de igualdade perante a lei.

c) Delegação do Estado para a sociedade civil da capacidade decisória. A democracia delegativa concede um “cheque em branco” para o chefe do Executivo ou para o legislador. Também, no entanto, dada sua incapacidade, transfere a responsabilidade da decisão aos grupos envolvidos (convenções coletivas, conselhos municipais, assembleias entre pais e donos de escolas, etc.). O Estado abre mão da lei geral, abstrata e aplicável a todos os casos.

d) Estado paralelo. Envolve a prática social de ações e omissões do Estado no cotidiano da regulação social. Exemplos: não aplicação da lei, sua aplicação seletiva, etc. O Estado paralelo se desenvolve na esfera extralegal ou de legalidade atenuada.

e) Desterritorialização das práticas jurídicas. O Direito estatal é Direito territorial, no entanto a globalização (economia, meio ambiente, saú-de, questão nuclear, etc.) exige uma desterritorialização das práticas jurídicas e modificação das competências judiciais.

f) Reconhecimento de novas arenas jurídicas e de novos sujeitos de direito. A “legalidade truncada” diz respeito à inaplicação, pelo Judiciário, dos direitos liberais em sua plenitude. Surgem então as formas alternativas (barganha e arbitramento).

g) Nova concepção de cidadania. Superando a dicotomia entre cidadania individualista/liberal e a cidadania classista/social, busca-se novas formas de emancipação (em vez da regulação). Surgem debates sobre as novas formas de exclusão social, a postulação de direitos universais (Campilongo, 2000).

Campilongo chama de judicialização da política o processo de interferência do Judiciário nas questões da política. A democracia li-beral sempre acreditou que o sistema político representativo é o foro

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193Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

da deliberação do futuro. Basicamente, o sistema político fomenta a economia, o Direito, a educação, a saúde, etc., traçando os destinos das populações. A crença é na previsibilidade e racionalidade das decisões (planificação). Hoje, no entanto, boa parte disso fracassou. Não é mais possível estabelecer relações de causalidade. A decisão “A” nem sempre terá a consequência “B” desejada e prevista. Esta ambição deságua em frustrações públicas e propiciam o surgimento de explicações fáceis para o fracasso (políticos corruptos, eleitores ignorantes, etc.). Além disso, surge também a falácia contemporânea mais difundida: sai a política e a economia assume o posto. Os sistemas sociais particulares são funcional-mente isolados e autoestimulados. Quando há sobreposição de funções, o poder passa a ter donos e falsifica a democracia.

Figurativamente, citado por Campolongo, Luhmann exemplifi-cou: os sistemas jurídicos e político são duas bolas de bilhar, que não se confundem, mas o jogo só tem sentido quando as duas bolas se tocam. A constituição e as instituições representativas operam exatamente neste ponto de contato. Existe a separação funcional dos sistemas e, também, um conjunto de prestações recíprocas entre a política e o Direito.

A função típica do sistema político são as tomadas de decisão que vinculam a coletividade. Seu código expressa-se pelas relações dialéticas poder/não-poder, inferior/superior, etc. Fornece ao sistema jurídico as premissas decisórias (leis) e o reforço da eficácia das decisões jurídicas (polícia, prisões, etc). Já o sistema jurídico tem como função precípua garantir as expectativas normativas. Expressa-se pelos códigos legal/ilegal, lícito/ilícito, direito/não direito, etc. Fornece ao sistema político a legitimação das decisões políticas (aplicação das leis) e premissas para o uso da violência (regulação do monopólio estatal da força). Neste quadro, o Judiciário está cada vez mais assumindo papel de revalidador, legiti-mador e instância recursal de decisões políticas. Pergunta-se: O sistema jurídico está apto para substituir funcionalmente o sistema político? E os julgamentos quase folclóricos (simplistas) do período ditatorial? O processo de ampliação dos poderes do juiz e a instituição de súmulas

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194E n i o W a l d i r d a S i l v a

vinculantes transferem para o sistema jurídico critérios operativos da

política, reforçam impedimentos recíprocos aos dois sistemas, ferem o

caráter autopoiético dos dois sistemas, provocam interpenetração incom-

patível com a democracia e a complexidade.

Direitos Culturais

Alain Touraine é um sociólogo francês que propõe um tempo

pós-social para interpretar o que ele chama de novas ações coletivas e

de relações sociais, relações de classe, conflitos e situações vivenciais do

indivíduo no contexto das complexidades culturais.

Touraine,7 discorre sobre a identidade conflitante do sujeito con-

temporâneo. Para compor seu argumento ele faz uma análise de várias

manifestações ligadas ao indivíduo, desde a desagregação das ideologias,

passando pela falta de referências familiares até chegar às armadilhas

da sociedade de consumo. O sujeito estaria tão ameaçado hoje – pela

sociedade de consumo ou pela busca incessante de prazer, outra forma

de prisão –, quanto no passado foi prisioneiro de sua submissão “à lei de

Deus ou da sociedade” (p. 70).

O sujeito, segundo Touraine, viveria constantemente acossado,

de um lado, pela sedução que a identidade “tribal” (étnica, ligada a seu

grupo de origem) exerce sobre ele; de outro, pela sedução que a sociedade

de massas (impessoal, voltada ao consumo) exerce sobre a totalidade dos

povos na configuração atual do capitalismo globalizado.

Touraine cita diversos exemplos para compor esse quadro de con-

flito de identidade e também para construir sua proposta de superação

desse conflito. Podemos registrar, a título ilustrativo, a polêmica em torno

do uso do véu nas escolas da rede pública da França, país do autor.

7 Touraine, Alain. O sujeito. In: Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1998a. p. 69-111.

Page 195: Sociologia Jurídica

195Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Uma lei recente proibiu o uso do véu pelas estudantes de origem

muçulmana nas escolas francesas. O episódio gerou uma série de debates

sobre a legitimidade dos espaços públicos para as manifestações reli-

giosas. Um debate que representa bem o cerne da discussão levantada

pelo autor em seu texto, na medida em que nele vemos parte desse

conflito abordado pelo autor: A identidade de um grupo – no caso, das

estudantes que gostariam de expressar sua crença mediante o uso do

véu muçulmano – pode conviver com a identidade de outro grupo mais

amplo num espaço comum? Qual a medida para alcançar a harmonia entre

identidade étnica e pluralidade democrática? Questões complicadíssimas,

que ainda estão longe de ser resolvidas e que são a riqueza e a miséria

da sociedade contemporânea.

No exemplo em questão, a medida adotada pelo governo francês

foi a proibição de qualquer manifestação religiosa no espaço laico (não

religioso) da escola – incluindo aí o solidéu (espécie de pequeno chapéu)

dos estudantes judeus. Medida antipática para muitos observadores ex-

ternos, mas justificada recentemente pelo próprio ministro da Educação

à época em entrevista à Revista Veja (22/10/2008, páginas amarelas), Luc

Ferry: “O mínimo que poderíamos fazer era deixar nossas crianças fora

desse clima de guerra. Não foi uma medida anti-religiosa, muito menos

racista, mas de promoção da paz”. O ex-ministro ressalta nesse trecho o

clima de tensão permanente entre a comunidade judaica e a muçulmana,

clima esse que não poderia ser estimulado pela guerra surda de símbolos

religiosos nas escolas francesas.

Ao discorrer sobre esse e outros conflitos o autor busca construir

uma proposta alternativa para o sujeito estar no mundo. Uma proposta

que supere, de um lado, o mercado e, de outro, a comunidade, pois em

seu entender ambos são armadilhas para a plena realização do sujeito.

No caso do véu das estudantes, diga-se de passagem, várias das que o

utilizavam reivindicavam o direito de viver plenamente sua cultura de

origem, mas a maior parte delas estava sujeita à influência das comuni-

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196E n i o W a l d i r d a S i l v a

dades de imigrantes mais pobres – mais apegados portanto aos valores

da comunidade, que tendem a se chocar com os valores mais amplos das

sociedades multiculturais.

A Sociologia de Touraine pretende escapar dos determinismos

econômicos e dos funcionalismos e mostrar o fim ou a crise dos elementos

que asseguravam metas sociais ou de enigmas que eram compreendidos

como donos do poder de coesão e das mudanças sociais, como Deus,

Providência, Ordem Social, Família... Vive-se em bases de um Eu

fragmentado, perdido nas relações consumistas e cheio de intenções de

felicidade, mas orientado por culturas e relações sociais pragmáticas e

instrumentais.8

As concepções religiosas, filosóficas e políticas, por muito tempo,

ligaram a ideia de sujeito a um princípio superior de inteligibilidade e

de ordem. Muitos pensadores, reportando-se a essas concepções, pro-

clamaram a morte do sujeito. Com o desaparecimento das filosofias do

sujeito, surge a ideia do sujeito pessoal, que só se tornou possível com o

desmoronamento das concepções de uma ordem do mundo.

A ruína dos sistemas de ordenamento permite ao sujeito encontrar

dentro de si mesmo a sua legitimidade, o que o impede de se colocar

a serviço de uma lei, quer divina, de natureza ou política que estaria

acima dele.

O sujeito deve afirmar a sua liberdade e reconhecer que ele não é

um princípio de ordem religiosa, política ou social, mas apenas afirmação

de sua própria liberdade contra as ameaças das ordens sociais, que se

tornaram sempre mais manipuladoras e repressivas.

8 Silva, Enio Waldir da. Teoria Sociológica III, Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009b. p. 69-80.

Page 197: Sociologia Jurídica

197Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

A historicidade estaria marcada por organizações sociais, sistemas

políticos e institucionais que enfrentam o ambiente social e organizam

instrumentos de coerção e legitimação, ao mesmo tempo em que contam

ações históricas de modelos culturais novos (pós-industriais), mobili-

zações (organizações do trabalho), hierarquias (dinheiro concentrado

nas trocas comerciais) e necessidades de consumo (desejo amplo das

massas).

Para Touraine (2006), o modelo de modernização ocidental con-

sistiu em polarizar a sociedade, acumulando recursos de toda ordem

nas mãos de uma elite e definindo negativamente as categorias opostas,

representadas como inferiores. A eficácia deste modelo foi tão grande

que conquistou grande parte do mundo. Por natureza, porém, esteve

constantemente carregado de tensões e de conflitos que opunham os

dois polos.

A pergunta central que aparece em meio a estas constatações de

Touraine é: Como as pessoas que possuem interesses comuns, como os

consumidores, operários, as mulheres, poderão se tornar um grupo or-

ganizado com mecanismos de decisões coletivas que defendam e façam

prevalecer seus interesses? Ou seja, como as pessoas podem passar de

uma situação de indivíduos com desejos a se sentir sujeitos a ponto de

reconhecer o outro como sujeito, se sujeitar a um diálogo de integração

dos interesses e com esses interesses ir à luta nos movimentos sociais e,

assim, tornar-se ator social?

Sem o reconhecimento do outro, a passagem do sujeito ao ator

social seria impossível. Essa compreensão do outro instaura uma relação

que não é da mesma ordem das relações profissionais ou econômicas,

e nem de pertença a uma comunidade cultural. Isso prescinde de um

sujeito forte que está submetido a esta sociedade atomizada, com seus

vínculos sociais dissolvidos, vítimas de urbanizações desenfreadas, in-

dustrializações monopolizadas e Estados totalitários e autoritários.

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©Anthropos Consulting 14

EU E OS OUTROS

• INDIVIDUAÇÃO:MEDOS

ESPERANÇAS

• SUBJETIVAÇÃO:MINHA IMAGEM

MINHA AÇÃO

EU

OU

TROS

OUTROS

EU

Segundo Touraine, vivemos um tempo de desconfiança. A mo-

dernidade ruiu e nada se formou em seu lugar. O social se fragmentou.

Não há mais unidade. O que assegura nossa individualidade, nossa

personalidade se não a sociedade organizada, a educação, o Estado, a

família, a razão e a religião? O mercado e a razão consumista os substi-

tuiu? O sujeito não se forma a não ser quando rejeita ao mesmo tempo a

instrumentalidade e a identidade, pois a identidade não é mais do que

uma deformação, dobrada sobre si mesma, de uma experiência vivida

que se decompõe.

O sujeito pessoal não pode formar-se a não ser afastando-se das

comunidades demasiadamente concretas e fechadas que impõem uma

identidade formada em deveres mais do que em direitos, insistindo

mais na inserção do que na liberdade. A dificuldade principal reside

na definição das forças que impelem a reconstrução e que se opõem à

coexistência do puro consumismo e do espírito comunitário... (Touraine,

1998a, p. 68-80).

O sujeito não é uma “alma” presente no corpo ou no espírito dos

indivíduos. Ele é a procura, ele mesmo, por ele mesmo, das condições

que lhe permitam ser o ator de sua própria história. E o que motiva

essa procura é o sofrimento da divisão e da perda de identidade e de

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199Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

individuação. Não se trata, para o indivíduo, de se engajar no serviço de

grandes causas, mas antes de tudo reivindicar o seu direito à existência

individual. É a partir do sofrimento do indivíduo, que se acha dividido,

que o desejo de ser sujeito pode transformar-se em capacidade de ser

ator social.

Não é o indivíduo que recostura e une novamente as duas meta-

des separadas da sua experiência, mas é no indivíduo, a partir dele, que

se manifesta o sujeito que não pode mais, como no passado, iluminar a

partir do alto, com alguma luz sobrenatural, o campo social.

Há também, entretanto, grupos que procuram combinar a defesa

de sua identidade cultural com a participação no sistema econômico e

político, tornando-se capazes de uma ação coletiva e até de um movimen-

to social. Essa postura supõe a abertura da comunidade e a reconstrução,

além do mercado, de um sistema alternativo de produção e comercia-

lização. Somente por meio de ações coletivas é possível a reconstrução

do sujeito. Aqui reside o ponto central da reflexão: a ideia de sujeito se

une à de movimento social...

Duas afirmações decorrem desta ideia: uma, que o sujeito é von-

tade, resistência e luta, e não experiência imediata de si mesmo; outra,

que não há movimento social possível fora da vontade de libertação do

sujeito.

O sujeito não é uma reflexão do indivíduo sobre si mesmo, a

imagem ideal de si mesmo que ele esboça na intimidade. O sujeito está

presente onde se manifesta uma ação coletiva de construção de um

espaço, que é, ao mesmo tempo, um espaço social, político e moral, de

produção da experiência individual e coletiva. O sujeito, assim entendido,

é ator, capaz de modificar o seu meio. O ator social é portador do sujeito

tanto nas suas relações interpessoais, nas relações sociais, nas instituições

políticas e nas formas de ação coletiva. O ator social deve ser descoberto

a partir da experiência e das vivências do sujeito. A identidade do sujeito

só pode ser construída por três forças que se complementam:

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200E n i o W a l d i r d a S i l v a

– o desejo pessoal de salvaguardar a unidade da personalidade dividida

entre o mundo instrumentalizado e o mundo comunitário.

– a luta coletiva e pessoal contra os poderes que transformam a cultura

em comunidade e o trabalho em mercadoria.

– o reconhecimento interpessoal e também institucional do outro como

sujeito (Touraine, 1998a).

Na sociedade de consumo há uma armadilha que reduz o outro

a puro objeto de prazer e não há mecanismos que impeçam o forte de

impor a sua vantagem ao mais fraco, o homem à mulher, o europeu ao

colonizado. O consumidor mais rico monopoliza o sentido que impõe

sobre as relações sociais.

Há uma grande tentação de deixar que se elimine o sujeito e o

seu apelo ao universalismo, deixar campo livre às diferenças culturais e

à impessoalidade dos desejos e da violência, enquanto vemos as redes

financeiras e cibernéticas afastarem-se da experiência humana.

A democracia ainda é, atualmente, a forma normal de organização

política que possibilita o movimento de atores. A ação democrática cujo

objetivo principal é libertar os indivíduos e grupos das imposições que

pesam sobre eles, situa-se entre a democracia procedural que carece de

paixão e a democracia participativa que carece de cultura democrática.

A democracia só é rigorosa na medida em que é alimentada por

um desejo de libertação que, de forma permanente, apresenta novas

fronteiras, ao mesmo tempo longínquas e próximas, porque se volta

contra as formas de autoridade e repressão que atingem a experiência

mais pessoal. Assim definindo, o espírito democrático pode responder a

duas exigências que, a primeira vista, parecia ser contraditória: limitar o

poder e responder às demandas da maioria (Touraine, 1998a, p. 23).

Page 201: Sociologia Jurídica

201Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Inúmeros sinais, porém, levam-nos a pensar que os regimes cha-

mados democráticos enfraquecem, assim como os regimes autoritários,

que estão submetidos às exigências do mercado mundial protegido e

regulado pela potência dos EUA e por acordos entre os três principais

centros do poder econômico.

A democracia, assim enfraquecida, pode ser destruída a partir de cima – por um poder autoritário – ou a partir de baixo – pelo caos, violência e guerra civil – ou a partir de si mesma – pelo controle exercido sobre o poder pelas oligarquias ou partidos que acumulam recursos econômicos ou políticos para impor suas escolhas a cidadãos reduzidos ao papel de eleitores (p. 8).

Quando os atores políticos não estão submetidos às demandas dos

atores sociais, estes perdem sua representatividade, gerando assim um

outro sentido que não é o da democracia e sim da partitocrazia: A parti-

tocrazia, porém, destrói a democracia ao retirar-lhe sua representatividade e

conduz ao caos ou à dominação de fato de grupos econômicos dirigentes, enquanto

espera a intervenção de um ditador (Touraine, 1994, p. 83).

O autor compreende que não é mais o partido político que faz

agregação da vida organizada e defende o movimento social como lugar do

ator social. Quando se fala em movimento social não se pode dissociá-lo

da democracia, pois um movimento social deve ter um programa político

porque faz apelo a princípios gerais ao mesmo tempo em que há interesses

particulares. Só existe movimento social se a ação coletiva tem objetivos

sociais, isto é, reconhece valores ou interesses gerais da sociedade, e, por

conseguinte, não reduz a vida política ao confronto de campos ou classes,

ao mesmo tempo em que organiza e desenvolve conflitos.

É somente nas sociedades democráticas que se formam movi-

mentos sociais porque a livre-escolha política obriga cada ator social a

procurar o bem comum ao mesmo tempo em que há defesa de interesses

particulares. A ideia de movimento social se concretiza quando anuncia

uma razão universalista, de liberdade, de igualdade, direito do homem,

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202E n i o W a l d i r d a S i l v a

justiça e solidariedade, pois a democracia se apoia exatamente nestes

princípios. As ações coletivas de diferentes naturezas cujas demandas não

encontram resposta no sistema político e que se manifestam de forma ra-

dical ou revolucionária, tendem a desembocar numa situação de violência

e arbitrariedade, contrariando assim os princípios da democracia.

Movimento social é uma combinação de um princípio de identidade,

de um princípio de oposição e de um princípio de totalidade. Não será

necessário, para travar um combate, saber em nome de quem, contra

quem e em que terreno se vai combater? [...] o que caracteriza um

movimento social é, antes de mais nada, que o desafio aqui é a histo-

ricidade e não a decisão institucional ou a norma organizacional. Os

atores são, portanto, classes únicas. Atores definidos por suas relações

conflituosas com a historicidade [...] (Touraine, 1984, p. 108).

No decorrer dos dois últimos séculos as categorias inferiorizadas,

particularmente os trabalhadores, depois os colonizados e quase ao

mesmo tempo as mulheres, formaram movimentos sociais para se liber-

tar. Conseguiram-no em grande parte, o que teve como primeiro efeito

atenuar as tensões inerentes ao modelo ocidental, mas também seu

dinamismo. Um grande perigo ameaça esta parte do mundo: o de não

estar mais em condições de conceber objetivos e de não ser mais capaz

de enfrentar conflitos novos (Touraine, 2006).

Um novo dinamismo só poderá surgir a partir de uma ação que

consiga recompor o que o modelo ocidental separou, superando todas as

polarizações. Esta ação já é evidente, por exemplo, nos movimentos eco-

lógicos e nos que lutam contra a globalização, mas as mulheres é que são

e serão as atrizes principais desta ação, uma vez que foram constituídas

como categoria inferior pela dominação masculina em desenvolvimento,

para além de sua própria libertação, uma ação mais geral de recomposição

de todas as experiências individuais e coletivas.

Page 203: Sociologia Jurídica

203Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Nos últimos livros, especialmente em Um Novo Paradigma – Para

Compreender o Mundo de Hoje, o autor foca sua análise na contextualização

da globalização, na emergência dos direitos culturais e no que chamou

de sociedade das mulheres.

Partindo da globalização, ele define “não apenas como uma mun-

dialização da produção e dos intercâmbios, mas, sobretudo, como uma

forma extrema de capitalismo, como separação completa entre a econo-

mia e as outras instituições, particularmente sociais e políticas, que não

podem mais controlá-la”.

Esta dissolução das fronteiras de todos os tipos acarreta a fragmen-

tação daquilo que se chamava sociedade.

A consecutiva derrocada das categorias sociais da análise e de ação não é um acontecimento sem precedentes. Nos inícios de nossa modernização pensamos os fatos sociais em termos políticos – ordem, desordem, sabedoria, autoridade, nação, revolução – e somente após a revolução industrial substituímos as categorias políticas por catego-rias econômicas e sociais (classes, lucro, concorrência, investimento, negociações coletivas). As mudanças atuais são tão profundas que nos levam a afirmar que um novo paradigma está substituindo o paradigma social, assim como este tomará o lugar do paradigma político.

O individualismo que triunfa sobre as ruínas da representação social de nossa existência revela a fragilidade de um eu constantemente modificado pelos estímulos que o atingem e o influenciam. Uma interpretação mais elaborada desta realidade insiste no papel dos meios de comunicação na formação deste eu individual cuja unida-de e independência parecem então ameaçadas (Touraine, 2006, p. 219-220).

Neste início de século o individualismo tem características parti-

culares tendo em vista que não é só da técnica de produção que depende

nossa existência singular, individual, um ser de direitos: precisamos da

técnica de consumo e de comunicação. Na modernidade, quando se

lutava pelos direitos sociais, o reconhecimento passava por alguns in-

Page 204: Sociologia Jurídica

204E n i o W a l d i r d a S i l v a

termediários: Deus, a nação, o progresso, a sociedade sem classes. Hoje,

sem estes discursos intermediários, damos uma importância central à

procura de nós mesmos.

Esta vontade do indivíduo de ser o ator de sua própria existência é

o que o autor chamou de sujeito, imerso em um paradigma cultural que

põe em primeiro plano a reivindicação de direitos culturais. Esses direitos

se exprimem sempre por intermédio da defesa de atributos particulares,

mas conferem a esta defesa um sentido universal.

Sobre as ruínas da sociedade abalada e destruída pela globalização

surge um conflito central entre, por um lado, forças não sociais reforça-

das pela globalização (movimento do mercado, catástrofes possíveis,

guerras) e, por outro, o sujeito, privado do apoio dos valores sociais que

foram destruídos. O sujeito pode até, em caso de necessidade, ser re-

pelido para o inconsciente pela dominação destas forças materiais.

Mas este combate não está perdido de antemão, pois o sujeito se

esforça para criar instituições e regras de direito que sustentarão sua

liberdade e sua criatividade. Nessas batalhas estão em jogo especial-

mente a família e a escola.

Este indivíduo, transformado por ele mesmo em sujeito, não está

porventura condenado ao isolamento, a ficar privado de comunicação

com “os outros”? A resposta a esta pergunta é, antes de mais nada, que

não pode haver comunicação possível sem reconhecer as diferenças

existentes entre os atores reais. Esta complementaridade é a referên-

cia comum de todos os que querem comunicar e comunicar-se, e as

modernizações, que combinam sempre a modernidade com campos

culturais e sociais diferentes uns dos outros. Nenhuma sociedade tem

o direito de identificar sua modernização com a modernidade. Não se

faz algo novo senão com novo e velho ao mesmo tempo.

Particularmente os países ocidentais, que avançam mais rapidamente

que os outros no caminho da modernidade, devem reconhecer ao

mesmo tempo que eles não detêm o monopólio da mesma e que a

modernidade está presente também nas outras formas de moderni-

zação, com exceção das que se opõem totalmente a ela (Touraine,

2006, p. 241).

Page 205: Sociologia Jurídica

205Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

O tempo de hoje está marcado por muitas mensagens de variadas culturas, diferentes religiões, muitas experiências de vidas, velhos e novos projetos de mudança que querem ser reconhecidos nas expressões nor-mativas que deverão ser (re)criados. Cada um desses aspectos articulará sua situação para o desenvolvimento com base em conhecimento e o uso de tecnologias complexas.

Dentro destas estratégias é que é preciso situar a análise das rela-ções de dominação, pois é mais vasto que a leitura da decomposição do modelo europeu clássico de modernização, dos efeitos desta decompo-sição e das possibilidades de reconstruir outras figuras da modernização por meio da passagem à sociedade da informação e, de modo mais geral, àquilo que o autor chama de “sociedade pós-social”.

A comunicação intercultural não é, portanto, apenas um esforço de compreensão mútua: trata-se de um ato de conhecimento que procura situar o outro e a mim mesmo dentro de unidades históricas e dentro da definição dos processos de mudança e de relações com o poder. O que propomos aqui consiste, portanto, em última análise, em definir as reações entre atores pelo lugar proporcional que eles ocupam no com-plexo conjunto de dimensões que resumi aqui mediante a interseção da modernidade e das modernizações. A comunicação intercultural é o diálogo entre indivíduos e coletividades que dispõem, ao mesmo tempo, dos mesmos princípios e de experiências históricas diferentes para se situarem uns em relação aos outros.

A esta análise falta ainda uma dimensão. Nós só podemos conhecer-nos e respeitar-nos se os temas da modernidade e da modernização que nos sobrepujam entrarem em movimento e se transformarem, mas conscientes de uma história que nos é comum. Muitas vezes sentimo-nos dominados por forças obscuras; hoje sabemos melhor que somos nós que ameaçamos nossa própria sobrevivência, a de nossos descendentes, a de muitas espécies vegetais e animais e as condições climáticas que permitem nossa existência. Evidentemente, não se trata de substituir a segurança que nos davam os deuses protetores pela angústia da autodestruição, mas de deduzir da globalização e da crescente interdependência de todos os elementos da vida terrestre e a consciência de nossa responsabilidade. Portanto, é igualmente nossa capacidade de criar, de transformar e de destruir nossa vida e nosso

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206E n i o W a l d i r d a S i l v a

meio ambiente que nos obriga a voltar nosso olhar, fixado por tanto tempo na natureza e nos instrumentos que nos permitiram conquistá-la, para nós mesmos. Esta consciência de nos mesmos só pode ser a consciência de nossa existência comum, de nossa interdependência e, portanto, da necessidade de reconhecer no outro não apenas aquele que está em relação com a mesma modernidade com que eu estou relacionado, mas aquele cuja história não está totalmente separada de minha própria história.

Não somos todos cidadãos do mesmo mundo, pois este não é uma unidade institucional e política que define os direitos e deveres de cada um. Em compensação, todos temos direitos culturais, que pro-vêm fundamentalmente de nossa relação conosco mesmos e com os outros. Vivemos uma situação histórica em que era a sociedade, com suas instituições, suas normas, seus modos de dominação e de vigilân-cia, que produzia os atores – os quais se definiam então como sociais. No decurso das últimas décadas sentimos com intensidade cada vez maior que estamos pendendo para a situação inversa, onde é a criação de nós mesmos que determina nossa capacidade de resistir às forças de morte e de vencê-las, ao passo que o espaço social se reduz a um lugar de encontros, de conflitos ou de tréguas entre forças opostas, mas igualmente estranhas à vida social: de um lado, as que provêm do mercado, da guerra e da destruição de todos os elementos da vida e, do outro, as que apelam não à ordem social ou ao impulso do desejo mas à afirmação de si e de nós como sujeitos de nossa existência e como autores de nossa liberdade (Touraine, 2006).

A proposta de Touraine é de focar a análise nos atores definidos

por suas pertenças sociais, relações sociais e por seus direitos culturais.

Análises da sociedade podem se perder em evasivas, pois detectam uma

decomposição da sociedade, considerada como um organismo no qual

cada elemento cumpre uma função, que elabora suas metas e os meios

necessários para atingi-las, que socializa seus novos membros e pune os

que não respeitam as normas, leva, em nosso tipo de sociedade, a um

individualismo que se opõe à aplicação das regras da vida coletiva e as

substitui pelas leis do mercado, em que se manifestam preferências

múltiplas, inconstantes, mas influenciadas pela publicidade comercial

Page 207: Sociologia Jurídica

207Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

tanto quanto pelas políticas públicas. Há um tipo de mudança que vem

acontecendo na coletividade: as reivindicações dos direitos culturais

(2006, p. 168).

Evoquemos primeiramente o caso dos Estados multinacionais, ou seja, o caso das minorias nacionais que reclamam certos atributos da independência. Os húngaros, em particular, constituem, fora da Hungria, minorias importantes na Eslováquia e na Romênia. Um caso extremo é o dos curdos, presentes em diversos Estados; mas é verdade que nem todas as minorias curdas reivindicam a criação de um grande Curdistão, idéia defendida sobretudo pelos curdos da Turquia, ao passo que os do Iraque chegaram a obter vantagens do governo de Bagdá. Podemos também colocar nesta vasta categoria a Catalunha e Quebec, que são quase-Estados, mas no interior de um Estado que conserva certas prerrogativas – particularmente no plano internacional. Estas minorias defendem sempre seus direitos culturais, particularmente o uso da própria língua, na escola e na via administrativa. Elas identificam-se às vezes com uma confissão religiosa e o chefe da Igreja em questão desempenha então, muitas vezes, um papel político de defesa da comunidade.

São problemas que podem dar origem a crises internacionais e se

tornarem mais sangrentos que em outros tempos. Existem multicultu-

ralismos menos institucionais, na formação ou no desenvolvimento das

“comunidades” ou das minorias formadas em consequência de migra-

ções, expulsões e exílios; grupos definidos em termos de nação, etnia

ou religião, que só tinham existência na esfera privada, adquirem agora

uma existência pública às vezes suficientemente forte para questionar

sua pertença a determinada sociedade nacional. Isto coloca problemas

estruturais, especialmente aqueles que já reconheciam as minorias, que

discursavam em nome de valores universais.

É por esta razão que, para evitar tais mal-entendidos, creio mais

correto falar, a propósito das minorias, de “direitos culturais”, o que obriga

as democracias a refletirem sobre si próprias e a se transformarem para

reconhecer estes direitos, da mesma forma que elas se transformam, não

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208E n i o W a l d i r d a S i l v a

sem grandes conflitos, para reconhecer os direitos sociais de todos os

cidadãos. Os direitos culturais estão, na realidade, positivamente ligados

aos direitos políticos, portanto à cidadania.

Há outros comunitarismos mais fechados, definidos em sentido

estrito pelo poder dos dirigentes da comunidade de impor práticas e

interditos a seus membros, opostos à cidadania, e até com tanta clareza

que, na medida em que a cidadania se define a si própria pelo exercício

de direitos políticos num país democrático, o comunitarismo fere eviden-

temente as liberdades individuais. Sendo assim, deste ponto de vista, os

liberais têm razão de combater sem trégua o comunitarismo. Seria um

erro, entretanto, crer que uma tal defesa da cidadania contra as comuni-

dades soluciona o problema das minorias (Touraine, 1998a, p. 169).

O autor justifica o assunto dos direitos culturais como um grande

tema para a pesquisa sociológica que queira imaginar ações para trans-

formações sociais, porque:

1 – Centra-se sobre o sujeito e sua relação com o sistema. Os direitos

culturais têm mais força de mobilização do que os outros, porque são

mais concretos e dizem respeito sempre a uma população determi-

nada, quase sempre minoritária.

2 – É no campo cultural que se armam os principais conflitos e as rei-

vindicações em que os interesses em jogo são pesados. Depois que

a produção em massa, após o predomínio da fabricação industrial,

penetrou os domínios do consumo e da comunicação, e depois que

as fronteiras e as tradições foram invadidas pela distribuição dos

mesmos bens e serviços no mundo inteiro, grandes parcelas de

nossas condutas, que imaginávamos protegidas por sua inscrição na

esfera privada, encontram-se expostas à cultura de massa e, por isso

mesmo, ameaçadas.

Page 209: Sociologia Jurídica

209Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

3 – A cultura é uma categoria heterogênea: a dependência cultural diz

respeito primeiramente aos países mais dependentes, mas também

às minorias étnicas, religiosas ou sexuais e nas grandes cidades onde

aparecem as ameaças ao meio ambiente.

4 – Uma referêcia que dá maior visibilidade está nas reivindicações

das mulheres, que querem fazer reconhecer sua dupla exigência

de igualdade e de diferença, na medida em que esta exigência é

portadora de uma mudança mais profunda do que aquelas às quais

nos acostumou a sociedade industrial;

5 – Os direitos culturais protegem populações determinadas; já os direitos

políticos devem ser concedidos a todos os cidadãos.

6 – É um direito à diferença (cultural) e à igualdade (econômica). Viver

juntos iguais e diferentes. Trata-se não mais do direito de ser como

os outros, mas de ser outro. Os direitos culturais não visam apenas

à proteção de uma herança ou da diversidade das práticas sociais;

obrigam a reconhecer, contra o universalismo abstrato das luzes e da

democracia política, que cada um, individual ou coletivamente, pode

construir condições de vida e transformar a vida social em virtude

de sua maneira de harmonizar os princípios gerais da modernização

com as “identidades” particulares.

7 – O apelo aos direitos sociais alimentou o corporativismo e a defesa

dos interesses profissionais e organizações de classe, muitas das quais

chegaram a dizer que a democracia mais completa era a ditadura do

proletariado e que os direitos políticos não podiam ser concedidos

senão aos que vivem de seu trabalho e não do capital, ou seja, do

trabalho dos outros. A referência aos direitos culturais, no entanto,

apela para totalidades concretas definidas mais solidamente e mais

profundamente do que a cidadania – ou mesmo do que a pertença a

uma classe. É por isso que nos movimentos femininos encontramos

muito mais do que a reivindicação dos direitos políticos ou mesmo

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210E n i o W a l d i r d a S i l v a

do que a igualdade econômica. Da mesma forma, as populações de

imigrantes não protestam apenas contra a exploração econômica e

contra a arbitrariedade policial.

8 – A passagem dos direitos políticos aos direitos sociais e depois aos

culturais estendeu a reivindicação democrática a todos os aspectos

da vida social e, por conseguinte, ao conjunto da existência e da

consciência individuais. As coações são impostas aos indivíduos em

todos os aspectos da vida tanto mais em nome desta individualidade,

deste direito a ser ele mesmo, a unificação e a individualização da

pessoa, que não apenas resiste às coações externas, mas sobretudo

se substitui a todo princípio transcendente e se afirma como a meta

de sua luta e ao mesmo tempo aquilo que lhe dá força.

9 – Da mesma forma, não se pode falar de dominação capitalista sem

fazer ouvir o movimento operário e não se pode falar de dominação

masculina sem topar com a importância do feminismo: “Aquilo que

cada um de nós exige, e sobretudo os mais dominados e os mais

desprotegidos, é ser respeitado, não ser humilhado e até, exigência

mais ousada, ser escutado – e mesmo ouvido e entendido”.

10 – O direito a uma vida religiosa não é apenas o direito de um grupo

de praticar sua religião; é também, e outro tanto, o direito de cada

indivíduo de mudar de religião – e a exprimir determinada opinião

considerada herética por esta ou aquela Igreja. Sem dúvida, não

poderia haver direitos senão coletivos. E o direito a ser protegido

por uma convenção coletiva em seu emprego ou a fundar um gru-

po de caráter religioso, por exemplo, é evidentemente um direito

coletivo, que se aplica a cada indivíduo que se encontra protegido

diante dos tribunais e diante da opinião quando decide abandonar

um sindicato, uma Igreja ou uma associação. Se faltar este caráter

individual de todo direito, não se poderia transformar a tolerância

para com certos grupos em direitos culturais. Assim, a lei só deve

reconhecer a liberdade de exercício dos cultos se estiver em condição

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211Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

de proteger aquele ou aquela que não queira mais ser um fiel de determinada Igreja, deseje abandoná-la ou eventualmente aderir a uma outra (Touraine, 2006, p. 173).

O autor aprofunda sua análise a partir do papel da mulher nas transformações recentes da sociedade. Descreve as mudanças do mun-do, que permitiriam às mulheres ocupar o centro da cena atual. Aborda desde as diferenças culturais até o papel das lésbicas na cena política estadunidense. Também analisa temas como a pornografia e o papel do homem nessa história. Relaciona o que seria a “natureza” feminina com as situações do mundo atual, buscando demonstrar por que elas estariam em vantagem.

O destaque dado ao feminino na reflexão do autor equivale a um papel diferenciado que as mulheres ocupam em termos políticos, eco-nômicos e culturais. Afinal de contas, sua participação é preponderante na configuração da sociedade. Tome-se como exemplo a entrada da mu-lher no mercado formal de trabalho, seguida pelo movimento feminista, marcos da contemporaneidade.

Diversos fenômenos do mundo atual confirmam as observações do autor sobre as mudanças que têm ocorrido em termos de papel sexual e afetividade.

Em síntese, o mundo se transforma em direção às conquistas do feminino. Resta estudar as mulheres para entender melhor esse novo mundo.

Para aprofundar estes estudos, Touraine publicou um livro em 2007 dedicado especialmente ao mundo das mulheres. Na apresentação do livro o autor escreve:

Muitos filósofos sociais proclamaram que seria necessário suprimir do vocabulário expressões como ator social, movimentos sociais e principal-mente sujeito, visto que elas se referiam a concepções ultrapassadas de consciência e da ação política. Eu contesto esta visão desanimadora e até mesmo autodestrutiva, e, ao contrário, creio que as lutas femi-

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212E n i o W a l d i r d a S i l v a

nistas, como outras, trazem novas aspirações – e principalmente uma nova representação que as mulheres têm delas mesmas e de seu lugar na vida social. Ao “não se pode fazer nada” respondo que é necessário visitar o campo e, sobretudo, ao invés de falar em nome delas, escutá-las, reação evidente para um sociólogo!... para conhecer o pensamento e a experiência vivida pelas mulheres, fui ver in loco, e descobri de passa-gem quão raros eram aqueles e aquelas que assumiam esta elementar postura de observador ou ouvinte. E descobri que o que pensam e fazem as mulheres é diferente, e até mesmo oposto, daquilo que se diz que elas dizem e fazem (Touraine, 2007, p. 9).

O autor mesmo destaca que essas ideias sobre as mulheres9 não chega a ser nova: depois dos excessos do masculino, que teriam acarretado a degradação ecológica do planeta e as guerras, as mulheres herdariam a Terra, para reinventá-la. Isso nos remete à fala da personagem de “Par-que dos dinossauros”, de Spielberg, quando a cientista, interpretada por Laura Dern, arremata a trajetória da raça humana sobre o planeta: “Deus cria o dinossauro. Deus cria o homem. O homem mata Deus. O homem cria a dinossauro”, diz um dos personagens. Ao que ela responde: “A mulher herda a Terra”. Uns verão nisso a busca pelo equilíbrio. Outros, a decadência do Ocidente.

Touraine não chega a mencionar a Biologia e a Genética em sua abordagem. Seu enfoque é a cultura. E a discussão, como se vê, tem muito a contribuir para o entendimento da sociedade contemporânea.

Para concluir, vamos deixar ao leitor as reflexões possíveis elabo-radas pelo autor.

Uma Sociedade de Mulheres

A sociedade moderna, no ocidente, foi criada por um sujeito que já entrou em cada indivíduo e que, portanto, já deixou o mundo divino. Mas o sujeito, como todos os grandes recursos neste tipo de sociedade, está concentrado na elite dirigente e encarnado sobretudo

9 Leitura obrigatória pela polêmica das teses é Touraine, Alain. O mundo das mulheres. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

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213Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

por homens. A “sociedade dos homens” produziu muita energia e ao mesmo tempo suscitou tensões que atingiram o ponto de ruptura. O pólo dominante foi o da conquista, da produção e da guerra, o dos homens, enquanto o pólo feminino era a figura principal da inferio-ridade e da dependência.

A hipótese geral deste livro é a da passagem de uma sociedade que se percebia e agia em termos socioeconômicos a um tipo societal que chamei de pós-social, porque todas as categorias que se organizam nessa representação e nessa ação já não são propriamente sociais, mas culturais. O motivo disto é que nossa experiência já não é mais transtornada pela sociedade de massa apenas na ordem da produção, mas também na do consumo e da comunicação. Nada em nós escapa ao conjunto das técnicas e dos conhecimentos que foram acumulados, e nós reagimos a eles preocupando-nos com todos os aspectos de nossa vida, a fim de defender nossa unidade singular, corpo e espírito.

Tanto nossas relações com a autoridade como as formas de nossa ima-ginação, tanto nossa experiência sexual como nossos gostos musicais mudam. Ora, a idéia geral da passagem de uma cultura voltada para o exterior a uma outra, voltada para o interior e para a consciência de si mesmo, leva diretamente a idéia de uma cultura definida e vivida mais intensamente pelas mulheres do que pelos homens. Os ritmos e as imposições da vida biológica, e sobretudo a dos órgãos de reprodução, que podem ter sido considerados como obstáculos ao papel das mulheres na vida pública, transformam-se agora em vantagem para elas, primeiro graças às técnicas da Medicina, mas sobretudo porque os laços entre indivíduos aparecem mais fortes na mulher do que no homem, sem que esta diferença autorize a levantar uma barreira intransponível entre os dois sexos. A vida sexual não ocupa um lugar mais importante nas mulheres do que nos homens, mas a preocupação pelos laços entre a sexualidade e personalidade é maior entre as mulheres porque os homens, nascidos no antigo modelo cultural em declínio, permanecem caracterizados mais niti-damente por suas funções públicas e particularmente profissionais. Sobretudo, a relação com os filhos, mesmo nas famílias onde o pai se ocupa ativamente com eles, sempre continua mais intensa para a mulher do que para o homem. Mesmo que certo número de mulhe-res prefiram evitar a gravidez, outras, mais numerosas, consideram inestimável esta experiência única de gestação de um novo ser vivo, que lhes dá também a consciência de seu papel na reprodução da espécie.A relação com o corpo ocupa na sociedade de hoje um lugar tão central como o ocupado pelo trabalho na sociedade industrial ou

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214E n i o W a l d i r d a S i l v a

pelo estatuto político de liberdade ou de escravidão nas sociedades políticas. A sexualidade está presente em todos os aspectos da per-sonalidade e desempenha um papel importante na construção de nós mesmos por nós mesmos. Mas, para compreender o movimento feminista como tal, não é preferível recolocar a ação das mulheres no conjunto mais amplo das lutas pela igualdade, pelo respeito aos direitos políticos e sociais? Muitas mulheres explicam que, se elas lutam, é para que sejam abolidos todos os tipos de discriminação e de injustiça. Elas desejam estabelecer uma completa igualdade entre homens e mulheres, e, portanto, suprimir toda referência ao gênero no campo do emprego e dos salários. Mas outras querem, sobretudo, fazer reconhecer suas diferenças em relação aos homens ao mesmo tempo que sua igualdade com eles.

Aquelas mulheres que insistem sobretudo na igualdade fazem-no porque, afirmam elas, toda referência a uma diferença reintroduz uma desigualdade e, o que é mais grave ainda, acaba por definir a mulher em relação ao homem. Mas esta censura está mal fundamentada, por-que a rejeição de toda diferença de gênero remete não a um modelo masculino, mas a um Homem universal, definido por direitos e não por atributos particulares. Ora, é precisamente esta formulação que desperta a crítica mais radical. Quem é este Homem? O texto de 1789 nos diz que é aquele que goza dos direitos do cidadão, portanto dos direitos políticos; mas no meio século após a redação do texto surgi-ram novas reivindicações fundadas sobre direitos sociais, formulados sobretudo pelos assalariados, a começar pelo direito ao trabalho, que foi o grande objetivo de todos os que apoiavam o movimento operário.Vieram em seguida as lutas pelos direitos culturais, o direito de falar sua própria língua, de participar na defesa de uma memória coletiva. Como não estender estas reivindicações culturais até ao direito de afirmar seu “gênero”, sua identidade sexual? Um homem “sem qualidades”, sem situação social e cultural, é pensado tão longe de toda situação real que a afirmação de seus direitos equivale a uma declaração vazia de sentido e que não pode corresponder a nenhum objetivo preciso.

Mas este argumento, que remete às lutas das mulheres a temas ge-rais, fere tanto o conjunto das mulheres como muitos homens. Assim como, no vasto campo do trabalho e do emprego, a palavra de ordem da igualdade, levada até à eliminação de toda referência ao gênero, tem uma grande força de convicção e contribuiu efetivamente para reduzir o número dos empregos catalogados como masculinos ou fe-mininos, assim também, no domínio da sexualidade e da reprodução,

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215Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

não existem as soluções neutras, pois é precisamente neste campo que estava arraigada a dominação masculina (que pôde ser definida pelo controle da reprodução, sendo a mulher definida sobretudo como reprodutora e, portanto, dominada pelo poder masculino). Daí a reivindicação mais forte do feminismo, a que reivindica para as mulheres o direito de decidir livremente ter ou não ter filhos: “Filho se eu quiser, e quando eu quiser”. É uma fórmula extrema, mas cuja eficácia provém justamente do fato de as mulheres inverterem assim a relação tradicional com o homem, que lhe “fazia” um filho ou qual ela “dava” um filho. Chegamos assim à hipótese que resume esta análise: é na ordem da sexualidade que se colocam a afirmação e a vontade de criação das mulheres. Em outras palavras, é reivindican-do uma sexualidade independente das funções de reprodução e de maternidade que as mulheres se constituem verdadeiramente em movimento social e avançam o mais longe possível – mais longe do que através da luta pela igualdade e contra a discriminação (Touraine, 2006, p. 212-216).

Não se trata, contudo, tampouco de um direito à diferença. A

dominação masculina é atacada ao mesmo tempo pela liberdade de

decidir ter ou não ter filhos e pela reivindicação da sexualidade como

elemento central da construção da personalidade feminina. Esta cons-

trução apoia-se menos sobre a desconfiança em relação aos homens,

tão frequentemente nos Estados Unidos, do que sobre a vontade de se

construir a si mesma.

É impossível contornar aqui o debate sobre a igualdade das mu-

lheres e suas diferenças, lançado pelas feministas, e que se tornou tão

clássico quanto o debate entre liberais e comunitaristas.

Antropólogos como Louis Dumont e Clifford Geertz, eram de

opinião de que a combinação entre a igualdade e a diferença era tão

impossível de resolver quanto a quadratura do círculo. Juízo que pode

parecer sensato, mas que, no entanto, é inaceitável. Objetos diferentes

são facilmente hierarquizados, seja em nome de seu preço ou de sua dura-

bilidade, seja em razão do número dos que compram este ou aquele; mas

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não é a diferença que aqui está em discussão, são atributos econômicos ou psicológicos. É difícil estabelecer uma hierarquia entre o verde e o azul, entre o chá e o café, entre Churchill e Clemenceau.

Inversamente, é lógico procurar por trás de uma diferença sensível, facilmente constatável, não apenas outras diferenças, mas sobretudo configurações diferentes.

Admitiremos sem dificuldade o fato da dominação tradicional dos homens sobre as mulheres. Ora, esta dominação não se explica pelas respectivas características dos homens e das mulheres, mas por um pattern (padrão) cultural que atribui um papel central aos homens conquistadores e aos caçadores. Não é a produção que triunfa sobre a reprodução; não é nem mesmo o controle do intercâmbio das mulheres por parte dos homens. O que está em questão aqui, a meu ver, é uma visão da sociedade dominada, sob formas diversas, por uma elite que é dona dos recursos e está encarregada de transformar essa mesma socie-dade e seu ambiente, elite à qual as outras categorias, como as mulheres, estão subordinadas.

Não se trata, portanto, de se fixar numa diferença que em si mesma é hierarquicamente neutra, mas, ao contrário, de trazer à tona unidades societais e culturais que constroem relações hierarquizadas de desigual-dade. E eu procuro precisamente, nesse capítulo, tornar visível a inversão de modelo cultural que viu as mulheres ascederem ao papel central, o que não significa que as mulheres se tenham tornado profissional ou intelectualmente superiores aos homens, mas que elas ocupam um lugar mais central na nova cultura. Numa palavra, a análise que é preciso fazer aqui não deve ser feita em termos psicológicos.

Direito e movimentos Sociais

Os movimentos sociais se tornaram muito importantes para a sociedade civil e a protegem em seus fundamentos normativos: direitos individuais, culturais, privacidade, associações voluntárias, legalidade

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217Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

formal, pluralidade, publicidade, livre-iniciativa, procedimentos justos para deliberação, sustentabilidade ecológica, política, econômica e social.

O conceito de movimento social possui uma gama enorme de abor-

dagens graças aos elementos que podem caracterizá-los como a formação,

dinâmicas expressivas internas e externas, projetos de sociabilidade,

fundamentação ética, e contra o que está focalizada a base sua da luta.

Geralmente, os movimentos sociais modernos e contemporâneos

tinham um foco direto contra o qual se contrapunham: as exclusões da

sociedade capitalista e, em muitos casos, a própria lógica capitalista, ten-

do, então, um caráter classista. Em geral, no entanto, são ações coletivas

de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a

diferentes classes e camadas sociais. São movimentos sociais caracteriza-

dos como pontuais, surgindo de uma situação de ameaça a um grupo de

indivíduos. Uma vez superada a ameaça, eles desaparecem, tendo, então,

vida curta. Não possuíam pessoas com uma carreira interna, estruturas de

decisão, hierarquias, controle sobre os membros, doutrinações, cartilhas,

órgão financiador específico e nem burocracias.

Os movimentos sociais politizam suas demandas e criam campo

político de força social e suas ações acontecem a partir de discursos criados

sobre situações que podem virar o tema da luta, como conflitos, litígios e

disputas. É o interesse comum que faz com que suas ações desenvolvam

processos sociais, políticos e culturais identificadores do grupo e esta

identidade é compartilhada e solidarizada (Gohn, 1995, p. 44).

Algumas abordagens da teoria social na América Latina recaem

sobre toda a ação coletiva, como se fossem movimentos sociais, pois

se entendia que a definição destes estava na conexão de ação política

coletiva com a dinâmica social e os poderes estatais. Na Sociologia, a

análise dos movimentos sociais teve momentos marcantes com carac-

terísticas diferentes nos períodos de 1950 a 1970, quando o foco da

análise inseria os movimentos sociais na luta de classes expressa nas

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218E n i o W a l d i r d a S i l v a

questões de desenvolvimento e da dependência dos países em relação ao capitalismo global. Prevalecia aqui a abordagem marxista (Castells, Kovarick, Fernando Henrique Cardoso e outros). Na década de 70, as análises eram focadas nas lutas nacionais e populares para integração na organização social, sendo muitas as determinações da emergência dos movimentos sociais, como as reivindicações de bens de consumo cole-tivo e quebra na hegemonia para controle da nação (Touraine, Castells, Laclau, entre outros). Na década de 80, abandona-se as análises mais globais e se enfoca os estudos dos movimentos sociais para os grupos específicos organizados, suas identidades, inovações e modos de fazer política (Osiel, Jacobi, Kowaric, Touraine e o grupo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso). Na década de 90 as análises focavam as redes de movimentos e a organização da sociedade civil com sua expressividade na metropolização, que aumenta a concentração da pobreza, a violência desorganizada e organizada e a anomia defensiva (Scherer-Warren,1993).

Analisava-se que, nesse período, a massa era constituída de agregados inorgânicos de individualidades e manifestações atomizadas (desmovimento). A sociedade civil porém, enfraquece e dá lugar à crise (jovens em bando, delinquentes e grupos de violências organizadas). Além desse enfoque da crise dos movimentos sociais, no entanto, muitos estudos tentam buscar as conexões, a cooperação, as redes, a comuni-cação e as relações sociais como a ação política de afirmação no cenário de democratização, chamados de novos movimentos sociais (Wefford, Sousa, Calderón, Melluci, Archer).

Essas novas abordagens dos “novos movimentos sociais” teriam surgido da extrema insegurança quanto aos desejos de realizar anseios de vida plena de sentido e perceber que, na lógica capitalista, estes jamais vão se realizar de forma coletiva (Antunes, 1997). Assim, são as lutas ecológicas, a feminista, a dos negros, dos homossexuais, dos jovens, da agricultura familiar, dos idosos, dos trabalhadores das reciclagens de lixo, da economia solidária, etc.

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219Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Os novos movimentos sociais de hoje se distanciam mais do caráter

classista e desenvolvem ações particularizadas, com menos identidades

específicas e para além das condições socioeconômicas do contexto, com

poucas referências diretas a outras sociabilidades diferentes da capitalista

ou contra a dominação classista. Os elementos mais expressivos não si-

tuam uma organização coletiva específica de grupos subalternos e, sim,

buscam um equilíbrio entre poderes (forças do Estado, da sociedade

civil, das empresas).

Neste sentido, os movimentos sociais são muito importantes

de serem estudados, porque trazem, como observa Touraine (1999a),

a trama, o coração da sociedade contemporânea, cuja luta é racional,

e são elementos de reposição ou criação da ordem que existia ou não.

Por serem mais livres de doutrinações fechadas, atraem a presença de

muitos indivíduos com o desejo pessoal de salvaguardar a unidade da

personalidade dividida entre o mundo instrumentalizado e o mundo

comunitário, bem como de pessoas que lutam coletiva e pessoalmente

contra os poderes que transformam a cultura em comunidade e o trabalho

em mercadoria e pessoas que procuram o reconhecimento interpessoal

e, também, institucional do outro como sujeito. Os movimentos sociais,

assim, podem se constituir no grande ator social a substituir, inclusive,

os partidos políticos (Touraine, 1999a, p. 103).

É evidente, no entanto, que, se o movimento social vai em dire-

ção de recuperar os elementos lógicos de justiça que pertencem a um

coletivo, ele também se contrapõe à sociedade que essá negando tais

elementos. Neste sentido, o movimento é social e transformativo em

sua natureza. Esse é o caso do movimento ecológico, do movimento

de mulheres, do movimento pela reforma agrária, do movimento pelos

direitos humanos, apenas para citar os movimentos culturais mais amplos

de hoje.

É Alain Touraine quem nos dá a possibilidade desta leitura.

Vejamos:

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A idéia de movimento social busca demonstrar a existência, no interior de cada tipo societal, de um conflito central. Este opunha a nação e o príncipe, depois trabalhadores e os empregadores. Hoje em dia existe tal conflito? ... sim, o cultural é o conflito de hoje, pois leva um sujeito a lutar, de um lado, contra o triunfo do mercado e das técnicas e, de outro, contra os poderes comunitários fechados. Este conflito é tão central hoje como foi o conflito econômico na sociedade industrial... a noção de movimento social só é útil se permitir pôr em evidência a existência dum tipo particular de ação coletiva, aquele tipo pelo qual uma categoria social, sempre particular, questiona uma forma de dominação social... invocando contra elas valores sociais e orien-tações gerais da sociedade, que ela partilha com seu adversário, para privar este de legitimidade... O movimento social é muito mais do que um grupo de interesses ou um instrumento de pressão política. Ele questiona o modo de utilização social de recursos e de modelos culturais (Touraine, 1999a, p. 113).

Neste sentido, não é possível indexar um movimento social como

conservador, ou não transformativo. Hoje esses movimentos carregam

conflitos que opunham vida social e economia, vida privada e comu-

nidade e trazem consigo o apelo para que as relações sociais sejam as

bases da economia e das formas de poder, apelando para a igualdade e

inclusão e para globalização sem exploração. Segundo Touraine (1999a),

a dissociação entre os universos econômicos e o cultural provoca a degra-

dação tanto em um como em outro e ameaça a personalidade individual,

pressionando o indivíduo a se salvaguardar (refugiar-se no Eu individual)

ou reconstruir a sua capacidade de ação, a unidade de sua existência.

Certo, porém, é que um movimento social não está a serviço de

um modelo de sociedade perfeita ou da construção de um partido polí-

tico ou de um poder comunitarista. Por lutarem por direitos do sujeito,

da sua liberdade e da igualdade, tornam-se movimentos ético-morais.

Quando, porém, se submeteram a uma ideologia ou programa, como

nos anos 70, se tornaram frágeis e abafaram suas originalidades na luta

por inovações sociais.

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221Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Longe de ser um personagem profético, um movimento social é um conjunto mutável de debates, de tensões e de divisões internas... Consciência de si, recriação estética, estratégia política e solidariedade de base misturam-se e se combatem em redor do movimento social, sem que uma mensagem doutrinal e política seja formulada por algum de seus componentes (Touraine, 1999a, p. 117-118).

Essa é sua grandeza e sua fragilidade. Grandeza porque é aberto e dialógico; fraqueza, por não conseguir maior autonomia e uma organização mais permanente, capazes de assegurar conquistas numa base territo-rial e ajudar em outros espaços. Os que participam de um determinado movimento social querem pôr fim ao intolerável participando numa ação coletiva, mas mantêm também uma distância nunca abolida entre a convicção e a ação, uma reserva inesgotável de protesto e esperança. A ação de um movimento social é sempre inacabada e vive de diálogo conflitual.

Ademais, os movimentos sociais não são homogêneos, tanto em suas interioridades quanto em suas exterioridades, o que dificulta relações mais aproximadas. No fundo, lutam por uma nova sociabilidade, mas os grupos mais populares têm premências para dirimir as condições de vida e estabelecer direitos mínimos de cidadania, que os faz concentrar esforços mais imediatos. Isso também dificulta a integração com a sociedade civil para que, enquanto movimentos, possam repensar valores mais próprios da autonomia e da emancipação. Conservadora, a sociedade civil e o Estado acabam ficando de lado e distantes das causas mais importantes dos movimentos sociais. Com essas fragilidades não consolidam con-quistas e são tratados como clientes do Estado e considerados de forma carismática, clientelista por algumas organizações da sociedade civil. Os mediadores, como ONGs, partidos, igrejas, universidades, sindicatos, associações e outras instituições, possuem limites em suas ações objetivas, impedindo-os de ações mais próximas dos movimentos sociais. Uma das consequências disso é a subalternização de cidadãos reduzidos à figura de público-alvo ou beneficiário da ajuda e caridade social, quer dizer, a privatização da questão social.

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222E n i o W a l d i r d a S i l v a

No início deste século 21 os movimentos sociais se tornaram formas de ação coletiva com graus de organização e representavam o conflito ou a contradição entre setores da população pela conquista e/ou administração de recursos e bens econômicos, culturais e políticos. Tentavam também promover modificações e transformações das relações instituídas na sociedade, havendo, igualmente, movimentos sociais que almejavam a manutenção das instituições sociais. Afinal, os movimentos sociais emergem das contradições fundamentais da sociedade e/ou de demandas conjunturais decorrentes de carências econômico-culturais. Esses fatores explicativos da emergência dos movimentos são mediados por elementos de práticas organizativas e participativas de grupos sociais, por suas interpretações e representações sociais sobre a experiência social e sobre as forças sociais que dizem representar, bem como sobre aquelas que antagonizam, pela posição de agentes externos e pelas políticas públicas existentes (Kauchakje, 2008).

Como destaca Bauman (2004), a classe média se insere nos mo-vimentos sociais, dado às ansiedades e medos de perder a pouca segu-rança que possui. A ansiedade e a insegurança são uma constante nos movimentos sociais, o que nos leva à identificação com alguns deles, como os direitos humanos, as mulheres, o ecológico e, agora, abre-se uma grande possibilidade de reforçar o movimento social da economia solidária. São lutas que vão ao encontro da subjetividade de cada um e se encaixam nas teias de relações sociais exploradas pela lógica capitalista e, por isso, não se esgotam com a institucionalidade ou a mera abertura para a participação social no poder estruturado. Alcançar a felicidade de modo solidário é próprio da natureza humana, mas foi justamente essa grandeza potencial que os tempos de exploração capitalista abafaram, estraçalharam e desviaram da esfera pública.

Participar de movimentos sociais é despertar para essa compreen-são e libertar as inteligências das grades da razão instrumental. Muitas vezes se sabe que não basta os movimentos sociais serem mediadores na busca de respostas para as ansiedades cotidianas, mas sabe-se que

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223Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

neles se encontra a ressonância maior das falas que clamam por vidas

emancipadas, solidárias e cooperadas. Ali se vê a possibilidade objetiva

de ir experienciando modos novos de sociabilidades e os indivíduos

elevam-se até o ponto de suas vozes se tornarem uma gramática social

bem articulada, que refletem a consciência de si plena de sentido, para

além da cotidianidade e conectada com outras lutas coletivas por socie-

dade alternativa.

É neste sentido que outro movimento começa a tomar corpo e

tem um sentido civilizacional para onde canaliza ações e pensamentos

mais transformativos e alternativos: a economia solidária.

Economia Solidária como Movimento Social

Como já referimos, o debate teórico sobre movimentos sociais

teve grande incidência nos anos 1970 e 1980 e tratou, especialmente, dos

movimentos de trabalhadores e populares urbanos, decrescendo a partir

da década de 90, quando a temática mais comum abordava os denomi-

nados novos movimentos sociais, entre eles o de gênero e o ambienta-

lista. Esses debates enfatizaram as diferenças culturais e ambientais e

incluíram também o tema das redes em que os movimentos sociais são

os atores principais em luta para constituir sujeitos políticos. As redes

sociais agregaram movimentos que estavam dissipados e fizeram isso

por meio de processos comunicativos de experiências democráticas e

democratizantes, articuladas em torno das lutas por direitos e da solida-

riedade política local e planetária em conjunto com outros atores, como

Organizações Não Governamentais, órgãos internacionais de defesa de

direitos e organizações do Estado.10

10 Ver Kauchakje e Ultramari, 2007. Para estes autores, são exemplos de tal perspectiva os estudos sobre as seguintes redes: a) DH Net – Rede de Direitos Humanos e Cultura –, que “funciona como portal de informações, oferece espaço gratuito em seu domínio para que diversas organizações não-governamentais [...] e integrantes do movimento de direitos humanos construam sua própria página na WWW” (Doimo; Mitre; Maia,

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224E n i o W a l d i r d a S i l v a

Podemos agregar a estes debates a ideia de que os grandes movi-

mentos sociais atuais são os de gênero, ecológico, dos direitos humanos

e da economia solidária, sendo este último uma agregação das lutas pelo

uso da terra, da agricultura familiar, da produção alimentar ecológica

e dos trabalhadores com o lixo urbano, dos pequenos artesãos e das

minorias.

A economia solidária se constitui em um movimento social amplo

e tem um sentido societal, pois reúne, genericamente, três perspectivas:

uma nova qualidade ao mundo do trabalho, novas formas de vivência

coletiva e as novas formas de pensar e reposicionar a relação do homem

com a natureza, com o outro e com a cognicidade. A economia solidária

está posicionada nas fissuras existentes entre o Estado e a sociedade civil,

integrando sujeitos para além das classes sociais, contendo proposições

de uma nova civilização.

A trajetória histórica da economia solidária não é possível de ser

traçada de modo objetivo e estanque. É possível concluir, no entanto,

que ela nasce junto as culturas de resistência aos processos produtivos

e distributivos desiguais e exploradores. Ela expressa as energias de

quem guardou a compreensão de que a marca do ser humano, sua lógi-

ca, é a solidariedade e não a competição, como fora ensinado por muito

2005, p. 107); b) rede ambientalista, que articula, por meio da Internet, tal como a “co-alizão dos grupos ambientais nos Estados Unidos, Canadá e Chile, formada a partir dos Friends of the Earth, Sierra Club, Greenpeace, Defender of Wildlife, The Canadian Environment Law Association e muitos outros...” (Castells, 1999b, p. 162); c) redes de identidade “articuladas em larga medida por ONGs feministas – ligando organizações de mulheres negras, mulheres indígenas, defensoras de direitos das lésbicas, feministas socialistas...” (Alvarez, 2000, p. 406); d) Fórum Social Mundial, que articula grupos de ONGs, movimentos e sindicatos para resistir e “propor alternativa à primazia do mercado e do capital internacional” (Gohn, 2003, p. 57); e) rede identificada em sítios da Internet conectados em torno do tema do direito à habitação em Curitiba-PR e que expressa uma forte interação entre organizações não-governamentais, fóruns e movi-mentos sociais (Kauchakje; Ultramari, 2007).

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225Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

tempo. Agrega também a ideia de que o trabalho é para edificar a vida

e não uma carga pesada de autodestruição das forças naturais, físicas e

intelectuais.

A economia solidária seguiu à margem da avalanche da economia

da exploração e guardou íntima relação com a vida afetiva das famílias.

Inicialmente era possível ver os registros dessa forma de viver e pro-

duzir renda de modo coletivo e solidário na agricultura familiar e nas

empresas familiares.11 Vemos uma expressividade desse modo de vida

nos socialistas utópicos, pois os ideais de cooperação eram relatados por

vários cientistas sociais do século 19, na Inglaterra, nos Estados Unidos,

na França, etc., onde operários e sindicalistas tentaram dar mais insti-

tucionalidade às experiências de produção e distribuição coletiva como

uma forma de vida mais apropriada.

A economia solidária nasceu pouco depois do capitalismo industrial, como reação ao espantoso empobrecimento dos artesãos provocado pela difusão das máquinas e da organização fabril da produção... em 1817, Owen apresentou um plano ao governo britânico para que os fundos de sustento dos pobres, cujo número estava se multiplicando... estes fundos deveriam ser investidos na compra de terras e construção de aldeias cooperativas, para eles produzirem para a própria subsis-tência (Singer, 2002, p. 25).

Nesse contexto de reação e de afirmação de grupos ameaçados

pela exclusão produtiva seguiu-se uma série de experiências iniciadas

por outros atores no interior da própria Revolução Francesa, formando

diversos tipos de sociedades cooperativas (operárias, professores, de tro-

cas, etc.), associações de famílias, associação de consumidores, sindicatos,

paróquias, etc. Foi o cooperativismo, no entanto, que se destacou como

a base de um movimento alternativo ao modo de produção capitalista,

11 Neste sentido, para uma história da origem da Economia Solidária, é preciso ler Singer, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.

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226E n i o W a l d i r d a S i l v a

sendo Robert Owen e Charles Fourier os atores intelectuais que pes-

quisaram essas experiências e as defenderam no contexto de reação ao

capitalismo (Singer, 2002).

É fruto das práticas dessa metodologia cooperativa que se forma-

ram os princípios do cooperativismo, instituídos, em 1938, no Congresso

da Aliança Cooperativa Internacional, que consolidou: a livre entrada ou

saída de cooperados, a gestão democrática, no qual cada associado tem

direito a apenas um voto, a limitação da remuneração do capital (juros)

e a distribuição de sobras de forma equivalente (Frantz, 2005).

Depois de um longo tempo de expansão difusa, a economia

solidária foi reinventada no meio da falência de processos empresariais

capitalistas, desemprego em massa, expulsão do homem do campo

pelas empresas agrícolas, concentração urbana, crise alimentar e crise

ecológica.

As iniciativas, no Brasil, para tornar a economia solidária um movi-

mento social foram destacadas em 1995 no seminário Formas de combate

e de resistência à pobreza, no 7º Congresso Brasileiro de Sociologia e no

III Encontro Nacional da Associação Nacional dos Trabalhadores em

Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteaf), em 1996.

Os debates mostraram que a economia popular em experienciação no

país já viam nos empreendimentos solidários alternativas promissoras e

inovadoras para uma economia social, pois guardavam em si elementos

do solidarismo e da cooperação. Paul Singer (1998) mostrava que, em

meio à crise do trabalho, começaram as propostas de soluções, vontade

de lutar, disposição ao sacrifício e, sobretudo, muita solidariedade. Esse

era o movimento da economia solidária, que reúne cooperativismo au-

togestionário e solidário como proposta para um desenvolvimento que

reconstrua o global a partir da diversidade do local e do nacional (Arruda;

Boff, 1996, p. 27).

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227Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

A série de encontros discutindo o novo pensamento gerou um

verdadeiro movimento social com militantes que se esforçavam para

tornar evidente a importância de a economia solidária ser fortalecida e

organizada, como destaca Lechat:

Em 1999, na Universidade Católica de Salvador, por ocasião do se-minário: Economia dos setores populares entre a realidade e a utopia, foi publicado livro com o mesmo título. Após isto, Paul Singer organizou a obra intitulada A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego, onde mais uma vez os três autores foram reunidos com muitos outros. Antes disto, Paul Singer e Marcos Arruda (em locais diferentes), como outros intelectuais participaram das “oficinas pe-dagógicas ou culturais” organizadas à noite pela CUT. Estas reuniam trabalhadores desempregados para debater alternativas de geração de emprego e renda, entre as quais dominava o tema da autogestão, da co-gestão e do cooperativismo. Singer e Gaiger foram reunidos pela Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (Unitrabalho) para realizar o projeto Economia solidária e autogestio-nária, em janeiro de 1999. Muitos outros acadêmicos e atores estão neste campo e outros virão, mas esta exposição é restrita demais para apresentá-los todos (2004).

Seguem-se os esforços para construir entendimentos de que os

empreendimentos da economia solidária são uma forma pela qual o tra-

balhador se apodera de uma cidadania ativa em vista da construção de

outra cultura econômica e gerencial. Dela é possível emergir geradores

de renda e trabalho, as cooperativas de consumo solidário e as coope-

rativas de crédito solidário, os clubes de troca, as associações sem fins

lucrativos que não produzem renda para seus sócios, as organizações

cooperativas ou não, cujo objetivo limita-se ao bem-estar dos seus sócios

e têm dimensão política capaz de produzir novas relações sociais em vista

de uma mudança de sociedade. Os valores de solidariedade cultivados

na economia solidária passaram a ser uma construção que se afina com

algo de desejo, de projeção, de idealismo, de justiça social e se tornaram

objeto de teses, artigos, cursos de formação via sindicatos, organizações

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de desenvolvimento solidário e órgãos do governo e assessoria a alguns desses empreendimentos. Nas universidades, por exemplo, multiplicam-se as incubadoras de cooperativas populares.12

Passou a economia solidária a se constituir experiências concretas heterogêneas que podem ser assim agrupadas: os projetos alternativos formados por pessoas de baixa renda situadas à margem do mercado formal, incluídos os clubes de troca; as cooperativas autogestionárias de trabalho ou de produção (nas quais encontramos, por exemplo, as coope-rativas dos assentados do MST), e as empresas auto ou cogeridas pelos seus trabalhadores oriundos de empresas falidas do mercado formal. As características comuns aos empreendimentos solidários são: a participação coletiva no trabalho e nas decisões de gestão, a posse coletiva dos bens e a repartição das sobras entre os trabalhadores, com a eventual consti-tuição de um fundo solidário para a criação de novos empreendimentos solidários. Daí, então, apoiadores de toda ordem começam a aparecer:

Encontramos projetos financiados pela Cáritas (Igreja Católica), por ONGs estrangeiras, pela CUT, pelos governos estaduais (como o do Rio Grande do Sul) ou municipais, e por órgãos públicos como o Finep (Programa de Financiamento das Empresas Autogestionárias, lançado em 1996) ou, ainda, por bancos cooperativados, mas trata-se, em geral, de cofinanciamentos onde encontramos tanto verbas públicas como da sociedade civil (Lechat, 2004, p. 132).

Atividades intelectuais se integram ao movimento com seus estudos, cursos, pesquisas, explicictando-se em teses, em encontros, seminários, publicações acadêmicas. Ampliam-se atividades de formação, promoção e apoio baseados em financiamentos, assessorias para fomento

12 As incubadoras de economia solidária se tornaram essenciais na fundamentação da economia solidária e na assessoria à organização, formação técnica a associação e em-preendimento solidário. Em 1998 teve início a Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), hoje formada por 45 incubadoras. A maioria delas é organizada por universidades. A Unijuí tem experiências de dez anos no projeto de ex-tensão chamado de Incubadora de Economia Solidária, Desenvolvimento e Tecnologia Social (Itecsol) – filiada à rede de ITCPs.

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229Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

e consolidação de cooperativas populares. Os empreendimentos são

reunidos em encontros, feiras, clubes, centrais, fóruns locais, regionais,

nacionais e internacionais, formam-se redes (inclusive eletrônicas) e

entidades de apoio nacional e internacional para a elaboração de uma

legislação apropriada, de marcas ou etiquetas para marketing, acesso ao

crédito, formação e qualificação, moedas alternativas, etc.

Por isso a economia solidária, hoje, se constitui numa agregação

de lutas diversas, mas é, ao mesmo tempo, um espaço livre para a expe-

rimentação organizacional, porque só a tentativa e o erro podem revelar

as formas organizacionais que combinam o melhor atendimento do

consumidor com a autorrealização do produtor. A expressão economia

solidária é própria dos discursos que criticam a economia capitalista e,

segundo Frantz (2008), vai ter novos rumos práticos nos debates rela-

cionados aos esforços da luta contra a exploração do trabalho humano,

no contexto das relações econômicas capitalistas e de frustração da

experiência de socialismo real existente, no século 20, posta em prática

pelo mecanismo do planejamento e intervenção estatal central. A essa

tradição de luta, então, ligam-se

as demais formas (comunitárias, artesanais, individuais, familiares, cooperativadas, etc.) e a partir daí passaram a ser tratadas como “res-quícios atrasados” que tenderiam a ser absorvidas e transformadas cada vez mais em relações capitalistas. De fato, muitas dessas formas foram transformadas em simples instrumentos técnicos de inserção na economia de mercado sob a lógica da remuneração do capital, da acumulação e do lucro (Frantz, 2008).

Na medida em que o trabalho foi perdendo seu sentido humano

para a lógica do capital, mais trabalhadores foram excluídos dos seus em-

pregos e mais se ampliou o trabalho precário, sem garantias de direitos. É

justamente aí que foi absorvido o contingente de excluídos da economia

formal, chegando, em alguns países, a significar a metade das atividades

da mão de obra (Brasil, no final da década de 80).

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230E n i o W a l d i r d a S i l v a

A economia solidária reúne práticas de relações econômicas e sociais que possibilita a sobrevivência cotidiana de milhões de famílias em todo o mundo. A diversidade de elementos internos e externos mostra que são práticas culturais alternativas de produção e distribuição de renda com identidade própria. São práticas fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez da acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular. Segundo Frantz, são pontos de convergência:

... a valorização social do trabalho humano, a satisfação plena das necessidades de todos como eixo da criatividade tecnológica e da atividade econômica, o reconhecimento do lugar fundamental da mulher e do feminino numa economia fundada na solidariedade, a busca de uma relação de intercâmbio respeitoso com a natureza, e os valores da cooperação e da solidariedade... A economia solidária constitui o fundamento de uma globalização humanizadora, de um desenvolvimento sustentável, socialmente justo e voltado para a sa-tisfação racional das necessidades de cada um e de todos os cidadãos da Terra, seguindo um caminho intergeracional de desenvolvimento sustentável na qualidade de sua vida (2008, p. 4).

Embora sejam essas concepções de economia solidária relativa-mente idealistas e defendidas mais por agentes, mediadores e intelec-tuais do que pelos próprios praticantes das atividades alocadas, de fato, o amadurecimento de todo o discurso de trabalhadores engajados no movimento a defende com entusiasmo contagiante por terem descoberto que a vida pode ser vivida de outro modo.

Os encontros de formação traduzem as vivências práticas e criam uma unidade de entendimento de que o valor central da economia solidária é o trabalho, o saber e a criatividade humanos e não o capital-dinheiro e sua propriedade sob quaisquer de suas formas. Além disso, busca a unidade entre produção e reprodução (capital e trabalho), evitan-do a contradição fundamental do sistema capitalista, que desenvolve a produtividade, mas exclui crescentes setores de trabalhadores do acesso

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231Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

aos seus benefícios e busca outra qualidade de vida e de consumo, e isto requer a solidariedade entre todos os povos. Para a economia solidária, a eficiência não pode limitar-se aos benefícios materiais de um empre-endimento, mas se define também como eficiência social, em razão da qualidade de vida e da felicidade de seus membros e, ao mesmo tempo, de todo o ecossistema. A economia solidária é um poderoso instrumento de combate à exclusão social, pois apresenta alternativa viável para a geração de trabalho e renda e para a satisfação direta das necessidades de todos, provando que é possível organizar a produção e a reprodução da sociedade de modo a eliminar as desigualdades materiais e difundir os valores da solidariedade humana (Frantz, 2008).

Concebo a economia solidária, então, como um processo eman-cipatório que se expressa como uma tecnologia social, ou seja, um con-junto de procedimentos racionais preparados para a geração de trabalho e renda que são basilares para promover o desenvolvimento sustentável – econômica, social, política e naturalmente. Desenvolve-se no seio de uma sociedade e não se desloca de sua dinâmica, promovendo a inclusão e tendo caráter popular. Ou seja, como tecnologia social, a economia solidária compreende produtos, técnicas ou metodologias replicáveis, desenvolvidos na interação dos coletivos, e que representam soluções efetivas de problemas pela perspectiva de transformação social e quali-dade de vida, como observa Neto:

Tecnologias desenvolvidas pelos próprios agentes sociais que as utilizam em seu trabalho, sem respaldos institucionais significativos, geralmente demandando intenso trabalho, podem ser classificadas como tecnologia social... precisam ser entendidas em sua relação dos grupos diretamente atingidas por ela e dos efeitos econômicos, sociais e ambientais decorrentes de sua utilização (2010, p. 126).

O sentido de tecnologia aqui referido não se insere naquilo que é comumente chamado de efeito da ciência técnica em si. Estamos falando de ressignificação dos processos de democratização da cognicidade em suas interfaces com processos inclusivos, cuja base é a metodologia de

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trabalho de grupos combinando processos autogestionários e cooperati-vos que fortalecem capacidades e iniciativas em setores sociais como a agricultura familiar, habitação popular, energias alternativas, reciclagem de resíduos, produção e conservação de alimentos, artesanato, entre outros. Como tal, a economia solidária é sólida onde é fruto da visão de mundo dos excluídos e suas reais necessidades e são eles mesmos construtores de conhecimentos. Por isso, a economia solidária tem uma desconfiança com o viés paternalista, assistencialista ou dos fazedores de “política sociais” ou transferidores de tecnologia, o que confere inci-pientes entendimentos do real valor da economia solidária, tendendo a ser definida como uma questão de responsabilidade social empresarial ou mesmo como uma busca do elo perdido por aqueles que lutavam por uma sociedade socialista.

Embora contenha esses elementos ideológicos que se ligam aos objetivos de inclusão social, movimentos sociais, políticas públicas ou ações promovedoras, é preciso ser interpretada na complexidade maior das atuais sociabilidades, pois trata-se de uma reforma de pensamento e um pensamento alternativo que se enraíza em redes de coletivos huma-nos promotores de ações que se configuram como culturais e estruturas de poderes compartilhados. Neste sentido, talvez pudéssemos inserir a economia solidária como germe de um novo paradigma de desenvol-vimento social, que se queira sustentável econômica, social, política e ecologicamente.

Essa tese está baseada no fato de que a economia solidária se con-solida mais nos espaços caracterizados por alto grau de vulnerabilidade e exclusão social e, também, é uma nova opção de economia no que tange ao fortalecimento da cidadania, à organização justa da sociedade e, ainda, que procura alternativas civilizacionais para além do modo ca-pitalista de produção. Além do mais, o conceito de economia solidária sempre esteve relacionado aos empreendimentos autogestionários que geralmente possuem reciprocidade no centro de sua ação econômica, na qual as pessoas se associam de forma voluntária objetivando satisfazer

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233Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

necessidades sociais e culturais. Uma vez associados esses trabalhadores são donos do empreendimento, sendo de inteira responsabilidade deles sua gestão, em que, geralmente combinam a autonomia de gestão a uma atitude de responsabilidade e de envolvimento social e, também, com a construção de espaços públicos para promover discussões. Em sua maioria, os atores envolvidos são trabalhadores excluídos do mercado formal, que buscam, por meio desses empreendimentos, melhorar a realidade em que vivem.

Fruto da perspectiva de ser uma economia social voltada para os historicamente excluídos, o movimento da economia solidária se esfor-ça para integrar trabalhadores para que estes gerem, associadamente, empreendimentos autogestionários, cooperativos e sustentáveis. Esses processos fazem parte dos princípios e das experiências consolidadas da economia solidária, significando um processo emancipatório que reúne tecnologias sociais. Constituída em rede local, regional, estadual, nacional e internacional, a economia solidária cria novas consciências fortalecidas por práticas eficazes e alternativas: grupos de produção e consumo solidá-rio, financiamento solidário, clubes de trocas, “moedas verdes”, sistemas locais de emprego, processos autogestionários de empreendimentos de trabalhadores, organização de marcas da sustentabilidade e produção familiar, agricultura, artesanato, feiras especiais, etc., que se liga a redes geradoras de ordenamentos coletivos democráticos.

A crise do capitalismo dos anos 80 fez crescer o número de pes-soas trabalhando na informalidade e que acabaram se submetendo à precarização do trabalho. Para garantir a sobrevivência em meio à falta de emprego, o trabalhador abdica de direitos e se sujeita a trabalhos em condições precárias. O desemprego passou a ser uma ameaça para os trabalhadores que, porventura, reivindicassem melhores condições de trabalho foram fazendo com que a classe não tivesse poder de barganha na negociação com os empregadores. Neste contexto, outras formas de organização do trabalho vão surgindo e se firmando na sociedade, em sua maioria em virtude da necessidade de encontrar alternativas à geração

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de renda. A economia solidária foi reconhecida, também, por fazer parte das estratégias de minimizalização da barbárie do desemprego estrutu-ral, atuando em lacunas que o Estado não preenchia. Desta maneira se constituíam as experiências coletivas de trabalho e produção, alicerçadas em concepções de racionalização diferentes da capitalista.

A economia solidária possui esse aspecto de diferença, e essa é a sua grandeza e também um dos seus maiores problemas. Grandeza por agregar esperanças de muitos grupos excluídos e muitos apoiadores do pensamento alternativo. Problemas porque grande parte dos grupos nela inseridos efetivamente querem e precisam sobreviver, tendo ainda pouco envolvimento com as políticas de transformações sociais, dificultando sua associação a “nova ideologia” de “transformação” do capitalismo. Essa dimensão utópica e idealista foi vislumbrada na medida em que canalizou o discurso da esquerda desesperada com os rumos que tomou a democracia representativa burguesa. Talvez por essa razão a maioria dos envolvidos diretamente com a economia solidária a caracterizem como um mecanismo de sobrevivência e percebam até como um risco de se idealizar práticas que não são reais. Seria inviável, no entanto, fazer com que todas as pessoas agissem calcadas nos princípios da economia solidária pois, para além da opção de renda ou trabalho, sua configuração está vinculada à necessidade de sobrevivência de parcela da população. À medida que podem os trabalhadores fogem dela e entram para um emprego. Essa é outra fragilidade, especialmente para os trabalhadores com materiais recicláveis.13

13 O trabalho com materiais recicláveis vem adquirindo uma complexidade e uma im-portância social cada vez maior, não somente diante das novas estratégias de políticas públicas para o lixo, nas pesquisas sobre o equilíbrio ambiental, como também nos debates das novas esferas públicas sobre a configuração de novos direitos: direitos culturais, direito à cidade, direitos ambientais e a ampliação da cidadania e da respon-sabilidade civil. A questão do lixo é indissociável das atividades desenvolvidas pelo homem no seu processo de transformação da natureza em produtos para satisfazer suas necessidades. Essa questão do lixo perpassa a história da civilização e hoje é agente de primeira linha na territorialidade urbana onde figuram obras de Engenharia, aterros sanitários esculturas de incineração, depósitos de sucata, lixões e áreas de descartes

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235Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Os agentes intelectualizados da economia solidária esforçam-se para legitimar o grandioso ideal que defendem.14 Os sujeitos das polí-ticas públicas a percebem como uma estratégia de ação popular que os legitima no poder e poucos são aqueles que realmente apostam na conso-lidação de coletivos autogestionários e autossustentáveis. Líderes locais esperam políticas públicas da União, que inclusive ajudem as políticas locais a não terem de se ancorar em ações de economia solidária ou fazer

indiscriminados de resíduos. Estas imagens adjetivam visões negativas sobre o lixo. É nestas áreas que proliferam atividades de sobrevivência de camadas de população, imigrantes pobres, camponeses expulsos do meio rural, pobres excluídos do trabalho empresariado ou público, etc., formando novos bairros onde muitos indivíduos vão afirmando a cidadania que lhes foi negada. Nestes momentos de escassez de matéria-prima, os resíduos que estão no lixo se transformaram numa opção para gerar renda e trabalho para um verdadeiro exército de catadores, cujo trabalho, nos últimos tempos vem carregando o signo da ecologia e da nova cidadania. O Movimento Nacional dos Catadores promoveu entre os dias 28 e 30 de outubro, na cidade de São Paulo, a feira de tecnologia social Reviravolta Expocatadores 2009, um evento voltado para as associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis da América Latina e Caribe e demais atores com interesse no tema. O evento reuniu mais de 1.500 catadores de todos os Estados brasileiros, América Latina e Caribe para um encontro internacional de troca de experiência e debate de políticas e ações voltadas à inclusão social dos catadores de materiais recicláveis. O encontro internacional reuniu representantes do Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Costa Rica, Porto Rico, Peru, além da Índia. Em 2010 o evento dobrou a quantidade de participantes. Consultar: <www.expocatadores.com.br>.

14 No último congresso da Rede de ITCPs se escreve à presidente da República neste teor: o potencial já demonstrado pela economia solidária de contribuir com o resgate humano e a erradicação da pobreza e da miséria; a capacidade da economia solidária em gerar oportunidades de geração de trabalho e renda para setores que não conseguem se inserir no mercado de trabalho tradicional; o compromisso da economia solidária em promover o desenvolvimento territorial, sustentável e solidário, em que a produção da riqueza tenha como finalidade a qualidade de vida; a natureza transversal e intersetorial da economia solidária, que exige um espaço institucional de articulação e organização do conjunto de políticas relacionadas; o crescimento expressivo da economia solidária em todos os segmentos da sociedade civil e em políticas públicas municipais e esta-duais; os “13 compromissos para fazer avançar a economia solidária como estratégia de desenvolvimento”, assumidos pela campanha eleitoral; e a necessidade de ampliar o patamar das políticas públicas de economia solidária para contribuir com os objetivos centrais apontados por seu programa de governo (Carta de Porto Alegre. 30.3.2011. III Congresso da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Popu-lares; I Simpósio Internacional de Extensão Universitária em Economia Solidária; XVI Encontro Nacional da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares).

Page 236: Sociologia Jurídica

236E n i o W a l d i r d a S i l v a

programas para atender às necessidades cidadãs dos trabalhadores ali

envolvidos. Os agentes da economia solidária defendem que ela não é

simplesmente uma alternativa à renda, e sim uma alternativa ao próprio

sistema. Acreditam que as práticas dessa “nova economia”, ao se difundir

e ganhar espaço no Brasil e no mundo, irão suplantar o sistema capita-

lista. Até porque a crise enfrentada hoje, aparente na miséria, violência,

desigualdade social e degradação ambiental, está deixando o mundo

em estado de calamidade. Esses autores defendem essa hipótese sobre

a economia solidária pelo fato de ela proporcionar às pessoas condições

de vida mais dignas de trabalho, melhorando as relações humanas entre

si e sua relação com o meio ambiente. Muitas atividades dos agentes,

principalmente das Incubadoras de Economia Solidária e da rede de

apoio, comprovam que os amplos diálogos com os trabalhadores fazem

com que eles compreendam esses potenciais transformativos do movi-

mento da economia solidária, mas, enquanto isso, precisam sobreviver

e resolver suas ansiedades básicas.

Para Frantz (2008), a economia solidária é o embrião de uma nova

cultura de responsabilidade individual e coletiva, de cooperar para solida-

rizar e que, para tanto, abriga indivíduos livres que lutam por muito mais

do que a mera satisfação das necessidades imediatas. Esse processo rela-

cional é educativo porque cria a cultura de que o outro é bom, acessível

e importante para um viver junto aos outros. Mostra que a solidariedade

não é misericórdia do outro, mas integração das qualidades daquilo que

se faz, valorizando o trabalho humano para emancipação transcenden-

te, que coloca em cooperação as inteligências e as boas energias do ser

humano. Reconhece a solidariedade, a cooperação, a sustentabilidade

e o equilíbrio ecológico como respostas aos grandes problemas sociais

que nos atingem. É como um movimento social e pedagógico com um

significado político que encarna a construção compartilhada da ética e

da vida humana, permeada pela alegria do e no conhecimento coletivo

(Barcelos; Rasia; Silva, 2010, p. 181).

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237Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Direito, Conflitualidade e Violência

O tema da violência e da conflitualidade são os mais recorrentes quando o assunto é a crise civilizacional que estamos vivendo. No livro Violência e Cidadania – práticas sociológicas e compromissos sociais, Jose Vicente Tavares dos Santos15 assim se manifesta, fazendo um convite à leitura:

Presenciamos as inter-relações simbólicas entre normas sociais, mal-estar e violência simbólica, para cuja disseminação os meios de comunicação de massa contribuem, produzindo a dramatização da vio-lência e difundindo a espetacularização do crime violento, enquanto um efeito da violência simbólica exercida pelo campo jornalístico... a maioria do jovens estão na escola e é nesta que a violência juvenil mais se manifesta, mas é preciso conhecer as causas econômicas, sociais, políticas e culturais que a produzem, pois a fragmanetação do espaço urbano se manifesta pela formação de núcleos de populações pobres e miseráveis, para as quais a violência sistemática pode fazer parte de um modo de ganhar a vida e viver socialmente: a chamada violência juvenil atual pode ser vista como uma estratégia de reprodução ou de sobrevivência de setores excluídos... na sociedade brasileira a disse-minação da violência criminal foi acompanhada de uma mudança das formas de delito: o fenômeno dos bandidos sociais na realidade agrária migra alguns de seus traços para a sociedade urbana na qual houve o crescimento da delinqüência urbana – crimes contra o patrimônio, homicídios, crime organizado, conflitos interpessoais... a crise das polícias é marcante: em todos os países se observa a violência policial, a corrupção, a ineficácia na previsão das violências e a ineficiência na investigação. Existe uma evidente crise do sistema de Justiça penal, pois o acesso à Justiça é precário, a seletividade orienta os processos penais e a normatividade da lei não se efetiva. A organização policial brasileira se caracteriza por um campo de forças que se estrutura a partir de três posições: o exercício da violência legítima, a construção do consenso e as práticas de excesso de poder. As relações dinâmi-cas e combinatórias destes três vetores definem a função social da

15 Trata-se do texto introdutório ao livro. Ver Tavares dos Santos, José Vicente; Teixeira, Alex Niche; Russo, Maurício (Org.). Violência e cidadania – práticas sociológicas e com-promissos sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, Sulina , 2011. 553p.

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238E n i o W a l d i r d a S i l v a

organização policial no Brasil contemporâneo... A crise do Estado e a aplicação de políticas neoliberais ocorreram também associadas a uma quebra do controle social informal que realizavam família, escola, os clubes de bairro, a igreja, as bibliotecas vicinais, entre outros. Porém, a formalidade da justiça penal não conseguiu substituir tais controle sociais (Tavares dos Santos, 2011).

Segundo este autor, as Ciências Sociais são marcadas pela preo-

cupação política e pelas lutas sociais. Suas pesquisas da realidade social

veem mostrando que nas sociedades contemporâneas há um enfraque-

cimento dos laços sociais, um dilaceramento da cidadania, a violação dos

direitos humanos e a expansão da violência.

Silva (2010) mostra que a violência é etimologicamente referen-

ciado ao latim violentia, relacionado a vis e violare, e porta os significados

de força em ação, força física, potência, essência, mas também de algo

que viola, profana, transgride ou destrói. Assim, violentia parece denotar

um vigor ou força que se direciona à transgressão ou destruição de uma

ordem dada ou “natural”. O limite representado por essa ordem, e sua

perturbação (pela violência), é percebido de forma variável cultural e

historicamente (Zaluar, 1999).

A disseminação das violências também vem produzindo, para

além do desencanto, novas relações de sociabilidade e outras formas de

controle social, na esperança de pacificar a sociedade, respeitando as

diferenças, reduzindo as iniquidades e as injustiças e reconhecendo a

dignidade humana de todos os cidadãos e cidadãs.16

A Sociologia é uma ciência que estuda as relações sociais produto-

ras de sociabilidades humanas. Quando estas relações sociais se tornam

tensas e as sociabilidades expressam-se de forma agressiva a ponto de

atingirem a dignidade das pessoas é necessário uma abordagem mais

16 Texto Publicado em Silva, Enio Waldir da. Sociologia da violência. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2010.

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239Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

objetiva para entender as dimensões dos fatos sociais ali emergentes.

Estes esforços reflexivos são chamado de Sociologia da Conflitualidade

e da Violência.

Evidentemente não é somente a Sociologia que estuda os pro-

cessos de relações sociais em tensões, mas nos últimos tempos é esta

ciência que condensou os principais estudos que estão servindo para

assessorar os debates sobre as causas, as consequências da violência e,

principalmente, vem construindo edifícios conceituais para instituições

públicas e privadas promoverem políticas de combate às situações cole-

tivas de conflitos, crimes e violências, principalmente a aderência que

os estudos sociológicos possuem junto as atividades de mediação de

conflitos do Judiciário.

A Sociologia parte da seguinte premissa reflexiva: no tempo atual

vive-se no desespero de entender o homem e, a partir disso, tentar criar

formas de convivência razoáveis, dignas e potencializadoras das lógicas

solidárias existente em cada indivíduo. É esta lógica de ser sapiens a única

capaz de controlar o demens, que é concorrencial, destruidor e ilógico...

Pressuposto que levam a acreditar que é possível criar estruturas objetivas

que protegem as dimensões pacíficas e racionais da vida ou, ao menos,

de forma mais ampla, se acredita poder equilibrar homo sapiens e homo

demens pelo fortalecimento da cultura humana (Morin, 2005).

Isto pode ser dito, mas é insuficiente para esclarecer os aspectos

conflituosos das nossas relações sociais atuais, pois permanecemos seres

desconhecidos, embora se viva em uma época de acúmulo de conheci-

mentos sobre o homem. Talvez seja porque estes conhecimentos estão

muito separados uns dos outros, sendo necessário unir, ligar, articular e

organizar para interpretar dialogicamente esses entendimentos do hu-

mano, que não se reduz ao humano e nem está sintetizado nos discursos

das ciências.

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Em um primeiro momento entendemos que a violência tem sua origem neste aspecto social de todo indivíduo, sintetizado na seguinte passagem:

O ser humano é razoável e não é, capaz de prudência e de insensatez, racional e afetivo; sujeito de afetividade intensa, sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer objetivamente. É um ser calculador e sério, mas também ansioso, angustiado, embriagado, extático, de gozo; é um ser invadido pelo imaginário e que pode reconhecer o real, que sabe da morte, mas não pode aceitá-la, que destila mito e magia, mas também ciência e filosofia; possuído pelos deuses e pelas idéias, duvida dos deuses e critica as idéias. Alimenta-se de conhecimentos verificados, mas também de ilusões e quimeras. Na ruptura dos controles racionais, culturais, materiais, quando há confusão entre objetivo e o subjetivo, entre o real e o imaginário, hegemonia de ilusões, insensatez, o homo demens submete o homo sapiens e subordina a inteligência racional a serviço dos seus monstros (Morin, 2005, p. 127).

Diante desta compreensão, com a qual nos congratulamos, parti-remos para um esforço de nos situar no universo social, nas ligações que os indivíduos criam para juntos enfrentar os momentos em que estas dualidades (prudência-insensatez, racional-afetivo, riso-choro, cálculo-gozo, real-imaginário, mitologia-Sociologia, deuses-ideias, etc.), estão em franca tensão. Diríamos, então, que o descontrole racional-irracional acompanha a história social do homem, que as potências de homo demens e homo sapiens estão sempre juntos, ancoram-se um no outro e, de for-ma mais objetiva, diremos que a violência emergiu quando começou a dominação do homem pelo homem, as desigualdades, a exploração e as classes sociais. A violência evidencia o descontrole humano de sua natureza agressiva, agressão que, muitas vezes, é parte de seu esforço da lógica integradora dos sujeitos, produtora se solidariedade. Ou seja, o ser humano é solidário e procura constantemente a integração com os outros para poder diminuir sua dependência e sobreviver. À medida que evolui seu aprendizado, que vai se aculturando, apropriando-se dos bens da natureza e lutando para mantê-los, etc., é que começam a aparecer interesses divergentes, estranhamentos, desconfianças e ansie-

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241Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

dades que levam a agressões violentas. Ameaçado em algumas de suas dimensões humanas/sociais o individuo reage, seja ameaça da ordem social ou ameaça que atinge o sujeito em sua formação interpessoal, em que há o reconhecimento, a dignificação, a identificação territorial, étnica, familiar, religiosa...

Os estudos sociológicos, nos últimos tempos, têm abordado o problema da violência não mais a partir da ordem, da lei, mas da relação interpessoal em que um indivíduo se sente reconhecido ou negado em vez de definir o sujeito violento como dessocializado, selvagem. Com isto parte-se do pressuposto de que a ordem de nossas sociedades não pode ser obtida pelo reforço das regras e dos comportamentos conformes com elas. A integração somente será possível se o indivíduo, sua vida e sua palavra, estiverem no centro da vida coletiva: se o indivíduo puder falar, se for ouvido e entendido (Touraine, 1998a, p. 314). Note-se: não estamos recuando, nos tornando mais selvagens, nem mais afastados das leis. Não é isso. É que a violência característica das nossas sociedades deixou de ser institucionalizada para ser extremamente mais individualizada:

Nossas sociedades de tipo ocidental se mostram ao mesmo tempo relativamente tolerantes no plano institucional e duras, violentas, no plano dos comportamentos individuais. É o que sempre aconteceu no EUA, país da igualdade e do respeito à Constituição, mas tam-bém país da conquista violenta do Oeste, da segregação que atinge os negros e de uma forma brutal repressão judiciária e policial... A violência é tão central em nossas sociedades como o era a violência coletiva nas sociedades da alta e média modernidades... Hoje, as formas de desintegração que nos parecem mais graves são aquelas que não deixam o indivíduo agir como sujeito, que desintegram a sua personalidade, que o impedem de ligar seu passado e seu futuro, sua história pessoal a uma situação coletiva, e o tornam prisioneiro da dependência (p. 315).

Segundo Touraine, o sujeito desintegrado está sujeito a cometer ações que se voltam contra ele e atingem o outro que o complementa e reconhece.

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A decomposição da sociedade, definida como um organismo no

qual cada elemento cumpre uma função, que elabora suas metas e os

meios necessários para atingi-las, que socializa seus novos membros e

pune os que não respeitam as normas, leva, em nosso tipo de sociedade,

a um individualismo que se opõe à aplicação das regras da vida coletiva

e as substitui pelas leis do mercado, em que se manifestam preferências

múltiplas, inconstantes, mas influenciadas pela publicidade comercial

tanto quanto pelas políticas públicas (Touraine, 1998a).

Poderíamos falar com certeza em uma cultura de violência, dado o

fato de que ela se espalha por todo o horizonte social e está muito presente

nos mínimos espaços de relações simples e condutas cotidianas. Depois

que a produção em massa, após o predomínio da fabricação industrial,

penetrou os domínios do consumo e da comunicação, e depois que as

fronteiras e as tradições foram invadidas pela distribuição dos mesmos

bens e serviços no mundo inteiro, grandes áreas de nossas condutas, que

imaginávamos protegidas por sua inscrição na esfera privada, encontram-

se expostas à cultura de massa e, por isso mesmo, ameaçadas.

É aqui que ocorre a ligação entre a ampliação e a transformação

das coações exercidas pelos valores, normas e formas de organização e

a unificação e a individualização da pessoa, que não apenas resiste às

coações externas, mas sobretudo a todo princípio transcendente e se

afirma como a meta de sua luta e ao mesmo tempo aquilo que lhe dá

força. Não se assiste a um deslocamento dos campos de conflito, mas a

sua integração até o momento em que é em nome do próprio eu, e não

de lutas particulares, que os diversos movimentos sociais se combinam

e se integram uns nos outros, até empenhar-se conscientemente numa

luta central entre exigências sociais e culturais, de um lado, e, do outro,

forças que podemos chamar de naturais, ou seja, não sociais, como a vio-

lência, a guerra, os movimentos do mercado, etc. A sociedade chegou ao

caos (Caosmos), em que se precipitam a violência, a guerra, o fascismo

societal, a dominação dos mercados (Sousa Santos, 2004).

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243Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

A penetração de uma dominação múltipla no indivíduo, em suas categorias de ação, na consciência de seu corpo, etc., corresponde à afirmação do sujeito. As duas tendências estão interligadas, embora per-manecendo opostas uma à outra. Quando separamos a ideia do sujeito das referências constantes aos conflitos sociais e políticos, o sujeito enfra-quece e corre o risco de se tornar moralizador. A abordagem proposta por Foucault em Vigiar e punir deve ser completada pela ideia de resistência, que não pode apoiar-se senão na consciência de si mesmo como sujeito e não deve esquecer jamais a existência destes conflitos. Aquilo que cada um de nós exige, e sobretudo os mais dominados e os mais desprotegi-dos, é ser respeitado, não ser humilhado e até, exigência mais ousada, ser escutado – e mesmo ouvido e entendido (Touraine, 1998a).

O mundo já assimilou a ideia da globalização, e não tem mais como voltar atrás, mas o indivíduo por si só poderá resistir à violência e encontrar um “sentido” que não é possível encontrar nas instituições sociais e políticas. A invasão do campo social por forças não sociais não será combatida por reformas sociais, conquistadas por um movimento social, visto que põem em questão os direitos humanos. Cada indivíduo descobre em si mesmo, na defesa de sua própria liberdade, sua capacida-de de agir de maneira autorreferencial, na busca da felicidade. A ordem religiosa foi ocupada pela ordem política que concentra todos os recursos nas mãos de uma “elite” que comanda a vida pública (pelo emprego da força e da razão), em que foram definidos como inferiores o trabalho manual, o corpo, o sentimento, o consumo imediato, a vida privada, o mundo feminino e o das crianças. Surgem então tensões e conflitos e a luta de classes (lutas sociais).

A destruição da ideia de sociedade só pode nos salvar de uma ca-tástrofe se ela leva à construção da ideia de sujeito, à busca de uma ação que não procura nem o lucro nem o poder nem a glória, mas que afirma a dignidade de cada ser humano e o respeito que ele merece, capaz de impedir que nossas sociedades caiam numa extenuante concorrência generalizada. Atualmente o sujeito é aquele que tem consciência do

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direito de dizer eu, mas o sujeito em formação não pode se perder em

falsos caminhos (obstáculos), que são reforçados pelos valores dominan-

tes que tendem a assinalar a cada um seu lugar e a integrá-lo no sistema

social sobre o qual não pode exercer influência.

Quanto mais a vida passou a depender de nós mesmos, mais toma-

mos consciência de todos os aspectos de nossa experiência. Nós só nos

tornamos plenamente sujeitos quando aceitamos como nosso ideal nos

reconhecermos como seres individuais, que defendem e constroem sua

singularidade e dando, mediante nossos atos de resistência, um sentido

a nossa existência. A história do sujeito é a da reivindicação de direitos

cada vez mais concretos, que protegem particularidades culturais cada vez

menos geradas pela ação coletiva voluntária e por instituições criadoras

de pertencimento e de dever (Touraine, 1998a).

A violência manifesta-se hoje como uma cultura do tempo, do-

mina e arrasta a família para situação de caos. Há muitas ações novas

que procuram verificar as causas e o agir para frear esta avalanche que

atinge a sociedade. Toda a violência é circular e emerge da explosão dos

mecanismos que controlam os elementos agressivos da violência humana.

Geralmente a violência é mais expressiva nas pessoas que perderam a

esperança, já estão sem causa objetiva, sem razão histórica e são como

representantes da miséria do mundo que zombam da tentativa das auto-

ridades de querer impor a ordem sem atacar o que causa a desordem.

Outros estudos tratam as violências conectadas aos temas das de-

sigualdades sociais, das relações de direitos e deveres dos cidadãos, da

educação e socialização dos indivíduos. Muitas pesquisas concluem que é

a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, produtoras

de ansiedades em relação ao presente e futuro das pessoas, o antídoto

para a violência social. Ao estar na miséria se tem mais possibilidades

de confluências destas ansiedades e geram várias vulnerabilidades, es-

tranhamentos e ações desintegradoras dos laços sociais.

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245Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Por outro lado, os mecanismos e os processos criados para a orde-nação social se encontram impotentes para cumprir suas próprias funções, tanto por que não controlam as determinações maiores que causam esta situação, quanto por não estarem preparados para criar saídas democrá-ticas e racionais diante da nova complexidade social. Grande parte da fragilidade da atuação na área de conflitos, no entanto, está relacionada à falta de políticas específicas que garantam espaços e infraestrutura adequada ao trato dos problemas.

As diferentes formas de violência presentes em cada um dos conjuntos relacionais que estruturam o social podem ser explicadas se compreendermos a violência como um ato de excesso, qualitativamente distinto, que se verifica no exercício de cada relação de poder presente nas relações sociais de produção do social. A ideia de força, ou de coer-ção, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social, seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia, a um grupo etário ou cultural. Força, coerção e dano, em relação ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas relações de poder – tanto nas estratégias de dominação do poder soberano quanto nas redes de micropoder entre os grupos sociais – caracteriza a violência social contemporânea (Tavares dos Santos, 2002).

Estudos têm revelado que a maioria dos conflitos existentes não necessitariam chegar à alçada do jurídico, ou mesmo estando neste espaço poderiam ser tratados com estratégia de informalização, desregulamen-tação da Justiça ou democratização do Direito, em que as intervenções podem ser vistas como mediação, criando as condições de diálogos entre os sujeitos conflitantes, de forma a expressarem seus interesses, procurando entendimento para chegada de conclusão ou decisão mais universal.

Desregulamentação e informalização da Justiça são conceitos que permitem compreender as mais complexas e múltiplas relações sociais em conflitos. Entre os temas abordados estão: a evolução da crise da racionalidade que trata dos problemas sociais; a mudança nas

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formas produção e distribuição da riqueza; a emergência de culturas de

violência; as mudanças nas estruturas familiares, na crise do trabalho, no

esfacelamento do sujeito, etc.

Muitas iniciativas para diminuir a violência partem do interior da

própria ordem jurídico-estatal, outras surgem das próprias iniciativas das

políticas públicas do Estado e outras, ainda, de organizações da sociedade

civil. Existem muitas dúvidas, porém, sobre a legitimidade, a efetividade,

o justo e o legal, os critérios aplicáveis, a natureza alternativa das sanções

e da justiça informal diante dos papeis do Estado e das relações entre Es-

tado e sociedade. Isto destaca a necessidade de um conjunto de estruturas

pedagógicas libertárias para se criar condições para se ter compreensões

interdisciplinares que devem estar presentes em sujeitos que congregam

responsabilidades para atuar com situações de violência.

Porto (2006, p. 266) argumenta que toda vez que a integridade física

fosse atingida poder-se-ia assumir que se está em presença de um ato violento”.

A autora busca definir um caminho teórico para os estudos sociológicos

sobre a violência por intermédio da utilização da Sociologia compreensiva

de Weber e das representações sociais como forma de conhecer as crenças

e valores envolvidos nos fatos violentos, considerando assim também a

subjetividade dos atores e a compreensão que estes têm destes fatos.

Além disso, a técnica buscada por Maria Porto é capaz de mapear também

manifestações implícitas da violência que poderiam passar despercebidas

caso o sociólogo se propusesse a mapear somente determinados tipos

de violência de forma objetiva, o que poderia mascarar a realidade, pois

de acordo com Wieviorka,

(...) a violência jamais é redutível à imagem da pura subjetividade

simplesmente porque o que é percebido ou concebido como violento

varia no tempo e no espaço (...) Mas, por outro lado, a violência não

pode ser redutível aos afetos, às representações e às normas que dela

propõem tal grupo ou tal sociedade (...) (1997).

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247Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Lembramos que é necessário fazer a distinção entre violência e crime: a violência é um fato social muitas vezes empregado como forma de representar as forças legais instituídas (conforme a concepção we-beriana de Estado detentor da coerção física) e o crime, a transgressão das normas legais constituintes destas forças. Já nos pontos nos quais a lei não representa realmente os anseios da sociedade Durkheim afirma que “às vezes o criminoso seria um precursor da moral por vir” (Filho; Machado, 2005, p. 20).

Esta última visão do crime e violência segundo a qual os fins jus-tificariam os meios é semelhante à utilizada pelas organizações que bus-cavam instaurar repúblicas socialistas por meio da revolução proletária, uma utilização da violência que tinha por objetivo acabar com o Estado burguês, que por ser calcado no capitalismo é incapaz de representar por igual todas as parcelas da sociedade, gerando a desigualdade e a violência, o fim deste Estado representaria também o fim da violência. Este emprego da violência, assim como outros característicos de determi-nadas épocas históricas, de acordo com Wieviorka, tornou-se anacrônico, incapaz de ser justificado nos novos tempos do capitalismo globalizado, quando as relações trabalhistas são atravessadas pelas regras do mercado, distanciando as classes sociais. Para este autor a violência atualmente apresenta-se predominantemente na forma infrapolítica, que se rebela contra a situação vigente mas não apresenta alternativa real à mesma, e a violência metapolítica, fruto das frustrações da modernidade, atraves-sada por reivindicações culturais, religiosas, econômicas e identitárias, sendo este cruzamento de diferentes campos socioculturais a principal característica das manifestações violentas na atualidade, o que dificulta tanto a identificação das mesmas para tratamento sociológico quanto a identificação dos próprios atores sociais quanto a suas reivindicações. Afirma o autor:

Retomando a exposição anterior, pode-se dizer, perfilando Dahren-dorf, que o crescimento da criminalidade e o suposto aumento da impunidade resultam na erosão da lei e da ordem nas sociedades con-

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temporâneas. O Estado aparece como incapaz de cuidar da segurança dos cidadãos e de proteger seus bens, materiais e simbólicos. No cerne da “demanda por ordem” aloja-se não apenas o sentimento de que o passado se perdeu inexoravelmente pela avalanche do “progresso” histórico, sentimento simbolizado nas imagem de pânico moral pro-porcionados pela concentração urbana, pela “crise” da família, pela irrupção das multidões na arena política. A perda é sentida como ausência de solidariedade, de esgarçamento dos vínculos morais que conectam indivíduos às instituições, ausência sacramentada pelo definhamento da autoridade. Tudo se passa como se os interesses egoístas suplantassem o bem comum. Seu sintoma, a explosão de litigiosidade entre o indivíduo e a sociedade, tão bem descrita por Durkheim em inúmeras de suas obras, resultaria na desobediência civil, na perda desse sentimento segundo o qual “agir bem é obedecer bem” (Wieviorka, 1997, p. 32).

Ao mesmo tempo, o autor nos faz advertência para se analisar a violência atual: “nas sociedades contemporâneas não há mais espaço para pensar conflitos numa versão liberal”. Ou seja, o autor parte do pressuposto de que todos sabem que a concepção liberal privatiza tudo, inclusive os conflitos. Ora, os conflitos são sociais:

Os conflitos são vistos como conflitos entre indivíduos entre si, entre indivíduos e sociedade, entre indivíduos e Estado. Não é sem moti-vos que a problemática do crime e da punição tenha ocupado tanta atenção dos sociólogos liberais. No registro liberal, essa problemática diz respeito ao confronto entre a consciência coletiva (consciência de um imperativo categórico, a sanção) e a consciência individual, materializada em torno da responsabilidade penal do criminoso. Dificilmente fatos contemporâneos como racismo, genocídio, exclu-são, narcotráfico configuram modalidades de conflito e litigiosidade enquadráveis nos estreitos limites ditados pela visão liberal. Portanto, é preciso pensar esses fatos tendo por eixo não o indivíduo, porém coletivos (Idem, p. 34).

Acredita o autor que é preciso, por exemplo, retirar a criminalida-de do confinamento e problematizar a demanda por ordem do cidadão comum, as autoridades, na mídia e nos debates acadêmicos: “Nas acres

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249Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

crônicas da insegurança e do medo do crime, nos fatos e acontecimentos

que sugerem a fragilidade do Estado em velar pela segurança dos cidadãos

e proteger-lhes os bens, materiais e simbólicos”. Nos cenários e horizon-

tes reveladores dos confrontos entre defensores e opositores dos direitos

humanos, mesmo para aqueles encarcerados, julgados e condenados pela

justiça criminal, tudo converge para um único e mesmo propósito: o de

punir mais, com maior eficiência e maior exemplaridade. Trata-se de pro-

pósito que se espelha em não poucas demandas: maior policiamento nas

ruas e nos locais de concentração populacional, sobretudo as habitações

populares consideradas celeiro do crime e de criminosos; polícia menos

tolerante para com os criminosos; justiça criminal menos condescendente

com os “direitos” dos bandidos e mais rigorosa na distribuição de sanções

penais; recolhimento de todos os condenados às prisões, que devem se

transformar em meios exemplares de punição e disciplina. Com nuan-

ças entre os mais radicais, que advogam pena de morte e imposição de

castigos físicos aos delinquentes, e os mais “liberais”, que pretendem

o aperfeiçoamento dos instrumentos legais de contenção repressiva dos

crimes, todos gravitam em torno de um imperativo categórico: o obsessivo

desejo de punir (Wieviorka, 1997).

Wieviorka conclui sua reflexão lançando uma hipótese explicativa

para uma questão anteriormente formulada: pode ser que a obsessão

punitiva de nossa sociedade contemporânea, materializada nas chama-

das “demandas por ordem social”, explique-se justamente pelo modo

de funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa e

resistente superestrutura de prevenção e segurança (por meio da prolife-

ração das sociedades de seguro e dos mecanismos de vigilância privada)

para encarar os medos, perigos e ameaças que tornam a vida humana,

social e intersubjetiva, absolutamente incerta. Daí porque, no bojo de

fenômenos aparentemente tão diferentes e distanciados no tempo e no

espaço, tais como as catástrofes, as epidemias, os acidentes, o desem-

prego crônico, extremismos políticos, os crimes, esteja num mesmo e

único problema: uma profunda crise de racionalidade que atravessa a

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sociedade contemporânea de alto a baixo e que coloca sob suspeição

todas as apostas nas virtudes do progresso técnico, da modernização e

do bem-estar proporcionado pela sociedade industrial (p. 38).

Já Waquant, ao se referir ao pensamento liberal e suas propostas

de resolver a violência, é mais radical:

A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende

remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos

Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada gene-

ralizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto

do Primeiro como do Segundo Mundo. Ela reafirma a onipotência

do Leviatã no domínio restrito da manutenção da ordem pública –

simbolizada pela luta contra a delinqüência de rua – no momento em

que este afirma-se e verifica-se incapaz de conter a decomposição

do trabalho assa lariado e de refrear a hipermobilidade do capital, as

quais, capturando-a como tenazes, desestabilizam a sociedade inteira.

E isso não é uma simples coincidência: é justamente porque as elites

do Estado, tendo se convertido à ideologia do mercado-total vinda dos

Estados Unidos, diminuem suas prerrogativas na frente econômica

e social que é preciso aumentar e reforçar suas missões em matéria

de “segurança”, subitamente relegada à mera dimensão criminal. No

entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e

mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos

por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida

e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de

amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indi-

víduo no limiar do novo século (2001).

Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria

e de seus correlatos – ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos

valores de justiça social e de solidariedade e seu tratamento penal – que

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251Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

visa às parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle.17

Na verdade, embora as políticas sociais atenuem as ansiedades sociais elas continuam a provocar situações de cultura de violência. Destacamos as ideias que permeiam as conclusões de Waquant sobre esta questão: mais estado policial e menos estado econômico e social; Leviatã para a ordem pública e incapaz de conter a decomposição do trabalho assalariado frear a hipermobilidade do capital; conversão do Estado à ideologia-mercado vindo do EUA; relegam a segurança à dimen-são criminal; é mais perversa em países com instituições democráticas fracas; pânico orquestrado das máquinas midiáticas: propagam o crime e o medo do crime; violência criminal como flagelo nas grandes cidades; difusão de armas de fogo; economia estruturada da droga ligada ao tráfico internacional; falta de rede de proteção social; capitalismo de pilhagem de rua; realização dos códigos de honra masculino; falta de efeito da re-

17 Waquant destaca o avanço da cultura de punição para diversos países nos últimos tem-pos: “um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de “globalização”), e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industria-lização, a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades. Assim, a partir de 1989, a morte violenta é a principal causa de mortalidade no país, com o índice de homicídios no Rio de Janeiro, em São Paulo e Recife atingindo 40 para cada 100.000 habitantes, ao passo que o índice nacional supera 20 para cada 100.000 (ou seja, duas vezes o índice norte-americano do início dos anos 90 e 20 vezes o nível dos países da Europa ocidental). A difusão das armas de fogo e o desenvolvimento fulminante de uma economia estruturada da droga ligada ao tráfico internacional, que mistura o crime organizado e a polícia, acabaram por propagar o crime e o medo do crime por toda a parte no espaço público. Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do subemprego crônicos continuará a buscar no “capitalismo de pilhagem” da rua (como diria Max Weber) os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da miséria no cotidiano. O crescimento espetacular da repressão policial nesses últimos anos permaneceu sem efeito, pois a repressão não tem influência alguma sobre os motores dessa criminalidade que visa criar uma economia pela predação ali onde a economia oficial não existe ou não existe mais” (Waquant, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001).

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pressão policial; economia de predação onde a economia oficial não de instalou; no Brasil a insegurança é agravada pela intervenção das forças da ordem: clima de terror para as classes populares; banalização da bru-talidade, desconfiam da lei e do poder legal; tornam visível o problema da dominação racial pela: hierarquia de classes e estratificação etnorracial na aplicação das penas e na vigilância; soluções privadas para o problema da insegurança; falta de Estado de Direito (como tal). No Brasil ainda restam resquícios da ditadura militar na organização do Estado: autori-tarismo e bandidagem.

Estaríamos, ao menos na década de 80, analisada pelo autor, entrando mais profundamente neste tratamento penal para responder às desordens sociais resultantes da: desregulamentação da economia; dessocialização do trabalho assalariado, pauperização relativa e absoluta do proletariado com aparelho policial e judiciário. Tratamento social é o contrário: aumento do Estado social com instituições públicas responden-do as políticas penalógicas; combate as causas da criminalização; melhores condições de vida ao fazer valer os direitos fundamentais: alimento, habitação, saúde, educação e trabalho. Não há proporção comparável entre nível de crime e nível de encarceramento.

Especialmente nos Estados Unidos (reflexo do chamado capita-lismo desenvolvido), na década de 80 cresceu verticalmente a população carcerária, como consequência da “flexibilização” (que, no fundo, signifi-ca a diminuição dos gastos sociais; erradicação do sindicatos; diminuição nas regras de contratação e de demissão; trabalho assalariado flexível (fim do emprego) e trabalho para os beneficiários de ajuda social); aumento da concentração da riqueza a privilegiados; desigualdade dos salários; aumento da rede policial e penal: alcança amplamente pequenos de-linquentes, não perigosos e violentos, mas sim subproletariados negros que buscam a sobrevivência no mercado informal, drogas e perturbam a ordem pública (de cada 10 presos 6 são negros ou latinos, pobres e desempregados); aumento de prisões e gastos com técnica de combate e de repressão (mais gastos do que com programas de ajuda aos pobres)...

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253Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

O autor revela que nos EUA as técnicas para reduzir o custo prisional incide sobre repartir com o setor privado: mercado da carceragem. Teriam quatro técnicas: diminuir o nível de vida nas prisões; inovação tecnológi-ca; transferir os custos para os familiares dos presos e introduzir trabalho desqualificado dentro das prisões (Waquant, 2001).

Para Tavares dos Santos o aumento dos processos estruturais de exclusão social pode vir a gerar a expansão das práticas de violência como norma social particular, vigente em vários grupos sociais enquanto estra-tégia de resolução de conflitos, ou meio de aquisição de bens materiais e de obtenção de prestígio social, significados esses presentes em múltiplas dimensões da violência social e política contemporânea. Aumentou a violência criminal urbana, seja pelas ações do crime organizado, em es-pecial o tráfico de drogas e o comércio ilegal de armas, seja pela difusão do uso de armas de fogo, ambos provocando uma maior letalidade nos atos delitivos. O autor interpreta como uma violência de pobres contra pobres., pela qual se identifica uma vitimização dos pobres. Ao mesmo tempo vem ocorrendo uma alteração nos autores de delitos, ou seja, nos grupos ligados a práticas ilegais, em especial o roubo, que apresentam como aspecto notório a contingência e a espontaneidade, em suma, a desprofissionalização das práticas delitivas (Tavares dos Santos, 1999).

Na sociedade brasileira houve a disseminação da violência cri-minal, com uma mudança das formas de delitos e de violência: a) o crescimento da delinquência urbana, em especial dos crimes contra o patrimônio (roubo, extorsão mediante sequestro) e de homicídios dolosos (voluntários); b) a emergência da criminalidade organizada, em particular em torno do tráfico internacional de drogas que modifica os modelos e perfis convencionais da delinquência urbana e propõe problemas novos para o Direito Penal e para o funcionamento da Justiça Criminal; c) graves violações de direitos humanos que comprometem a consolidação da ordem política e democrática; d) a explosão de conflitos nas relações intersubjetivas, mais propriamente conflitos de vizinhança que tendem a convergir para desfechos fatais (Adorno, 1998).

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Partindo da concepção de que a violência é um fenômeno social historicamente construído, Wieviorka argumenta que ela deve ser tratada como tal, o que exige novas estratégias capazes de mapear o seu signi-ficado nos tempos globalizados para a partir deste entendimento traçar planos de ação capazes de combatê-la no plano social, e não no particular. De acordo com Wieviorka (1997, p. 25), “A tarefa de uma Sociologia da Violência é mostrar as mediações ausentes, os sistemas de relações cuja falta ou enfraquecimento criam o espaço da violência”.

Sérgio Adorno argumenta que apesar de presenciarmos novos tempos, as reivindicações acerca da violência são as mesmas do tempo da Revolução Francesa. O estudo deste autor sobre a obra Law and Order (1985), de Dahrendorf, aponta para as reflexões feitas no sentido de rela-cionar o aumento da violência com a dissolução da família, a privatização dos conflitos sociais, a delinquência juvenil aumentada pelo suposto afrouxamento das punições e a institucionalização dos conflitos sociais. Isto leva Dahrendorf a concluir que uma maior eficiência dos mecanismos de controle social e repressão, aliada ao aumento de oportunidades de inserção dos jovens no mundo do trabalho e retomada do respeito destes pela autoridade, são a única forma de modificar a situação. Ou seja, um retorno das formas anteriores de controle social mediante a conjunção entre moral e repressão seria a melhor solução para lidar com as novas formas de violência, indo na contramão dos apontamentos de Sérgio Adorno. As reivindicações e apontamentos de Dahrendorf em 1985 são semelhantes às de Gabriel Tarde em 1895. De acordo com Tarde:

Suponham, ainda, um Estado livre de todas as suas famílias de malfeitores, de todos os seus vagabundos, de todos os seus neófitos e seminaristas do delito. Que não me digam que isso é impossível... Bastaria, creio eu, uma reforma radical, enérgica, de nossos sistemas judiciário e penitenciário (Filho; Machado, 2005, p. 11).

Guardadas as devidas especificidades das duas épocas, ambas de convulsão e intensas mudanças nas relações sociais, isto demonstra uma tendência reacionária de determinados setores intelectuais. Estes

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255Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

setores revelam a dissolução dos antigos padrões e instituições sociais

como causadores da violência, clamando por um retorno dos mesmos

como forma de manter a ordem. Isto esconde o fato de que nas situações

anteriores a repressão (que agora aparece como solução) não se mostrou

eficaz em fazer com que a violência fosse erradicada, sendo esta rela-

ção de causalidade utilizada como artifício por setores conservadores

da sociedade. Adorno desconstrói sistematicamente as afirmações de

Dahrendorf neste sentido, contestando inclusive as próprias pesquisas

que apresentam números de aumento da violência e delinqüência. Ador-

no (1998, p. 30) afirma que “... o crescimento dos crimes pode ser ou não

acompanhado de um crescimento de sanções, por mais desejável que

seja a correspondência entre ambos do ponto de vista social e político”.

Isso não significa que a repressão ao crime deve deixar de existir, mas

sim que deve deixar de ser o foco principal da luta pela erradicação do

crime. A própria criminologia neste ponto tem o papel de reforçar esta

visão ao tratar apenas do crime e da violência e não do contexto social em

que estes se desenvolvem, o que mostra uma miopia acerca da questão,

segundo Adorno (p.33) um foco no “obsessivo direito de punir”.

Adorno refere-se à máfia como exemplo para contextualizar a nova

realidade sob a qual o crime e a violência apresentam-se na sociedade

atual, por meio de organizações criadas em determinados contextos locais

específicos que dificultam sua expansão, mas facilitam a formação de

redes de solidariedade criminosa. Estas redes apresentam em comum o

fato de que sempre contam com a corrupção estatal para estabelecer e

manter sua rede de negócios e influências. Este estudo funciona como

exemplo de delinquência específica dos tempos atuais, não somente pela

máfia ser precursora das organizações criminosas atuais, mas também por

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256E n i o W a l d i r d a S i l v a

demonstrar que o crime e a violência não podem ser pensados em termos

liberais, individualmente, mas como fenômeno social, estrutural, deven-

do ser eliminado mediante sua estrutura de geração e reprodução.18

Outra tendência sociológica tenta explicar a violência como fe-

nômeno social, provocada por alguma conturbação da ordem, seja pela

opressão pelos mais fortes, pela rebelião dos oprimidos, pela falência

da ordem social, pela omissão do Estado. Nesse enfoque, a chamada

“natureza humana” se manifestaria ao sabor das circunstâncias, surgin-

do a violência como decorrência da miséria e da desigualdade sociais

(Minayo; Souza, 1985).

Segundo essa ideia, um baixo nível de consciência, de liberdade,

e responsabilidade acaba acarretando um sentimento de insatisfação

permanente que se expressa em confrontação, oposição, alienação e

condutas violentas.

Essas teorias sociológicas tendem a definir as condutas violentas

como atitudes de sobrevivência de determinadas pessoas ou grupos vi-

timados pelas contradições sociais. As desigualdades sociais, o contraste

gritante entre os extremos socioeconômicos, as crises de desemprego, a

cegueira e insensibilidade social dos privilegiados, enfim, a desigualdade

na distribuição dos prazeres que essa vida pode oferecer levariam os

pobres a se rebelarem e agredirem os ricos (ou não pobres).

A violência como revolta dos despossuídos reflete uma explosão

colérica da fome de comida e de prazeres, o rancor pela desigualdade

de privilégios diante da igualdade cromossômica. Nesse caso, a violên-

cia teria sua origem no exterior do sujeito sob a forma de indignação e,

uma vez internalizada na consciência, explodiria em agressão contra os

demais.

18 Sousa, Rodrigo Miguel. Expressões usadas pelo trabalho escolar apresentado em sala de aula no Componente Curricular Sociologia da Violência – Curso de Sociologia. 2009/1.

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257Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Ao reduzir violência social à imagem do crime e da delinquên-cia, a tendência sociológica encara a população pobre como criminosa em potencial. Essa visão, porém, é acanhada, pois não leva em conta a violência política, do Estado e da própria cultura. Fazer um aposentado viver com um salário mínimo é igualmente uma forma de violência estatal, por exemplo.

Desigualdade social e segregação urbana produzem uma exclusão social, marcada pelo desemprego, pela precarização do trabalho, salários insuficientes e por deficiências do sistema educacional.

As maiores vítimas desta violência, mas também a maior proporção de autores de atos violentos encontra-se entre os homens jovens: em todo o país, o alvo preferencial dessas mortes compreende adolescentes e jovens adultos masculinos, em especial procedentes das chamadas classes populares urbanas, tendência que vem sendo observada em inú-meros estudos sobre mortalidade por causas violentas. (...) Aumentou a proporção de adolescentes representados na criminalidade violenta. No primeiro período era menor a proporção de crimes violentos cometidos pelos adolescentes ante a proporção de crimes violentos cometidos pela população em geral. No segundo período, esta tendência se inverte (Adorno). Muitas vezes os atos de violência representam estratégias de sobrevivência. dos jovens. A chamada violência juvenil atual pode ser vista como uma das estratégias de reprodução ou de sobrevivência de setores excluídos em termos educativos e laborais, ou seja, da existência que se supõe outorgue identidade aos jovens. Acentua-se a situação de vulnerabilidade dos jovens quando aqueles em fase de escolarização não apenas não estão na escola como tampouco estão inseridos no mercado de trabalho (Tavares dos Santos, 2002).

Estudos sobre violência urbana revelam que, na vida cotidiana, realiza-se uma condensação entre mal estar da pós-modernidade, a vio-lência simbólica, sentimento de insegurança e sentimentos de medo. A violência apresenta, além dos custos de dor e sofrimento humano, um componente de mal-estar psicológico derivado do medo que inspira e

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um impacto econômico, pelas vítimas e custos reais, e também pelos

gastos e perdas que a prevenção e o medo obrigam. Estamos vivendo

em um horizonte de representações sociais da violência para cuja dis-

seminação contribuem os meios de comunicação de massa, produzindo

a dramatização da violência e difundindo a espetacularização do crime

violento, enquanto um efeito da violência simbólica exercida pelo campo

jornalístico. A violência passa a ser consumida num movimento dinâmico

em que o consumo participa também do processo de sua produção, ainda

que como representação (Porto, 2006).

O referencial teórico da biopsicossocial não atribui à violência

um caráter exclusivamente biológico, nem psicológico ou social, mas

sim, uma combinação de todos com peculiaridades próprias de cada era,

cultura ou circunstância.

Há uma complementação dinâmica entre o biológico, o psicológico

e o social, de sorte que toda atividade humana acaba repercutindo nas

relações sociais, culturais e emocionais, afetando tanto a constituição

biológica quanto a consciência humana.

O psicólogo alemão Mitscherlich (1971) crê que qualquer mo-

dificação nas relações sociais só será possível se houver mudanças na

constituição psíquica do ser humano, tendo como ponto central a recons-

trução de sentimentos e emoções. Essa afirmativa, entretanto, merece

uma reflexão maior, pois, às vezes, chegamos a pensar exatamente o

contrário, ou seja, que as mudanças nas relações sociais acabaram atro-

pelando a constituição psíquica humana, que sucumbiu diante de novas

e contundentes exigências de adaptação. Com isso, houve um visível

crescimento das tendências antissociais, do isolamento, do medo coletivo

e individual, da intolerância extremada e da alienação dos indivíduos

(citado por Minayo, 1994).

A violência coletiva também é uma ramificação da ansiedade

e do conflito pessoal. Quando uma pessoa se interpõe no caminho da

satisfação ou dos desejos da outra, surgem os choques, no sentido de

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259Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

uma das partes eliminar os obstáculos levantados pela outra. A luta,

então, torna-se pessoal. Cada um dos contendores tem a consciência de

que, para alcançar os seus propósitos, precisa fazer com que o outro não

atinja os seus. Aí surge a hostilidade, que comumente reforça a energia

necessária aos esforços de suplantação. A esse tipo de luta, consciente e

pessoal, dá-se o nome de conflito. Pois uma contenda entre indivíduos

ou grupos, em que cada qual luta por uma solução que exclui a solução

desejada pelo adversário.

A violência é um dos eternos problemas da teoria social e da

prática política e relacional da humanidade. Não se conhece nenhuma

sociedade na qual a violência não tenha estado presente. Pelo contrá-

rio, a dialética do desenvolvimento social traz à tona os problemas mais

vitais e angustiantes do ser humano, levando sociólogos como Engels,

Habermas, Marx, Weber, Durkheim e outros a afirmar que “a história é,

talvez, a mais cruel das deusas que arrasta sua carruagem triunfal sobre

montões de cadáveres, tanto durante as guerras como no período de

desenvolvimento pacífico” (Engels, 1986, p. 187).

Desde tempos imemoriais existe uma preocupação do ser humano

em entender a essência do fenômeno da violência, sua natureza, suas

origens e meios apropriados, a fim de amenizá-la, preveni-la e eliminá-la

da convivência social. O nível de conhecimento atingido, seja no âmbi-

to filosófico, seja no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, permite

inferir, no entanto, alguns elementos consensuais sobre o tema e, ao

mesmo tempo, compreender o quanto este é controverso, em quase

todos os seus aspectos.

Hoje é praticamente unânime a ideia de que a violência não faz

parte da natureza humana e que não tem raízes biológicas. Trata-se de

um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, mas seu espaço de

criação e desenvolvimento é a vida em sociedade. Assim, para entendê-la,

há que se apelar para a especificidade histórica. Daí se conclui que na

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260E n i o W a l d i r d a S i l v a

configuração da violência se cruzam problemas da política, da economia, da moral, do Direito, da Psicologia, das relações humanas e institucionais e do plano individual.

Na sua dialética de interioridade/exterioridade a violência integra não só a racionalidade da História, mas a origem da própria consciência, por isso mesmo não podendo ser tratada de forma fatalista, é sempre um caminho possível em contraposição à tolerância, ao diálogo, ao reco-nhecimento e à civilização, como destacam Hegel, Freud, Habermas, entre outros.

Na sua complexidade, a violência deve ser analisada no seu con-texto (em rede), como adverte Domenach (1981, p. 40):

Suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por ideologias ou instituições de aparência respeitável. A violência dos indivíduos e grupos tem que ser relacionada com a do Estado, a dos conflitos com a ordem.

Segundo Domenach (1981), se a violência faz parte da própria natureza humana, ela aparece de forma peculiar e captável nas suas expressões mais visíveis em sociedades específicas, trazendo para o de-bate público questões fundamentais, em formas particulares, e questões sociais, vivenciadas individualmente, uma vez que somos, enquanto cidadãos, ao mesmo tempo sujeitos e objetos deste fenômeno.

Em termos tradicionais, a violência pode ser considerada uma força prejudicial física ou psicológica aplicada contra uma pessoa ou um grupo de pessoas. Em termos genéricos, a violência mantém contornos um tanto imprecisos com a intimidação e a agressividade dirigida ao outro. A espi-nha dorsal de todas as formas de violência é o medo que se desencadeia na pessoa que a ela está submetida. O medo produz uma mudança no funcionamento orgânico, fazendo com que haja uma transformação no comportamento e na personalidade da pessoa. A força física é o estímulo mais simples, podendo chegar, nos casos extremos, à tortura e à morte. O

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261Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

seu objetivo é produzir um sentimento de insegurança e fortes respostas emocionais de submissão. Nesse processo, a pessoa submetida às formas mais diversas de violência torna-se suscetível a responder ao agressor conforme o seu desejo, anulando-se, muitas vezes, em sua própria sub-jetividade. Não é raro o agredido se ver coagido a mudar o seu ponto de vista e a sua própria maneira de pensar, chegando a manifestar uma atitude de empatia e de aceitação do domínio sobre si (Couto, 2005).

Em termos jurídicos atuais (Código Penal Brasileiro), a violência pode ser definida como um constrangimento moral exercido sobre alguém mediante ameaças ou como ofensa à integridade corporal e à saúde de outrem, podendo disso decorrer lesões corporais de maior ou de menor gravidade. Presume-se a violência se a vítima não pode oferecer resistência (artigo 224c). Nesse sentido, não se percebe, muito bem, como distingui-la da agressividade exercida sobre alguém. Em termos etimológicos, a palavra agressividade é definida como a qualidade do agressivo (século 18), que vem do latim agreste, que tem o sentido de “cousa de villão”. Com o tempo, a palavra foi sendo identificada com um comportamento rude (campesino) com o outro, chegando atualmente a ser definida como relacionada a condutas hostis e destrutivas (Sousa, 1996).

Para a Psicanálise freudiana, a agressividade é tomada como a: “Tendência ou conjunto de tendências que se atualizam em compor-tamentos reais ou fantasmáticos, estes visando prejudicar a outrem, destruí-lo, constrangê-lo, humilhá-lo, etc.” (Laplanche; Pontalis, 1992, vb. agressividade, p. 37).

Para estes autores, além das ações motoras violentas e destruidoras, os comportamentos agressivos podem se apresentar de outras formas, acompanhando as relações cotidianas, como a recusa a um auxílio de-mandado ou o uso da ironia, por exemplo. A Psicanálise atribuiu uma importância crescente à agressividade, culminando com a tentativa de relacioná-la à pulsão de morte, tomando-a como uma força desorganizado-ra e fragmentante. Esta, todavia, não é a única interpretação do termo.

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262E n i o W a l d i r d a S i l v a

Arendt (1974), por sua vez, avança a discussão quando desvincula

estrutura de poder e violência. Poder e violência são elementos que

devem ser distinguidos. Poder não é violência nem dominação. É o

que se poderia chamar de “poder democrático”, isto é, poder enquanto

delegação de um grupo para que fins comuns sejam alcançados. Para

Arendt (1974, p. 36),

o poder não é propriedade de um indivíduo, mas se sustenta num grupo ou comunidade, somente existindo enquanto a coesão desse grupo permanecer. Assim, o poder corresponde à ação humana em que seu exercício corresponde àquilo que lhe é demandado pelo grupo. O poder aparece onde quer que as pessoas se unam e ajam em consonância de objetivos. Já a violência caracteriza-se por seu caráter instrumental, aparecendo como último recurso para conservar intacta a estrutura de poder frente a contestações. Se o poder é a essência de todo governo, o uso da violência somente eclodirá quando esse governo procurar manter-se apesar de não ser mais capaz de respon-der à legitimidade que lhe foi conferida pelo grupo. Dessa maneira, violência e poder são considerados em oposição, pois um só existe na ausência do outro, ou seja, a violência só existe na ausência do poder, e se existe poder não tem sentido a violência.

Arendt (1974) propõe desvincular a violência da ideia de algo ine-

rente ao mal e ralacioná-la com o seu oposto, o poder. Considera ainda

importante desvincular ambos da condição de fenômenos naturais, como

manifestações do processo vital, e inseri-los no âmbito da política, dos

negócios humanos e, acrescento, das relações intersubjetivas. Afirma

ainda que a redução do poder seja um convite à violência, sendo difícil

àquele que vê o seu poder diminuir não recorrer à violência como maneira

de retê-lo, seja nas relações sociais, seja nas relações intersubjetivas.

Tomando um ponto de vista semelhante ao de Arendt (1974),

Chauí (1985) vai chamar a atenção para as duas formas pelas quais a vio-

lência contra as mulheres nas relações de gênero se apresenta: “percepção

hierarquizada das desigualdades impostas às mulheres com a finalidade

de domínio, exploração e opressão” e “identificação à coisa”, tomando a

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263Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

mulher não em sua dignidade humana, mas como propriedade pessoal.

Nesse sentido, o discurso masculino coisifica a mulher oprimindo-a,

privando-a de seus desejos, de suas opiniões e de sua fala.

A violência é entendida por Chauí (1985) como diferente da relação

de força, tal como exposto por Arendt (1974), porque, na iminência da

perda do poder, a força implica desejo de aniquilar, de destruir o outro,

desejando a sua supressão ou a sua morte. A força relaciona-se com um

desejo de mando e de opressão, podendo ser exercida por uma classe

sobre a outra, por um grupo social sobre o outro ou por uma pessoa sobre

a outra. Já na violência, há o desejo de preservação do outro, seja ele um

grupo ou uma pessoa, mas enquanto anulado e submetido à vontade do

dominador. A violência deseja a sujeição consentida.

Segundo Chauí (1985, p. 35),

a violência é a ação que trata o ser humano não como sujeito, mas

como objeto, culminando com a violência perfeita, isto é, a interiorização

da vontade e da ação alheia. Com isso, substitui-se a própria vontade

pela vontade do outro através de uma ação coercitiva proveniente da

parte dominante.

Dessa maneira, a autonomia não pode ser entendida apenas

como a possibilidade de fazer escolhas ou de fazer o que se quer, pois é

possível escolher e fazer o que o outro deseja que se faça. É isso o que

caracteriza a violência perfeita, a completa interiorização da vontade e da

ação alheia na submissão ao desejo do outro, de modo que a perda da

autonomia não seja percebida nem reconhecida. As ações daí decorrentes

serão consideradas provenientes de uma opção voluntária, embora, na

verdade, não se trate disso. Dito de outra forma, a violência perfeita é

aquela que resulta na alienação, na identificação da vontade e da ação

de alguém com a vontade e a ação de quem a domina. A perda da au-

tonomia se submerge na heteronímia. Chauí (1985) utiliza esse termo

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264E n i o W a l d i r d a S i l v a

para indicar a submissão da mulher ao outro e até mesmo a constituição

do seu desejo enquanto dependente do desejo de outro, sem que ela

se dê conta disso.

Para esta autora, a liberdade não deve ser considerada a escolha

voluntária de uma possibilidade entre as diversas que se apresentam ao

sujeito, mas enquanto a capacidade de autodeterminação para pensar,

querer, sentir e agir. Aqui, a autodeterminação é considerada no sentido

do exercício da autonomia. Essa autonomia não se opõe à necessidade

natural ou social, mas trabalha com ela, num processo de construção e de

constituição de si mesmo na autonomia, numa relação de independência

das determinações de outro sobre aquilo que somos e que fazemos.

O que somos e o que fazemos pode ter a capacidade aumentada

e diminuída segundo a nossa capacidade de nos submetermos ou não à

força e à violência que contra nós se encontram dirigidas. A liberdade

proviria não da vontade para acatar ou não a determinação do outro, mas

da capacidade de reflexão das experiências vividas

A violência aparece no cenário mundial como um problema urbano

que alimenta e ecoa nos debates internacionais, que irrompe num con-

tinuum que parece não ter fim, invadindo o cotidiano sob holofotes que

emolduram atores e lugares que se sucedem velozmente, desvendando

“casos” que, logo em seguida, recaem na escuridão dos bastidores. Ela

é tratada, da mesma forma que a corrupção, como se fosse um vírus ou

bactéria altamente contagiosa, como uma endemia ou epidemia, como

planta que estende suas raízes, seus brotos, suas ramificações, com ímpeto

sempre renovado, gerando a sensação de ter “tomado conta do mundo”.

A emergência da violência (ou da corrupção) como um problema social

revela a disposição de um confronto. Quem luta e quais são os objetos

que estão sendo disputados? Quais são as configurações de poder que

emolduram esse confronto?

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265Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Este enfrentamento parece ter um território bem demarcado: as

periferias urbanas. Parece contar com um alvo central: jovens pobres,

imigrantes de primeira ou de segunda geração. E aponta para a disputa

sobre as formas de controle social, em sociedades em transformação. Um

ponto comum na construção contemporânea sobre o que é “violência” – e,

portanto, sobre qual será o objeto prioritário das políticas públicas – é a sua

associação quase exclusiva com a violência da criminalidade urbana.

Há uma interação muito forte entre a violência representada nos

meios de comunicação de massa e a vida real. A mídia pode contribuir

para consolidar uma cultura agressiva, ao mesmo tempo em que pessoas

já agressivas a utilizam para a reafirmação de suas crenças e atitudes, as

quais, por sua vez, são reforçadas pelo conteúdo da programação divul-

gada. Essa interação confirma-se de maneira mais marcante em relação

a processos de longo prazo.

A essa altura do estudo faz-se importante apresentar algumas cor-

relações entre a violência na mídia e na vida “real”. Não se pode supor

que exista um efeito unidirecional, em âmbito global, tampouco testá-lo

empiricamente. O estudo concentra-se no papel da mídia no âmbito da

complexa cultura da violência, paralelamente a outras influências.

Groebel (1997) destaca o relatório da pesquisa da Unesco. Na

conclusão deste relatório são apresentados os resultados do estudo global

sobre violência nos meios de comunicação de massa, entre 1996 e 1997. A

televisão, em especial, tem ampla difusão junto a maioria da população,

constituindo-se no principal veículo da ideologia, expressão privilegiada

da violência simbólica. É a ideologia que sustenta a hegemonia da classe

dominante: a burguesia. Privilegiei a análise da violência simbólica que

é orquestrada pela indústria cultural para gerir a construção do “tipo psi-

cológico ordinário” (Costa, 1986), isto é, aquela forma de individuação e

de vínculos sociais que mantêm o status quo. Os modelos identificatórios

são construídos e difundidos pela mídia para a manipulação/padronização

dos indivíduos, o que facilita manter a todos sob controle social.

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A televisão, por exemplo, tem como função implícita a formação de

públicos para o mercado, e faz isso de maneira mais eficiente ao reduzir

o discurso a um denominador comum, o mais baixo possível, apelativo

e criador de seu público cativo, ou seja, cria o consumidor e oferece o

produto para este consumir, fazendo a realimentação dos mesmos sonhos,

partilhando o mesmo universo, gostos, desejos e esperanças.

Falsifica cotidianos e de tantos atos repetidos que promove in-

cha o que se vê e se ouve e garante um grau zero dos sentidos, como

se a televisão quisesse provar que a vida é banal como seus programas

(especialmente os chamados reality shows). Com o tempo o público se

identifica com o que vê e já não consegue distinguir o que é imaginário

e real: “aceito tudo como verdade, caso contrário não me divirto”. Esse é

uma espécie de pacto simbólico, como se a TV dissesse que dá ao público

um programa parecido com as expectativas culturais que ele tem e este

fica ligado nela, e na medida em que o público entende os programas

sem esforço, diverte-se, torna-se cúmplice de tudo aquilo que a televisão

oferece. Embora esta cumplicidade não aconteça por imposição, ela se dá

pelo fato de o público fazer parte dela e não como vítima, pois ele tem

o livre-arbítrio de ligar e desligar a TV. Mesmo em momentos em que a

televisão mostra o lixo, os feios, os disformes, os miseráveis, há aí um au-

torreconhecimento de um determinado público e uma diferenciação por

parte dos outros, garantindo assim o equilíbrio e o preconceito. É como

um meio de hierarquizar as diferenças de classe e preferências sociais.

Hoje a TV, em termos gerais, cultua a estética do grotesco notabilizado.

O povo torna-se apenas em público (Silva, 2010).

As relações violentas que caracterizam a vida em sociedade atuali-

zam-se de forma disfarçada por meio da poderosa tecnologia da indústria

cultural. Exprimem o disfarce cínico da violência que penetra profunda-

mente no âmago da vida subjetiva e de relações dos indivíduos. Homens,

mulheres e crianças, em diferentes partes do mundo, são empurrados para

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267Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

a fragilização no estado de desamparo, sem conseguirem se organizar em

ações de sujeitos participantes para a constituição de um poder político

verdadeiramente protetor e voltado para o bem de todos.

Nesse contexto da vida dos indivíduos, a violência social se

configura, preferencialmente, como exercício de manipulação político-

ideológica e de opressão/conformação por meio de diferentes estratégias

e instrumentos de ameaças, mais ou menos sutis. É, portanto, uma vio-

lência simbólica, a qual, segundo Costa (1986), se encarrega de capturar

o mundo interno dos sujeitos para substituí-lo pela internalização de

formas de ser, desejar, sentir, pensar e agir que interessam à manutenção

da sociedade.

A emergência de indivíduos autônomos é contida pela difusão

maciça de modelos identificatórios que promovem a estandardização das

pessoas, tornadas “máscaras mortuárias”. O mascaramento do real e a

imposição social de formas-de-ser-indivíduo – padronização – viabilizam

um controle social mais eficaz que não seria possível sob a permissão da

diferença e da diversidade. Esses modelos são difundidos, em especial,

pela mídia e, para melhor controle social, eles são cada vez mais comuns

a todos os indivíduos do planeta.

Outro estudo sobre a relação entre a violência e os meios de co-

municação é realizado por Porto (2006). A principal conclusão da autora

diz respeito à importância da não generalização de tal temática, ou seja,

de não incorrermos em análises equivocadas (como a de que os meios

de comunicação de massa são os únicos responsáveis pela violência, ou,

pelo contrário, que não possuem nenhuma responsabilidade com relação

a essa temática), mas de entendermos os conceitos e as conexões entre

eles de forma relativa.

Isso porque a autora trabalha, ao longo de todo o texto (e aqui está

o aspecto mais importante do escrito), a violência como algo empírico,

que depende fundamentalmente da realidade social de cada território (e

não da teorização abstrata). Além disso, Porto (2006) considera a violência

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268E n i o W a l d i r d a S i l v a

uma forma de sociabilidade contemporânea, um fenômeno capaz de

reestruturar laços sociais em uma época de permanente fragmentação.

Já os meios de comunicação possuem funções paradoxais, no sentido

de que, ao mesmo tempo em que podem ser uma preciosa fonte de

informações, de indignação e provocadora de reações da população com

relação à violência, podem também (como comumente têm sido) ser um

veículo de sensacionalismo, que transforma a violência em um produto

bastante caro – e cada vez mais requisitado pelo próprio público.

Apesar disso, é visível o esforço da autora em deixar claro que os

meios de comunicação de massa aparecem apenas como mais um ator

que interage com a violência (não sendo o único responsável por ela, mas

tampouco podendo ser eximido de culpa). Por isso, acho que a grande

conclusão trazida pelo texto, e defendida também por mim, refere-se à

problemática da generalização ou relativização do tema violência, que, ao

mesmo tempo em que deve ser considerado de forma contextualizada,

levando em conta a realidade em que está inserido e os sujeitos nele

envolvidos, não pode mais deixar de ser uma referência (por menor que

ela seja) universal.

Isso significa que, embora um mesmo ato possa ser considerado

violência em um determinado local e em outro não, não se pode abrir

espaço para uma total relativização de uma questão tão importante, pois

corre-se o risco de tolerar as agressões mais absurdas aos direitos mais

fundamentais em nome da diferença e da multiplicidade de culturas.

Um dos problemas é a falta de meios de comunicação de massa

que permitam a bilateralidade (ou seja, uma resposta ao que se ouve),

pois, embora exista a Internet e sites de interação e trocas de opinião,

o acesso a estes meios ainda é bastante restrito (não é à toa que se fala

constantemente em inclusão digital). Assim, soa estranho que “todos te-

nham o direito a dar sua opinião”, mas apenas alguns possam ser ouvidos

(de forma unilateral).

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269Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

A “resposta” àquilo que é dito pelos meios de comunicação não

acontece, a meu ver, por dois motivos: primeiro, a educação (vista como

a oportunidade de desenvolver um pensamento próprio, crítico e in-

dependente), que falta para grande parte da população brasileira que,

diante do sensacionalismo e da apresentação de um ponto de vista como

“verdade natural”, sente-se (e de fato é) incapaz de responder ou mesmo

pensar algo que contrarie o que está sendo propagado pela grande mídia.

Segundo, a própria democracia, que permite que todos que quiserem – e

puderem, detalhe – podem ter seus meios de comunicação.

No Brasil, a mídia tem lado – e o grande problema é que ela está

contra o próprio Estado. A mídia brasileira, controlada por poucas famí-

lias, não está interessada em defender a inclusão social, a intervenção

do Estado em defesa da igualdade e da justiça, por meio de políticas

públicas que se preocupem em melhorar a coletividade.

Com relação à violência é mais fácil atribuir a culpa pelos crimes

ao próprio indivíduo delituoso do que fazer uma leitura histórica da

situação social. É isso que a mídia faz: busca a punição do sujeito (não a

solução do problema). Valoriza tudo fora de seu contexto, fazendo surgir

a técnica sem finalidade (ou com finalidade em si mesma), a especiali-

zação exagerada e a visão cada vez mais individualizada das coisas, com

perda da dimensão coletiva.

A violência é apresentada em casos específicos não como um pro-

blema social de todos, mas por intermédio de casos, nos quais sempre há

alguém a ser cruelmente punido. Há, no entanto, um abismo entre justiça

e vingança (tendo clareza de que o que se deve buscar é a primeira), e

o que se tem constatado é que as pessoas respondem à agressividade

venerada pela mídia com gritos de “quero mais”.

Quanto mais sangue, bombas, tiros, sequestros e homicídios,

melhor, mais interessante. Qualquer ação pública que busque compre-

ender as situações e tratar de forma humanizada os delinquentes (sim!

embora nos esqueçamos, os “bandidos” também são seres humanos!)

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270E n i o W a l d i r d a S i l v a

será indubitavelmente julgada pouco eficiente. Por quem? Pela mídia.

Bom mesmo, na opinião dela (e, por consequência, da maioria de nós)

é prender para o resto da vida e, se possível, eliminar aqueles que atra-

palham o “bom desenvolvimento” da nossa sociedade.

Não há dúvida de que as formas de violência efetuam a repres-

são dos indivíduos na sociedade e estão a serviço das injustiças e das

desigualdades sociais: o controle social dos indivíduos é exercido para a

sustentação de privilégios de classe de uma minoria que retém os bônus

da lucratividade na produção e no consumo das mercadorias.

Os demais indivíduos vivem sob a vigilância cada vez mais acirrada

da sociedade. A invasão da privacidade coloca-se como normatização

cínica, mostrando-se cada vez mais praticada por agências privadas que

recebem essa incumbência dos Estados. Essas ações de violência são

justificadas como exigência para uma suposta segurança dos membros

da sociedade e, embora venham sendo cada vez mais invasivas da vida

privada dos indivíduos, são também maciçamente difundidas sob formas

hilariantes, para não dizer debochadas, tais como “Sorria, você está sendo

filmado” (Caniato, 2008).

Indignação, como? Para onde pode levar essa inquietude que começa a vibrar dentro dele? Mas ele está só e todos ao seu redor estão apá-ticos, ignoram o que ocorre com eles mesmos. Não encontra quem mostre qualquer inquietude; ele chega a se achar anormal. Ninguém sinaliza sentir sequer a estranheza de uma “vida desperdiçada”, mergulhada na hostilidade e na amargura, e que queira fazer alguma coisa para mudar em nome de um apelo de vida. Talvez os outros nem saibam que isso existe; tão habituados estão à infidelidade e à traição. Mas ele continua inquieto!... E impotente! Se se revoltar, não encontrará quem lhe seja solidário e corre o risco de ser preso. O medo de ser punido se intensifica, pois certamente a polícia virá pegá-lo; os outros apáticos irão para a cadeia sem saber por que, pois estavam silenciosos e não estavam fazendo baderna alguma. Ninguém se mexe, todos estão acuados, assustados, até, e se afastam correndo daquele “maluco” que pensa. Ele sozinho nada conseguirá fazer, pois o grande aparato de violência e repressão já desconfiou de sua

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271Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

alegria e a polícia foi acionada pelos vizinhos de sua residência. Não,

não pode e não adianta mudar nada!... A perplexidade toma conta

dele novamente, pois sempre ouviu dizer que só Deus ou o destino

sabem dos caminhos para o homem...

Mas algo dentro dele já não está mais do mesmo jeito: ele começou

a pensar e a sentir-se com direitos?!!... Dentro dele floresce a vida que

não é entendida por quem o cerca; mas ele não se deixa enganar pela

mensagem do amor que começa a nutrir toda a sua vida... Mas ele é só

um... Se não quer ter a rejeição de todos ou ser punido terá de adiar o

imperativo de viver o “mundo da vida” e, afinal, o seu sonho fala disso.

Agora terá que desistir ou adiar porque está só... Milhares de milhões de

seres humanos vivem com fome, sem alimentos suficientes, medicinas,

roupas, sapatos, casas, em condições sub-humanas, sem os mínimos

conhecimentos e suficiente informação para compreender sua tragédia

e do mundo que vivem (Caniato, 2008).

Direito, mídia e Tecnologia na Sociedade Global

Segundo Habermas (1995), as mídias de massa e do entreteni-

mento fraudaram a essência da esfera pública, pois passaram a vincular

encenação dos poderes políticos autocráticos e os interesses comerciais

sobrepujaram os interesses públicos, manipulando a opinião pública,

impedindo discussões racionais.19

A razão pública mais elaborada não tem ressonância nesta midio-

logia de hoje. A fala de um intelectual na mídia soa como algo acima da

sociedade, embora muitas vezes choroso, excitado e imprevisível.

19 Ver Silva, Enio Waldir. Esfera pública, cidadania e gestão social. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2010.

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É já nesse período de incubação, quando o vírus da Revolução Fran-cesa se alastrou por toda a Europa, que se manifesta a constelação na qual o tipo do intelectual moderno encontrará o seu lugar. Ao influírem com argumentos retoricamente afiados na formação da opinião, os intelectuais dependem de uma esfera pública capaz de lhes servir de caixa de ressonância, alerta e informada. Necessitam de um público de orientação mais ou menos liberal e precisam confiar num Estado de Direito minimamente encaminhado pelo simples fato de apelarem a valores universalistas em meio ao litígio sobre verdades sufocadas ou direitos negados. Pertencem a um mundo no qual a política não se dissolve na atividade do Estado; seu mundo é uma cultura política da contradição, na qual as liberdades comunicativas dos cidadãos podem ser desencadeadas e mobilizadas.

É simples projetar o tipo ideal de intelectual que rastreia temas im-portantes, levanta teses fecundas e amplia o espectro dos argumentos pertinentes para melhorar o nível deplorável dos debates públicos. Por outro lado, eu não deveria sonegar aqui a ocupação mais querida dos intelectuais: eles adoram sintonizar-se com as queixas rituais sobre o declínio “do” intelectual. Confesso não estar inteiramente livre dessa tendência (Habermas, 1995).

Parece, para o autor, que falta entrar em cena intelectuais que, com suas opiniões, possam mobilizar públicos e pergunta-se: será que na nossa sociedade midiática não ocorre uma nova mudança estrutural da esfera pública, que faz mal à figura clássica do intelectual (a exemplo de Michel Foucault, Jacques Derrida e Pierre Bourdieu, os textos de intervenção de Erich Fried ou Günter Grass)?

O autor entende que a reorientação da comunicação, da imprensa e do jornalismo escrito para a televisão e a Internet conduziu a uma amplia-ção insuspeitada da esfera pública midiática e a uma condensação ímpar das redes de comunicação. Embora o intercâmbio seja mais intenso, os intelectuais parecem morrer sufocados diante do transbordamento desse elemento vivificador, como se ele lhes fosse administrado em overdose. A bênção parece transformar-se em maldição. As razões para isso me parecem ser uma informalização da esfera pública e uma indiferenciação dos correspondentes papéis.

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273Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Vejamos nas palavras do próprio autor:

A utilização da Internet simultaneamente ampliou e fragmentou os nexos de comunicação. Por isso a Internet produz por um lado um efeito subversivo em regimes que dispensam um tratamento autoritá-rio à esfera pública. Por outro lado, a interligação em redes horizontais e informalizadas de comunicação enfraquece, ao mesmo tempo, as conquistas das esferas públicas tradicionais, pois estas enfeixam no âmbito de comunidades políticas a atenção de um público anônimo e disperso para informações selecionadas, de modo que os cidadãos podem ao mesmo tempo se ocupar dos mesmos temas e contribuições criticamente filtrados.

O preço do aumento positivo do igualitarismo, com o qual a Internet nos brinda, é a descentralização dos acessos a contribuições não-redigidas. Nesse meio, as contribuições de intelectuais perdem a força necessária para formar um foco.

Não obstante, seria apressado afirmar que a revolução eletrônica destrói o palco para as aparições elitistas de intelectuais vaidosos, pois a televisão, essencialmente atuante no âmbito das esferas públicas estabelecidas nos Estados nacionais, apenas fez aumentar o espaço do palco da imprensa, das revistas e da literatura.

Ao mesmo tempo a televisão transformou o palco. Deve mostrar em imagens o que quer dizer, e acelerou o iconic turn, a virada da palavra para a imagem. Essa desvalorização relativa desloca também os pesos entre duas funções distintas da esfera pública.

Como a televisão é um meio que torna algo visível, confere celebri-dade no sentido de notoriedade aos que aparecem em público. Os atores sempre representam a si mesmos diante da câmera, indepen-dentemente da sua contribuição ao conteúdo do programa. Por isso o espectador se lembra em encontros fortuitos de ter visto o rosto do outro em algum momento passado.

Mesmo se o conteúdo remete a um evento discursivo, a televisão convida os participantes à representação de si mesmos, como podemos observar em muitos talk shows. O momento da auto-representação dos atores transforma inevitavelmente o público judicante – que, diante da tela, participa do debate sobre temas de interesse geral – também em um público assistente.

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Não se diga que esse traço não cai como uma luva na vaidade pato-lógica dos intelectuais; alguns se deixaram corromper pelo convite do meio à auto-representação, prejudicando assim a sua fama, pois o bom nome de um intelectual, se é que ele existe, não se baseia em primeiro lugar na celebridade ou notoriedade, mas em uma reputação, que o intelectual deve ter adquirido entre seus pares de profissão, seja como escritor ou como físico (de qualquer modo, em alguma especialidade), antes de poder fazer um uso público desse saber ou dessa reputação. Ao intervir num debate com argumentos, ele precisa se dirigir a um público não de assistentes ou espectadores, mas de oradores e destinatários potenciais, capazes de discutir uns com os outros. Para expressar isso à maneira de um “idealtipo” – segundo o sentido de Max Weber –, importa aqui a troca de razões, e não o enfeixamento encenado de olhares. Talvez isso explique porque as rodas de políticos, especialistas e jornalistas, que se formam em torno dessas moderadoras feéricas, não deixam nenhuma lacuna que deveria ser preenchida por um intelectual. Não sentimos sua falta, pois todos os outros já há muito tempo cumprem melhor o seu papel. A mistura de discurso e auto-representação conduz à indiferenciação e assimilação de papéis, que o intelectual, hoje démodé, outrora se via obrigado a manter separados. O intelectual não deveria usar a influência ganha com palavras como meio de conquista de poder. Não deveria, portanto, confundir “influência” com “poder”. Mas ainda hoje, nos talk shows, o que poderia distingui-lo dos políticos, que há muito tempo se servem do palco da televisão para uma concorrência intelectual em busca da ocupação de temas e conceitos influentes? (Habermas, 1995, p. 8).

Sobre esta mesma questão da opinião pública também escreve Pierre Bourdieu (2000), pois seria importante que os intelectuais tomas-sem consciência de que, em sua relação com a televisão, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e mulheres de todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana.

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275Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

Segundo Bourdieu, a construção deste contrapoder só pode ser feita com a cumplicidade e a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas.

Em um livro, Sobre a televisão (2000), ele abriu nova e polêmica frente de discussão ao estudar a cultura midiática e fazer uma crítica definitiva ao meio de comunicação mais controvertido da atualidade. Para ele, a tela da televisão tornou-se hoje “uma espécie de espelho de Narciso, um lugar de exibição narcísica no qual querem se mirar alguns intelectuais midiáticos”, do qual fogem os eruditos e pensadores, evitan-do uma mídia extremamente superficial, própria a fast thinkers. Bourdieu acha que pouca coisa pode ser dita num veículo que impõe o assunto, o tempo irrisório e que tem interesses econômicos invisíveis e, muitas vezes, inconfessáveis (Bourdieu, 2000).

Em alguns momentos Pierre Bourdieu afirma que na mídia há um simulacro inofensivo de crítica destinado a criar audiência dando satisfação a uma demanda confusamente sentida pelo público.

Não se trata de recusar a televisão, pois assim poderia se compro-meter o sucesso de obras que merecem atingir um público maior; é também deixar espaço aos intelectuais midiáticos, que são capazes de desencadear verdadeiras campanhas de publicidade em defesa de seus produtos ou dos de seus amigos; e, também, em casos mais excepcionais, campanhas de difamação contra os que se recusam a entrar no jogo ou que, mais simplesmente, têm a insolência de descrevê-lo. Penso que seria preciso que artistas, escritores, eruditos e pensadores lutem individualmente e sobretudo coletivamente para conquistar a possibilidade de ter acesso à TV em boas condições, isto é, quando eles têm algo a dizer que merece atingir uma audiência maior e quando se lhes oferecem a oportunidade e o tempo necessário para dizê-lo. Creio que seria possível inventar novas formas de ação pela televisão que sejam capazes de envolver públicos mais vastos em torno de assuntos mais difíceis e mais importantes (como o futuro da economia mundial), mas sob a condição de mobilizar verdadeira-mente todas as capacidades inventivas dos escritores, dos eruditos e, sobretudo, dos artistas, e especialmente dos cineastas. É este o tipo de tarefa na qual deveria se empenhar o intelectual coletivo tal qual

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o imagino. Efetivamente, é por isso que todos os que desejam agir sobre o mundo, ao menos o suficiente para contrabalançar ou combater a ação dos que o dominam, devem se questionar seriamente sobre a questão do bom uso das mídias. Não é o caso de recusar as mídias, mas de se perguntar como utilizá-las sem se deixar usar por elas. É preciso os pesquisadores irem à televisão, mas dentro de suas conveniências e suas condições. Há imensos obstáculos, que não enumerarei para não desencorajar ou desesperar os que tentam lutar. Penso que já seria importante que os intelectuais tomem consciência de que, em sua relação com a televisão, e mais genericamente, o que está em jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade de oferecer a todos os homens e a todas as mulheres de todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais no-bres da reflexão humana. A construção deste contrapoder só pode ser feita, evidentemente, com a cumplicidade ou mesmo a participação ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas (Bourdieu, 2000).

Agora, surge a necessidade de estabelecer discussões profundas sobre temas que avançam no mundo real e no virtual a velocidades nunca antes vistas na História da humanidade. Um tema que aparece como elemento inovador nas discussões de direitos humanos recentes é o que toca na comunicação, na informação e nas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). A Internet, que ao mesmo tempo propicia a democratização da informação, dá possibilidade à propagação de ações de xenofobia, racismo, homofobia, pedofilia, etc. Os meios de comunicação impressos, radiofônicos e televisivos começam a convergir entre si e temores de que instrumentos tão poderosos fiquem concen-trados nas mãos de poucos tornam-se cada vez mais reais.

Mais do que nunca é importante trazer à baila o que significa discutir o direito à comunicação e à informação num mundo global em que a velocidade com que os fatos e não fatos circulam são extraordiná-rios. Esta é uma discussão que rebaterá tanto nas questões relacionadas

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277Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

à educação quanto na concessão de licenças públicas para rádios e TVs,

bem como toda a discussão sobre inclusão digital e a opção estratégica

pelo software livre. Discutir o direito à comunicação na sociedade da

informação é ainda um grande desafio quando se pensa que as organi-

zações da sociedade civil veem as questões de comunicação e de infor-

mação apenas como técnicas e não como questões político-estratégicas.

Não é de agora que a comunicação e a informação saíram da esfera dos

profissionais da área para permearem campos tais como o do entreteni-

mento (que não são necessariamente jornalísticos, apesar de recentemen-

te estarem cada vez mais imbricados) e da política. Este casamento entre

comunicação e política – que em nosso país gera o absurdo de famílias

inteiras perpetuarem seu poder político via veículos de comunicação que

controlam – é uma ameaça real à sociedade como um todo e precisa ser

urgentemente enfrentada.

Não há dúvida de que um controle cidadão sobre os meios de

comunicação, as concessões de licenças e a democratização do acesso às

TICs precisarão ser tratados pela sociedade de forma madura e racional.

As convergências entre rádio, TV, mídia impressa e Internet já são rea-

lidade e com isso os poderes dos detentores destes veículos se ampliam

cada vez mais. De igual modo é fundamental discutir com mais seriedade

e menos interferência dos grandes controladores da mídia do país o papel

das rádios e TVs comunitárias. Mesmo com o governo Lula, em nada

se alterou o quadro de perseguição, prisão de dirigentes e destruição de

equipamentos das rádios comunitárias.

Ainda hoje, parte da legislação que rege as rádios comunitárias

é dos anos 70. Leis sobre a Internet, direitos de autor na WEB, entre

outros, praticamente não existem. Infelizmente, a concepção arcaica de

legisladores brasileiros faz com que estejamos muito atrás em discussões

fundamentais no que tange às TICs e o campo da comunicação como

um todo.

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278E n i o W a l d i r d a S i l v a

Pensar em comunicação como direito humano é, antes de tudo, imaginar que as maravilhas da sociedade da informação precisam ser com-partilhadas com todos: pobres e ricos, negros e brancos, urbanos e rurais, etc. Esta é a premissa básica: incluir os que estão de fora. Colocarmos uma premissa prioritária não nos exime de alcançar outros patamares de discussão, como pensar a qualidade da informação: na difusão, na troca, na sinergia. A questão é que o atraso da universalização no Brasil direciona o raciocínio imediato de dirimir a distância de excluídos e incluídos. Torna-se vital, sem deixar o imediatismo em segundo plano, elaborar um debate amplo com a sociedade para definir os alicerces estratégicos para a consolidação do software livre, dos programas de inclusão digital, de uma nova lei de concessões de rádios e TVs, etc. Construir essas alternativas é o nosso grande desafio.

Em relação ao Direito, vejamos o texto direto de Boaventura de Sousa Santos (2005):

Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de infor-mação.

A questão das relações entre as novas tecnologias de comunicação e de informação e o sistema judicial é uma subquestão de um debate muito mais amplo sobre o significado econômico, social, político e cultural da revolução em curso nas tecnologias de informação e de comunicação.

Falar de revolução implica já assumir a grande magnitude das transformações que ocorrem sob os nossos olhos. Essa magnitude aparece formulada de modo diferente nos diferentes campos sociais. Na economia fala-se do novo estádio do capitalismo, o capitalismo informacional e da nova economia electrónica; no domínio social, da sociedade de informação ou da sociedade em rede e, também, da info-inclusão e de info-exclusão; no domínio político, da política espetáculo e da democracia eletrônica; no domínio cultural, fala-se da cultura global e de cibercultura. Em minha opinião, a transfor-mação mais profunda está a ocorrer nas concepções de espaço e de tempo. Todas as instituições da modernidade foram constituídas na base de um espaço-tempo privilegiado, o espaço-tempo nacional, constituído por três temporalidades distintas: a temporalidade da

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279Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual

deliberação política (que determinou, por exemplo, que haver eleições de quatro anos é adequado, mas não o seria se as houvesse em cada quatro meses), a temporalidade da ação burocrática do Estado (que determino por exemplo, o ciclo de tributação, a validade das cartas de condução, licenças e dos bilhetes de identidade, etc.) e a tempo-ralidade judicial fixou o patamar da duração dos processos para além dos quais é possível falar de morosidade. Este espaço-tempo está hoje a ser desestruturado sob a pressão de um espaço-tempo emergente, global e instantâneo, o espaço-tempo eletrônico, o ciberespaço. Este espaço-tempo cria ritmos e temporalidades incompatíveis com a temporalidade estatal nacional. O caso mais dramático é talvez o espaço-tempo global e instantâneo dos mercados financeiros, o qual inviabiliza ou torna muito difícil qualquer deliberação ou regulação por parte do Estado.Não é fácil avaliar a extensão e a profundidade das rupturas em curso. O instituinte, por mais poderoso, tem de contar sempre com a inércia e a resistência do instituído. E este tem modos de se perpetuar no interior daquilo que o transforma. A questão do potencial transformador da revolução nas tecnologias de informação e de comunicação é, assim, uma das questões centrais suscitadas a propósito do espaço-tempo emergente. A outra questão é a do sentido político e cultural desse potencial transformador. Assim, mais uma vez se mostra que as questões técnicas e as questões políticas seguem na sombra umas das outras. A questão do sentido político é bem for-mulada por Stefano Rodatà: “Estamos a caminhar para a vivência de uma democracia como se sonhava na velha Atenas ou para o mundo prefigurado em Orwell? (2000, p. 121)”. A resposta é tão fácil de dar como difícil de executar: depende de nós. A dificuldade reside em que quanto mais tudo parece depender de nós, mais nós parecemos depender de tudo e, nomeadamente, das tecnologias da informação e da comunicação que, mais e mais, conformam o nosso quotidiano.Em minha opinião, as novas tecnologias de comunicação e de informação são uma enorme oportunidade e um enorme risco. Uma não é possível sem o outro, mas é possível maximizar as oportunidades e minimizar os riscos. Para isso, é necessário criar e aplicar generalizadamente níveis de competência técnica e política nos cidadãos muito acima daqueles que a democracia liberal até agora foi capaz de gerar. Sobre-tudo depois da obra de Joseph Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia, publicada em 1943, a teoria política liberal reduziu a participação democrática dos cidadãos à eleição dos decisores políti-cos. Partindo do pressuposto que os cidadãos não são competentes para participar nas decisões da governação, nem estão interessados em

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tal participação, o papel da cidadania democrática ficou circunscrito à escolha dos decisores. Foi assim que a democracia representativa se impôs em detrimento da democracia participativa. As novas tec-nologias de comunicação e de informação desestabilizam este status quo teórico e político a dois níveis. Por um lado, tornam muito mais caótica a relação entre decisores e decisões, de tal modo que o caráter democrático dos primeiros deixou de garantir o carácter democrático das segundas. Por outro lado, criam oportunidades insuspeitadas para desenvolver competência cidadã, competência para deliberar e tomar decisões políticas e não apenas para escolher os decisores políticos. O problema político central passa a ser o de como juntar a essa compe-tência o interesse em a exercitar. Do modo como esse problema for resolvido dependerá o sentido político das transformações em curso. Ou serão maximizadas as oportunidades para fortalecer a democracia e a cidadania: ou serão maximizados os riscos de reduzir a vivência da democracia e da cidadania a níveis muito inferiores aos já baixos níveis que hoje prevalecem. Com este pano de fundo, passo a analisar, brevemente, os dois vetores da relação entre as novas tecnologias de comunicação e de informação e os tribunais...

...No que respeita à democratização do acesso ao direito e à justiça, as novas tecnologias de informação possibilitam mais circulação de mais informação e, portanto, um direito e uma justiça mais próximos e mais transparentes. Por exemplo, facilitam o acesso a bases de dados jurídicos, a informações fundamentais para o exercício de direitos, e possibilitam o exercício fácil de um conjunto de direitos e de deveres dos cidadãos. É, hoje, possível, através de redes electrónicas, apresen-tar requerimentos, receber informações, pagar determinadas taxas ou impostos, ou mesmo consultar processos. Muito brevemente, passo a referir algumas áreas e alguns exemplos concretos de aplicação das NTCI no domínio do sistema judicial (p. 88-91).

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