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Sociologia no Ensino Médio Volume 45 - número 1 - 2014 ISSN.BL 0041-8862 Fortaleza

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Sociologia no Ensino Médio

Volume 45 - número 1 - 2014ISSN.BL 0041-8862 Fortaleza

Universidade Federal do Ceará - UFCDepartamento de Ciências SociaisPrograma de Pós-Graduação em Sociologia

Revista deCiências Sociais

ISSN.BL 0041-8862 Fortaleza, v.45, n.1, p. 07-299, jan./jun., 2014ISSN, v. eletrônica 2318-4620 Fortaleza, v.45, n.1, p. 07-299, jan./jun., 2014

Sociologia no Ensino Médio

Ficha Catalográfica

Revista de Ciências Sociais – periódico do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará – UFC

n. 1 (1970) – Fortaleza, UFC, 2014

Semestral

ISSN.BL. 0041- 8862

ISSN, v. eletrônica 2318-4620

1. Sociologia. 2. Ensino de sociologia; 3. Pensamento social; 4. Escola.

I- Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades.

Comissão Editorial

Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, Irlys Alencar Firmo Barreira, Antônio Cristian Saraiva Paiva, Isabelle Braz Peixoto da Silva e Jakson Alves Aquino

Conselho Editorial

Bela Feldman-Bianco (UNICAMP), Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), Céli Regina Jardim Pinto (UFRGS), César Barreira (UFC), Fernanda Sobral (UnB), François Laplantine (Universidade de Lyon 2), Inaiá Maria Moreira de Carvalho (UFBA), Jawdat Abu-El-Haj (UFC), João Pacheco de Oliveira (UFRJ), José Machado Pais (ICS, Universidade de Lisboa), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Lucio Oliver Costilla (UNAM), Luiz Felipe Baeta Neves (UERJ), Manfredo Oliveira (UFC), Maria Helena Vilas Boas Concone (PUC-SP), Moacir Palmeira (UFRJ), Ruben George Oliven (UFRGS), Ralph Della Cava (ILAS), Ronald H. Chilcote (Universidade da Califórnia), Véronique Nahoum-Grappe (CNRS).

Edição

Projeto gráfico: Vibri Design & Branding

Editoração eletrônica: Vibri Design & Branding

Organização: Danyelle Nilin Gonçalves

Revisão: Sulamita Vieira

Endereço para correspondência

Revista de Ciências SociaisDepartamento de Ciências SociaisCentro de Humanidades – Universidade Federal do CearáAv. da Universidade, 2995, 1º andar (Benfica)60.020-181 Fortaleza, Ceará / BRASILTel./Fax: (85) 3366-7546E-mail: [email protected]

Publicação semestral

Solicita-se permuta / Exchange desired

Revista de Ciências Sociais

Volume 45 – número 1 - 2014

Publicação do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará

Membro da International Sociological Association (ISA)

ISSN.BL 0041-8862

ISSN, v. eletrônica 2318-4620

SumárioRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45n. 1, 2014

// DOSSIÊ: SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO

ApresentaçãoDanyelle Nilin Gonçalves

Educação e pensamento social brasileiro: alguns apontamentos a partir de Florestan Fernandes e Gilberto FreyreAmurabi Oliveira

Viver e interpretar o mundo social: para que serve o ensino da Sociologia?Bernard Lahire

O ofício de ensinar para iniciantes: contribuições ao modo sociológico de pensarIrlys Alencar Firmo Barreira

Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção de currículoSimone Meucci e Rafael Ginane Bezerra

Culturas juvenis e agrupamentos na escola: entre adesões e conflitosIrapuan Peixoto Lima Filho

// ARtIGOS

Os relatórios do desenvolvimento humano (RDHS/PNUD/ONU) da década de 1990 e as propostas para enfrentar as múltiplas formas de desigualdadesMaria José de Rezende

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Ética civilizacional e teoria sociológica: uma revisão conceitual de DurkheimAndré Oda

As barracas de praia e a “civilização” do lazer: espaço urbano, poder e sociabilidade na Praia do FuturoWellington Ricardo Nogueira Maciel

Pequena empresa inovadora e desenvolvimento: indústria naval em Rio GrandeSandro Ruduit Garcia

A expansão da Jurema na Península IbéricaIsmael Pordeus Júnior

Questões culturais no CearáGilmar de Carvalho

// ENtREVIStA

A sociologia de volta à escola: um balanço provisórioIleizi Fiorelli e Danyelle Nilin Gonçalves

// RESENHAS

Fonseca, André Azevedo da. A construção do mito Mário PalmérioFábio Dias de Souza

Safatle, Vladimir de. A esquerda que não teme dizer seu nomeSidnei Ferreira de Vares

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// DOSSIER: SOCIOlOGy IN HIGH SCHOOl

PRESENtAtIONDanyelle Nilin Gonçalves

Education and brazilian social thought: some notes based on Florestan Fernandes and Gilberto FreyreAmurabi Oliveira

living and interpreting the social world: what is the use of sociology teaching?Bernard Lahire

the art of teaching novices: contributions to the sociological way of thinkingIrlys Alencar Firmo Barreira

Sociology and basic education: hypothesis on the dynamics of curriculum productionSimone Meucci and Rafael Ginane Bezerra

youth cultures and school groupings: between adhesion and conflictIrapuan Peixoto Lima Filho

// ARtIClES

the human developent reports (HDRS/UNDP/UN) of the 1990’s and proposals to address the multiple forms of inequalitiesMaria José de Rezende

ContentsRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45n. 1, 2014

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Civilizational ethics and sociological theory: a conceptual revision of DurkheimAndré Oda

the tents of the beach and the leisure “civilization”: urban space, power and sociability in Praia do FuturoWellington Ricardo Nogueira Maciel

Innovative small businesses and development: naval industry in the city of Rio Grande, BrazilSandro Ruduit Garcia

the expansion of Jurema in the Iberian PeninsulaIsmael Pordeus Júnior

Cultural questions in the state of Ceará, BrazilGilmar de Carvalho

// INtERVIEw

the sociology back to school: an interim balanceIleizi Fiorelli and Danyelle Nilin Gonçalves

// REVIEwS

Fonseca, André Azevedo da. the construction of the myth Mário Palmério Fábio Dias de Souza

Safatle, Vladimir. the left who is not afraid to tell its nameSidnei Ferreira de Vares

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Dossiê: SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO

Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 11-13

Apresentação

As duas últimas décadas vêm trazendo “novos” interesses para o campo da Sociologia. Dentre eles, as temáticas relacionadas ao ensino de Sociologia na Educação Básica, em especial, no Ensino Médio. Fruto de uma luta intensa que envolveu univer-sidades, escolas, sindicatos e outras organizações, em 2008, se estabeleceu a obrigatoriedade da disciplina de Sociologia nas três séries dessa modalidade. Desde então vem se percebendo um aumento gradativo das investigações sobre o tema.

Entretanto, vem havendo uma mudança de perspectiva. Se muitos dos trabalhos produzidos no primeiro momento buscavam analisar a história da disciplina no ensino brasileiro, sua intermitência e a luta por sua reintrodução no currículo, nos anos seguintes, os autores se dedicaram a refletir sobre os instrumentos teórico-metodológicos do ensino da disciplina. A partir da reintrodução no currículo do Ensino Médio, aumen-tou-se a produção científica da temática, passando a tratar, so-bretudo dos desafios e perspectivas da Sociologia como disciplina neste campo de atuação. Questões como o quê ensinar, de que modo, abordagens metodológicas, debates sobre currículos, os materiais didáticos e as experiências docentes passam a ganhar mais destaque. Além das temáticas relacionadas ao currículo e à formação dos professores, os saberes necessários à docência na área e a própria “vida na escola” se apresentam como pos-sibilidades de pesquisa.

O Dossiê apresentado nesta edição e intitulado Sociologia no Ensino Médio trata dessas questões, compondo-se de quatro artigos de professores de diferentes instituições brasileiras, além

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apReSentação12

de uma reflexão realizada por Bernard Lahire, da Universidade de Lyon,e, ainda, uma entrevista com especialistas no assunto.

Apesar do crescimento nas investigações sociológicas das últimas décadas, Amurabi Oliveira, então professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), reflete sobre como a educação não tem sido um objeto de investigação privilegiado na pesquisa sociológica brasileira, ainda que a sua gênese encontre-se ligada à questão educacional. Acerca de uma contribuição clássica escreve o artigo intitulado Educação e Pensamento Social Brasileiro: alguns apontamentos a partir de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre que, além de refletir sobre o contexto no qual os autores viveram, indica pontos de aproximação na perspectiva dos dois autores.

A fim de responder um questionamento sempre presente sobre a utilidade do ensino de sociologia, o sociólogo Bernard Lahire nos convida a pensar sobre como viver e interpretar o mundo social. O artigo, fruto da palestra apresentada no III Encontro Nacional Sobre O Ensino de Sociologia na Educação Básica (Eneseb) em 2013, trata da questão da utilidade social ou política da disciplina de Sociologia. O autor busca responder três inda-gações: é possível ensinar uma ciência que é tida e se apresenta geralmente como conflituosa e por vezes até ideológica? Por seu conteúdo e forma, essas ciências sociais não são voltadas a intervir apenas no nível de uma formação superior? Não seria difícil, para jovens entre 6 e 11 anos, tomar distância e desenvolver reflexões sobre seu mundo cultural? Ao responder a tais pergun-tas, o autor problematiza o sentido das Ciências Sociais na escola, já que elas têm por objetivo trazer à tona realidades que permanecem invisíveis frente à experiência imediata.

Continuando nessa mesma direção, Irlys Alencar Firmo Barreira, professora da Universidade Federal do Ceará, no artigo O ofício de ensinar para iniciantes: contribuições ao modo sociológico de pensar, assinala a importância de pensar conteúdos temáticos e pedagógicos levando-se em consideração o arcabouço teórico construído pela disciplina. Propõe que os professores incorporem ao trabalho conceitos sociológicos, como ferramentas de interpretação da realidade e estratégias pedagógicas que permitam trazer à tona temas de interesse para os jovens estudantes. Parte de um diálogo com autores clássicos e contemporâneos, para mostrar como “o modo so-ciológico de pensar” foi sendo construído e reconstruído. Considera também que conhecimentos básicos de sociologia poderão, futuramente, orientar ou influenciar não só uma escolha profissional na própria área, mas também embasar outras profissões carentes de uma visão ampla dos mecanismos que orientam as práticas sociais.

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No artigo Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção do currículo, Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra, profes-sores da Universidade Federal do Paraná, analisam as formas institucionais que permitem a rotinização do conteúdo sociológico nas escolas. Partindo da articulação entre currículo, pedagogia e avaliação os autores identificam três instâncias para estabilização do conteúdo da sociologia escolar: o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o modelo que caracteriza as Licenciaturas no Brasil. Procuram argumentar que, mesmo que de forma heterogênea, essas instâncias têm operado a lógica de seleção que define o conteúdo sociológico no Ensino Médio, originando um currículo em termos nacionais.

Deslocando um pouco o olhar e partindo da ideia da pouca presença das reflexões sobre a escola e a vivência escolar, Irapuan Peixoto Lima Filho, professor da Universidade Federal do Ceará, se propõe a pensar sobre as cul-turas juvenis e os agrupamentos surgidos no interior da instituição escolar. Em seu artigo Culturas juvenis e agrupamentos na escola: entre adesões e conflitos, o autor ressalta a sociabilidade dos jovens no intramuros da es-cola, as vivências das culturas juvenis, dos estilos de vida e a formação dos agrupamentos, assim como os conflitos decorrentes. Nota que o jovem que frequenta a escola constrói alianças e disputas por meio de seu sentimento de pertença a agremiações pré-determinadas que, de algum modo, orientam sua participação na sociedade.

A entrevista de Ileizi Fiorelli, professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pesquisadora das temáticas relacionadas ao ensino da disciplina, traz um balanço de sua trajetória na área e dá conta da dinami-zação das pesquisas nos últimos anos e dos desafios de começar a avaliar a qualidade do que está sendo produzido país afora.

É, portanto, com grande satisfação que apresentamos o volume 45, número 1, da Revista de Ciências Sociais que, pela primeira vez, em 44 anos, traz um dossiê com essa temática, buscando alargar essa discussão tão fecunda.

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Educação e pensamento social brasileiro: alguns apontamentos a partir de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre

Amurabi OliveiraDoutor em Sociologia (UFPE), Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atuante em seu Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política.E-mail: [email protected]

INtRODUçãO

O presente artigo almeja discutir sobre a educação e os professo-res no Brasil, partindo de escritos de dois autores considerados clássicos no pensamento social brasileiro: Florestan Fernandes (1920-1995) e Gilberto Freyre (1900-1987). Não se trata com isso de desenvolver uma análise exaustiva e pormenorizada da questão na vasta obra de ambos os intelectuais, mas sim de, partindo de alguns textos, analisar como essa questão se apresenta para ambos, indicando nas considerações finais alguns possíveis pontos de convergência.

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A opção pelos dois não é aleatória; tal escolha se justifica, por exemplo, pelo fato de serem eles os pesquisadores nacionais mais citados na produção das Ciências Sociais brasileiras (MELO, 1999; COSTA, 2010), e, além disso:

[…] Gilberto Freyre, forma com Florestan o mais perfeito par de opostos que se possa imaginar. Não pela temática, que é em muitos pontos a mesma entre ambos. Nem pela formação e pelas linhas de pesquisa, que em ambos percorre o arco que da análise etnológica à reconstrução histórica em grande e pequena escala, centrando, é claro, na análise sociológica. Mas pelo contraste entre a perspectiva (COHN, 2001, p. 387).

Esse contraste1 também é reconhecido por Motta (2000), ao afirmar que Freyre domina uma intuição mais de artista que de cientista, e que para este a linha reta não é a menor distância entre dois pontos, escrevendo com linhas muito sinuosas, ao passo que Florestan mesmo quando porventura escreve errado seria por linhas retas.

No que tangencia a questão educacional, chama a atenção o fato de que ambos integraram o leque de cientistas sociais que embarcaram na proposta de Anísio Teixeira (1900-1971) referente ao Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CBPE, e no caso de Freyre chegando a dirigir o Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife. Isso não é algo de menor importância, dado que “O Centro Brasileiro de Pesquisa Educacional (CBPE) selou nos anos 50 o encontro entre ciências sociais e educação de forma não mais reeditada no Brasil”. (BOMENY, 2003, p. 60).

Ainda que se trate de dois clássicos, no sentido próprio do termo, é inegável que a Educação não foi um tema privilegiado no decorrer da carreira de ambos, mesmo considerando-se que Fernandes tenha tido uma produção mais significativa nessa seara, que na interpretação de Mazza (1997)2 se faz presente desde seus primeiros escritos. Todavia, como bem assinala Silva (2002), os trabalhos do sociólogo paulista, quando voltados para a Educação, não apenas ocupam uma proporção quantitativa diminuta no cômputo total de sua obra, como também apresentam um caráter mais “parassociológico”. Logo, qual seria a importância de trazê-los para problematizar a questão educacional? Nesse sentido, creio ser relevante pensarmos primeiramente por que revisitarmos o pensamento social brasileiro. Acredito que Bastos (2002, p. 183) nos dá uma resposta interessante: “[...] sem compreender tanto as ideias como o lugar social desses intelectuais é impossível apreender o movimento geral da sociedade brasileira”.

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Para alcançar o intento anunciado, dentro dos limites deste texto, analiso como a educação e o professor se apresentam para os dois autores, e finalizo com uma tentativa de buscar pontos de convergência existentes entre as respectivas abordagens. Antes, porém, compreendo ser necessário realizar um esforço na direção de contextualizar a origem da relação entre Sociologia e Educação no Brasil.

A GÊNESE EDUCACIONAl DA SOCIOlOGIA BRASIlEIRA

Como bem afirma Miceli (1989), a Sociologia no Brasil aparece primeiramente vinculada às Escolas Normais, voltadas para a formação de professores, e só depois surge no Ensino Superior. Mais que isso, por meio das Reformas Educacionais Rocha Vaz (1925) e Francisco Campos (1931), a Sociologia passou a figurar como componente curricular da Educação Básica, de tal modo que devemos reconhecer que esta ciência emerge no Brasil ligada visceralmente à Educação, tanto como componente curricular das últimas séries da Educação Básica3, incluindo aí os cursos preparatórios para o Ensino Superior, quanto dos cursos de formação de professores.

Interessa-me neste momento a questão específica da Sociologia existente no curso de formação de professores, tendo em vista que ela surge no bojo das reformas ocorrentes no país, principalmente a partir dos anos de 1920. Em Pernambuco, destacam-se as reformas promovidas por Estácio Coimbra (1872-1937), com base no Plano de Reforma de Ensino cuja elaboração ficou sob a responsabilidade Antônio Carneiro Leão (1887-1966), que integrava o movimento da Escola Nova4. No conjunto de tais reformas, a disciplina de Sociologia foi introduzida no curso de formação de professores da Escola Normal de Pernambuco, cabendo a Gilberto Freyre ser o primeiro professor dessa disciplina, o que ocorreu efetivamente em 1929 (MEUCCI, 2006).

Chama a atenção o fato de que, muitas vezes quando se pensa em analisar a história da Sociologia no Brasil, alguns pesquisadores se referem ao seu começo como momento que antecede à Sociologia Científica. Por exemplo, na perspectiva de Liedke Filho:

No Brasil, esse período teve início em meados da década de vinte, quando foram criadas as primeiras cátedras de Sociologia em Escolas Normais (1924-25), enquanto disciplina auxiliar da pedagogia, dentro do esforço democratizante do movimento reformista pedagógico que tem sua expressão maior no movi-mento da Escola Nova. Neste momento, ocorreu a proliferação de publicações

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como os manuais e coletâneas para o ensino de Sociologia, os quais procu-ravam divulgar as idéias de cientistas sociais europeus e norte-americanos renomados, tais como Durkheim e Dewey, bem como idéias sociológicas acerca de problemas sociais como urbanização, migrações, analfabetismo e pobreza (2005, p. 380-381).

De tal modo que é tomado como referência para o surgimento de uma sociologia científica o advento dos primeiros cursos de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo – ELSP (1933), na Universi-dade de São Paulo – USP (1934) e na Universidade do Distrito Federal – UDF (1935)5. Esse novo momento caracteriza-se, segundo Fernandes (1980, p. 60), “[...] pela preocupação dominante de subordinar o labor intelectual, no estudo dos fenômenos sociais, aos padrões de trabalho científico sistemático”. Todavia, Freyre nos apresenta outra interpretação da história da Sociologia no Brasil, ao discordar do que é exposto pela revista Anhembi (nº 30, vol. X, maio de 1953) que toma como marco a vinda de professores estrangeiros para a ELSP e USP, indicando o autor pernambucano a existência das pes-quisas de Roquette Pinto e Froes da Fonseca no Museu Nacional no Rio de Janeiro, Ulisses Pernambucano, no Recife, além dos trabalhos de Nina Ro-drigues e Arthur Ramos. Ressalva ainda sua própria experiência na Cátedra de Sociologia na Escola Normal de Pernambuco, que teria sido a primeira com trabalho de campo. Segundo ele:

[…] o início do ensino sistemático da Sociologia científica no Brasil data do funcionamento da primeira cadeira de Sociologia moderna estabelecida no Brasil acompanhada de e pesquisa de campo (Escola Normal do Estado de Pernambuco) e já relacionada à psiquiatria pela íntima relação do catedrático da mesma escola normal com seu colega de Psicologia, o psiquiatra Ulisses Pernambucano (FREYRE, 2003, p. 111-112).

Podemos perceber aí um primeiro ponto interessante para se comparar as perspectivas assumidas por Freyre e Fernandes, dado que eles analisam de formas distintas o surgimento de uma Sociologia científica no Brasil, em que pese a compreensão sensivelmente diferenciada em ambos sobre o que é fazer ciência. Parece-me que a divisão mais hermética entre os diversos períodos, encarando como pré-científica a Sociologia que surge antes do advento dos cursos de Ciências Sociais, possui ao fundo o entendimento de que há, por um lado, os ensaios de interpretação do Brasil, e por outro, os estudos científicos sobre a sociedade; entretanto, adoto neste trabalho a

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compreensão assinalada por Bastos e Botelho (2010), de que não há rupturas essenciais entre ambos.

Voltando ao processo de introdução da Sociologia nos cursos de for-mação de professores, ressalta-se que nesse momento havia uma clareza de que o surgimento de uma nova sociedade em curso demandava um “novo professor” (NAGLE, 1974), e a Sociologia seria essa disciplina capaz de romper com a formação meramente bacharelesca, trazendo um verdadeiro “realismo sociológico” para os cursos ofertados nas Escolas Normais (MEUCCI, 2011).

O processo de renovação dos currículos de tais cursos liga-se direta-mente ao movimento da Escola Nova, cujo manifesto publicado em 1932 foi redigido por Fernando de Azevedo6 (1894-1974), marcadamente influenciado por Durkheim (1858-1917) e Dewey (1859-1952). Sendo assim, não seria um absurdo afirmar que a Sociologia adentra o Brasil por meio do ideário da Escola Nova7, e das reformas promovidas pelos intelectuais ligados ao movimento, ainda que, de acordo com Candido (1971), essa primeira tendência seja de caráter filosófico-sociológico, que mais facilmente se traduz como pedagogia ou filosofia que sociologia.

Porém a relevância daqueles ligados à Escola Nova não se encerra aí, pois, ao analisarmos o diálogo estabelecido entre os campos da Sociologia e da Educação no Brasil não podemos olvidar o papel que Anísio Teixeira ocupou, principalmente ao fundar o CBPE em 1955 quanto ele estava à frente do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, que como já assinalei foi uma tentativa ímpar de criar um diálogo substancial entre as Ciências Sociais e a Educação.

Interessante que tanto o CBPE quanto o próprio Anísio Teixeira foram alvos de avaliações por parte de Freyre e de Fernandes; o primeiro vê na figura do educador baiano um intelectual que estava à frente dos homens de seu tempo, ao tentar resolver os problemas brasileiros por meio de uma renovação de métodos, buscando uma verdadeira modernização social para o Brasil, uma modernização principalmente da cultura, que estaria posta num sentido mais amplo e profundo que aquele assumido pelos “modernistas” do eixo Rio e São Paulo (FREYRE, 1960). Por outro lado, Florestan aponta seu diagnóstico acerca da educação brasileira, que teria tornado evidente:

[…] a incapacidade do regime republicano, que não chegou a criar uma es-cola pública democrática e a abolir os privilégios que faziam da educação um instrumento de dominação ou de ascensão social, apesar do esforço dos educadores republicanos, no sentido de conduzir o processo revolucionário para dentro da escola (1966, p. 561).

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Apesar de Florestan destacar mais a dimensão relacionada ao processo de democratização do ensino, há que se considerar a estreita ligação entre democratização e modernização, na perspectiva do autor, o que faz com que sua análise do trabalho de Anísio se aproxime daquela realizada por Freyre. Também com relação ao CBPE, ambos realizam avaliações sensivelmente distintas, ocupando, assim, posições diversas nessa estrutura, dado que Freyre se torna diretor do Centro Regional do Recife. Em artigo veiculado no último número da revista Educação e Ciências Sociais – publicação promo-vida pelo CBPE –, Freyre (1962) chama a atenção para a transformação em curso no Brasil da figura de intelectual para intelectuário, que implicaria a mudança de um ideal de produção de ciência independente e universitária para um trabalho estatal, entendido como subserviente, hierárquico e buro-crático. Porém, a produção feita em órgãos como o CBPE não era dirigida à comunidade acadêmica e, tampouco, a grupos intelectuais, mas sim às elites políticas “esclarecidas” do país, sendo assim, uma exceção à regra. Fernandes (1966), por sua vez, preocupou-se em apontar os limites impostos pelo mo-delo adotado pelo CBPE; ainda que considere a data da sua fundação como uma das mais importantes para o ensino do Brasil, critica duramente o fato de constar, entre suas finalidades, a formação de um “mapa cultural” e um “mapa educacional” do país. Segundo o autor:

[…] precisamos urgentemente de um centro de investigações nos moldes do C.B.P.E.; mas, não de um centro que se concentre em objetivos de análise estática do presente e que procure corresponder às exigências da situação através de raciocínios formulados por semelhante tipo de análise. […] Não vejo como a elaboração de mapas e seu confronto possam permitir alcançar esses fins, que não podem ser definidos em face da atividade de processos sociais recorrentes, mas que exige a análise do que está in flux ou seja, dos processos sociais que operam no nível histórico (FERNANDES, 1966, p. 570-571).

Apesar da sua singularidade, o projeto do CBPE – que poderia ter originado a formulação de um campo de ciências sociais aplicadas à educa-ção – naufragou, tendo sido encerrado em 1977. No trabalho de Silva (2002), encontramos uma análise detalhada desse processo, além do levantamento de algumas hipóteses para a explicação do fracasso dessa experiência, o que na perspectiva da autora estava ligado, dentre outros fatores, à resistência de muitos pesquisadores em desenvolver pesquisas ligadas diretamente ao campo educacional, pois em sua maioria “[...] tinham em maior ou menor grau um desconhecimento, misturado a desinteresse, por questões educa-

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cionais stricto sensu.” (SILVA, 2002, p. 102), levando a uma incapacidade das ciências sociais em harmonizar seu discurso com a lógica das políticas educacionais. Incluam-se nesse cenário, também, fatores como: o advento do Regime Militar, a partir de 1964, a profusão das teorias da reprodução8 no campo acadêmico brasileiro e a criação das Faculdades de Educação.

O período de crise do CBPE coincide também com um maior afastamento dos cientistas sociais do campo educacional, cuja reaproximação tímida só irá ocorrer, paulatinamente, a partir dos anos de 1980 (NEVES, 2002), o que retomarei, brevemente, nas considerações finais desse trabalho.

Essa breve contextualização se fez necessária para compreendermos melhor a moldura na qual se inserem Fernandes e Freyre, e de forma mais ampla os movimentos do campo desenhado na interface entre a Sociologia e a Educação, pois não há como compreender o hiato que se estabelece entre a relevância social do fenômeno educacional e o parco interesse dos cientistas sociais sem analisarmos esse período. Partamos então para como a questão da educação, e principalmente do professorado, se apresenta em Florestan e Freyre.

ESCOlA PúBlICA, DEMOCRACIA E O PROFESSORADO EM FlOREStAN FERNANDES

Diferentemente de Freyre, Florestan, nascido em São Paulo, não apenas teve uma origem social modesta, o que implicou uma vivência no sistema escolar público, como também possuiu uma carreira de professor mais estável, vin-culado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, e ambos os fatores possuem implicações na sua forma de perceber o objeto educacional, que aparece ao fundo já em suas primeiras pesquisas envolvendo o Folclore. Nes-tas, ele destaca o processo de aprendizagem das crianças, e ainda que pese a influência de Durkheim em seus primeiros escritos – o que o ajuda a possuir uma visão alargada de educação para além da escolar –, ele não se restringe a compreender a educação como a ação de uma geração mais velha sobre outra mais jovem, na forma como foi definida pelo sociólogo francês (DURKHEIM, 2011). Sua percepção alcança também a aprendizagem vivenciada entre as crianças (FERNANDES, 1961); nesse sentido, aparentemente, a influência de Azevedo teria sido mais significativa, pois a síntese original presente em Sociologia Educacional (1954 [1954]) indicaria diferenças sutis com relação à perspectiva durkheiminiana de Educação. Para Fernandes (1966, p. 556),

A relação pedagógica caracteriza-se, assim, duplamente: a) o indi-víduo que oferece valores sociais – o professor, por exemplo – exerce certa

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pressão sobre o indivíduo que sofre a sua ação – digamos o aluno – a qual visa compelir o segundo a aceitar os valores oferecidos; b) o indivíduo que recebe os valores sociais, no caso o aluno, não o faz passivamente. Reage ao mesmo tempo ao professor e aos valores oferecidos, de modo mais ou menos crítico – de acordo com suas experiências anteriores, prestígio do professor, estimativas coletivas sobre a necessidade dos valores oferecidos, etc. […] Ora, Durkheim considera apenas o primeiro aspecto – a transmissão da cultura – conservando-se fiel à orientação comteana (ação de uma geração sobre outra).

Para a ampliação do conceito de Educação, a influência de Dewey teria sido decisiva no pensamento de Azevedo, pois o pensador americano teria dado maior ênfase à reconstrução das experiências na aquisição dos conhecimentos, e Azevedo ao articular os dois autores percebeu que ambas as questões constituem fases distintas de um mesmo processo. E é apoiado em uma compreensão de Educação mais alargada que aquela apresentada por Durkheim que Florestan realiza a análise da educação na Sociedade Tupinambá, entendendo-a como uma educação que tinha por base assi-milar o indivíduo à ordem social, sem “destruir o equilibro psico-biológico da pessoa”; encontra também, ali, um processo educacional que não ocorre apenas na direção da geração mais velha sobre a mais nova, sendo, portanto, mais complexo que aquele assinalado pelo mestre francês.

Nessa primeira fase do pensamento de Florestan, a influência de Karl Mannheim (1893-1947) mostra-se decisiva, principalmente sua concepção de técnicas sociais, compreendidas como “[...] todos os métodos de influenciar o comportamento humano de maneira que este se enquadre nos padrões vigentes da interação e organização sociais” (MANNHEIM, 1971, p. 89), sendo a educação uma delas, preocupada em moldar não o homem em abstrato, mas de uma dada sociedade e para ela. Villas Bôas (2006) destaca o impacto das ideias de Mannheim sobre toda uma geração de sociólogos brasileiros, incluindo aí Florestan Fernandes. Nas palavras do autor:

Esse diálogo permitiu a reelaboração de questões cruciais para aquela geração de sociólogos, que se envolveu em um debate consistente e duradouro sobre o sentido do conhecimento sociológico e a possibilidade de fazer história. Não somente a sociologia, mas as ciências sociais como um todo se deixaram marcar pelo paradigma que confere sentido histórico ao objeto de conhecimento. Naquela época, fazer ciência significava fazer história, uma vez que os resultados das pesquisas científicas levava a transformação da sociedade brasileira em uma etapa ou nova fase de sua história (VILLAS-BÔAS, 2006, p. 116).

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Essa compreensão fica explícita na obra de Florestan quando ele se posiciona a favor da aproximação entre a Sociologia Geral e a Sociologia Aplicada, compreendendo a relevância dessa ciência no planejamento e provocação da mudança social. Nesse sentido, segundo ele, a Educação ocuparia uma posição de destaque na possibilidade de se pensar uma mu-dança cultural provocada9. Assim, adverte: “Adaptar a educação aos recursos fornecidos pela ciência e às exigências da civilização científica representa a tarefa de maior urgência e gravidade, com que se defrontam os educadores e cientistas sociais no presente.” (FERNANDES, 1971, p. 169). Na oportunidade, formula uma crítica perspicaz à formação dos educadores, compreendida como empecilho para esse horizonte intelectual posto, na medida em que “[…] a preocupação científica dos educadores ressente-se de seu caráter predominantemente ‘informativo’ e ‘livresco’. Em regra, falta-lhes domínio autêntico do ponto de vista científico” (Ibidem).

Desse modo, o professor passa a ser compreendido como um impor-tante agente no processo de mudança cultural, que visa em última instância consolidar o projeto democrático não plenamente acabado com o advento da República. Para tanto, se faz necessária uma formação científica que for-neça os elementos para que esse agente passe a cumprir, na compreensão de Florestan (1966), essa função, até mesmo porque, a base do sistema de ensino residiria, segundo ele, na formação docente. Um empecilho para a concretização desse projeto estaria no fato de a Educação nunca haver sido algo prioritário no Brasil, pois até o século XIX, mesmo na aristocracia, ape-nas uma pequena parcela precisava dela. Apesar do entusiasmo existente no posicionamento de Fernandes, ele reconhece:

[…] a escola opera como um agente de solapamento da ordem social pre-existente, em que se inclui, mas não tem forças para desencadear sequer inovações essenciais ao aproveitamento prático das potencialidades cons-trutivas que transporta consigo e para remodelar o meio social circundante (FERNANDES, 1966, p. 74).

Portanto, não se trata de cair numa posição ingênua de compreender a educação e o professor como elementos que isoladamente transformariam a realidade social brasileira, e sim de reconhecê-los, aí, como indispensáveis. Para Florestan, isto só seria possível com uma expansão não apenas quantita-tiva do sistema escolar – o que já estaria em curso – mas também qualitativa. Ao analisar a situação que observava naquele momento, ele identifica ali uma expansão ineficaz, na medida em que se amplia o acesso a um modelo

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escolar “tradicional”, por assim dizer. Apesar de nesse ponto haver uma apro-ximação entre a posição de Florestan e aquela presente entre os intelectuais da Escola Nova – especialmente Anísio Teixeira e Fernando Azevedo com os quais ele tinha mais proximidade –, é interessante notar que em sua posição a expansão quantitativa do sistema escolar, ainda que insuficiente por si só, permanece em destaque, distando, portanto, do viés mais conservador existente na Escola Nova, segundo a leitura de Saviani (2009), no qual o foco da dimensão qualitativa em detrimento da quantitativa do sistema escolar propiciaria uma melhoria de qualidade educacional apenas para as elites.

Diante dos dilemas de um sistema escolar claramente antidemocrático, na perspectiva do autor, qual seria o papel dos professores? Mais uma vez, tem-se a impressão de ser decisiva a influência de Mannheim, principal-mente no papel que ele atribui aos intelectuais (MANNHEIM, 1976), como agentes engajados na mudança social, ainda que dentro de uma perspectiva não utópica, de tal modo que, há uma aproximação evidente entre o papel dos professores e dos intelectuais, uma vez que:

[…] os educadores precisam dar maior projeção ao elemento político em seu horizonte intelectual. A questão não está, naturalmente, em modificar um jargão consagrado por longos anos de debate. O que é preciso é modificar todo um estilo de pensamento, que confinou, em prejuízo da democracia, a intervenção do educador na solução dos problemas educacionais. […] O desejável, porém, seria que os educadores preservassem seu poder de atuação social, discernindo os interesses profundos da educação na ordem democrática dos interesses de determinados círculos ou camadas sociais na manipulação das instituições escolares. Assim, ele concorreria, de forma ativa, para a reconstrução social do mundo em que vivemos, favorecendo a expansão e o aperfeiçoamento da democracia nas esferas de sua influência, e concorrendo para dar à escola as funções criadoras que ela deve desempenhar na constituição da ordem social democrática, na formação de personalidades democráticas e no fortalecimento de ideias democráticas de vida (FERNANDES, 1966, p. 543).

Há, desse modo, uma interpretação acerca do papel do professor como sujeito ativo intelectual e politicamente. Todavia, se compreendemos que as ideias de Mannheim mostram-se fundamentais na leitura da realidade naquele momento, é interessante destacar a interpretação que Florestan realizou do pensamento deste, especialmente no que tangencia a conduta política, vista como:

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[…] responsável por uma extensa parte das inovações introduzidas e consi-deradas necessárias. Seria bom frisar, porém, que a “decisão pessoal” nesses casos é inteligível à medida que se liga a movimentos sociais. Ou, em outras palavras, enquanto constitui uma parte do processo social considerado em sua totalidade. Como seres sociais, os homens “atuam uns contra os outros, em grupos organizados de diferentes maneiras, e ao fazê-lo pensam uns com os outros e uns contra os outros”. A conduta política, pois, não se aplica por si mesma. Ao contrário, só é compreensível pela interação social dos indivíduos em grupos ou camadas sociais, estimulados por interesses coletivos próprios (FERNANDES, 1974, p. 235).

Estas questões ficaram ainda mais evidentes durante a Campanha pela Defesa da Escola Pública – orquestrada em meio às discussões em torno da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), cuja elaboração inicia-se em 1948, porém, apenas em 1961 a lei é promulgada10 – na qual Florestan se engajara veementemente, emergindo daí outra face do sociólogo. Nas palavras de Cardoso (2013, p. 178):

Este Florestan também foi um Florestan seminal, que se distinguiu, porque mostrou que o acadêmico pode e deve, em certas circunstâncias, posicionar-se e lutar para melhorar as condições de vida de seu país. Esta Campanha teve importância muito grande naquela época, fins dos anos 1950, se não me falha a memória.Foi uma mobilização intensíssima, uma mobilização que nos levou ao que então era raro: o encontro entre a universidade e os trabalhadores. Andamos por sindicatos sem fim, pregando. Andamos por escolas, andamos pelo interior, pregando, discutindo modificações concretas numa lei que iria dar as normas fundamentais ao processo educativo no Brasil. Segundo Florestan (1966), tal Campanha surge do repúdio de diversos

setores da sociedade ao projeto de lei que criaria a primeira LDB no Brasil, tendo havido uma crescente radicalização do movimento, compreendendo que o combate a esse projeto de lei não poderia ser o único alvo, considerando os dilemas educacionais brasileiros no sentido amplo. De forma precisa ele sintetiza, assim, a finalidade da Campanha:

Não se trata de defender a escola pública com argumentos dogmáticos ou com artigos de fé. Nem de criticar, com ânimo destrutivo, as realizações do legislador. O que importa, em nossas convicções, é o que deveria ser feito – não apenas

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para “prestigiar” a escola pública, mas para tirar dela todas as consequências possíveis para a educação do Povo brasileiro e a renovação de nosso sistema de ensino (Ibidem, p. 373).

Entretanto, o resultado final foi uma ampla vitória para os interesses privatistas, ainda que tenha havido algumas “concessões” para a escola pública (FREITAG, 1980); mas as consequências da Campanha são interessantes para pensarmos a guinada mais ampla que vai sendo vivenciada no pensamento de Florestan. Segundo Mazza,

Ele teria apreendido, valendo-se de sua experiência na Campanha, que o pro-blema educacional brasileiro não cabia dentro da categoria clássica da demora cultural, pois não se tratava apenas da necessidade de adequar as esferas e as regiões menos desenvolvidas ao ritmo do progresso das mais desenvolvidas; o autor teria tomado contato com grupos que nucleavam impulsos de resistência às mudanças, criando situações de afloramento de verdadeiros dilemas sociais. O autor já teria apontado para a existência de conflitos que se configuravam nos interesses das diferentes classes que compunham a sociedade brasileira. (MAZZA, 1997, p. 209).

Acrescentem-se a esse cenário as mudanças que vão sendo vivencia-das pelo autor, nos planos teórico e metodológico, pois, como sugere Freitag (1980), ocorre na passagem dos anos de 1960 para 1970 uma verdadeira ruptura epistemológica, marcada pela saída de uma fase “acadêmico-reformista” – cujo conceitual teórico seria baseado prioritariamente em Durkheim, Weber, Mannheim, Freyer e Radcliff Brown (entre outros) e em uma metodologia funcionalista –, para outra “político-revolucionária”. Nesta, Florestan ancora suas análises nos conceitos de Marx, Engels e Lenine, no método do mate-rialismo histórico e em autores da escola marxista11. Para esclarecer sua tese, Freitag (2005, p. 238-239) compara textos das duas fases:

No confronto desses textos da primeira e segunda fases fica evidente que o Florestan da fase reformadora apostava no uso da educação, da ciência, e em especial, da universidade como instrumentos decisivos para a reforma social da sociedade brasileira. A educação em geral e a educação superior, nessa versão, funcionariam como verdadeiras alavancas para uma mudança social bem-sucedida, nos moldes de Karl Mannheim (cf. trabalho “Liberdade e planificação social”, 1945).

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Já nos trabalhos da segunda fase (a do revolucionário), Fernandes argumenta que, para que haja uma universidade nova, não bastaria agir apenas no plano da reforma universitária e, sim, era necessário agir no plano da ação revo-lucionária. Essa não teria de começar pela mudança da universidade e sim pela revolução. Essa teria de acontecer na sociedade como um todo, para que a mudança da universidade pudesse ser concretizada com sucesso. Em suas próprias palavras: “a questão da universidade brasileira [em 1984, festejando os cinquenta anos da USP] se insere no movimento revolucionário global e será resolvida com a emergência da classe operária no cenário histórico brasileiro” (apud FREITAG, 1987, p. 177).

Porém, não teria havido uma ruptura abrupta, de modo que o “segundo Florestan” já se encontrava em fase embrionária no primeiro, apresentando-se principalmente nos textos referentes às contradições inerentes à sociedade brasileira, aos conflitos raciais latentes e ao dilema educacional.

Nessa passagem, sua compreensão sobre o papel do professor também se radicaliza, acompanhando a mudança teórica no pensamento do autor, agora preocupado com uma mudança que requer luta social entre classes, de tal modo que a formação científica do professor não se mostra suficiente. Conforme Fernandes, “Se o professor pensar em mudança, tem que pensar politicamente. Não basta que disponha de uma pitada de sociologia, uma outra de psicologia, outra de biologia educacional, muitas de didática, para que se torne um agente da mudança” (1989, p. 167).

Nessa direção, Florestan vê como positivo que os professores se percebam como assalariados, portanto, como partícipes de uma luta mais ampla na sociedade, cujos problemas ele conhece de perto, o que demanda uma ação pedagógica politicamente orientada. De tal modo que:

O professor precisa se colocar na situação de um cidadão de uma sociedade capitalista subdesenvolvida e com problemas especiais e, nesse quadro, reco-nhecer que tem um amplo conjunto de potencialidades, que só poderão ser dinamizadas se ele agir politicamente, se conjugar uma prática pedagógica eficiente a uma ação política da mesma qualidade (FERNANDES, 1989, p. 170).

A guinada teórica do autor implica, desse modo, mudança substantiva na compreensão da sociedade e da educação, bem como do papel do profes-sor, centrada agora na ação política revolucionária. Permanece, no entanto, um fio condutor que é o reconhecimento da educação e dos professores no processo de consolidação da ordem democrática no Brasil.

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Ainda que não tenhamos tido intenção de aprofundar o debate neste trabalho, tendo em vista seus limites, ressaltou-se aqui como Florestan per-cebe o papel do professorado e da educação no Brasil, considerando ainda as mudanças pelas quais passou seu pensamento, o que se mostra como uma reflexão frutífera para pensar a interface entre os campos da Educação e da Sociologia na sociedade brasileira.

A EDUCAçãO EM GIlBERtO FREyRE, E O COMBAtE AO ENSINO lIVRESCO

Gilberto Freyre dista de Florestan não apenas pela sua origem geográfica, o Recife, como também pela condição social – filho de família aristocrática; experiência escolar com influência internacional, tanto no Colégio Americano Batista, no Recife, quanto na sua graduação na Universidade Baylor, no Texas, e principalmente no mestrado na Universidade de Colúmbia, durante o qual estudou com o antropólogo americano Franz Boas (1858-1942), que ele indica ter deixado marcas profundas em sua produção intelectual12.

É interessante destacar como a experiência nos Estados Unidos foi decisiva na sua interpretação da sociedade e cultura brasileiras. Para Pallares-Burke e Burke (2009, p. 65), “[...] os anos que Freyre passou fora do Brasil foram importante para seu desenvolvimento não somente porque permitiram que descobrisse novos mundos intelectuais, mas também por-que encorajaram a distanciar-se de sua própria cultura”. Mais que isso, esse país, especialmente a região Sul, passa a ser um contraponto constante na sua compreensão do Brasil.

Outra questão que podemos pontuar para efeito de comparação das experiências educacionais dos dois autores analisados neste trabalho, é que, diferentemente de Florestan, Freyre não teve carreira marcada pela estabilidade na docência: contando com algumas breves experiências no Brasil e no exterior, ele próprio admitia nunca haver se sentido atraído para o magistério (FREYRE, 2003).

Nesta reflexão sobre a educação na obra de Gilberto Freyre, ressalto que, ao analisar a realidade do ensino no Brasil, o autor recua ao período colonial, destacando, ali, a atuação da Igreja católica, principalmente pela ação dos Jesuítas13, os quais, segundo ele, se preocuparam

[...] em desenvolver um sistema de educação que trouxesse sob a sua influ-ência os filhos dos colonos ricos e também as crianças indígenas. E o fato é que nas suas escolas, escolas que logo se fizeram famosas, o latim e a retórica

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que nelas se ensinavam tanto eram obrigatórios para os filhos de branco como para os filhos de índio.

Negros e mulatos não eram, entretanto, geralmente aceitos nessas escolas, razão porque não se deve contar o jesuíta entre as influências que favorece-ram, no Brasil, o amalgamento das raças e a democratização social e étnica da Colônia (FREYRE, 2001, p. 110-111).

Porém, esse não era o único modelo educativo que vigorou no Brasil, pois a Casa-Grande era autossuficiente em amplos aspectos, incluindo o educacional, onde pretos e pardos muitas vezes eram companheiros dos meninos brancos nas aulas e até nos colégios, tendo havido ainda casos de meninos brancos que aprenderam a ler com professores negros (FREYRE, 2005). Sobretudo a partir do século XIX, emerge algo próximo da figura que hoje conhecemos desse professor moderno, com formação científica própria em uma dada área do saber; é o momento da ascensão do bacharel na sociedade brasileira, o que só será possível ante a transferência do poder das casas-grandes para a cidade. Esse novo cenário educacional aparece ao mesmo tempo como produto e como elemento impulsionador das transformações sociais pelas quais passava a sociedade brasileira, tendo em vista que:

Os meninos formados nesses seminários e nesses colégios foram um elemento sobre o qual em vez de se acentuarem os traços, as tendências, por um lado cria-doras, mas por outro dissolventes, de uma formação excessivamente patriarcal […] se desenvolveram, ao contrário, o espírito de conformidade e certo gosto de disciplina, de ordem e de universalidade [...]. Esses alunos de colégios de padres foram, uma vez formados, elementos de urbanização e de universalização, em um meio influenciado poderosamente pelos autocratas das casas-grandes e até dos sobrados mais patriarcais das cidades ou vilas do interior, no sentido de estagnação rural e da extrema diferenciação regional [...]. Eles, alunos de colégios de padres, representaram aquela tendência para o predomínio do espírito europeu e de cidade sobre o meio agreste ou turbulentamente rural, encarnado muitas vezes pelos próprios avós (FREYRE, 2006, p. 187).

Nesse sentido, a educação é agente e objeto das transformações sociais, ainda que em dados momentos históricos ocupe mais uma função que a outra – no século XIX especificamente, parece-me que mais de agente, na obra do pensador pernambucano –, considerando-se a proeminência que o bacharel passa a ocupar naquela sociedade. Freyre tece ainda críticas à “monocultura intelectual” que havia aqui até então, através do ensino reli-

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gioso que devastava a paisagem intelectual, ao deixar crescer nos indivíduos apenas ideias ortodoxamente católicas. Critica também o ensino de latim, ao afirmar que “Nada mais amolecedor da inteligência que o ensino exclusivo ou quase exclusivo do latim ou de qualquer língua morta.” (Ibidem, p. 437). Lembremos que Sobrados & Mucambos foi publicado em 1936, logo, ainda estava acirrado o debate entre os defensores da Escola Nova e a Igreja Católica no que tange à questão do ensino, e Freyre ao apontar que o ensino católico já se mostrara anacrônico no século XIX, acaba por criticar, ao fundo, seu lugar em pleno século XX.

O autor observa a abertura paulatina de outras possibilidades educa-cionais no Brasil, com destaque para os colégios militares, que se apresen-tam ainda como uma franca possibilidade de ascensão social dos mulatos e negros na sociedade brasileira (FREYRE, 2006, 2004), bem como de escolas estrangeiras, principalmente de influência inglesa e francesa.

A educação de fato era um agente de mudança social na perspectiva de Freyre, não à toa ele aponta que boa parte das “revoluções” ocorridas no século XIX foram revoluções de bacharéis, como teria sido o caso da Inconfidência Mineira (FREYRE, 2006). É nesse momento que, segundo a leitura do autor, passa-se a realizar um investimento mais sistematizado na educação, incluindo aí as famílias menos abastadas, cujas mães fizeram dos filhos doutores ou bacharéis.

[...] vendendo doces ou frutas em tabuleiro ou quitanda, cozinhando em casas ou sobrados de ricos, ou, menos puritanamente, aceitando o amor de brancos opulentos que as enchiam de regalos. Parte desses regalos é que as mais profundamente maternais souberam destinar à educação de filhos, principalmente daqueles mais brancos que elas, as mães (ibidem, p. 754).

A centralidade que o bacharel assume nesse período é fundamental para compreendermos a emersão do professor moderno, não mais o padre, mas sim aquele com formação científica em uma dada área do saber. Con-tudo, Freyre não se furta de criticar que muitos bacharéis, mesmo durante a República, eram demasiadamente bacharelescos, por assim dizer, abstratos e técnicos, que “Precisavam de ser reeducados no sentido da realidade brasileira ao mesmo tempo que no sentido de uma nova época” (FREYRE, 2004, p. 1020). A análise de Freyre é, assim, marcada pela crítica a uma educação abstrata; e, em grande medida, na sua interpretação, esta fora herança dos jesuítas que desenvolveram aqui um ensino antes bacharelesco que experimental.

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Na complexidade do pensamento de Freyre há a valorização de uma formação científica, dos “doutores”, porém, não nos moldes em que vinha se realizando. Não à toa ele realiza as seguintes ponderações sobre a formação de professores:

Deve ser dito que foi somente com a fundação das escolas ou faculdades de Filosofia em São Paulo e no Rio de Janeiro, que se tornou, realmente, siste-mática a preparação de professores e professoras para as escolas secundárias. Até então (1934), essa preparação era uma espécie de aventura individual: não havia, a rigor, oportunidade para o candidato a esse tipo de professorado preparar-se metódica ou sistematicamente.

Os professores secundários eram escolhidos entre advogados, médicos, padres, engenheiros, com pouco ou nenhum treino específico na atividade do magistério em que ingressavam de improviso. A essa falta de preparação sistemática é fácil associar a ausência de qualidade realmente pedagógica na maior parte dos professores de ensino secundário no Brasil durante o império (1822-1889) e na chamada primeira república (1889-1930), embora não se deva esquecer que, no meio de professores secundários desse velho tipo, houve, no Brasil, considerável número de homens notáveis, não somente pelas suas qualidades de letrados como pelas suas virtudes pedagógicas. Alguns deles destacaram-se como autores de livros didáticos que permanecem exemplos admiráveis de tais virtudes e expressões de espírito ou cultura parauniversitária (FREYRE, 2003, p. 92-93).

Na interpretação do autor, porém, ainda que diante dessa nova for-mação, em muitos casos persistia o ensino meramente retórico, mesmo no ensino de ciências experimentais como a física e a química, de tal modo que “Os museus ou laboratórios, raros e deficientes, quase não corrigiam os excessos de ensino abstrato” (ibidem, p. 93).

Podemos associar o veemente combate ao ensino excessivamente abstrato e retórico às experiências acadêmicas de Freyre nos Estados Uni-dos14, uma vez que o autor parece bastante entusiasmado com a realidade universitária que encontrou naquele país, incluindo seus métodos de ensino. Assim, não seria demais interpretar que, é na admiração que o autor aparenta nutrir pelo sistema de ensino norte americano que poderíamos encontrar algumas chaves analíticas para sua compreensão sobre educação.

Em conferência proferida na Faculdade de Direito do Recife, em 24 de maio de 1934, intitulada “O estudo das ciências sociais nas universidades americanas”, Freyre destaca que o ensino superior naquele país apresenta

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como função fazer o estudante pensar, possibilitando à geração nova uma reinterpretação dos valores transmitidos por seus antepassados. Há nesse ponto uma distância significativa da concepção de educação defendida por Durkheim, que veio a se difundir amplamente no Brasil junto às escolas normais em período posterior15.

Porém, um dos pontos mais interessantes diz respeito ao lugar da pesquisa empírica, ainda que se tratasse de um ensino que, sem ser livresco, permitia que os livros ocupassem um lugar de destaque:

Mas o estudo das ciências sociais não fica nos livros. O de sociologia e o de antropologia social, principalmente, incluem o chamado “field work” ou trabalho de campo; o “social survey” ou sondagem sociológica limitada a certo grupo ou área social; as entrevistas sociológicas; o levantamento e interpretação de estatísticas; e, ainda, a chamada “social case history” que é o documento colhido no vivo, com toda a objetividade possível e todo o es-crúpulo científico. Essas pesquizas, como visitas a fábricas, a penitenciarias, a serviços públicos, a hospitais, como a colheita de dados antropometricos em bairros característicos, escolas, oficinas; essa variedade de experiências e de contactos humanos, por assim dizer dramatisam o estudo das ciências sociais nos Estados Unidos, dando ao estudante o gosto de descobrir elle próprio os fatos, o sabor quasi físico de aventura entre os elementos básicos da vida social (FREYRE, 1934, p. 57).

Fica-nos ainda mais evidente que Freyre tomava esses princípios como relevantes para o ensino, na medida em que tentou aplicá-los tanto em sua experiência docente na Escola Normal de Pernambuco, no final dos anos de 1920, quanto na Universidade do Distrito Federal, já nos anos de 1930.

Segundo Meucci (2006), ao desenvolver seu programa de Sociologia para a Escola Normal, Freyre buscou evitar “enciclopedismos”; porém, sua maior ousadia e inovação no ensino residiam, sobretudo, na capacidade de estabelecer relação entre o conhecimento teórico e a realidade social mais próxima, o que pode ser percebido, por exemplo, na exigência que as alunas tivessem dois cadernos, um primeiro para as anotações mais gerais das aulas, e outro contendo testemunhos da vida social em fluxo. Mas será como pro-fessor da Universidade do Distrito Federal, de forma mais enfática quando lecionou a disciplina Pesquisas e inquéritos sociais, que ele aplicará essa inovação, de tal modo que seu curso começava não por conceitos abstratos gerais, mas sim pelos problemas sociais. Ainda segundo Meucci (2006, p. 162):

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Com efeito, um dos aspectos notáveis dos cursos de Freyre foi o estímulo ao trabalho de campo. E embora não houvesse nenhum Instituto de Pesquisa obrigado na Escola de Economia e Direito e o propósito da Universidade fosse, sobretudo, formar professores para o ensino médio e primário, a orientação era que, de fato, os alunos fossem capazes de formular hipóteses, elaborar inquéritos, confrontar conhecimento teórico e empírico.

Sendo assim, ainda que não tenha se tornado um autor especialista no debate educacional, encontramos em Freyre uma proposta de ensino e de formação docente, que só pode ser plenamente compreendida à luz de uma visão mais ampla de sua obra, uma vez que, se tratava aqui, acima de tudo, da formação do professor moderno, que emergia nessa sociedade em ebulição, especialmente em termos educacionais.

Em palestra proferida para professoras rurais, em 15 de maio de 1956, em Recife, Freyre expõe sua compreensão sobre o ensino, anunciando previamente que não trataria apenas sobre “o que é”, mas também como o que “deve ser”; ou seja, voltava-se para modificações que considerava desejáveis. Ele explicita que a escola proporciona uma compreensão racional da natureza, e que o ensino moderno é em grande parte científico, o que pressupõe também especialização (uma das marcas de nossa época), mas que isso não implicaria, em absoluto, domínio de um conhecimento restrito, no caso dos professores do meio rural, dado que os especialistas que se destinam ao meio rural deveriam ser:

[…] iniciados no conhecimento de uma sociologia da vida rural que desperte neles a atenção para problemas especificamente rurais de relações entre pessoas umas com as outras e entre grupos uns com os outros; inclusive para o que nesses problemas é psicológico ao mesmo tempo que social. Este conhecimento é particularmente necessário ao professor ou à professora rural. Tanto quanto o padre eles têm que lidar com almas (FREYRE, 1957, p. 8-9).

Por mais que se trate aqui de uma análise dos professores rurais, tendo em vista as atividades desenvolvidas durante sua experiência docente, deve-se levar em conta que, do ponto de vista de Freyre, a necessidade de conhecer os problemas sociais da realidade na qual se circunscreve a prática docente não é exclusiva desses professores, estendendo-se também ao espaço urbano. Voltando a sua crítica ao ensino abstrato, Freyre adverte: “Nada de tecnicismo hirto e fechado: como o agrônomo ou veterinário em meio rural, o professor ou professora deve ser um líder de reconstrução social; e não apenas um técnico” (ibidem, p. 10).

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Diante dessa necessidade, o autor não hesita em situar em outro tra-balho o lugar da Antropologia nesse cenário, ponderando que:

Dos problemas brasileiros de Antropologia, das questões americanas que pedem orientação e o auxílio da Antropologia aplicada para a sua solução ou tentativa de solução, seria erro grosso separarmos o problema da reforma do ensino. Não a reforma do ensino como a compreendem os pedagogos conven-cionais, fechados na sua pedagogia de gabinete e, quando muito, de laboratório (FREYRE, 1973, p. 138).

Em contraposição a essa postura dos “pedagogos de gabinete”, Freyre propõe uma reforma do ensino assentada sobre “[...] o conhecimento vivo [...] e com o máximo de aproveitamento dos nossos valores tradicionais e populares. Inclusive a poesia do povo, sua música, sua arte, seu folclore.” (ibidem, p. 140). Aponta como um exemplo exitoso a reforma empreendida na Dinamarca, onde escolas camponesas associam o ensino da Agricultura e criação de vacas e aves, com o da História, da Poesia e da Religião. Percebe-se sua tentativa de aplicar tais ideias quando esteve à frente do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife. Meucci (2012), ao analisar as pesquisas desenvolvidas neste Centro quando sob o comando de Freyre, assinala:

Ainda que nenhuma pesquisa fosse propriamente realizada pelo próprio Freyre, que chegou a ocupar o cargo de Diretor da DEPS, alguns dos temas expressam seus interesses. Destacamos nesse sentido as análises que pretendem iden-tificar áreas culturais e econômicas do nordeste com a pretensão de orientar políticas públicas (seja na área de saúde, educação ou cultura) adequadas às diversidades existentes em cada região (MEUCCI, 2012, p. 18).

Não seria exagero afirmar que no lastro de seus escritos e ações Freyre propõe uma renovação pedagógica para o Brasil, próxima aos moldes da educação que ele vivenciou nos Estados Unidos, na qual os livros são fundamentais (demandando uma sólida formação científica), porém em repúdio a um en-sino livresco, excessivamente abstrato, longe dos problemas sociais reais que subjazem a prática pedagógica.

CONSIDERAçõES FINAIS

Ao tomar esse “perfeito par de opostos” para pensar como questões alusivas à educação e ao professorado se apresentam no pensamento social brasileiro,

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não busquei exaurir o tema; longe disso; até mesmo porque para cada um dos autores aqui analisados demandaria uma série de estudos mais aprofundados para se discutir essa temática.

Sem embargo, desejo chamar a atenção para o fato de que, ainda que a Educação não tenha sido um tema prioritário na agenda de pesquisa de ambos – mesmo no caso de Florestan que possui alguns trabalhos mais sis-temáticos nesse campo –, devido a sua relevância social ela insistentemente aparece em ambos, seja em termos de produção acadêmica ou de prática profissional, em que pese experiências docentes de ambos – ainda que bas-tante distintas – e o envolvimento com o CBPE.

Observa-se que embora sejam substancialmente diferentes as abordagens de Florestan e Freyre, elas convergem na crítica a uma perspectiva de análise e prática educacional apartada do social. Ou seja, estes autores compreendem que a educação deve ser pensada e vivenciada em interlocução intensa com a sociedade, o que também se reverbera na prática dos professores, pensados em ambos os campos como agentes ativos nesse processo.

Outro ponto de convergência pode ser reconhecido na necessidade de se pensar uma formação científica para os professores, ainda que seja relevante assinalar a posição “ambivalente” de Freyre com relação à ciência, por rejeitar os “cientificismos”, apresentando mesmo uma postura “anti-científica”, que só lhe é possível por conhecer profundamente a produção do conhecimento científico (CARDOSO, 2013). Portanto, ao indicarmos uma aproximação entre esses autores, na compreensão da necessidade de uma formação científica para os professores, devemos reconhecer que “[...] há oposição diametral entre o modo gilbertiano de pensar e o paradigma de ciência social que veio a prevalecer na Universidade de São Paulo e que vem a difundir-se ou confundir-se com o paradigma de outras universidades, em São Paulo e noutros estados” (MOTTA, 2009, p. 149).

Não sem menor relevância, é oportuna a questão trazida por Freitag (2005), ao analisar o pensamento de Freyre e de Florestan (e também de Celso Furtado) à luz da teoria de Karl Mannheim – segundo a qual os intelectuais estariam interessados em desprender-se de suas origens de classe, visando realizar uma análise “objetiva” da sociedade – chegando a uma conclusão mais próxima da “[...] tese marxista que nossa Weltanschauung (visão de mundo) é reflexo das condições materiais em que vivemos. Das Sein bestimmt das Bewusstsein, isto é, ‘o ser determina a consciência’” (FREITAG, 2005, p. 236); ou seja, a análise da sociedade brasileira empreendida por esses autores encontrar-se-ia fortemente arraigada em suas origens de classe, o que nos possibilita compreender as diferenças entre ambos. Destaco também que

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embora o pensamento de Freyre não seja linear, parece-me que suas consi-derações acerca do ensino e dos professores aproximam-se mais da primeira fase de Florestan, dada a ruptura epistemológica vivenciada por este último, a partir do final dos anos de 1960, marcada por uma radicalização do seu discurso em uma franca aproximação do marxismo, havendo no “primeiro Florestan” uma aproximação mais enfática com Freyre na questão educacional, por meio da crença na necessidade de uma sólida formação científica – não apartada dos dilemas sociais – para os professores.

Afora as questões pontuais que possam ser assinaladas neste traba-lho, chamo a atenção para o fato de suscitar a possibilidade de pensarmos a aproximação entre Sociologia e Educação no Brasil, não como um movimento recente – ainda que, de fato, venha sendo fomentada de forma mais enfá-tica a partir dos anos de 198016, conforme balanços recentes (NEVES, 2002; MARTINS, WEBER, 2010; OLIVEIRA, 2013b) –, mas como algo constitutivo da Sociologia brasileira.

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NOtAS 1 Um dos pontos mais significativos das diferenças entre Florestan e Freyre diz respeito ao processo de interpretação das relações raciais no Brasil. Se-gundo Bastos (2002), ao questionar a tese de uma equilibrada interação social entre negros e brancos, apesar da exclusão econômica e política, Florestan dirigiu uma crítica diretamente à obra de Freyre. A respeito das diferenças entre esses autores, Motta (2000) indica que Freyre opunha-se a um modelo orto-histórico, a uma concepção progressista de desenvolvimento, de inspi-ração marxista ou weberiana. O que ficará ainda mais claro considerando os resultados aos quais chegam esses autores junto ao Projeto UNESCO, uma vez que, se o projeto UNESCO, tal como realizado na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, representou uma revolução paradigmática, tal como realizado em Pernambuco, por René Ribeiro em associação com Gilberto Freyre, representou uma contra-revolução, por estes encerarem o sistema de relações raciais em termos de miscigenação, encontro de culturas e tolerância dos contatos de raça (MOTTA, 2007).

2 Apesar do cuidadoso trabalho que Mazza desenvolve acerca da questão educacional, abarcando os textos produzidos entre 1941 e 1964, ela não refere a conferência proferida durante o I Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado em 1954, intitulada “O Ensino de Sociologia na Escola Secundária Brasileira”, publicada posteriormente em A Sociologia no Brasil, que se mostra como uma reflexão pertinente não apenas acerca do ensino de Sociologia, mas também sobre questões de ordem sociológica que se colocam ao pensarmos acerca da introdução de uma dada disciplina no currículo escolar, e do próprio lugar da escola na sociedade.

3 Para uma melhor análise acerca do histórico da Sociologia na Educação Básica, incluindo aí o seu retorno recente aos currículos escolares, vide os trabalhos de Santos (2004) e Oliveira (2013a).

4 O movimento da Escola Nova ganha notoriedade no Brasil principalmente após a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, que foi redigido por Fernando Azevedo. Para uma melhor análise do movi-mento, vide Xavier (2002).

5 É importante frisar que ao contrário dos dois primeiros, o curso da UDF teve vida curta (1935-1939), dado o enceramento das atividades dessa universidade ante ao advento e recrudescimento do Estado Novo (1937-1945).

6 Azevedo foi um importante sistematizador da Sociologia no Brasil, tornan-do-se catedrático nessa área, na Universidade de São Paulo, no período de sua implementação. Entre os diversos livros que escreveu sobre a temática, Sociologia Educacional – publicado em 1940 – ocupou posição de destaque por longo período, nos cursos de formação de professores das escolas nor-mais, juntamente com Sociologia e Educação, de Durkheim, autor no qual se inspirou amplamente.

7 Ainda que levantemos a temática da ligação entre a introdução da Sociologia no currículo escolar, especialmente nos cursos de formação de professores, e o movimento da Escola Nova, não é menos relevante lembrar o envolvimento dos intelectuais católicos nessa questão, tendo sido estes também importantes rotinizadores do conhecimento sociológico nesse momento, destacando-se as figuras de Alceu Amoroso Lima e Amaral Fontoura (MEUCCI, 2011). De

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acordo com Cigales (2014, p. 57): “[...] a disciplina de sociologia fez parte do cenário educacional brasileiro de euforia e disputa em torno da legitimação de espaços e ideias. Primeiro, porque se constituía como uma disciplina explicativa, e, portanto, os intelectuais ligados a cada um dos grupos – Re-novadores e Católicos – pensavam que seria possível através dela encontrar a explicação e a solução para os problemas sociais, econômicos e culturais. Segundo porque a sociologia era uma ciência que possuía diversas definições junto ao campo científico, o que facilitava sua vinculação a qualquer ideal ou cosmovisão de mundo. Assim tanto católicos quanto reformadores possuíam autoridade na explicação dos problemas baseados na sciencia sociológica.”.

8 Essa denominação de “teorias da reprodução” abrange um conjunto de autores que estavam preocupados na correlação existente entre o sistema escolar e a reprodução das desigualdades sociais. São mais conhecidos nesse campo: Althusser, Baudelot e Establet, Bowles e Gintis, e Bourdieu e Passeron. Para uma melhor análise dessas teorias, vide Nogueira (1990) e Silva (1992).

9 Para Florestan, a realidade social é movida tanto pela mudança cultural espontânea quanto pela mudança cultural provocada. Segundo ele, porém, “O que distingue a mudança cultural provocada da mudança cultural espontânea, portanto, não é o conteúdo intencional dos processos que as produzem, mas a maneira pela qual ele é elaborado. Assim, na primeira espécie de mudan-ça, o conteúdo intencional adere a um horizonte cultural que confere aos agentes humanos a possibilidade de escolher fins alternativos ou exclusivos e de pô-los em prática através de meios que assegurem, no mínimo, controle racional do desencadeamento e das principais fases do processo. Em outras palavras, isso quer dizer que o horizonte cultural em questão permite basear a escolha dos fins e dos meios na desirabilidade de certos efeitos, cuja relação com determinadas necessidades pode ser posta em evidência antes deles serem produzidos e cuja produção pode ser prevista, regulada e dirigida pelos agentes humanos.” (FERNANDES, 2005, p. 132).

10 Em que pese o longo período de discussão e de disputas em torno da pri-meira LDB, é interessante notar a participação ativa de diversos intelectuais no debate público do período, incluindo aí aqueles ligados à Escola Nova, bem como outros intelectuais vinculados à Igreja Católica. Para uma melhor análise do período vide o trabalho de Buffa (1979).

11 Para Freitag (2005), o ponto nevrálgico dessa passagem se dá com sua aposentaria compulsória da USP, em 1968, havendo ainda uma terceira fase, na interpretação da autora, que ela denomina de “militante solitário”, que pode ser melhor examinada no trabalho de Soares (1997).

12 No prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala, ele afirma: “O professor Franz Boas é a figura de mestre que me ficou até hoje maior im-pressão.” (FREYRE, 2005, p. 31); entretanto, Motta (2008) questiona até que ponto essa influência teria sido tão decisiva, indicando como um pensador que poderia tê-lo influenciado de forma mais decisiva Charles Maurras (1868-1952).

13 Apesar da influência decisiva dos Jesuítas no campo educacional brasileiro, Freyre (1959) não se furta de reconhecer a relevância de outras ordens religiosas nesse aspecto, cabendo nota para o papel dos franciscanos, especialmente em relação à sua influência na parte setentrional do Brasil.

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14 Larreta e Giucci (2007) chamam a atenção para outro elemento importante na constituição intelectual de Freyre, relacionado ao campo acadêmico norte americano, que diz respeito à influência da Escola de Chicago em seus escritos, cuja aproximação etnográfica estaria em inteira consonância com interesses de Freyre. Ainda segundo os autores, “A presença da sociologia de Robert Park e da Escola de Chicago na arquitetura conceitual do curso de Freyre e em Sobrados e mucambos põe em evidência os limites das fáceis etiquetas de classificação de autores” (p. 544).

15 No Brasil, foi publicado, em 1939, o livro Educação e Sociologia, de Durkheim, baseado na edição francesa de 1922, traduzido por Lourenço Filho (1897-1970), que era ligado à Escola Nova, tendo sido reeditado inúmeras vezes, exercendo forte influência nos cursos de formação de professores na sociedade brasileira, naquele período.

16 Podemos apontar como um dos marcos significativos dessa reaproximação a criação do Grupo de Trabalho “Educação e Sociedade”, no Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), bem como do Grupo de Trabalho “Sociologia da Educação”, em 1990, nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).

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RESUMOA educação não tem sido um objeto de investigação

privilegiado na pesquisa sociológica brasileira, ainda que te-nha havido nas últimas décadas um crescimento no interesse dos sociólogos pela temática; todavia, a gênese da Sociologia brasileira encontra-se visceralmente ligada à questão edu-cacional. Neste trabalho apresento brevemente essa origem educacional da Sociologia brasileira, e busco apreender como a questão da Educação se apresenta na obra de dois clássicos do pensamento social brasileiro: Florestan Fernandes e Gilber-to Freyre, e, apesar das diferenças substantivas entre estes autores, indico, nas considerações finais desse artigo, alguns pontos de aproximação na perspectiva de ambos acerca desse objeto de investigação..

ABStRACtThe education has not been a privileged object of study

in the Brazilian sociological research, although there has been an increase in recent decades in the interest of sociologists in the theme, however, the genesis of Brazilian sociology is viscerally connected to the educational issue. In this paper I briefly present this educational origins of Brazilian sociology, and seek to discover how the issue of Education presents the work of two classics of the Brazilian Social Thought: Florestan Fernandes and Gilberto Freyre, and despite of the substantive differences between the two, I indicate some approach points in the perspective of both about this research subject in the final considerations of this article.

Palavras-chave: pensamento social

brasileiro; sociologia da edu-cação; Florestan Fernandes;

Gilberto Freyre.

Keywords:brazilian social thought; sociology of education;

Florestan Fernandes; Gilberto Freyre.

Recebido para publicação em maio/2014. Aceito em julho/2014.

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Viver e interpretar o mundo social: para que serve o ensino da Sociologia?*

Bernard lahireProfessor de Sociologia na École Normale Supérieure de Lyon. Responsável pela equipe: “Disposições, poderes, culturas, socializações”, Centre Max Weber (UMR 5283 CNRS).

PARA QUE SERVE A SOCIOlOGIA?

Responder a questão: “Para que serve o ensino da Sociologia?” implica, desde já, a questão: “Para que serve a Sociologia?”

Os quadros de realidades sociais que nos descrevem as Ciências Sociais, em geral, e a Sociologia, em particular, têm, primeiramente, como ambição produzir um conhecimento o mais racional e justo possível do estado do mundo social. Eles podem evidentemente tornar mais conscientes das complexidades e das sutilezas da ordem social das coisas aqueles que esperam por em prática políticas de democratização social, escolar ou cultural ou ainda políticas de redução de desigualdades sociais

*Conferência Inaugural do III ENESEB (Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica), realizado entre 31 de maio e 03 de junho de 2013, em Fortaleza-CE.

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VIVER E INTERPRETAR O MUNDO SOCIAL46

e econômicas. Seria, no entanto, em vão querer deduzir conhecimentos científicos uma linha ou um programa político bem específico.

“Uma ciência empírica – escreveu Max Weber – não seria ensinar a quem quer que fosse o que ele deve fazer, mas somente o que ele pode – e se for o caso – o que ele quer fazer” (M. WEBER, Essais sur la théorie de la science. Paris: Presses Pocket, Agora, 1992, p. 125).

Podemos dizer, de maneira metafórica, que a descoberta científica de nosso sistema solar tornou possível muitos progressos tecnológicos, mas nunca ditou a conduta necessária a respeito dessa realidade física (não está inscrito nesse conhecimento a necessidade de ir por o pé na Lua nem mesmo de enviar homens ou animais ao espaço).

A respeito da escola, por exemplo, os trabalhos mundialmente conhecidos de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron sobre as desigualdades sociais em matéria de acesso ao saber ou à cultura (Os herdeiros e a reprodução) deram lugar a interpretações e a “traduções” políticas bem diferentes.

Elas são, com efeito, por vezes, inspiradas por linhas reformistas muito pontuais, guiadas pelas ideias segundo as quais seria necessário criar um ensino de “anti-desvantagem”. Para contrariar a reprodução das desigualda-des sociais através da Escola, pensou-se que seria necessário compensar as desvantagens sociais de início pelas pedagogias da anti-desvantagem. Seria necessário instalar em todos os níveis de escolaridade, uma pedagogia racional adaptada à recuperação cultural e linguística das crianças oriundas dos meios econômica e culturalmente mais desfavorecidos. A criação na França, nos anos 1980, das Zonas de educação prioritária, fundada na ideia de que seria preciso dar mais (tempo, modos material e humanos, etc) àqueles que têm menos (àqueles menos dotados socialmente), ia nesse sentido.

Outros deduziram iguais trabalhos; era necessário – para evitar o afas-tamento maciço dos alunos oriundos dos meios populares – diversificar as formas de excelência e não se limitar a um modelo restrito de seleção pelas matérias mais nobres do momento (latim, matemáticas, etc.).

Antes de obstinar-se a querer avaliar todos os alunos pela medida de um só padrão (privilegiando geralmente as capacidades de abstração, de reformalização, etc.), certos reformadores pensavam que seria necessário particularmente valorizar as culturas técnicas, tecnológicas, a aprendizagem profissional, prática ou artesanal, insistindo na pluralidade das formas de inteligência e de excelência.

Outros, enfim, se apoiando na mesma análise da relação das diferentes classes sociais do sistema escolar, deduziriam disso, nos anos 1970, que era a estrutura desigual do mundo social que deveria revolucionar e que todo

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progresso em matéria de acesso ao saber e à cultura dependeria da capa-cidade de “mudar as relações sociais de classe”. Somente uma “sociedade sem classes” poderia levar a uma real redução das desigualdades culturais.

Através desse exemplo histórico, vemos bem que se coloca a questão entre o “cientista e o político” (retomando o título de uma célebre obra do sociólogo Max Weber) ou entre os cientistas e os políticos. Mas geralmente, o que se coloca em questão aqui é a utilidade social ou política da Sociologia.

Para que e para quem serve a Sociologia? A Sociologia deve necessa-riamente “servir” a algo ou a alguém? E se ela tiver utilidade, qualquer que seja, qual deve ser sua natureza:

• política (pesquisador-expert, pesquisador conselheiro do príncipe, pesquisador dando armas de lutas aos dominados de toda natureza);

• terapêutica (a Sociologia como sócio-análise e meio de diminuir os sofrimentos individuais pela compreensão do mundo social e de seus determinismos),;

• cognitivo-científica (a Sociologia como saber, não tendo outros objetivos que o de ser mais verdadeiro possível)?

Eis uma série de questões que giram em torno da utilidade e da inu-tilidade efetivas ou desejadas da Sociologia, com as quais os pesquisadores são sempre inevitavelmente confrontados.

Visto que ela tem sua atenção mais frequentemente voltada para sua própria sociedade e para os fatos que são contemporâneos ou que têm repercussões no mundo contemporâneo; visto que ela preenche, por vezes, funções críticas, e que seus resultados são geralmente legíveis pelos mesmos “objetos” de suas pesquisas, a Sociologia é uma ciência comumente forçada a passar tanto tempo a explicar e a justificar seus procedimentos e sua exis-tência quanto a entregar os resultados de suas análises.

A singular situação das Ciências Sociais é, portanto, particularmente desconfortável. Porque não somente é exaustivo ter de responder, conti-nuamente, a questão “para que serve?”, como mais desconfortável ainda é o fato de que a resposta “isso não serve pra nada” está frequentemente na mente daquele que faz tal pergunta. É por isso que todo pesquisador que pretende fazer um trabalho científico e, por conseqüência, defender sua independência de pensamento contra toda imposição exterior à lógica de sua profissão, é levado, uma vez ou outra, a defender sua liberdade a despeito de toda espécie de demanda social (política, religiosa, econômica, burocrática...).

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Essa permanência à distância das demandas de utilidade toma formas diferentes, segundo outros autores e contextos. Por exemplo, Émile Durkheim, fundador francês da Sociologia, podia insistir na indiferença de princípio que deve adotar a Sociologia a respeito das conseqüências práticas de suas descobertas, quando ele estabelecia uma diferença clara entre Sociologia de educação (que diz “o que é”) e teorias pedagógicas (que determinam “o que deve ser”):

A ciência, escreveu ele, começa desde que o saber, qualquer que seja ele, é pesquisado por ele mesmo. Sem dúvida, o cientista sabe bem que suas descobertas serão de modo verossímil, suscetíveis de serem utilizadas. Ele pode até mesmo mostrar que direciona preferencialmente suas pesquisas sobre esse ou aquele ponto, porque ele pressente que elas serão assim melhor aproveitadas, e permitirão satisfazer a necessidades urgentes. Mas à medida que ele se entrega à investigação científica, ele se desinteressa pelas coisas práticas. Ele diz o que é, ele constata o que são as coisas, e ele se realiza nisso. Ele não se preocupa em saber se as verdades que ele descobre são agradáveis ou desconcertantes, se é bom que as relações que ele estabelece continuem como estão, ou se seria melhor que elas fossem de outra maneira. Seu papel é de exprimir o real, não o de o julgar [DURKHEIM, E. (1989). Éducation et sociologie (1938). PUF, Quadrige, Paris, p. 71].

O pesquisador pode também resistir ao apelo da utilidade (rentabili-dade) econômica dos saberes. Como escreveu Raymond Aron, no seu prefácio na tradução da obra de Thorstein Veblen The Theory of the leisure class,

[...] a curiosidade sem outra preocupação além do conhecimento, sem outra disciplina que aquelas que se impõem a ela mesma, sem consideração de utilidade que, na civilização pragmática e pecuniária, reside aquela de alguns e não de todos, essa curiosidade consagrada a ela mesma oferece uma garantia sobre o despotismo do dinheiro, uma probabilidade de progresso e de crítica [ARON, 1978, p. XXIII]

Ele pode, enfim, ver que a “utilidade” pode esconder uma relação servil frente aos dominantes (politicamente, culturalmente, religiosamente, economicamente...) e considerar que a produção de verdades sobre o mundo social vai frequentemente ao encontro das funções sociais de legitimação, de justificação dos poderes (e dos políticos) que podem querer atribuir às Ciências Sociais. A propósito, em 1980, declarou o sociólogo Pierre Bourdieu:

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[...] entre as pessoas das quais depende a existência da Sociologia, há cada vez mais pessoas para perguntar para que serve a Sociologia. De fato, a So-ciologia tem mais probabilidade de decepcionar ou de contrariar os poderes do que cumprir sua função propriamente científica. Essa função não é a de servir a algo, ou seja, a alguém. Pedir à Sociologia para servir a algo é sempre um modo de lhe pedir para servir ao poder. Enquanto sua função científica é compreender o mundo social, a começar pelos poderes; operação que não é neutra socialmente e que preenche sem nenhuma dúvida uma função social. Entre outras razões, porque não existe poder que não deva uma parte – e não a menor delas – de sua eficácia ao desconhecimento dos mecanismos que o fundam [BOURDIEU, P. (1980), Questions de sociologie. Paris: Minuit, p. 23-24].

Contra as injunções multiformes de produção de um “saber útil”, os cientistas sempre lutaram pela “curiosidade gratuita” ou a “pesquisa da verdade” nela mesma e por ela mesma.

Ao mesmo tempo, não se pode deixar de pensar que atrás de fortes reações frente às injunções de ser “útil” e de “servir”, se esconde uma defesa de uma outra forma de utilidade; uma forma de utilidade superior; superior pois, infinitamente mais desinteressada que a “utilidade” que se invoca quan-do se pede ao sociólogo para prestar toda uma série de serviços particulares (de informações, de perícias, de conselhos ou, pior, de legitimações dessa ou daquela ação, dessa ou daquela política).

O mesmo Durkheim, que defende a pesquisa desinteressada do saber “por ele mesmo”, declara sobre isso na introdução de A divisão do trabalho social (1895), que “a sociologia não vale uma hora de sacrifício se ela não tiver ao menos um interesse especulativo”. E ele precisa isso em suas lições de sociologia:

Um povo é tanto mais democrático quanto mais considerável é o papel desempenhado, na marcha dos negócios públicos, pela deliberação, pela reflexão, pelo espírito crítico. E é tanto menos democrático quando, ao contrário, mais preponderem, nessa marcha, a inconsciência, os hábitos inconfessados, os sentimentos obscuros, os preconceitos, numa palavra, os escapos ao exame (DURKHEIM, E. Leçons de sociologie. Physique des moeurs et du droit. 1890-1900).

É evidente que, para ele, as Ciências Sociais fazem parte plenamente desse trabalho de deliberação, de reflexão e desse espírito crítico. Ele es-creve ainda: “O cientista tem o dever de desenvolver seu espírito crítico,

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de não submeter seu entendimento a nenhuma outra autoridade que não seja a da razão” (idem).

Filhas da democracia, as ciências sociais – obviamente mal vistas pelos regimes conservadores e erradicadas pelos regimes ditatoriais – servem (à) democracia e são preocupantes. Porque a democracia partiu ligada, na história, com as “Luzes” (les Lumières) e, notadamente, com a produção de “verdades sobre o mundo social”: verdade dos fatos objetiváveis, mensurá-veis, que é infelizmente a verdade das desigualdades, das dominações, das opressões, das explorações, das humilhações...

Na falta de ciências sociais fortes, e cujos resultados são o mais am-plamente difundidos, os cidadãos ficariam totalmente desprovidos face a todos os provedores (produtores ou difusores) de ideologia, multiplicados ao longo das últimas décadas numa sociedade na qual o lugar do simbólico (ou seja do trabalho sobre as representações) é consideravelmente apagado. O papel dos especialistas da comunicação política (melhor, porém, seria falar de “manipulação política”) ou do marketing, dos jornalistas, dos pes-quisadores, quase cientistas, dos retóricos mais ou menos hábeis, enfim, de todos os sofistas dos tempos modernos, não parou de crescer, e é, portanto, imprescindível transmitir, o mais racionalmente possível e para o maior número de pessoas, os meios de decifrar e de contestar os discursos de ilusão sobre o mundo social.

O ENSINO DA SOCIOlOGIA

O ensino da Sociologia, que eu desejaria pessoalmente, que fosse introdu-zido o mais cedo possível, desde a Escola primária, desempenha, a meu ver, um papel crucial para a vida coletiva e para a formação de cidadãos nas sociedades democráticas. Sustento que o ensino pedagogicamente adaptado da Sociologia desde a Escola primária1, constituiria uma res-posta adequada (e muito melhor que outras) às exigências modernas de formação escolar dos cidadãos.

AlGUNS OBStáCUlOS A tRANSPOR

Várias objeções são muito espontaneamente levantadas desde o momento em que se evoca um tal projeto de ensino de uma série de aquisições e de ferramentas produzidas ao longo de sua história pela Sociologia. É importante responder a tais interrogações.

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1. É imaginável ensinar uma ciência que é tida e se apresenta geral-mente como conflituosa (as lutas entre as “escolas” ou “correntes” teóricas tornariam impossível a constituição de um fundo de aquisições comuns), e por vezes até ideológica?

Poderíamos responder a tal interrogação perguntando, primeiramente, por que a fazemos particularmente a respeito da Sociologia. Considerando uma disciplina como a História – ensinada em um país como a França, desde Escola primária –, constatamos a mesma diversidade que na Sociologia, de métodos, de modos de construção da realidade histórica, os mesmos debates sobre a cientificidade (ou a não-cientificidade) da História e sobre seus laços com concepções ideológicas. Esta diversidade intrínseca das maneiras de fazer e de escrever a história (história quantitativa ou micro-história, história política das ideias ou história social da cultura, história estrutural ou história factual.) não impede, todavia, essa disciplina de estar presente desde a Escola primária. A diversidade teórica e metodológica não é absolutamente um sintoma de não-cientificidade, mas o sinal de um funcionamento “normal” das pesquisas. Do mesmo modo, qual literatura estamos ensinando? O que é que provoca a naturalidade e a evidência do ensino da literatura (de uma parte do patrimônio literário), senão o hábito que nós temos de vê-las no cenário escolar?

Como em toda ciência, as diferenças, os conflitos de “escola” ou de “correntes” teóricas (sinais mais frequentes de uma boa saúde crítica dessas disciplinas) não impedem a existência de um campo de referencias e de aqui-sições comuns por quem pratica ordinariamente sua profissão: aquisições teóricas (exigência de um modo de pensamento relacional contra os modos de pensamento essencialistas, o método comparativo ou o relativismo antro-pológico) e metodológicas (observações, entrevistas, questionários e modos de tratamento dos dados quantitativos). E é graças a toda essa tradição e aos constrangimentos empíricos que pesam sobre eles que as ciências do mundo social não são redutíveis a “puras ideologias”, como gostariam todos aqueles (entre os produtores profissionais de discurso sobre o mundo social) que têm algum interesse de não ver essas ciências se desenvolverem (se estender e ganhar em legitimidade). O que faz com que o conhecimento sociológico não seja um conhecimento do mundo social “como outros” (religioso, políti-co, ideológico, etc.) e que ele possa pretender certa robustez diante dos fatos sociais observáveis, é que ele é uma construção racional apoiada nos dados produzidos segundo métodos (explícitos) específicos.

O medo que alguns experimentam diante da ideia de ver entrarem nos programas oficiais da disciplina temas “ideológicos” (controversos e

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polêmicos), ou simplesmente “sociais”, conduz paradoxalmente os alunos a ficarem desprovidos face a todos os provedores (produtores ou difusores) de ideologia, multiplicados ao longo das últimas décadas nas nossas sociedades fortemente escolarizadas. O papel dos especialistas da comunicação política (melhor, porém, seria falar de “manipulação política”) ou de marketing, do jornalismo, dos quase cientistas, dos retóricos mais ou menos hábeis, enfim, de todos os sofistas dos tempos modernos, não parou de crescer, e é crucial transmitir o mais racionalmente possível para o maior número de pessoas, os meios de decifrar e de contestar os discursos de ilusão sobre o mundo social. Erro de cálculo republicano que conduziria, por intuito de conservar uma pseudo-neutralidade escolar, a querer fora das paredes da escola os “problemas” ou “fatos” sociais e ideológicos que se colocam e se impõem. Por que não ensinar as ferramentas e as maneiras de pensar que as ciências sociais constituíram de maneira eficaz há mais de cem anos, ao invés de deixar os futuros cidadãos construírem (ou não) seus saberes sobre o mun-do social, no seio de suas estruturas familiares ou nos quadros tradicionais da socialização (ensino religioso, socialização política e sindical, etc.)? E se julgará aqui que, do “retorno ao ensino moral”, regularmente proposto em matéria de “formação para a cidadania” ou da introdução pedagogicamente adaptada com um certo número de atitudes e de ferramentas inventadas pelas ciências sociais, é o mais adaptado às exigências dos tempos modernos...

Uma vez doravante capazes de ensinar a atitude científica concernente ao mundo físico e natural, nós deixamos tranquilamente se desenvolverem disposições mágicas e pré-racionais a respeito do mundo social. Norbert Elias mostrou bem que, ao longo da história, os homens progressivamente conquistaram uma atitude de distanciamento, primeiramente em relação aos fenômenos naturais, depois, mais dificilmente, em relação aos fenô-menos sociais. Com efeito, os homens das sociedades pré-científicas foram materialmente e cognitivamente impotentes frente aos “caprichos da natu-reza”. A ciência se inscreve num processo de distanciamento e de controle dos efeitos e, por consequência em um processo de civilização. Oferecendo meios de não tomar seus desejos (ou seus medos) como realidade, de ver as coisas de maneira menos diretamente apegadas à posição, aos interesses e aos fantasmas daquele que vê, a atitude científica permite sair progressivamente da relação subjetiva, emocional e parcial à realidade:

Os membros da sociedade onde reina a ciência não são, geralmente, conscientes do alto degrau de distanciamento, do controle de si e da neutralidade afetiva requeridos para reconhecer que os acontecimentos que levam ao seu prazer

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ou sofrimento – e, sobretudo, do sofrimento – podem ser perfeitamente o resultado não intencional de causas inanimadas, de mecanismos naturais sem objetivo ou daquilo que nós chamamos de “acaso” (ELIAS, N. Engagement et distanciation. Contributions à la sociologie de la connaissance. Paris: Fayard, 1993, p. 95).

Frente à natureza, as sociedades têm, bem ou mal, encontrado res-postas. Porém, elas têm muito mais dificuldades no que concerne às relações inter-humanas. Elias nota, precisamente, um enfraquecimento da atitude distanciada quando se passa, nas sociedades industriais, da relação individuo / natureza às relações de interdependência interindivíduos (intraestadistas) ou intersociedades (interestadistas). Todavia, o desenvolvimento sem precedente das ciências sociais nas universidades ao longo do séc. XX, sua presença em numerosas formações universitárias ou profissionais e sua introdução no lycée2 vão claramente no sentido de extensão de uma relação mais equipada, mais informada e mais racional ao mundo social, enfim, de um conhecimento comum mais científico da realidade social.

2. Pelo seu conteúdo e sua forma, essas ciências sociais não são intrin-secamente voltadas a intervir apenas ao nível de uma formação superior?

Se pensarmos imediatamente em teorias, conceitos ou “grandes autores”, é bem evidente que a Sociologia não é transmissível no âmbito da Escola primária. É evidente, por consequência, que é a adaptação com razão de um certo número de ferramentas e de aquisições fundamentais dessas ciências que se trataria de ensinar; e não uma cultura científica-universitária: os comentários científicos sobre a sociologia compreensiva de Max Weber ou a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss não têm, com efeito, nada de semelhante ao nível escolar. A tradução de “saberes científicos” em “saberes escolares” tendo tido êxito na Escola primária – tanto com ciências do homem próximas da Sociologia (a História e a Geografia) quanto com ciências ainda mais abstratas e formais (as matemáticas) –, não vemos o que impediria os sociólogos de proceder da mesma forma.

Por outro lado, o que pensar sobre programas e instruções oficiais que, na França, exigem o ensino das “instituições da República” e seu funcionamento: “a República, seus símbolos e sua divisa; o presidente da República, sua eleição ao sufrágio universal; os parlamentares; a elaboração e o papel da lei; a justiça; os eleitos locais, em particular o prefeito da comuna – um exemplo de serviço público3”? Tudo acontece como se a imaginação pedagógica em matéria osci-lasse entre a lição de moral e o curso de ciências políticas...

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3. Não seria demasiadamente difícil, para jovens entre 6 e 11 anos, se construirem no seio de culturas (nacional, regional, familiar, escolar, etc.) e se habituarem, ao mesmo tempo, a tomar distância ou a desenvolver uma certa reflexividade com relação a esses mesmos pontos culturais?

É comum conceber os instrumentos de reflexividade como ferramenta que intervém apenas “em um segundo momento”, depois de uma fase de aprendizagem, interiorização ou de incorporação necessariamente pré- re-flexiva. Seria, assim, impossível aprender a teoria do caminhar ao mesmo tempo em que se aprende a caminhar.

A reflexividade viria somente depois que a aprendizagem “às cegas” (não- consciente) fosse posta em prática. É verdade que, ao longo do seu processo de socialização, a criança não tem a possibilidade de interiorizar sua cultura e de aprender num mesmo movimento seu caráter arbitrário de um ponto de vista cultural, histórico ou civilizacional. É necessário, com efeito, que ela comece a ver o mundo a partir de um ”ponto de vista” qual-quer para que se possa começar a fazê-la aprender a diversidade dos “pontos de vista”; é necessário que ela construa sua personalidade a partir de um ponto particular do mundo social, do tempo e do espaço, ou seja, que ela se inscreva em uma cultura, um lugar, e em um determinado tempo, para que seja possível fazê-la compreender a “relatividade” de sua situação cultural, temporal e espacial.

Todavia, isso significa a necessidade de esperar o lycée para começar a adquirir o hábito de certa descentração em relação a seu (ou antes, seus) meio(s) de vida, o raciocínio comparativo ou o pensamento racional a respeito de fatos sociais? Esperar o lycée para constatar que hábitos não-científicos de pensamento sobre o mundo social impeçam muito seriamente – e como poderia ser de outra forma, depois de tantos anos passados sem nada cons-truir na matéria? – a instalação de novos hábitos de pensamentos ligados às ciências do mundo social.

Se podemos facilmente admitir o fato de que a criança deve primeiro “saber falar” antes de aprender a ler, a escrever e a constituir a língua como objeto de estudo, não é nada menos que o sistema francês ensina hoje em dia, e isso desde os seis anos, a leitura a escrita e rudimentos da gramática francesa. A reflexividade linguística seria menos abstrata do que a reflexi-vidade em relação ao mundo social? Pensando bem sobre isso, poderíamos ser levados a concluir que é a constituição da língua como objeto de estudo e de reflexão que se revela um exercício bem mais estranho ainda para as crianças. A construção de si através de diversas instâncias de socialização não seria, portanto, incompatível com a aptidão adquirida desde a escola

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primária ao considerar o mundo social a partir de um pensamento menos mágico e mais científico.

A ideia, segundo a qual ensinar reflexividade e recuo até mesmo na formação moral e cultural da criança, constituiria uma operação psicolo-gicamente desestabilizadora é, no fundo, a manifestação de um profundo etnocentrismo. Pensar que é necessário construir suas referencias, suas “mar-cas”, sua “identidade”, antes mesmo de poder começar a tomar consciência da diversidade social (cultural, civilizacional, política, etc.) é, com efeito, o melhor meio de conduzir a todas as formas de etnocentrismo, consistindo em “repudiar pura e simplesmente formas culturais: morais, religiosas, sociais, estéticas que são as mais distantes daquelas com as quais nos identificamos” (LEVI-STRAUSS, C. Race et histoire. Paris: Folio, 1987, p. 19). O estado atual do mundo social exigiria mais imaginação e deveria, notadamente, levar a pensar que a identidade individual e a personalidade da criança não podem mais doravante se construir fora do exercício de reflexão que lhes confere às ciências sociais.

A FAMIlIARIzAçãO COM DIFERENtES FORMASDE INVEStIGAçãO

Como já foi dito, o objetivo de um ensino precoce da Sociologia não deve-ria ser essencialmente aquele de difundir um conhecimento de natureza enciclopédica. Não se trata, a meu ver, de ensinar “teorias”, “métodos” ou “autores”, mas de transmitir hábitos intelectuais fundamentalmente ligados a essas disciplinas. Como transmitir tais hábitos intelectuais à escola primária senão pelo estudo de “caso”, de “exemplos” visíveis de diferenças culturais (e.g. comparar as diferenças alimentares de uma sociedade a outra, relacio-nando essas diferenças às condições de existência das populações, ao clima, ao tipo de agricultura, etc.), assim como pela participação ativa dos alunos nas verdadeiras investigações empíricas. Do mesmo modo que os alunos adquirem o hábito de fazer quotidianamente o levantamento de temperatura para objetivar e tomar assim consciência dos fenômenos meteorológicos , eles poderiam ser treinados para a observação e para a objetivação do mundo social. Se a experimentação está no fundamento das ciências da matéria e da natureza, o espírito de investigação está na base de todo o mundo social.

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A OBJEtIVAçãO EtNOGRáFICA

Uma das primeiras qualidades que o “olhar sociológico” (E. C. HUGHES, Le regard sociologique. Essais sociologiques. Éditions de l’EHESS, textesrassem-blés et présentés par J.-M. CHAPOULIE, Paris, 1996.) supõe é uma capacidade de descrição e de narração daquilo que é possível observar diretamente (paisagens, lugares, ambientações, objetos, personagens, maneiras de falar ou de fazer), quando estamos armados de nossos sentidos e de nossas cate-gorias de percepção do mundo social. A descrição e a narração, estando no programa de Escola primária, não seria impensável orientar, por vezes, essas tarefas em direção ao estudo dos comportamentos observados (melhor que imaginados): comportamento dos alunos durante a recreação (as meninas e os meninos jogam o mesmo jogo? Os alunos de CP jogam os mesmos jogos que aqueles do CM2?), cenas de filmes disponíveis em fitas de vídeo (e que podemos vê-las e revê-las quantas vezes forem necessárias), etc.

Desprovido de categorias léxicas, o olho do observador não pode achar os meios de se fixar com precisão sobre as realidades observadas. Assim, a qualidade de uma narração ou de uma descrição depende, em parte, da sua riqueza léxica. A descrição e a narração de cenas realmente observadas (e não de um fato ou de elementos imaginários) são, portanto, a ocasião de aprender a nomear as coisas, a discriminar as situações, a designar gestos, mímicas ou atitudes. É também a ocasião de mostrar que os comportamentos individuais não se compreendem de maneira isolada, mas sempre “em relação a”, “em reação frente a”, “em interação com”, outros elementos do contexto (outros indivíduos, objetos, palavras ou gestos). Desse ponto de vista, os professores (e os manuais escolares) poderiam se inspirar nas exigências da literatura naturalista que visa compreender o homem e sua psicologia, relacionando-a ao seu meio de pertença (Cf. É. ZOLA, Le Roman expérimental, op. cit. et la belle étude de Jacques Dubois sur les romanciersréalistes J. DUBOIS, Les Romanciers du réel, op. cit.).

A OBJEtIVAçãO EStAtíStICA

Os alunos bem que poderiam ser encorajados a criar coletivamente, questio-nários sobre temas escolhidos por eles. Poderiam, do mesmo modo, aplicar esses questionários e dar os resultados por meio de contagem simples (a noção de proporção sendo abordada desde os nove anos) para aprender o espírito de investigação e adquirir o sentido e o interesse pelas investigações sobre os (relativamente) números elevados. Poderíamos imaginar, por exemplo,

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que os alunos de uma classe conceberiam uma investigação por questionário sobre o conjunto de alunos de sua escola (e.g. sobre os gostos musicais dos alunos; sobre suas opiniões quanto a alguns aspectos da vida coletiva, etc.).

A ENtREVIStA SOCIOlóGICA: UM ExERCíCIO DEMOCRátICO

Considerando a prática de pesquisadores em ciências sociais, podemos perfeitamente sustentar que a entrevista do tipo sociológica (que se opõe a entrevistas burocrática, policial, de emprego, etc.) – que procura compreender e não julgar, que obriga a se colocar no lugar da pessoa entrevistada, que se propõe escutar atentamente o que o interlocutor tem a dizer, e mesmo aju-dá-lo a dizer, e não lhe impor suas próprias categorias sociais de julgamento ou de interrompê-lo sem parar, etc. – constitui um verdadeiro exercício de democracia. Trata-se de uma técnica que permite realmente “atingir”, em ato, o clássico (mais impreciso) “respeito aos outros”. Aprender a ser atento; a desenvolver uma escuta paciente, compreensiva e curiosa; a lançar uma discussão no momento oportuno, eis um meio concreto de adquirir certos valores que, limitados ao estado de slogans democráticos, levantam do sim-ples (e inútil) prêchi-prêcha4.

A NECESSIDADE HIStóRICA DO ENSINO DAS CIÊNCIASDO MUNDO SOCIAl

Tentei explicar o que faz, a meu ver, o interesse e mesmo a necessidade histórica do ensino da Sociologia desde a Escola primária. Essa ciência se construiu historicamente contra as naturalizações dos produtos da história; contra todas as formas de etnocentrismo fundadas sobre a ignorância do ponto de vista (particular) que temos sobre o mundo; contra as mentiras deliberadas ou involuntárias sobre o mundo social. Por essa razão, ela me parece de primordial importância no âmbito da cidade democrática moderna.

A Sociologia se impôs, pouco a pouco ao longo de sua historia, pressões geralmente severas, em matéria de pesquisa empírica da verdade, na precisão direcionada para o rigor na administração da prova; e se distingue, por isso mesmo, de todas as formas de interpretações arriscadas do mundo. Passando da filosofia social, que poderia dissertar de maneira geral e pouco controlada, ao conhecimento teórico-metodológico armado e empiricamente fundado do mundo social, os sociólogos inventaram, assim, uma forma racional de co-nhecimento sobre o mundo social que pode legitimamente pretender a certa verdade científica (mesmo se esta, como nas outras ciências, não é jamais

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definidamente estabelecida). Quando são fundadas na investigação empírica (de qualquer natureza), as ciências sociais podem, assim, utilmente, em uma democracia, constituir um contrapeso crítico ao conjunto dos discursos par-ciais mantidos sobre o mundo social, dos mais públicos e poderosos (discursos políticos, religiosos ou jornalísticos) aos mais comuns.

Investidos em suas diversas ocupações comuns, familiares ou pro-fissionais, lúdicas ou culturais, os atores das sociedades diferenciadas têm finalmente apenas uma visão extremamente limitada de um mundo social complexo. A divisão social do trabalho obriga, e eles consagram seu tempo e sua energia a atividades tão circunscritas e localizadas, que dificilmente têm tempo e meios de recompor os quadros mais gerais nos quais estão inseridos. A visão horizontal é uma visão de proximidade, uma visão “de baixo” e um pouco curta. Aonde “a sociedade” – esse monstro complexo e invisível – se mostraria, hoje em dia, sem as ciências sociais racionais e empiricamente fundadas, se não nos discursos públicos estatais, políticos, jornalísticos, publicitários, religiosos ou morais, que pintam, cada um a sua maneira o retrato deformado de uma época. Quando lemos jornais, ligamos nossa te-levisão, escutamos discursos políticos, etc., nós nos encontramos diante de “resumos do mundo social”, mais ou menos gerais, que conferem uma forma a esse último, tornando-o por conseguinte compreensível pelas consciências individuais. Essas entidades, um tanto imprecisas, as quais designamos por vezes de “problemas sociais” ou de “fatos da sociedade”, e que constituem o objeto de todas as atenções públicas, são sempre meios de transformar o monstro complexo e invisível em uma figura simples e visível.

As ciências sociais têm por objetivo fazer ascender a realidades que permanecem invisíveis frente à experiência imediata. Por seu trabalho coletivo de reconstrução paciente, elas oferecem imagens particulares do mundo social, de suas estruturas, das grandes regularidades ou dos principais mecanismos sociais que os regem.

Essas ciências são capazes de elaborar um “conhecimento mediato” da realidade; ou seja, elas podem construir objetos jamais observados, vistos ou “vividos” como tais, e sem nenhuma visibilidade de um ponto de vista comum: probabilidades de repetência escolar por origem social, taxas de inflação em um dado período de tempo, movimentos populacionais, etc. Esse conhecimento mediato – que permite ultrapassar o horizonte limitado de todas as visões que reduzem o mundo social ao que os atores puderam sentir, pensar ou dizer dele – supõe numa dissociação da percepção e do conhecimento: se trata de conhecer o mundo fora da percepção direta ou imediata deste, por reconstrução da realidade a partir de um conjunto de

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dados coletados, criticados, organizados, agregados e postos em forma de diferentes maneiras.

As ciências sociais se distinguem, portanto, dos outros gêneros de dis-curso pela possibilidade que lhes é dada de se aterem a imagens mais longas, mais sistemáticas, mais controladas. As imagens que elas obtêm dependem, decerto, sempre de um ponto de vista parcial e teoricamente limitado, mas elas são ao mesmo tempo racionais e empiricamente fundadas. Do mesmo modo, em relação às diferenças dos discursos públicos comuns, as ciências sociais sublinham o caráter fundamentalmente histórico – e por conseguinte, não-natural e mutável – daquilo que elas descrevem e analisam. No lugar de nos “contar histórias” e de reforçarem os estereótipos de todo tipo, os pesqui-sadores tornam problemáticas as evidências menos discutidas e despertam “nossas consciências sonolentas”, levando um olhar rigoroso, interrogador e crítico sobre o estado do mundo. O que seriam as representações do mundo social dos jovens “lycéens” sem um conhecimento mínimo do mercado econômico, das organizações produtivas e da estratificação social, das de-sigualdades econômicas, sociais ou culturais, das estruturas de parentesco e das formas contemporâneas da família, dos processos de socialização ou dos determinantes sociais de consumo? Ousamos, com dificuldade, pensar no recuo histórico que representaria um universo onde a grande maioria dos futuros cidadãos desprovidos de todo conhecimento científico sobre o estado do mundo, no qual vivem, ficassem nas mãos de alguns sofistas dos tempos modernos.

Os estados, em toda parte do mundo, sublinham a necessidade de formar para a cidadania, e visam geralmente responder a essa exigência pelo ensino moral ou da educação cívica. Ora, as ciências do mundo social poderiam e até mesmo deveriam estar no centro dessa formação: o relativis-mo antropológico (que não tem nada a ver com um indiferentismo ético), a tomada de consciência da existência de uma multiplicidade de “pontos de vista” ligada às diferenças sociais, culturais, geográficas, etc., o conhecimento de certos “mecanismos” e processos sociais etc., tudo isso poderia utilmente contribuir para formar cidadãos que seriam um pouco mais sujeitos de suas ações em um mundo social desnaturalizado, um pouco menos opaco, um pouco menos estranho e um pouco menos indomável.

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NOtAS 1 Correspondente ao que se denomina Ensino Fundamental, hoje, no Brasil.

2 Equivalente ao Ensino Médio brasileiro.

3 Programas da escola primária, Ministério da Educação Nacional, Direção das escolas, CNDP, Paris, 1995, p. 71. Nos novos programas (2002), se prevê desde o ciclo 2 que o professor explique notadamente aos alunos “a signi-ficação dos grandes símbolos da França e da República: o hino nacional, a bandeira, alguns monumentos...”, O que se aprende na escola elementar?, op. cit., p. 98.

4 Discurso enfático com tom moralizante.

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RESUMOO artigo argumenta que o ensino pedagogicamente

adaptado da Sociologia, tal como acontece em outras ciências sociais (história e geografia) ou matemática, desde a esco-la primária, permitiria construir uma resposta adequada às exigências modernas de formação escolar dos cidadãos nas sociedades democráticas. Tornaria possível difundir entre os jovens um olhar rigoroso, interrogador e crítico sobre o mundo, contribuindo para entender o mercado econômico, as orga-nizações produtivas a estratificação social, as desigualdades econômicas, sociais ou culturais. A tomada de consciência sobre a existência das diferenças sociais e culturais contribuiria a desnaturalização do mundo social e para formar cidadãos mais sujeitos de suas ações.

ABStRACtThe paper argues that the pedagogically adapted teach-

ing of Sociology, as with other social disciplines (history and geography) or mathematics, starting from primary school, would allow the building of a proper response to the modern demands of education of citizens in democratic societies. It would also make it possible to disseminate among the young a rigorous, interrogative, and critical world view, contributing to a better understanding of the economic market, productive organizations, social stratification, as well as economic, social and cultural inequalities. Knowledge of the existence of social and cultural differences would contribute to the denaturalization of the social world and to the formation of citizens who are subjects of their own actions.

Palavras-chave: Ensino de sociologia,

pedagogia, cidadania, conhecimento crítico.

Keywords:teaching sociology,

pedagogy, citizenship, critical knowledge.

Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em agosto/2014.

Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, jan/jun, 2014, p. 63-85

O ofício de ensinar para iniciantes: contribuições ao modo sociológico de pensar

Irlys Alencar Firmo BarreiraProfessora titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, pesquisadora do CNPq.E-mail: [email protected]

INtRODUçãO Sendo o professor detentor de um saber que certamente é aprimo-rado ao longo de sua prática pedagógica, supõe-se que o ensino torne-se uma tarefa mais fluente com o passar dos anos. Se essa assertiva parece aplicável a diversos ramos do conhecimento, em se tratando da sociologia a evidencia parece mais complexa. De fato, o que e como ensinar são sempre desafiantes. Não por acaso, as disciplinas introdutórias de sociologia criam fortes tensões, pela expectativa desenvolvida por alunos iniciantes a respeito do conteúdo do programa. Assimilar a arte do ofício,

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no sentido do artesanato intelectual preconizado por Wright Mills, implica uma aprendizagem construída ao longo do tempo que não se realiza apenas na sala de aula, mas no decurso da própria experiência de pesquisa, o que confere especificidade ao saber sociológico. O autor do livro A imaginação sociológica, trabalhando com base em arquivo especializado da produção acadêmica, supunha a sociologia como um ofício1 continuado, um senso útil para a aplicação do método e da teoria como partes interdependentes de uma totalidade2.

Se a condição artesanal da prática sociológica implica a necessidade de um processo lento de articulação entre ensino e pesquisa, esse fato não invalida a possibilidade de abordar e analisar questões de cunho sociológico para iniciantes na matéria. Embora a complexidade da transmissão do saber sociológico já se imponha na formação de futuros profissionais da área, ensinar sociologia para os que não seguirão a carreira profissional suscita outras ques-tões. Estas, vigentes sobretudo no momento em que o pragmatismo domina as escolhas vocacionais, fazendo emergir a pergunta “para que serve?”, antes mesmo da apreensão do significado do conhecimento da matéria. Conside-rar, por outro lado, que a sociologia resume-se a uma forma de aprendizado rumo a um engajamento político é no mínimo empobrecer as possibilidades de exploração desse campo de saber e suas potencialidades de uso, mesmo para discentes que não irão aprofundar-se no assunto.

Quando a sociologia se constituiu em disciplina obrigatória para o Ensino Médio3, o debate sobre como deveria ser a formação pedagógica do profissional da área, ou reflexões a respeito de como transmitir ensinamentos sobre esse campo de saber vieram à tona com nitidez. Vale registrar que a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional incluiu, inicialmente, a sociologia no Ensino Médio mas não instituiu a obrigatoriedade na ocasião. Só posteriormente, a regulamentação da sociologia como disciplina obrigatória no Ensino Médio das escolas particulares e públicas, suscitou, entre os profissionais da área, preocupações sobre o modo como pôr em prática uma pedagogia adequada a essa tarefa. A introdução da obrigatoriedade da sociologia no Currículo trouxe como principais tarefas a criação de condições referentes à formação de pro-fessores, à produção de material didático especializado, à implementação de pesquisas sobre experiências de ensino da matéria e à formulação de novas políticas acadêmicas com ênfase na pedagogia.

É importante mencionar que o primeiro Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado no período de 21 a 27 de junho de 1954, em São Paulo, abordou a temática, tendo como principal referencia as formulações de Florestan Fernandes. Em exposição denominada “O ensino da sociologia

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na escola secundária brasileira”, o sociólogo destacou o caráter formador da disciplina, tendo em vista, a capacidade de fazer com que os estudantes pudessem compreender o seu tempo, assumindo uma atitude crítica e objetiva diante dos fenômenos sociais. A percepção da sociologia como conhecimento capaz de elucidar processos sociais e históricos, associados a dinâmicas da vida cotidiana, esteve fortemente presente nas discussões.

As reflexões de profissionais pioneiros na formação e consolidação da sociologia brasileira, após cinco décadas, não se separam das discussões atuais4. A permanência de antigos dilemas pedagógicos revela a complexidade da questão, considerando-se que as idas e vindas da oficialização da disci-plina, no Ensino Médio, têm sido permeadas de concepções diversificadas provenientes do campo acadêmico. A polêmica sobre a prioridade conferida ora à formação pedagógica – que valorizou o curso de licenciatura –, ora ao bacharelado – com ênfase na formação de pesquisadores –, repercutiu sobre a criação de profissionais especializados no ensino de sociologia. Atualmente, as formulações sugeridas pelo Ministério da Educação (MEC) supõem a necessária aliança entre ensino e pesquisa, levando-se em conta as dificuldades dessa separação que termina criando ambiguidades ou disputas na formação do profissional da área de sociologia. Disputas não separadas de diretrizes institucionais, a exemplo do processo de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com ênfase na produtividade como critério de excelência e valorização da formação de pesquisadores.

Fruto de propostas e esforços competentes de profissionais desse cam-po do conhecimento, os intelectuais e porta-vozes da nova Lei de Diretrizes e Bases defendiam a eficácia positiva da sociologia na formação do aluno5. Mesmo para aqueles que não iriam seguir a carreira de sociólogo, a matéria teria a função de propiciar conhecimentos relevantes para a compreensão da vida social e seus mecanismos de funcionamento, também significativos para o exercício de outras profissões.

Como, por que, e quais conteúdos ensinar tornaram-se, portanto, ponto de partida fundamental para a instituição de uma pedagogia sobre o saber sociológico pensada em um sentido amplo. O conhecimento adequado da matéria poderia, futuramente, orientar ou influenciar não só uma esco-lha profissional na própria área de sociologia, mas também embasar outras profissões carentes de uma visão ampla dos mecanismos que orientam as práticas sociais. Os cursos de administração, educação, planejamento e economia, além de áreas de conhecimento, consideradas não-afins, seriam beneficiados pelo diálogo interdisciplinar bem orientado com a sociologia.

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Nessa direção, é importante lembrar o desenvolvimento de áreas específicas tais como “sociologia das profissões” e “sociologia da saúde”, entre outras, que vem contribuindo para a consolidação de interlocuções entre diferentes campos do conhecimento.

O “MODO SOCIOlóGICO DE PENSAR”

As questões atuais que se impõem aos que pretendem ministrar o ensino da sociologia são as seguintes: que conteúdos transmitir; como fazê-lo e, de que modo é possível tornar essa matéria um objeto de interesse dos alunos no Ensino Médio. Não seria exagerado afirmar que ministrar sociologia para iniciantes é uma missão de maior complexidade do que a de transmitir esses ensinamentos a discentes já conhecedores da temática. Trata-se, inicialmente, não apenas de despertar interesse, mas também imprimir uma visão diferente da que se costuma ter acerca dos fatos presentes na vida social. Explicações já existentes no senso comum, sobre acontecimentos corriqueiros do presente e do passado, dificultam interpretações de cunho sociológico6.

Somando-se aos esforços coletivos de profissionais da área de socio-logia, atualmente voltados para o estabelecimento criterioso da transmissão da matéria no Ensino Médio, este artigo busca contribuir para uma reflexão sobre conteúdos temáticos e pedagógicos, priorizando o que poderia ser designado “modo sociológico de pensar”. Este, baseado no uso de conceitos como ferramenta de interpretação e ruptura com as formas previamente construídas de explicação acerca do funcionamento da vida social. Trata-se de um desafio de grande porte, considerando-se que a vasta experiência dos profissionais da área, incluindo a minha, está mais voltada a discentes de cursos de ciências sociais. Nesse sentido, a complexidade acerca da introdução de pensamentos considerados “abstratos” para iniciantes emerge com mais nitidez. Cabe aos profissionais não abdicar dos conceitos como ferramenta de interpretação, acionando, por outro lado, estratégias pedagógicas de trans-missão da matéria com utilização de tecnologias e inserção de temáticas de maior interesse para os alunos.

No âmbito de uma informação introdutória, de caráter pedagógico, impõe-se uma reflexão sobre o que significa o “modo sociológico de pensar”. Em princípio é possível dizer que este supõe a tarefa de instrumentalizar os alunos com categorias analíticas e maneiras de observar o que é designado como “realidade social”, de modo diferente daquele utilizado costumeiramente para explicar o mundo e nele se situar. Trata-se de posicionamento que evoca os pensadores clássicos da sociologia interessados no estatuto científico da

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disciplina, sem a perda de sua especificidade. Os clássicos, por serem pen-sadores provenientes de um contexto de transição da sociedade tradicional para uma ordem moderna e urbana, competitiva e permeada por conflitos, impuseram-se à tarefa de analisar processos sociais em larga escala. São, nesse sentido, referências – não-anacrônicas, pois reatualizadas – para a análise de questões presentes na vida contemporânea.

Talvez, uma das tarefas mais difíceis no ensino da sociologia seja a de romper com a ideia sedimentada de que lidar com pessoas carentes e ter sensibilidade para “problemas sociais” não conferem créditos suficientes para o exercício e o domínio dessa área do conhecimento. A sociologia exige, como toda ciência, o manejo de conceitos e modelos teóricos capazes de explicar o funcionamento das relações sociais, em diversos aspectos históricos e co-tidianos. Não há, portanto, uma forma natural de pensar sociologicamente, baseada no sentimento de “injustiça social” e independente da experiência e conteúdo embasados na aquisição e manejo de conceitos. Nessa direção, uma “volta aos clássicos” torna-se fundamental, supondo-se que temáticas sobre as desigualdades sociais, as normas de comportamento e a legitimidade das ações estão já enunciadas nos percussores do pensamento sociológico e devem ser recuperadas à luz de questões e pensadores contemporâneos.

O pressuposto segundo o qual a curiosidade e a atenção voltadas às questões sociais já asseguram, em princípio, imaginação sociológica é bastante difundido. Isso ocorre na medida em que a sociologia lida com fatos e situações a respeito dos quais é possível emitir opiniões e ensaiar formulações sobre causas e consequências. É supondo a existência de um conjunto de opiniões já sedimentadas sobre acontecimentos que o sociólogo francês, Patrick Champagne (1998) sugere a necessidade de transformar o “problema social” em “problema sociológico”, tarefa a ser realizada por meio de um aparato metodológico e conceitual específico dessa área do conhecimento. A perspectiva adotada é a de considerar que a prostituição, a pobreza e a violência, para citar alguns exemplos, constituem sem dúvi-da problemas sociais mas é preciso pensar sobre como torná-los tema de investigação sociológica.

Uma primeira questão que deve ser informada ao aprendiz é a com-preensão da especificidade do pensar sociológico, a ser feita com base no manejo de alguns conteúdos básicos. Assim como físicos, biólogos e mate-máticos tiveram que realizar suas rupturas com explicações sobre fenômenos relacionados ao corpo e à natureza, usualmente atribuídos a forças religiosas ou a poderes mágicos, a sociologia fez também seu ponto de partida. Supor que a vida social tem uma dinâmica e uma lógica de funcionamento, exigiu

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uma concepção sobre acontecimentos da vida cotidiana independente de noções como “destino”, “sorte”, ou processos de mudança social baseados em “leis naturais da história”. É importante lembrar que parte considerável do pensamento instituído – denominado ideologia – firmou suas convicções afirmando que os fatos são naturais e não sociais. É o caso da ocultação ou naturalização das diferenças de gênero, de etnia, de classe e geração, muitas vezes explicadas com base em supostos biológicos percebidos como forças motrizes do comportamento humano.

O questionamento “sobre o óbvio” – brilhantemente explorado por Darcy Ribeiro (1986), em texto homônimo – fornece pistas interessantes quanto à forma de lidar com estereótipos e verdades previamente construídas que constituem o maior obstáculo para a formulação do pensamento crítico. Darcy Ribeiro tomou o tema das desigualdades sociais e seus efeitos na educação brasilei-ra – a exemplo da reprodução das elites – como referência para formulações construídas em torno de “verdades óbvias”. Nesse sentido, a recuperação de exemplos retirados da vida cotidiana pode constituir um caminho interessan-te de exercício do pensar sociológico. Estereótipos e explicações difundidas como sendo “verdades óbvias” constituem uma espécie de matéria prima a ser talhada pelo “modo sociológico de pensar” a ser pedagogicamente explorado.

A sociologia reivindicou, desde o início, seu direito ao pensar diferente, na medida em que lida com fatos sociais sujeitos a variadas versões e inter-pretações, permeando modos de classificar e diferenciar vários fenômenos denominados por representações7. Assim, ao invés de ser um ponto de vista, entre os demais, acerca da interpretação de situações cotidianas, afirmou-se como estudo do conjunto dos pontos de vista, identificados em um espaço social específico, verificando porquê e como eles surgem em um determinado momento histórico. Visões de mundo, representações e classificações, como partes da realidade social, ao serem tomados como objeto de um olhar socio-lógico, supõem contextualizações e alinhamentos processuais.

Uma primeira ruptura a respeito da interpretação de fatos e acon-tecimentos sociais refere-se ao abandono das explicações lineares. Em seu lugar, destacou-se o reconhecimento de fatores complexos que concorriam para a vigência de situações diferenciadas. Pensar sociologicamente supõe, portanto, perceber que os acontecimentos são partes de um processo cons-truído ao longo do tempo, dentro de processos históricos. Uma espécie de estoque de eventos e situações que repercutem, influenciam ou se associam em momentos posteriores.

As vinculações, por exemplo, entre migração, escolaridade e desem-prego apontam o fato de que os acontecimentos não são meramente casuais,

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pois fazem parte de processos sociais mais amplos. A recorrência de carac-terísticas e posições sociais – nomeadas na sociologia clássica de estruturas – figurações e, mais recentemente, a noção de rede sugere a possibilidade de registrar modelos de comportamento e situações que podem, inclusive, ser identificados com base na observação de frequências estatísticas.

O crescimento do número de trabalhadores nas fábricas, o desemprego e o deslocamento de populações apontam situações históricas específicas que podem ser vistas, também, de forma numérica e explicadas por meio de processos sociais. Outra questão deriva dessa suposição anterior. Na medida em que pessoas pertencentes a determinadas classes ou culturas tendem a ter atitudes semelhantes, torna-se possível observar um sentido de totalidade e de densidade que põe em questão o caráter espontâneo das ações sociais. Trata-se de perspectiva que permite romper com as concepções de “sorte” ou de “azar”, que acompanham o senso comum, chamando a atenção para o fato de que as repetições, semelhanças e “coincidências” que se apresentam na vida social devem-se a fatores amplos e gerais que interferem nas ações dos indivíduos, embora pareçam adquirir um ar de casualidade. Tragédias interpretadas como fruto do “destino” podem fazer parte de um circuito de tendências e oportunidades sociais.

Uma observação sociológica da vida social supõe também que os indi-víduos não têm possibilidades inteiramente livres de escolher suas trajetórias de vida. Os conceitos de habitus8, em Bourdieu, e “processo civilizador”, em Norbert Elias9, podem ser elucidativos na demonstração de que certas esco-lhas pessoais e trajetórias ocorrem em um quadro de influências ou campo de possibilidades conectados a tendências sociais e históricas.

A luta contra os mitos e a crítica à percepção segundo a qual o con-junto de práticas ou ações que denominamos sociedade se move por forças sociais – postas em um plano histórico que antecede e sucede as interações entre os indivíduos – marcaram o pensamento dos fundadores da disciplina. A sociologia distinguiu-se, portanto, da biologia e da física, entre outras ci-ências, na busca de encontrar pressupostos específicos, capazes de explicar a vida social em seu acontecer permanente. Explicar “o social pelo social” representou, na visão de Durkheim, a ruptura com preceitos religiosos e metafísicos que povoavam uma visão de mundo até o alvorecer das ciências sociais. Alguns autores, considerados pioneiros no pensar sociológico, podem ser mencionados. Augusto Comte, apontado como o criador da disciplina chamada sociologia, postulou um olhar para a dinâmica social feito com base na observação empírica e não especulativa da sociedade. Seus seguidores, não obstante as diferenciações de perspectiva analítica, retomaram a necessidade

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de verificar a existência de processos sociais com base na análise de fatos concretos. A máxima de Durkheim de “olhar os fatos sociais como coisas” – muitas vezes mal interpretada como falta de percepção sobre a importância dos valores na vida social – pode ser lida como a busca de inversão de uma dimensão especulativa sobre o funcionamento da sociedade, baseada em concepções filosóficas e morais. Durkheim procurou elaborar uma espécie de “vida social como ela é”, independente de “como deveria ser”. A ruptura com os mitos religiosos ou com as narrativas derivadas do senso comum, particularmente enfatizada nas postulações de Marx, implicou, por sua vez, a percepção de que a sociologia não se apresenta como um catálogo de ensinamentos morais, ou pressupostos naturais do comportamento hu-mano. A compreensão do modo de funcionamento desse feixe de relações denominado sociedade exigiu, do investigador, o contato com fatos sociais conectados a redes comportamentais de extensão variada.

A grande diversidade de interações humanas supôs, por outro lado, a impossibilidade de respostas simples para problemas de natureza complexa. Nesse sentido, toda e qualquer proposta de mudança social deveria considerar a enorme complexidade de experiências, pontos de vista e compreensão de processos históricos que fazem os acontecimentos cotidianos. Para o soció-logo alemão Norbert Elias,

[...] uma das tarefas da sociologia inclui, não unicamente, o exame e interpre-tação das forças compulsivas específicas que agem sobre as pessoas nos seus grupos e sociedades empiricamente observáveis, mas também a libertação do discurso e do pensamento das forças relacionadas a modelos anteriores (ELIAS, 1999, p. 18).

A distância entre a análise do funcionamento de setores variados da vida social e as eventuais propostas de intervenção implica a formulação de um pensamento crítico, capaz de verificar o impacto das ações coletivas em um cenário de permanente mudança e reprodução. A crítica sociológica supõe, assim, uma visão de complexidade baseada na percepção das redes de interação que se apresentam nos comportamentos e situações cotidianas. No trabalho, no lazer, na moradia e na política, os fatos sociais se conectam espacial e historicamente de forma combinada e/ou diferenciada, em meio a tensões, conflitos e negociações. Evidentemente, diferenciam-se entre si as teorizações sobre o mundo social, exprimindo-se em tradições e esco-las. No entanto, para alunos iniciantes seria importante apresentar o que Lahire (2013) denomina fundo de referências e aquisições comuns a que os

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profissionais recorrem no exercício de suas profissões. No que concerne à sociologia, o pensamento relacional, o método comparativo ou relativismo antropológico, acompanhados do uso de técnicas de investigação como en-trevistas e questionários, permitiriam diferenciar o pensamento sociológico do religioso, do político ou ideológico, tendo em vista sua capacidade de observar e analisar fatos sociais.

Na tentativa de transmitir aos alunos um “modo sociológico de pensar”, baseando em autores e principais interlocutores dessa área do conhecimento, dois pressupostos básicos podem ser sintetizados.

1- Não há uma ordem social determinista que comanda o funcio-namento do mundoA compreensão de que o mundo social é comandado por forças incontrolá-veis e obscuras constitui uma visão determinista que deve ser criticada em uma introdução ao pensar sociológico. Se a vida social possui uma dinâmica própria, ela é construída pela ação mais ou menos consciente dos indivíduos. A sociedade não é, portanto, uma entidade naturalizada e cósmica, capaz de tornar seus membros meros autônomos de uma ordem imperial superior. Tampouco, os indivíduos podem realizar ações do modo que desejam, ape-nas mobilizando vontades e projetos. O teórico da ação social, Max Weber, mesmo preocupado com o sentido subjetivo do agir, reconhecia os limites de seu caráter voluntário. As tensões e contradições do descompasso entre vontades, possibilidades e constrangimentos podem constituir matéria interessante para ser analisada com estudantes, tendo por base elementos concretos, retirados da vida cotidiana. Nessa perspectiva podem entrar em pauta preferências vocacionais, tensões familiares e pressões sociais acerca de trajetórias profissionais, escolhas afetivas e políticas.

2 – O mundo social pode ser explicado por meio de categorias sociológicas A influência das ciências naturais nas demais áreas do conhecimento termi-nou ampliando-se aos modos de analisar o comportamento humano, com base em leis naturais de variadas espécies. Uma inversão dessa abordagem considera que as ações humanas se explicam a partir de interações sociais dotadas de variadas formas de interdependência. Um dos conteúdos a serem repassados aos iniciantes na disciplina refere-se à história do surgimento da sociologia como expressão inaugural de um “novo modo de pensar”, através de rupturas com as percepções do senso comum. Norbert Elias, em trabalho anteriormente citado, considera fundamental, nesse sentido, “mostrar como e porque a interpenetração de indivíduos interdependentes forma um nível

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de integração no qual as formas de organização, estruturas e processos não podem ser deduzidos das características biológicas e psicológicas que cons-tituem os indivíduos” (1999, p. 50).

As estruturas, processos e redes são, portanto, a grande tela de fundo na qual se desenrolam enredos e tramas sociais diversos. O conceito de figuração, utilizado por esse sociólogo e historiador alemão, oferece várias possibilidades de registrar os mecanismos sociais, de longa duração, que produzem efeitos objetivos sobre o comportamento cotidiano de indivíduos pertencentes a várias culturas. Os comportamentos típicos da sociedade da corte, as atividades de lazer e desporto – presentes nas instituições modernas, além de outros conjun-tos de ações – devem ser observados, de forma articulada na sua historicidade. As obrigações da corte, as regras de etiqueta e as tensões advindas do emergente mundo burguês constituem exemplos interessantes e paradigmáticos. Desse modo, pensar sociologicamente supõe perceber a vida social com regras, sentidos, interações e disposições construídos com base em organizações complexas que se desenvolvem historicamente. Trata-se de considerar que os indivíduos estão enredados em uma teia de relações sociais conectadas a estruturas que nem são a extensão exclusiva de cada um dos membros, tomados individualmente, tampouco a expressão de forças sociais puramente autônomas10. Na reflexão junto com os alunos, exemplos sobre a influência das instituições religiosas, econômicas, familiares e políticas sobre os comportamentos sociais podem auxiliar na compreensão desse postulado sociológico. As tensões e conflitos advindos de trajetórias familiares ligadas a regras de comportamento podem servir de ilustração para o papel das instituições e valores na regulação do comportamento social.

Tomar as relações, conflitos e interações sociais como objeto de estudo representa o primeiro esforço feito por diversos autores considerados funda-dores do pensamento sociológico. Eles estavam preocupados em conhecer processo sociais, materializados em diversas esferas da vida cotidiana, capazes de tornar as pessoas unidas ou em conflito em torno de ideais. A presença de agrupamentos que incorporam diferentes papéis individuais constitui uma espécie de primeiro passo rumo a uma teorização da vida social a ser incutida junto aos iniciantes do pensar sociológico. As classificações e divisões que marcam o acontecer cotidiano podem servir de matéria crítica em torno da qual é possível ir construindo o olhar sociológico.

Ressalta-se, em tal perspectiva, o suposto de que a vida social possui uma dinâmica própria de funcionamento, não redutível às ações particu-lares dos indivíduos. Na afirmação desse postulado, Durkheim apontou os atributos de coerção, exterioridade e generalidade como definidores do fato

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social, considerando as ações pessoais interligadas a um conjunto de injun-ções normativas e interativas. Na visão do sociólogo francês, uma ação que parece dirigida por uma opção individual está, na realidade, condicionada a regras amplas de socialização, não aparentes à primeira vista. Essa seria uma perspectiva importante a ser explorada com iniciantes da área de sociologia, tendo em vista a explicação de processos e regras que não estão formalizadas em nenhum catálogo, mas fazem parte da configuração da ordem social. A te-atralidade da vida social brilhantemente explorada por Goffman11, em várias de suas obras, traz indicações relevantes sobre formas de comportamento e performances que se efetivam no espaço cotidiano das interações.

Refletir sobre acontecimentos difundidos em jornais e outros meios de comunicação, valendo-se de dados estatísticos, pode ser pedagogicamente interessante no sentido de apontar possíveis explicações para recorrência de mortes em determinados segmentos sociais, situações de violência entre categorias sociais específicas, deslocamentos populacionais e outras manifes-tações coletivas. Em síntese, a abordagem sociológica põe os acontecimentos em um mapa de fatos históricos e sociais, buscando convergências e expli-cações que vão muito além de uma relação entre causa e efeito. Lida com a narração jornalística dela diferenciando-se, na medida em que rompe com a natureza espetacular dos eventos na busca de uma significação para além da sua expressão imediata. Na tentativa de superar as aparências, outros planos de realidade são buscados distanciando-se a explicação sociológica das interpretações oficiais.

O SOCIAl DENtRO DE NóS

Outra dimensão importante a ser explorada na compreensão da dinâmica do funcionamento das interações sociais refere-se à necessidade de se explicar o modo como essa totalidade, denominada sociedade, vive em cada um de nós. Trata-se de compreender que o contexto no qual estão inseridos os indivíduos possui legitimidade ou reconhecimento, sobretudo porque o social está dentro das mentalidades. Este é um dos pontos interessantes dos comportamentos cotidianos trabalhados na sociologia por vários autores, considerando-se, no entanto, que a afirmação de regras sociais na lógica dos comportamentos não é absoluta. As ações sociais podem conter tanto características de aceitação como de rejeição, combinadas em um sentido complexo e contraditório.

A sociedade está, da mesma maneira, presente na mente dos indiví-duos pela recriação de redes incessantes de comunicação e solidariedade. As regras e as obrigações morais de reciprocidade e solidariedade bastante

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exploradas por Mauss (1981) em sua obra pioneira12 são transmitidas de geração a geração por meio de um processo denominado de socialização. A partilha de valores e as normas tornam assim os indivíduos ligados às malhas de um mundo que os antecede, fornecendo-lhes um mapa de navegação social. As variações desse processo fundamentam-se nas diferenças entre grupos, classes e faixas etárias, demonstrando que as incorporações da vida social nas mentalidades não se dão de maneira uniforme.

O processo de socialização constitui, portanto, o passaporte de entra-da para a vida em sociedade, isto é, o preceito de incorporação das normas sociais. Esse suposto – nem sempre evidente à primeira vista – faz com que o permitido, o proibido, as classificações e as divisões simbólicas do mundo apareçam como sendo naturais, integrando a “ordem das coisas”. Cabe ao pro-fessor de sociologia, junto com seus alunos, desvendar os sentidos aparentes e ocultos da vida social. Não por acaso, Durkheim escolhe estudar o suicídio para encontrar, através desse ato, supostamente dotado de uma deliberação individual inquestionável, as marcas fortes do tecido social. E é exatamente lá, onde o social aparece como estando ausente, que sua presença evidencia-se, demonstrando a falência de um tecido unificador que Durkheim denominou de consciência coletiva. O estudo do suicídio e a análise do crime, feitos pelo sociólogo francês, permitiram mostrar que o ato de provocar a própria morte, aparentemente a mais individualizada das ações, era, na verdade, uma mani-festação típica de contextos socioculturais com frágeis regras de solidariedade. Ou seja, o ato de suicídio, que tocava os temas da morte e da vontade indivi-dual, demonstrava, em contraponto, a não-existência de condutas humanas inteiramente independentes de um contexto social de referência.

A existência do social, dentro de nós, pode ser percebida em vários exemplos da vida cotidiana tais como as escolhas profissionais. Usualmente, as pessoas seguem carreiras correspondentes a seu meio social de origem, obedecendo também a imperativos familiares. Escolhas que parecem suge-rir um percurso livre tais como o gosto musical, as preferências literárias, a adesão a partidos políticos, crenças religiosas e círculos de amizade são também condicionadas por contextos de socialização. O conceito de habitus, formulado por Bourdieu (2009), também trabalhado por Norbert Elias (1990), procura dar conta do modo como a vida social gera modelos e matrizes de comportamento para diferentes campos da atividade social, influindo de maneira sutil nas ações dos indivíduos.

O pensamento de Pierre Bourdieu circunscreve-se à tentativa de superar as dicotomias estabelecidas entre os planos individual e social. O estudioso francês, inspirado nos clássicos da sociologia (Marx, Weber e Durkheim), per-

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cebeu o social como estando formado por um conjunto de relações históricas permeadas por linguagens. Tais linguagens, que são também fontes de afirmação de poder, induzem a existência de várias classificações arbitrárias do mundo social. Por esse motivo, as mudanças sociais exigem uma transformação mais profunda das classificações e dos modos de perceber a vida em sociedade.

A tarefa da ciência do social seria, nessa perspectiva, lutar contra o monopólio da representação legítima do mundo, constituindo-se, assim, a sociologia um dos caminhos capazes de suscitar uma outra forma de pensar pautada pela crítica. A pesquisa realizada por Bourdieu a respeito do ensino nas escolas comprovou a tendência à reprodução da desigualdade social, por conta das classificações taxativas sobre o fraco desempenho de alunos inte-grantes dos estratos sociais menos favorecidos. Este é um exemplo interessante que demonstra o papel das instituições no reforço das desigualdades sociais. Desvelar o que está escondido, o não-explícito e desvendar a linguagem dos fenômenos construídos como se fossem naturais, constitui o principal desafio de uma ciência da vida social. Nessa perspectiva, trabalhar com exemplos de reprodução das desigualdades sociais provocadas por instituições, que supostamente querem diminuir os privilégios, tais como a Escola e as po-líticas de assistência, se constitui um recurso pedagógico interessante a ser utilizado pelos profissionais sociólogos do ensino médio.

Em síntese, é importante refletir com os alunos sobre o fato de sermos influenciados por nossa cultura na medida em que ela se faz fortemente presente dentro de cada um de nós. As formulações do antropólogo Clifford Geertz (1989) – baseado na ideia de multiplicidade – a respeito dos vínculos existentes entre o indivíduo e a sua cultura, reforçam também o sentido dessa conexão. O autor analisa o impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem, criticando a existência de uma natureza humana previamente definida. Ao invés da imagem do homem como modelo ou como arquétipo, Geertz propõe a compreensão de vários tipos de indivíduos construídos por diferentes culturas. “Assim como a cultura nos modelou como espécie única – e sem dúvida ainda nos está modelando – assim também ela nos modela como indivíduos separados. É isso o que realmente temos em comum – nem um ser subcultural imutável, nem o consenso de um cruzamento cultural estabelecido” (p. 64). A visão do autor permite analisar os comportamentos de grupo, ao levar em consideração a multiplicidade de influências culturais. A reflexão serve não somente para a análise de migrantes, mas também para perceber a rede de interações sociais que permeia os vários segmentos da sociedade. Refletir sobre as diferenças culturais, sobre o encontro e desen-contro de pontos de vista entre pessoas de vários lugares, ou pertencentes a

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uma mesma família, pode despertar nos alunos a ideia da natureza complexa e diferenciada dos comportamentos sociais.

CONCEItOS BáSICOS: A lUPA DO CONHECIMENtO

Não é possível analisar sociologicamente o funcionamento da vida social sem o domínio de um quadro conceitual por meio do qual são modulados e instituídos vários objetos de estudo. Impõe-se, para o professor, a ques-tão de quais conceitos deveriam ser explorados, em um plano didático e introdutório, com alunos do ensino médio. Desigualdades sociais, confli-tos, sociabilidade, cultura e movimentos sociais podem ser considerados, entre outros, conceitos geradores capazes de auxiliar no exame de vários processos sociais contemporâneos. Em termos gerais, é importante apontar alguns elementos que devem estar presentes em termos de um trabalho didático conceitual. Explorar os conceitos de forma operativa, verificando suas possibilidades de aplicação em campos diversos da atividade cotidiana, incluindo filmes, músicas e romances, constitui uma prática pedagógica relevante que pode dar bons frutos. De modo preliminar, alguns conceitos podem apontar constelações de ideias a serem aprofundadas com base em situações concretas.

Desigualdades e classes sociaisA vida social é permeada por desigualdades econômicas, sociais e

culturais que afetam diferencialmente os indivíduos, propiciando a forma-ção de coletivos relativamente permanentes. As categorias, mais ou menos, organizadas, que partilham situações econômicas e sociais semelhantes foram nomeadas na sociologia de classes sociais. O conceito incorpora comportamentos, atitudes e situações referentes ao lugar que os indivíduos ocupam no sistema produtivo e nas formas variadas de consumo. Operar com esse conceito, tendo por base os estudiosos pioneiros das temáticas (Karl Marx e Max Weber), permite sinalizar e induzir rupturas com várias concepções do senso comum, notadamente aquelas que atribuem as di-ferenças de oportunidade aos acasos e ao destino.

ConflitosOs conflitos sociais fazem parte de todo aglomerado humano, referin-

do-se à diversidade de interesses e à luta permanente pela manutenção ou modificação de privilégios ou posições sociais. Os conflitos estão presentes em diferentes agrupamentos sociais e instituições, incluindo a família, a escola e as relações de amizade. As formas de conflito são variáveis historicamente e

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os lugares nos quais se manifestam imprimem também marcas diferenciadas. Analisar conflitos mais ou menos impactantes e, ao mesmo tempo, realçar fatores e situações que concorrem para o seu aparecimento, constitui um exercício importante no desenvolvimento do modo de pensar sociológico.

Movimentos sociaisSão formas de organização e mobilização por direitos sociais e ca-

rência de determinados bens, envolvendo trabalhadores diversos, categorias profissionais, afirmação de diferenças de etnia, gênero etc que lutam para se fazerem reconhecer e serem respeitadas. Os movimentos sociais manifestam-se no espaço público e utilizam várias estratégias para se tornarem visíveis e adquirirem credibilidade. Podem contribuir para o desenvolvimento da cidadania e aumento dos espaços de participação na vida pública. Diferentes formatos e expressões de indignação podem ser descritos e analisados em vários períodos da história brasileira e de outras sociedades.

SociabilidadeAs formas de sociabilidade supõem a presença de interações sociais

que tendem a perdurar no tempo, ultrapassando inclusive as razões de seu início. O mundo social é permeado por diferentes formas de sociabilidade que se apresentam em comportamentos ritualizados e sentimentos partilha-dos. As relações de amizade, as formas de amor, de encontro, partilha e os conflitos entre interesses constituem expressões de sociabilidade. O conceito de sociabilidade, desenvolvido por Georg Simmel, poderá indicar conteú-dos interessantes à reflexão conjunta com os alunos, podendo exemplificar encontros e interações entre jovens no espaço urbano.

CulturaO conceito de cultura permite compreender a diversidade de crenças

e comportamentos que modulam as interações sociais. A cultura expressa, também, a capacidade dos indivíduos de introjetar e exprimir crenças e atitudes variáveis, de acordo com os contextos históricos e sociais. A socio-logia se desenvolve relativizando o julgamento que uns indivíduos fazem sobre outros, com base em pressupostos de sua própria cultura. Ao re-lativizar criticamente o sócio-centrismo das representações, o modo de pensar sociológico procura entender a especificidade de comportamentos característicos de diferentes agrupamentos sociais. O conceito de cultura é particularmente relevante na reflexão sobre as diversidades sociais vigentes na sociedade contemporânea.

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Unidades temáticasNa construção de unidades temáticas para o ensino da sociologia,

alguns referentes amplos podem ser priorizados13. A primeira questão que se põe de um ponto de vista pedagógico é pensar o ensino de sociologia com um conteúdo crítico, capaz de transmitir noções básicas e pontuais sobre a dinâmica e o funcionamento de processos sociais contemporâneos. Pressu-postos gerais de sociologia constituem um ponto de partida no delineamento de questões fundamentais do programa.

Os pressupostos básicos podem comportar os seguintes itens:1 - A história do surgimento do saber sociológicoTrata-se de pensar a sociologia a partir de um contexto de referência

formado por um “estoque de pensamento” característico do momento do surgimento da ciência da sociedade. Uma breve caracterização do espaço histórico em que a sociologia emergiu deve balizar uma das unidades ou seg-mentos da matéria a ser transmitida a iniciantes, enfatizando-se a “ruptura” como requisito fundamental ao “modo sociológico de pensar”.

2 – Reflexão e apresentação de conceitos básicos, tendo como referência temáticas sociais contemporâneas

Os conceitos devem ser apresentados com base em exemplos e situ-ações históricas, sendo uma ferramenta importante para a construção de uma visão curiosa e interrogativa sobre determinadas circunstâncias da vida social. Trata-se de instrumentar o aluno com uma linguagem sociológica que ainda não deve vir acompanhada por disputas entre correntes de pensamento, tampouco reflexões abstratas desprovidas de situações exemplares.

3 – Conexão entre conceitos e temáticas da vida cotidianaOs exemplos são sempre bem vindos para familiarizar os estudantes

com o pensamento sociológico. Eles devem estar amparados em uma contex-tualização de situações e emprego de conceitos, de modo a possibilitar uma ruptura com as explicações do senso comum, já disponíveis. Questões de na-tureza pedagógica são fundamentais para a transmissão do saber sociológico, interferindo na própria organização do programa. Este aspecto é tratado a seguir.

ElEMENtOS PARA UMA PEDAGOGIA

No plano pedagógico, devem ser levados, inicialmente: a experiência do professor, os alunos com os quais vai trabalhar e o modo como a sociologia pode interagir com as demais matérias que fazem parte da grade curricular do ensino médio. Em seguida, devem ser realçados os conteúdos sociológicos que permitirão aos alunos refletirem sobre o seu cotidiano e a sociedade

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da qual fazem parte. Nesse sentido, ressalte-se que Florestan Fernandes considerava relevante o papel da sociologia na formação de adolescentes, preparando-os para o enfrentamento de situações sociais características de suas condições de vida.

Concebido sob a ótica aqui explicitada, o ensino de sociologia na Escola Média contribuiria para uma “ressocialização” de jovens estudantes, ajudando-os na percepção e no enfrentamento de dilemas cotidianos. Este é um dos principais desafios da transmissão do saber sociológico. Evitar o acúmulo enciclopédico de definições é um interessante ponto de partida, exigindo do educador um programa dinâmico e capaz de oferecer subsídios conceituais para compreensão da complexidade da vida contemporânea14. Trata-se de fazer o estudante pensar o mundo com seus dilemas e desafios provenientes de circunstâncias que são sociais e históricas. Florestan Fer-nandes, em referência feita anteriormente neste artigo, já se preocupava com a necessidade de trabalhar com alunos utilizando “experiências concretas sobre as condições materiais e morais da existência”. Sua formulação peda-gógica visava evitar por os alunos diante de “entidades”, “ideias abstratas” ou percepções do “homem em geral”.

Na mesma direção, José de Souza Martins15, professor titular da Univer-sidade de São Paulo, apontou a necessidade de analisar os descompassos e a distância social e cultural que separa gerações, agravando desenraizamentos, desorganização da vida e descompassos decorrentes de ritmos desiguais de desenvolvimento.

Corroborando com a ideia de conceber a sociologia como ciência a partir da qual é possível desvendar o mundo social, torna-se viável a elabo-ração de um programa básico de ensino, associando os conceitos teóricos com uma reflexão sobre processos sociais contemporâneos. Assim, espera-se motivar os jovens a se interessarem pele estudo desta disciplina. Nessa di-reção, entender, por exemplo, o desemprego, as dúvidas quanto às escolhas profissionais e as angústias coletivas dos jovens pressupõe a capacidade de identificar problemas em um contexto social de referência, e não a elaboração de um manual de auto-ajuda.

A conjugação criativa entre conceitos, filmes, músicas e outros recur-sos, possibilitados pelo uso de tecnologias, pode favorecer um plano didá-tico coerente e capaz de suscitar a “imaginação sociológica” já preconizada por Wright Mills.

O diálogo com outras disciplinas é também um recurso pedagógico interessante, considerando-se a existência de confluência entre as várias áreas de conhecimento que lidam com temáticas sociais. As disciplinas de

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história, geografia e psicologia possuem pontos de conexão interessantes que podem ser reforçados, verificando-se a possibilidade do uso de materiais didáticos comuns. A título de exemplo, uma análise sobre o meio ambiente pode estar apoiada em um texto a ser trabalhado simultaneamente nas disciplinas de geografia, história e sociologia. Supondo-se que o ensino da sociologia não está separado de uma infraestrutura educacional, com finali-dade pedagógica, torna-se relevante uma reflexão sobre as possibilidades de uso de materiais de informática e áudio visuais capazes de viabilizar aulas dinâmicas e participativas.

Assim, não se espera que o aluno do Ensino Médio, ao concluir a dis-ciplina, tenha aprendido todo o estoque conceitual, tampouco a história dos autores e das escolas de sociologia. Deve-se evitar o acúmulo de informações que possam redundar em desinteresse. Cabe, a cada professor, planejar seu conteúdo didático, valendo-se de material já disponível encaminhado às escolas MEC, elaborado por profissionais da área de sociologia que vem se dedicando a essa tarefa. Em síntese, o ensino de sociologia na Escola Média poderia ter no horizonte os seguintes pontos de referência:

- ajudar a pensar criticamente sobre a vida social;- instrumentar o aluno com conceitos básicos;- verificar a aplicabilidade de alguns conceitos fundamentais em

assuntos do mundo cotidiano e contemporâneo.Se a sociologia é um esforço para se compreender a sociedade, é pos-

sível pensar nas múltiplas aplicações que esse saber oferece, sem abdicar da integridade e patrimônio científico da disciplina, que é fruto de uma história acumulada de conhecimentos.

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NOtAS i O tema da aquisição de conhecimento no sentido artesanal foi também desenvolvido por Sennett (2012) que estabeleceu uma relação direta entre a experiência do artífice e a busca pela qualidade – um querer fazer bem o trabalho. Na percepção do autor, a motivação seria mais importante do que o talento, no tocante ao desenvolvimento das habilidades artesanais, desta-cando-se, ainda, duas necessidades importantes para o aprimoramento da capacitação de um artífice: o aprendizado lento e o hábito.

2 Ver Wright Mills, A imaginação sociológica, Rio Janeiro: Zahar, 1982.

3 A trajetória da introdução da disciplina no Ensino Médio é explorada por Meucci (2007), em pesquisa sobre a criação e difusão de manuais didáticos, no período compreendido entre 1930 e 1945, no Brasil. Consoante ao surgimento de um mercado editorial e ao desenvolvimento de um campo disciplinar de natureza pedagógica, os manuais de sociologia eram percebidos, fundamen-talmente, como parte importante na formação de bacharéis e professores.

4 Um levantamento a respeito das questões de ordem pedagógica e dos conte-údos a serem ministrados por profissionais da área, sobetudo por ocasião dos congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) pode ser encontrado em, MORAES, César Amauri (2003).

5 Heloisa Martins – que atuou fortemente junto ao MEC e, mais especificamente, na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, para que a sociologia voltasse ao currículo do Ensino Médio – invoca o sentido de “promessa” utilizado por Wirght Mills, considerando a importância dos indivíduos compreenderem a sociedade em que vivem e dela participarem como cidadãos. A aquisição de uma sensibilidade sociológica supunha estranhamento e ruptura com as explicações do senso comum (Ver entrevista revista Coletiva, jan, fev, mar e abril de 2013, Recife: Fundação Joaquim Nabuco).).

6 Os Cadernos de sociologia elaborados para escolas estaduais de São Paulo, sob supervisão de Heloisa Martins, tomaram como objetivo da disciplina a formação de “outro olhar sobre a sociedade”, tendo como referência a sensibilidade e o estranhamento considerados requisitos fundamentais no aprendizado da matéria. Ver a esse respeito SCHRIJNEMAEKERS, Stella Christina; PIMENTA, Melissa de Mattos, “Sociologia no ensino médio: escrevendo cadernos para o Projeto São Paulo faz Escola, in Cadernos CEDES, vol.31, n.85, Campinas 2011.

7 Sobre o conceito de representações, ver DURKHEIM (1989), em As formas elementares da vida religiosa. JODELET (2001) faz um apanhado das possi-bilidades de aplicação do conceito de representações em pesquisas nas áreas de sociologia e psicologia.

8 Para o desenvolvimento do conceito de habitus em Bourdieu, ver BOURDIEU, Pierre (2009). O senso prático.

9 Reflexões sobre o processo civilizador, em Elias, podem ser encontradas no livro O processo civilizador, uma história dos costumes, vol 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1969.

10 Esta é uma longa discussão no campo sociológico, envolvendo a própria emergência dos conceitos de indivíduo e sociedade. Ver a respeito DUMONT, Louis (1985), em O individualismo: uma perspectiva antropológica da

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ideologia moderna. Para uma reflexão sobre as teorizações que contrapõem indivíduo e sociedade, ver BARREIRA, Irlys (2003), “O lugar do indivíduo na sociologia: sob o prisma da liberdade e dos constrangimentos sociais”, Edições UFC, Fortaleza, vol. 34.

11 Ver especificamente GOFFMAN, Erving (2011). Ritual de interação.

12 Ver MAUSS, Marcel, Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.

13 Fiorelli (2000), destacando o papel formador da sociologia entre jovens do Ensino Médio, considera a escola, a juventude e o trabalho como categorias centrais importantes capazes de servir de eixos condutores na seleção e desenvolvimento de conteúdos. A esse respeito, ver Ileizi Fiorelli, em “A sociologia no ensino médio: os desafios institucionais e epistemológicos para a consolidação da disciplina”, in revista Cronos, vol. 8 n. 2 jul, dez de 2000, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, p. 403-427.

14 Bernard Lahire, ao tratar da inserção do ensino da sociologia desde o En-sino Fundamental (escola primária, na França), enfatiza a importância da disciplina, segundo ele, capaz de contribuir para a formação de um pensa-mento crítico e de abrir a possibilidade da tradução de “saberes científicos” em “saberes escolares”. Ver LAHIRE, Bernard, “Viver e interpretar o mundo social: para que serve a sociologia”, nesta memsma edição da Revista de Ciências Sociais (2014).

15 Entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, 10 de fevereiro de 2008.

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Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em julho/2014.

RESUMOSomando-se aos esforços coletivos de profissionais da

área de sociologia, atualmente voltados para o estabelecimento sério e criterioso da transmissão da matéria no Ensino Médio, o artigo busca contribuir para uma reflexão sobre conteúdos temáticos e pedagógicos, priorizando o que poderia ser desig-nado por “modo sociológico de pensar”. Este, baseado no uso de conceitos como ferramenta de interpretação e ruptura com as formas previamente construídas de explicação acerca do funcionamento da vida social, considera também que conhe-cimentos básicos de sociologia poderão, futuramente, orientar ou influenciar não só uma escolha profissional na própria área, mas também embasar outras profissões carentes de uma visão ampla dos mecanismos que orientam as práticas sociais.

ABStRACtAdding to the collective efforts of the profissional sociology,

currently facing serious and judicious setting of the transmission of matter in high scholl, the article aims to reflect on thematic and pedagogical content prioritizing “the sociological way of thinking”. This based on the perspective of the use of concepts as a tool to interpret and rupture with the forms previously constructed explanation about social life. It also considers that a basic knowledge of sociology could in future, guiding or influencing not only a professional choice in the area itself, but also to base other impoverished professions for a broader view of the mechanisms that guide social practices.

Palavras-chave: Ensino, Sociologia,

modo de pensar, teoria.

Keywords:teaching, Sociology,

way of thinking.

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Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção de currículo

Simone MeucciProfessora do Departamento de Ciência Política e Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), coordenadora do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) em Ciências Sociais.

Rafael Ginane BezerraProfessor do Departamento de Métodos, Técnicas e Práticas de Ensino da Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutor em Sociologia pela UFPR, coordenador do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) em Ciências Sociais.

INtRODUçãO

O movimento pelo retorno da sociologia à educação básica foi constantemente acompanhado pela discussão sobre o deline-amento de um currículo mínimo de caráter nacional para a disciplina. Essa discussão, por sua vez, sempre esteve associada à inquietação segundo a qual a sociologia escolar não possui uma identidade bem constituída ou de que a sua inserção nesse nível de ensino ainda é instável. Dito de outra forma, a estabilização do conteúdo curricular da disciplina e a sua homogeneização, em âmbito nacional, tendem a ser pensadas como antídotos

A missanga, todos a vêem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai

compondo as missangas.

Mia Couto – O fio das missangas

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SoCiologia e eduCação báSiCa88

para o dilema que consensualmente se expressa através da hipótese de in-termitência histórica da sociologia.

Ainda que de feitio exploratório, lançando mão de questionamentos e sugerindo hipóteses que pretendem inspirar novas pesquisas, o presente artigo tem o objetivo de problematizar esse vínculo causal entre a definição de um currículo mínimo e a consolidação da identidade da sociologia escolar como uma disciplina da educação básica. Tendo como pano de fundo alguns elementos da teoria dos códigos de Basil Bernstein, particularmente a sua proposição de que os resultados do processo educativo estão associados à articulação entre currículo, pedagogia e avaliação, identifica três instâncias privilegiadas para se pensar a rotinização do conteúdo que vem sendo mo-bilizado pela sociologia escolar: o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o modelo que caracteriza as Licenciaturas no Brasil. Consideramos a hipótese de que essas três instâncias, mesmo que de forma heterogênea, têm operado a lógica de seleção que define minimamente o conteúdo a ser trabalhado pela disciplina.

Ressalta-se aqui que a heterogeneidade do processo de seleção não é uma função da suposta falta de identidade e/ou legitimidade da sociologia escolar. A propósito, uma tarefa reivindicada por este artigo é a demonstra-ção de que essa caracterização negativa não é pertinente. A heterogeneidade mencionada é um resultado da própria dinâmica institucional do Estado brasileiro: diferentes atores, localizados em diferentes esferas e desempe-nhando funções que não estão imediatamente ligadas a políticas curriculares acabam agindo no sentido de produzir a estabilização de conteúdos que caracterizam um currículo.

Dessa perspectiva, deriva outra peculiaridade do texto que se apre-senta aqui. Busca-se por dinâmicas de definição curricular em contextos e documentos que usualmente são desconsiderados para esse propósito. Nesse sentido, sugere-se que os textos oficiais e legais contidos nos parâmetros, diretrizes e orientações nacionais não se constituem como únicas instâncias decisivas para a efetiva definição do currículo.

CURRíCUlO: UMA PERSPECtIVA SOCIOlóGICA

Uma análise sociológica do currículo não pode prescindir do exame da dinâmica institucional e histórica que o envolve. Isso é importante para se evitar a abordagem que vincula mecanicamente o resultado do processo educativo à intencionalidade prevista no currículo. Embora essa ressalva possa parecer um truísmo, no caso da sociologia escolar ela se faz necessária

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Simone meuCCi e RaFael Ginane BezeRRa 89

pelo seu teor de advertência: a rotinização do conteúdo a ser trabalhado pela disciplina não é suficiente para definir a sua identidade ou o seu papel no contexto da educação básica.

A esse respeito, é pertinente evocar um argumento básico proposto por Basil Bernstein (1996): não reduzido ao currículo ou ao conhecimento que se ensina, o processo educativo deriva das relações que se estabelecem entre o currículo, a pedagogia e a avaliação. Isso significa que a maneira como se opera a transmissão do conhecimento e se verifica a sua sistematização por parte de quem está sendo ensinado é tão importante quanto o conteúdo. Em termos metodológicos, portanto, o currículo precisa ser pensado de uma maneira não-essencialista.

Mesmo não sendo voltada especificamente para uma discussão sobre o currículo, a teoria dos códigos de Basil Bernstein (1998) representa uma abordagem não essencialista com grande valor heurístico para o argumento desenvolvido neste artigo. De particular importância são as suas noções de poder, controle, enquadramento e classificação.

De forma muito resumida e esquemática, no processo educativo o poder encontra-se associado ao procedimento de seleção. Uma vez que o estoque de conhecimentos ao nosso alcance tende ao incomensurável, definir o conteúdo considerado válido para ser ensinado pressupõe a capacidade de se estabelecer aquilo que é legítimo. Por outro lado, o con-trole vincula-se à lógica do enquadramento. Nela, o que está em jogo é a dinâmica da transmissão do conteúdo: um enquadramento maior implica maior controle do processo de transmissão por parte do professor, enquanto um enquadramento menor desloca o foco do processo educativo para o público que está sendo ensinado.

Quanto à classificação, essa noção faz referência às fronteiras mais ou menos nítidas entre as áreas e disciplinas do conhecimento. Áreas muito classificadas apresentam disciplinas com forte ancoragem epistemológica, o que implica maior tendência ao isolamento. Caso se associe essa noção espe-cificamente ao currículo, a classificação indica em que medida as disciplinas terão uma relação de afastamento ou convergência.

É através da mobilização dessas noções que Berstein demonstra a importância da articulação entre currículo, pedagogia e avaliação. Poder, controle, enquadramento e classificação delineiam relações estruturais que tornam legível o deslocamento do processo educativo em relação ao seu conteúdo. Esse só será acionado após procedimentos de seleção, distribuição entre disciplinas com maior ou menor integração e transmissão através de rotinas com maior ou menor enquadramento.

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SoCiologia e eduCação báSiCa90

Com efeito, essa perspectiva possibilita que a discussão sobre o pro-cesso educativo – seja aquele associado mais genericamente ao Ensino Médio, seja aquele reivindicado para a sociologia escolar – estabeleça vínculos com os dilemas organizacionais do Estado brasileiro. Desses dilemas, particular relevância adquirem aqueles relativos aos movimentos de centralização e descentralização das esferas decisórias que atingem o campo educacional de maneira especialmente sensível. A esse respeito, como ilustração, pode-se fazer referência ao episódio de tramitação da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) no Brasil. Discutida desde 1946, ela foi aprovada apenas em 1961, quinze anos depois, devido à travada discussão acerca da divisão de responsabilidades entre municípios, estados e União.

Atualmente, em termos formais, no que tange pontualmente aos currículos escolares, nacionalmente são definidas diretrizes gerais, expressas em documentos oficiais como os Parâmetros ou as Orientações Curriculares Nacionais, e elaboradas segundo um processo capitaneado pelo Conselho Nacional de Educação, nos termos da LDB e da Lei n.º 9.131/95 que o ins-tituiu. Aos sistemas estaduais de ensino e aos estabelecimentos escolares cabe a definição mais precisa da matriz curricular e dos planos pedagógicos. Ou seja, o pacto federativo em vigência determina que no plano nacional sejam definidos preceitos genéricos, ao passo que as unidades estaduais e as escolas definem e detalham os conteúdos.

Dado o arrazoado contido nesses documentos oficiais, essa caracte-rística do pacto federativo é considerada positivamente, na medida em que contribui para colocar em prática o princípio da autonomia. Ressalte-se que em seus artigos 8º, 12º e 15º a Lei de Diretrizes e Bases estabelece como tarefa o zelo pela autonomia pedagógica, administrativa e financeira dos sistemas de ensino. Está por trás disso uma concepção de escola democrática que preserva, identifica e reflete sobre o conhecimento e seus nexos com identi-dades regionais, sobretudo através das discussões coletivas para a definição das matrizes e dos projetos político-pedagógicos.

O processo de discussão sobre a responsabilidade de delineamento do currículo ocorre, no entanto, numa trama institucional de ações que ultrapassa o Conselho Nacional de Educação, as Secretarias e os agentes das escolas. Aqui se evidencia a pertinência da abordagem proposta por Bernstein. Se o processo educativo não se faz apenas nas ações curriculares, também não se pratica somente em sala de aula. Tal como na metáfora que opõe convenção e direito, costume e lei, a oposição entre currículo e prática escolar ignora, muitas vezes, outras dimensões importantes do Estado brasileiro, bem como a grade de ta-refas assumidas pelas complexas atividades da política educacional nacional.

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A oposição entre currículo e prática ignora, portanto, a complexidade da ordem legal, além de ser indiferente às conexões entre os diversos órgãos operantes. Há diversas ordens legais, assim como diversas práticas, sendo que, por vezes, certas legalidades legitimam determinadas práticas como também o contrário é verdadeiro. Em função disso, trabalha-se aqui com o pressuposto segundo o qual o processo educativo se realiza também na ação de outros agentes e instituições e num trânsito complexo entre o Ministério da Educação e suas autarquias, as universidades, as editoras e as escolas. O mundo legal, oficial e burocrático não é menos rico e menos contraditório do que a prática escolar.

Em seguida, apresenta-se a discussão sobre três instâncias que têm desempenhado um papel decisivo no que diz respeito ao processo educativo para o Ensino Médio de uma forma mais geral, e para a sociologia escolar de forma mais específica: o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o modelo que caracteriza as licenciaturas no Brasil. Argumenta-se que essas três instâncias concorrem para originar uma dinâmica heterogênea de seleção de conteúdos, contribuindo, assim – mesmo que isso não esteja previsto no início do processo –, para originar um currículo em termos nacionais.

O PlANO NACIONAl DO lIVRO DIDátICO

O Plano Nacional do Livro Didático é, como se sabe, um programa que avalia e distribui livros didáticos para as escolas públicas do país. Instituído por decreto em 1985 – quando se previa a aquisição gratuita e universal para os alunos do então chamado ensino de 1o grau –, foi ampliado, desde 2003, para o ensino médio. Atualmente este Programa faz do Estado brasileiro, um dos maiores compradores de livros do mundo, senão o maior. Vejamos os dados sobre o último PNLD-2012 para o Ensino Médio:

. Investimento: R$ 333.116.928,96

. Alunos atendidos: 7.649.794

. Escolas alcançadas: 19.243

. Livros distribuídos: 34.629.051

Este processo é centralizado no Ministério da Educação: a seleção é protagonizada pela Secretaria da Educação Básica; em particular, pela Divi-são de Material Didático; ao passo que a execução é realizada pela Fundação Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

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Embora existam poucas pesquisas sobre o efetivo uso do livro didático (suspeitamos que é menos usado pelos alunos e mais pelos professores, como bibliografia complementar), acreditamos que nas suas páginas se realiza importante atividade de seleção e organização dos conteúdos. Assim, pode-mos considerar a hipótese de que o livro é auxiliar na escolha dos conteúdos do professor em sala de aula, logo na definição curricular que se traduz na experiência empírica dos docentes.

Os livros didáticos podem ser, nesse sentido, peça importante da definição do conteúdo. São produtos que conectam, ao seu modo, indús-tria editorial, universidade (pelo autor) e escola (pelo professor e aluno, seus leitores). A propósito, é importante lembrar que, no PNLD-2012, de Sociologia, foram aprovados livros de autores doutores, pertencentes ao quadro das universidades públicas brasileiras e essa não foi uma exceção entre os livros inscritos.

Nesse sentido, é também importante destacar que a forma de abor-dagem do conhecimento sociológico nestes livros atende ao que Bernstein chamaria de ‘classificação’. São livros que seguem, quase que rigorosamente, uma estrutura baseada em autores e temas fundamentais das ciências sociais, escapando muito pouco dos modos mais convencionais de transmissão de conhecimento sociológico praticados na universidade.

Outro aspecto em tela aqui, e que pode ser problematizado a partir do PNLD, é o impasse centralização/descentralização curricular. O Edital do PNLD que orienta os critérios de avaliação dos livros (inclusive quanto aos seus conteúdos) para as editoras é elaborado por uma Comissão Técnica composta por um representante de cada área que, por sua vez, nomeia os pareceristas avaliadores. Neste aspecto, o PNLD é uma ‘operação’ centralizada de avaliação do material escolar que, se não impede a autonomia do professor e da escola na escolha do material, limita seu leque de alternativas, pois o catálogo de possibilidades resulta de uma seleção realizada pela equipe nomeada pelo MEC. E ainda que os grupos de avaliadores sejam compostos por especialistas das diferentes regiões, a produção dos livros está escandalosamente concen-trada no Sudeste. No caso particular de sociologia, a maioria das editoras e dos autores é de São Paulo e do Paraná. Não houve nem um autor ou editora do Nordeste na primeira edição do PNLD.

Assim, ainda que não possamos dizer que o PNLD fere a autonomia pedagógica proclamada na LDB, acreditamos que dois pontos devam ser discutidos: a) há uma espécie de nacionalização dos conteúdos escolares para o qual concorre a avaliação centralizada dos livros didáticos? b) como as secretarias estaduais de educação e os estabelecimentos escolares enfrentam,

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em seus contextos regionais, os conteúdos marcados pela centralização nas condições de avaliação e produção do material escolar?

No caso da sociologia, há um mapeamento feito por Mario Bispo dos Santos que revela ser fecunda a hipótese de correspondência entre os cur-rículos dos Estados e o conteúdo que é solicitado no Edital do PNLD, o que também sugere que temos efetivamente um conteúdo escolar nacionalmente estável (SANTOS, 2012).

Portanto, compreendendo o livro didático como um artefato significativo na prática escolar cotidiana – cujos usos, conforme já notamos, temos ainda que avaliar –, o fato de ele chegar à escola pública por meio não apenas de uma política de avaliação centralizada, mas também através de um mercado editorial bastante concentrado, pode ter impactos importantes para definição nacional dos conteúdos.

É provável que o incômodo com a suposta falta de conteúdos estáveis da sociologia seja de outra natureza. E aqui vai uma nova hipótese: trata-se de um incômodo com a seriação do conteúdo. Pode ser que a tarefa das unidades regionais (secretarias e escolas) seja organizar em séries de acordo com o nível de dificuldade este conteúdo. E efetivamente o livro único (que foi demandado para o PNLD) não ajuda nessa organização seriada.

O ExAME NACIONAl DO ENSINO MÉDIO – ENEM

Outra ação que parece contribuir para definir conteúdos no Ensino Médio é o Exame Nacional. O ENEM, como é conhecido, foi criado em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso. O objetivo da prova – na época, composta por apenas 63 questões e uma redação – era servir como modelo de avaliação anual do aprendizado dos alunos no Ensino Médio, auxilian-do o governo na elaboração de políticas de melhoria na educação do País. Na primeira edição, o Exame contou com um número modesto de apenas 115,6 mil participantes, de um total de 157,2 mil inscritos.

Desde 2009, o ENEM mudou o sentido, o método de avaliação e de cor-reção. É agora condição para o ingresso na maioria das universidades públicas do país, com cerca de 180 questões. É aplicado em todas as unidades da Fede-ração, organizado pelo INEP, uma das autarquias do Ministério da Educação. Em 2013, o ENEM teve 7.173.574 inscritos e, em 2014, cerca de nove milhões.

Estes números têm, evidentemente, correspondência com os alunos concluintes do Ensino Médio. Para compreender, numa série histórica mais abrangente, o que representam esses cerca de sete milhões de alunos, levan-tamos o número de matriculados no ensino médio e no ensino superior em

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1996, 2011 e 2012. Isso nos ajuda a compreender o fenômeno do ENEM, de uma perspectiva de transformação do sistema educacional brasileiro:

2012: 7.944.741 no ensino médio / 7.037.688 no ensino superior2011: 7.337.160 no ensino médio / 6.739.689 no ensino superior1996: 5.739.077 no ensino médio / 634.236 no ensino superior

Estes dados, coletados do site do Instituto Nacional de Pesquisas Educacio-nais Anísio Teixeira (INEP), demonstram que a maior expansão do processo está ocorrendo, atualmente, no ensino superior. Isso, evidentemente, muda o sentido do ensino médio, já que a relação entre ambos os níveis está, gradativamente, mais próxima. Em tese, os dados nos levam a crer que estamos transmitindo conteúdo para alunos que, cada vez mais, querem realizar curso superior. E, ainda que existam diferenças substantivas regionais, possivelmente essa aproximação acaba por condicionar horizontes de uma política nacional para o ensino médio e para o ensino superior. Com efeito, queremos dizer que isso faz com que o ENEM jogue um papel ainda mais importante nesses conteúdos.

As novas diretrizes curriculares, publicadas em 2013, compreendem o ensino médio como momento para reflexão acerca da ciência, da tecnologia e do trabalho, entendidos como ferramentas não apenas para intervenção e apropriação da realidade, mas como dimensões materiais e imateriais que possibilitam a formulação de identidades. Idealmente, as novas diretrizes parecem supor o ensino médio como um momento em que o aluno “toma posse” de si, ao mesmo tempo em que domina os instrumentos intelectuais e culturais da sociedade. Com efeito, segundo os números levantados, o ensino médio se constitui, hoje, para parte da população de estudantes, como uma formação geral que precede a etapa especializada, decisiva para a constituição de agentes sociais ativos e autônomos.

O ENEM, recentemente expandido em suas funções, está, portanto, articulado a um processo de transformação substantiva do ensino médio, bem como à expansão quantitativa do ensino superior. Desde 2009, vem exercendo funções de:

a) Avaliação do ensino médio que já faz sombra à “Prova Brasil”.b) Condição para participação do estudante nos programas “Uni-

versidade para todos” (Prouni) e “Ciência sem fronteiras”, e para receber o benefício do “Fundo de financiamento estudantil”(Fies).

c) Certificação da conclusão do ensino médio para estudantes maiores de 18 anos.

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d) Classificação nos vestibulares de instituições públicas pelo Sistema de Seleção Unificado (SISU), informatizado e gerenciado pelo Ministério da Educação, no qual instituições públicas de ensino superior oferecem vagas para candidatos participantes do ENEM. Em 2013, 113 universidades adotaram o ENEM como forma de ingresso.

Além destas funções assumidas, há outra, mais ou menos evidente: o ENEM tem forçado a abertura de portas para a integração das disciplinas curriculares. Ainda que se diga que ele se dedica à avaliação dos currículos, ele é assimilado, sobretudo, como definidor dos currículos, não apenas pela prática escolar dos professores (principalmente de escolas privadas, cujo interesse pela aprovação de alunos no ensino superior é capitalizado para fins de marketing), como também pelo próprio Ministério que reconhece e reforça a centralidade do ENEM para fazer cumprir alguns de seus interesses.

Com efeito, o documento que orienta os critérios de avaliação do ENEM, 2014 – ‘Matrizes de Referência das Ciências Humanas e suas Tecnolo-gias’1 – compreende a integração dos conhecimentos de Geografia, História, Sociologia e Filosofia. E, nesse sentido, define as seguintes competências fundamentais a serem avaliadas:

a) Compreender os elementos culturais que constituem as identidades.b) Compreender as transformações dos espaços geográficos como

produto das relações socioeconômicas e culturais de poder.c) Compreender a produção e o papel histórico das instituições so-

ciais, políticas e econômicas, associando-as aos diferentes grupos, conflitos e movimentos sociais.

d) Entender as transformações técnicas e tecnológicas e seu impacto nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.

e) Utilizar os conhecimentos históricos para compreender e valorizar os fundamentos da cidadania e da democracia, favorecendo uma atuação consciente do indivíduo na sociedade.

f) Compreender a sociedade e a natureza, reconhecendo suas inte-rações no espaço em diferentes contextos históricos e geográficos.

Nesta direção, vale ainda destacar os objetos de conhecimento que serão reclamados na avaliação, segundo o INEP2:

a) Diversidade cultural, conflitos e vida em sociedade. b) Formas de organização social, movimentos sociais, pensamento

político e ação do Estado.

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c) Características e transformações das estruturas produtivas.d) Os domínios naturais e a relação do ser humano com o ambiente.e) Representação espacial.

Ressalte-se que, rigorosamente, estes fundamentos – a partir dos quais se elabora o ENEM – reforçam o papel da sociologia, inclusive representando-a como uma espécie de ciência integradora, capaz de articular, em particular, conhecimentos da história e da geografia. Nesse sentido, é que argumentamos a favor da inexistência de fragilidade do conhecimento sociológico escolar. Ou seja, na nossa interpretação, sua definição e sua consolidação têm papel fundamental de integração entre campos de saber, visível especialmente no documento que define os critérios e os fundamentos do ENEM.

AS lICENCIAtURAS: FORMAçãO DE PROFESSORES DE SOCIOlOGIA

No Brasil a formação de professores para a educação básica guarda uma característica que remonta pelo menos à década de 1930. Nesse período, aos bacharéis de diferentes áreas era facultada a possibilidade de acrescentar um ano de disciplinas relacionadas à educação para a obtenção da licenciatura. Assim eram formados os docentes para o então chamado ensino secundá-rio. Numa denominação que se popularizou, esse modelo de formação de professores ficou conhecido como “3+1”.

Recentemente, num movimento ainda tributário da LDB de 1996 e que atravessou os primeiros anos do século XXI, foram promulgadas as “Diretri-zes curriculares nacionais para a formação de professores para a educação básica”. Nesse contexto, as licenciaturas passaram a ter os seus projetos político-pedagógicos acompanhados pelo Conselho Nacional de Educação, e vários ajustes foram realizados em função das novas diretrizes. Ainda assim, em uma avaliação consensual na bibliografia que trata do tema, prevalece um padrão de formação de professores com foco na área disciplinar específica e que reserva um espaço apenas residual para a formação pedagógica.

Apesar da recorrência desse tema nos fóruns dedicados ao ensino de sociologia, a formação de professores para a educação básica no Brasil é feita de maneira fragmentada em todas as áreas disciplinares. Nos termos propostos por Bernstein, trata-se de um processo caracterizado por forte classificação, o que significa que as fronteiras disciplinares são muito demarcadas e a vigilância epistemológica sobre elas é muito intensa. Em função disso, as instituições de ensino superior, mesmo observando diversificadas iniciativas, não conseguem

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originar faculdades com o propósito de formar profissionais com uma base comum, englobando diferentes especialidades.

A esse respeito, Bernardete Gatti (2010) comenta que a forte tradição disciplinar que marca a identidade docente tem orientado os futuros professores a se afinarem mais com as demandas de sua área específica de conhecimento do que com as demandas gerais da escola básica. Mais do que isso, essa tradi-ção faz com que as entidades profissionais e científicas oponham resistências recorrentes a projetos e iniciativas de cunho interdisciplinar.

Especificamente em relação ao ensino de sociologia, esse forte traço de classificação apresenta pelo menos três desdobramentos que merecem considerações.

O primeiro é de ordem metodológica e tem sido sistematicamente observado através da atividade de supervisão de estágio, no âmbito da Uni-versidade Federal do Paraná. Formados durante três anos nas disciplinas canônicas das três áreas (sociologia, antropologia e ciência política), os acadêmicos iniciam as práticas de ensino com uma postura que naturaliza o modelo do processo educativo característico da universidade. Por ser um processo fortemente enquadrado, esses acadêmicos encontram dificuldades significativas para compreender e colocar em prática metodologias mais centradas nos alunos.

O segundo é de ordem curricular e está ligado ao fato de os acadêmicos tenderem a naturalizar o conteúdo desse processo. Isso implica, por sua vez, uma frequente tentativa de transpor o conteúdo estudado na universidade para o âmbito escolar, operação associada à necessidade de simplificação e que resulta, incontornavelmente, em tratar a Escola como um espaço hierar-quicamente inferior à universidade. Julgando-se na posição de quem precisa simplificar o conteúdo disciplinar para poder lecionar, os acadêmicos passam a negar a escola como portadora de uma dinâmica própria.

O terceiro é de ordem política. Tal como demonstrado na seção em que se discutiu o ENEM, os conteúdos previstos em sua Matriz de Referências são fortemente tributários dos conceitos básicos das Ciências Sociais. Isso significa que à sociologia está sendo facultado um papel estratégico de dis-ciplina que pode integrar e aproximar as demais disciplinas que compõem a área de Ciências Humanas.

CONClUSãO

Observamos, ao longo deste texto exploratório, que embora o detalhamento curricular esteja previsto para ocorrer segundo o princípio da autonomia fe-

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derativa, há processos centralizados que, não obstante, são também bastante heterogêneos e que, apesar disso, estão produzindo condições para estabilização e legitimação da sociologia escolar. O ENEM – vinculado ao Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e ao poder central – tem desempenhado papel decisivo na seleção de conteúdo. Não obstante, enquanto a Matriz de Habilidades e Competências do ENEM prevê a distribuição dos conteúdos em função de áreas do conhecimento, o que reforça o princípio da interdisciplinaridade, as Licenciaturas – responsáveis pela formação dos futuros professores – operam com um forte princípio de classificação, o que contribui para a manutenção de nítidas fronteiras disciplinares. Finalmente, se, por um lado, os documentos oficiais operam com um campo semântico – advogando o deslocamento dos conteúdos, em função de habilidades e com-petências –, por outro lado, o PNLD, pelo menos no caso da sociologia escolar, disponibiliza livros caracterizados por forte enquadramento, na medida em que pressupõem a exegese de autores, textos e teorias.

Esses exemplos demonstram a plausibilidade de se afirmar que, a despeito da existência de um currículo, a lógica de organização do Estado brasileiro faz com que a nacionalização do conteúdo seja marcada por con-tradições, ainda que sejam estabilizadoras e estáveis.

Por fim, defendendo-se a hipótese de que a sociologia escolar possui (sim!) um currículo nacionalmente delineado, desloca-se o debate sobre os desafios que cercam a disciplina. Vive-se um momento no qual as conquistas históricas que emergiram com a modernidade estão sendo violentamente con-testadas. Da crença de que a política é o mal das sociedades contemporâneas à exaltação de movimentos que tomam vingança por justiça, a lógica obscuran-tista que identifica problemas (e sugere soluções), através da simplificação de questões complexas, ganha contornos de uma postura hegemônica que nega o valor, a ação e os efeitos das instituições. Apenas soluções individuais são reconhecidas fazendo se perder de vista o caráter positivamente revolucionário da esfera pública e a dimensão social dos fenômenos.

Nesse contexto, nos parece que não é a suposta falta de identidade da sociologia escolar que paira como um problema no horizonte, e sim o desafio de posicionar o campo da educação como um todo, e dentro dele a radica-lidade do raciocínio sociológico, na contramão dessa postura hegemônica. Talvez o mais difícil e inquietante para o professor de sociologia seja, hoje, demonstrar a trama das instituições e valores compartilhados que nos cercam e condicionam, quando não determinam, nossas ações e nossas condições. É preciso lembrar que quanto mais sofisticado o tecido mais fino e menos visível é o fio. Isso não enfraquece o pano; apenas torna menos evidente sua

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constituição. E nos parece, com efeito, que a radicalidade e a dificuldade da sociologia escolar é menos o delineamento do conteúdo do que a forma de provocar, na escola, esse olhar que exige, a contrapelo, ver o que não é imediatamente visível e, muitas vezes, o que não se deseja ver.

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NOtAS 1 BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Matriz de Referência ENEM 2014. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/down-loads/2012/matriz_referencia_enem.pdf Acesso em: 08/06/2014.

2 Idem.

BIBlIOGRAFIA ARANHA, Antônia V. S. & SOUZA, João V. A. de. As licenciaturas na atualidade: nova crise? In: Educar em Revista. n. 50. Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná, 2013. p. 69-86.

BERNSTEIN, Basil. A estruturação do discurso pedagógico. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996.

BERNSTEIN, Basil. Pedagogía, control simbólico e identidade. Madrid: Morata, 1998.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, cursos de licenciatura, de graduação plena. 2001. Disponível em: http://mec.gov.br.Acesso em: 07/06/2006.

BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. nº 9394/96. Brasília: 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Matriz de Referência ENEM 2014. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/downloads/2012/matriz_referencia_enem.pdf Acesso em: 08/06/2014.

GATTI, Bernardete. Formação de professores no Brasil: características e problemas. In: Educação e sociedade. v. 31, n. 113. Campinas-SP: CEDES/UNICAMP, 2010. p. 1355-1379.

SANTOS, Mario Bispo dos. Diretrizes curriculares estaduais para o ensino de sociologia: em busca do mapa comum. In: Percursos. Florianópolis, v. 13, n. 01, p. 40 – 59, jan/jun. 2012.

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RESUMOEste artigo procura deslindar, de modo exploratório, as

formas institucionais que permitem a rotinização do conteúdo sociológico nas escolas. Inspirados na teoria dos códigos de Basil Bernstein – em particular a ideia de articulação entre currículo, pedagogia e avaliação –identificamos três instân-cias privilegiadas da estabilização do conteúdo da sociologia escolar: o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o modelo que caracteriza as licenciaturas no Brasil. Procura-se argumentar que essas três instâncias, mesmo que de forma heterogênea, têm ope-rado a lógica de seleção que define o conteúdo sociológico no Ensino Médio.

ABStRACtIn an exploratory manner this article aims to analyze the

patterns related to the consolidation of sociologial knowledge at basic education. Following Basil Bernstein’s code theory and its proposition about program, pedagogy and evaluation, we suggest the National Plan of Textbooks (PNLD), the National Evaluation of High School (ENEM) and the pattern of forming knew teachers as three privileged areas of research. We argue that this privileged areas have selected sociology’s disciplinary content at high school level in Brazil.

Palavras-chave: sociologia, currículo, ensino médio, Brasil.

Keywords:sociology, program, high

school, Brazil.

Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em julho/2014.

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Culturas juvenis e agrupamentosna escola: entre adesões e conflitos

Irapuan Peixoto lima FilhoDoutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professor da mesma instituição na área de Licenciatura, autor do livro Em tudo o que faço, eu procuro ser muito Rock and Roll: rock, estilo de vida e rebeldia.Email: [email protected].

PARA QUE SERVE A SOCIOlOGIA?

Na sociedade brasileira, a inclusão da disciplina de Sociologia no currículo obrigatório da Educação Básica, pelo Ministério da Educação (MEC), a partir de 2008, veio cumprir uma jus-tiça histórica relacionada não apenas à formação educativa da juventude, mas também à própria disciplina. Tal advento obri-ga esta ciência a lançar olhar atento para uma das principais instituições sociais: a escola.

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CULTURAS JUVENIS E AGRUPAMENTOS NA ESCOLA104

Ao sociólogo que volta sua atenção à aproximação entre Universida-de e Escola (de Ensino Fundamental e Médio) por meio das licenciaturas, uma questão fundamental se destaca: com toda a justiça a alguns esforços específicos, aparentemente, os estudos sobre a Escola nas últimas décadas não privilegiam as relações sociais, as redes de sociabilidades, que existem dentro dos muros das unidades institucionais de educação.

A Sociologia da Educação é um campo tradicional no Brasil – algo que já dizia Candido (1987) em 1955 – porém, por muito tempo se privilegiou a análise do processo educativo ou da própria escola a partir de enfoques estruturalistas, por meio, sobretudo, das políticas educacionais e seus componentes ideológicos.

Por mais fundamental que seja tal discussão, não se pode esquecer a escola como palco de sociabilidades. Um espaço social privilegiado na vida de seu público-mor: os estudantes.

Além disso, também é possível refletir até que ponto os Programas de Pós-Graduação em Sociologia ou Ciências Sociais, de modo geral, têm aberto espaço, maior ou menor, para estudos sobre a Escola. Aparentemente, legamos essa discussão aos Programas de Educação1.

Este artigo é um esforço inicial de reparação. Busca unir dois pontos fundamentais à reinserção da Sociologia na Educação Básica: a vivência es-colar como parte dessa sociedade e os estudos que permitem a compreensão do público predominante dessa instituição, ou seja, a juventude.

Não apenas a escola – conforme será discutido adiante – tem dificul-dades em enxergar o jovem como um sujeito social; a Sociologia (pelo menos no Brasil) parece ter dificuldade em ver a escola como espaço fundamental de socialização e de sociabilidade.

É preciso, portanto, pensar pesquisas sociológicas que transitem nesses dois campos; e com isso não apenas abram novas perspectivas analíticas, mas orientem a ação da Sociologia – e do professor de Sociologia – dentro desse “novo” espaço escolar. Ou seja, precisamos unir aquilo que jamais deveria ser separado: culturas juvenis e escola.

JUVENtUDE E ESCOlA

Em primeiro lugar, vamos tornar claros alguns pontos. Juventude é uma ca-tegoria que vem sendo cada vez mais objeto de estudos da Sociologia, porque se percebe a mesma como um tipo de articulador de discussões, tendo em vista a penetração social passível de se fazer por meio da operacionalização desse conceito. Isso se torna possível quando os estudos contemporâneos percebem a grande complexidade envolvida em torno do que é juventude.

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IRapuan peIxoto LIma FILho 105

De acordo com a percepção das Ciências Sociais, está relativamente claro que a denominação “juventude” só existe tal qual a conhecemos, a partir de um momento muito recente da história ocidental. Autores como Hobsbawm (1997) e Morin (1999) já atentaram à emergência da juventude como um ator social específico em meados do século XX, tornando-se pro-tagonista de vários processos sociais.

Na metade final daquele século, se consolidou a imagem de “juventude” como um período de rebeldia, de transgressão, algo que foi encampado por uma série de movimentos sociais, configurando-se, assim, um código de ideias, práticas e valores muito relacionados ao que se entende como “ser jovem”.

Sarlo (1997) é particularmente perspicaz ao vincular o conjunto de valores morais ligados à nova ideia de juventude com os bens culturais pro-duzidos por meio de expressões artísticas específicas, como música, moda e cinema. Embora sem sombras de dúvida, literatura e teatro tenham também contribuído, música, moda e cinema foram fundamentais na construção da noção de algo que o compositor brasileiro Belchior chamou de “uma nova consciência e juventude”2.

Tais produções artísticas, por meio de seus autores, consolidaram paulatinamente toda uma iconografia do “ser jovem”: calças jeans, cabelos longos, roupas mais ousadas, adereços; além de um conteúdo peculiar: uma atitude. Desse modo, temos que concordar com Sarlo (1997, p. 36) quando diz que “a juventude não é mais uma idade e sim uma estética da vida cotidiana”.

A Sociologia contemporânea não mais aceita a juventude como mera-mente uma faixa etária, a partir de autores como Abramo (1994), Pais (2003) e Carrano (2000, 2009). Longe disso, a classificação diz respeito a uma série de fenômenos sociais que envolvem trilhas de sociabilidade, adesões a estilos de vida, estreitamento de laços em agrupamentos; além da construção de uma “categoria” que pode ser entendida, também, como uma estética particular e não somente como um objeto de consumo.

Todo esse consumo “da” juventude configura uma estética juvenil poderosíssima que, de certo modo, domina a sociedade atual: ser jovem é cool; ser jovem é top. “Ser jovem” é objetivo a ser alcançado. Mas, diferente de uma faixa etária – que é algo simultaneamente transitório e determinado (de 15 a 29 anos, como preconizam as políticas brasileiras) –, a juventude é um bem; algo que pode ser adquirido; que envolve estilos de vida, estética, categorias de consumo, sentimento de pertença etc.

A força simbólica desse imaginário de juventude construído nas sociedades ocidentais terminou por resultar no que Pais (2003) chama de

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juvenilização, um processo no qual os valores da juventude (e sua estética) tornam-se extremamente valorizados e, poderíamos dizer, assumem até uma hierarquia superior no mercado de bens simbólicos. Daí, a afirmação de Vianna: “o conceito de juventude parece ter ‘colonizado’ todo o espaço social. (...) A juventude é hoje uma espécie de mercadoria vendida em clínicas de cirurgia plástica, livros de auto-ajuda e lojas de departamen-tos” (1997, p. 08).

Por isso, podemos perceber que falar de juventude não quer dizer falar de uma faixa etária definida pelas políticas públicas brasileiras – de 15 a 29 anos –, mas de um processo social mais complexo, que envolve, repito, a adesão a uma estética ou mesmo a um estilo de vida.

Na conceituação de Giddens, estilo de vida é entendido “como um conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular da auto-identidade” (2002, p. 79).

Seguindo o raciocínio de Pais, pode-se dizer que, como parte da juveniliza-ção, práticas juvenis associadas a beleza e moda, por exemplo, são extremamente valorizadas em nossas sociedades, mobilizando adesões em massa e todas as grandes consequências disso. Entretanto, apesar da busca algo incessante das faixas etárias maiores por juventude, o “ser jovem” é experimentado de modo talvez ainda mais visceral por meninos e meninas mais novos.

Isso serve de alerta para o fato de que pensar a juventude como uma categoria complexa não exclui a dimensão etária; apenas acrescenta outras camadas e outros significantes à vivência dessa experiência. O imaginário da sociedade, de um modo geral, ainda mantém a noção de juventude como “etapa” ou “fase” da vida, uma fase, um período. Contudo, ao mesmo tempo – e paradoxalmente – os signos do que é ser jovem extrapolam tal faixa etária e se tornam objeto de consumo de parcela da população que vai bem além daquele marco biológico.

A Sociologia precisa tratar a juventude dentro dessa múltipla dimen-são: como faixa etária, cronologia, estética, estilo de vida, bens culturais de consumo etc. Este é o motivo de alguns autores optarem pelo uso da expres-são “juventudes”, como modo de tornar mais clara essa dimensão diversa.

Como a estética juvenil é vivenciada através de expressões culturais, podemos mobilizar a categoria “juventude” por meio do conceito de culturas juvenis, que envolve práticas, saberes e agremiações que os jovens articulam em sua vivência do que é “ser jovem”. Ou seja, grupos sociais formados a partir de adesões estéticas ou políticas; movimentos organizados ou não; participação em eventos e causas etc.

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O estudo das culturas juvenis pode ser realizado por meio de diver-sos tipos de inserção em campo; contudo, percebe-se que a escola é uma instituição estratégica por demais para tal realização. Como afirma Dayrell (2007), a escola é um espaço social privilegiado de sociabilidade juvenil, onde indivíduos passam considerável parte de seu tempo cotidiano e durante um longo período da vida.

A constatação de que não há ainda, no Brasil, muitos estudos sobre culturas juvenis na escola, nos ensejou a organização de um Grupo de Trabalho – em parceria com a Isaurora Martins de Freitas, professora da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) –, no III ENESEB (Encontro Nacional sobre o Ensino de Sociologia na Educação Básica)3. Esse Grupo de Trabalho (GT), denominado Culturas juvenis na Escola, reuniu 18 trabalhos tratando da temática, desencadeando-se, ali, uma onda de reflexões sobre o tema (FREITAS; LIMA FILHO, 2013).

Entendemos, pois, ser preciso que o sociólogo volte seu olhar à escola como espaço de sociabilidade e socialização, abordando, por exemplo, a vivência das culturas juvenis nessa instituição.

A VIVÊNCIA DOS AGRUPAMENtOS NAS ESCOlAS

É possível perceber a articulação das culturas juvenis no meio escolar através da existência de grupos sociais ali organizados. Refiro-me, nesses termos, a agremiações (formais ou informais) constituídas pelos próprios jovens, que se distribuem em pequenas “turmas” dentro da escola; por vezes chamadas no senso comum como “panelinhas”.

Em outro trabalho (LIMA FILHO, 2013), usei a categoria agrupamentos para me referir às agremiações (geralmente informais) nas quais os jovens se organizam para vivenciar, na prática, a adesão a um estilo de vida. No caso, tomei como referência a análise de Giddens (2002), de acordo com a qual os agentes sociais rotinizam suas práticas cotidianas por meio de um código de valores e de regras de comportamento que podemos chamar de estilos de vida.

Embora passemos a vida inteira articulados a vários estilos de vida diferentes (e complementares), aparentemente, a juventude é um momento no qual há acirramento desse envolvimento, de modo que o jovem é, por excelência, um sujeito social vinculado a estilos de vida.

No trabalho supracitado, analisei agrupamentos articulados em torno do estilo de vida roqueiro, ou seja, aqueles envolvidos com as expressões em torno do gênero musical do rock. Percebi, porém, que o modelo conceitual da relação sujeito-agrupamento-estilo de vida não é circunscrito ao rock,

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mas um dos modos de navegação social empregados pela juventude (e mes-mo por não-jovens) no seu cotidiano. Ressalte-se que os agrupamentos são categorias operacionais, já que concretizam a expressão dos estilos de vida e de suas variações4.

Observando a ligação estreita entre juventude e vivência de estilos de vida muito específicos, percebemos que há uma equivalência, em alguns casos, das culturas juvenis com esses estilos de vida.

Pensando nisso, que melhor locus para analisar os agrupamentos do que na vivência escolar? A experiência como professor de disciplinas de Estágio e de Prática do Trabalho Docente, na Licenciatura em Ciências Sociais, permite um olhar sociológico sobre a navegação social dos jovens no interior da escola, possibilitando, portanto, a observação dos agrupamentos5.

Essas agremiações se organizam orientadas por valores e comporta-mentos muito específicos que passam a identificá-las. Na Escola, em geral, existem agrupamentos que se organizam por meio de vários catalisadores, como: bens culturais (roqueiros, punks, metaleiros, hip-hoppers, capoeiris-tas e nerds), políticos (grêmios, partidos e/ou tendências políticas e outros), religiosos (evangélicos, carismáticos, umbandistas), de gênero (homossexuais e militantes LGBTT), dentre outros.

Cada um desses agrupamentos é a expressão de um estilo de vida específico e, como tal, traz consigo um conjunto de códigos simbólicos estruturados a partir de valores fundamentais e regras de comportamento. Afinal, cada estilo de vida tem conteúdo próprio que o difere dos demais. Para “ser roqueiro”, por exemplo, é preciso estar de acordo com o que os roqueiros pensam “ser um roqueiro”. Há um modo de pensar e a expressão disso em gestos e posturas; em ideias e atitudes. Podemos dizer: uma visão de mundo que embasa tudo.

Nessa perspectiva, fala-se em estilo de vida por adesão: o indivíduo entra em contato com o conteúdo do estilo de vida em algum momento de sua biografia e, por meio de um sistema interno de concordâncias, vai de-senvolvendo afinidades que resultam na adesão. Todavia, tal adesão requer efetivamente que se professe a visão de mundo ali embutida.

O agrupamento nasce da articulação, localizada regionalmente, de partícipes do mesmo estilo de vida. Entretanto, além de promover sociabi-lidades, uma das principais funções do agrupamento envolve a vigilância e a defesa dos valores próprios do estilo, conforme será aprofundado adiante.

Através da inserção da Sociologia na Educação Básica, pode-se per-ceber a maneira como os jovens vivenciam suas experiências sociais dentro da escola, ou seja, como movimentam – de acordo com suas singularidades

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– suas adesões às culturas juvenis e aos agrupamentos. Nota-se, assim, que o jovem que frequenta a escola constrói alianças e conflitos por meio de seu sentimento de pertença a agremiações específicas que, de algum modo, orientam sua participação na sociedade.

Se percebermos a vida em sociedade como uma realidade complexa em meio à qual nos ligamos a inúmeras instituições ou atividades sociais – a família, a escola, a religião, a vizinhança, um grupo de amigos, movi-mentos sociais ou culturais etc. –, com diferentes níveis de envolvimento e, ao mesmo tempo, um grande volume de expectativas a serem corres-pondidas, entenderemos que movimentamos um conjunto complexo de códigos culturais que nos permitem transitar, bem ou mal, no seio de cada um desses espaços sociais.

Assim, lembrando Giddens (2002), afirmamos que qualquer sujeito social está envolto em grande volume de relações sociais complexas. Em se tratando de grupos sociais, tais relações se traduzem também como adesões ferrenhas, expressas publicamente. Como já escrito, a vida dos jovens parece envolver um número ainda maior (ou com maior intensidade) de adesões desse tipo, por se tratar de momentos em que a busca de autonomia como sujeitos os leva a desenvolver vínculos estreitos com tais agrupamentos.

Por isso, apesar de todos os sujeitos terem que lidar com a afirmação de identidade – “eu sou isso, eu sou aquilo”; “gosto disso, não gosto daquilo” –, na juventude o elo com os agrupamentos que se formam a partir de tal identificação parecem mais intensos.

A escola reflete essa condição. Recorrendo, outra vez, a Dayrell (2007), a escola – assim como a rua ou a vizinhança – se torna lugar privilegiado de exibição dos signos relacionados à pertença a grupos que, vistos em sua totalidade, são compreendidos como parte do que chamamos de culturas juvenis. Assim sendo, na escola são movimentadas adesões e vivenciados conflitos entre os jovens, vinculados a regras sociais e ao convívio em tais agremiações, que podem ser mais abertas ou fechadas, de acordo com suas próprias características.

O esforço de compreensão dessa realidade torna-se ainda mais importante quando consideramos o papel da escola como instituição social responsável por significativa reprodução de valores e regras sociais, tal qual analisa Bourdieu (2012; BOURDIEU; PASSERON, 2012) em vasta gama de estudos.

Analiso, aqui, a delicada relação entre juventude e Escola. Lembre-mos que o “ser jovem” é um tipo de bem cultural marcado por símbolos e representações. Por isso, falo em uma estética jovem ou na juventude também como estética (SARLO, 1997; LIMA FILHO, 2013). Peças de roupas,

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cortes de cabelo, elementos de linguagem (escrita, falada e visual) identi-ficam o “ser jovem”.

Esses elementos têm conteúdo variável, em contextos e localidades diversos; contudo, é clara a idealização de uma juventude que pode ser exi-bida por um usuário, mesmo que este não se encaixe em uma faixa etária restrita. Basta usar certa maquiagem, determinado estilo de roupa ou fazer uma cirurgia plástica na clínica estética do bairro6.

A inserção do adolescente – este sim, integrante de uma faixa etária determinada, inclusive politicamente, no Brasil – nessa navegação social da juventude não é feita sem problemas. Aderir e vivenciar um estilo de vida não é algo simples, fácil e sem percalços.

O estilo de vida – e mais ainda sua expressão prática por meio da formação e sociabilidade nos agrupamentos – é impositivo aos seus usuários. É imperativo àquele que adere ao grupo concordar com suas regras de com-portamento e valores morais professados. Além disso, há instrumentalização de vigilância constante: cada membro vigia os demais e ativa os códigos que podemos chamar de modos de inclusão e exclusão.

Os modos de inclusão se dão por meio de afinidades: o candidato precisa deter (ou expressar) alguma concordância com os valores e regras do agrupamento que o motive a se aproximar e tentar “ser aceito”. Porém, além das afinidades, serão criadas senhas de acesso que permitirão a “entrada”. Tais senhas são como “testes” aos quais os membros já consolidados do coletivo submetem o iniciado para provar se ele tem valor.

O processo de entrada é gradual; mas, uma vez consolidado, se acirram as “verificações”. Por isso, não basta aderir ao estilo de vida: é preciso vivenciá-lo na prática, por meio dos agrupamentos, se submeter às vigilâncias internas e exibir constantemente as senhas de entrada que vão “comprovar o seu valor”.

No caso da aferição se mostrar falha, são ativados os modos de exclusão, que desvincularão o sujeito do convívio no agrupamento. A lembrança da discussão de Goffman (1988) do estigma é bem-vinda à comparação: o estilo de vida se faz pela observação de suas regras e valores; daí a necessidade de exibi-los constantemente (e são criadas regras para isso também); por isso mesmo, não convêm aos seus membros estarem na presença (ou serem vinculados) aos “outros”, os “de fora”, que “sujam” a legitimidade daquilo que professam. O indesejado é excluído.

Na prática, os modos de exclusão podem ser expressos por brinca-deiras (“tirar onda”), difamação ou mesmo violência física, dependendo das condicionantes.

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A dinâmica da filiação aos agrupamentos pode ser observada nas esco-las, especialmente (embora não exclusivamente) nos pátios e nos intervalos. A vivência na escola permite a formação de alguns desses coletivos, embora sua presença, nitidez e fortaleza dentro da mesma dependam de muitos fatores.

Tal fenômeno precisa ser compreendido, para que se possam entender alguns dos desafios impostos aos jovens nas escolas. Além de todas as particu-laridades e dificuldades inerentes ao ambiente escolar – tal qual se apresenta no Brasil, principalmente nas escolas públicas –, os jovens precisam também lidar com as sociabilidades, nem sempre pacíficas, dos agrupamentos.

Afinal, os agrupamentos não podem ser compreendidos isoladamente, mas essencialmente no convívio com outros, com o “diferente”. Como diz Simmel (1977), os grupos sociais se fortalecem por oposição: é preciso um contraponto para tornar mais claro, nítido e forte “o que eu sou”. A necessidade de se contrapor a um diferente – e dizer “eu não sou isso” – dá ao grupo mais coesão e identificação. Quando isso ocorre no interior da escola, formam-se agrupamentos muito claros, como os já citados anteriormente: metaleiros, nerds, religiosos católicos, evangélicos (em suas subdivisões), ligados, por exemplo, a movimentos políticos ou organizados em torno de facções de LGBTT.

JOVEM OU AlUNO?

Um dos grandes problemas que se apresentam nas escolas brasileiras de hoje é a invisibilidade do jovem. Por incrível que possa parecer, o jovem sim-plesmente não é percebido dentro dos muros escolares, na maioria dos casos.

Já chamei a atenção para este problema anteriormente (FREITAS; LIMA FILHO, 2013), assim como o fez Dayrell: “Cabe questionar em que medida a escola ‘faz’ a juventude, privilegiando a reflexão sobre as tensões e ambigüi-dades vivenciadas pelo jovem, ao se constituir como aluno num cotidiano escolar que não leva em conta a sua condição juvenil” (2007, p. 1107).

Uma vez dentro da escola, se esquece toda a discussão do início deste artigo e o jovem se transforma em “aluno”: classificação homogê-nea, generalizante e assexuada. Eles são todos iguais, inclusive usando as mesmas roupas, via fardamento.

A homogeneização tem fins disciplinares – lembremos a astuta des-crição de Foucault (1999) sobre a introdução de disciplina desse tipo nas escolas como uma forma de manutenção do poder – e precisa se manter intacta dentro do modelo escolar que temos hoje.

Por sua vez, há sempre jovens tentando, a todo momento, subverter essa ordem – ou testar seus limites – trazendo não raro elementos estéticos e

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simbólicos de seus agrupamentos, para quebrar a hegemonia disciplinadora do fardamento. Usam camisetas de suas bandas favoritas, por cima ou por baixo da blusa do uniforme; acrescentam lenços ou outros adereços; e usam bonés. Este último evoca um elemento de “indisciplina” que chega a ser cômico no interior das escolas de Fortaleza: os alunos insistem em usá-los – o que é um hip-ho-pper sem um boné? – e as escolas se esforçam loucamente para eliminá-los.

Bourdieu e Champagne atentam para o uso dessas estratégias de re-ação dos jovens, vinculando-as à resignação desencantada por perceberem a desvalorização da carreira estudantil e, mais ainda, do diploma final do Ensino Médio. Nas palavras deste autores,

[...] tal resignação exprime-se também pela multiplicação dos sinais de provo-cação em relação aos professores, como o walkman ligado, algumas vezes, até mesmo na sala de aula, ou as roupas, ostensivamente descuidadas, e muitas vezes exibindo o nome de grupos de rock da moda, inscritos caneta esfero-gráfica ou com feltro, que desejam lembrar, dentro da escola, que a verdadeira vida encontra-se fora dela (2012, p. 224, grifos no original).

A desvalorização dos certificados com certeza é um dos problemas. Os jovens estudantes já perceberam que a escola não lhes dá o necessário para o mercado de trabalho ou “para a vida”, então, questionam a utilidade de todo aquele esforço e sofrimento que são os estudos por anos e anos a fio. No Brasil, gera-se, aí, uma falta de identificação, crônica, dos jovens com os conteúdos (e as metodologias) adotados pela Escola em suas disciplinas, que sempre aparentam ser distantes, intangíveis, irreais, abstratos e não-práticos.

Todavia, temos que pensar que os exemplos dados pelos autores tam-bém são uma tentativa dos jovens exibirem / publicizarem, na Escola, suas adesões aos agrupamentos dos quais participam. É uma forma de passarem um recado à escola: “não somos apenas alunos, somos jovens!”.

Entretanto, a escola (pelo menos de modo genérico) é cega à iniciativa. Insiste em rotular seus educandos como “alunos” e, pior, a considerar que as formas de expressão que (tentam) exibir são não apenas indisciplinares, mas indesejadas ao ambiente escolar.

Dentro das “salas de professores” – recantos isolados e “protegidos” dentro dos muros das escolas – e das ainda mais bloqueadas salas de coor-denação e diretoria; se dissemina o pensamento de que a livre expressão identitária dos jovens no ambiente escolar é um risco à disciplina. Algo que novamente nos remete a Foucault (1999) quando pensamos no controle dos “corpos dóceis” para expressão e manutenção do poder.

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Mais do que tudo, ter jovens publicizando suas adesões aos agrupa-mentos parece aterrorizar os professores e gestores das escolas. As visitas às escolas e as conversas com tais profissionais – bem como os relatos dos alunos em Estágio de Docência – permitem perceber professores, de certo modo, apavorados com seus discentes.

Ouvir ou cantar o Rap, por exemplo, com suas vestimentas típicas, movimentos, gestos e danças é visto como expressão de ruptura com a ordem escolar. Tendo em vista a maneira como as relações entre os estudantes e o corpo escolar dirigente são construídas, é possível que tal “subversão” tenha esse sentido para ambos os lados.

É bem provável que o fato de se sentirem tolhidos numa escola que percebem não lhes ser “útil” – com temas e discussões desconectados de suas realidades e que resultarão em um certificado desvalorizado – termine por incentivar uma reação. A adesão e a vivência dos agrupamentos nos intramuros da escola devem ser reforçadas por tal sensação.

Claro, há outros elementos na questão. Não se pode esquecer o abismo que existe entre o capital cultural da escola e aquele que os alunos trazem de casa. Os professores e a gestão também não compreendem bem essa disparidade e, não raro, querem impor o capital próprio do “conteúdo” es-colar. Por isso, mesmo quando há boa vontade por parte de professores – os de Sociologia, inclusive – em usar “novas” metodologias ou didáticas para despertar o interesse dos estudantes, incorre-se no erro de não refletir sobre os diferentes capitais culturais em jogo.

Como já discutido em outra ocasião (SILVA; LIMA FILHO, 2013), ao levar a música à sala de aula, por exemplo, o professor termina selecionando material culturalmente estabelecido como “de boa qualidade”, já aprovado no crivo do capital cultural reinante por meio daquilo que é “repassado” na escola. Em Sociologia, recorrem-se às letras incendiárias do BRock dos anos 1980 ou à poesia profunda da MPB clássica para introduzir e discutir temas. Entretanto, esse capital cultural é muito distinto daquele dos alunos, e tal discrepância pode render falta de identificação, de interesse e até antipatia. Os professores, por sua vez, classificam o capital cultural dos jovens – neste caso, o Rap, o funk carioca, o forró eletrônico do Nordeste e vários outros gêneros musicais populares – como algo de “pouco valor” ou mesmo inútil.

Porém, as leituras de Bourdieu e Passeron (2012) e Bourdieu e Cham-pagne (2012) nos ajudam a perceber que, se no passado, os alunos incorpo-ravam o capital cultural recebido da escola – ou, como era mais comum, a instituição simplesmente excluía aqueles não “ajustados” ao modelo –, no novo cenário político, muitos deles, mesmo concluindo o Ensino Médio,

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terminam por não interiorizar aquele capital, gerando-se, simultaneamente, entre eles, um movimento surdo de resistência.

Assim, as leituras referidas nos inspiram a considerar que, parti-cularmente no caso do Brasil, a Escola como instituição precisa lidar, pela primeira vez em sua história, com uma população que jamais a freqüentou. Em nenhum outro momento da trajetória deste país tivemos as populações de baixa renda freqüentando em massa o Ensino Médio.

Esse “novo” aluno – preto, pobre, da periferia – é elemento “estranho” à Escola média; compartilha capital cultural distinto daquele incorporado pelos professores e gestores; e, como demonstramos aqui é, frequentemente, “mal-vindo” e, não raro, temido.

A vivência do jovem no Ensino Médio, portanto, é algo conflitivo. Esse contexto precisa ser analisado e compreendido para se saber que a adesão aos agrupamentos e estilos de vida dentro da Escola também gera mais conflitos.

Por um lado, há o aspecto já comentado da própria adequação do sujeito às regras do estilo de vida e sua expressão prática nos agrupamentos. Por outro, também podem ser estabelecidos conflitos e disputas em dois pólos: dos agrupamentos entre si; e destes com o corpo gestor da Escola.

Não é necessário que seja assim, mas é bem mais provável que seja. Por vezes, é possível ver articulações positivas entre agrupamentos específicos e o corpo gestor, quando, por exemplo, alunos envolvidos politicamente de-senvolvem atividades com este fim na escola. Ou quando um grupo se volta para práticas teatrais que são usadas pela instituição para fins didáticos e de exposição de temas em datas comemorativas.

Todavia, é mais comum vermos o estabelecimento de conflitos entre esses agrupamentos e o corpo diretor da escola que, como discutido, não entende os signos identitários, não reconhece o capital cultural que expõem e ainda os temem por serem um “corpo estranho” dentro de um sistema educacional que está a exigir profunda mudança e ampliação.

A compreensão desse ambiente conflitivo – até explosivo –, que é a situação do jovem dentro da escola, é fundamental para que se discutam mudanças nesse regime. Isso poderia evitar a radicalização do conflito no contexto brasileiro atual e evitar tragédias maiores em futuro breve. Ademais, a Sociologia imersa nesse ambiente – como ciência e disciplina – pode con-tribuir bastante e abrir grande campo de atuação.

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NOtAS 1 Observe-se, por exemplo, que em um levantamento da produção de So-ciologia da Educação nas pós-graduações brasileiras nos últimos 20 anos, Martins e Weber (2010) não fazem qualquer menção à Sociologia no Ensino Médio. Moraes (2003) também fez um levantamento da produção de pós-graduação em Ciências Sociais na USP e identificou que, dentre as 18 teses e 24 dissertações no campo da educação, defendidas entre 1945 e 1996, nenhuma tratava do tema “ensino de Sociologia”.

2 Tal expressão aparece na canção Como nossos pais, de autoria de Belchior, gravada por ele no álbum Alucinação de 1976. Contudo, a canção ficou mais famosa a partir da versão expressa na interpretação de Elis Regina, no álbum Falso Brilhante, do mesmo ano.

3 O III ENESEB ocorreu na Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza, no mês de maio de 2013, reunindo mais de 600 pessoas, entre pesquisadores, professores e alunos de vários estados do Brasil.

4 Não podemos esquecer que, devido à complexidade dos estilos de vida em suas totalidades, não raro existem em seu interior variações internas. Quer dizer, determinadas ideias, valores ou regras de comportamento podem ser interpretados ou vivenciados de modos diferentes, resultando em pequenas distinções. Daí que um só estilo de vida pode dar origem a vários agrupa-mentos distintos, como é o caso do rock.

5 Algumas das escolas acompanhadas são: Liceu do Conjunto Ceará; Liceu de Messejana; Escola de Ensino Médio Doutor César Cals; Escola de Ensino Fundamental e Médio Governador Adauto Bezerra; Escola de Ensino Funda-mental e Médio Arquiteto Rogério Fróes e Escola de Ensino Médio Presidente Humberto Castelo Branco, dentre outras. Todas fazem parte da rede pública estadual de ensino na cidade de Fortaleza.

6 Evidentemente, alguns desses bens custam caro, o que traz uma discussão de acesso ao capital econômico. Contudo, parte considerável dos elementos simbólicos que ajudam a compor a juventude como estética é acessível à maioria da população.

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CULTURAS JUVENIS E AGRUPAMENTOS NA ESCOLA118

RESUMOEste artigo discute a vinculação entre a escola e a cate-

goria de juventude, ressaltando o aspecto de sociabilidade dos jovens no intramuros da instituição. Por meio da observação sistemática das escolas através da experiência docente na Licenciatura em Ciências Sociais, o autor analisa as conse-qüências da vivência das culturas juvenis, dos estilos de vida e a formação dos agrupamentos dentro das escolas; lançando luzes sobre problemas inerentes ao ambiente escolar nem sempre percebidos pela sociedade e abrindo perspectivas de pesquisa a serem exploradas pela Sociologia neste campo.

ABStRACtThis article aims to discuss the link between the high

schools and the category of Youth, emphasizing the aspect of sociability of young people inside that institution. Through systematic observation of high schools through teaching ex-perience in Degree in Social Science, the author analyses the consequences of the experience of youth cultures, lifestyles and groupings within high schools; throwing light on problems inherent to the schools environment, include these not always perceives by society, and opening perspectives for research to be explored by Sociology in that field.

Palavras-chave: juventude, culturas

juvenis, Escola, estilos de vida.

Keywords:youth, youth cultures,

High Schools, lifestyles.

Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em julho/2014.

Artigos

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Os relatórios do desenvolvimento humano (RDHS/PNUD/ONU) da década de 1990 e as propostas para enfrentar as múltiplas formas de desigualdades

Maria José de RezendeDoutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Estadual de Londrina.E-mail: [email protected].

INtRODUçãO Nos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs) da década de 1990, há muitas indagações e diálogos teóricos e políticos com acadêmicos, técnicos, governantes, agentes governamentais e lideranças da sociedade civil. São, ainda, muitas as sugestões, suposições, aconselhamentos e disputas políticas reveladoras do entrelaçamento de inúmeros desafios que têm ganhado desta-que no interior dos documentos anuais divulgados pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), desde 1990 até o presente momento1. Por isso, selecionar, no interior

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de centenas de páginas, elementos que possibilitem entender o modo como os relatórios veem as relações entre as desigualdades e a pobreza excessiva, é, para usar uma expressão de Norbert Elias (1998), como pescar num turbilhão.

Com certeza, a análise dos RDHs, assim como qualquer outra análise documental de materiais com características semelhantes às dos RDHs, é extremamente desafiadora, uma vez que são muitos os dados acerca das condições de privação, de miserabilidade, de analfabetismo e de violação de direitos fundamentais, entre outros, como também os contextos sociais abarcados por eles. Muitos dados interpenetram-se, entrecruzam-se e revelam o quão complexa é a implantação de ações e medidas capazes de favorecer o desenvolvimento humano tido, nos documentos do PNUD, como um amplo processo de reversão do sofrimento social e do caos cotidiano nos quais estão mergulhados bilhões de indivíduos que vivem nos continentes africano, asiático e latino-americano.

Em vista de seu caráter propositivo, os RDHs tentam mapear uma realidade extremamente caótica, expressa no grande número de indivíduos desprovidos dos meios mínimos que garantam uma existência capaz de impulsioná-los para melhorias materiais (alimentação adequada, acesso a remédios, saneamento, moradia) e imateriais (habilidades políticas, conhecimento, participação, inte-resse pelos processos de transmutação, desejo de mudança e crença na própria capacidade de agir em busca de melhorias sociais diversas).

No que diz respeito à pobreza e às desigualdades – de renda, de instrução, de acesso à participação, de conhecimento e de possibilidades de ir vencendo paulatinamente a miséria –, pode-se dizer que os relatórios fazem um enorme esforço para demonstrar que 1/3 do total de habitantes do planeta não está, fatalmente, condenado ao perecimento. As condições nas quais se encontram os mais pobres são reversíveis, insistem os preparadores dos RDHs, os quais recebem inspiração tanto das discussões realizadas, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, por alguns técnicos graduados (tais como Josué de Castro, Gunnar Myrdal, Celso Furtado) das Nações Unidas sobre desenvolvimento social e sustentável, quanto das posturas mais recentes de técnicos e acadêmicos como Mahbub ul Haq2, Amartya Sen3, Richard Jolly4, entre outros. Ressalte-se que entre os mencionados, a obra de Sen tem sido fonte de inspiração constante e continuada para aqueles que vêm produzindo, ao longo de 20 anos, os relatórios.

A pergunta-chave que baliza este estudo é a seguinte: quais são os percursos e estratégias criados pelos formuladores dos RDHs para convencer diversos agentes (governantes, lideranças políticas, grupos organizados da sociedade civil, entre outros) de que há urgência de investir em ações capa-

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zes de diminuir as desigualdades (de renda, de gênero, de escolaridade, de habilidade, de capacidade, de participação, de conhecimento e de longevi-dade)? Com este questionamento norteador, pode-se verificar, de imediato, se os relatórios estão apegados, ou não, a algumas esperanças desligadas dos reais processos de aprofundamento da concentração de riquezas e de oportunidades no mundo atual.5

Todavia, não é este último questionamento o ponto de partida deste artigo, e sim aquele que concebe os relatórios como tentativa de estabelecer agendas públicas nacionais e internacionais que visem construir políticas de combate às desigualdades mais gritantes. Entende-se que, conforme assinala Goran Therborn (2001, p. 156), as Nações Unidas têm tentado desenvolver procedimentos cujos propósitos são “melhoria e promoção da igualdade, esta-belecendo alvos distributivos para, por exemplo, serviços de água e saneamento, vacinação, nutrição, educação de meninas e redução da pobreza em geral”.

Este estudo sobre o modo como as desigualdades são tratadas no interior dos RDHs parte ainda da compreensão de que os documentos são fontes importantes de dados sobre as múltiplas formas de desigualdades e de pobreza que vigoram no mundo, hoje. Há neles muitos elementos esclare-cedores sobre a expansão das desigualdades de renda, todavia, detectam-se, no seu interior, inúmeras dificuldades relacionadas ao encaminhamento de medidas capazes de operar processos de desconcentração da renda. As su-gestões de políticas distributivas de rendas parecem, nos documentos do PNUD analisados neste estudo, frágeis e acanhadas. Tal dificuldade pode ser, sem dúvida, um interessante objeto de pesquisa. Segundo José Eli da Veiga (2006), as dificuldades de enfrentar os impasses distributivos atuais não são somente das Nações Unidas. Ele afirma:

Não se percebe [hoje] qualquer propensão a encarar as necessárias ‘grandes transformações estruturais das economias e das ‘sociedades´. Isto é, as trans-formações globais e nacionais de caráter redistributivo que nenhum setor da ONU6, da OCDE7, do FMI8 ou do BIRD9 ousaria sugerir ou aconselhar. Afinal esse é o maior tabu das relações internacionais, apesar das evidências de que as desigualdades atrofiam o bem-estar (VEIGA, 2011, p. 3).

1. O enfoque das desigualdades nos RDHs da década de 1990 e as tentativas de superação de perspectivas fatalistas sobre os segmentos mais pobres

Norbert Elias afirma que as análises da atuação da ONU têm, com freqüência, destacado as dificuldades das Nações Unidas responderem adequadamente

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aos muitos desafios que têm emergido desde meados da década de 1950. Tem-se a impressão, diz ele, que tendemos a considerar a ONU, mais do que qualquer outra organização, como devedora em relação à solução dos problemas (tais como: violências, desigualdades, pobreza, miserabilidade, guerras, discriminações) que afligem muitos indivíduos ao redor do planeta. Talvez fosse mais adequado, a seu ver, observar que as experiências “com instituições que abarcam praticamente todas as nações são estágios num processo de aprendizagem” (ELIAS, 1994, p. 138).

Os RDHs são concebidos, neste estudo, como portadores de sinais de fortalecimento de um ethos em que a humanidade “vai tornando cada vez mais o quadro de referência, como unidade social, de muitos processos de desenvolvimento e mudanças estruturais” (idem, p. 136). Ao tentarem articular propostas no âmbito da renda, da educação e da longevidade para os diversos continentes, os Relatórios nos obrigam a lançar mão do pressu-posto de que há desigualdades locais, regionais, nacionais e internacionais que devem ser combatidas simultaneamente. A referência não é só, mas é também, o modo como as desigualdades refletem suas consequências para além do espaço nacional. Todavia, em momento algum, os RDHs deixam de indicar que os principais caminhos e soluções devem ser buscados no âmbito local e de acordo com as especificidades regionais.

Indiscutivelmente, muitas propostas dos RDHs causam mal-estar por parecerem amplas e genéricas demais, ou seja, aplicadas a regiões e grupos populacionais diversos. Aos elaboradores dos relatórios faltam, algumas vezes, elementos para uma leitura mais detalhada, mais exata, de algumas particularidades que emperram a maioria das políticas de combate às desi-gualdades. Isso porque, “de fato, a produção de conhecimento a serviço de interesses localizados está difundida enquanto é ainda raro o uso consistente da humanidade enquanto referencial” (ELIAS, 1998, p. 44).

A humanidade é o quadro mais amplo de referência porque os relatórios estão empenhados na defesa de um desenvolvimento humano que englobe a todos indistintamente. Mas os preparadores dos RDHs não supõem que a diversidade humana deva ser ignorada. Daí a sua insistência na necessidade de expansão de ações, por parte de governantes, agentes do Estado, sociedade civil e lideranças políticas, que favoreçam, de modo mais criterioso, as crianças, os jovens, as mulheres e os diversos grupos étnico-raciais.

Inspirados em Amartya Sen (2008; 2010; 2011), os formuladores dos relatórios reiteram a ideia de que “o desafio do desenvolvimento inclui a eliminação da privação persistente e endêmica e a prevenção da [pobreza] súbita e severa. Contudo, as demandas respectivas sobre as instituições e

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políticas (...) podem ser distintas e até mesmo dessemelhantes” (SEN, 2010, p. 244). Pode-se dizer então que, conquanto os RDHs tenham na base de suas preocupações as melhorias capazes de abarcar a humanidade como um todo, o “desenvolvimento tem aspectos que requerem análises e investigações adequadamente diferenciadas” (SEN, 2010, p. 245).

Ao propor discussões sobre desigualdades, o economista hindu sempre insistiu que a “diversidade humana não é nenhuma dificuldade secundária (a ser ignorada, ou a ser introduzida ‘mais tarde’) ela é um aspecto funda-mental” (SEN, 2008, p. 24) de toda e qualquer proposta do desenvolvimento humano. Não há dúvida, então, de que a humanidade é diversa tanto nas análises de Sen quanto nas de Norbert Elias. Ninguém mais do que este último se empenhou em demonstrar as singularidades, especificidades e diversidades entre os seres humanos. Para Elias, o processo civilizacional somente avança quando os indivíduos desenvolvem a capacidade de ocu-par não somente daqueles que pertencem ao seu próprio grupo social, mas também dos que são de países, continentes, grupos sociais e étnico-raciais completamente diversos dos seus.

As propostas, de Amartya Sen, de enfrentamento das desigualdades, partem do pressuposto de que “os seres humanos são profundamente diversos. Somos diferentes uns dos outros não somente em características externas (...) mas também em nossas características pessoais” (SEN, 2008, p. 29). Para ele, as demandas sobre igualdade só fazem sentido se forem consideradas num quadro em que as diversidades estejam, inteiramente, no centro de toda e qualquer reivindicação e de toda e qualquer avaliação das características múltiplas das desigualdades.

Sugere-se que as propostas de Sen sejam remetidas ao campo de aná-lise sociológico indicado por Norbert Elias. Parte-se do pressuposto segundo o qual no debate sobre as desigualdades, é bastante frutífero confrontar as sugestões daquele primeiro com as deste último, pela própria natureza das questões levantadas por ambos. Para eles, a humanidade, tomada como diversa, está no centro de suas indagações. Todavia, Elias se dedica a uma discussão bastante útil para problematizar até que ponto é, ou não, possível viabilizar as propostas dos RDHs inspiradas nos escritos de Sen.

Avanços na criação de um consenso – entre os diversos agentes so-ciais, conforme indicado pelo economista hindu, na obra A ideia de justiça – sobre que políticas implantar para diminuir as desigualdades exigiriam a expansão “da imagem do nós do indivíduo” (ELIAS, 1994, p. 186). Ou seja, é ainda precário o sentimento de um nós, o que leva a uma não-identificação “dos seres humanos com seres humanos como tais, independentemente de

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sua filiação a determinado subgrupo da humanidade” (ELIAS, 1994, p. 187). Há um habitus social10 que rechaça inteiramente o desenvolvimento de uma empatia em relação àqueles que estão em condições distintas e/ou que são diferentes por razões de ordens diversas.

1.1. Os RDHs da primeira metade da década de 1990 e as propostas de com-bate às desigualdades: os desafios postos aos habitus e às estruturas sociais

Norbert Elias alertava que o habitus social dominante no final do século XX estava assentado em relações pouco democráticas. Isso, sem dúvida, é responsável pelas muitas dificuldades postas no caminho da viabilização do combate às desigualdades sugeridas pelos RDHs. Percebe-se, nesses docu-mentos, um esforço enorme de convencimento dos múltiplos agentes sociais (Estado; sociedade civil; setores empresariais, governamentais e lideranças políticas locais, regionais, nacionais e internacionais) sobre a necessidade de desenvolvimento de empenhos duradouros e coletivos a favor do combate à miserabilidade extrema que acomete uma terça parte dos habitantes do planeta. Para que os diversos agentes sejam persuadidos a se envolverem na busca de ações que levem ao desenvolvimento humano, é necessário que haja alguma brecha, por menor que seja, para a expansão de atitudes voltadas para a diminuição das desigualdades e da pobreza.

O primeiro dado a destacar é que o RDH de 1990 – no capítulo intitulado Crescimento econômico e desenvolvimento humano – insiste na necessidade de considerar que atitudes voltadas para a defesa do cres-cimento econômico não são, necessariamente, capazes de potencializar o desenvolvimento humano. As chances deste se efetivar podem, até mesmo, ser perdidas em alguns países (tais como Brasil, Nigéria e Paquistão) que se voltam, principalmente, para um crescimento não-sustentável e gerador de riqueza e pobreza em escaladas descomunais.

O crescimento acompanhado por uma distribuição de renda equitativa parece ser a forma mais efetiva de sustentar o desenvolvimento humano. (...) Ainda que existam períodos de rápido crescimento do PNB (Produto Nacional Bruto), é possível que o desenvolvimento humano não progrida significativamente se persistir uma má distribuição de renda e se os gastos sociais se mantiverem baixos (Nigéria e Paquistão), ou se estes gastos beneficiarem, principalmente, os setores mais abastados (Brasil)11 (RDH, 1990, p. 99).

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Observe-se que o RDH de 1990 afirmava também que não se devia esquecer que alguns países autoritários que subtraíam todas as liberdades podiam, às vezes, ostentar altos índices de escolarização e de acesso aos serviços de saúde. No entanto, tais melhorias não eram suficientes para garantir o desenvolvimento humano que somente pode ser efetivo dentro de um regime de amplas garantias de liberdades12. Os RDHs mostram-se de acordo com o seguinte pressuposto:

Às vezes, a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportu-nidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso à água tratada ou saneamento básico. Em [alguns] casos, a privação da liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públicos (...). Em outros, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticas e civis (...) (SEN, 2010, p. 17).

As experiências vividas, ao longo de décadas, teriam demonstrado, diz o relatório de 1990, que pode haver crescimento econômico sem qualquer desenvolvimento humano, mas este último depende sempre daquele primeiro. Sem ele, não há como efetivar políticas de melhorias duradouras e estáveis; isso porque tais políticas são afetadas por fatores macroeconômicos (exemplo: crescimento e distribuição da renda), microeconômicos (aumento da renda, da escolaridade, melhoria das condições de saúde nos lares mais pobres) e mesoeconômicos (tais como programas governamentais voltados para os setores sociais mais pobres). “As mesopolíticas cobrem a gama completa de políticas fiscais, incluídas aquelas que afetam diretamente a distribuição da renda” (RDH, 1990, p. 100). Todavia, o relatório esclarecia que se ocuparia primordialmente dos gastos sociais e não de todas as outras mesopolíticas.

Os elaboradores do RDH de 1990 esclarecem, ainda, que ele daria atenção tanto às mesopolíticas gerais (aquelas voltadas para bens e serviços públicos direcionados a todos os grupos sociais indistintamente, tais como os programas universais de educação, de saúde, de nutrição, de saneamento e de habitação)13 quanto às mesopolíticas específicas que visam implantar bens e serviços para grupos focais14 (RDH, 1990, p. 101). Este relatório aconselha aos governantes a implantação, simultânea, de duas formas de política: as que estão focadas na contínua diminuição da pobreza absoluta e as que estão voltadas para o atendimento das necessidades de todos.

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Para compensar as baixas rendas primárias de segmentos importantes da população, é preciso desenhar mesopolíticas bem estruturadas. Quando um país registra ingressos baixos generalizados, mas uma boa distribuição dos mesmos, talvez o mais apropriado seja uma adequada estruturação de mesopolíticas indiscriminadas. Em países com uma renda média alta e bons índices de crescimentos, mas com uma distribuição deficiente, é possível que se requeiram algumas intervenções com objetivos específicos, que favoreçam os segmentos mais pobres da sociedade (RDH, 1990, p. 103). Ademais, desde os primeiros relatórios há tentativas de combinar polí-

ticas na área social que sejam realizadas pelo Estado com aquelas que sejam, ora mais ora menos, levadas a cabo por indivíduos que atuem em setores diversos tais como Organizações Não-Governamentais (ONGs), voluntariado, entre outros15. O RDH de 1993 foi, provavelmente, o que mais insistiu nesse tipo de co-responsabilidade entre indivíduos, organizações e instituições:

No presente relatório, a diferença decisiva consiste em que se considere a participação como uma estratégia global de desenvolvimento, centrando-se no papel fundamental que devem desempenhar as pessoas em todas as esferas da vida. O desenvolvimento humano implica ampliar suas opções, e uma maior participação permite que as pessoas possam por si mesmas acercar-se de uma gama muito mais ampla de oportunidades. A pessoa pode participar indivi-dualmente ou em grupos. Individualmente, em uma democracia, as pessoas podem participar como votantes ou, até mesmo, como ativistas políticos, ou no mercado como empresários ou trabalhadores. (...) Não obstante, participam de forma mais efetiva por intermédio de um grupo: como membro, talvez, de uma organização da comunidade, ou de um sindicato, ou de um partido político (RDH, 1993, p. 25). Em alguns momentos, é destacado que o modelo ideal de desenvol-

vimento humano sustentável, ou seja, aquele que é capaz de combater as desigualdades em seus múltiplos níveis, é o que respeita as diferenças (ét-nicas, raciais, culturais e de gênero), incrementa o crescimento econômico e a renda dos mais pobres e melhora a condição humana “sem precisar de grandes intervenções governamentais” (RDH, 1990, p. 104). O que isso sig-nifica? Que “os gastos no setor social, como porcentagem do PIB16 [sejam] relativamente baixos” (RDH, 1990, p. 104). Isso demonstra que o primeiro relatório já estava empenhado na defesa de um modelo de desenvolvimento humano reiterado mais tarde, pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan,

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que, entre os anos 2000 e 2010, defendia a participação ativa de diversos segmentos da sociedade (setores empresariais, voluntariado, ONGs) no combate à pobreza e às desigualdades extremas. Ele afirmava: “É utópico achar que podemos superar a pobreza sem a participação ativa do mundo empresarial” (ANNAN, 2005, p. 1).

Fomentar um desenvolvimento humano em que cada um é respon-sável pela diminuição da pobreza extrema e da miserabilidade é a condição essencial, segundo os preparadores dos RDHs, para impulsionar, de modo concomitante, o crescimento econômico e o progresso social. Percebe-se que ocorre, então, no interior dos documentos, uma paulatina transferência da responsabilidade, pelo bem-estar, para os indivíduos, os quais devem ser, de alguma forma, impelidos a resolver individualmente, conforme afirma Bauman17 (2001), problemas sistêmicos. Aparecem muito frequentemente, nos relatórios da década de 1990, as insistências na necessidade de tornar os indivíduos independentes, o que significava que eles “devem ter a capacidade de cuidar de si mesmos” (RDH, 1990, p. 141). Na mesma direção, lê-se ainda:

A ênfase na autoindependência econômica, política e social dos indivíduos não implica uma crítica contra o intervencionismo estatal em matéria de de-senvolvimento humano. Pelo contrário, a maior participação das pessoas no processo de desenvolvimento depende da existência de políticas e programas governamentais cuidadosamente desenhados. Não obstante, as intervenções do governo em benefício do desenvolvimento humano também devem fomentar a iniciativa privada em seu sentido mais amplo, incluída a dos empresários privados, a das Organizações não-governamentais (ONG) e outras organizações comunitárias e de autoajuda, assim como a das pessoas em sua qualidade de indivíduos ou lares (RDH, 1990, p. 141). Segundo os relatórios, a insistência na participação de uma multiplici-

dade de agentes está relacionada ao fato de que as mazelas sociais devem ser combatidas em muitos âmbitos e não só no da renda. Os formuladores dos RDHs afirmam, continuamente, que o baixo nível da renda tem importância; porém, na discussão sobre desigualdade e pobreza, enfatizam ser ainda mais relevante a “privação das capacidades básicas”, nos moldes defendidos por Amartya Sen. Veja-se o que este último nos diz:

O enfoque informacional da análise da pobreza neste livro transferiu a atenção do baixo nível de renda para a privação de capacidades básicas. (...) Tentamos demonstrar que a privação de capacidades é mais importante como critério de

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desvantagem do que o baixo nível de renda, pois a renda é apenas instrumen-talmente importante e seu valor derivado depende de muitas circunstâncias sociais e econômicas (SEN, 2010, p. 175).

Ao adotar a postura de que a renda é somente instrumentalmente relevante, os formuladores dos RDHs passam, às vezes, a impressão de que o aprofundamento do debate sobre a desigualdade de renda estaria subor-dinado ao debate sobre a privação das capacidades. Não há dúvida de que os relatórios estão preocupados com a necessidade de distinguir pobreza de renda e pobreza de capacidade18. Neste caso, observa-se que tais documen-tos se voltam para a defesa de estratégias do desenvolvimento humano que atendam aqueles que vivem em situação de pobreza absoluta. A elevação das capacidades, das habilidades e das oportunidades dos mais pobres deve correr juntamente com a melhoria da renda. Somente assim se pode reduzir, ao mesmo tempo, a pobreza e a desigualdade, o que depende de políticas objetivamente voltadas para distribuir ativos (terras, por exemplo), expandir o emprego, aumentar oportunidades e habilidades e prover serviços sociais básicos para todos os que não possuem acesso a eles.

Pode-se perguntar: há indícios de que os RDHs da primeira metade da década de 1990 se ocupam das desigualdades como disparidades entre os mais ricos e os mais pobres? Sim, verifica-se, desde os primeiros docu-mentos, uma preocupação com as disparidades. Há, no RDH de 1990, até mesmo um item que trata dos obstáculos impostos pelas disparidades ao desenvolvimento humano, sendo que os impedimentos advêm de muitos tipos de desigualdades, as quais tornam abissais as diferenças de rendas, de recursos e de poder entre os mais ricos e os mais pobres.

As disparidades existentes nas condições de vida – em áreas rurais e urbanas – e nas oportunidades de emprego e de acesso à educação e à saúde, entre homens e mulheres, devem ser tão combatidas quanto aquelas oriundas da renda, diz o RDH de 1990. Segundo ele, “a fim de reduzir as disparidades entre ricos e pobres, a realocação da infraestrutura social desempenha um papel importante” (RDH, 1990, p. 140). Pode-se dizer, assim, que é dada centralidade, à busca de melhor equidade nos investimentos em saneamento, educação, saúde, moradia, nutrição, entre outros.

Os preparadores do RDH de 1994 insistem: a reversão das desigual-dades somente se efetivará se os indivíduos alcançarem segurança na sua vida cotidiana. As privações socioeconômicas e as crescentes disparidades têm levado a conflitos de difícil solução. Por isso, dizem eles, a seguridade humana e o desenvolvimento humano são inseparáveis. Eles afirmam que é

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possível detectar, nos últimos 50 anos, avanços humanos importantes. Basta observar os indicadores de esperança de vida ao nascer, o aumento do nível educacional e as melhoras nutricionais para concluir que a humanidade tem feito alguns progressos relevantes. Todavia, há ainda muito a ser feito, daí o empenho das Nações Unidas, através do PNUD, em criar um instrumento, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) para medir até que ponto esses avanços são ininterruptos19:

(...) Em 1960 quase 70% da humanidade sobrevivia em condições humanas de grande indigência (com um índice de desenvolvimento humano inferior a 0,4), em 1992 (...) 32% da população mundial estava nessas condições. A proporção da população mundial que desfrutava de níveis de desenvolvimento humano bastante satisfatório (acima de um IDH de 0,6) aumentou de 25%, em 1960, para 60%, em 1992 (RDH, 1994, p. 2).

Em razão da natureza propositiva e incentivadora dos relatórios, seus elaboradores destacam sempre a importância dos avanços e dos progressos verificados. No entanto, são enfatizadas as muitas disparidades que emperram os processos de desenvolvimento humano20. No que se refere às desigualdades, os RDHs destacam as disparidades de capacidades, habilidades, oportunidades e rendas que afligem os mais pobres. Mesmo com alguns avanços, a situação é apontada como caótica, no que diz respeito à privação vivenciada, ainda hoje, por muitos habitantes do planeta:

Em que pesem os nossos avanços tecnológicos, ainda vivemos em um mundo onde a quinta parte da população do mundo em desenvolvimento está faminta ao ir dormir a cada noite, onde a quarta parte carece de acesso aos bens bási-cos como água de beber não contaminada e a terceira parte vive em estado de abjeta pobreza (RDH, 1994, p. 2).

Conforme o RDH de 1994, em razão da não-participação da maioria das pessoas no processamento de tais mudanças, há enorme dificuldade de construção de avanços socioeconômicos que diminuam as desigualdades (não só de renda, mas também de gênero, de habilidade, de capacidade, de oportunidades). Em vista disso é necessário encontrar novas formas de coo-peração produzidas por “uma participação mais equitativa das oportunidades e responsabilidades econômicas em escala mundial21” (RDH, 1994, p. 3).

Norbert Elias em Mudanças na balança nós-eu – texto que compõe a coletânea A sociedade dos indivíduos – afirma que a criação das Nações

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Unidas e as tarefas que foram abraçadas por essa agência têm de ser encaradas como “práticas e representações de um novo ‘nós’ são a expressão de um ‘novo sentido da responsabilidade na escala mundial’ (ELIAS, 1994, p. 136), cuja emergência e desenvolvimento se embasam concretamente nos fenômenos de interdependência” (DEVIN, 2010, p. 65). Considera-se que as sugestões postas no interior dos RDHs podem ser tomadas para exemplificar as discussões de Elias sobre a orientação de alguns organismos rumo às tentativas de criar uma responsabilidade mais ampla sobre os destinos da humanidade. A seu ver, tais processos indicavam a predominância, na segunda metade do século XX, de uma orientação voltada para maior integração entre os diversos povos do planeta. Tais orientações produzem, simultaneamente, muitas formas de desintegração. Isso quer dizer que existem ações planejadas e não-planejadas que coexistem e impedem que as coisas se passem, exatamente, do modo como os relatórios do desenvolvimento humano planejam.

Talvez, um dos maiores dilemas contidos nos RDHs é que eles tentam dar, às suas propostas, um tom esperançoso como uma forma de convencer os diversos agentes (governantes, lideranças políticas, lideranças da sociedade civil, entre outras) de que é possível a construção de um agir propositivo e voltado para a busca de melhorias coletivas. Fazem isso como que descon-siderando os elementos não-planejados que intervêm e desfazem os planos lineares de avanços contínuos e estáveis. Veja-se o que diz o RDH de 1994: “É necessário empreender ações (tanto preventivas como curativas) que apóiem os processos de integração social” (RDH, 1994, p. 4).

As ameaças à seguridade humana são vistas como capazes de levar ao processo de desintegração social. Neste caso, pergunta o RDH de 1994: o que cabe à “comunidade internacional”? E responde: [cabe] “reconhecer um conjunto claro de indicadores de segurança humana e um sistema de alerta imediato baseado nesses indicadores. [Isso] poderia ajudar a esses países a evitar que a situação chegue a um ponto de crises” alarmantes (RDH, 1994, p. 4). A exposição das condições sociais dos diversos países, dizem os do-cumentos em análise, pode tornar possível construir estratégias para evitar catástrofes iminentes. Conforme assinala Norbert Elias (1994), estão em curso alguns processos de aprendizado sobre como lidar com as desigualdades, com a pobreza, com as mazelas sociais, com as inseguridades humanas tomadas também como globais e não somente como locais.

O RDH de 1994 fala na necessidade de criar um novo paradigma de desenvolvimento que “coloque o ser humano no centro do desenvolvimento, considere o crescimento econômico como um meio e não como um fim, proteja as oportunidades de vida das futuras gerações do mesmo modo que as

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das gerações atuais e respeite os sistemas naturais dos quais dependem todos os seres vivos” (RDH, 1994, p. 5). Essa forma de desenvolvimento é, segundo o relatório, indissociável da questão da equidade. Todavia, a ênfase recai sobre a necessidade de distribuir melhor as oportunidades e as habilidades. “Por conseguinte, talvez uma reestruturação das pautas de distribuição da renda, produção e consumo em escala mundial seja uma condição prévia necessária para toda estratégia viável de desenvolvimento humano susten-tável” (RDH, 1994, p. 5).

É interessante observar que o relatório diz “talvez” e não “certamente” seja necessário e urgente colocar em pauta efetivamente o debate sobre como formular ações capazes de desconcentrar a renda. Pode-se dizer que esse tema aparece, de fato, como o mais espinhoso no interior de todos os relatórios. Todo problema se resume na seguinte questão: como criar estratégias para convencer uma multiplicidade de agentes acerca da necessidade de envidar mais e mais esforços na busca de uma maior equidade se isso, muitas vezes, esbarra no interesse desses mesmos agentes? Por isso, os relatórios tentam equilibrar-se entre o possível e o impossível, o viável e o inviável nas condi-ções socioeconômicas mundiais, hoje.

Se a busca de equidade toca em interesses petrificados e difíceis de enfrentar, qual é, então, a solução proposta pelos RDHs? A cooperação. Deve-se estabelecer em escala mundial, dizem eles, uma coparticipação econômica que evite os enfrentamentos e sejam capazes de dividir “equita-tivamente as oportunidades dos mercados” (RDH, 1994, p. 5). Não há dúvida de que esse é o maior problema que salta aos olhos quando se toma contato com os relatórios, ou seja, quando se tenta resolver questões de magnitudes imensas, como as referentes às desigualdades, sem enfrentamentos (entre estados, países, grupos sociais, organizações, associações, etc.) significativos. Celso Furtado insistiu, muitas vezes, que, considerando as condições reais dos países subdesenvolvidos, esse tipo de ação política que tenta evitar e/ou neutralizar os enfrentamentos é, praticamente, impossível, uma vez que é difícil, através da cooperação,

(...) modificar estruturas bloqueadoras da dinâmica sócio-econômica, tais como [a concentração de terras], o corporativismo, a canalização inadequada da poupança, o desperdício desta em formas abusivas de consumo e sua drena-gem para o exterior. As modificações estruturais deveriam ser vistas como um processo liberador de energias criativas, e não como um trabalho de engenharia social em que tudo está previamente estabelecido. Seu objetivo estratégico seria remover os entraves à ação criativa do homem, a qual, nas condições de

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subdesenvolvimento, está caracterizada por anacronismos institucionais e por amarras de dependência externa (FURTADO, 1992, p. 75).

1.2. Os RDHs da segunda metade da década de 1990 e as propostas de com-bate às desigualdades: os desafios postos aos habitus e às estruturas sociais Observa-se que, em meados da década de 1990, há tentativa de tornar mais e mais precisa a noção de desenvolvimento humano. Este último, afirma o RDH de 1995, somente é possível se houver igualdade de oportunidades, sustentabilidade dessas oportunidades de uma geração para a outra e au-mento da possibilidade de que as pessoas sejam, de fato, beneficiadas pelos avanços que vão sendo gerados paulatinamente (RDH, 1995, p. 1). Tal con-vicção, expressa no documento do PNUD, pressupõe, sem sombra de dúvida, desafios postos ao habitus social, já que se sugere a necessária geração de novos valores capazes de democratizar as oportunidades e as habilidades. Faz-se preciso, ainda, criar novas disposições sociais22, novas atitudes. Estas últimas são disponibilidades para uma dada forma de agir voltada para uma melhor distribuição de recursos, oportunidades e capacidades.

É visível que as propostas dos RDHs vão aperfeiçoando – desde a década de 1990 – o modo de mostrar, aos diversos agentes, os desafios cabíveis às estruturas sociais, econômicas e políticas. No RDH de 1995, o ponto de partida era a Declaração de Viena que havia sido produzida na Conferência Mundial de Direitos Humanos, em 1993. Nela, múltiplas formas de desigualdades re-cebem um foco de luz especial. Diversos itens do documento, subscrito por 171 países, diziam respeito à necessidade de construir igualdade de acesso aos serviços sociais básicos, à oportunidade de participação política, à justiça, à empregabilidade e aos direitos de modo geral.

Ressalte-se que o RDH de 1995 deu destaque à necessidade de buscar uma forma de desenvolvimento humano medido pelas melhorias no IDM (Índice de Desenvolvimento relacionado à Mulher)23. Assim, todo o debate acerca das desigualdades dá centralidade aos avanços e não-avanços no combate às disparidades substanciais entre os sexos. O relatório de 1995 insistia que não existiam, em qualquer sociedade, oportunidades iguais para homens e mulheres. Havia, sim, disparidades maiores e/ou menores. O IDM mais alto era, naquele ano, o da Suécia (0,92 numa escala de 1 como valor máximo). Os índices mais baixos, aqueles que ficavam abaixo de 0,5, podiam ser encontrados em mais de 45 países (RDH, 1995).

De acordo com o RDH de 1995, o IDH, o IDM e o IPM (Índice de Potencialização da Mulher)24 nem sempre eram coincidentes. Havia países

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(Argentina, Chile e Costa Rica) nos quais o primeiro era bastante superior ao segundo, o que demonstrava não serem equitativas as distribuições das capacidades humanas, das habilidades e das oportunidades. Em outros (Dinamarca, Suécia e Finlândia), o IDM era, até mesmo, superior ao IDH. Os formuladores do relatório demonstravam, no entanto, que não haviam encontrado qualquer relação automática entre a condição de países desen-volvidos economicamente e a condição de possuidores de altos IDMs. Iden-tificavam, assim, situações em que o país preenchia a condição de portador de um IDH que se enquadrava na categoria 1 e de um IDM correspondente à categoria 9. Canadá25, Luxemburgo e Espanha estavam nessa situação.

O RDH de 1995 tem o mérito de revelar dados importantes acerca da correlação entre o IDM e o IPM. Muitas vezes, pode parecer automático que os dois índices sejam coincidentes, mas, não é verdade. Em todo o mundo, o IPM é sempre expressivamente menor que o IDM. O avanço neste último exige um esforço enorme que tem de ser aprimorado para que ocorram, de fato, melhorias no IPM. Para exemplificar essa situação, basta verificar os seguintes dados: na América Latina e Caribe o IDM é aproximadamente 6.8; todavia, o IPM é 4.2. Nos países industrializados, o IDM é por volta de 8.8 e o IPM é menor que 6.

Em vista de tais constatações, o RDH de 1995 demonstrava que a desigualdade entre homens e mulheres devia ser tomada como indepen-dente da renda nacional. Em muitos países com níveis altos de renda, havia muita disparidade que deveria ser combatida. Por isso, sugere o Relatório, investir em melhores oportunidades para as mulheres deve ser um objetivo não somente das nações mais ricas, mas de todas aquelas que apresentam graus insatisfatórios do IDM. A melhoria na condição de vida das mulhe-res não pode ser vista como algo somente possível aos países dotados de maior volume de recursos econômicos. Alguns países pobres (Sri Lanka e Zimbabwe, por exemplo):

(...) têm elevado a taxa de alfabetização feminina até 70%. Ao comparar as categorias, segundo o IDM, com os níveis de renda dos países, se confirma que a eliminação da desigualdade entre os sexos não depende que se tenha uma renda alta. (...) Por conseguinte, a igualdade entre os sexos pode ser promo-vida (...) sejam quais forem os níveis de renda. O que se necessita é um firme compromisso político e não uma enorme riqueza financeira (RDH, 1995, p. 3).

Celso Furtado (1997) afirma que toda e qualquer forma de desigualdade somente pode ser debelada através de uma postura política distributiva de

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recursos e de poder. Na interpretação de Furtado, a própria disparidade de renda é um problema fundamentalmente político – e não somente econômi-co – cuja diminuição paulatina depende de medidas institucionais. Segundo ele, o investimento em ações de combate às desigualdades e exclusões exige muitos enfrentamentos no âmbito da política institucional, da sociedade civil e dos governos, entre outros. Assim, pode-se dizer que não apenas a desigualdade de gênero é combatida através de firmes compromissos polí-ticos, mas também muitas outras. Para Amartya Sen (2010; 2011), porém, as desigualdades de participação, de habilidade, de capacidade, de oportunida-des, de renda, de gênero, entre outras, somente são combatidas por meio da geração de disposições institucionais, concebidas estas como um conjunto de atitudes e de valores comprometidos politicamente com a busca continuada e duradoura de “oportunidades sociais básicas [voltadas] para a equidade e a justiça social” (SEN, 2010, p. 190).

Seria fundamental que os RDHs insistissem mais nos desafios políticos inerentes às tentativas de diminuição das desigualdades. Toda distribuição de poder, renda e recursos leva a embates políticos e institucionais de grande monta. Isso traria consequências importantes, uma vez que teria de haver um enfrentamento maior da diversidade de interesses que obstam o combate às desigualdades de renda, de oportunidades, de capacidades e habilidades. Ficaria, até mesmo, mais evidente que os múltiplos agentes envolvidos teriam de ser confrontados politicamente em seus interesses, escolhas e valores.

Não por acaso o RDH de 1996 tem como objeto central de discussão, já em sua sinopse, o aumento do “hiato mundial entre ricos e pobres” (RDH, 1996, p. 1). Gustave Speth, administrador do PNUD, afirma: “O mundo tor-nou-se mais polarizado economicamente, quer entre países quer dentro dos países. Se as tendências atuais continuarem, as disparidades econômicas entre países industriais e nações em desenvolvimento irão passar de injustas para desumanas” (1996, p. 1).

Na discussão sobre as desigualdades de renda, esse Relatório é o mais completo da década de 1990, visto apontar a coexistência, nas décadas de 1970, 1980 e 1990, de um crescimento econômico enorme que deixou “1,6 bilhão de pessoas em situação pior do que há quinze anos” (RDH, 1996, p. 1). O do-cumento demonstra, assim, que o crescimento econômico trouxe melhorias aos mais pobres somente naqueles países em que os governantes implantaram medidas garantidoras de equidade. Observa que onde isso não ocorreu o hiato entre os mais ricos e os mais pobres cresceu vertiginosamente, não só quando se avalia a situação do país, mas também quando se compara a situação desses dois grupos (mais abastados e menos abastados) em âmbito mundial.

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A construção de elos entre crescimento econômico e desenvolvimento humano mostrava ser algo que desafiaria os governantes, a sociedade civil e todos os demais agentes e lideranças políticas comprometidos com a construção da equidade. Conforme o Relatório, os percalços são enormes:

Durante os anos de 1975-1985, o Produto Nacional Bruto mundial cresceu cerca de 40%, mas este crescimento beneficiou uma minoria de países. Ao mesmo tempo, o número de pobres em todo o mundo cresceu [por volta] de 17%. Os ricos estão ficando mais ricos. Atualmente, os bens dos 358 multimilionários mundiais excedem os rendimentos anuais conjuntos de países que totalizam perto de metade – 45% – da população mundial (RDH, 1996, p. 1).

Assim sendo, o documento em análise insistia: aumentaram, expres-sivamente, a pobreza e a desigualdade de renda no decorrer dos últimos 30 anos. Vêm à tona muitos dados sobre a situação dos jovens em várias partes do mundo. Há indicação de que, quanto à oportunidade de emprego e de renda, está havendo um agravamento da situação das gerações mais novas.

Segundo o RDH de 1996, estava ocorrendo uma estagnação de ren-dimentos e, também, um aumento do abismo entre os mais ricos e os mais pobres. No entanto, mesmo em tais condições, era possível detectar um con-siderável progresso na saúde, na educação e no saneamento básico. Pode-se dizer, ao se ler o Relatório, que parece haver duas forças distintas operando nesse processo: uma direcionando ganhos incalculáveis para determinados grupos, e outra que mobilizando esforços para fazer avançar melhorias so-ciais. É evidente a enorme dificuldade que os RDHs têm de sugerir políticas distributivas capazes de desconcentrar a renda. Por essa razão, eles se atêm, principalmente, às sugestões de expansão das ações (por parte do Estado, da sociedade civil e de organizações, instituições e associações diversas) que favoreçam a melhoria de capacidades, habilidades e oportunidades para os mais pobres. O desenvolvimento humano colocaria, assim, os mais pobres em condições de enfrentar, de modo mais substantivo, os efeitos das desigualdades. Nesse aspecto, verifica-se que os elaboradores dos RDHs buscam inspiração na proposta de Amartya Sen que insiste na diminuição do sofrimento social “não pelo lado negativo, ou seja, diminuindo a riqueza dos ricos” (SEN, 2001, p. 6), mas pelo lado positivo, potencializando os recursos que os pobres possuem para enfrentar as diversas mazelas sociais.

Desse modo, os formuladores do RDH de 1996 insistem que o objetivo do documento é “ajudar os dirigentes políticos a compreender a natureza e a extensão da pobreza” (RDH, 1996, p. 2). Esta última, dizem eles, possui

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muitas facetas (desnutrição, analfabetismo, moradia precária, falta de acesso à saúde, à educação) e não somente uma (a da renda). Conquanto considerem a pobreza derivada da renda como um fator importante, eles estão propensos a sugerir políticas de combate à pobreza de capacidades humanas. Por isso, o documento do PNUD sugere um novo padrão de medida, o MPC (Medida de Privação de Capacidade):

Em vez de analisar a situação média das capacidades humanas, como faz o IDH, a nova medida de privação de capacidade reflete a percentagem de pessoas que carecem de capacidades humanas básicas ou minimamente essenciais, as quais são ou um fim em si mesmas, ou necessárias para elevar o indivíduo do nível de rendimento de pobreza e sustentar o desenvolvimento humano. O MPC reflete a proporção de crianças com menos de cinco anos com peso abaixo do normal, (...) a proporção de nascimentos não assistidos por pessoal de saúde especializado (...) e a taxa de analfabetismo feminina (RDH, 1996, p. 2).

Richard Jolly (RDH, 1996) – autor principal do RDH de 1996 – esclarece que se está buscando incentivar estratégias de crescimento econômico que levem em conta a necessidade de investimento no desenvolvimento humano. O objetivo é, assim, encorajar e apoiar ações26 voltadas para a promoção de processos que facultem aos indivíduos mais pobres obter ganhos cada vez mais substantivos, tanto no campo da renda quanto no das capacidades e habilidades. Insiste o RDH de 1996 em demonstrar que o desenvolvimento humano não é anticrescimento econômico; ele exige, sim, um redirecio-namento do processo econômico capaz de evitar que o crescimento seja insustentável, gerador de desemprego, desumano e descomprometido com a democracia e com a participação política.

CONSIDERAçõES FINAIS

Em relação às desigualdades, as sugestões dos relatórios recaem, sobretudo, na alocação mais equitativa de infraestrutura (reversão da urbanização pre-cária), de educação e de saúde do que em aconselhamentos que visem uma distribuição da renda por meio de melhorias salariais. Isto porque, conforme os documentos a desigualdade não é somente fruto de abismos de rendas entre os mais ricos e os mais pobres; ela deriva, também, das diferenças abissais de oportunidades, habilidades e capacidades.

As preocupações do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)27, dos RDHs e da Declaração do Milênio (2000) podem ser tomadas, principalmente

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no que tange à relação entre desigualdade e pobreza, como tentativas de avançar rumo a processos de combate às iniquidades que resultam em condenação de 1/3 da população mundial a toda forma de privação e impotência.

Ao se lançar um olhar sobre os relatórios, pode-se, de imediato, jul-gá-los frágeis, titubeantes e genéricos, notadamente no que diz respeito às causas de algumas formas de desigualdades. As de renda, por exemplo, não têm sido enfrentadas como resultantes de bloqueios estruturais que impe-dem a emergência de processos capazes de ao menos indicar alguma forma de desconcentração da renda no mundo atual. Os RDHs da década de 1990 tratam das diversas formas de desigualdades (de renda, de gênero, de educa-ção, de acesso à saúde, à participação política, entre outras), evidenciando, simultaneamente, que estão, ainda, em busca de caminhos através dos quais possam propor formas, mesmo que parciais, de combate às desigualdades nas suas múltiplas faces e feições.

Há muitos fatores planejados e não-planejados que intervêm nas soluções aventadas pelos RDHs. Todavia, verifica-se certa dificuldade dos seus proponentes de lidarem, concomitantemente, com os elementos con-troláveis e não-controláveis. Para exemplificar, pode-se dizer que a busca de ampliação das capacidades e das habilidades aparece, muitas vezes, como dotada de linearidade. Os formuladores dos RDHs não se atêm ao fato de as condições socioeconômicas atuais promoverem amplos processos que desabilitam mesmo os que estariam habilitados e incapacitam mesmo os capacitados. Para usar uma expressão de Zygmunt Bauman (2007), diríamos que tais processos passam a ser endemicamente supérfluos.

No que se refere às propostas, de diminuição das desigualdades de diversas naturezas, contidas nos RDHs, esclarece-se que o caminho toma-do, neste artigo, foi o seguinte: as propostas presentes nos relatórios estão sendo pensadas como parte de um processo de aprendizado28 – emergente de experiências humanas geradas tanto em um organismo internacional, como a ONU, quanto em outros contextos e espaços sociais e políticos – que têm tentado impulsionar o desenvolvimento social e humano. Os relatórios procuram também encontrar soluções – ainda que não cubram todas as dificuldades e desafios – que podem ser tomadas como indícios “de um crescente sentimento de responsabilidade mundial pelo destino dos seres humanos” (ELIAS, 1994, p. 139).

As dificuldades colossais de levar adiante, por meio de uma multipli-cidade de agentes, todas as sugestões, contidas nos RDHs – que indicam um empenho mais incisivo no combate às desigualdades – devem ser analisadas à luz da seguinte pergunta levantada por Norbert Elias (1994, p. 187): “Acaso

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devemos presumir que (...) os sentimentos, a consciência moral e o habitus social dos indivíduos estão muito atrasados em relação às estruturas sociais e, especialmente, ao nível de integração que emergiu do desenvolvimento não-planejado da humanidade?”.

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NOtAS 1 Sobre os muitos embates e as disputas políticas no interior do PNUD acerca dos RDHs e da concepção de desenvolvimento humano, ver: Machado e Pamplona, 2008.

2 Economista paquistanês, criador, com colaboração de Amartya Sen, “do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) [cujo objetivo é] oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. (...) O IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. (...) Além de computar o PIB per capita, depois de corrigi-lo pelo poder de compra da moeda de cada país, o IDH também leva em conta dois outros componentes: a longevidade e a educação” (PNUD, 2010, p. 1).

3 Economista hindu, prêmio Nobel de Economia em 1998, com vasta discus-são sobre desigualdades, justiça social e pobreza. Acadêmico preocupado em difundir o que ele denomina de teoria da escolha social. Suas obras têm influenciado o debate acadêmico e as propostas de muitos técnicos que atu-am no interior de organizações internacionais. Entre seus livros, podem-se destacar: Sen, 2008; 2010; 2011.

4 Assessor e coordenador dos RDHs de 1996 e 1997.

5 Muitos cientistas têm demonstrado que há um alargamento das desigual-dades na atualidade (BAUMAN, 1999; FURTADO, 2001; JUDT, 2011). Os RDHs (1998; 1999) trazem também dados sobre a concentração da riqueza no mundo globalizado.

6 Organização das Nações Unidas.

7 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

8 Fundo Monetário Internacional.

9 Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento que compõe o Banco Mundial.

10 O habitus social civilizador é, conforme Elias (2006), um padrão de auto-orientação voltado para a observância de interesses coletivos. Esse habitus não apaga os conflitos de interesses, mas possibilita a expansão de atitudes cada vez mais democráticas e voltadas para a defesa de maiores equilíbrios de poder e de recursos.

11 Há uma vasta literatura sobre o modo como os gastos sociais no Brasil têm beneficiado, ao longo de várias décadas, os mais abastados. É o modelo que sempre deu “mais aos mesmos” (DRAIBE, 2003, 1994). A coletânea Brasil: a nova agenda social (2011) traz um estudo de André Medici que faz a se-guinte constatação: “Mesmo com um sistema gratuito e universal como o SUS (Sistema Único de Saúde), as famílias brasileiras pobres gastam mais com saúde, em termos relativos, do que as famílias mais ricas. [Em 2002, a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) revelou que] os 10% mais pobres gastavam quase 7% de sua renda com saúde, enquanto os 10% mais ricos gastavam 3%” (MEDICI, 2011, p. 51).

12 Os RDHs, inspirados por Sen, partem do pressuposto de que “o desenvolvi-mento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade:

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pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos” (SEN, 2010, p.16).

13 “No contexto dos países em desenvolvimento, a necessidade de iniciativas da política pública com vista à criação de oportunidades sociais tem importância crucial. (...) No passado dos atuais países ricos encontramos uma história notável de ação pública por educação, serviços de saúde, reformas agrárias, etc. O amplo compartilhamento dessas oportunidades sociais possibilitou que o grosso da população participasse diretamente do processo de expansão econômica” (SEN, 2010, p. 192). Destaque-se que no Brasil, Celso Furtado (1964, 1966; 1969; 1972; 1974; 1992) discutiu abundantemente o assunto.

14 Assim como fazem os RDHs, Sen (2008; 2010) não recusa inteiramente as políticas focalizadas, ele procura demonstrar os aspectos positivos e negativos, para as políticas de combate às deficiências de capacidades, de colocá-las em prática. “O direcionamento de políticas para um público-alvo é, na verdade, uma tentativa e não um resultado” (SEN, 2010, p. 182).

15 Amartya Sen, em Desenvolvimento como liberdade (2010), discute am-plamente a provisão de serviços públicos por parte do Estado. Ele considera fundamental que o Estado assuma as responsabilidades pelos serviços básicos de educação e saúde. Mas considera também importante que essa discussão sobre a (in)capacidade do Estado suprir tais serviços seja enfrentada no campo de um debate mais amplo sobre custeio público e política fiscal. O grau de custeio social que uma sociedade pode e quer fornecer, aos mais pobres, deve ser discutido politicamente por todos os agentes sociais. As sociedades somente avançam rumo ao desenvolvimento humano quando são capazes de estabelecer algumas bases consensuais sobre a melhor maneira de distribuição de renda e recursos.

16 Produto Interno Bruto.

17 “Resumidamente, a ‘individualização’ consiste em transformar a ‘identida-de’ humana de um ‘dado’ em uma tarefa e encarregar os atores [não só] da responsabilidade de realizar essa tarefa (...) [mas também] das consequências (assim como os efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, con-siste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida)” (BAUMAN, 2001, p. 41).

18 Esta distinção está bastante trabalhada por Sen (2010).

19 Entre os cientistas sociais contemporâneos, Norbert Elias (1994; 1998) se destacou em suas críticas às perspectivas lineares e graduais de desenvolvi-mento humano. Os processos e os contraprocessos civilizacionais ocorrem de modo simultâneo. Avançam, paralelamente, diz ele, as forças sociais impulsionadoras e as bloqueadoras das melhorias coletivas. Os preparadores dos RDHs, ao tentarem definir propostas de aumento dos índices de renda, longevidade e educação, atêm-se, propositalmente, aos elementos indicado-res de avanços na seguridade humana. Todavia, não deixam de reconhecer que muitos vivem em um mundo com muitas incertezas e insegurança em relação à superação das privações de modo geral.

20 Em vários momentos dos RDHs fica visível que “a abordagem das capacida-

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des de Amartya Sen [está] na base teórica do paradigma do desenvolvimento humano” (MACHADO e PAMPLONA, 2008, p. 8).

21 Carlo Tassara afirma que há, na atualidade, uma nova proposta de coo-peração internacional. Nas décadas de 1950 e 1960, esta última tinha um enfoque econômico que visava buscar ajuda dos países industrializados para os não-industrializados. Eram apoios para financiar a infraestrutura e todas as outras condições de modernização. “Os Estados nacionais eram os únicos atores da cooperação. Hoje em dia, a cooperação internacional se concentra na luta contra a pobreza (...). Os atores da cooperação já não são unicamente os estados nacionais, são também os governos subestatais (municípios, províncias, departamentos, etc.), as organizações da sociedade civil, as universidades e o setor privado” (TASSARA, 2011, p. 416).

22 A insistência dos RDHs de que o desenvolvimento humano é capaz de gerar novas disposições sociais nos indivíduos condiz com as discussões de Amartya Sen que tem alguns pontos de aproximação com as análises disposicionistas que se desenvolveram na sociologia norte-americana nas décadas de 1920 e 1930 para pensar a combinação “de valores coletivos e atitudes individuais” (COULON, 1995, p. 31).

23 “O IDM mede os avanços nos mesmos aspectos básicos que o IDH, mas reflete a desigualdade entre homens e mulheres no que diz respeito a estes avanços” (RDH, 1995, p. 5).

24 “O IPM reflete se as mulheres e os homens podem participar ativamente na vida econômica e política e na tomada de decisões” (RDH, 1995, p. 5).

25 O RDH de 1996 levantou índices que classificaram o Canadá como o país, entre outros 174, com o maior grau de desenvolvimento humano.

26 Os governos devem exercer ações corretivas, diz o RDH de 1996. Eles devem se empenhar em direcionar o crescimento econômico para obter resultados benéficos em favor dos mais pobres.

27 “O IDH indica que, se têm uma vida longa e saudável, as pessoas pos-suem educação, conhecimento e desfrutam de um nível de vida decoroso” (RDH, 1995, p. 5).

28 Norbert Elias (1998) detalhou no que consiste o aprendizado como processo de envolvimento e distanciamento. No caso dos RDHs, são vários os passos que indivíduos, instituições e organizações vão dando no sentido de perceberem, mais claramente, as múltiplas dimensões das desigualdades; mas é preciso, além disso, desenvolver uma espécie de distanciamento para observar, com maior precisão, o embate entre as forças voltadas para o desenvolvimento humano e aquelas que operam justamente no sentido oposto.

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Recebido para publicação em abril/2013. Aceito em agosto/2013.

RESUMOEste estudo busca indicar que os RDHs, da década de

1990, sistematizam inúmeras informações, de diversas regiões do mundo, com o objetivo de demonstrar que há uma forte cor-relação entre pobreza e desigualdades. É visível que os objetivos principais dos relatórios é incentivar um conjunto de ações aos diversos estados-membros das Nações Unidas. Estão postas no interior de suas centenas de páginas muitas sugestões de políticas diminuidoras das múltiplas formas de desigualdades que dificultam e/ou impossibilitam o desenvolvimento humano. Através de uma pesquisa documental verificam-se quais são os caminhos tomados pelos primeiros seis relatórios (1990-1996) para pôr na agenda pública os desafios sociais, políticos e econômicos do enfrentamento contínuo e incessante das disparidades excessivas que impedem a expansão vertical de oportunidades, habilidades e capacidades.

ABStRACtThe purpose of this study is to demonstrate that the

HDRs of the 1990s systematize countless information from various regions of the world, in order to demonstrate that there is a strong correlation between poverty and inequalities. It is apparent that the main objective of the reports is to encourage a set of actions to the various member states of the United Nations. Within their hundreds of pages there are many policy suggestions that decrease the multiple forms of inequalities that hinder and/or make human development impossible. Through documentary research it will be possible to determine what ways were taken by the first six reports (1990-1996) in order to add in the public agenda the social, political and economic challenges of the continuous and constant dealing with the excessive disparities that prevent the vertical expansion of opportunities, skills and abilities.

Palavras-chave: desigualdades, pobreza,

desenvolvimento humano.

Keywords:inequalities, poverty, human development.

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Ética civilizacional e teoria sociológica: uma revisão conceitual de Durkheim

André OdaDoutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília) e Professor de Teoria Social na Universidade do Sul e Sudeste do Pará. E-mail: [email protected].

Uma leitura mais aprofundada de Durkheim nos permite iden-tificar pelo menos duas fases distintas de sua obra: uma em que ele começa dando mais importância às formas de solidariedade social e às moralidades que lhes são correspondentes, e outra em que ele enfatiza mais o aspecto representacional da sociedade. Grande parte das diferenças de interpretação de sua obra pelas sucessivas gerações de sociólogos está baseada na ênfase maior em um aspecto ou em outro, de acordo com as opções teóricas assumidas por cada comentador. Isso decorre, por um lado, do fato de a sociologia ter se diferenciado em correntes distintas, ressaltando cada vez mais a diferença entre vários níveis da realidade social, de tal modo que, a partir da distinção progres-sivamente acentuada dessas diferenças, o objeto sociológico se

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sofistica cada vez mais. Por outro lado, pode-se dizer que tais diferenças na interpretação, em alguma medida, decorrem diretamente de contradições inerentes aos desdobramentos teóricos sucessivos que o próprio Durkheim realiza ao longo de toda a sua obra.

A sociologia de Durkheim, em seus primeiros momentos, esteve em grande parte presa ao problema de encontrar um substrato sobre o qual fosse possível localizar os fenômenos da vida social. Este substrato deveria satisfazer algumas condições teóricas. Por um lado, deveria ser um fenômeno material e, ao mesmo tempo, “espiritual” (por assim dizer). Por outro lado, deveria ser um fenômeno presente tanto em âmbito individual quanto inter-individual. O fato básico que preenche essas condições é o fato da associação e, decorren-temente, a solidariedade social. Em última instância, o problema é um dado de densidade espacial básica: “quem está na presença de quem, por quanto tempo, e com quanto espaço entre eles” (COLLINS, 1994, p. 187).

É sobre esse problema, mais morfológico do que da ordem das repre-sentações, que se assenta a Divisão do trabalho social (1893/2004). Para se compreender a solidariedade social – um fenômeno que não está diretamente ao alcance da observação –, faz-se necessário o estudo de sua expressão visível. É através do direito que as formas de solidariedade mecânica e orgânica podem ser apreendidas, porque, na concepção do autor, as normas jurídicas são a expressão aparente das relações mais profundas e duradouras da associação e da solidariedade que decorre dessas. O direito é, nesse sentido, como símbolo aparente1, apenas uma expressão subordinada de uma solidariedade que é, em relação a ele, ontologicamente mais vigorosa.

Na medida em que a sociologia de Durkheim evoluía e diferentes dimensões dos fenômenos sociais foram se afirmando em suas particulari-dades – especialmente as representações sociais e os sentimentos coletivos – algumas de suas novas afirmações sobre determinados temas foram se contradizendo com as formulações mais antigas. Isso porque uma elaboração mais desenvolvida sobre o papel das representações na vida social acaba por colocar em xeque a ideia de um substrato social infenso a essas representações e que unilateralmente as determinaria. À época de As formas elementares da vida religiosa (1912/2000), Durkheim já apresentava uma concepção re-novada e muito mais sofisticada sobre a vida social e, especialmente, sobre o papel das representações coletivas2 na perspectiva mais elaborada de uma dinâmica social que passa pela interação dos indivíduos e pela conformação de sentimentos coletivos.

Este artigo se concentra em traçar algumas linhas gerais sobre a sociologia de Durkheim, fundamentando a leitura na oposição entre

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natureza e sociedade. Argumento que esta oposição é mais vigorosa que aquela entre indivíduo e sociedade, sendo o principal determinante de seus posicionamentos éticos.

Antes de iniciarmos a revisão, é necessária uma ressalva: sob o ponto de vista da oposição entre natureza e sociedade, a distinção entre sentimentos e representações e outras tantas manifestações da vida social dentro da teoria durkheimiana só pode ser levada a cabo até certo limite. Sob este enfoque, tais diferenças tendem a diluir-se. Mas, se, por um lado, focando-nos nessa oposição básica, acabamos por deixar obscurecidas algumas distinções – e até, em alguns momentos, passando por cima da relevância que poderia ter a posição relativa de cada livro, tomado em separado –, na ordem temporal de toda a sua obra, por outro lado, essa postura tem a vantagem de se basear em um aspecto (a oposição entre natureza e sociedade) que permaneceu frente às sucessivas mutações de sua obra.

SOCIEDADE VERSUS NAtUREzA

Insistir na oposição entre natureza e sociedade significa operar um deslo-camento discreto na tradicional problematização do “homo duplex” – uma tematização durkheimiana nos termos de uma dualidade humana dentro da qual portaríamos tanto uma existência individual quanto uma coletiva, i.e., social. Este pequeno deslocamento que proponho tem como efeito afastar o foco de leitura da oposição entre indivíduo e sociedade, tal como usualmente se faz, e – sem negar a realidade dessa oposição – enfatizá-la como sendo apenas uma expressão daquela entre natureza e sociedade. Com isso, pre-tendo lançar uma chave de leitura que ilumina e integra aspectos de sua obra comumente dispersos em seus inúmeros comentadores. A insistência nessa oposição não é uma elaboração conceitual inteiramente nova na interpretação de sua teoria sociológica, mas apenas a consolidação de uma distinção que outros comentadores já haviam notado e ressaltado3. No escopo deste artigo, busco prever as consequências teóricas desse deslocamento nas formulações que subjazem seu questionamento ético das sociedades modernas.

Desde o início, o projeto científico de Durkheim consiste em tornar os fatos morais4 um objeto possível de ser estudado. Fatos morais são fatos sociais. E uma de suas asserções mais famosas é a de que os fatos sociais devem ser tratados como coisas. Isso implica, por um lado, que o cientista da moral deve ter uma postura tal que não imponha seus valores pessoais ao objeto; deve impor-se uma rigorosa neutralidade axiológica. Se esta pressu-posição – de que é possível realmente uma anulação dos valores subjetivos

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na observação científica – sofreu duros e bem justificados ataques das mais diversas correntes das Ciências Sociais, por outro lado, o significado primeiro dessa asserção floresceu em formulações cada vez mais ousadas. É que tomar a moral como um objeto de estudo, tratando-a como uma “coisa”, significa dizer que a moralidade dos povos pertence ao mundo que habitam; que esse conjunto de prescrições de conduta não é imperativo que emana da natu-reza, de um deus ou de qualquer outra potência extra-humana. Significa dizer que ela é historicamente constituída, variável, como são variáveis as sociedades humanas.

(...) É possível que a moral tenha algum fim transcendental, que a experiência não é capaz de alcançar; cabe ao metafísico ocupar-se deste. Mas o que é cer-to, antes de mais nada, é que ela se desenvolve na história, sob o império de causas históricas, e tem uma função em nossa vida temporal. Se ela é esta ou aquela num fenômeno dado, é porque as condições em que vivem os homens não permitem que ela seja outra, e a prova disso é que ela muda quando essas condições mudam, e somente nesse caso (DURKHEIM, 1893/2004, p. XLIV).

A sociologia de Durkheim está longe de ser a-histórica e despreocupada com as mudanças sociais (cf. BELLAH, 1959). Claro que seria demais enxergar em Durkheim o precursor de um “relativismo pós-moderno”, já que, nessa variedade de sociedades da espécie humana, ele está claramente preocupado em encontrar o que subsiste em comum a todas elas, a solidariedade e todos os seus efeitos. Mas também é claro que sua explicação parte da constatação da relatividade histórica das diferentes moralidades que compõem essas sociedades. Veremos, mais à frente, as elaborações teóricas a partir das quais podemos identificar os princípios de explicação das mudanças sociais e his-tóricas na sociologia de Durkheim. De todo modo, a investigação científica não pode procurar um ponto fora do mundo humano – a natureza ou uma potência divina – para sustentar uma perspectiva da moralidade e impor, de modo apriorístico, seus ideais do que a realidade deveria ser.

Sem a sociedade, deixado a si mesmo, do indivíduo restaria apenas sua natureza orgânica e suas representações sensíveis imediatas, um átomo biológico. E a natureza, na ótica de Durkheim, não é para o homem o reino de uma liberdade primeira e inteiriça de que ele teria abdicado em uma espécie de acidente teológico; é uma prisão de necessidades, a potência infinita que o submete às incansáveis exigências da vida biológica. Para ele, os apetites naturais, a vontade e a sede de sensações são a fonte do sofrimento humano: fora do controle da sociedade, são um abismo sem

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fim, não são saciáveis, sendo, portanto, uma fonte de uma insatisfação eterna (cf. MEŠTROVIĆ, 1988).

Natureza e sociedade, ambas são figuras discerníveis em pontos de uma grande escala de complexidade. Em realidade, não são feitas de subs-tâncias essencialmente diferentes; a sociedade é também, de certo modo, um reino natural5. Mas, como dissemos, há entre a sociedade e os outros reinos da natureza um salto de complexidade, cuja compreensão exige análise científica6. Para o problema teórico da consciência, Durkheim não teoriza um livre-arbítrio metafísico; dirá, ainda em sua primeira grande obra, que a experiência individual de livre-arbítrio é um produto histórico da divisão do trabalho social (cf. DURKHEIM, 1893/2004, p. 151-2). Considerando que a vida social é uma sobredeterminação do mundo natural pelas deter-minações sociais, não há qualquer possibilidade de uma consciência livre de determinações; mas, nesse caso, a consciência será tanto maior quanto maior for o salto para além das contingências imediatas, quanto mais há integração e individuação, imersão e ulterior separação do indivíduo na sociedade. A vida social é, nesse sentido, uma elevação acima da natureza. Os diferentes modos da solidariedade social formam um sistema de forças que irá sobredeterminar todo determinismo natural; o circuito de sentimentos sociais que emana da interação dos homens refluirá sobre as sensibilidades do indivíduo, todo o conjunto de representações sociais irá se sobrepor ao mundo das coisas e da natureza7.

Um homem livre é aquele que domina seus apetites e não está subme-tido à natureza. Eis a liberdade humana, na acepção clássica que Durkheim cultiva, herdada de uma longa tradição do pensamento ocidental: a liberdade é o domínio, o governo de si mesmo, que faz do homem algo além de um animal movido por suas sensações imediatas. Daí deriva também, grosso modo, a concepção clássica da democracia: governo de um povo sobre si mesmo (que Durkheim reformulará de modo particular, como veremos na segunda parte desta análise). Não é a ausência de obstáculos objetivos para a realização de uma pressuposta potência infinita pré-social, uma concep-ção puramente negativa da liberdade humana e que nos é muito familiar; a liberdade para Durkheim é, sim, a autonomia adquirida através da coleti-vidade humana, um retorno do homem sobre si mesmo por intermédio da sociedade, a realização do homem em sua relação com a totalidade social através da qual ele se tornará um sujeito pleno, porque social, porque pode se libertar de suas carências naturais e biológicas. Nas palavras de Durkheim:

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(...) Contudo, além de ser falso que toda regulamentação é produto da coerção, ocorre que a própria liberdade é produto de uma regulamentação. Longe de ser uma espécie de antagonista da ação social, dela resulta. Ela é tão pouco uma propriedade inerente ao estado natural, que é, ao contrário, uma conquista da sociedade sobre a natureza. Naturalmente, os homens são desiguais em força física; eles são colocados em condições externas desigualmente vantajosas, a própria vida doméstica, com a hereditariedade dos bens que implica e as desigualdades que daí derivam é, de todas as formas da vida social, a que depende mais estritamente de causas naturais, e acabamos de ver que todas essas desigualdades são a negação mesma da liberdade. Enfim, o que constitui a liberdade é a subordinação das forças exteriores às forças sociais; pois é apenas com essa condição que estas últimas podem se desenvolver livremente. Ora, essa subordinação é muito mais a inversão da ordem natural. Portanto, ela só se pode realizar progressivamente, à medida que o homem se eleva acima das coisas para impor-se a elas, para despojá-las de seu caráter fortuito, absurdo, amoral, isto é, na medida em que ele se torna um ser social. Porque ele não pode escapar da natureza senão criando outro mundo, do qual a domina, e esse mundo é a sociedade (1893, p. 406).

Paralelamente, em As formas elementares da vida religiosa (1912/2000), o autor demonstra sua forte admiração pelo ascetismo que todas as religiões pré-modernas mobilizavam: elas mostram que o homem não é dependente da natureza, que pode infligir-se dor, se por ativamente em privação, e mos-trar-se, assim, senhor de si:

(...) Dizíamos no início desta obra que todos os elementos essenciais do pensamento e da vida religiosos devem se manifestar, pelo menos em germe, desde as religiões mais primitivas. Os fatos precedentes confirmam essa afirmação. Se há uma crença tida como específica das religiões mais recentes e idealistas, é a que atribui à dor um poder santificador. Ora, essa mesma crença está na base dos ritos que acabam de ser observados. Claro que ela é desdobrada diferentemente conforme os momentos da história em que a considerarmos. Para o cristão, é principalmente sobre a alma que ela agiria, depurando-a, enobrecendo-a, espiritualizando-a. Para o australiano, sua eficácia é sobre o corpo, aumentando as energias vitais, fazendo crescer a barba e os cabelos, enrijecendo os membros. Mas, em ambos os casos, o princípio é o mesmo: admite-se que a dor é geradora de forças excepcionais. E essa crença não é sem fundamento. Com efeito, é pela maneira como en-frenta a dor que melhor se manifesta a grandeza do homem. Em nenhum

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outro momento este se eleva com mais brilho acima de si mesmo do que quando doma sua natureza, ao ponto de fazê-la seguir uma direção contrária à que ela tomaria espontaneamente. Deste modo, ele se singulariza entre todas as outras criaturas, que vão cegamente para onde o prazer as chama: deste modo, cria para si um lugar à parte do mundo. A dor é o sinal de que se romperam alguns dos laços que o prendem ao meio profano; portanto, atesta que ele se libertou parcialmente deste meio e, por conseguinte, é justamente considerada como o instrumento da libertação. Assim, quem se libertou deste modo não é vítima de uma pura ilusão quando se crê investido de uma espécie de domínio sobre as coisas: ele realmente se elevou acima delas, exatamente por ter renunciado a elas; é mais forte que a natureza, por tê-la feito calar-se (DURKHEIM, 1912/2000, p. 335).

Está em jogo na reflexão durkheimiana sobre as sociedades indus-triais modernas a capacidade do homem para suportar o sofrimento. Vimos que a vida social, como uma elevação acima da vida biológica, constitui uma libertação do indivíduo de sua relação com o domínio do mundo natural, na medida em que nessa vida social ele encontra força suficiente para colocar-se além das necessidades naturais. Mas o mal das modernas civilizações está em uma sociedade submetida à “doença da infinitude” dos desejos8, animada por uma vida econômica em que estão ausentes quaisquer freios morais e jurídicos. Essas novas necessidades, ainda que tenham como objeto bens que as sociedades oferecem, ainda que se tratem de indivíduos devidamente integrados na vida social, não deixam de ter uma mesma natureza pré-social.

Esses desejos, essas vontades, essas necessidades precisam ser regula-das pela mesma sociedade, dirá Durkheim. Precisarão manter-se ligados aos objetos que a moralidade comum lhes prescreve, sob pena de sde estenderem indefinidamente e produzirem insatisfações existenciais insuperáveis na experiência individual.

A AMBIGUIDADE DA “INtEGRAçãO SOCIAl” EM O SUICíDIO

Entraremos agora comedidamente em uma polêmica que divide os comen-tadores de Durkheim em um sem-número de posições: o tema da anomia.

Na minha interpretação, é o ponto de vista da oposição entre natureza e sociedade – mais do que o da oposição entre indivíduo e sociedade – a refe-rência que nos permite compreender plenamente as posições de Durkheim sobre o tema da anomia.

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Acredito que boa parte das querelas sobre o tema é apenas expressão de contradições enfrentadas pelo próprio autor. E uma das principais dificulda-des que se enfrenta, ao comentá-lo, refere-se às inúmeras semelhanças entre os fenômenos do suicídio egoísta e suicídio anômico, que Durkheim tanto se esforçou em separar. Outra dificuldade comum diz respeito à validade do argumento que identifica anomia como carências localizadas em sistemas de normas sociais e jurídicas, a anomia como “normlessness”.

Pretendo oferecer uma chave de entendimento de anomia através de uma breve análise lógica e teórica desse conceito, apontando linhas muito gerais de seu desenvolvimento, desvencilhando-o, em primeiro lugar, da problematização do egoísmo. Para explicar o suicídio egoísta, Durkheim fala de uma ausência de integração como a patologia própria desse tipo de suicida. Enquanto que, para explicar o suicídio anômico, aponta para uma ausência patológica de regulação.

Mas, como mostrarei a seguir, o conceito de “integração social”, por si mesmo, tem uma ambigüidade, superável apenas por uma intervenção lógica. Proponho inserir termos novos para melhor marcar essas distinções. Sugiro uma equivalência entre o termo “regulação”, acionado por Durkheim, e o fenômeno que chamaremos de “integração objetiva”, entendendo este no sentido de uma contenção exterior, social, dos desejos e apetites humanos. Onde Durkheim se refere a “integração”, tout court, devemos entender como um estado subjetivo do indivíduo em sua auto-representação como parte de grupos sociais mais amplos, portanto uma “integração subjetiva”. Com essa intervenção lógica em sua teoria, tentarei solucionar a ambiguidade concei-tual da ideia de integração e, assim, manter intacta (o quanto for possível) a unidade de seu sistema explicativo.

Leituras sofisticadas identificaram diferença radical entre egoísmo e individualismo (cf. GIDDENS, 1998), na medida em que o egoísmo – ação do indivíduo para si, para seus interesses, mais do que para outrem – seria radicalmente diferente da evolução do individualismo como fenômeno moral das sociedades modernas. Em uma sociedade em que a divisão do trabalho se encontra em estágio avançado, o processo de diferenciação dos indivídu-os entre si se opera tão profundamente que a única coisa que, com tantas diferenças entre si, resta em comum a todos eles é o simples fato de serem, cada um, igualmente parte da humanidade. Daí o “culto ao indivíduo”, o culto ao homem que caracteriza as sociedades modernas.

Esse indivíduo que é cultuado não é, de modo algum, o indivíduo tal como ele se apresenta com todas as suas particularidades concretas. É, sim, o indivíduo abstrato, entidade universal, que faz com que um indivíduo con-

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creto possa reconhecer o sofrimento de outras pessoas com as quais ele não precisa ter qualquer ligação pessoal, logo, que permite que nos importemos com o destino de outros indivíduos e mesmo de outros povos.

Sem dúvida, Giddens tem razão em insistir na distinção teórica entre egoísmo e individualismo. Mas, do ponto de vista da oposição entre natureza e sociedade, a diferença entre egoísmo e individualismo não é muito radical: são, sim, aspectos de um mesmo fenômeno, o fenômeno da integração na vida social.

Dizer – como o faço – que egoísmo é um fenômeno de integração social objetiva parece chocante, à primeira vista, se lembrarmos que toda a explicação sobre o suicídio egoísta é assentada no argumento de que é por falta de integração que o egoísta se mata.

Pois bem, vejamos. O argumento dele sobre o porquê as mulheres, as crianças e os velhos seriam mais imunes ao suicídio é o de que esses tipos individuais estão menos integrados na vida social, e que essa integração é con-dição para o suicídio egoísta. Esta é a mesma razão apresentada para explicar, inversamente, o aumento regular dos suicídios em épocas mais quentes do ano: o aumento de intensidade da vida social, uma maior integração social. O “adulto civilizado” seria o tipo mais suscetível de “sofrer um suicídio” porque ele é já integrado, mais do que aqueles. Mas, Durkheim, surpreendentemente, explica a maior incidência do suicídio destes como uma falta de integração social. Isso porque o adulto homem espera mais para si da sociedade, enquanto o velho, a criança e a mulher esperam menos.

Assim, a falta de integração seria, ao mesmo tempo e contraditoriamen-te, causadora de suicídios (no caso do homem adulto) e fator de imunidade aos suicídios (no caso das mulheres, crianças e idosos). Focando a situação dos homens adultos, reconhecer teoricamente tais expectativas individuais implica reconhecermos que o conceito de integração pode se referir, de modo ambíguo, tanto a um fenômeno objetivo identificável nos grupos sociais quanto a um fenômeno subjetivo da ordem da experiência individual. É nesse sentido que se faz necessário operar uma intervenção lógica e inserir uma distinção conceitual, ausente no esquema explicativo durkheimiano original: uma distinção entre integração objetiva e integração subjetiva, assim como suas contrapartes, a desintegração objetiva e a desintegração subjetiva, para que possamos ultrapassar a contradição teórica da noção de integração social.

O sintoma característico do egoísmo anormal é um enfraquecimen-to do sentimento individual de pertencimento a algo que esteja além dele mesmo e, por consequência, um enfraquecimento geral de seus desejos. Ou seja, é o indivíduo que se representa a si mesmo como fazendo, cada vez

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menos, parte de grupos sociais9, e isso o levaria a um enfraquecimento dos desejos, inclusive do desejo de viver: já que ser-para-si é muito pouco, de acordo com Durkheim, é preciso restar qualquer coisa no indivíduo que o faça ser-para-outrem. O ser-para-si – apesar de ser da ordem da experiência individual – tem sempre causas sociais: divisão do trabalho social, a mais comum; maior liberdade de consciência, como em determinadas religiões; tipo de educação recebida (maior grau de instrução), e, ainda, especificidades das instituições matrimoniais e domésticas.

Se dizemos que o egoísmo – logo, o suicídio egoísta – é um efeito que tem como condição de possibilidade a integração social, é no sentido de se tratar de uma integração objetiva já realizada, da qual decorrem, diretamente, maiores oportunidades de desenvolvimento de uma consciência individual que a sociedade moderna oferece ao indivíduo, através da divisão do trabalho e da evolução dos tipos sociais. Em outras palavras, a sociedade ofereceu ao indivíduo bem integrado mais ferramentas para formar uma consciência para-si e assim se emancipar de instituições tradicionais e de suas formas correspondentes de recompensa por sua integração. O individualismo advindo do desenvolvimento da sociedade na divisão do trabalho faz com que o indivíduo não se perceba como parte de algo maior que ele mesmo. A imagem típica do suicida egoísta traçada por Durkheim é aquela em que o indivíduo adquiriu plena consciência de si em detrimento da sociedade; logo, seus representantes típicos estarão nas profissões que envolvem maior grau de instrução, particularmente as carreiras intelectuais (distintamente, o típico suicida anômico pertencerá às classes industriais e comerciais). (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 329).

Se há desintegração no egoísmo, como afirma Durkheim, se podemos ainda falar de desintegração nos casos de suicídio egoísta, ela se dá em um segundo momento, no momento subjetivo desse processo10. Assim, há uma integração objetiva para que seja possível haver uma desintegração subje-tiva. Que o indivíduo não aja “para-outrem”, ele só pôde não agir assim porque estava bem integrado. Nesse sentido, um modo de vida egoísta não é contraditório com uma moral individualista, como enfatizado na oposição conceitual operada por Giddens (1998); o individualismo moral moderno é uma condição para o egoísmo. Durkheim não se contradiz quando se refere ao egoísmo como “individualismo exacerbado”:

Foi a ação da sociedade que suscitou em nós os sentimentos de simpatia e de solidariedade que nos inclinam aos outros; foi ela que, moldando-nos à sua imagem, nos imbuiu de crenças religiosas, políticas e morais que governam a

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nossa conduta; foi para poder desempenhar nosso papel social que trabalhamos nossa inteligência, e foi também a sociedade que, transmitindo-nos a ciência de que é depositária, nos forneceu os instrumentos desse desenvolvimento. / Pelo próprio fato de terem uma origem coletiva, essas formas superiores da atividade humana têm um fim de mesma natureza. Como derivam da sociedade, é também a ela que se referem; ou melhor, são a própria sociedade encarnada e individualizada em cada um de nós. Mas então, para que elas tenham uma razão de ser a nossos olhos, é preciso que o objeto que visam não nos seja indiferente. Só podemos, portanto, ter apego às primeiras na medida em que temos apego à outra, ou seja, à sociedade. Ao contrário, quanto mais nos sen-timos desligados dessa última, mais nos desligamos também da vida de que ela é ao mesmo tempo fonte e objetivo (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 262-3).

Fonte e objetivo: talvez Durkheim precisasse de outra explicação para o suicídio egoísta que não fosse simples falta de integração; uma que esclarecesse melhor porque exatamente um indivíduo integrado não se sente realmente integrado. Tal distinção lógica e, em alguma medida, psicológica, resolveria os impasses mais comuns impostos à leitura de sua teorização das correntes suicidógenas. Podemos dizer que o egoísmo diz respeito a processos de desintegração apenas em um segundo momento, o da auto-representação do indivíduo objetivamente integrado.

ANOMIA E AS SOCIEDADES INDUStRIAIS MODERNAS

Em contraste ao egoísmo, a anomia diz respeito à preocupação essencial com a ascendência da sociedade sobre o indivíduo. A desintegração obje-tiva – é este o caso da anomia – acontece no ponto chave da subjetividade individual e de toda a vida social: na desregulação dos apetites naturais do homem11. Como vimos, no caso do suicídio egoísta, há uma integração objetiva, na medida em que o indivíduo tem uma posição determinada na divisão do trabalho e, em consequência, forma-se nele uma consciência individual exacerbada, bem como seus apetites podem estar ainda dentro do escopo de fins atingíveis e alcançáveis; mas há desintegração subjetiva porque, a despeito dessa integração objetiva, ele não se reconhece como pertencente a grupos sociais mais amplos. Por outro lado, o indivíduo anômico teoricamente poderia, a despeito de sua desintegração objetiva, sentir-se parte de grupos sociais. No caso do egoísmo, há um enfraqueci-mento dos desejos e apetites do indivíduo – enquanto no caso da anomia, ao contrário, ocorre um aumento descontrolado desses desejos e apetites

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por objetos que se tornam cada vez mais próximos do inatingível. É pre-ciso, para a boa compreensão desse problema teórico, que seja enfatizada essa diferença – entre a diminuição dos desejos, no caso do egoísmo, e sua potencialização, no caso da anomia – que é decisiva na identificação dos fenômenos que cada conceito pretende explicar.

A anomia é a forma primeira de desintegração social, por ser, nos termos que foram aqui usados, uma desintegração do indivíduo. Uma desintegração objetiva, porque o estado de anomia corresponde a um fracasso da sociedade que não consegue impor aos seus indivíduos um freio moral que contenha seus apetites e desejos (que, apesar de poderem ter objetos sociais, são pré-sociais, como dissemos antes). Um “freio moral”, uma “regulação moral” significam, principalmente, o fato de não ser uma coerção física o que conseguiria conter efetivamente tais apetites. Na experiência individual, o fenômeno se manifesta no sofrimento da infinitude dos desejos que não podem ser saciados. Mas, na perspectiva mais ampla da vida social, a desintegração objetiva se manifesta no fracasso da sociedade em impor uma regulação moral às atividades eco-nômicas do mundo moderno e industrializado12.

Nessa interpretação, a teorização do suicídio egoísta está subordinada – do ponto de vista ético e da grandeza do problema na realidade social – à do suicídio anômico13. A tese de O suicídio herda diretamente de Divisão do tra-balho social a ideia de que o avanço da civilização não é acompanhado de um aumento da felicidade geral das sociedades. O argumento, ao final da Divisão, é o de que não é a divisão do trabalho social, por si mesma, a responsável por essa infelicidade generalizada da sociedade, mas são as formas patológicas da divisão do trabalho que exigem coerção física e uso de violência direta, quando a estrutura social não corresponde à natureza dessa sociedade. Nas sociedades avançadas – que têm no individualismo seu mais alto ideal moral –, a desigualdade de oportunidades dos indivíduos impede que uma grande parte dos talentos naturais de cada um encontre seu lugar nessa estrutura. E esta é a origem dos conflitos sociais (e essa é a razão primordial porque Durkheim sempre foi um defensor da abolição da instituição da herança). A “guerra de classes” das sociedades industriais é o principal sintoma dessa desigualdade de origem. Logo, Durkheim não via, como Marx, o mal do sistema econômi-co na separação entre capital, de um lado, e trabalho, do outro, mas sim na desigualdade das oportunidades de acesso dos indivíduos às posições sociais (cf. DURKHEIM, 1893/2004, livro III, capítulo II).

Isso quer dizer que, se a identificação que a tradicional leitura positivista sobre Durkheim realiza acerca da anomia como uma ausência (temporária ou não) de normas (“normlessness”) não estiver totalmente errada, ela precisa

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ser muito bem “recalibrada” para incluir o problema que está no coração da anomia: o da justiça, não o da execução de normas; não é a regra nem a lei, mas a equidade e o sentimento do direito. É sobre o que é a proporção justa entre o que cada um merece em relação ao que a cada um é oferecido pela sociedade, e não o adensamento das normas sociais ou jurídicas que envolvem o indivíduo. Nas palavras finais da Divisão do trabalho social, Durkheim deixa clara a prevalência do valor da justiça em relação ao mero enquadramento jurídico-normativo:

(...) Mas não basta haver regras; além disso, elas têm de ser justas e, para tanto, é necessário que as condições externas da concorrência sejam iguais. Se, por outro lado, recordarmos que a consciência coletiva se reduz cada vez mais ao culto do indivíduo, veremos que o que caracteriza a moral das sociedades organizadas, comparadas com a das sociedades segmentárias, é que ela tem algo mais humano, portanto, mais racional. Ela não prende nossa atividade a finalidades que não nos concernem diretamente; ela não faz de nós os ser-vidores de forças ideais e de natureza diferente da nossa, que seguem seus caminhos próprios sem se preocupar com os interesses dos homens. Ela nos pede apenas que sejamos ternos com nossos semelhantes e que sejamos justos, que cumpramos nossa tarefa, trabalhemos para que cada um seja convocado para a função que pode desempenhar melhor e receba o justo preço de seus esforços (DURKHEIM, 1893/2004, p. 430).

É possível, ainda, colocar o problema da anomia em outros termos, através de outra problematização teórica do sociólogo. É conhecida a insis-tência de Durkheim – nos seus últimos trabalhos especialmente, mas de modo nenhum ausentes nos primeiros – na categoria do sagrado. Sua teoria se desenvolveu cada vez mais no sentido de ver nela a origem social de todo valor – sejam valores morais, econômicos ou estéticos. Compreender a origem religiosa de todo valor significa identificar na operação de separação entre coisas sagradas e coisas profanas a operação primeira, mais radical e bem definida de estabelecimento de heterogeneidades entre as coisas classificá-veis. Uma se define em relação à outra; as coisas sagradas serão destacadas e protegidas do resto do mundo profano.

Pois bem, a vida econômica é o mundo profano por excelência. Diz respeito ao que o homem tem de mais próximo da natureza e das necessidades que o prendem ao seu ciclo biológico. Nas sociedades primitivas australianas, Durkheim identificou a separação nítida entre as duas ordens, biológica e social, na separação em duas fases temporais distintas para as atividades que

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correspondem a uma e outra (DURKHEIM, 1912/2000, p. 325). Uma fase em que cada um se ocupa de seus afazeres ordinários: alimentação, higie-ne e cuidados com a saúde. E outra, em que os indivíduos se reúnem para suas celebrações religiosas, que atestam e reforçam a unidade do clã. Para o autor, o trabalho, como atividade marcada pelo ritmo da vida biológica, é essencialmente profano:

[É] que o trabalho é a forma eminente da atividade profana, não tem outra finalidade aparente a não ser prover às necessidades temporais da vida; ele só nos põe em contato com coisas profanas. Ao contrário, nos dias de festa, a vida religiosa atinge um grau de excepcional intensidade. Portanto, o contraste entre as duas formas de existência, nesse momento, é particularmente acentuado; por conseguinte, elas não podem ser vizinhas (DURKHEIM, 1912/2000, p. 325-6).

É a inversão entre o caráter sacro da sociedade e o caráter profano da economia – na medida em que é a sociedade que se submete à economia, e não o contrário – a mais grave “doença moral” da modernidade. O que hor-rorizava Durkheim nas sociedades industriais modernas era a ausência de qualquer regulação do mundo econômico. Enquanto a maioria das classes de profissões liberais tem seus códigos regulamentares e uma ética mais ou menos bem estabelecida, tal como médicos e jornalistas, já as classes profis-sionais ligadas ao mundo da indústria e do comércio (que englobam a grande maioria da população) se caracterizam pela ausência de quaisquer regras e moralidades bem definidas, unicamente movidas pelo fim de enriquecer (cf. DURKHEIM, 1893/2004, p. VI-IX e 1897/2004b).

É a anomia o traço distintivo das sociedades industriais. A moderni-dade é uma espécie de caixa de pandora que libertou os apetites e desejos do jugo da sociedade, que fez do desenvolvimento econômico seu maior ideal. Esse desejo desenfreado de acumular riquezas se torna a finalidade de todas as nações civilizadas; o egoísmo utilitário torna-se a norma, o que existe de valioso na vida social – a comunhão sagrada do indivíduo com a sociedade – é rebaixado. Uma vida econômica desregulada significa uma despotencia-lização do ser social, um retorno insidioso dos grilhões da natureza que se manifesta nesses apetites viciosos:

(...) Com efeito, a religião perdeu a maior parte do seu Império. O poder governamental, em vez de ser o regulador da vida econômica, tornou-se seu instrumento e servidor. As escolas mais opostas, economistas orto-doxos e socialistas extremados, associam-se para reduzi-lo ao papel de

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intermediário, mais ou menos passivo, entre as diferentes funções sociais. Uns querem torná-lo simplesmente o guardião dos contratos individuais; outros deixam-lhe a tarefa de manter a contabilidade coletiva, ou seja, de registrar as demandas dos consumidores, de transmiti-las aos produto-res, de inventariar a renda total e de distribuí-la segundo uma fórmula estabelecida. Mas uns e outros lhe recusam qualquer atribuição para que subordine o resto dos órgãos socais e os faça convergir para um objetivo que os domine. De ambas as partes, declara-se que as nações devem ter como único ou principal objetivo prosperar industrialmente; é isso que implica o dogma do materialismo econômico, que serve igualmente de base a esses sistemas, aparentemente opostos. E, como essas teorias só fazem exprimir a situação da opinião, a indústria, em vez de continuar sendo considerada como um meio com vistas a um fim que a ultrapassa, tornou-se o fim su-premo dos indivíduos e das sociedades. Mas então os apetites que ela põe em jogo viram-se livres de toda autoridade que os limitasse. Essa apoteose do bem-estar, santificando-os, por assim dizer, colocou-os acima de toda lei humana. É como se retê-los fosse uma espécie de sacrilégio (DURKHEIM, 1893/2004a, p. 324-5).

O estado de anomia tem em seu centro o ideal do progresso ilimitado, toda a moral desenvolvimentista típica da modernidade. Esse ideal implica uma profanação da sacralidade da sociedade, uma sacralização da vida profana da economia. O que é, em primeiro lugar, a sociedade senão uma superação da espécie humana de sua condição biológica que, sem ela, faria dos homens apenas uma poeira dispersiva de indivíduos? O homem biológico pré-social está preso ao mundo sensível, é refém de seus instintos, flutua de um lado para o outro por causas externas imediatas, e a consciência possibilitada pela ascensão da sociedade é, neste sentido, um salto para além do imediato. Nada logra aniquilar a animalidade do homem em prol do tipo civilizado – isso porque a sociedade é incapaz de esmagar a potência infinita da natureza – e é por isso também que todo esforço feito no sentido de domá-la é legítimo na ética durkheimiana.

O INCONSCIENtE HIStóRICO-SOCIAl

Para esclarecer o problema da liberdade humana e do valor moral da civi-lização, precisamos encarar a ótica durkheimiana sobre a história e seus movimentos, o que inclui sua problematização das mudanças sociais. É o que faremos a partir de agora, na segunda parte desta revisão conceitual.

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Durkheim costuma ser imaginado como um sociólogo que não dá a devida importância para o movimento histórico, preocupado demais com uma estática social, que entenderia a sociedade como um sistema sincrônico de normas que operam em torno do indivíduo. Foi no conflito entre uma leitura funcionalista da obra durkheimiana (por Parsons e pelas gerações que se seguiram) e seus opositores no campo acadêmico (nos EUA e em outros países) que, de algum modo, se obscureceu a preocupação durkheimiana em mostrar que a sociologia é indubitavelmente uma ciência histórica.

Há uma coleção extensa de afirmações de Durkheim sobre a relevância do material histórico (cf. BELLAH, 1959). No entanto, mais importante do que assinalarmos tais afirmações é relembrarmos sua concepção da moral como produto social e histórico14. Em As regras do método sociológico (1895/1978), uma das mais importantes asserções de Durkheim é a de que a história não pode ser entendida por causas finais, mas sempre por causas eficientes. Esta é uma acepção que o autor aciona contra a ideia de Comte segundo a qual a evolução da humanidade seria a realização de uma natureza humana de aperfeiçoamento progressivo. Se a compreensão histórica é submetida à realização de uma natureza humana, diz Durkheim, qualquer que ela seja, não pode existir a menor relação de causalidade entre os elementos do real que compõem a explicação (1895/1978, p. 102). Nas suas palavras:

(...) Pois, a menos que postulemos uma harmonia pré-estabelecida verdadei-ramente providencial, não se há de admitir que o homem, desde sua origem, traga em si, em estado virtual mas prontas para despertar ao apelo das cir-cunstâncias, todas as tendências cuja oportunidade se foi fazendo sentir no começo da evolução (DURKHEIM, 1895/1978, p. 81).

Esta compreensão de Durkheim é uma grave investida contra a ideia de um horizonte teleológico no movimento histórico; uma crítica que, se se anuncia inicialmente contra Comte, também serve como crítica ao ma-terialismo histórico. Neste caso, estaria posta no horizonte histórico a ideia de uma ligação vital do homem com a natureza, que se realizaria através do trabalho social, mas que seria rompida com a alienação deste homem pela propriedade privada. Sob esta ótica, o movimento histórico ganha inteli-gibilidade na medida em que é em relação à revolução – que emancipará este homem fraturado – que aferir-se-á a relevância dos acontecimentos e separar-se-ão os elementos estruturantes de possibilidades históricas futu-ras. Assim, o problema desta forma de teorização seria o de que toda sorte de acontecimentos que não se vinculam diretamente ao esquema da luta de

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classes se perderia em uma insignificância histórica proporcional à distância desse núcleo filosófico-histórico.

Durkheim compartilha com Marx a ideia – famosa em seu 18 Brumário de Luis Bonaparte – segundo a qual são os homens que fazem a história; não como querem, mas sob condições históricas pré-determinadas. Debatendo-se com uma perspectiva marxista no terreno da filosofia da história, apesar de suas divergências com um determinismo econômico do marxismo vulgar, Durkheim mostra sua simpatia por uma concepção da história que pressu-ponha desconfiança das percepções individuais dos agentes históricos, e que encontre o substrato social das representações que povoam as épocas:

Acreditamos ser uma ideia fértil explicar a vida social não pela concepção que fazem dela os que nela participam, mas por aquelas causas mais profundas que iludem a consciência. Pensamos, também, que essas causas devem ser procuradas principalmente na maneira em que os indivíduos, associando-se juntos, são agrupados. Parece-nos mesmo que é sob esta condição, e por esta condição somente, que a história pode ser uma ciência, e que deste modo a sociologia pode existir. Porque, para que as representações coletivas poderem ser inteligíveis, elas devem de fato advir de algo. Como elas não podem cons-tituir um círculo fechado, a fonte da qual elas derivam deve ser encontrada fora deles mesmos. Ou a consciência coletiva está flutuando em um vácuo, uma espécie de absoluto irrepresentável, ou então faz parte do resto do mundo por um substrato intermediário do qual, conseqüentemente, ela depende. Por outro lado, do que pode ser feito este substrato senão dos membros da sociedade, combinados socialmente? Esta proposição nos parece cristalina (DURKHEIM, 1986, p. 132-3. Tradução minha).

As representações individuais não podem informar sobre a realidade social senão secundariamente, quando matizadas e depuradas pelo olhar do investigador. As teses de O suicídio (1897/2004a) partem deste princípio de desconfiança do informante para que o suicídio se torne um objeto socio-lógico. As razões que o suicida acredita e (quando possível) apresenta para justificar seu ato podem ser as mais sinceras, mas nem por isso serão as mais verdadeiras no que diz respeito às suas causas objetivas (cf. DURKHEIM, 1897/2004a, p. 166-7).

A desconfiança do informante é um dos mais discretos (e não obstante fundamental) legados dos autores clássicos, e está assentada em outro princípio vital: o de que a sociologia, como atividade científica, deve ter como primado e meta libertar-se do senso comum para explicá-lo (cf.

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DURKHEIM, 1895/1978). O senso comum (as representações individuais, em geral) é opaco, complexo em sua natureza, e deve ser decifrado15. A consciência individual está longe de ser um “livro aberto”, já que há, em cada um, profundezas que raramente chegam à claridade dos pensa-mentos inteligíveis (cf. DURKHEIM, 1897/2004a, p. 400-1). A concepção de um inconsciente histórico-social, todo o conjunto de determinações inconscientes sobre a consciência, está ligada visceralmente aos axiomas de sua sociologia.

A intensidade das mudanças sociais será tanto maior quanto mais complexa uma sociedade, pois se torna possível cada vez mais formas di-ferentes de combinação entre seus elementos. O uso recorrente do termo “evolução” por Durkheim não pode ser confundido com a ideia de uma evolução unilinear16, que vê as diferentes sociedades humanas compondo-se, umas ao lado das outras, como pontos de escala de uma mesma linha evolucionária. Diz-nos Durkheim:

(...) Ora, não é nada impossível que sociedades de espécies diferentes, situa-das em nível desigual na árvore genealógica dos tipos sociais, se reúnam de maneira a formar uma espécie nova. Pelo menos um caso é conhecido: o do Império Romano, compreendendo em seu seio os povos de natureza a mais diversa (1895/1978: 73-4).

Na análise que se segue, assinalamos três grandes fontes de explicação das mudanças sociais e históricas na teoria sociológica de Durkheim. Uma (1) que decorre diretamente das individuações, uma força histórico-natural em essência. Outra (2) que decorre das interações sociais. Essas duas primeiras são movimentos típicos das forças do inconsciente histórico-social e em nenhuma delas se pressupõe uma ação consciente e coordenada em vista de seus efeitos globais na vida social. É em sentido oposto às duas primeiras que se faz visível uma terceira (3), decorrente da ação consciente do Estado; teorização que será realizada nos últimos passos de seu percurso intelectual.

A FORçA NAtURAl DAS INDIVIDUAçõES

Para a questão de saber como as individuações são promotoras diretas de mu-danças sociais, tomo como exemplo a figura do criminoso invocada em algumas passagens de Durkheim17. Isso porque o criminoso é uma das figuras extremadas de uma individuação de tal modo realizada que o coloca em contradição com os preceitos mais fundamentais da sociedade a que pertence.

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O ato criminoso ofende a consciência coletiva no que ela tem de mais unitário e sólido. Em reação, a punição do criminoso tem o caráter religioso de uma separação radical (simbólica e física) entre ele e o restante da so-ciedade – há um caráter expiatório na vingança pública que a pena realiza. A punição dos crimes é reclamada pela coletividade por sua ofensa “a algo sagrado que sentimos de maneira mais ou menos confusa, fora e acima de nós” (DURKHEIM, 1893/2004, p. 72); o caráter expiatório da pena serve para reequilibrar o universo de valores sagrados e coisas profanas e restaura a consciência coletiva. O criminoso se individua em formas inaceitáveis para a consciência coletiva e faz com que toda a sociedade se invista contra ele. Assim, toda a sociedade participa da punição. Por outro lado, na medida em que o crime e o criminoso cometem essa ofensa à consciência coletiva, produzem efeitos benéficos para a vida social. Impedem que a moralidade e o direito se cristalizem e se fixem numa forma determinada: os mantêm maleáveis que é condição para sua evolução em novas formas:

(...) Além dessa utilidade indireta, acontece que o crime desempenha ele próprio um papel útil nesta evolução. Não apenas mostra que o caminho está aberto para as mudanças necessárias, como ainda, em certos casos, prepara diretamente essas mudanças. Onde existe, é porque os sentimentos coletivos estão no estado de maleabilidade necessária para tomar nova forma; e, ain-da mais, contribui também às vezes para tomar nova forma; e, ainda mais, contribui também às vezes para predeterminar a forma que tomarão. Com efeito, quantas vezes não é ele uma antecipação da moral que está para vir, um encaminhamento para o que tem que ser (DURKHEIM, 1895/1978, p. 61).

Há, portanto, na individuação uma força histórica própria que, às vezes, esbarra no sistema jurídico-normativo, constituindo-se como um crime. Entre crime e história, há, assim, uma tensão conceitual peculiar, na medida em que dificilmente as grandes mudanças sociais não esbarrarão nas leis e regulamentos estabelecidos. Entre um ato criminoso e um acon-tecimento histórico reconhecido há somente a diferença no resultado final dessa tensão entre o indivíduo e a moralidade comum, porque o efeito de desestabilização moral é da mesma natureza, apesar de poder variar quanto aos preceitos morais ofendidos.

O crime é uma ação individual em oposição à totalidade social; a responsabilidade penal é individual e o sistema penal se fecha sempre sobre indivíduos – e mesmo o efeito que se procura realizar, a punição realiza, para além da violência física, a separação simbólica do condenado para com o

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resto da sociedade, ao representar o ato julgado como ofensa de um contra todos. É este o limiar que separa, conceitualmente, o crime do que compre-enderíamos como um conflito político: a realização ou não da situação penal de todos contra um. Com efeito, a teoria sociológica de Durkheim enfrenta com muita dificuldade a análise de grupos sociais constituídos em relações de conflito menos pautadas por uma verticalidade tão radical18 quanto a de toda a sociedade contra um indivíduo.

A teorização do crime proposta para explicar a solidariedade mecânica tem a vantagem de fundamentar o problema na consciência coletiva, nos estados objetivados dessa consciência na legislação penal, que, em princípio, coloca no segundo plano da explicação a especulação sobre as disposições individuais do criminoso. O crime é fenômeno normal e toda sociedade produz seus criminosos; o ponto de partida para a compreensão não é o criminoso e, sim, o que a sociedade considera ofensivo aos seus preceitos mais valiosos. E, na sociedade moderna, o homicídio é crime absolutamente intolerável para a consciência moral coletiva, na medida em que há um individualismo moral bem desenvolvido, de modo distinto de outras épocas em que a intolerância, no mais das vezes, se referia à confrontação de prescrições religiosas.

Para o problema que nos ocupa agora, as individuações criminosas ainda têm em suas causas elementos pré-sociais; são, também, expressões do enfraquecimento integrativo da sociedade e o reaparecimento dos apetites naturais do indivíduo. Não há, na explicação de Durkheim sobre o crime, uma causalidade positiva de origem social que possa explicar as disposições subjetivas individuais do criminoso. Essa explicação não pode ser oferecida senão no reaparecimento de uma natureza mal contida; assim, não raro, encontrar-se-á uma razão extra-social para compor sua etiologia. É por isso que na explicação do homicídio, ao comparar esse fenômeno com o do suicídio (no penúltimo capítulo de O suicídio), em busca de correlações precisa se fundar em uma caracterização tão frágil do homicídio, que per-manecerá sendo um retorno da natureza reprimida do indivíduo e fará de todo homicídio um crime meramente passional.

Outro exemplo, ainda, da força histórico-natural das individuações, é o elogio do neurastênico que Durkheim apresenta incidentalmente em O suicídio. Não se trata de um louco propriamente dito. A loucura, para Durkheim, é um fenômeno puramente biológico, em suas causas e seus efeitos, como um “pro-blema nos nervos”, por assim dizer. Nesse sentido, o neurastênico não chega a ser um louco completo, mas alguém a meio caminho da loucura. Trata-se de um indivíduo com uma constituição biológica frágil e, por conseguinte, uma sensibilidade e uma consciência egoísta bem desenvolvidas:

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(...) Sua debilidade muscular, sua sensibilidade excessiva, que o tornam im-próprio para a ação, designam-no, pelo contrário, ás funções intelectuais, que, também elas, requerem órgãos apropriados. Do mesmo modo, se um meio social por demais imutável só pode entrar em choque com seus instintos naturais, na medida em que a própria sociedade é móvel e só pode se manter sob condição de progredir, ele tem um papel útil a ser desempenhado, pois é, por excelência, o instrumento do progresso. Justamente por ser refratário à tradição e ao jugo do hábito, ele é fonte eminentemente fecunda de novidades. E, como as sociedades mais cultivadas são também aquelas em que as funções representativas são as mais necessárias e as mais desenvolvidas, e como, ao mesmo tempo, por causa de sua grande complexidade, uma mudança quase incessante é condição de sua existência, no momento preciso em que os neurastênicos são mais numerosos é que eles têm, também, mais razões de ser (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 59-60).

(...) Ora, hoje a neurastenia é considerada antes uma marca de distinção do que uma tara. Em nossas sociedades refinadas, afeitas às coisas da inteligência, os nervosos constituem quase uma nobreza (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 220).

O neurastênico – “instrumento do progresso” – distingue-se do criminoso por ser um ator intelectual e consciente, enquanto o criminoso, particularmente o homicida, é essencialmente um ser passional. O neuras-tênico, conforme Durkheim, encarna bem as funções intelectuais e criativas requeridas pela sociedade, e é um protótipo individual do terceiro tipo de mudança social que veremos: a ação social consciente do Estado. Mas, a ação individual é sempre (com ilustres exceções19) ação de baixa potência, que, no mais das vezes, atrai, por parte da sociedade, a ira coletiva que o neutraliza ou o simples desprezo displicente.

O PODER DAS INtERAçõES

Em contraste com essa relativamente baixa potência de mudança histórico-social que é a força natural da individuação, a segunda modalidade decorre diretamente das interações sociais, potencialmente mais promissoras na explicação histórica. Trata-se do fenômeno social da efervescência coletiva, na formulação de As formas elementares da vida religiosa (1912/2000, capítulo VII do livro II), seu livro mais vibrante, em minha opinião.

Ressalte-se que a elaboração teórica dessa força histórica só foi possível na medida em que Durkheim realizou um redirecionamento teórico em direção a uma explicação que confere às representações sociais um peso

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muito maior do que tinha antes. As representações sociais compartilhadas promoverão a estimulação geral dos sentimentos sociais, mobilizados pelo mundo simbólico.

Na formulação sobre a efervescência social, Durkheim explica que a experiência dos indivíduos dentro da vida social é sempre acompanhada por um acréscimo da vontade e da energia psíquica, especialmente quando estão em “harmonia moral” com a sociedade (DURKHEIM, 1912, p. 216), na medida em que recebem “a simpatia, a estima, a afeição que seus semelhantes têm por eles”. A interação mais próxima entre os indivíduos multiplica suas disposições subjetivas. Em determinadas circunstâncias, essa “energia social” veiculada pela intensa vitalidade da coletividade transborda a experiência ordinária do indivíduo:

Há períodos históricos em que, sob a influência de uma grande comoção coletiva, as interações sociais tornam-se bem mais freqüentes e ativas. Os indivíduos se procuram, se reúnem mais. Disso resulta uma efervescência geral, característica das épocas revolucionárias ou criativas. Ora, essa superatividade tem por efeito uma estimulação geral das forças individuais. Vive-se mais e de outra forma do que em tempos normais. As mudanças não são apenas de nuanças e de graus; o homem torna-se outro. As paixões que o agitam são de tal intensidade que não podem se satisfazer senão por atos violentos, desmesurados: atos de heroísmo sobre-humano ou de barbárie sanguinária. É o que explica, por exemplo, as Cruzadas e tantas cenas, sublimes ou selvagens, da Revolução Francesa. Sob a influência da exaltação geral, vemos o burguês mais medíocre ou mais inofensivo transformar-se ou em herói, ou em carrasco (DURKHEIM, 1912/2000, p. 216).

A efervescência é um aumento das vontades humanas que tem como causa geradora a própria relação direta entre os indivíduos, e não os apetites naturais (pelo menos não de modo direto e imediato). Mas em que medida há uma diferença de natureza entre os sentimentos movidos pela interação social dos indivíduos e aqueles experimentados unicamente pela natureza biológica do homem? A resposta mais coerente a essa pergunta seria: entre sentimentos sociais e sensibilidades individuais há um segundo salto de complexidade, tal como o que havia entre conjuntos de indivíduos biológicos dispersos em direção à vida social organizada. Haveria, portanto, segundo Durkheim, uma relação complexa entre representações e sentimentos, tanto no âmbito individual quanto no coletivo.

O problema ético torna-se mais complicado a partir desse ponto. É que a vida social, em formulação anterior, se encontrava em um jogo de soma zero com

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o mundo natural. Maior integração na vida social significava um maior controle das paixões naturais, de onde surgiam as mais altas potencialidades humanas, os símbolos da superioridade da civilização. É este o postulado ético-moral de Durkheim. Na oposição entre sociedade e natureza, constitutiva não apenas do pensamento deste autor – pois é uma das questões cruciais de toda a filosofia ocidental –, ser civilizado não podia significar outra coisa. Quando Durkheim encontra o problema da efervescência social, das explosões apaixonadas em movimentos intestinos da sociedade, acaba por inserir uma complicação radical no problema teórico da soma zero entre civilização e natureza sobre o qual suas próprias posições éticas e morais estavam assentadas. Prenuncia-se a insustentabilidade da oposição simples entre natureza e sociedade.

A análise da efervescência social coloca o problema de encontrar as paixões humanas, a irracionalidade, os desejos e emoções se movendo nas fibras mesmas da ordem social. Essa problematização se, por um lado, pode resolver alguns impasses de uma concepção puramente normativa da vida social, tradicional de seus posteriores leitores funcionalistas, por outro lado, apresenta dificuldades teóricas. A análise da mudança social ganha instrumentos novos para explicar grandes mudanças históricas, especialmente o problema das revoluções sociais, dá um primeiro passo para tornar possível uma nova explicação de mutações no âmbito das re-presentações sociais – colocada agora nos termos das grandes transferências do Sagrado (cf. HUNT, 1990).

Durkheim tornou mais complexo o sistema explicativo assentado na oposição entre natureza e sociedade. As representações sociais deixaram de ser meras expressões de um substrato social anterior e com uma realidade mais vigorosa na explicação. É verdade que as representações sociais não dei-xam de ter como condição de existência esse substrato, mas, por outro lado, elas se tornaram também determinantes da associação entre os indivíduos. A autonomia relativa das representações é uma novidade não anunciada pelo próprio autor como tal, apresentada como se fosse uma simples continuação de suas formulações anteriores.

Essa novidade foi desenvolvida, progressiva e rigorosamente, no correr de suas obras20. Seu estudo das religiões australianas (Formas elementares da vida religiosa) é fundamental para essa virada, mostrando a importância das representações totêmicas, em particular, e das representações religiosas, em geral, para a reprodução da unidade essencial da sociedade:

Ao mostrar na religião uma coisa essencialmente social, de maneira nenhuma queremos dizer que ela se limita a traduzir, numa outra linguagem, as formas

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materiais da sociedade e suas necessidades vitais imediatas. Certamente, con-sideramos uma evidência que a vida social depende de seu substrato e traz sua marca, assim como a vida mental do indivíduo depende do encéfalo e mesmo do organismo inteiro. Mas a consciência coletiva é algo mais que um simples epifenômeno de sua base morfológica, da mesma forma que a consciência individual é algo mais do que uma simples eflorescência do sistema nervoso. Para que a primeira se manifeste, é preciso que se produza uma síntese sui generis das consciências particulares. Ora, essa síntese tem por efeito criar todo um mundo de sentimentos, de ideias, de imagens que, uma vez nascidos, obedecem a leis que são próprias. Elas se atraem, se repelem, se fundem, se segmentam e proliferam sem que essas combinações todas sejam diretamente comandadas e requeridas pelo estado da realidade subjacente (DURKHEIM, 1912/2000, p. 468).

Ao estabelecer articulações entre representações sociais e sentimentos sociais experimentados pelo indivíduo, Durkheim opera uma mudança sutil na problematização da natureza dos fenômenos emocionais, os desejos, as paixões e de tudo o que tradicionalmente se reconhece como irracional. É que se, como vimos na problematização da anomia, esses desejos hu-manos eram compreendidos ainda em sua natureza biológica individual (desejos naturais por objetos naturais ou sociais), agora os sentimentos são entendidos a partir de uma origem propriamente coletiva – e por isso mesmo seus efeitos serão mais intensos nas mudanças sociais, como com as efervescências revolucionárias e criativas. Eles ainda têm como matéria a constituição orgânica do indivíduo, mas apenas da mesma forma que a vida social precisa ter indivíduos vivos. É nesta formulação da efervescência social que as paixões humanas podem, em pleno direito, ser consideradas sociais.

Assim, põe-se uma inquietação: como o problema da origem – natural ou social – das emoções impacta o posicionamento ético de Durkheim, com-prometido com a civilização e seus altos valores? Na análise da anomia nas sociedades industriais, o problema do desenfreamento das paixões individuais se resolve sempre no sentido do fortalecimento da disciplina: a regulação das vontades do indivíduo e o reforço da autoridade moral da sociedade. É uma contenção das emoções do indivíduo pela sociedade. Os fenômenos de sentimentos sociais não podem se enquadrar nesse esquema ético; em primeiro lugar, pelo seu caráter social. Mas, principalmente, a consequência teórica que podemos prever é que uma alta intensidade da vida social pode não ser necessariamente saudável, pois as efervescências sociais contêm uma ambiguidade básica, uma ambivalência essencial que não podemos perder de

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vista: elas podem tanto conduzir as sociedades a uma benéfica solidariedade quanto a barbáries sanguinárias, como o Terror em meio à Revolução Francesa (SCHILLING & MELLOR, 1998, p. 195). Durkheim assinala a ambivalência do acionamento das paixões pela intensificação efervescente da vida social:

A efervescência chega muitas vezes a provocar atos inusitados. As paixões desencadeadas são de tal impetuosidade que não se deixam conter por nada. As pessoas se sentem fora das condições ordinárias da vida e têm tanta cons-ciência disso que experimentam como que uma necessidade de colocar-se fora e acima da moral ordinária. Os sexos se juntam contrariamente às regras que presidem ao comércio sexual. Os homens trocam suas mulheres. Às vezes até uniões incestuosas, que em tempos normais são julgadas abomináveis e severamente condenadas, se realizam ostensiva e impunemente (DURKHEIM, 1912/2000, p. 222).

A anomia sexual, tanto no sentido da desregulação das paixões quanto no sentido de uma “normlessness” (uma carência localizada de normas que operam ao redor do indivíduo), emerge justamente no momento em que a vida social se encontra em sua mais alta intensidade. Como poderia isso ser compatível com todas as considerações anteriores sobre a integração social e sua oposição elementar à realidade natural? É um avanço teórico na trajetória do autor, sem dúvida. Mas, como pode a irracionalidade dos sentimentos e sensibilidades en-raizar-se nas fibras mesmas da sociedade e, ainda assim, o ideal da civilização, fundado em sua oposição à natureza, permanecer intacto no horizonte moral da modernidade? Nessa perspectiva dos sentimentos sociais, depois de tudo o que vimos de sua postura sobre a anomia, como poderia essa anomia, alojada no coração mesmo da civilização moderna, seguir sendo indesejável? Eis como podemos ver o problema ético que sua virada teórica implica.

A AçãO RACIONAl DO EStADO

Na sua teorização sobre a relação entre natureza e sociedade, Durkheim oferece mais alternativas à explicação sociológica, ainda que, ao mesmo tempo, ameaçando a solidez de suas proposições éticas. Mesmo assim, era ainda possível salvar a perspectiva ética que se fundava na oposição entre natureza e sociedade: através de uma formulação renovada do Estado ele poderia fazer esse resgate ético-teórico.

Na complexidade do sistema de forças históricas, os movimentos internos da sociedade estão todos no nível de um inconsciente histórico-

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social que, se olharmos do ponto de vista da totalidade social, se move com a mesma espontaneidade dos sistemas ecológicos. E as forças históricas promovidas pelas duas modalidades que vimos até agora – a força histórico-natural da individuação e a força histórico-social que decorre da interação dos indivíduos – são, no essencial, forças históricas inconscientes. Mas, se há um inconsciente histórico-social, é necessário que haja mais níveis de cons-ciência teorizáveis. Surge na arquitetura teórica de Durkheim uma teoria da opinião pública. Ele formula essa teoria a partir da percepção da sociedade como uma estrutura que tem em sua base os pensamentos sociais difusos da massa; esse plano da opinião pública é constituído “dos sentimentos, das aspirações, das crenças que a sociedade elaborou coletivamente e que estão disseminados em todas as consciências” (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 111) – enquanto, que, na extremidade superior dessa estrutura, estaria o Estado, entendido como um órgão do pensamento social21. E esse Estado se define, não por ter o monopólio do uso legítimo da violência física – como na formulação weberiana clássica –, mas por ser um órgão cognitivo, cuja função primeira não é agir, e sim pensar.

Eis o que define o Estado. É um grupo de funcionários sui generis, no seio do qual se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade. Não é correto dizer que o Estado encarna a consciência coletiva, pois esta o transborda por todos os lados. É em grande parte difusa; a cada instante há uma infinidade de sentimentos sociais, de estados sociais de todo tipo de que o Estado só percebe o eco enfraquecido. Ele só é a sede de uma consciência especial, restrita, porém mais elevada, mais clara, que tem de si mesma um sentimento mais vivo. Nada de obscuro e vago como as representações coletivas que se espalham em todas as sociedades: mitos, lendas religiosas ou morais, etc. Não sabemos de onde vêm, nem para onde vão; não as deliberamos. As representações que vêm do Estado são sempre mais conscientes de si mesmas, de suas causas e seus objetivos. Foram concertadas de maneira menos subterrânea (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 70).

Ao tratar, teoricamente, o Estado como órgão consciente do pensa-mento social, Durkheim insere uma contradição inesperada para o leitor que fixou demasiada atenção na Divisão do trabalho social (1893/2004). Em sua obra inaugural, ele chega a fazer menção ao Estado como sujeito social autônomo: quando trata do aparecimento dos chefes políticos em meio à massa indistinta de indivíduos nas sociedades onde predomina

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a solidariedade mecânica22. Mas é apenas uma caracterização parcial, na medida em que ele está conjecturando sobre as origens primevas (ou primitivas) do Estado, enquanto em sua expressão moderna, dentro do esquema da solidariedade orgânica, o Estado é essencialmente o conjunto de subsistemas administrativos que se decompõem na medida em que se especializam em órgãos próprios – da justiça, da educação, da saúde, de assistência, de transportes, de comunicações, de serviços estatísticos, de diplomacia (1893/2004, p. 207-211). Em vista dessa primeira formulação, é surpreendente que o Estado seja reformulado como sujeito social consciente e autônomo em relação ao corpo social, que não está preso ao esquema funcionalista anterior.

A teoria durkheimiana da opinião pública vislumbra um sistema de comunicação entre os diferentes níveis de consciência da sociedade: de um lado, os pensamentos difusos que percorrem o corpo social e que compõem o inconsciente social; do outro lado, a consciência plenamente individuada do Estado. “Assim, entre a vida psicológica difusa na sociedade e a que se concentra e se elabora especialmente nos órgãos governamentais, há a mesma oposição que entre a vida psicológica difusa do indivíduo e sua consciência clara” (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 112). E essas comunicações poderão ter mais ou menos obstáculos, podem ser bem ou mal organizadas, mais ou menos numerosas; podem ter barreiras estanques ou permeáveis, podem ser mais contínuas ou intermitentes.

Uma democracia será tanto mais efetiva quanto essas comunicações bipolares estiverem próximas e sincronizadas sob a ascendência do Estado. A democracia não se define pelo governo da maioria, não se define pelo ideal de um governo de todos sobre todos. Ao contrário da concepção liberal de democracia, em que o Estado se apresenta como antítese do indivíduo e suas liberdades, Durkheim enfatiza que o individualismo, a proteção das liberdades individuais, será tanto mais forte quanto mais desenvolvido e mais complexo for o Estado23. Nas comunicações bipolares entre a consciência estatal e o inconsciente social, quanto mais o pensamento social de modo geral estiver consciente de si, através do poder estatal de organizar as ideias e sentimen-tos difusos na sociedade, tanto mais avançada, tanto mais democrática será essa sociedade. E, nesse sentido, quanto mais uma sociedade é consciente de si mesma, mais apta estará às mudanças sociais efetivas; maior será sua plasticidade, realizada através da ação racional do Estadoxxiii. Essa sociedade terá o poder de enfrentar as tradições mais arraigadas e as profundidades mais obscuras dos hábitos e sentimentos coletivos:

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Não se deve dizer que a democracia é a forma política de uma sociedade que governa a si mesma, em que o governo se difunde no meio da nação. Uma tal definição é contraditória em seus termos. É quase dizer que a democracia é uma sociedade política sem Estado. Com efeito, o Estado ou não é nada ou é um órgão distinto do resto da sociedade. Se o Estado está em toda parte, ele não está em lugar nenhum. Resulta de uma concentração que destaca da massa coletiva um grupo de indivíduos determinado, em que o pensamento social é submetido a uma elaboração de um tipo particular e chega a um grau de clareza excepcional. Se essa concentração não existe, se o pensamento social perma-nece inteiramente difuso, ele permanece obscuro, e a característica distintiva das sociedades políticas inexiste. Apenas, as comunicações entre esse órgão especial e os outros órgãos sociais podem ser mais estreitas ou menos estreitas, mais contínuas ou mais intermitentes (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 115-6).

Ao sistematizar suas concepções de democracia e de Estado, o autor aponta conclusões “desconfortáveis”, a começar pelo desprezo pela instituição do sufrágio universal e pela democracia direta, cujo resultado seria a expressão de uma sociedade feita de indivíduos atomizados, em que “é quase impossível que esses votos sejam inspirados por algo que não preocupações pessoais e egoístas: pelo menos estas serão preponderantes, e assim um particularismo individualista estará na base de toda a organização” (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 147). Além disso, longe da tradicional concepção liberal de democracia, Durkheim reafirma suas teses políticas sobre as virtudes de uma democracia corporativa, isto é, um Estado corporativo. Suas proposições políticas mais específicas fogem do escopo deste texto. Ressalte-se, ainda, que, na perspec-tiva, do autor, os agrupamentos profissionais se constituiriam corpos sociais permanentes na estrutura estatal, ao contrário dos representantes políticos das democracias liberais, de modo que a participação do indivíduo na vida política não se esgotaria no momento fugaz do voto (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 148). As corporações, como órgãos secundários do corpo social, seriam a mediação necessária para contrapesar-se ao poder do Estado sobre as li-berdades individuais e para promover a integração social onde há um vazio esquecido na anarquia moral moderna. Por meio desses órgãos secundários, poder-se-ia facilitar a comunicação bipolar entre a consciência aprimorada do Estado e a consciência coletiva difusa das massas.

Através de uma concepção renovada de Estado dentro de uma teoria da opinião pública, ultrapassando a formulação funcionalista anterior em direção à perspectiva de um sujeito autônomo e em relação de comunicação com a sociedade, Durkheim pôde afirmar novamente o domínio da razão

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humana sobre o irracional. Vimos que o movimento histórico era, em sua teorização até então, composto por forças históricas inconscientes: umas his-tórico-naturais, outras interacionais. Sendo inadmissível, para um civilizado como Durkheim, um governo das paixões, assim como a “anarquia moral” das sociedades industriais, o problema ético e teórico era saber em que medida haveria tantos sentimentos sociais e, ainda assim, uma civilização conservar seus mais altos valores, fundados na oposição entre natureza e sociedade. A resposta não pode ser outra: nessa sua formulação particular do conceito, a democracia se torna o fim supremo de toda a história.

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NOtAS 1 “Esse símbolo visível [através do qual podemos aceder ao estudo da solida-riedade social] é o direito. (...) Quanto mais os membros de uma sociedade são solidários, mais mantêm relações diversas seja uns com os outros, seja com o grupo tomado coletivamente, pois, se seus encontros fossem raros, só dependeriam uns dos outros de maneira intermitente e fraca. Por outro lado, o número dessas relações é necessariamente proporcional ao das regras jurídicas que as determinam. De fato, a vida social, onde quer que exista de maneira duradoura, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e a se organizar, e o direito nada mais é que essa mesma organização no que ela tem de mais estável e mais preciso. A vida geral da sociedade não pode se estender num ponto sem que a vida jurídica nele se estenda ao mesmo tempo e na mesma proporção. Portanto, podemos estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social” (DURKHEIM, 1893/2004, p.31-2).

2 “A publicação da última das grandes obras de Durkheim, As formas elemen-tares de vida religiosa, em 1912, cristaliza um movimento de inflexão em sua obra que, entre outros aspectos, caracteriza-se pela passagem da consciência coletiva para as representações coletivas como conceito-chave da análise sociológica. A ênfase se desloca da morfologia social, cujo mecanismo é o principal fundamento explicativo dos fatos sociais na Divisão do trabalho social, para a valorização do simbolismo coletivo como princípio fundante da realidade social” (PINHEIRO FILHO, 2004, p. 139).

3 Cf., p. ex., Pinheiro Filho (2004, p. 142): “Ou, precisando melhor, a so-ciedade é a única fonte da humanidade do homem; é através dela que se transcende a pura vida orgânica que é a condição do homem tomado em sua individualidade. Apenas a vida coletiva faz do indivíduo uma perso-nalidade, dando forma à consciência moral e pensamento lógico que têm origem e destinação social. O indivíduo não é ainda realidade humana, mas apenas abstração que só se perfaz no meio social. Antes de sua constituição na e pela força coletiva, não se pode falar propriamente de homem, mas de um ser que se reduz ao organismo animal. A humanidade do homem é coisa social, que se cristaliza por mecanismos de coerção. A sociedade “(...) externa e transcendente ao indivíduo enquanto indivíduo, é interna e imanente ao indivíduo enquanto homem” (VIALATOUX, J. De Durkheim a Bergson. 1939, Paris: Bloud & Gay, p. 18).

4 Desde seus primeiros livros, não há distinção entre fatos sociais e fatos morais. Não há – em separado – para os fatos morais, uma espécie de fato social de outra substância e da qual a moralidade seria o produto. Fatos mo-rais são os próprios fatos sociais, e estes são todas as prescrições de conduta dos indivíduos, “modos de pensar, agir e sentir” impostos pela sociedade.

5 A sociedade é um reino natural que não difere dos outros, a não ser por sua maior complexidade”. (DURKHEIM, 1912/2000, p. XXVI).

6 “Acrescentemos, para evitar qualquer interpretação inexata, que [quando afirmamos a heterogeneidade do social e do individual] nem por isso admi-timos que haja um ponto preciso em que termina o individual e começa o reino social. A associação não se estabelece de uma só vez e não produz seus efeitos de uma só vez; para isso ela precisa de tempo e, por conseguinte, há momentos em que a realidade fica indefinida. Assim, passa-se sem hiato de

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uma ordem de fatos a outra; mas isso não é razão para não as distinguir. Caso contrário, não haveria nada de distinto no mundo, se é que há quem pense que existem gêneros separados e que a evolução é contínua.” (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 403, nota 11).

7 “Mas, no que toca nosso pensamento, seria laborar em erro se, a partir do que se explicou atrás, se concluísse que, de acordo com nossa opinião, a socio-logia deve ou mesmo pode fazer abstração do homem e suas faculdades. Está claro, ao contrário, que os caracteres gerais da natureza humana entram no trabalho de elaboração de que resulta a vida social. Somente, não a suscitam nem lhe dão sua forma especial; não fazem mais do que torná-la possível. As representações, as emoções, as tendências coletivas não têm por causas geradoras determinados estados da consciência dos indivíduos, mas sim as condições em que se encontra o corpo social em seu conjunto. Sem dúvida, não podem alcançar realização senão quando as naturezas individuais não se mostrarem refratárias; mas não constituem senão a matéria indeterminada que o fator social determina e transforma.” (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 92).

8 “(...) Em si mesma, abstraindo-se todo poder exterior que a regula, nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que nada é capaz de preencher. / Mas então, se nada vem contê-la de fora, ela só pode ser uma fonte de tormentos para si mesma. Pois desejos ilimitados são insaciáveis por definição e não é sem razão que se considera a insaciabilidade como sinal de morbidez. Já que nada os limita, eles sempre ultrapassam, e infinitamente, os meios de que dispõem; nada portanto pode acalmá-los. Uma sede inextinguível é um suplício perpetuamente renovado” (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 313)

9 É possível entrever de que maneira O suicídio é a obra em que sua teoria começa a conferir maior peso às representações na explicação sociológica. No caso do suicídio egoísta, a explicação seria desenvolvida nos termos de uma representação individual que seria apenas a refração de uma representação coletiva.

10 Poder-se-ia argumentar que o suicídio como fenômeno sociológico tem como objeto as taxas estatísticas de suicídios, não o suicida individual com suas motivações pessoais. Estaria correto, a princípio. Mas o problema é ainda mais complicado, porque os tipos de “correntes suicidógenas” decompostas na explicação do suicídio não são, para Durkheim, meros construtos analíticos, “típico-ideais”. São correspondentes, em sua ótica, a realidades sociais muito bem distinguíveis – estão nas coisas sociais, não nos olhos do sociólogo – as taxas estatísticas rebatem-se na experiência individual e cada corrente social produzirá sintomas próprios. “As tendências coletivas têm uma existência que lhes é própria; são forças tão reais quanto as forças cósmicas, embora sejam de outra natureza; também agem de fora do indivíduo, embora por outros meios” (1897/2004a, p. 398). Por isso, não há paradoxo em falar de uma desintegração subjetiva em sua teorização do egoísmo, assim como não há paradoxo em sua abordagem das formas individuais dos diferentes tipos de suicídio, no capítulo VI do livro II d’O suicídio (1897/2004a).

11 Inspiro-me aqui em Mestrovic (1985) quando ele estabelece Anomia e Pecado como conceitos similares. A interpretação da anomia como “normlessness” somente pode compreender a anomia como se sua expressão objetiva fosse a ruptura individual com o sistema legal-normativo – um crime. Enquanto

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que, argumenta Mestrovic, a anomia diz respeito às intenções individuais, é independente de qualquer comportamento realmente objetivado. O indi-víduo pode sofrer sua gula e sua cobiça e sua luxúria sem que haja de fato uma ação externalizada.

12 “O que proporciona, particularmente nos dias de hoje, excepcional gra-vidade a esse estado é o desenvolvimento, até então desconhecido, que as funções econômicas adquiriram nos últimos dois séculos, aproximadamente. Enquanto, outrora, desempenhavam apenas um papel secundário, hoje estão em primeiro plano. Estamos longe do tempo em que eram desdenho-samente abandonadas às classes inferiores. Diante delas, vemos as funções militares, administrativas, religiosas recuarem cada vez mais. Somente as funções científicas estão em condições de disputar-lhes o lugar – e, ainda assim, a ciência atualmente só tem prestígio na medida em que pode servir á prática, isto é, em grande parte, às profissões econômicas. Uma forma de atividade que tomou tal lugar na vida social não pode, evidentemente, permanecer tão desregulamentada, sem que disso resultem as mais pro-fundas perturbações. É, em particular, uma fonte de desmoralização geral” (DURKHEIM, 1893/2004, p. VIII).

13 Essa interpretação que apresento tem algumas semelhanças e diferenças importantes em relação à instrutiva leitura de Phillipe Besnard (2008) sobre o tema da anomia em Durkheim. Em vários pontos minha leitura coincide com a dele. Em primeiro lugar, na caracterização da anomia como um problema essencialmente da ordem do desejo e dos apetites humanos, dis-tinguindo-nos, ambos, das leituras tradicionais que reduzem anomia a uma carência localizada de normas ao redor do indivíduo (“normlessness”). Em segundo lugar, ambos reconhecemos determinadas imprecisões do texto de Durkheim que o levam a contradições teóricas que devem ser sanadas. Mas uma diferença importante entre sua reflexão e a minha é a de que, apesar de ele reconhecer que “não é demais enfatizar que o conceito de anomia [por parte de Durkheim] implica uma vigorosa e quase veemente condenação da ideologia da sociedade industrial” (BESNARD, 2008, p. 173, tradução minha), o tema da anomia é, em sua leitura de Durkheim, apenas “um tema menor e passageiro” em sua obra, além de “escassamente elaborado” (idem, p. 164). Esta é uma tese muito distinta da minha e que refuto neste texto, já que elaboro minha leitura sobre o tema da anomia identificando-a em sua qualidade de orientação ética transversal à obra de Durkheim.

14 “(...) É possível que a moral tenha algum fim transcendental, que a experi-ência não é capaz de alcançar; cabe ao metafísico ocupar-se deste. Mas o que é certo, antes de mais nada, é que ela se desenvolve na história, sob o império de causas históricas, e tem uma função em nossa vida temporal. Se ela é esta ou aquela num fenômeno dado, é porque as condições em que vivem os homens não permitem que ela seja outra, e a prova disso é que ela muda quando essas condições mudam, e somente nesse caso” (DURKHEIM, 1893/2004, p. XLIV).

15 “(...) a ação social segue caminhos muito indiretos e obscuros, emprega mecanismos psíquicos complexos demais para que o observador vulgar possa perceber de onde ela vem. Enquanto a análise científica não vier ensinar-lhe isto, ele perceberá que é agido, mas não por quem é agido” (DURKHEIM, 1912/2000, p. 214).

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16 “O que existe, a única coisa que realmente é oferecida à observação, são sociedades particulares que nascem, se desenvolvem, morrem independen-temente umas das outras. Se as mais recentes fossem ainda continuação daquelas que as precederam, cada tipo superior poderia ser considerado como a simples repetição do tipo imediatamente inferior, acrescido de alguma coisa; seria possível, então, alinhá-las, por assim dizer, umas após as outras, confundindo as que se encontram no mesmo grau de desen-volvimento, e a série assim formada seria encarada como representativa da humanidade. Mas os fatos não se apresentam com esta simplicidade extrema. Um povo que substitui outro não é um simples prolongamento do anterior com o acréscimo de alguns caracteres novos; é diferente, ora tem propriedades a mais, ora a menos; constitui uma nova individualidade e todas estas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem se fundir numa mesma série contínua, nem sobretudo numa série única. Pois a sequência de sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica; ela se parece antes com uma árvore cujos ramos se dirigem em direções divergentes” (DURKHEIM, 1895/1978, p. 17-8).

17 Os problemas do crime e da punição podem ser encontrados, entre outros, no capítulo em que descreve o funcionamento da solidariedade mecânica, na Divisão do trabalho social (1893/2004) e no capítulo sobre a distinção entre fatos sociais normais e patológicos, em as Regras do método (1895/1978).

18 Randall Collins (1990) dirá que a teoria de Durkheim, se não compreende diretamente os conflitos horizontais, por assim dizer, entre grupos sociais constituídos, por outro lado, é bastante útil para determinar as condições de solidariedade interna a esses grupos – responde tanto ao problema marxista da consciência de classe quanto à noção de grupos de status de Weber.

19 Após explicar como o crime mantém a moralidade em um estado maleável e permite sua evolução, Durkheim prossegue a análise, citando o exemplo de como personagens históricos se tornam promotores diretos das mudanças sociais: “Segundo o direito ateniense, Sócrates era criminoso e sua condenação não deixou de ser justa. Todavia, seu crime, isto é, a independência de seu pensamento, não foi útil apenas à humanidade como também à sua pátria. Pois servia para preparar uma moral e uma fé novas de que os atenienses tinham necessidade então, porque as tradições nas quais tinham vivido até aquela época não estavam mais em harmonia com suas condições de exis-tência. Ora, o caso de Sócrates não é isolado; reproduz-se periodicamente na história. A liberdade de pensamento de que gozamos atualmente jamais teria podido ser proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemente repudiadas. Naquele momento, porém, a violação constituía crime, pois tratava-se de ofensa contra sentimentos ainda muito vivos na generalidade das consciências, A liberdade filosófica teve por precursores toda a espécie de heréticos que o braço secular justamente castigou durante todo o curso da Idade Média, até a véspera dos tempos contemporâneos” (DURKHEIM, 1895/1978, p. 61-2).

20 Cf. o capítulo Representações individuais e representações coletivas (DURKHEIM, 1924/1970). Esta é sua formulação mais rigorosa da autonomia relativa das representações sociais.

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21 “Organizam idéias, sentimentos, depreendem resoluções, transmitem essas resoluções a outros órgãos que as executam; mas seu papel limita-se a isso. (...) O Estado, pelo menos em geral, não pensa por pensar, para construir sistemas de doutrinas, mas para dirigir a conduta coletiva. Nem por isso sua função essencial deixa de ser pensar” (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 72).

22 “Longe de poder datar da instituição de um poder despótico a anulação do indivíduo, deve-se, ao contrário, ver nesse poder o primeiro passo na direção do individualismo. De fato, os chefes são as primeiras personalidades individuais que se diferenciaram da massa social. Sua situação excepcional, fazendo-os sem igual, cria para eles uma fisionomia distinta e lhes confere, em consequência, uma individualidade. Dominando a sociedade, não são mais obrigados a seguir todos os movimentos desta. Sem dúvida, é do grupo que eles extraem sua força; porém, uma vez que esta é organizada, ela se torna autônoma e torna-os capazes de uma atividade pessoal. Assim, acha-se aberta uma fonte de iniciativa que até então não existia. A partir de então, há alguém que pode produzir algo de novo e, até, em certa medida, subtrair-se aos usos coletivos. O equilíbrio está rompido” (DURKHEIM, 1893/2004, p. 181).

23 “Essa é uma outra característica das sociedades democráticas. Elas são mais maleáveis, mais flexíveis, e devem esse privilégio ao fato de a consciência governamental ter se ampliado passando a abranger cada vez mais objetos” (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 118).

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Recebido para publicação em janeiro/2014. Aceito em maio/2014.

RESUMONeste artigo, faço revisão de alguns dos conceitos aciona-

dos por Durkheim em vista de um postulado ético-moral que atravessa as diferentes fases de sua obra: este postulado é o do valor moral da civilização, expresso na dicotomia entre natureza e sociedade. A partir disso, revisei o problema sociológico da anomia e o de sua distinção teórica em relação ao do egoísmo. Em seguida, mostro de que modo as determinações naturais e as figuras simbólicas do irracional aparecem na compreensão histórica e sociológica de Durkheim. Fiz isso através da análise de três categorias de forças históricas: (1) forças histórico-na-turais de individuação, (2) forças históricas de tipo interacional e (3) a ação racional do Estado como sujeito social autônomo e privilegiado. Concluo mostrando de que modo, em vista do postulado ético-moral de prevalência da sociedade sobre a natureza, a democracia se apresenta para ele como o sentido histórico da civilização.

ABStRACtIn the present article, I intend to revise some of the

concepts used by Durkheim regarding an ethical and moral postulate that permeates different stages of his work: this pos-tulate refers to the moral value of civilization, expressed on the dichotomy between nature and society. From this starting point, I revise the sociological problem of anomie and its distinction to that of egoism. Furthermore, it will be demonstrated the way by which natural determinations and the simbolic figures of the irracional appear in his historical-sociological comprehension. That will be done through the analysis of three categories of historical forces: (1) natural-historical forces of individuation, (2) historical forces of interaction, and (3) the rational action of the State as an autonomous and privileged social subject. I conclude demonstrating how, by the prism of the ethical-moral postulate of prevalence of society above nature, democracy is perceived by him as the historical purpose of civilization.

Palavras-chave: Durkheim, ética,

natureza, sociedade.

Keywords:Durkheim, ethics,

nature, society.

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As barracas de praia e a “civilização” do lazer: espaço urbano, poder e sociabilidade na Praia do Futuro

wellington Ricardo Nogueira MacielDoutor em sociologia pela Universidade Federal do Ceará/Professor substituto de sociologia da UFC e da Faculdade RATIO/Fortaleza-Ce. Autor do livro O aeroporto e a cidade: usos e significados do espaço urbano na Fortaleza turística. Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará, 2010.Endereço eletrônico: [email protected] .

INtRODUçãO A localização de grande número de barracas de praia (espécies de bares, restaurantes e casas de show à beira-mar) na Praia do Futuro1 e a maneira como seu limite é demarcado são aspectos importantes para compreender o lugar que esses espaços ocupam atualmente na dinâmica urbana de Fortaleza. Por um lado, sabe-se que ali é o lugar do lazer praiano mais divulgado e utilizado na Cidade. Por outro, esse lazer passou por uma diferenciação dos

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seus usos que resulta num fenômeno sociológico fundamental: a associação de sentido mais comum entre praia e barraca. A concentração e contiguidade de pontos de lazer num mesmo lugar lembra a ideia de mancha (MAGNANI, 2008). A “mancha de lazer” da Praia do Futuro compreende um conjunto de estabelecimentos comerciais que concorrem para marcar essa região, com a reunião de alguns elementos espaciais demarcadores, capazes de lhe conferir um “lugar próprio” (CERTEAU, 2003) no contexto de Fortaleza.

No que diz respeito ao entendimento do conjunto de barracas de praia como um tipo de “mancha de lazer”, alguns de seus traços singulares merecem ser assinalados. É lá onde se reúnem as barracas de praia mais representativas e procuradas do gênero. Seus elementos arquitetônicos e de inovação de serviços ocupam hoje lugar privilegiado nas matérias jor-nalísticas e nos guias de praia2. Além disso, os símbolos que elas mobilizam são o aspecto mais eficiente de estabelecimento e sedimentação dos seus usos os quais não comportam ambiguidades. Sabe-se exatamente de que barraca se trata, quem as frequenta, as regras que as presidem, o que se pode ou não fazer no seu interior.

Atribuir às barracas de praia a qualidade de espaços urbanos centrais do lazer de Fortaleza significa destacar dois traços fundamentais: os socio-espaciais e simbólicos de organização do lazer praiano. O presente artigo se propõe a alcançar esse objetivo. O questionamento que o orienta é este: quais são as características dessas barracas-complexos, estruturas mais consistentes, que passaram a representar, sob a óptica da Associação dos Empresários da Praia do Futuro-AEPF, melhorias nas instalações e na prestação dos serviços associados ao lazer praiano? Como essas mudanças foram operadas por meio do acúmulo desigual de propriedades materiais e simbólicas?

Do ponto de vista dos estudos urbanos, não são poucos os trabalhos voltados para processos sociais de redefinição e marcação de lugares du-rante as práticas de lazer (BAUMAN, 2009, 2008b, 1999; FEATERSTHONE, 2007, 2001, 1997; CANCLINI, 2008, 2003; CERTEAU, 2003; ZUKIN, 2000). A temática central desses estudos é o lugar ocupado pelo lazer no consumo dos chamados bens simbólicos nas experiências das divisões sociais de hoje. A grande variedade de bens produzida e mobilizada na sociedade contem-porânea, associada ao deslocamento dos conflitos do “mundo da produção” às práticas de consumo, consiste noutro aspecto ressaltado.

Por conta da nova centralidade urbana representada atualmente pelos espaços urbanos de usos liminares (ZUKIN, 2000), o tema do lazer aufere destaque nas pesquisas acadêmicas em ciências sociais, não só em razão da sua importância socioeconômica e cultural para as cidades contemporâneas,

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mas também e principalmente pelo fato de estar associado, em grande parte, à emergência da chamada sociedade de consumo e dos aspectos políticos dos desafios ao planejamento dos usos turísticos do litoral.

DA PRAIA à BARRACA / DA BARRACA à PRAIA

Em relação à Praia do Futuro, foram várias as tentativas de planejamento dos usos do lazer organizados pelas barracas de praia. Cabe lembrá-las: projeto turístico Atlântico Sul (1985), durante a gestão municipal de César Cals Neto (1983-1985), interrompida por falta de verbas; Operação Praia do Futuro (1987), posta em execução na administração de Maria Luiza Fon-tenele (1986-1989). Também foi interrompida. Operação Praia do Futuro (1988), intervenção proposta por barraqueiros, Ministério Público Federal, Procuradoria Geral do Estado, Delegacia do Patrimônio da União e Prefeitura Municipal de Fortaleza. Apenas 1.600m de faixa de praia foram ordenados; gestão do prefeito Ciro Gomes (1989), continuação do ordenamento da faixa de praia da gestão anterior. Interrompida em 1990; gestão do prefeito Juraci Magalhães (1990-1992). O projeto foi paralisado por apresentar problemas ambientais (1992). Na segunda gestão de Juraci (1997-2000), foi dado início às obras do calçadão, concluídas em 2000; e por fim o projeto Esta praia tem Futuro (1999), um conjunto de ações realizado pela AEPF e Secretaria de Turismo do Estado do Ceará-SETUR.

À revelia ou em sintonia com essas tentativas de planejamento, algu-mas barracas passaram, nas últimas décadas, por uma diferenciação que tem resultado na redefinição do sentido jurídico comumente atribuído ao que se entende por praia (“bem público de uso comum do povo”, “espaço público”). Tal redefinição semântica é realizada mais intensamente nas barracas vincu-ladas à Associação dos Empresários da Praia do Futuro (AEPF), denominadas aqui de barracas-complexo. Estas, comparadas às barracas-artesanais da “praia velha” – sua principal contraposição – delas se diferenciam, tanto do ponto de vista arquitetônico quanto no que se refere aos traços de estilização estética, aspectos valorizados atualmente pelas “cidades mercadorias” e pelo city marketing (HARVEY, 2004, ARANTES, 2000).

Na Praia do Futuro “nova”, que tem início no trecho entre a Praça 31 de Março e a Rua Renato Braga, estão os complexos turísticos maiores e mais caros representados pelas barracas-complexo temáticas, mais sofisticadas (Chico do Caranguejo, Itapariká, CrocoBeach, Marulhos, Vira Verão, Vila Galé, Coco Beach e América do Sol), e que compõem espaços restritos a frequentadores dispostos a consumir os serviços diferenciados ali oferecidos.

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Cabe fazer referência ao papel exercido pelos barraqueiros que passaram a ser reconhecidos, desde a implantação do projeto turístico Esta praia tem Futuro, em 1999, como empresários. Diferentemente dos barraqueiros da “praia velha”, com posse de menor capital econômico, cultural e simbólico, aqueles empresários passaram a emprestar à barraca de praia a qualidade de “paisagem” (ZUKIN, 2000), incitando, assim, a ambiguidade típica de um espaço urbano liminar. É possível também encontrar nas dependências dos principais complexos de barracas a “citação cultural” de lugares distantes, associadas ao que Featherstone (2007; 2001; 1997), na esteira das reflexões de Baudrillard (1991), chamou de “espaço simulacional”.

A função assumida por esses empresários assemelha-se àquela que os chamados “novos intermediários culturais” incorporaram no contexto das mudanças da estrutura social nos Estados Unidos na década de 1960. Aqueles “jovens profissionais urbanos”, como foram chamados, reuniam diversos tipos de “animadores culturais” provenientes da participação em atividades de jornalismo, artes plásticas, marketing, publicidade, entre outras.

De modo geral, os “intermediários” dedicam-se à oferta de bens e serviços simbólicos bastante valorizados na cidade contemporânea, sobretudo para o consumo distinto e seleto de turistas e setores sociais que, a despeito do lugar, tendem a apresentar gostos e práticas culturais semelhantes. His-toricamente, tais profissionais foram recrutados nos setores de classe média diante da crise econômica que abalou a sociedade norte-americana durante as transformações associadas à chamada “acumulação flexível”, atingindo o “mundo da produção”. O “consumo cultural” revelou-se estratégico para reverter esse quadro e passou a ocupar, ao lado da “produção”, importante lugar na reprodução do capital (HARVEY, 2005; 2004).

Pode-se dizer que o papel dos empresários associados à AEPF na sedimentação da divisão entre “praia nova” e “praia velha” incorpora al-gumas práticas desses “intermediários”. É o caso de recursos simbólicos utilizados nas suas barracas que servem de ornamentação e obstáculos arquitetônicos (cercas, muros, cordas, tapumes, instalações) com efeitos de demarcação de lugares (LEITE, 2001; ARANTES NETO, 2000) capazes de reforçar fronteiras e distinções na Praia.

Para ilustrar esse aspecto de expansão e diferenciação das barracas de praia, é oportuno o recurso à trajetória de um dos “intermediários” do lazer praiano na sedimentação de novos usos do litoral de Fortaleza. O relato de “Seu” Marinho, proprietário da barraca Marinho’s, na “praia nova”, é ideal típico da transformação do barraqueiro em empresário, além de mostrar elementos da dinâmica de movimentos que as barracas passaram a emprestar

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à configuração do referido lazer. A diferenciação em relação aos restaurantes foi o primeiro traço a ser levado em conta para a demarcação do espaço das barracas. Nas palavras do entrevistado:

A Praia do Futuro... ali no antigo Chez Pierre... ali é o começo da Praia do Futuro velha e ela vinha até o Casarão. Pra cá não tinha nada. Era só mato. Isso nos anos 60. Eu ainda não tava na praia [Grifo meu], mas era isso aí (...) Na Praia do Futuro velha tinha os restaurantes e as barracas deles lá. Tinha o Bola Branca, tinha o Balanço do Mar, o Bariloche, o Ruínas, o Mandacaru, o Bacaninha. Aí o último que tinha era o Albatroz, onde é o Eudinho. É um restaurante todo de madeira. Muito chique (...). Hoje é ocupado por uma barraca. A barraca dele é a Barcelona, era como se fosse hoje a Croco Beach. Era top de linha. Era toda feita de madeira. Ela colocou lonas de listras, com varanda, rede... Isso era coisa de outro mundo porque na verdade as barracas eram todas de saco de açúcar. Todas as barracas (...). Isso na Praia toda. Surgem a Barcelona e o Kabuletê, que hoje é o Rebu. Então, são barracas de madeira arrumadinha. Elas se diferenciavam das outras. Naquele tempo, as barracas não podiam ficar na praia não. Você armava hoje e no final do dia desmontava e ia pro outro lado da rua. A gente pagava as pessoas que moravam do outro lado da rua para guardar nossas barracas. Tinha um depósito. A gente guardava as mesas, as cadeiras e as varas, que eram curtas. Tudo muito pouco. No outro dia, na segunda-feira, vinha a Capitania dos Portos...Nessa época não tinha o Patrimônio da União não... Recolhia tudo. Quem ficasse na praia perdia a barraca. No dia seguinte, tudo de novo: montava a barraca e depois tirava. Isso já na praia, na areia. Do outro lado tinha os restaurantes. Tinha restaurante muito famoso. Esse Balanço do Mar... Vinha muita gente famosa. Eu tinha mais ou menos uns quinze anos.3

A classificação como barraca ou restaurante, por outro lado, dependia de alguns aspectos fundamentais, como tipos de materiais de construção utilizados e a localização desses equipamentos. Como diz “Seu” Marinho,

É o seguinte. Meu pai começou primeiro que eu, lá. O nome da barraca dele era Minibar e a do meu irmão era Edílson praia bar, que hoje ainda existe. Ainda tá lá. Ele ficou lá. Eu vim embora pra cá. Lá eu não tinha barraca. Eu tava no meio, mas não tinha barraca. Então começou. A barraca que começava a Praia velha se chamava Chez Pierre. Era uma barraca muito grande. Tinha música ao vivo e tudo. Era a única que era de alvenaria. Toda pronta. E era a única fixa, que ficava, as outras não. Ela não era estilo da gente. Porque ela, como era uma

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coisa muito antiga, ela tinha uma coisa diferente (...). Aí começou com o Chez Pierre. Ele ficava todo dia e a gente tinha que botar e tirar, botar e tirar...Tinha um monte de barraca que eu não lembro o nome agora. Eu sei de todas, mas não lembro agora (...). Aqui na parte nova existia apenas uma barraca que se chamava Saporiu. Ela é a barraca mais velha da Praia do Futuro. O Chez Pierre era barraca, mas a gente já considerava restaurante por conta de tá na praia, mas era terreno próprio. Tava dentro da praia e não era barraca. A gente tinha que recolher o material e ela não. Agora aqui, de barraca, tinha a Saporiu, né? Ela ficava ali por trás onde hoje está a América do Sol. Do outro lado, tinha um restaurante antigo que se chamava Karlu’x. Acabou. A Saporiu era sozinha. Do outro lado, era só restaurante. Vinha gente famosa. Jogador de futebol... Rivelino, o Pelé... Tinha cantores famosos... Agepê, Pinduca, Alípio Martins...

O fechamento dos primeiros restaurantes na Praia é apontado por ele como responsável pela nova posição que as barracas ocuparam nas dinâmicas do lazer praiano. Conforme o entrevistado, a transformação de restaurante em barraca obedece a dinâmica fixo/móvel:

(...) Teve um período... muito menino de ‘menor’ saindo no jornal freqüentando esses restaurantes. Aí o Juizado de Menores fechou tudo. Até hoje. Nunca mais abriu nenhum lá na praia velha. Aí as barracas de cá começaram a engordar o pescoço, a crescer, a fazer coisa melhor, porque acabou o lado de lá. Antes era restaurantes e as barracas. As barracas não tinham tanto... eram móveis, não tinham tanta bagagem como tem hoje. Aí o Kabuletê caiu na praia e virou Rebu. Existe lá em cima. Ele era restaurante, aí veio pra praia e virou a barraca Rebu. Chegou a ser barraca Kabuletê ainda. Começou como barraca. Depois que ficou fixo virou restaurante. Depois voltou como barraca Rebu. E até hoje existe... Rebu.

Dentro dessa dinâmica restaurante/barraca, barraca/restaurante, e fixo/móvel, “Seu” Marinho revela o momento em que “caiu na praia” como barraqueiro:

Eu, no caso, quando cai na praia...Eu já tenho uma faixa de trinta e cinco anos na praia. Quando em entrei, eu entrei menor. O meu pai tinha um barzinho do lado de lá, que se chamava Minibar. Ele já tinha acabado com a barraca, entendeu? Aí eu comprei uma barraca escondida dele. Eu ajudava meu pai no bar, que era também restaurante, entendeu? (...). A minha barraca tinha só quatro mesas. Só que eu não podia ir pra lá porque era de menor. Eu contratei

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um cara pra tomar conta (...). E era daquele jeito tirando e botando...a barraca. Todo mundo que tava ali era que nem ambulante. Ele num bota também uma barraquinha? Do mesmo jeito. Eu sou filho dum comerciante. Ele começou como um ambulante. Colocou uma mesinha e aí foi aumentando. Eu tinha quatro mesas, já era uma barraca razoável. A maior barraca tinha vinte me-sas. Era uma Croco Beach da vida, entendeu? (...). Eu fui um dos primeiros a colocar palhoça na barraca. Aí eu juntei um dinheiro e comprei umas mesas, bandejas, garçon. Foi uma revolução na praia. Com pouco tempo vinha todo mundo. Descobriram que tinha uma barraquinha legal na praia. Peguei uma clientela fora de sério.

Segundo “Seu” Marinho, pelo fato de estar se diferenciando das bar-racas de lona ou à base de saco de açúcar, que constituíam a maioria, passou a enfrentar conflitos em torno dos usos que estava incentivando:

(...) Aí começou a dar problema pros vizinhos. Os outros começaram a cons-truir também. A gente ficava por teimosia. A gente começou a crescer. A gente começou a ter mais coisa. As barracas começaram a inchar. A gente descobriu que a Capitania dos Portos só tinha dois caminhões. Não dava para colocar todas as barracas. As que não eram tiradas ficavam lá mesmo. E foi ficando e crescendo. Aí começou a cansar eles, né? Eu, o meu irmão e o Kabuletê começou a fazer uma barraca legal, a crescer. Aí começou a aparecer o cara com uma batinha, a aparecer uma clientela legal, de alto nível. E aí os outros começaram a reclamar que a gente tava crescendo demais. Ficaram pra trás. Me denunciaram pra Capitania, entendeu? Porque eu tava crescendo demais, entendeu? Era pra eles me acompanhar, né? Pra ficar tudo bonitinho também. Eles diziam que eu tava botando barraca pra barão e queria matar os pobres. Aí eu criei um outro nível. Comecei a pegar amizade com gente grande. Comecei a ser conhecido. Mas resolveram derrubar minha barraca (...). Eu fiz isso pra valorizar a praia. Pra mostrar que a gente é organizado. Com nenhuma intenção de passar por cima de ninguém (...) Na época os restaurantes vinham pra cá pra ver que cara é esse organizado que tá na praia. Vinha o pessoal do Peixado, Panela de Barro e Toca do Coelho. Minha barraca era referência. O cara que veio da Capitania pra derrubar a barraca me deu uma dica: ele pediu que eu criasse uma associação pra dar força, pra gente brigar por isso aqui, porque do jeito que tava as barracas não podiam ficar, entendeu?

A criação de uma Associação tinha por objetivo reunir os barraqueiros em torno da defesa de sua permanência. Apesar dessa intenção, apenas aque-

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les que estavam se diferenciando dos demais optaram por assim proceder. Esse fato resultou, gradualmente, numa divisão da Praia. Uma configuração de barraqueiros ao redor da Associação foi se estabelecendo. A “praia nova”, também chamada de “praia das barracas urbanizadas”, de “calçadão” ou ainda “praia do meio”, já que se encontrava entre a “praia velha” e a praia do Caça e Pesca, passava a ser vista como promissora entre os barraqueiros associados. Algumas conquistas já haviam sido realizadas por eles. Embora pudessem representar ônus para os barraqueiros, sinalizavam a sua legali-zação perante o poder público. Segundo o entrevistado,

(...) Aqui surgiu outra praia que é a praia das barracas urbanizadas. Aqui é onde foi feito a urbanização. Foi feito o calçadão. O calçadão não tinha documento da União, não. Foi coisa da Prefeitura. Quem conseguiu esse documento da União foram as barracas que começaram primeiro. Com a associação as bar-racas conseguiram a RIP. O Patrimônio não modificou nada. Ele considerava o que já estava, a área existente. Inclusive se você quisesse colocar uma área maior, podia, só que ia pagar mais caro. Aí essa parte do meio aqui...Apare-ceu o prefeito César Neto, né? Ele fez a urbanização da [rua] Renato Braga, do antigo Casarão, perto da barraca Porto Beach. O Casarão não faz parte da velha. O calçadão vem de lá até a barraca América do Sol. Aí nesse meio foi feito barracas pequenininhas pra venda de coco. Só pra coco (...) Aí só podia colocar vinte mesas e era dentro dum buraco. Era uma barraca enterrada, entendeu? Isso foi com a Prefeitura.

A urbanização parecia, aos olhos de “Seu” Marinho, concretizar a promessa da “praia do futuro”. A opção de se deslocar para esse “meio” que despontava era alimentada por essa imagem:

Eu parti pra ela. Eu sai da praia velha pra ir pra urbanização. Porque eu senti que era o futuro, sabe? Eu tava numa barraca grande lá. Depois que fizeram esse calçadão pra cá essa praia aqui deu uma crescida. E a gente ficou mais velho lá, ficou esquecida. Aí eu senti que o futuro era aqui. O que é que fiz? Eu troquei a minha barraca, que não era urbanizada por uma urbanizada. Lá na velha, eu não cheguei a ter RIP porque na hora que a gente criou a Associação e ela começou a andar foi no momento que chegou o calçadão. Aí virou um problema. Eu tinha uma barraca minha, sem RIP e eu parti, pensando no futuro (...). Eu fui ser permissionário. Aí, foi uma coisa bem bolada. Surgiu o calçadão novo. Todo mundo com aquela sensação. Só que eu deixei de ter uma coisa minha pra ser permissionário. Porque nessa barraca de permis-

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sionário quem manda é a Prefeitura. É sua, mas até na cor da roupa era a Prefeitura quem mandava. Na época, era uma bata verde com o nome Emlurb. A barraca não podia ter nome. Era barraca ‘A”, ‘B”... Aí ficou o calçadão da Praia do Futuro, a praia velha e o Caça e Pesca. Aqui era chamado o calçadão das arapucas porque era dentro de um buraco, pequena (...). Aí eu vim de lá porque começou a aparecer favela e aqui começou a aparecer mansão nas dunas. Como eu já tinha uma visão, eu disse: ‘a tendência é isso aqui encher de favela. O negócio é pra lá.’ Aí tinha o Caça e Pesca e o ‘meio’. Eu optei pelo calçadão. O calçadão naquele tempo era coisa de outro mundo. E realmente deu certo. Eu passei uma fase ruim, mas deu certo porque eu tô no melhor lugar da praia hoje. O lugar mais valorizado da praia é o ‘meio’.

Ao se referir à “praia nova”, o empresário fornece valiosas pistas para o entendimento das dinâmicas entre essas “praias”. Enquanto a “praia do meio” ou do “calçadão” parecia ter uma referência espacial mais ou menos circunscrita, “a praia urbanizada”, a “praia nova”, era uma forma de classificar barracas que possuíam entre si as características de ter crescido e possuir uma estrutura diferenciada. Nesse sentido, até trechos da “praia” do Caça e Pesca já despontavam como “praia nova”.

A saída apontada pelo entrevistado para reverter o abandono da “praia do meio” era fazer com que essas barracas urbanizadas crescessem. A urbanização havia construído cerca de 22 “arapucas”, todas sob controle da Prefeitura Municipal de Fortaleza, em termos de expansão. O lado bom, apontado por ele, desse cenário estava no fato de, a essa altura, a Prefeitura já haver deixado de realizar fiscalização e renovar os contratos anuais dos permissionários. Isso facilitou a venda das “arapucas”, possibilitando com que essa “praia” voltasse a crescer:

(...) A gente se perguntava: quem é que vai comprar uma permissão de uso? Só tinha uma saída (...) Se colocar um cara grande, um grande arrasta o outro, entendeu? Aí um dia chegou o Argemiro [proprietário da barraca CrocoBeach]. Na época [no ano de 2000] a barraca era uma arapuca. Só que a dele era um arapuca diferente. Todas essas barracas grande daqui hoje foram arapucas. Tinha dois tipos. Tinha a arapuca e tinha a ‘bandinha’. Aquela barraca atual dele, da CrocoBeach, é lugar de cinco ‘bandinha’ (...). A gente precisava de um cara que botasse grana e comprasse a briga pra chamar outras pessoas. Então, era eu, o Saturnino, o Valdinei e o Aldair. A gente era diferenciado. A gente começou a valorizar essa área aqui. De que forma? A gente já come-çou a colocar a faixa. Esses quatro barraqueiros...a gente criou uma maneira

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diferente de levantar nossa área. Como não deu certo a urbanização...deu certo, mas ninguém ia segurar turista com arapuca. Esses barraqueiros não pensam em crescer. Fui eu que convenci o Argemiro a comprar nessa ‘praia’. Eu precisava de um doido pra comprar uma barraca. Porque você sabe, aqui não podia fazer nada, era controlado. Tinha que ser um doido porque o cara que tem dinheiro ele só pensa em crescer. Aqui não tinha chance pra gente crescer. Aí nasceu a CrocoBeach, na praia. Aí começou a mudar tudo. Com a mudança na barraca dele começou a atrair o público que a gente queria. A Prefeitura abandonou. A gente começou a melhorar. Tudo começou com a minha barraca. Com a CrocoBeach apareceu a Vira Verão dentro dessa área ainda que era das arapucas. Depois da Vira Verão, a Marulho cresceu. Várias barracas mudaram depois disso. De repente nós transformamos uma área que tava ruim na melhor. Hoje é a melhor área de barraca de praia do Brasil.

Esse aspecto da dinâmica das barracas no início da ocupação da Praia é importante por assinalar o contraste nas redes de interdependência entre as barracas que estavam crescendo e os “excedentes”. Se, como relata “Seu” Marinho, os restaurantes eram fixos e os barraqueiros pioneiros eram mó-veis, atualmente, com a transformação destes em empresários, passaram a se estabelecer como fixos (barracas-complexo) e os vendedores ambulantes a assumirem a posição de móveis, revelando disputas e conflitos em torno dos usos e limites da Praia. Por outro lado, a dinâmica entre as divisões da Praia do Futuro narrada e vivenciada por “Seu” Marinho, a partir dos seus movimentos, revela a forma como a urbanização da Praia foi produzindo um conjunto de barracas distintas em relação às demais. Isso favoreceu certa posição de poder daqueles barraqueiros associados, que, gradativamente, assumiam funções fundamentais como empresários nas dinâmicas do lazer da Praia. Aos poucos, entre essas barracas urbanizadas, algumas foram se autonomizando em relação às demais.

DIlEMAS DA URBANIzAçãO DA PRAIA DO FUtURO

O avanço e o crescimento físico das barracas ocorreram paralelamente ao acúmulo de propostas de urbanização para a Praia. Um desses marcos sucedeu a propósito da construção da Praça 31 de Março. Edificada durante a gestão municipal do prefeito Evandro Ayres de Moura (1975-1978), ela fora apresentada como o principal espaço aberto para uso do lazer praiano, sendo apontadas como principais qualidades “equipamentos de lazer, como restaurantes, lanchonetes, playgrounds e uma área para camping”, para

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dar “condições de lazer” aos seus usuários, até então inéditas em espaços abertos na Praia.

A proposta de construção desta praça incorporava, além de barracas, “campo de pelada, parque para crianças, local para pic-nics e sombrinhas de praia”. Esses dados demonstram a tensão que se tornará cada vez mais presente nos usos da Praia: aquela que envolve o aumento vertiginoso de barracas e sua expansão para áreas consideradas públicas e as propostas de controle do lazer praiano por parte do poder público.4

É possível inferir, a partir daí, que o lazer da Praia do Futuro estava se estruturando em função de interesses que norteavam discussões sobre a demarcação dos seus limites físicos e simbólicos, embora já se constatasse certa confusão entre os “territórios”. Apesar desses limites ainda não serem questionados como problemas, era dada como fato notório a presença de contradições entre os usos de sua faixa de praia (jornal O Povo, de 07 de março de 1979).

Um aspecto fundamental que perpassa as primeiras medidas que buscavam conter o crescimento das barracas diz respeito à espacialização das propostas de urbanização. Ou seja, apesar de tais propostas, em grande parte, terem como pano de fundo toda a extensão da Praia, apenas alguns trechos foram recebendo, ao longo dos anos, intervenções com vistas à sua organização como espaço de lazer. Os órgãos fiscalizadores tiveram papel importante nas dinâmicas de ocupação e usos efetuados pelas barracas.

A seletividade das intervenções com vistas à urbanização é demons-trada pela construção da Praça 31 de Março e das obras de prolongamento da Avenida Santos Dumont – planejada para ser a principal via de acesso à Praia e em cuja extremidade se instalou a Praça –, ambas símbolos da “praia do presente”. Além de “Seu” Marinho, outros barraqueiros me relataram nas entrevistas e em conversas informais que tais intervenções favoreceram uma espécie de migração, para aquela área da Praia, de barraqueiros mais antigos já instalados em outras áreas – como no trecho Chez Pierre-Clube dos Engenheiros, nas imediações do bairro Serviluz – uma vez que, em virtude da crescente atenção dada pelo Poder Público, a área da Praça passou a ser vista como de expansão urbana.

A matéria “Urbanização da Praia do Futuro vai começar”, veiculada pelo jornal O povo, em 02 de janeiro de 1984, anunciava “a urbanização do trecho que vai da Avenida Perimetral à Praça 31 de Março”, compreendendo 2.680 metros. Afirmava-se que esse modelo de urbanização seguia o adotado para a Avenida Beira-Mar; ou seja, no lugar de barracas isoladas, seriam construídos conjuntos padronizados, reunindo seis barracas cada. E acrescentava, ainda,

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que o número total dependeria de quantos barraqueiros se apresentassem para arrendá-las. A prioridade no arrendamento seria dada aos “barraqueiros que já trabalham naquela parte da orla marítima de Fortaleza”.

Ficaria a cargo da Empresa de Urbanização de Fortaleza (EMURF) – mais tarde, Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização (EMLURB) – a realização e fiscalização das obras. Uma das primeiras medidas adotadas por esse órgão foi a cobrança, aos permissionários das barracas, de uma taxa cujo valor era mais alto do que aquele praticado na Beira-Mar. A taxa tinha por função, segundo palavras do presidente do órgão citadas na matéria, complementar as obras realizadas pela Prefeitura no trecho.

Analisamos, agora, outros elementos referenciados por reforçarem argumentos aqui levantados acerca das interdependências e coerções que foram circunscrevendo as relações entre Poder Público e barraqueiros dos trechos que passaram a ser objeto de intervenções. Merece destaque o fato de a taxa cobrada àqueles barraqueiros que permaneceram no trecho da Praça ser a mais alta da Cidade, uma espécie de moeda de troca. O terreno perten-cia à própria Prefeitura Municipal, não havendo, portanto, necessidade de desapropriações. Ressalte-se também a obra de urbanização era apresentada como a mais cara da gestão do prefeito Evandro Ayres de Moura. O arquiteto contratado foi o mesmo que realizou a urbanização da Avenida Beira-Mar. Dentre as principais mudanças, estava a construção de quadras de esportes, bancos de concreto, iluminação pública, posto médico e banheiros públicos.

Cabe lembrar que, alguns anos antes da proposta de urbanização de 1984, outras medidas foram cogitadas para a Praia, como as de junho e dezembro de 1981, na gestão municipal de Lúcio Alcântara (1979-1982), alegando-se, porém, falta de recursos para realizá-las. Lê-se ainda, na matéria jornalística de 02/01/1984, que a proposta era digna de aplausos por favorecer a “higienização daquele recanto da orla marítima, principalmente as áreas utilizadas para o lazer de amplas camadas da população”, sendo as principais as de “classe média, sem maiores opções para a necessária higiene mental”.

UMA “PRAIA SEM FUtURO”: A CONStRUçãO DA “PRAIA DO PRESENtE” E “DO CAOS URBANO”

Durante toda a década de 1980, o crescimento do número de barracas na Praia resultou em várias medidas visando ao seu controle ou retirada. A EMLURB assumiu a função de fiscalizadora desse tipo de uso da praia. As primeiras medidas adotadas se resumiam à retirada das estruturas de barracas, utilizando-se, inclusive, da força. Logo em seguida, a intervenção

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se estendeu à proposta de estabelecimento de convênios e concessões de usos a alguns barraqueiros.

Como a delimitação das áreas de praia no estado e restante do País ainda não havia sido estabelecida do ponto de vista jurídico – o que só ocor-reu em 1989, com a Lei de Gerenciamento Costeiro –, em Fortaleza, coube à EMLURB estabelecer parâmetros para o disciplinamento dos usos das suas praias. Foi na gestão da prefeita Maria Luiza Fontenele (1986-1989), durante sua “administração popular”, que se intensificaram tais medidas.

O trecho da Praça 31 de Março – também conhecido como “praia do meio”, “praia do calçadão” ou “praia nova” – que havia recebido barracas padronizadas, já reunia também “barracas e cadeiras excedentes”. Para executar a redução do número de barracas desse trecho, foi criada uma grande equipe, composta de: quatro coordenadores, 20 fiscais, 72 garis, um operador de pá mecânica e um auxiliar. Foram utilizadas ainda “10 caçambas, quatro carros lastro, dez chibancas e dez pés de bode”. A Polícia Federal, a Polícia Militar e o Batalhão de Polícia de Trânsito atuaram como “grupo de apoio”. Uma consulta a cerca de 382 pessoas – supostamente “usuárias de toda a faixa já urbanizada” – revelou insatisfação destas com o “estado de conservação dos equipamentos e serviços existentes na praia”. (jornal Diário do Nordeste, de 19/10/87).

No trecho inicial previsto pelo projeto de urbanização, havia cerca de 96 barracas, distribuídas entre apenas 33 proprietários. Cada barraqueiro “trabalhava numa matriz, além de duas ou três filiais”. “A nossa intenção é deixar o barraqueiro em apenas uma barraca”, afirmava o presidente da EMLURB. De toda forma, os barraqueiros permaneceriam, até o término do projeto, nas barracas existentes até a posterior “delimitação do [novo] espaço de trabalho”. Era prevista a construção de 28 barracas no lugar das 96, sendo que aquelas, pelo Projeto, seriam “ampliadas, duplicando o tamanho das antigas barracas-padrão”.

Em toda a extensão da Praia – isto é, do antigo restaurante e barraca Chez Pierre ao Clube do Caça e Pesca –, funcionavam 336 barracas, sob o comando de 155 barraqueiros, dos quais apenas 13 possuíam autorização de uso do cada vez mais atuante Serviço do Patrimônio da União (jornal Diário do Nordeste, de 20/10/87), órgão que passou a concentrar as funções de fiscalização e controle dos usos da praia até então a cargo da EMLURB.

Na negociação de novos critérios alusivos às regras de funcionamento das barracas e à ocupação das áreas, no trecho, a Associação dos barraqueiros ficou encarregada de definir juntamente com a empresa municipal, os novos limites. Àquela altura, os barraqueiros do trecho da Praça 31 de Março passaram

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a apresentar contrapropostas de urbanização, tentando estabelecer distinções entre seus estabelecimentos e as barracas-padrão instaladas pela Prefeitura.

Em 1989 – mesmo ano de criação da Lei de Gerenciamento Costeiro –, a difusão de imagem associando barracas de Praia e lugar desordenado e caótico parecia se consolidar junto à opinião pública. Nessa ocasião, por conta do crescente número de barracas, foram intensificadas tais representações, em particular a de “praia do caos urbano”, e o avanço das barracas passou a resultar em mais iniciativas dos barraqueiros em torno da elaboração de propostas alternativas de ordenamento da Praia.

Matéria divulgada no jornal O Povo de 14/05/1989, intitulada “Caos urbano ameaça o bairro do futuro”, revelava que o próprio “projeto alter-nativo” dos barraqueiros estava ensejando conflitos de usos e definições dos espaços entre os “estabelecidos” na Associação e os barraqueiros “excedentes”, outsiders (ELIAS, 2000). Lê-se no periódico:

O bairro do futuro, sonho de muitos e da classe imobiliária que investiu na praia com esse nome como uma nova fonte de renda, ainda é obscuro e distante. Mesmo depois de iniciado o projeto de urbanização envolvendo a Procuradoria Geral da República, a Prefeitura de Fortaleza, Governo do Estado e Associação dos Barraqueiros, que desenha um novo contorno para as barracas à beira-mar, o local continua sendo alvo de grupos de sem-teto. Aleatoriamente, eles ar-mam as suas barracas tanto na orla marítima, com fins comerciais – venda de bebidas, peixes e caranguejos, somando já um total de 400 – de acordo com os dados da Procuradoria Geral da República, como fora da faixa de praia, onde os casebres já formam pequenas favelas (...). O projeto que prevê alinhamento das barracas, da Praça 31 de Março ao Clube de Engenharia, que foi idealizado pelos barraqueiros (...). está sendo desrespeitado por eles próprios. As barra-cas continuam, em sua maioria, com grande parte construída em alvenaria, ignorando o projeto que prevê a construção em tijolos apenas para cozinhas e banheiros e a conservação de boa área para a preservação do verde. As cadeiras, que deveriam ficar apenas na faixa sob a barraca de palha, espalham-se sem nenhum alinhamento em grande faixa fora das barracas.

Esses barraqueiros excedentes, situados às margens dos projetos oficiais e alternativos de urbanização do lazer – referidos pela matéria como “barracas”, “eles próprios”, “grupos de sem tetos” e “pequenas favelas”, não possuíam representação junto à associação de barraqueiros, configuração tecida entre os barraqueiros das áreas já urbanizadas, organizada principalmente com base naqueles instalados no trecho da Praça 31 de Março.

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Os barraqueiros associados à ABPF haviam conseguido, na ocasião, ampliar em 10 metros a área de suas barracas, além do espaço previsto no projeto inicial, com o objetivo de pôr mais mesas, cadeiras e empanadas. Eles passariam a contar, a partir de então, com 42m X 55m na dimensão de suas barracas. Para o então presidente da Associação dos Barraqueiros, Raimundo “Quente”, a “regularização” por parte da Prefeitura daria mais segurança a eles, pois poderiam trabalhar “dentro da lei”. Mesmo assim, a medida não agradou a todos os associados à ABPF. Para o proprietário da barraca Itapariká, Fernando Ramos, a ampliação – prevista ainda pelo Presidente da ABPF – representava área ainda menor do que a estabelecida pelos barraqueiros antes da urbanização, não aceitando, portanto, “reduzir o espaço ocupado”.

Os barraqueiros agrupados na AEPF foram construindo posições de poder nos embates anteriores em torno de propostas de urbanização para a Praia. Mais à frente, discorro sobre a centralidade da Associação nas vigentes redefinições de usos e classificações da Praia, ora em consonância com os agentes públicos, ora de forma independente, dando ênfase ao projeto turístico Esta praia tem Futuro. Nesse momento, registraram-se maior autonomia e centralização das medidas e decisões da Associação e dos seus associados no interior da “mancha” do lazer praiano. Em todo caso, apesar de deixar à margem a maioria dos barraqueiros instalados na Praia, o projeto “alternativo” passou a ser incorporado pelos agentes públicos. A legitimidade das novas construções passou a ser disputada principalmente entre esses atores.

O aspecto rude e simples das barracas-artesanais da “praia velha” passou a ser o item mais combatido, quando se buscava justificar o crescimento das barracas-complexo. No próximo segmento, trato da propriedade das barracas de praia e suas transformações de usos. São analisados documentos, relatórios e propostas de organização do lazer praiano por instituições como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), que tem con-tribuído para intensificar, ao longo dos anos, os aspectos de diferenciação, racionalização operacional e econômica de alguns desses estabelecimentos.

AS BARRACAS DA “PRAIA MAIS BADAlADA DA CIDADE”

Em meio a essa dinâmica – abrangendo desde as primeiras barracas-artesanais construídas de forma improvisada, com lona, na década de 1970, às barracas-complexo atuais –, as propriedades dos empresários vinculados à AEPF foram se tornando marcas características de um lazer praiano – re-conhecido dentro e fora da Cidade – e também alvo de conflitos; estes, en-

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volvendo, de um lado, empresários da “praia nova” e, de outro, barraqueiros da “praia velha”, agentes públicos e vendedores ambulantes.

Aos poucos, as posições no interior dessa “mancha de lazer” foram estabelecidas com base no acúmulo desigual de propriedades econômicas e simbólicas, resultando em conflitos de usos, na modificação das estruturas das barracas e no incremento de aspectos de ornamentação, estilização e design, tão valorizados nos espaços típicos do chamado “urbanismo pós-mo-derno” (ARANTES, 2001, 2000b; HARVEY, 2005, 2004). Essas modificações se intensificaram com a internacionalização da Praia do Futuro, desde a vinda de investidores estrangeiros, que passaram a adquirir barracas e outros empreendimentos turísticos, como pousadas e hotéis de luxo.

Não por acaso, os conflitos envolvendo a Secretaria do Patrimônio da União e empresários se intensificaram, sobremaneira, durante o período em que o projeto turístico Esta praia tem Futuro realizou intervenções no lazer organizado pelas barracas, sendo a última delas a implementação do projeto Guardiões da Praia, em 2006, em cujas torres constam as logomarcas da AEPF e da Secretaria de Turismo do Estado do Ceará (SETUR). Por ora, cabe descrever as modificações nas propriedades dos barraqueiros e sua relação com as posições ocupada, interiormente, nas barracas.

O primeiro convênio firmado entre agentes públicos – Procuradoria Geral da República, Prefeitura de Fortaleza, por meio da EMLURB, e Patri-mônio da União – e barraqueiros previa uma série de restrições aos usos da Praia, que iam desde a delimitação do tamanho da área a ser ocupada por parte de cada barraca à quantificação do número de cadeiras e mesas. Um “termo de permissão de uso”, de 12 de fevereiro de 1990, concedido pela EMLURB a uma barraqueira, pode ser tratado como referência para captar algumas dimensões das propriedades, em uso por ocasião das redefinições de espaço das barracas.

Nesse convênio, a praia era considerada “bem de uso municipal”, segundo classificação da Prefeitura de Fortaleza, cabendo à permissionária atender às condições contratuais estabelecidas. Além de questões alusivas à duração do contrato e valores, outras cláusulas impunham os seguintes parâmetros: utilizar quantidade máxima de 35 mesas e 140 cadeiras “dentro do espaço delimitado pela EMLURB”; o objeto do contrato só poderia ser utilizado com fins comerciais; a transferência do uso da barraca deveria ser autorizada antecipadamente pela Empresa Municipal; era vedada qualquer comercialização do espaço publicitário da barraca, por serem as barracas padronizadas. A barraca do referido Termo, por exemplo, era de tipo D, n° 15, da urbanização da Praia do Futuro.

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Essa tentativa de controle da expansão das propriedades das barracas, efetuada pela EMLURB, é um marco significativo no processo de mudanças então ocorrentes, na dinâmica de “integração” e “diferenciação” (ELIAS, 2008; 1994) do seu lazer praiano. Além da AEPF, o SEBRAE ocupou uma função importante no redimensionamento das barracas, mediante o incentivo ao empresariamento dos seus serviços e estruturas, que, diferentemente da Empresa Municipal, propôs seu crescimento físico e econômico.

Um diagnóstico realizado pelo SEBRAE em setembro de 1993, intitulado Pesquisa setor turismo – barracas de praia, fornece dados complementares para o entendimento dessas mudanças. O objetivo do diagnóstico era definir e propor medidas para organizar, do ponto de vista operacional, as barracas de praia de Fortaleza. Ao todo, foram identificadas 574 “unidades de turismo” em toda a orla, incluindo hotéis, pousadas e barracas. Destas últimas, 151 se localizavam na Praia do Futuro, que concentrava 70% do total de barracas de praia da Cidadev.

Para a Empresa, aspectos como seleção do público, distância, competição e infraestrutura de lazer justificam-se com base em uma explicação lógica: sendo mais isolada do que as demais praias – o que remetia à ausência de pouca infraestrutura urbana –, a Praia do Futuro favorecia a sua utilização apenas por segmentos mais seletivos do ponto de vista social e de renda. Essa seletivi-dade era apontada como variável responsável pelas mudanças nas estruturas de barracas da Praia, levando a uma maior concorrência entre barraqueiros.

Até meados da década de 1990, quando essa pesquisa em análise foi realizada, era comum, além da concentração da propriedade de barracas nas mãos de poucos barraqueiros, como visto antes, o emprego de familiares nelas, inclusive muitas das quais servindo também de moradia, denotando a ausência de uma espécie de racionalização dos seus processos produtivos, por meio da divisão entre local de trabalho e de moradia, algo que se inten-sificou com o empresariamento inaugurado pelas barracas-complexos, em cujo processo o SEBRAE cumpriu papel importante.

Em geral, as barracas das praias de Fortaleza possuíam propriedades que justificavam sua classificação, por parte do SEBRAE, como microempre-sas; não poderiam ser designadas como empresas por constituírem “firmas individuais”. Em média, havia três sócios por barraca, todos pertencentes, ou não, à mesma família. Cerca de 73% delas possuíam membros familiares na sua administração. Do total das barracas, 56% empregavam entre 04 e 09 pessoas, enquanto 42% tinham entre 10 e 20 empregados.

A definição do perfil operacional das barracas de praia, por parte do SEBRAE, se insere em um conjunto de mudanças de usos previstos para tais

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estabelecimentos. A divisão mais racional se aplicou também sobre o trabalho e o próprio espaço da barraca, o que intensificou a diferenciação espacial de algumas delas no interior da “mancha de lazer”. Esse aspecto está presente, também, em outros espaços urbanos da Cidade – por exemplo: Maciel (2010), ao tratar do aeroporto de Fortaleza; Bezerra (2009), a respeito da Praia de Iracema, e Gondim (2007), em análise do Centro Cultural Dragão do Mar – e também fora da cidade (ZUKIN, 2000). Nesses “espaços urbanos pós-modernos” predominam a mistura de usos e a estilização dos ambientes.

A ausência de racionalização poderia ser melhor observada, segundo a Empresa, na gestão administrativa das barracas da Praia. Apenas 62% delas tinham a prática de “traçar suas metas com regularidade”, o que se refletia diretamente nos baixos índices de: controle de caixa (57,8% das barracas), fluxo de caixa (51,17%) e controle de despesas (51,1%). Esses aspectos de “ausência de controles formais” constatados eram mais característicos, quando se levava em conta “o porte micro da grande maioria das empresas que ainda se caracteriza como unidade familiar, onde a presença de parentes ocorre em alto percentual”.

Do total de barracas da Praia, 98% dos proprietários “dirigem eles próprios seus negócios há mais de 2 anos”; 52% estão há mais de 6 anos, “o que revela uma estabilidade no ramo”, sendo a propriedade de barracas a “atividade principal” para 87% dos barraqueiros. O tempo de permanência na Praia não era apontado pelo SEBRAE como fator preponderante para o seu “associativismo”. Senão vejamos: apenas 9% estavam registrados no antigo SINDETUR (Sindicato de Empresas de Turismo) e 24% possuíam registro na Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR). Das 151 barracas da Praia do Futuro, apenas 6,67% dos seus proprietários eram filiados à Associação dos Barraqueiros da Praia do Futuro, contra 93,33% de não-associados.

No que diz respeito à oferta de produtos pelas barracas, todas comer-cializavam bebidas alcoólicas, refrigerantes e tira-gostos; 78% trabalhavam com cardápio impresso; 78% serviam suco ou água; 40% contavam com som ambiente; 20% apresentavam som ao vivo e 02% possuíam material para jogos. Esses elementos já constituiriam fatores para diferenciação das barracas da Praia do Futuro, quando comparadas às existentes nas demais praias da Cidade. Ainda de acordo com a pesquisa, examinando-se o interior das barracas da Praia, era notório que aquelas “com maior grau de capita-lização procuram elevar seu nível de desempenho e resultados buscando a oferta de serviços e lazer diferenciados”. Dentre os fatores de diferenciação, constava que apenas 16% delas ofereciam mais de dez variedades de tira-gostos e 07% disponibilizavam mais de 10 tipos diferentes de refeições e bebidas, excluindo-se a cerveja.

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Em toda a extensão das praias de Fortaleza, a pesquisa assinala o seguinte padrão de infraestrutura operacional das barracas: 96% possuíam fogão comum; 91%, instalações elétricas; 80%, instalações hidráulicas; 62%, geladeiras; 58%, freezers; 24%, transporte próprio e 02%, fogão industrial. Esse quadro era apontado como revelador da “fragilidade e precariedade das barracas para uma qualificação para o atendimento turístico”. O fato de todas as barracas não possuírem instalações elétricas e hidráulicas, cerca de 13% delas, significava que ainda estavam em “estágio de total artesanalidade”.

Conforme a pesquisa, por conta desses elementos comparativos de diferenciação das propriedades das barracas, a Praia do Futuro já era respon-sável por atrair certa corrente turística, de maior poder aquisitivo, enquanto as “barracas instaladas nas demais praias, naturalmente, recebem uma outra fatia do mercado, formada por clientes nativos e de menor poder aquisitivo”.

No geral, a avaliação da Empresa acerca do “perfil operacional das barracas de praia” de Fortaleza concluía, em relação à Praia do Futuro, que a maior concentração espacial delas nesta praia se devia ao fato de ali se localizarem “as unidades de melhor categorização e com condições de bem atender ao turista ou visitante da cidade”; que algumas barracas já eram classificadas como “empresas” e apresentavam “alto grau de consolidação de propriedades das instalações e experiência gerencial”. Por outro lado, ainda persistiam alguns traços que a aproximavam das demais praias de Fortaleza, como “baixo nível de ações de natureza coletiva ou associativa” e precariedade das instalações higiênicas.

Em 1995, dois anos após o diagnóstico do SEBRAE, era possível assina-lar outras classificações oficiais similares das barracas de praia de Fortaleza, tomando como parâmetro a presença de aspectos de higiene e limpeza. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMACE), órgão responsável pela chamada balneabilidade das praias do Estado, lançou nesse ano o projeto Praia Limpa, com o intuito de intervir nos trechos de praia mais poluídos.

Duas áreas-piloto foram planejadas para a intervenção: a primeira, compreendendo a Praça 31 de Março, nos limites entre as barracas Água Viva e Alves, onde havia a presença de 23 unidades; a segunda área, na praia da Barra do Ceará, nos limites entre o antigo Clube de Regatas e o píer que fazia divisa com a praia das Goiabeiras. Nesse trecho, havia 144 barracas.

Além dessas áreas iniciais, estava prevista a expansão do Projeto para outros trechos das praias, abrangendo: na Praia do Futuro, entre a Praça 31 de Março e o clube Caça e Pesca, 42 barracas; da Praça 31 de Março ao início do Calçadão, onde finalizava o trecho das barracas padronizadas – nos limites entre as barracas Verde e Branco e Karlux’s –, 45 barracas. Do Calçadão ao

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antigo Chez Pierre, entre as barracas Esquina do Futuro e Casarão, havia 41 barracas. Por fim, a Beira-Mar, nos limites das barracas Portal do Sol e Iracema, existiam 66 barracas.

O projeto Praia Limpa tinha como objetivo modificar “o comporta-mento dos freqüentadores, dos vendedores ambulantes e dos proprietários de estabelecimentos comerciais (barraqueiros)”. Sua proposta de mudar comportamento assemelha-se, em menor escala, ao que Elias entende por “processo civilizador”. Para ele, “as boas maneiras continuam em processo de formação. O novo padrão não surge da noite para o dia. Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas, mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis” (1994, p. 134).

Como parâmetro de classificação das praias – como “limpas”, in-termediárias” e “sujas” –, a pesquisa adotou a diferenciação nos aspectos de higiene e outros, conforme se observa nos dois trechos citados a seguir:

(...) Relacionando-se esta classificação com sua localização na cidade e com o nível de renda das pessoas que as habitam e/ou freqüentam, pode-se admitir que o referido serviço prestado pela Prefeitura se orienta nitidamente por um atendimento diferenciado (...). Com efeito, segundo os dados da pesquisa, observa-se que as praias esteticamente limpas de Fortaleza são as localizadas no trecho Praia de Iracema – Beira-Mar. Nesta área, onde estão localizados a grande maioria de hotéis de luxo, os flat’s mais suntuosos e os condomínios fechados das pessoas de alto poder aquisitivo, observa-se uma elevado padrão de eficiência do serviço de limpeza pública, consubstanciado na oferta de um espaço comparativamente mais limpo.

A pesquisa identificou também “praias de periferia” (“situadas em bairros de população de baixa renda, tais como, Kartódromo, Barra do Ce-ará e Goiabeiras”), caracterizadas por apresentarem “configuração inversa àquela identificada nas praias do trecho Iracema-Beira-Mar”. E ressaltava: nas imediações da praia do Kartódromo, a situação urbana se agravara, pois havia se transformado em “lixão”. Quanto à Praia do Futuro, classificou como “praia intermediária”:

(...) freqüentada principalmente pela classe média de Fortaleza, notabilizou-se pela oferta de um mar despoluído e de caranguejos que podem ser degustados em praticamente todas as barracas da orla. Na escala adotada no relatório poder ser considerada como de situação intermediária entre as praias limpas e as praias sujas e apresenta trechos mais ou menos limpos em função das ações

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dos comerciantes estabelecidos na área (barraqueiros), dada a insuficiente capacidade de atendimento da Prefeitura.

A expansão e o crescimento das barracas foram ocorrendo nos embates entre os agentes envolvidos e revelando disputas simbólicas em torno dos espaços e significados de praia. O lançamento e a implementação, em 1999, do projeto turístico Esta praia tem Futuro – uma ação conjunta entre AEPF e SETUR – são considerados, sob dois aspectos, marco na reviravolta das posi-ções dos barraqueiros acerca dos usos e representações semânticas da Praia. Em primeiro lugar, essa dinâmica consolidou e legitimou a posição de poder da AEPF e de seus associados; a entidade concentrava em suas mãos as fun-ções de planejamento do lazer praiano, já que passava a atuar diretamente na redefinição dos seus novos limites, e outras mais relacionadas com o controle sobre as armações de outros barraqueiros excedentes. Em segundo lugar, favo-receu, por conta disso, uma sobreposição semântica entre barracas-complexo e praia, resultando no fenômeno sociológico que pode ser sintetizado no que Dagnino (2004, 2000) designa como “deslizamento semântico”.

EStA PRAIA tEM FUtURO: A PRAIA DA AEPF

A posição de poder alcançada pela AEPF na configuração de lazer manifesta-se mais diretamente nos aspectos apontados como negativos que passavam a caracterizar a Praia do Futuro. A autonomia da entidade e de seus associados, em relação a outros barraqueiros e ao poder público – em andamento em fins dos anos 1980 e início da década de 1990 –, foi significativa nas redefinições do lazer praiano. Durante a vigência do projeto turístico Esta praia tem Futuro, os aspectos de centralidade da AEPF e de deslizamento semântico (praia/barraca) foram mais acentuados. Por meio da maior ligação e atuação dos associados reunidos na AEPF teve curso uma espécie de “processo ci-vilizador” (ELIAS, 1994) do espaço das barracas de praia. Segue-se a análise de como se deu tal processo.

Em ofício encaminhado em 10 de março de 2000 aos agentes envol-vidos6 com o projeto Esta praia em Futuro, a então ABPF relatou algumas atividades desenvolvidas segundo o “interesse coletivo da Associação”. Dentre essas ações, mencionavam: o concurso para a confecção da logo-marca da Praia do Futuro – lançada esta, oficialmente, no dia 23/03/2000, na barraca Tropicália, localizada, hoje, na “praia nova”; um mutirão de limpeza e “campanhas educativas” do SEBRAE/SEMACE/EMLURB; início da execução do projeto de Urbanização e ordenamento de faixas de praia da

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AEPF, a cargo do arquiteto Inácio Montenegro, contratado pela Associação, e sob a orientação da Delegacia do Patrimônio da União; florestamento da Praia, além de um acordo entre a Associação dos Barraqueiros e Órgãos Públicos com o objetivo de “disciplinar a área de atuação dos vendedores ambulantes na Praia do Futuro”. Nesse acordo, se havia estabelecido que nenhum ambulante poderia comercializar seus produtos nos salões das barracas. Além dessa medida, outra determinava os produtos que pode-riam ser vendidos.

O lançamento da logomarca representava, de modo particular, um ato simbólico fundamental para os barraqueiros reunidos na Associação, uma vez que passaram a buscar reconhecimento como empresários e não mais como barraqueiros. A ABPF passava agora a ser divulgada com a sigla AEPF. É recorrente nas entrevistas que realizei e nas conversas informais mantidas com os associados à AEPF lembrarem essa distinção, um dos aspectos que ressaltam a divisão entre “praia nova” e “praia velha”.

A logomarca da AEPF está afixada nas torres do projeto Guardiões da Praia (ao lado da identificação da SETUR). Nela, além das letras, uma repre-sentação de duas mãos cerrando união é retratada, o que remete, segundo a presidente da Associação, tanto à nova união firmada entre os empresários quanto à parceria destes com a SETUR. Antes de tratar do “reordenamento da praia” pela AEPF, cabe lembrar as condições e a estrutura do projeto Esta praia tem Futuro no qual essa proposta de reordenamento se insere.

Por ocasião do lançamento do Esta praia tem Futuro, algumas condi-ções eram lembradas, pela então ABPF, para a eficácia das medidas a serem adotadas: ela dependeria da “organização dos agentes, conciliação de interes-ses e da vontade política para resolver os problemas da Praia do Futuro”; “o projeto deverá resolver os problemas do presente, no entanto, já preparando as condições para concretizar ações portadoras de futuro” e a identificação de prioridades para a Praia, dentre as quais questões de infraestrutura, limpeza e higiene, profissionalização dos barraqueiros e segurança.

O Projeto foi, assim, a ser subdividido entre cinco grupos de trabalho, com vistas a atender suas prioridades de modo mais autônomo. Foram eles: Grupos de urbanização e infraestrutura; segurança; equipamentos; capacita-ção/qualidade e imagem/comunicação. Conforme a proposta, trabalhariam “pontos prioritários, objetivando promover e consolidar a Praia do Futuro como Centro Turístico, tornando-a competitiva, melhorando sua habitabi-lidade, conservando e resgatando sua imagem”.

Nos vários ofícios aos quais tive acesso, encaminhados pela SETUR e pela AEPF a outros agentes públicos e privados, era-lhes cobrada parti-

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cipação em um desses grupos, ao mesmo tempo em que era lembrada a urgência da concretização das ações previstas. Aos olhos desses dois agentes, só com o engajamento de todos os empresários associados se poderia al-cançar o objetivo principal do Projeto, que era “transformar a praia em um modelo de serviços”. Para isso, algumas estratégias foram encaminhadas de modo prioritário, com o intuito de dar mais visibilidade às ações. Atuar diretamente sobre as armações de outros barraqueiros que impediam, para a AEPF, a construção de uma “nova” Praia do Futuro parecia ser a medida mais urgente a ser tomada: “Nós que fazemos a Praia do Futuro somos conscientes de que as mudanças que necessitam ser implantadas nesta praia, não são simples, sabemos que é um projeto de médio e longo prazo” – lembrava a AEPF.

Em ofício de 06 de novembro de 2001, o Secretário de Turismo do Estado, Sr. Raimundo Viana, lembrava:

(...) estamos trabalhando em ações concentradas na melhoria geral da praia [Grifo meu] e que solicitamos à Prefeitura, em reunião conjunta, ações de limpeza pública, trabalho com ambulantes, iluminação e sinalização (...) Ressaltamos que este mês entrou em funcionamento o Hotel Vila Galé, que é voltado para um público nacional e internacional, cuja captação do investi-mento, bem como do Hotel Lisboa foi ação da SETUR, colocando a Praia do Futuro no mapa do turismo internacional.

Àquela altura, a AEPF, então assumindo uma posição mais determinante, reunia cerca de 108 empresários associados, responsáveis por empregar mais de 3.000 funcionários diretos e por abrigar nas áreas de praia próximas às barracas em torno de 9.000 empregos indiretos (Ofício à SETUR, de 07 de dezembro de 2000). Nem todos os barraqueiros, todavia, estavam associados à AEPF, em particular, os do trecho da “praia velha”.

As discussões levadas a efeito nas reuniões organizadas para elaboração e implementação do Projeto – que ocorriam nas dependências das barracas da “praia nova”, (por exemplo: Chico do Caranguejo, Crocodilo, Itapariká, América do Sol e Marulho, principalmente); ou na própria sede da SETUR – eram sempre acaloradas, já que envolviam debates sobre intervenções de grande vulto. Elas podem ser consideradas aqui como espaços de produção do consenso que se buscava estabelecer acerca da praia. Durante essas reu-niões, se tecia uma rede de informação e comunicação entre empresários ligados à AEPF – responsável por circular significados de praia em jogo mais ou menos comuns entre esses agentes.

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O consenso foi estabelecido em torno dos seguintes aspectos prio-ritários: infraestrutura e serviços públicos, tais como “segurança, higiene, saneamento básico, preços cobrados e assédio de vendedores ambulantes no interior de barracas e na praia, bem como a regulamentação da atividade de ‘barraqueiros’. Essa relação de prioridades além de se basear nas constatações dos barraqueiros, é fruto de pesquisa realizada junto aos freqüentadores da praia” (AEPF, “SETUR divulgará plano de ação para a Praia do Futuro”, de 22 de novembro de 1999).

Em novembro de 1999, poucos meses após o lançamento oficial do Projeto, a AEPF já realizava, por conta própria, e sob fiscalização da DPU, o “ordenamento das faixas de praia, delimitando a área de ocupação das barracas e a retirada de estabelecimentos abandonados em áreas da União”. Nesse período, eram contabilizadas seis barracas abandonadas, retiradas, sendo que outras oito tinham demolição prevista.

Analisando o “relatório de vistoria das barracas do trecho 1” (produ-zido pelo Projeto, de dezembro do mesmo ano), onde se situam as barracas da “praia velha”, é possível inferir que um número maior de barracas era objeto de remoção. Dos cinco trechos classificados para intervenção, o de número 01 apresentava “problemas mais urgentes”. Ao todo, foram identi-ficadas 38 barracas nesse trecho, considerado pelos empresários reunidos na AEPF como o principal referencial de contraste para a construção da “nova Praia do Futuro”.

Além de propor mudanças nos aspectos arquitetônicos e externos das barracas, as regras de atendimento e manuseio de alimentos constituíam também fatores fundamentais para a constituição de uma “nova praia”. Nos anos que se seguiram ao Projeto, várias medidas de mudança nas práticas apontadas como tradicionais no interior das barracas passaram a ser pro-postas. O SEBRAE foi responsável por orientar todos os cursos e seminários com essa finalidade. O intuito era transformar a qualidade dos serviços ofe-recidos nas barracas, seja daqueles realizados na cozinha, seja no trabalho de atendimento dos garçons.

A referência a um dos documentos utilizados nesses cursos, tomado aqui como espécie de “manual de etiqueta e de bons modos” (ELIAS, 1994), fornece pistas instigantes acerca das novas regras de comportamento in-centivadas desde então. A centralidade alcançada pelas barracas-complexo deve-se, em grande parte, às mudanças de usos da praia. Além das medidas impostas pelos empresários aos garçons, os clientes passaram também a exercer pressões a favor de novos padrões de comportamento, da qualidade dos serviços e dos produtos ofertados durante o lazer.

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No mesmo ano de lançamento do projeto Esta praia em Futuro, um seminário intitulado “Qualidade no atendimento”, realizado na barraca Maru-lho – então sede da AEPF e propriedade de sua presidente –, prescrevia regras de comportamento e habilidades requeridas ao “garçom de praia”. Embora considerasse que algumas regras poderiam ser transpostas de espaços mais tradicionais de atuação do garçom, como os restaurantes, o seminário esta-belecia um atendimento diferenciado e específico para as barracas de praia.

Algumas qualidades deveriam assim ser atendidas. O primeiro e mais importante aspecto a ser observado se referia ao comportamento:

As regras de atendimento não são muito diferentes de restaurante para res-taurante. Estando num restaurante de hotel ou em uma barraca praiana, o cliente espera sempre de quem o atende, atitudes comportamentais básicas. Garçons fumando ou mascando chicletes, por exemplo, choca tanto quem está num restaurante à la carte quanto numa barraca de praia. Garçons trocando informações entre si aos gritos também passam a idéia de desrespeito.

O garçom deveria seguir regras básicas, como boa postura e apresentar-se:

(...) sem bigodes, de cabelos penteados, unhas limpas e sem esmalte, sem per-fume, sem desodorantes fortes, sem jóia (abrindo-se exceção para alianças e relógios discretos) com uniformes impecáveis e levando no bolso só o material necessário para o trabalho: abridor, caneta, talão de comanda, fósforos e um guardanapo, de preferência branco.

Conforme as orientações do Seminário, o “garçom de praia” deveria reunir ainda outros traços comportamentais:

(...) Ter sensibilidade diante das diversas situações; ser pontual; ser cortês no atendimento de clientes internos e externos; ter tato para lidar com problemas e pessoas; ter firmeza de caráter (as pessoas de comportamento dúbio não são respeitadas entre os colegas e nem aceitas pelos empregadores); estar atento à linguagem corporal utilizada; ter habilidade de uso do tom de voz; ser capaz de apresentar atendimento personalizado.

As condições de trabalho, em se tratando de praia, impunham exi-gências que se distanciariam dos preceitos morais acerca do caráter ou personalidade do garçom, embora deles não prescindissem. A areia da praia obrigaria o garçom a “deslocar-se de forma mais discreta”. Este deveria ser

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“elegante no transitar entre clientes”. O fato de se tratar de local ventilado e próximo ao mar exige habilidades na comunicação: “a falta de acústica da praia exige tom de voz acima do normal”.

Outras “boas maneiras” (ELIAS, 1994) deveriam ser atendidas na realização do trabalho do garçom:

(...) durante o período de trabalho não é permitido aos garçons postura des-leixada, tais como: ficar encostado nos coqueiros, balaústres ou toldos das mesas”; o fato do serviço ser realizado na descontração de uma praia não é motivo para que o garçom deixe de atentar para a seriedade do seu trabalho; o garçom de praia deve estar preparado para situações adversas, como, por exemplo, jogos nas areias de frescobol, voleibol ou pipa, que possam causar incômodo ou mesmo acidentes.

O manual concluía expondo outras exigências consideradas fundamen-tais ao bom trabalho dos “garçons de praia”. Dentre estas, as características físicas e intelectuais. Em relação às primeiras, as condições impostas ao “garçom de praia” pela topografia do local envolviam aspectos de agilidade e destreza:

(...) destreza manual [sic] (o garçom de barraca deve ser hábil na condução de bandejas, garrafas e demais materiais de praia); equilíbrio (deslocar-se na areia requer preparo acima do normal. O garçom de barraca deve ter físico apropriado para exercer essa função. Embora não seja exigência, os profissionais que não fumam e não bebem levam vantagem em relação a estes); fonação e audição normais (um garçom gago ou fanhoso pode causar embaraços tanto aos clientes quanto a si mesmo); visão (trabalhar exposto ao sol e à claridade excessiva de uma praia requer dos profissionais uma visão acostumada ao am-biente. O uso de óculos escuros não é aconselhável); olfato e paladar apurados (praticamente todos os frutos do mar exalam fortes odores. Desta forma, os utensílios utilizados no serviço de barraca merecem atenção redobrada, pois podem deixar cheiros desagradáveis de um cliente para outro. Isso requer do garçom olfato aguçado para perceber possíveis odores indesejáveis. O paladar evita que comidas estragadas cheguem à mesa do cliente); por último, sensibi-lidade (ser capaz de distinguir se uma cerveja está na temperatura adequada ou se o prato não esfriou é de fundamental importância. Ser capaz de reconhecer diferenças nas cores ou odores dos produtos também é importante).

As regras para o “bom atendimento” incluíam ainda aptidões “inte-lectuais” e de “personalidade” com vistas a satisfazer o “cliente de barraca”,

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considerado distinto daqueles que comumente frequentam restaurantes. O manual prescrevia como exigência intelectual ter: “boa memória”, “ca-pacidade de compreensão oral”, “facilidade para o domínio de línguas es-trangeiras”, “memória de nomes, números, objetos e fisionomia”. No que se refere à “personalidade” do garçom, esperava-se que ele revelasse durante seu trabalho “honestidade, simpatia, sociabilidade, vivacidade, persistência, estabilidade emocional e discrição”.

Além da consulta a esses manuais, por diversas vezes, pude registrar nas entrevistas e em conversas informais com empresários ligados à AEPF o relato, em tom negativo, do trabalho realizado pelos garçons antes do Projeto e da atuação positiva do SEBRAE. Frequentemente, eles eram acusados de se apresentarem mal vestidos, de realizarem roubos a clientes e de estarem despreparados para atender turistas e fortalezenses.

Atento a essas observações, o SEBRAE passava a incentivar mudanças nas práticas de atendimento no interior das barracas, resultando, ao lado de outras similares, no cerceamento do sentido de praia que a dinâmica desses equipamentos parece ter favorecido. Essas regras de comportamento impos-tas mais recentemente aos garçons pela Empresa surgiram paralelamente às mudanças nos padrões das barracas e aos novos hábitos que os clientes que passaram a frequentá-las puderam praticar. Nesses complexos há espaços mais restritos para a realização de refeições e cuidados com a higiene pessoal. Sem falar que os novos padrões de cozinha internacional desses complexos retiram da vida pública (ELIAS, 1994) a armazenagem, o tratamento e o preparo dos alimentos. Nas palavras de N. Elias:

Este isolamento das funções naturais da vida pública, e a correspondente regulação ou moldagem das necessidades instintivas, porém, só se tornaram possíveis porque, juntamente com a sensibilidade crescente, surgiu um apa-relhamento técnico que solucionou de maneira muito satisfatória o problema da eliminação dessas funções na vida social e seu deslocamento para locais mais discretos. A situação não foi diferente no tocante à mesa. O processo de mudança social e o avanço das fronteiras da vergonha e do patamar de repug-nância não podem ser explicados por qualquer condição isolada e, decerto, não pelo desenvolvimento da tecnologia ou pelas descobertas científicas. Muito ao contrário, não seria difícil demonstrar as bases sociogenéticas e psicogenéticas dessas invenções e descobertas. (ELIAS, 1994, p. 144).

À mesa, na “quinta do caranguejo”, são marcantes os modos como o consumo do crustáceo se tornou algo ritualizado e pacientemente realizado.

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Apesar de o prato exalar forte cheiro por comportar bastante molho e con-dimentos, nas barracas-complexo a forma como o caranguejo é preparado e consumido revela distanciamento de usos e costumes encontrados nas barracas-artesanais ou mesmo antes delas, quando os alimentos eram pre-parados à vista de todos, sem grandes requintes ou sofisticação.

A grande procura pelos serviços diferenciados de atendimento das barracas-complexo, hoje, por parte de turistas e visitantes que se diri-gem à Praia do Futuro, é um indício dessas transformações operadas nas barracas de praia.

Nas avaliações de clientes e frequentadores, dos serviços do lazer praia-no, a alusão ao trabalho de garçons configura-se como um dos aspectos mais ressaltados. Outros, porém, são lembrados atuando nas classificações da Praia do Futuro em “praia nova” e “velha”. É digno de nota, nesse sentido, o texto intitulado “Avaliação da Praia do Futuro segundo seus freqüentadores”, pro-duzido pela SETUR no ano de lançamento do projeto Esta praia tem Futuro.

Segundo essa Secretaria, os dados referentes aos frequentadores da Praia, em 1999, revelavam o seguinte: 52,7% residiam fora de Fortaleza, dos quais 5,9%, em diferentes cidades do estado e 46,8% em outros estados. Os residentes em Fortaleza somavam 47,3%. A Praia possuía um público assíduo em torno de 29,3%, dos quais 5,8% frequentavam todos os dias, e os demais 70,7% são frequentadores eventuais. Entre os frequentadores que eventualmente visitaram a Praia do Futuro, 74,6% eram turistas, dos quais 66,2% residiam fora do Ceará e 8,4% no restante do estado. Os residentes em Fortaleza representavam 25,4%.

Esses dados alusivos à concentração eventual do público em alguns dias são reveladores do fato de o lazer da Praia haver caminhado, após o Projeto e as ações do SEBRAE, para uma certa temporalidade socioespacial, transformando-a fisicamente e, em consequência, os significados semânticos comumente atribuídos à praia (“bem público de uso comum do povo”). Essa temporalidade elegeu “o domingo na praia”, “a quinta do caranguejo” e os dias de shows e eventos como os mais significativos na sedimentação de sua imagem atual de lugar praiano.

CONSIDERAçõES FINAIS

Este artigo analisou os traços de redefinição dos usos emprestados pelos complexos de lazer à Praia do Futuro, associados por empresários, moradores e visitantes como os espaços mais representativos da “praia mais badalada da cidade”. As redefinições que as barracas-complexo imprimem aos usos

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do lazer da Praia do Futuro parecem revelar mudanças significativas do planejamento público e privado de praias, em curso no Brasil. Conforme Ferreira de Paula (2005), é comum nas propostas de planejamento de praias no Brasil definir pelo menos três zonas, cada qual possuindo uma funcio-nalidade objetiva: uma zona ativa, dedicada ao banho e aos esportes; uma zona de descanso, onde há presença de guarda-sóis e cadeiras; e uma zona de reserva, contando com vestiários e restaurantes usualmente localizados em uma avenida à beira-mar ou em calçadão, quando esse existe. É o caso da famosa Copacabana e sua Avenida Atlântica.

Como visto, a constatação, por parte da AEPF e do SEBRAE, do caráter precário e artesanal das barracas da “praia velha” – seja do ponto de vista das estruturas, seja quanto aos aspectos de higiene e limpeza – resultou, em fins dos anos 1990, numa tentativa de gestão compartilhada entre a Associação e a Secretaria de Turismo do Estado. O projeto Esta praia tem Futuro é con-siderado, nesse sentido, aquele que pôs em prática várias ações e propostas de reorganização do lazer praiano, com suporte nos quais se intensificou a divisão entre “praia nova” e “praia velha” e as posições ocupadas pelas barracas-complexo no seu interior.

É comum, no discurso dos barraqueiros associados e nos registros documentais levantados neste artigo junto à AEPF, se justificar a existência dos grandes complexos de lazer pela necessidade de superar a improvisação das primeiras barracas e para atender ao público, que, por volta das décadas de 1960/1970, se dirigia à Praia do Futuro em busca do seu lazer praiano: um público, na avaliação da Associação, “simples, descontraído, informal e desprogramado”. Os significados de palavras como “barraquinhas”, “orga-nização”, “público”, entre outras, revelam outras apropriações semânticas, realizadas pela AEPF, das transformações dos usos do lazer praiano, em referência às qualidades atribuídas às barracas-artesanais.

A posição ocupada pela AEPF no interior dessa transformação resultou em algumas mudanças fundamentais na sua atual classificação como lugar praiano. O crescimento das barracas-complexo pode ser avaliado como parte de um processo de profissionalização e fechamento do sentido atribuído à praia. O exemplo da Praia do Futuro ensina que as formas de organização do lazer praiano não apenas se modificam ao longo dos anos, bem como rede-finem as fronteiras simbólicas do que se entende por praia, proporcionado apropriações físicas e simbólicas que obedecem às várias temporalidades socioespaciais mais comuns.

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NOtAS 1 A Praia do Futuro se encontra ao leste de Fortaleza, Capital do Estado do Ceará. Divide-se, do ponto de vista da administração municipal, em duas grandes áreas: Praia do Futuro I, que tem início nas proximidades dos bairros Mucuripe e Cais do Porto, indo até a rua Renato Braga, nas imediações do Clube dos Engenheiros; e a Praia do Futuro II, que segue desse trecho até o rio Cocó, na divisa com a Praia da Sabiaguaba, último trecho de orla da Cidade. Segundo dados do censo do IBGE, de 2010, a Praia do Futuro I possui 6.630 habitantes, enquanto a Praia do Futuro II reúne 11.957, totalizando em con-junto 18.587 moradores. Em dez anos, a Praia do Futuro I. teve crescimento populacional de 127,29%.

2 No guia de praias de Freire (2008), encontram-se descrições e avaliações das “megabarracas da Praia do Futuro”: “a CrocoBeach é a mais incrementada, com um deck sob o coqueiral; a Atlantidz, a mais bem decorada; a Vila Galé, a mais calminha; a Vira Verão, o point da geração saúde, a única que mantém as cadeirinhas de madeira e as cabaninhas de palha de antigamente. Porém é a Cabumba, a preferida dos alternativos e do pessoal GLS. Quinta-feira acon-tece um fenômeno: meia cidade vai à praia à noite para comer caranguejo”.

3 Os trechos de depoimentos que se seguem foram extraídos de entrevista que me foi concedida, em março de 2010, por “Seu” Marinho, empresário associado à AEPF.

4 Na ação civil pública, de 2005, do Ministério Público, ainda em vigor, estão previstas a demolição de todas as barracas da Praia do Futuro e sua reorga-nização em barracas padronizadas. Essa medida foi dada como definitiva em outubro de 2010 por meio de uma sentença. É constatado que, do total das barracas, 101 impedem o livre acesso à praia por meio de obstáculos como cercas, muros e tendas; 43 realizam “apropriação clandestina de trechos de praia”, enquanto 98 ocupam área que excedem o limite de ocupação per-mitida. Nos últimos anos, o complexo CrocoBeach cresceu mais que cada uma das barracas da Praia do Futuro. Segundo consta na Ação de 2005, o complexo excede atualmente em 6.318,15 m2 a área de uso permitida pelo Patrimônio da União. Apenas seis barracas-complexo se aproximam dessa marca: Estação do Sol (4.281, 39 m2), Marinho’s Beach (4.929,23 m2), Ita-pariká (4.075,58 m2), Castelo Beach (5.155,35 m2), Arpão (5.267,25 m2) e Paraíso Ecológico (4.568,80 m2).

5 Além das barracas da Praia do Futuro, foram pesquisadas as das praias da Beira-Mar (66), Iracema (02) e Mirante (07).

6 Empresários e representantes do Patrimônio da União.

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Wellington RiCaRdo nogueiRa MaCiel 219

RESUMOA presença de grande número de barracas de praia (es-

pécies de bares, restaurantes e casas de shows à beira-mar) na Praia do Futuro é um aspecto importante para compreender o seu lugar na dinâmica urbana contemporânea. Nos últimos anos, algumas barracas cresceram e passaram por uma diferenciação que tem resultado na modificação do sentido jurídico de praia (“bem público de uso comum do povo”) consagrado em leis brasileiras específicas. Em contraposição aos barraqueiros outsiders da “praia velha”, essa redefinição é realizada mais intensamente por parte das barracas-complexo de propriedade dos empresários estabelecidas na Associação dos Empresários da Praia do Futuro (AEPF). As barracas-complexo se diferen-ciam das barracas-artesanais quanto à arquitetura e no que se refere aos traços de estilização estética, aspectos bastante valorizados atualmente pelo city marketing.

ABStRACtThe presence of a large number of beach tents (kinds of

pubs, restaurants, show establishment by the sea) in Praia do Futuro is an important aspect in order it can be understood within the contemporary urban dynamics. In recent years some tents expanded and passed through a change that resulted in a modification of the juridical meaning of the word beach (“public goods of people common use”) anointed in the specific Brazilian laws. In contrast to the outsiders of “old beach”, this redefinition is achieved more intensely by the owners of the tents-complexes established in the Association of Businessmen of Praia do Futuro (AEPF). The tents-complexes differ from the craft-tents concerning to architecture and regarding to stylish esthetic features, aspects that are well valued currently by the city marketing.

Palavras-chave: usos, lazer praiano,

espaço urbano, Praia do Futuro.

Keywords:uses, seaside leisure,

urban space, Praia do Futuro.

Recebido para publicação em fevereiro/2013. Aceito em abril/2013.

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Pequena empresa inovadora e desenvolvimento: indústria naval em Rio Grande1

Sandro Ruduit GarciaDoutor em Sociologia pela UFRGS. Professor do Departamento de Sociologia e do PPG Sociologia/ IFCH/UFRGS. Autor de Global e Local: o pólo automobilístico de Gravataí, São Paulo: Editora Annablume, 2009.E-mail: [email protected] .

INtRODUçãO O recente desenvolvimento das chamadas “economias emer-gentes”2 tem ensejado uma frutífera produção científica sobre a situação e a trajetória de setores, regiões, organizações e profissões, suscitando questionamentos sobre a relação entre produção de alta tecnologia no centro e fabricação de baixo custo na periferia do sistema capitalista, que levaria à importação de pacotes tecnológicos como estratégia de acesso à inovação na periferia do sistema. O ímpeto transformador da expansão global de um novo paradigma de desenvolvimento econômico3 tem se

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PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO222

desdobrado em uma variedade de arranjos sociais concretos entre agentes econômicos cujas trajetórias podem ser cientificamente particularizadas4. O presente artigo analisa a questão dos processos de desenvolvimento eco-nômico, indagando sobre as implicações socioeconômicas decorrentes da implantação de unidades industriais que constituem redes entre atores pro-dutivos diversos, enfocando o desempenho de pequenas empresas inovadoras.

O argumento em discussão para a análise do fenômeno sustenta que a expansão global de um novo paradigma de desenvolvimento tende a propagar novas lógicas organizacionais que favorecem a formação de redes entre agentes produtivos diversos, abrindo-se novos espaços de ação para a pequena empresa. O desenvolvimento econômico e industrial sustenta-se, hoje, pela lógica de redes, diferentemente da empresa verticalmente integra-da do passado. Nessa nova lógica, o desempenho de pequenas empresas é, pois, condicionado pelas chances de interação com atores organizacionais, em especial universidades, possibilitando o acesso a recursos relevantes, a identificação de complementaridades e o estabelecimento de ações conjun-tas. Isso significa que segmentos das pequenas empresas podem ocupar um novo lugar nessa lógica organizacional e nos processos de desenvolvimento econômico e social, envolvendo atividades de inovação, inserção em novos mercados e uso de mão-de-obra altamente qualificada. O desabrochar de pequenas empresas inovadoras representaria uma novidade no contexto do país que se habituou não apenas a perceber a pequena empresa na periferia de “cadeias de fornecimento”, mas também a acessar inovações pela compra de tecnologia e pelo investimento estrangeiro.

Essa discussão é realizada com apoio na observação da experiência de formação e expansão – desde meados desta primeira década do sécu-lo XXI – de um cluster5 de construção naval localizado na cidade de Rio Grande, no Sul do estado do Rio Grande do Sul6. O caso em estudo torna-se sociologicamente interessante porque os investimentos nas novas unidades industriais – montagem de plataformas e sondas marítimas para extração e processamento de petróleo e construção de navios – realizam-se numa região econômica e socialmente deprimida e, em especial, sem tradição nesse tipo de indústria. Porém, a construção naval do país tem sido ativada pelas des-cobertas de petróleo e gás natural na camada geológica do pré-sal, na costa marítima brasileira, e pelos desafios científicos e tecnológicos envolvidos na sua exploração, demandando conhecimentos e tecnologias distintas das atualmente disponíveis: trata-se de águas mais profundas e frias, de solo mais salinizado e corrosivo, de condições de luminosidade e pressão mais adversas, de localização mais distante do continente, e de petróleo mais pe-

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sado e ácido. Isso requer inovações em produtos, em processos, em logística e em comercialização, desde a reconstrução da indústria de construção naval até o redirecionamento de refinarias de óleo cru, passando pela adaptação de diversos setores relacionados, como o siderúrgico, o metalmecânico e o eletroeletrônico. Ademais, a recente experiência de Rio Grande ocorre em meio a novas perspectivas de desenvolvimento no país: em lugar da importação de tecnologia, de mercado fechado e protegido e do incentivo à grande empresa isolada, opta-se, respectivamente, pelo esforço em inovar, pela orientação para a inserção internacional e pelo incentivo a redes de interação entre agentes diversos.

Com suporte nessas justificativas, o objetivo deste artigo é analisar o processo de implantação e expansão do cluster de construção naval de Rio Grande (estaleiros, fornecedores de sistemas, prestadores de serviços, comissionamento e engenharia) e suas implicações socioeconômicas na constituição de redes de colaboração entre agentes organizacionais (empre-sas, universidades, associações e governos) e, especialmente, nas atividades de pequenas empresas (criação de inovação, inserção nos mercados, uso de recursos humanos, formas de interação com outros agentes), tendo em vista discutir aspectos do curso do desenvolvimento de “economias emergentes”.

O approach teórico-metodológico orienta-se pela compreensão rela-cional desse experimento industrial, mediante a identificação de sua imersão no contexto de redes de colaboração que perpassam o curso de ação dos agentes em estudo, enfatizando-se a situação das pequenas empresas. Neste sentido, tenta-se evitar o apelo a causas únicas e determinísticas que levariam a simplificações redutoras ou à simples expressão da realidade pelo ponto de vista dos atores. Os procedimentos de investigação empírica envolveram pesquisa de campo conjugada com ampla pesquisa em fontes secundárias (jornais locais, documentos e bases estatísticas)7. A pesquisa de campo foi efetivada no período entre agosto/2011 e julho/2012, realizando-se ao todo 18 entrevistas semi-estruturadas em Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre. Foram visitadas oito pequenas empresas: quatro em Rio Grande e quatro em Porto Alegre. As empresas integram a Rede Petro, sendo produtoras de bens e ser-viços envolvidos na aglomeração de produção naval de Rio Grande8. Ademais, foram visitadas três universidades federais (em Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre), selecionadas por desenvolverem ações relevantes de interação com a aglomeração estudada9, assim como o Sindicato dos Metalúrgicos de Rio Grande, o Conselho Regional de Desenvolvimento (Corede Sul), o Sindicato dos Operadores Portuários (Sindop/RS), o Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE/RS), a Prefeitura de Rio Grande e um Estaleiro.

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Após esta introdução, o texto organiza-se em três seções, seguindo-se considerações finais. A seguir, é apresentada a argumentação teórica que sustenta a análise, abordando aspectos da literatura relativa ao paradigma informacional global, à dinâmica dos atores e organizações imbricadas em processos de desenvolvimento econômico e ao espaço de ação e estratégias das pequenas empresas no novo contexto. Mencionam-se ainda aspectos da literatura sobre indústria de construção naval no país. Após, são apresentados e analisados os dados relativos à constituição do cluster industrial de Rio Grande e às respostas das organizações ligadas ao novo empreendimento, destacando-se a formação de redes entre atores produtivos diversos. Em se-guida, são expostos os resultados sobre as pequenas empresas investigadas, considerando-se suas interações com outras empresas, com universidades e com governos, os esforços e atividades de inovação, a inserção em novos mercados e as práticas de gestão de recursos humanos. Finalmente, são apre-sentadas as principais conclusões e questionamentos resultantes da análise.

DESENVOlVIMENtO, REDES E PEQUENA EMPRESA

A argumentação proposta neste artigo parte do reconhecimento da expansão global do paradigma informacional de desenvolvimento e da recente ascensão de “economias emergentes” (AMSDEN, 2009; CASTELLS, 1999; FLORIDA, 2011; O’NEILL, 2012; SHAPIRO, 2010). A tese do paradigma informacional sustenta-se em estudos que consideram fatores não apenas de ordem ma-croeconômica e político-institucional, mas também avançam na direção de variáveis socioculturais situadas num plano micro (como, empreendedorismo, cálculo estratégico, sistemas de símbolos e disposições envolvidos na ação) e num plano meso-social (por exemplo, características das organizações, capital social, formas de governança e coordenação de interesses entre os atores).

O paradigma informacional assentar-se-ia no desenvolvimento de uma nova lógica organizacional (redes) relacionada com a transformação tecnológica (TIC’s), mas “essa lógica organizacional manifesta-se sob diferentes formas em vários contextos culturais e institucionais” (CASTELLS, 1999, p. 174). Essa nova lógica organizacional envolveria, entre outros aspectos, diferentes padrões de conexão entre grandes e pequenas empresas, destacando-se as “redes de subcontratação” e as “redes multidirecionais” (mais próximas deste estudo). No primeiro caso, as pequenas empresas ficariam sob o domínio financeiro ou tecnológico da grande empresa, ao passo que, no segundo caso, a pequena empresa tomaria a iniciativa de estabelecer relações em várias redes com diferentes grandes empresas e mesmo com pequenas empresas,

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encontrando nichos de mercado e empreendimentos colaborativos (CASTELLS, 1999). Como lembra Florida (2011), a economia atual vive da complementa-ridade entre grande e pequena empresa e entre essas e uma pluralidade de outras organizações com diferentes papéis a desempenhar e contribuir para a vitalidade econômica. Outra dicotomia a ser superada refere-se à oposição entre indústria e serviços no empuxe ao desenvolvimento. Mais importante do que o setor econômico, seria distinguir níveis de intensidade e uso de conhecimento e de aplicação tecnológica envolvidos na atividade produtiva (POWELL & SNELLMAN, 2004).

Nestes termos, a expansão do paradigma informacional tem propiciado oportunidades de desenvolvimento tecnológico e de criação e comercialização de produtos inovadores aos países emergentes, superando-se os modelos de substituição de importações, a estrita importação de pacotes tecnológicos como acesso à inovação, e a simples exportação de commodities (SHAPI-RO, 2010). O novo contexto instiga o Estado brasileiro a superar um “déficit institucional” com relação às políticas de inovação que se guiaram, desde a década de 1950 até início dos anos 1990, pela substituição de importações (ARBIX, 2010). O registro de experiências de ascensão de economias de industrialização tardia tem mostrado a importância da mudança no papel e nas estratégias do Estado, fazendo conhecer as diferenças nos resultados de países que buscaram a criação independente de tecnologias (por exemplo, China, Índia e Coréia) e países que foram recalcitrantes a esse respeito, op-tando pela aquisição de tecnologia, como Brasil, Argentina, Chile, México e Turquia (AMSDEN, 2009).

Numa dimensão organizacional, Powell, Packalen e Whittington (2010) afirmam que a formação de redes inter-organizacionais (organiza-ções públicas e privadas, com ou sem fins lucrativos) animaria clusters de alta tecnologia, desde que essas redes envolvessem diversidade organiza-cional assim como organizações catalisadoras de normas e promotoras de relações densas entre as partes. Isso expressaria a constituição de novos campos institucionais capazes de aproveitar e sustentar relações de com-plementaridade entre interesses diversos no cluster. Nesse sentido, Manzo (2011) assevera que o estudo sobre inovação precisa confrontar diferentes perspectivas de análise, considerando-se não somente as relações entre empresas, mas também as relações das empresas com outras organizações e com políticas públicas, permitindo apreender o papel das organizações na captação de recursos que seriam inacessíveis a empresas isoladas. A difusão de inovações dependeria, assim, de estruturas reticulares de relações e dos tipos dessas relações entre empresas e demais organizações,

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envolvendo operação de tradução entre redes sobrepostas de agentes e recursos heterogêneos (URTEAGA, 2012).

Para Etzkowitz (2009), mais especificamente, seria a interação uni-versidade-empresa-governo a chave para a inovação e para a transformação de pesquisa acadêmica em riqueza econômica, falando em uma segunda revolução acadêmica em que a universidade avocaria novas responsabi-lidades diretas no desenvolvimento econômico e social. A universidade teria maior fluxo de capital humano e de idéias do que outras instituições, tornando-se um recurso diferencial para empresas inovadoras. Governos viriam, em diferentes contextos e experiências, desempenhando papel chave no estabelecimento do “palco” para as interações entre universidade e indústria, com vistas à constituição de espaços de inovação. Entretanto, o autor adverte: “o fenômeno básico do crescimento econômico baseado em ciência é generalizável, mas simplesmente utilizar um mecanismo que foi muito bem-sucedido em uma área e recriá-lo em outra pode não funcionar” (ETZKOWITZ, 2009, p. 113). Essas interações estariam na ori-gem de novos arranjos organizacionais, como os parques tecnológicos e as incubadoras empresariais.

O comportamento de pequenas empresas tem sido explorado por diversos estudos que chamam a atenção para a influência das interações entre os agentes/organizações sobre as chances de inovação nas empresas, demonstrando o seu caráter relacional. Segundo Albizu et al. (2011), as inova-ções em pequenas empresas industriais tenderiam a ser de tipo incremental, traduzindo-se na integração de novos componentes técnicos aos produtos, na melhora gradual de processos e produtos e em novas combinações de conhecimentos já existentes. As redes formais e informais de colaboração entre os agentes (empresas, governos, agentes de inovação e desenvolvimento, entre outros) seriam importantes estímulos para as atividades inovadoras, em razão de facilitarem o intercâmbio de conhecimentos diversos. Ramella & Trigilia (2009) argumentam, com base na observação de empresas italianas, que, nas atuais condições de desenvolvimento econômico, as firmas tende-riam a assumir uma posição ativa com relação à identificação e mobilização de recursos relevantes para atividades inovadoras, envolvendo capacidades e habilidades desses agentes no sentido de explorar oportunidades. Neste caso, as empresas valer-se-iam não apenas de seus recursos internos (em geral, insuficientes para inovar), mas também buscariam complementari-dades no ambiente, a fim de realizar seu interesse em inovar. Isso ocorreria mediante a tecedura de redes de colaboração com outros agentes presentes tanto no território quanto fora dele. As parcerias com vistas à inovação não

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se limitariam às fronteiras locais/regionais (“laços fortes” que propiciariam o compartilhamento de conhecimento tácito), mas constituiriam também redes de longo alcance (“laços fracos” que permitiriam o acesso a novo co-nhecimento codificado). Contudo, isso dependeria da existência de recursos humanos nas próprias empresas, com vistas a interagir em redes tecnológica e economicamente mais dinâmicas.

Guimarães (2011) identifica, no caso do Brasil, o crescimento de mi-cro, pequenas e médias empresas intensivas em conhecimento, a despeito das dificuldades de integração do país ao paradigma informacional quando comparado a outros “emergentes” (por exemplo, escassez de recursos hu-manos qualificados, cultura acadêmica e empresarial, e deficiências nas regras formais de tributação/financiamento/proteção da inovação). Segundo a autora, essa expansão expressaria uma importante mudança econômico-cultural na realidade brasileira, aliando-se elementos do ambiente externo com as capacidades das empresas e de seus empreendedores.

Caberia referir, brevemente, resultados de recentes investigações sobre o que ocorre na indústria naval no país10. Há relativo consenso entre estudio-sos desse setor de que sua capacidade de inovação é, ainda, baixa (COSTA, BOEIRA & AZEVEDO, 2010; NEGRI, KUBOTA e TURCHI, 2009; NEGRI et al., 2010; FARIA & RIBEIRO, 2012; SILVA, 2012). A despeito disso, seria possível identificar esforços e mudanças recentes no sentido de criarem-se novas capacidades de inovação nessa indústria, como será examinado adiante em relação ao caso de Rio Grande. Os estaleiros dependeriam de inovações de processo para aperfeiçoar seus custos e preços e seus prazos de entrega, refle-tindo-se na melhoria de sua produtividade e competitividade. As atividades dos estaleiros requereriam, também, alto grau de atividades de engenharia e planejamento para operação em tempos paralelos. Diferentemente, o se-tor de “navipeças” dependeria mais de inovações de produto, com vistas a oferecer sistemas e componentes ajustados aos novos produtos demandados ao setor. Negri et al. (2010) apontam que os gastos em P&D nessa indústria são ainda inexpressivos, embora tenham encontrado algumas empresas de pequeno porte, focalizadas em atividades especializadas, que realizam gastos expressivos em P&D. Esse dado parece relativizar a ideia de que a inovação poderia surgir estritamente de atividades de P&D nas grandes empresas. O potencial de inovação tenderia a deslocar-se para a disponibilização e uso de profissionais altamente qualificados (como, engenheiros e geólogos), para as interações entre agentes diversos (especialmente universidade-empresa) e para o financiamento e estímulo à pequena empresa inovadora, consti-tuindo-se como alternativa à importação de pacotes tecnológicos.

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Adquire relevância, desse modo, outro aspecto destacado pela litera-tura, isto é, o surgimento de redes de colaboração entre agentes produtivos, no contexto dos desafios científicos e tecnológicos da exploração do Pré-Sal. Estudos recentes (FARIA & RIBEIRO, 2012; GITAHY & SILVA, 2012; LIMA & SILVA, 2012) constatam o fortalecimento e a formação de redes de atores e instituições, permitindo processos de aprendizagem significativos, ampliação de capacidades, bem como, acesso a recursos financeiros. A presença de universidades (USP, UFRJ, entre outras) e o aporte governamental (Fundos Setoriais, Petrobrás, outros) têm contribuído para o atual estágio tecnológico alcançado pelo país em termos da exploração de petróleo e gás em águas profundas e para a difusão de tecnologias. Entre as principais dificuldades dessas experiências, são destacadas as regras burocráticas nas relações setor produtivo-academia, a ausência de cultura de relações mais horizontais entre atores diversos e a falta de clareza e continuidade de financiamentos. Apesar disso, os estudos mostram tendência à avaliação positiva dessas experiências, na percepção dos atores envolvidos.

Estas considerações aqui apresentadas – extraídas de produção científica especializada – oferecem indicações para o argumento a ser demonstrado na análise. A seguir, apresentam-se os dados empíricos coletados sobre implicações socioeconômicas decorrentes da implantação de unidades de construção naval na cidade de Rio Grande.

CONStRUçãO NAVAl EM RIO GRANDE

Após um período de estagnação econômica na região, a implantação de es-taleiros na cidade de Rio Grande reanima a atividade industrial e de serviços não apenas no município, mas também em cidades vizinhas e mesmo em setores produtivos relacionados a essa indústria no estado do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, é possível identificar um conjunto de iniciativas no esforço de criação de conhecimentos específicos e de tecnologias necessários ao desenvolvimento dessa nova indústria, destacando-se a formação de redes entre agentes diversos, como é o caso da Rede Petro que se discute adiante. As universidades já existentes mostram-se cruciais nessas novas dinâmicas socioeconômicas.

O cluster de Rio Grande inicia suas atividades em 2005 com a cons-trução de uma plataforma marítima para extração de petróleo: P-53. Após, seguem-se as construções da P-55, da P-63 e da P-58, além de outras em-barcações, sondas de perfuração do subsolo marinho e novas encomendas para a construção de plataformas. Essas construções são realizadas, em 2012,

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no Estaleiro Rio Grande (utilizado pela Ecovix/Engevix) e no Estaleiro QUIP (consórcio formado pela Queiroz Galvão, Ultratec e Iesa), situados junto ao Superporto e ao Porto Novo de Rio Grande, estando já em implantação dois novos estaleiros no complexo (Wilson, Sons, em Rio Grande; Estaleiro Bra-sil S/A, no município vizinho de São José do Norte). Especialistas (NEGRI, KUBOTA & TURCHI, 2009) chamam a atenção para o fato de o estaleiro tornar-se tanto mais produtivo quanto menor for o tempo de montagem de um navio. A velocidade da manufatura está associada à gestão do processo de montagem e coordenação no fornecimento de sistemas, operando em tempos paralelos. A capacidade da engenharia e de planejamento e a quali-dade dos componentes abrem espaço significativo para o desenvolvimento de competências em lugar da simples compra de tecnologia.

No período entre 2003 e 2005, houve, em Rio Grande, um primeiro esforço de constituição de um polo naval voltado para a construção de embarcações. Porém, a expansão mais significativa dessa indústria ocorre a partir de 2008, com encomendas da Petrobrás de plataformas para a exploração petrolífera. Segundo os depoimentos colhidos em pesquisa de campo, as decisões sobre a realização desses investimentos decorrem de um complexo conjunto de fatores condicionantes, destacando-se a nova política de desenvolvimento dessa indústria implementada pelo governo federal11, os recursos sociais já acumulados na região pela presença do porto e de universidades, as peculiaridades geográficas e ambientais existentes na cidade12, e a mobilização de lideranças políticas da região e do governo estadual no sentido de criar alternativas de desenvolvimento no eixo Rio Grande-Pelotas, tendo em vista enfrentar a estagnação econômica expe-rimentada na região.

Constata-se, na cidade, um claro aquecimento da atividade econômica, elevação geral do emprego, alteração na distribuição setorial das atividades produtivas (ascensão do emprego industrial e nos serviços), circulação de uma nova massa salarial, novas demandas de consumo e diversas obras de infra-estrutura que beneficiam a região. Ao mesmo tempo, surgem ou agravam-se demandas sobre políticas públicas locais e sobre o curso do de-senvolvimento urbano (formação de mão-de-obra, transporte e mobilidade urbana, segurança pública, serviços de saúde, preço do solo). Os resultados são endossados por estudos sobre realidades industriais similares (GARCIA, 2009; RODRIGUES & RAMALHO, 2007).

As organizações e instituições visitadas têm respondido ao novo am-biente, marcado pelo ingresso de novos recursos e pelos desafios do novo paradigma industrial. Chama a atenção o prestígio e a centralidade que uni-

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versidades adquirem nesse contexto de mudanças. Por exemplo, o Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE) em conjunto com a Univer-sidade Federal de Rio Grande (FURG), o Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSul) e o Serviço Nacional da Indústria (SENAI) firmaram convênio com a Petrobrás, no âmbito do Programa Nacional de Mobilização da Indústria do Petróleo (Prominp), resultando na formação da Rede Petro (em âmbito estadual), na “Rodada de Negócios do Sebrae” (que aproxima grandes e pe-quenas empresas) e em ações de formação profissional. A Prefeitura Municipal de Rio Grande tenta responder às demandas sociais (em saúde, habitação, trânsito e segurança pública) e produtivas na cidade (formação profissional, agilização de alvarás, plano diretor, inovação e tecnologia), destacando-se a parceria com a FURG para a criação de um parque científico e tecnológico na cidade13. O Sindicato dos Operadores Portuários (Sindop/RS), com sede em Rio Grande, tem mobilizado lideranças da cidade e região no sentido de ampliar as condições das hidrovias regionais, recorrendo a estudos e serviços da universidade no ajuste das atividades no Porto às normas ambientais. A Superintendência do Porto firmou, em 2012, uma parceria com a FURG para realizar o georeferenciamento da área portuária, resultando em novo laboratório. O Sindicato dos Metalúrgicos de Rio Grande firmou parceria com o governo municipal para a formação e qualificação de mão-de-obra para a indústria naval (recursos Prominp), demandando estudos e cálculos à FURG sobre estrutura e desempenho econômico na cidade. Há nisso algo similar a um papel catalizador e a um posicionamento chave assumido pela FURG, mediante relações reticulares com organizações diversas (POWELL, PACKALEN & WHITTINGTON, 2010; MANZO, 2011).

As universidades visitadas apresentam vivo envolvimento com as novas necessidades e oportunidades desencadeadas pela indústria naval, aproxi-mando-se, sob certo aspecto, do protagonismo que essa organização viria assumindo hoje em processos de desenvolvimento regional, em diferentes contextos (ETZKOWITZ, 2009). Entretanto, podem-se identificar diferentes capacidades das universidades em responder às demandas do setor produ-tivo, em razão de uma combinação entre expertise científica nas áreas de conhecimento envolvidas (casos da UFRGS e da FURG) e proximidade social e espacial com o polo industrial (caso da FURG). Como mostra o Quadro 1, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) criou dois novos cursos de graduação aplicados às indústrias naval e petrolífera, percebendo-se ainda esforços da Agência Científica e Tecnológica da UFPel no sentido de promover estudos e parcerias com setor empresarial aplicados ao polo naval. As iniciativas e resultados obtidos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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e pela Universidade Federal de Rio Grande (FURG) mostram maiores capa-cidades de responder e interagir com o setor produtivo em estudo. A UFRGS criou novos cursos, avançando para a constituição de laboratórios e parcerias internacionais, entre outras iniciativas. Há um laboratório credenciado pela Petrobrás (um dos três existentes no país), resultante de parceria entre a em-presa e o Instituto de Geociências (IG-UFRGS). Há empresas de alta tecnologia na área em incubadoras da universidade. Caberia sublinhar, o contrato de parceria no valor de 3,5 milhões de reais, firmado entre IG-UFRGS e British Gas (BG), em 2012, envolvendo cientistas e estudantes brasileiros e ingleses. No caso da FURG, há, igualmente, não apenas novos cursos de graduação, mas também diferentes empreendimentos de produção de conhecimentos específicos, como o Parque Científico e Tecnológico do Mar (Oceantec) e o parque turístico e de estudos e pesquisas sobre oceanos (Oceanário Brasil). Essas credenciais são atestadas pela inserção da FURG em várias redes e consórcios de PD&I. A universidade sedia também um núcleo da Rede de Inovação para a Competitividade da Indústria Naval e Offshore (RICINO)14.

Neste sentido, constata-se que a UFPel expande-se com o Reuni; porém, sua trajetória anterior não se vinculou às áreas tecnológicas e às engenharias. A universidade constituiu-se voltada para áreas de conhe-cimento ligadas à produção rural, às artes e às ciências sociais aplicadas. As áreas de conhecimento requeridas pelo novo ambiente são ainda recen-tes na instituição, sem infra-estrutura desenvolvida e sem disponibilidade de recursos humanos suficientes para o estabelecimento de parcerias ou prestação de serviços especializados. A UFRGS oferece um tipo de resposta distinto, relacionado à sua expertise na área de geologia e ao seu propósito de internacionalização das práticas acadêmicas. A FURG assume posição de destaque no desenvolvimento da cidade e região, em razão não apenas de uma trajetória intimamente relacionada aos interesses da comunidade rio-grandina15 e ao Porto, mas também de sua expertise na área de mares e oceanos e na área ambiental.

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

- Novo curso de Engenharia de Energia;- Parcerias com Petrobrás (Laboratórios e consultorias);- Contrato de colaboração com BG.

Expertise em Geologia; infra-estrutura e recursos pré-existentes; acúmulos institucionais; área metropolitana.

Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

- Novos cursos de Engenharia de Petróleo e de Engenharia Geológica.

Expansão ensino e pesquisa/ Reuni; desenvolver novas áreas tecnológicas.

Universidade Federal de Rio Grande (FURG)

- Novos cursos de Engenharia de Automação e de Engenharia Mecânica Naval;- Consultorias e serviços especializados;- Centro de Formação em Tecnologias de Solda;- Centro Avançado em TI na Construção Naval;- Núcleo regional da RICINO;- Parque Tecnológico: Oceantec;- Complexo turístico e de pesquisa: Oceanário Brasil.

Proximidade com o pólo naval; expertise e vocação áreas ambiental e de ma-res e oceanos; acúmulos de relações com o Porto e a cidade/comunidade.

Quadro 1 – Iniciativas e motivos de universidades selecionadas

Universidade Principais Iniciativas e Resultados

Condicionantes eMotivos

Fonte: Pesquisa de campo e documental, Porto Alegre/ Rio Grande/ Pelotas, 2011 e 2012.

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Têm-se, assim, respostas, mais ou menos agressivas, das universidades, no sentido de produzir novo conhecimento e inovação, no contexto de um novo paradigma de desenvolvimento econômico e social. Como sugerem Ramella & Trigilia (2009), o fator localização pode tornar-se pertinente, em razão de criar condições para a mobilização de relações informais que permitam o uso e a circulação de conhecimentos tácitos; o fator expertise pode tornar-se importante, em razão de favorecer relações formais entre os agentes produtivos que possibilitem a troca de conhecimento codificado.

Conforme referido antes, a Rede Petro tem foco no desenvolvimento de empreendimentos nos setores de petróleo, gás e energia, envolvendo ainda a construção naval. Os objetivos da rede são: a) desenvolver tecnolo-gias voltadas para as empresas do setor no Rio Grande do Sul; b) aproximar empresas gaúchas dos centros de pesquisa locais e das agências de fomento; c) equipar os centros de pesquisa; d) ampliar as possibilidades de mercado das empresas gaúchas envolvidas; e e) desenvolver recursos humanos para atender demandas tecnológicas do setor. As ações da rede envolvem inicia-tivas e esforços de interação entre governo-universidades-empresas, tendo em vista a formação de instrumentos e mecanismos de apoio a pesquisa e desenvolvimento, traduzindo-se em seminários técnicos, participação e pro-moção de feiras setoriais, busca de informações sobre demandas do setor, e parcerias para cooperação nacional e internacional. Neste caso, procedeu-se uma investigação sobre as características gerais das empresas envolvidas na rede, a partir dos dados disponíveis em documentos informativos e no site da mesma. Constatou-se que as empresas da rede estão concentradas em Porto Alegre e sua Região Metropolitana (212 unidades), sendo ainda pequena a quantidade de empresas de Rio Grande e Pelotas (13 unidades). Chama a atenção o expressivo número de empresas pertencentes à rede, perfazendo um total de 475 casos. Isso é significativo porque revela não apenas a pujança, mas também o interesse desses empresários em desenvolver bens e serviços nesse segmento produtivo. As atividades já realizadas envolvem seminários, feiras e colaborações para o acesso a recursos em pesquisa e infraestrutura científica e tecnológica.

Assim, as informações gerais aqui apresentadas sobre a constituição e consolidação de redes entre agentes produtivos diversos sugerem o potencial e as dificuldades envolvidas na promoção de conhecimentos, tecnologias e inovações no setor em estudo. As universidades cumprem papel destacado nesse processo, seja integrando-se a iniciativas de outras organizações, seja propondo novas estratégias e espaços de ação. Em qualquer caso, o conhe-cimento das universidades torna-se um ativo valorizado no novo momento

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industrial (ETZKOWITZ 2009; GUIMARÃES, 2011). Ademais, o papel de or-ganizações pré-existentes, como o Sebrae, mostra-se importante na captura e amarração de expectativas e interesses dos agentes produtivos (POWELL, PACKALEN & WHITTINGTON, 2010). Cabe saber sobre as contribuições da presença de novas unidades industriais, que acionam essas novas redes de interação e colaboração entre organizações diversas, no desempenho das pequenas empresas investigadas.

PEQUENAS EMPRESAS INOVADORAS

O estudo realizado junto a oito empresas (em Rio Grande e em Porto Alegre) indica esforços de inovação, em meio às novas dinâmicas organizacionais e redes multidirecionais (CASTELLS, 1999) ligadas ao cluster de Rio Grande, caracterizando-se diferentes trajetórias dessas empresas em que se associam atividades de inovação, inserção nos mercados e gestão de pessoal. Trata-se de empresas de pequeno porte, de capital nacional e recentemente funda-das. As empresas são vinculadas à Rede Petro e, muitas vezes, constituídas em razão das recentes demandas da indústria, experimentando importante crescimento, com novos projetos de expansão de pessoal, instalações e/ou de linhas de produtos. No entanto, esses esforços dos agentes empresariais não são iguais. Ao contrário, é possível identificar diferenças no comporta-mento e nos resultados obtidos pelas empresas, apontando-se dois tipos de estratégias e desempenhos.

Um tipo de empresas oferece inovações de produtos em resposta às demandas da indústria – casos da Empresa A, da Empresa B, Empresa H –, combinando interações com outras empresas e organizações, atuação em mercados regionais e/ou nacionais e utilização de pessoal de nível técnico. Esse tipo de empresa nasceu sem interações mais estreitas com universidades, tendendo a um padrão de acomodação à tecnologia do setor. Outro tipo de empresas – casos da empresa C, empresa D, empresa E, empresa F e empresa G – mostra-se capaz de identificar problemas na indústria e, a partir disso, gerar inovações que desafiam a trajetória tecnológica do setor e criam mer-cados, combinando interações com outras empresas e organizações, atuação em mercados nacionais e internacionais, e utilização de pessoal altamente qualificado (pesquisadores com pós-graduação). Esse tipo de empresa vin-cula-se estreitamente às universidades (ver Quadro 2).

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Empresa A(Fabricação de

estruturas metá-

licas, Rio Grande,

desde 2007)

Empresas complemen-tares. Sebrae. BNDES. CEF.

Engenharia e execução estruturas de grande porte.

Início regional; hoje even-tualmente nacional.

Técnicos, homens e mulheres. Treinamento e formação. Uso de migrantes.

Empresa B(Turismo

corporativo, Rio

Grande, desde

1999)

Empresas complementa-res. ABAV.

Serviços customizados para setor naval (criação mercado).

Regional. Jovens, nível médio. Treinamento e salários atraentes. Carência pessoal.

Empresa C(Comissionamen-

to de plantas,

Porto Alegre,

desde 2006)

Parque Tecnológico. Clientes. Capital de risco.

Patentesoftwareinformações campo por ra-diofreqüência

Início regional; hoje nacional; perspectiva internacional.

Foco satis-fação e QVT. Crescimento profissional. Elevação salários.

Empresa D(Gestão conhe-

cimento, Porto

Alegre, 2007)

Incubadora e incubadas. Universidade e empresas canadenses. Sebrae. CNPq/ FAPERGS.

Sistema informações geológicas.

Nacional; hoje internacional.

Todos mestra-do ou douto-rado. Trabalho com pesquisa. Carência pessoal.

Quadro 2 – Dimensões investigadas nas pequenas empresas inovadoras

Empresa Interações Inovação Mercado GestãoPessoal

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Empresa E(Engenharia e

instrumentação,

Porto Alegre,

desde 2007)

Incubadora e incuba-das. Sebrae/ Fiergs. Finep/ Fapergs.

Patente linha reparo de dutos.

Nacional; perspectiva internacional.

Engenheiros e estudantes engenharia. Carência pessoal.

Empresa F(Robotização e

automação, Porto

Alegre, desde

2008)

Incubadora e incubadas. Clientes e fornecedores. Sebrae. Finep. BNDES.

Robôs inspeção e montagem tanques e tubulações submarinas.

Nacional; perspectiva internacional.

Engenharia (graduação, mestrado, dou-torado). Sólida formação teórica.

Empresa G(Redes corpora-

tivas, Rio Grande,

desde 2003)

Fornecedores. Sebrae. Feiras software livre. Finep. Capital risco.

Redes com uso de software livre.

Nacional; es-forço ingresso EUA.

Capacidade pesquisa em software livre. Programa es-tágio/ desen-volvimento.

Empresa H(Máquinas

customizadas, Rio

Grande, desde

2004)

Clientes e fornecedores. Sebrae/ Senai.

Máquinas e sistemas automação customizados.

Regional; começa a ex-portar Índia.

Engenheiros e graduandos. Estímulo à graduação.

Quadro 2 – Dimensões investigadas nas pequenas empresas inovadoras (cont.)

Empresa Interações Inovação Mercado GestãoPessoal

Fonte: Pesquisa de campo, Rio Grande/ Pelotas/ Porto Alegre, agosto/2011 a julho/2012.

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O primeiro tipo de empresas mencionado parece evoluir segundo uma trajetória de acomodação ao padrão competitivo vigente no segmento de atuação, revelando relativa dependência em relação ao mercado propiciado por grandes empresas. As inovações são desenvolvidas desde as demandas apresentadas pelo grande cliente. Essas pequenas empresas acompanham o percurso da trajetória tecnológica, contribuindo com a solução de problemas e a agregação de valor ao sistema produtivo. Com uma performance mais tímida vis-à-vis as demais empresas, as inovações nas empresas A, B e H tendem a ser menos robustas: a empresa A desenvolveu capacidades de engenharia e de execução de estruturas metálicas de grande porte, indispensáveis para a construção de plataformas marítimas; a Empresa B construiu um novo mercado, customizando seus serviços de turismo para o setor naval e o cluster de Rio Grande; a Empresa H desenvolve máquinas-ferramenta e sistemas de automação customizados aos seus clientes, ajustando-se às especificidades do setor naval (dimensões, durabilidade, segurança).

Neste caso, esse conjunto de empresas mantém relações de comple-mentaridade com outras empresas, tendo em vista acessar competências e recursos indisponíveis internamente (capacidade instalada, máquinas e ferramentas, pessoal, funções complementares), deixando de estabelecer inte-rações significativas com universidades. Com exceção da empresa B, acessam financiamentos (BNDES) e programas de capacitação, como os oferecidos pelo Sebrae e pelo Senai. Quanto aos mercados, observa-se que as empresas A, B e H têm seu foco de atuação no âmbito estadual. Esse conjunto de empresas tem atuação regional e, episodicamente, nacional (caso A) ou, internacional (caso H). A gestão de pessoal nessas empresas envolve a preocupação com formação e treinamento, uma vez que os recursos humanos especializados são, hoje, escassos no mercado. Essas empresas tendem à utilização de mão-de-obra técnica (A e B) ou com nível de graduação (empresa H).

O segundo tipo de empresas acima referido desenvolve-se pela capaci-dade de antecipar problemas, buscando inovações que lhes permitam alcançar novo patamar competitivo e, com isso, transitar entre diferentes mercados e segmentos produtivos. A relação com a grande empresa não significa de-pendência, mas importante oportunidade de mercado, sendo a universidade parceiro estratégico para a aquisição de competências. Essas empresas têm criado inovações aplicadas ao setor naval e de petróleo: a empresa C desen-volveu software para integração de informações sobre comissionamento de plantas por radiofrequência, gerando patente; a empresa D criou novo sistema de gerenciamento de informações geológicas; a empresa E desenvolveu nova linha técnica para reparo de dutos, gerando patente; a empresa F desenvolveu

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robôs para inspeção e montagem de tanques e tubulações submarinas; e a empresa G cria redes customizadas com uso de software livre.

Tais empresas estabelecem relações de colaboração tecnológica com outras empresas (clientes, fornecedores ou outras incubadas); têm relativa facilidade para acessar fontes de financiamento e subvenções (Finep, CNPq, FAPERGS, BNDES). Esse conjunto de empresas teve, em sua origem, uma atu-ação regional (exceto empresa D que nasce prestando serviços para grandes corporações nacionais). Hoje, todas atuam em âmbito nacional (setor naval e do petróleo, entre outros), sendo algumas já ingressantes no mercado internacional (D e G) e as que ainda não ingressaram, manifestam a perspectiva de fazê-lo (C, E e F). O dado sugere que a inovação alcançada cria oportunidades para a competição em novos patamares de mercado. Valem-se de pessoal altamente qualificado: engenheiros e outros graduados, além de mestres, doutores e es-tudantes de pós-graduação. É recorrente a preocupação com sólida formação teórica e condições adequadas para a capacidade de pesquisa dos seus recursos humanos, reconhecendo-se a necessidade de jornadas flexíveis e de criação de fatores de atração / retenção desses pesquisadores. Observa-se também o uso de estratégias mais próximas de uma cultura acadêmica de pesquisa e mais flexíveis em termos de gestão do trabalho nas empresas que interagem com universidades do que nas demais empresas.

As empresas C, D, E, F e G acham-se em outro raio de ação comparati-vamente ao primeiro tipo identificado, revelando-se uma estratégia competitiva mais agressiva no sentido de aspirar a ruptura com a trajetória tecnológica do setor. Com exceção da empresa G, as demais empresas desse tipo se hospedam em incubadoras ou parques tecnológicos. A empresa G é participante assídua de feiras e eventos de software livre realizados em universidades do país, especialmente a PUCRS, tornando-se um caso interessante que aponta para as possibilidades de redes informais do empreendedor e demais profissionais com universidades para a capacidade de inovação (URTEAGA, 2012). Essas interações das empresas com universidades lhes permite acesso/prospecção de recursos humanos qualificados e de conhecimento científico atualizado, participação em grupos de pesquisa e, quando formalizadas, uso e laboratórios e infra-estrutura; e, em alguns casos, cooperação para obtenção de financia-mentos e depósito de patentes (empresas E e F).

No seu conjunto, os dados colhidos na pesquisa de campo mostram que as empresas investigadas encontram, em geral, apoio financeiro ao desenvolvimento de suas atividades de expansão ou de inovação, embora apresentem formas distintas de interação com governos, com universidades e com outras empresas (clientes, fornecedores e concorrentes). A Rede Petro

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e o Sebrae fazem-se, em geral, presentes na mediação dessas interações. Com exceção da empresa B (turismo corporativo), as demais contam com recur-sos financeiros externos: capital de risco, programas de subvenção, bolsas de pesquisa e financiamento público aos seus investimentos e atividades produtivas. Outra convergência identificada refere-se à carência de recur-sos humanos qualificados: soldadores, atendentes, engenheiros, geólogos, profissionais de TI.

Caberia chamar a atenção para o fato de as empresas visitadas terem conseguido inovar, distanciando-se da idéia de importação de pacotes tecno-lógicos. Como sugere a produção científica especializada (ALBIZU et al., 2011; RAMELLA & TRIGILIA, 2009), essa posição ativa das empresas lhes permite o acesso a conhecimentos, financiamentos e complementaridades externos, habilitando-as não apenas a responder às demandas das grandes empresas, mas, em muitos casos, a identificar problemas e a propor alternativas em produtos e processos, o que contribui para a expansão, a produtividade e a competitividade da indústria em estudo.

Portanto, têm-se novos esforços e iniciativas dos agentes empresariais que se empenham, mediante diferentes estratégias e percursos, no acesso e na combinação entre recursos internos e externos para ampliar capacidades de inovação (GUIMARÃES, 2011; RAMELLA & TRIGILIA, 2009). Sob certo aspecto, as atividades de inovação autorizam essas empresas a se emanciparem de possível dependência da grande empresa, mobilizando redes e alcançando uma inserção diversa nos mercados.

CONSIDERAçõES FINAIS

O presente artigo enfoca o processo de desenvolvimento econômico, dis-cutindo a implantação e expansão de um novo polo de construção naval e suas implicações socioeconômicas na constituição de redes entre agentes produtivos e no desempenho de pequenas empresas inovadoras. O argumento central é que o atual paradigma de desenvolvimento sustenta-se em lógicas organizacionais que favorecem a formação de redes entre agentes produti-vos diversos, abrindo-se não apenas novos espaços de ação para a pequena empresa, mas também novas demandas de colaboração e interação com universidades. De fato, o caso em estudo permitiu constatar a constituição e consolidação de redes entre agentes produtivos diversos, com destacado papel de universidades nesse processo, seja integrando-se a iniciativas de outras organizações, seja propondo novas estratégias e espaços de ação. Quanto às pequenas empresas, verificou-se que as mesmas têm criado inovações, seja

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reagindo a demandas apresentadas pela trajetória tecnológica do setor em estudo, seja tentando avançar em relação aos padrões tecnológicos vigentes, tendo em vista alcançar novos patamares competitivos.

Essa dinâmica expressaria a capacidade de criação autônoma de tecnologias no contexto de países em desenvolvimento (AMSDEN, 2009; CASTELLS, 1999; O’NEILL, 2012; SHAPIRO, 2010), relativizando as teses sobre a necessária importação de pacotes tecnológicos mediante relações de troca entre o centro e a periferia do sistema capitalista mundial. Ademais, cabe chamar a atenção para o fato de a análise do desenvolvimento econômico requerer tanto a sua explicação por fatores macroeconômicos e político-ins-titucionais, quanto a sua compreensão por condicionantes socioculturais, exigindo do pesquisador uma perspectiva relacional e o diálogo com diferentes contribuições interpretativas.

Neste sentido, a pesquisa mostrou que os estaleiros são empreen-dimentos produtivos complexos, achando-se, no caso em estudo, em fase experimental. Há avidez pela captura de inovações que contribuam para a elevação da produtividade e competitividade. Os consórcios entre grandes grupos empresariais (nacionais e estrangeiros) aportam tecnologias e co-nhecimentos cruciais no desenho das plataformas, sondas e navios, aproxi-mando-se dos “pacotes tecnológicos” (COSTA, BOEIRA e AZEVEDO, 2010). No entanto, há um imenso espaço para desenvolvimento e introdução de inovações na logística e no processo de construção dessas embarcações cuja produtividade é baixa se comparada àquela dos líderes mundiais (estaleiros chineses e coreanos) (NEGRI et al., 2010).

Como antes indicado, os estímulos institucionais à demanda tecno-lógica (com destaque ao BNDES), à oferta tecnológica (em especial, Fundos Setoriais) e à indução da construção naval (como, Prominp) mostram-se relevantes no curso do desenvolvimento. Igualmente importantes, são as redes de interação e colaboração cujo adensamento se faz pelo papel catalisador de universidades. A existência prévia e o papel ativo de univer-sidades e organizações como o Sebrae parecem contribuir decisivamente para os resultados alcançados (ETZKOWITZ, 2009; POWELL, PACKALEN & WHITTINGTON, 2010). Essa particularidade do contexto não é desprezível. As pequenas empresas estudadas, sob os albores da Rede Petro, têm sido capazes de criar inovações que contribuem para o desenvolvimento da in-dústria naval. Essas empresas estão buscando novos mercados, em outros setores produtivos e em outras escalas (nacional e mesmo internacional). Em muitos casos, mantêm equipes de pesquisadores nas suas fileiras. Trata-se de empresas que se posicionam ativamente na busca de recursos

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e complementaridades, e na situação de mercado (RAMELLA & TRIGILIA, 2009). A indústria colhe proveito disso.

O que se tem na experiência em discussão é algo que se aproxima, com alguma liberdade conceitual, do que Castells (1999) denomina de “redes multidirecionais”. As pequenas empresas visitadas estabelecem, em cada caso, interações e relações reticulares com outros agentes (MANZO, 2011; URTEAGA, 2012), atuando em mercados diversos, deixando de depender de uma grande empresa (FLORIDA, 2011). Essa nova lógica organizacional relacionada ao paradigma de desenvolvimento envolve uma série de complementaridades entre grande e pequena empresa, indústria e serviços, e entre empresas e organizações diversas (POWELL & SNELLMAN, 2004), pois “organizações de todos os tipos e portes têm papéis diferentes a desempenhar numa economia criativa (...) essa divisão do trabalho inovador foi a grande responsável pela recente produção criativa” (FLORIDA, 2011, p. 28). Esses são condicionantes sociais que modelam a pequena empresa inovadora.

Portanto, o desenvolvimento de “economias emergentes” não se faz estritamente pela importação ou aquisição de tecnologias, pelos trans-bordamentos gerados por empresas estrangeiras ou pela tecnologia criada pela grande empresa nacional. Tudo isso é relevante a uma economia em desenvolvimento. Porém, igualmente importantes, podem ser as pequenas empresas inovadoras na criação autônoma de conhecimentos e tecnologias para o desenvolvimento econômico, no contexto da lógica de redes que acompanha o paradigma informacional. Essa é uma constatação que acha endosso no registro de literatura especializada (ALBIZU et al., 2011; ARBIX, 2010; GUIMARÃES, 2011; MANZO, 2011; POWELL, PACKALEN & WHIT-TINGTON, 2010). À luz dos dados mais recentes, as pequenas empresas não estariam condenadas a fornecer componentes e serviços de baixo conteúdo tecnológico e valor agregado, nem a valer-se de mão de obra não-qualificada, na periferia das “cadeias de fornecimento”. É preciso continuidade de pes-quisas sociológicas sobre o tema, a partir de diferentes abordagens teóricas e metodológicas, tendo em vista fazer progredir esse conhecimento.

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NOtAS 1 O artigo baseia-se em resultados da pesquisa intitulada “Aglomerações industriais, tecnologia e trabalho: efeitos sociais do pólo naval de Rio Gran-de”, financiada pelo CNPq. O autor é grato a Sônia Guimarães (UFRGS), pela leitura e considerações ao texto, e a Raphael Jonathas da Costa Lima (UFF) e a Odil Matheus Fontella (PUCRS) pelas contribuições no workshop “Clusters Empresariais e Desenvolvimento: dimensões sociológicas”, realizado no IFCH/UFRGS, em junho, 2012.

2 Os chamados países emergentes, diferentemente da idéia de países peri-féricos, caracterizar-se-iam pelo alcance de estabilidade macroeconômica, pelo crescimento persistente na produção e nos ganhos de produtividade, e pelo amplo potencial de consumo – que envolve populações numerosas e jovens –, consolidando-se como grandes e atraentes mercados no sistema global, em especial no momento em que mercados maduros se deparam com os abalos de uma importante crise financeira e monetária (O’NEILL, 2012).

3 Na formulação de Amsden (2009, p. 29), “desenvolvimento econômico é um processo em que se passa de um conjunto de ativos baseados em produtos primários, explorados por mão-de-obra não especializada, para um conjunto de ativos baseados no conhecimento, explorados por mão-de-obra especializada”.

4 No Brasil, uma recente literatura tem explorado aspectos desses diferentes arranjos sociais entre agentes econômicos. Ver, por exemplo, Comin & Freire (2009), Garcia (2009), Guimarães (2011) e Rodrigues & Ramalho (2007). Os pressupostos relacionais e a recusa às explicações determinísticas pela Nova Sociologia Econômica têm sido particularmente úteis nesse tipo de abordagem.

5 Clusters poderiam ser definidos como uma concentração espacial de atividades econômicas setorialmente especializadas (DEPRET & HAMDOUCH, 2009).

6 Rio Grande situa-se no litoral sul do estado do Rio Grande do Sul, junto à Lagoa dos Patos. Localiza-se a 320 Km de Porto Alegre, a 140 Km da fronteira com o Uruguai e a 550 Km de Montevidéu. A cidade conta com o primeiro porto do Rio Grande do Sul, sendo, hoje, um dos principais do país. A cidade é vizinha do município de Pelotas (cerca de 50 Km), polo regional de comércio e de serviços. Rio Grande conta com cerca de 200 mil habitantes, e Pelotas, com cerca de 400 mil habitantes, em 2011.

7 A pesquisa documental resultou na elaboração de um Banco de Dados Se-cundários sobre a Indústria Naval e do Petróleo no Brasil (GARCIA, ROCHA e WOLFFENBÜTTEL, 2012).

8 A coleta de dados foi procedida mediante entrevistas com roteiro semies-truturado com diretores/gestores, explorando-se características e histórico das empresas, relações com o cluster e o mercado, relações com governos/universidades/associações, e relações de trabalho; adicionalmente, pode-se, em alguns casos, observar as instalações e demonstrações de produtos ou processos inovadores, bem como acessar documentos com informações gerais das empresas.

9 Visitaram-se grupos e departamentos da Fundação Universidade de Rio Grande (FURG), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); foram realizadas entrevistas com roteiro semiestruturado com professores-pesquisadores relativamente

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às características e motivações da proposta de interação com a indústria, incentivos e redes de colaboração, e resultados alcançados nas interações.

10 Cabe referir a discussão que se faz hoje – e que mereceria maior aprofun-damento em novos estudos – sobre os efeitos, para o país, da exploração das riquezas da camada geológica do pré-sal. Os argumentos mais otimistas sublinham as possibilidades criadas pelo fato de que o petróleo não apenas constitui recurso escasso e valioso no ambiente internacional, mas também carrega consigo uma grande “cadeia” de fornecedores, propiciando resultados econômicos e industriais significativos. Nesse caso, além da possível autonomia energética, chama-se a atenção para o impulso ao crescimento econômico e industrial do país (AZEVEDO, 2009). Outros, ao contrário, manifestam diver-sos tipos de preocupação com efeitos perversos dessas riquezas, chamando a atenção para os limites das instituições e da cultura política do país no sentido de orientarem-se pela exploração imediata dos recursos. Nessa perspectiva mais pessimista, pondera-se que o desenvolvimento ou aquisição da tecnologia necessária ao empreendimento exige volumes de investimentos que podem pressionar as contas do país. Outra dificuldade seria a especialização da es-trutura produtiva em torno dessa indústria, deslocando-se recursos escassos. Ademais, levanta-se a inquietação em relação ao ritmo e volume dos gastos públicos (contratação de funcionários, realização de obras questionáveis e “favelização” das cidades envolvidas) (GIAMBIAGI & PINHEIRO, 2012). Essas perspectivas parecem limitadas pela demasiada importância atribuída às instituições e regras formais na vida econômica.

11 Sobre isso, ver o banco de dados documentais alusivos à indústria naval no Brasil (GARCIA, ROCHA e WOLFFENBÜTTEL, 2012).

12 O porto de Rio Grande é o segundo maior do país, detendo maior calado do Mercosul. Movimenta 30 milhões de toneladas de carga ao ano. Assim, a infra-estrutura pré-existente combina-se com condições naturais favoráveis às peculiaridades desse tipo de empreendimento, destacando-se a existência de águas profundas e calmas e a ampla área plana disponível no entorno do porto de Rio Grande.

13 Está, também, em fase de criação o Tecnosul, na cidade de Pelotas (Parque Tecnológico da Universidade Católica de Pelotas – UCPel), que hospedará empre-sas voltadas para a indústria naval fina, entre outros setores de alta tecnologia.

14 A RICINO é uma rede de colaboração entre indústria, instituições de ensino e pesquisa e governo; foi criada no ano de 2009, com o propósito de contribuir para o desenvolvimento tecnológico da indústria de construção naval do país e sua sustentabilidade ambiental e inserção internacional. Essa rede conta com um núcleo regional em Rio Grande, sediado na FURG.

15 O município de Rio Grande revelava, em meados do século XX, a carência de escolas de nível superior, refletindo-se na evasão de significativo número de jovens que se dirigiam a outros centros, em busca de continuidade para seus estudos. Isso resultou no esforço de criação, em 1953, de uma Escola de Engenharia em Rio Grande, justificada pelo elevado número de profissionais na área e pelo parque industrial já existente. As indústrias eram não apenas utilizadas como laboratórios experimentais, como também deram origem aos professores do curso. Em 1969, foi aprovado o Estatuto da Fundação Univer-sidade do Rio Grande, como entidade mantenedora da nova universidade.

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PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO246

RESUMOO artigo aborda a questão do desenvolvimento econômico,

enfocando o recente processo de implantação do cluster de construção naval na cidade de Rio Grande e suas implicações socioeconômicas na constituição de redes de colaboração entre agentes produtivos e, especialmente, nas atividades de pequenas empresas. Os procedimentos de investigação empí-rica envolveram pesquisa de campo conjugada com pesquisa em fontes secundárias. Visitaram-se oito pequenas empresas, três universidades e organizações diversas, relacionadas com o cluster em estudo. O argumento central é que o atual paradigma de desenvolvimento sustenta-se em lógicas organizacionais que favorecem a formação de redes entre agentes produtivos diversos, abrindo-se não apenas novos espaços de ação para a pequena empresa inovadora, mas também novas demandas de interação com universidades.

ABStRACtThe paper addresses the issue of economic develop-

ment, focusing on the recent process of implementation of the shipbuilding cluster in Rio Grande and its socioeconomic implications in establishing collaborative networks of productive agents, and especially in small business activities. The proce-dures of empirical research involving field research coupled with research in secondary sources. Were visited eight small companies, three universities and various organizations, which are related to the cluster under study. The central argument is that the current development paradigm is sustained in orga-nizational logics that favor the formation of networks among various productive agents, not only opening up new spaces of action for small innovative company, but also new demands for interaction with universities.

Palavras-chave: pequenas empresas;

inovação; desenvolvimento econômico; indústria naval.

Keywords:small businesses,

innovation, economic development, shipbuilding.

Recebido para publicação em julho/2013. Aceito em março/2014.

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A expansão da Jurema na Península Ibérica

Ismael Pordeus JúniorAntropólogo e professor Titular da Universidade Federal do Ceará.

Depois da Umbanda e do Candomblé, a Jurema é a mais recente religião brasileira a cruzar o Atlântico e a entrar no complexo de transnacional da Península Ibérica, particularmente, em Portugal, onde dá sinais de expansão. Cada vez mais se instala um debate antropológico sobre as consequências culturais da globalização, que coloca a religião em um lugar de destaque. As religiões se apresentam hoje como transnacionais, conforme Appadurai (2001). É o que será tratado neste artigo, a partir de tópicos de um estudo em realização, em uma Jurema – o Centro Espírita Vila Alhandra –, situada em São Lourenço, Azeitão, Portugal.

Na Mata tem um caboclo / Todo coberto de penas / Este caboclo é Malunguinho

/ Ele é rei lá na Jurema / Na mata tem um caboclo / Com uma peaca na mão / É o caboclo Malunguinho / Não brinque

com ele não.

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O domínio religioso é, por excelência, adepto do transnacional. A trans-ferência entre comunidades, seja qual for a relação de dominação, não ocorre em um único sentido, e as próprias relações sociais se modificam pela ação da diluição de fronteiras. Os elementos passam de uma a outra cultura, podendo existir nas duas, e se estender, amplamente, como que a designar as vias de passagem e a permitir o fenômeno de uma terceira via, uma hibridização da produção de componentes culturais: uma terceira entidade, em constante recomposição, aparecendo, frequentemente, nas culturas das sociedades co-loniais e pós-coloniais. Tudo isso faz emergir uma nova categoria de modelo ideal, o peregrino carismático, na modernidade religiosa.

As religiões luso-afro-brasileiras começaram a instalar os primeiros terreiros após a Revolução dos Cravos, em 1974, e hoje já são mais de quarenta unidades entre Umbanda e Candomblé. Pode-se pensar a adesão de portu-gueses a essas novas religiões se dever a vários fatores. Penso, pela minha experiência de campo, que essa conversão decorreria, dentre outros fatores, da permanência da visão de mundo mágica, manifesta na prática do catolicismo tradicional e da feitiçaria portuguesa, onde as pessoas pensam em intervir no seu destino. Outro motivo seria a proximidade do diálogo entre os convertidos e as personagens do panteão religioso, facilitando, assim, as comunicações de questões relativas ao cotidiano, sem intermediação, como mostrei em outros ensaios (PORDEUS, JR. 2000; 2001; 2009). Essas comunidades são lideradas por pais e mães de santo, em sua maioria portuguesa, embora mantendo, em maior ou menor grau, relações com terreiros e federações brasileiras. Essas relações com o Brasil poderiam ser classificadas em quatro grandes grupos – como constatei em pesquisa anterior (PORDEUS JR, 2009; SARAIVA, C., 2010) –, que, simultaneamente, definem também relações de migração e trânsito de pessoas e de panteão entre Portugal, África e Brasil, bem como as diversas formas de estabelecimento de redes transnacionais. Ultrapassam o paradigma da migração, e se situam em outro: o da diluição de fronteiras, isto é, da aproximação de diferentes grupos socioculturais. Essa situação leva, em muitos casos, toda estrutura social a se diluir, em decorrência da aproximação e do confronto de visões de mundo diferenciadas.

O primeiro desses grupos coloca o Brasil como referência primordial, como foi o caso de Virgínia Albuquerque, que, havendo migrado para o Brasil, em 1950, converteu-se à Umbanda e, em 1974, ao retornar a Portugal, fundou o primeiro terreiro de Umbanda na Calçada Salvador Sá, nº 1, em Lisboa. Ocorrem as primeiras conversões e iniciações e, aí, portugueses começam a viajar para o Brasil, em busca do Candomblé, formando o segundo grupo. Deste, é exemplo a conversão de Tina e Ema – uma na Bahia e a outra no

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Rio de Janeiro, ainda na década de 1980 – que abriram, posteriormente, seus próprios terreiros. Um terceiro grupo começa a trazer, pontualmente, mães e pais de santo brasileiros para fazerem trabalhos e atenderem a uma clientela angariada através de anúncios nos jornais, particularmente no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, propondo serviços de caráter mágico, o que designei de “anti-comunitas” em oposição à communitas, na pers-pectiva de Victor Turner (PORDEUS JR. 2009). E ainda um quarto grupo, relacionado aos serviços de caráter mágico, se constitui de portugueses que tendo se submetido a alguns rituais de iniciação deixam a comunidade e passam a atender em casa, com jogos de búzios ou cartas, e a realizar tra-balhos pontuais, também com as mesmas características anti-comunitas. O campo das religiões luso-afro-brasileiras, ao longo das últimas décadas, se diversificou com a instalação de vários terreiros de Candomblé, liderados, preponderantemente, por brasileiros.

Nos livros Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigração e metamorfose da Umbanda em Portugal (PORDEUS JÚNIOR, 2000) e Portu-gal em transe: transnacionalização das religiões afro-brasileiras, conversão e performance (idem, 2009, 2ª edição), procurei compreender, através das histórias de vida dos convertidos, o nomadismo religioso e a adoção de visões de mundo, pautados por essa perspectiva religiosa, de acordo com a qual a possessão exerce papel central. Em ambos, como aqui neste ensaio, optei por uma abordagem situacional (AGIER, 2013), que me permite seguir a complexidade social, e ao mesmo tempo, sem reter somente o fenômeno da religião artificialmente separada do seu contexto. A reflexividade etnográfi-ca possibilitou, neste quadro, um instrumento teórico centrado na relação entre o antropólogo e o seu objeto; em outras palavras, no dialogismo, na perspectiva de Bakhtin.

A partir da primeira década do século XXI, este campo religioso é am-pliado por uma nova religião procedente do Nordeste do Brasil, a Jurema, para se instalar na Península Ibérica, em Madri e, mais recentemente em Portugal, Cadaval (2006) e, agora, em São Lourenço, Azeitão (2011). Esse fenômeno não pode ser visto como um fato isolado, mas relacionado com as outras religiões luso-afro-brasileiras já instaladas em Portugal, conforme mencionei antes.

A JUREMA, A RElIGIãO DE ENCANtADOS, FUMAçA E VERSO

A palavra Jurema possui designações múltiplas, associadas ou inter-rela-cionadas, em um complexo imaginário. O primeiro significado é botânico, Mimosa hostilis Benth, pertencente à família Fabaceae. Designa, também,

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uma prática de caráter religioso, em torno de uma “árvore sagrada” conhecida regionalmente como Jurema Preta. Desta, tudo se utiliza para fins de cultos e curativos. As folhas são usadas para banhos de desenvolvimento espiritual (diz-se não haver nada mais eficaz para a aproximação dos mentores espirituais); a casca é utilizada para a elaboração de chás e beberagens com fins purgativos e cicatrizantes; e ainda do ponto de vista religioso, para a elaboração de um “licor sagrado”, que tem como principal objetivo garantir melhor e mais fácil sintonia entre o mundo material e o espiritual, por aqueles que dela fazem uso. A sua raiz é um potente antisséptico e cicatrizante, adotado sob mais de cem formas diferentes, a depender da finalidade desejada. A jurema é, ainda, uma personagem espiritual, uma “cabocla”, ou divindade invocada – tanto pelos indígenas, como por seus remanescentes diretos – nas cerimônias da Jurema, instituída como religião, e, também, no Espiritismo de Umbanda.

José de Alencar, em sua obra mais difundida voltada para o indianismo – o romance Iracema: lenda do Ceará, editado em 1865 –, mostra a tradição e o mistério do rito sagrado da Jurema, e do fumo, utilizados em rituais por diversas etnias indígenas no Nordeste. A descrição romanesca de Alencar se aproxima das matrizes do complexo ritual relacionadas à Jurema. A coleta para elaboração do vinho da Jurema, a utilização do cachimbo com tabaco para a emissão da fumaça, e a ingestão do vinho e o seu efeito de “fazer sonhar” são freqüentes nos rituais, tanto quanto nas páginas deste romance1.

Em sua viagem de turista aprendiz, Mário de Andrade, em Natal (RN), no dia 31 de dezembro de 1928, foi a um Terreiro e ali se submeteu a um ritual de “fechar o corpo”. Ele escreveu:

A cada invocação, a cada reza, seguia um gesto cabalístico com o maracá e o refrão sendo gritado com ritmo pelos dois mestres... Os dois mestres enchiam os cachimbos de fumo... acendiam o fumo bem, e cachimbando às avessas, sopravam o fumo pelo bocal, ritualmente de cima para baixo (ANDRADE, 1983: 252).

A performance ritual na Jurema se concretiza pela utilização da fumaça.A referência às práticas religiosas relacionadas à Jurema é feita na

historiografia colonial, como mostra Luís da Câmara Cascudo: “(...) em um registro de óbito (Natal, 2-6-1758) Índio Antônio, sabe-se que estava preso por razão do sumário que se fez contra os índios de Mopibú, os quais fizeram Adjunto de Jurema, que se diz supertícios” (1959: 62).

Foi em Cadaval, Portugal, que meu interesse pela Jurema ganhou força. Formou-se uma comunidade de brasileiros, angolanos, e espanhóis, das mais

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diversas categorias profissionais, como médicos, psicólogos, professores e ou-tros profissionais liberais. Esse terreiro se constituiu, assim, como um espaço sem fronteiras, onde as categorias de trabalho e de nacionalidade se diluíam.

Na Jurema, um dos aspectos fascinantes para mim, dentre outros, são os pequenos versos, as orações cantadas pelos personagens do panteão, ocasião em que são narrados feitos, exaltadas personalidades, feitas referên-cias à fauna e à flora, evidenciadas qualidades mágicas e relatadas ações do cotidiano. Essas orações performativas, não sendo falsas nem verdadeiras, são enunciações que objetivam desencadear os bons augúrios, afastar a aflição cotidiana, invocar as personagens do panteão, e fazer algo para que o bem-estar permaneça sob sua proteção. É no ritual que se encontra o contexto da enunciação e é nele que se realizam os atos ilocucionários de expressão de desejo, sugestão, advertência, agradecimento, crítica, acusação, afirmação, súplica, promessa, desculpa, jura, autorização, declaração (PORDEUS JÚNIOR, 2009). Esses versos, no mais das vezes, se aproximam do cotidiano, da visão de mundo tradicional, e lembram as rimas dos versos encontrados na literatura de folhetos, tão comum nas feiras do Nordeste brasileiro.

Estas observações sobre os versos são válidas para as melodias, repe-titivas, e sem maior complexidade musical. Penso ser essa música – como encontramos na Umbanda, no Candomblé e em outras religiões, nas quais é utilizada a possessão para a comunicação com o sagrado – um auxílio valioso dos processos mnemônicos, servindo, ainda, para auxiliar o desencadea-mento do transe e da possessão. Há muito se sabe sobre o papel da música nesse processo, como mostrou Gilbert Rouget, no clássico La musique et la transe (1980).

Outros aspectos da práxis religiosa mais complexa foram me fasci-nando, à medida que participava dos rituais. Além da feição festiva em si da religião, esse entusiasmo é muito provocado pelo ritmo do tambor e pelas marcações do maracá. Não vi nos terreiros de Umbanda e Candomblé, em Portugal, tamanho entusiasmo.

Em nossas conversas, o pai-de-santo e juremeiro Arnaldo Burgos mostrou sempre a preocupação com esses pontos cantados, declarando a vontade de registrá-los, pois, em suas viagens ao Recife, depois de sua instalação na Península Ibérica, percebia a modificação e o esquecimento de muitos deles, e me dizia do medo de estar se perdendo um patrimônio religioso. Então, resolveu escrever e assim organizei, fiz uma introdução e cuidei da edição do livro Jurema sagrada: do Nordeste brasileiro à Penín-sula Ibérica, editado pelo selo do LEO da UFC, em 2012. O ineditismo dessa abordagem é ser escrito por um juremeiro, líder do grupo religioso, passível,

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assim, de proporcionar uma pluralidade de estranhamentos, não somente a mim, mas a outros pesquisadores dessa área.

Uma tentativa de explicação desse tipo de literatura é a sua produção de forma autônoma, e designada por mim, como literatura orgânica, porque o autor pertence à própria religião, e, nas palavras de Antônio Gramsci, se trata do intelectual orgânico, pois cada grupo social, com papel decisivo na produção, engendra seus próprios porta-vozes e intérpretes. Jurema sagrada foi escrito como um manual teológico, organizado de forma a possibilitar a consulta dos rituais de iniciação, dos mitos e seus pontos estruturantes da práxis religiosa, como pode ser percebido por quem o manuseia.

Os pontos – expressos na forma cantada –, como manifestações e evo-cações das personagens do panteão, e a utilização do cachimbo, têm um papel fundamental nos rituais, pois a emissão da fumaça é desencadeadora dos pro-cessos de comunicação com as entidades, e dos trabalhos a serem desenvolvidos. Esses cantos são importantes porque existem no decorrer das performances rituais mais variadas, tanto aquelas relacionadas às cerimônias coletivas, como as relacionadas com algumas pessoas. Podem ser listados os rituais de limpeza; as oferendas às entidades; a elevação do grau do juremado; os rituais fúnebres; por motivos de iniciação; descontentamento das entidades com alguma situa-ção ou com algum dos participantes; advertência de interferências de energias negativas no culto, dentre outros. Os cânticos, em uma casa de Jurema, são para que as entidades possam advertir e aconselhar os indivíduos presentes, ou seja, esclarecer qual é a situação daquela reunião através de uma visão espiritual e, desta forma, advertir para que haja mais concentração, chamando atenção em relação às inúmeras situações que possam vir a ocorrer.

A JUREMA EM AzEItãO

Conheci o juremeiro Josenildo ainda em 2007. Ele havia chegado há pouco de Madrid, onde tinha vivido por dois anos, e estava com a intenção de abrir uma casa de Jurema em Portugal, pois na Espanha, dentre outras questões, sentira dificuldade por não ter domínio da língua. Em Portugal, as pessoas já detinham muitas informações, pois haviam peregrinado por outras casas de Umbanda e Candomblé. Quando da pesquisa, cujo resultado foi o livro de minha autoria anteriormente citado – Portugal em transe – eu o havia entrevistado. Posteriormente, o reencontrei com sua casa instalada, e esta é objeto de minha pesquisa atual.

Optei pela utilização da história de vida como técnica de pesquisa, aplicada aos fenômenos relacionados às fronteiras de locais incertos (AGIER,

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2013), de tempos incertos, ambíguos, incompletos, as situações entre dois, pondo em relação, um aqui e um acolá, um mesmo e um outro, um fato local e um contexto global. A Jurema – desde a matriz pernambucana, no Recife, até o processo de migração para a Península Ibérica, em Madrid, em um primeiro momento, e depois para Portugal – veio a se tornar mais uma religião a compor o complexo do universo luso-afro-brasileiro, com a aber-tura do centro espírita Vila Alhandra. Por meio da história de Josenildo, se tem a possibilidade de acompanhar toda uma carreira voltada para a prática religiosa. É o que ofereço ao leitor no texto que se segue.

A JUREMA NUMA HIStóRIA DE VIDA

“Meu nome é Josenildo. Nasci no Recife, Pernambuco, em 1970; sou filho de pais pertencentes ao Candomblé e à Umbanda e minha mãe já cultuava a Jurema. Comecei a frequentar os terreiros com a idade de oito anos, acompa-nhando minha mãe. Adolescente, já sentia a proximidade dessas entidades, auxiliando nas festas e nos outros trabalhos relacionados ao culto e, a partir dos meus quinze anos, comecei a frequentar terreiros de Jurema, escondido da família, em Goiana. Mais tarde, vim a se iniciar em um terreiro em Igaraçu, onde fui batizado – uma das etapas dos rituais de iniciação –, tendo como Mestre Zé da Risada, o qual passei a incorporar.

Durante um tempo, fiquei nessa Casa, trabalhando na Jurema. A vida material foi mantida pelo trabalho em loja de venda de tecidos, mas tudo dava errado em minha vida econômica. Tomei conhecimento de outra Casa e lá fui; e através de um jogo de búzios me foi cobrada uma obrigação: o ritual de sete anos na casa de Mãe Elza de Agunté. Fiz as obrigações e me tornei juremeiro na casa dela. Fui ficando e renovei a Jurema em 1998. Passei sete dias recolhido, foram lavadas as guias, arriados Príncipes e Princesas, arriadas as folhas no chão. Depois, toda a jurema foi recolhida e levada para a mata. Lá, escolhi uma árvore na entrada, pra Malunguinho; depois, mais adiante, uma para o Caboclo, outra para o Mestre, outra para o Preto Velho e Preta Velha, para a Pomba Gira e cada uma arriei uma obrigação. Foram sacrificados pássaros, galinhas, cabras, bodes, preás e coelhos. Depois, o banho de ervas tomado dentro do rio, onde se deu o ritual do peixe para ninguém atrapalhar quando for trabalhar.

Jurema se aprende:A Jurema é encantadaTodo mundo quer saber

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Trabalha como casa de abelhaTrabalha que ninguém vê.

É um aprendizado grande; através da prática, cada entidade vai te ensinando. Recebi no ritual um saco contendo o cachimbo, a maraca, a faca, a semente da jurema e do angico, os instrumentos do trabalho do juremeiro. Fiquei na Casa e comecei a ter filhos e afilhados. Dava consulta com seu Zé da Navalha. Cada vez mais, fui assumindo maiores responsabilidades. Um dia, resolvi sair e abrir minha Casa. Levei a minha Jurema para a casa dos meus pais carnais. Dava consulta na casa de um afilhado ou em casa. Afinal, meu cunhado me cedeu uma casa e levei a Jurema pra lá e trabalhava nos dias de sábado e domingo, no Centro, o dia inteiro; era fila a não acabar, de gente a querer consulta com Seu Zé da Risada. Foi seu Zé quem mandou chamar a Casa de Vila Alhandra. Trabalhei nela durante três anos.

Antes de abrir a Casa, eu já tinha um projeto de morar na Europa e amigos na Espanha já haviam me convidado; queria conhecer outra cultura. E aí, cansado do trabalho na loja de tecidos, pedi minhas contas. Deixei a Casa na mão de uma pessoa, não deu certo. Depois já instalado aqui, voltei e não fiquei satisfeito com o que vi e levei minha Jurema de volta à casa de minha mãe...

Na Espanha, já existia Casa de Candomblé, e lojas especializadas na venda de material para as práticas dessas religiões. Não vim com intenção de abrir Casa. Fiquei lá dois anos e vim para Portugal, onde também conhecia pessoas e elas começaram a me estimular, a cobrar a abertura de minha Jurema. A pedra da casa foi Helena, que havia conhecido seu Zé da Risada e tinha muita admiração, fé e respeito por ele. A terra necessitava, espiritual-mente, disso, e eu trouxe a cultura da Jurema. Comecei a dar consultas em minha casa, não tinha Exu sentado. Trabalhava em uma empresa de painel solar, montava as peças; depois fui para a DHL, mas continuava com a Jurema (...). Quando precisava, Helena e Beta me ajudavam, trabalhavam comigo. Depois, fui morar em uma casa e tirei um quarto só para a Jurema; isso em 2010. Lá, fiz a renovação de um filho.

Um dia, Maria Navalha, minha mestra, pediu um endereço ao Jorge e foi aí que apareceu essa mini quinta. Era um galpão velho e ficou assim durante um ano. Decidi vir morar e instalar a Jurema, como é para ser. No portão de entrada, coloquei duas quartinhas; uma delas a do meu Ori-xá, Iansã, e a outra de Exu. Sentei Seu Malunguinho em uma cabana no terreno do lado esquerdo, com a estátua dele, e suas cuias. Aqui tem muita laranjeira. Fiz um local para o Exu e o assentei. Eu, eu mesmo fiz a estátua,

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metade homem, metade mulher onde também tem o Cruzeiro das Almas. Nesse espaço é onde são feitas as oferendas para Exu, Pomba Gira e as Al-mas. Construí o salão da Jurema, uma primeira sala ainda aberta aonde se realiza a Jurema de Chão. Na sala fechada, está instalada, o altar e a mesa de consagração contendo vários objetos ligados à natureza e ao mundo dos encantados para fazer as invocações. São os príncipes, copos, bacias, água, cachimbos, maracas, tronco de árvores sagradas e várias imagens dos meus encantados, do meu preto velho, índios e santos católicos. Nessa sala é onde realizo Jurema de Mesa, e Maria Navalhada dá suas consultas. Ainda vou fechar a outra sala, pois no inverno fica muito frio. Tem ainda muito a fazer, pois ainda vou abrir um espaço para fazer a iniciação, onde a pessoa possa ficar recolhida. Seu Zé da Risada quis o nome do terreiro o mesmo de Recife, Casa de Vila Alhandra, e me autorizou a morar na metade do galpão, onde construí um quarto, uma sala, a cozinha o banheiro (...). Tenho hoje umas trinta pessoas que vêm regularmente.

Aqui em Portugal, a maioria das pessoas a me procurar se relaciona a questão sentimental, de solidão, à procura de uma companhia. No Brasil, me procuravam mais por questão de trabalho, questão financeira, e também de amor. Não é feitiçaria, de amarração. Maria Navalhada é muito querida e muito procurada. Digo assim, sessenta por cento das pessoas vêm por questão sentimental; o restante é saúde e trabalho. Aqui, muita gente sofre de depressão. Tem muita superstição da maldade, do olho grande, acreditam em bruxo...

Tenho culto de Exu e Pomba Gira e consulto com mestres na parte de amor. Trabalho mais com mestre e mestra; foram espíritos que tiveram uma vida e compreendem melhor os problemas. Para fazer e desmanchar é com eles. Seu Zé da Risada é da cidade de Acais, onde está o fundamento de Alhandra. Maria Navalhada é uma mestra da pesada. Vem na magia, é gente do lado do feitiço...”.

O PANtEãO

O panteão – com a incorporação de homens e mulheres, personagens com histórias extraordinárias sendo absorvidas – evidencia o seu destaque social durante a trajetória desse culto. Além dos mestres e mestras, o panteão é composto ainda por ciganos, pajés, encantados, botos, caravelas, marinhei-ros, sereias, e ondinas. Através do contato com o Candomblé, com o Xangô; e com a Umbanda, foram incorporados ao panteão: pombas giras, exus e pretos velhos, além de santos cultuados no catolicismo tradicional.

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O imaginário reconstrói e transforma o real, e, ao se liberar, pode inverter, fingir, improvisar, criar correlações entre as coisas, de uma ma-neira imponderável, e condensar fundindo essa imagem. O imaginário é uma fábrica de deuses: os homens constroem, no processo do imaginário, os deuses que passam a existir no cotidiano de suas experiências sociais, transformando e reorganizando a sociedade. Na Jurema em estudo, pode ser vista, nesse sentido, a presença de Malunguinho. Trata-se de um rebelde afro-americano que, no período da libertação dos negros escravos, destacou-se em Itapissuma, zona norte do litoral pernambucano, tal como Zumbi nos Palmares, pelo enaltecimento da liberdade dos negros e seu apoio a todo aquele que se rebelava contra a escravatura. Malunguinho, talvez, por este motivo, tenha se tornado, tal como Exu no Candomblé, o grande protetor das portas das casas de Jurema.

Os trabalhos mágicos religiosos atendem – através da mobilização dos personagens do panteão, como em outras religiões luso-afro-brasileiras – aos estados de aflição das pessoas no seu cotidiano. Na busca de respostas ao desejo de prosperidade, estão os trabalhos com plantas, voltados para a saúde; as misturas de folhas e ervas para a utilização pelo cachimbo ritual; a renovação espiritual; a transformação e o equilíbrio do juremado; disputas e conflitos nos quais o trabalho utiliza as “forças de esquerda”, onde são transformadas as energias, inclusive as magias curativas.

O MUNDO DA JUREMA

Para os juremeiros, o mundo espiritual é composto por reinos e cidades: Jurema, Angico, Jucá, Açucena, Gameleira, Vacujá, Canindé, Acais. Há uma variação no nome dessas cidades encantadas, dependendo de uma ou outra tradição.

Cada reino ou cidade tem seus protetores. Alhandra, no estado da Paraíba, por exemplo, é berço de Maria do Acais. Esta se tornou mestra depois da morte; o jardim de sua antiga casa conservava, até pouco tempo, árvores de jurema, no tronco das quais podiam ser encontrados indicadores de culto, como fitas, restos de velas, cachimbos, chapéus. É de Alhandra, também, Malunguinho, um guardião, como Exu. Toda gira começa pedindo a sua proteção. Ele vem como Mestre e como Caboclo. Como muitas outras entidades, teve uma vida material, foi guerreiro na floresta de Catucá.

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OS CABOClOS

Os caboclos – como também os mestres – são assentados nas mesas de Jure-ma. As entidades dos caboclos são consideradas como entidades indígenas. Tal como na Umbanda, índio é caboclo, caboclo é índio. Nas giras, quando incorporados, dão passes, realizam descarregos, e são relacionados a uma categoria geral de espíritos mais elevados e trabalham para a realização de atos considerados positivos, para o bem. Nas mesas, se encontram represen-tados por estátuas de índios. Suas oferendas são frutas, flores, peixes, carne e mel. Também são oferecidos pequenos animais como preás, porquinhos da índia, coelhos, pois são associados à caça. Recebem, ainda, oferendas de batata doce, mandioca, bolos, vinhos, refrigerantes, e as velas. A utilização do fumo é constante, seja por meio do cachimbo, onde o fumo é preparado com incenso, benjoim, mirra e erva-doce; seja por meio do cigarro, pois a fumaça é um dos componentes do complexo mágico religioso. A fumaça sobe se espalha e “leva a mensagem ao mundo sagrado”, “tanto cura como mata”. Os caboclos são do gênero masculino e feminino e as crianças também dos dois gêneros, como os Êres no Candomblé.

OS MEStRES

Os mestres usam ervas em seus trabalhos e são conhecedores dos poderes curativos das plantas. Além disso, atendem de modo geral às aflições do coti-diano, como questões relacionadas ao trabalho, ao amor, além de desfazer as demandas dos inimigos. O mestre do juremeiro doutrina os juremados da Casa, ensinando-lhes os segredos da jurema. Cada um deles está associado a uma das cidades e a uma planta determinada; entre as plantas, a própria jurema é a principal. Dessas plantas, o mestre tira sua força para realizar os trabalhos. Da casca e das raízes da jurema e de outras ervas, juntando-se com aguardente, se faz a bebida da Jurema, utilizada nos rituais, e também como medicação.

Os juremeiros (mestres e mestras) recebem oferendas de aves e animais e até mesmo de novilhos, como Gavião, que ganhou o sacrifício na sua festa em Cadaval. Apresentam-se jocosos e são muito respeitados. As mestras, como os mestres, têm suas especialidades no que se refere às questões espirituais, quer nas questões de esquerda, quer nas questões de direita. Maria Navalhada, por exemplo, era prostituta no cais do Recife, teve a casa na Rua da Guia, uma zona de meretrício recifense. Mestres e mestras são especialistas em assuntos sentimentais, fazem “amarrações” e desfazem casamentos.

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Os mestres, no geral, foram pessoas que viveram em determinadas localidades, tiveram uma vida ali e se tornaram heróis em suas comunidades. Segundo a tradição, podem ter sido escravos ou fazer parte da população mestiça do Nordeste. E, ao morrerem, se encantaram, a exemplo da mestra Maria de Açaís; e moram em cidades encantadas. Essas cidades são ainda invocadas, em relação ao personagem e ao papel a ser exercido durante o ritual, isto é, nos trabalhos a serem desenvolvidos.

Personagem importante no panteão é, assim, a mestra Maria de Acais, cujo nome era Maria Gonçalves de Barros. Nasceu e residiu, durante a vida inteira, no município de Alhandra, na Paraíba, considerada pelos juremeiros como a mais sagrada de todas as cidades. Trata-se de um centro de romaria, onde milhares de pessoas praticam rituais nas juremas no entorno da Casa de Maria de Acais, local também de outros mestres famosos, como Damiana Guimarães e Zezinho de Acais.

Fiquei fascinado por essas “cidades encantadas” e, retornando a Fortaleza, depois de uma temporada de pesquisa em Portugal, resolvi ir a Alhandra, nas proximidades da fronteira da Paraíba com Pernambuco. Queria saber de Maria de Acais e da Cidade Encantada. Quando lá cheguei, um rapaz me explicou não haver mais a prática da Jurema na cidade, pois a última juremeira havia falecido. Um pouco distante do centro da cidade, à beira de uma estrada asfaltada, se encontravam algumas paredes, ruínas de uma antiga casa de duas janelas, onde estava afixada uma placa escrita “Acais”. Rodeamos a casa e, nos fundos do terreno, junto a vários grandes pés de jurema, se viam quartinhas, fitas amarradas nos galhos; em outro tronco, uns chapéus, ali deixados pelos mestres da Jurema. Tratava-se de um local de peregrinação nacional, como posteriormente constatei no “Youtube” , onde são armazenados registros de festas ali realizadas.

Outras entidades fazem parte do panteão da Jurema, em papéis secun-dários, como Preto Velho e Preta Velha. Como na Umbanda, são espíritos de velhos escravos africanos, e realizam bênçãos voltadas para cura. Há ainda os exus e pombas giras no panteão. Aparecem como submetidos ao poder dos mestres e vinculados aos trabalhos ditos “pesados”.

Em Portugal, conforme constatei nesta pesquisa, troncos de plantas assentados em jarros de barro simbolizam os mestres dos juremeiros da Casa; e aí estaria o “segredo da Jurema”. Ficam próximos à mesa ou embaixo dela, um pouco escondidos. No altar – designado de Mesa de Jurema –, estão príncipes e princesas assentados em taças ou louça cheias de água, junto com santos católicos e imagens de índios. Junto a essas mesas, se realizam as oferendas ou bebidas aos encantados. A disposição desse altar lembra

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muito o altar da Umbanda, com três degraus; e a profusão de objetos como cachimbos e maracas remete a uma composição barroca.

A NãO-FRONtEIRA E SUA PERFORMANCE

Parto da reflexão de Hervieu-Léger (2005), sobre a modernidade religiosa, baseada em dois modelos descritivos ideais, a saber: o peregrino, que trilha um caminho espiritual individual, e o convertido, que escolhe a sua própria família e pertença religiosas. Tomando como base essas categorias, em se tratando das religiões luso-afro-brasileiras, chamei a atenção, anterior-mente, em Portugal em transe, para a junção desses dois modelos, e propus um terceiro, o de peregrino-convertido, o qual, vindo “de outras práticas religiosas, passa por experiências em outros credos, deambula no campo religioso, e se converte a uma religião onde encontraria uma resposta para os seus problemas” (PORDEUS JR, 2009: 69).

Agora, ampliando essas categorias da modernidade religiosa, chamo a atenção para uma quarta categoria, a de peregrino carismático, líder religio-so que se desloca e cria um novo grupo de peregrinos-convertidos, institui uma comunitas e se torna seu líder carismático, como se pode perceber pela história de vida de Josenildo Ferreira da Silva. Penso ser esta uma categoria explicativa possível de ser utilizada para se analisar o processo contemporâneo das religiões, concebido como uma situação de fronteira, onde as dimensões sociais e espaciais realizam suas performances e cada um faz sua própria experiência de mundo e dos outros.

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NOtA 1 Foi consultada a edição da Imprensa Universitária do Ceará (1965), come-morativa do centenário de publicação do romance Iracema: lenda do Ceará, de José de Alencar. Pesquisa realizada gentilmente por Gilmar de Carvalho.

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RESUMODepois da Umbanda e do Candomblé, a Jurema Encan-

tada é a mais recente religião brasileira a cruzar o Atlântico e a entrar no complexo de transnacional da Península Ibérica, particularmente, de Portugal, onde dá sinais de expansão. As religiões são por excelência, adeptas do transnacional. A transferência entre comunidades passa de uma a outra cul-tura, podendo existir nas duas, e se estender, em um sentido bem mais amplo, como que a designar as vias de passagem e a permitir o fenômeno de uma terceira via, uma hibridização da produção de componentes culturais: em constante re-composição, aparecendo, frequentemente, nas culturas das sociedades coloniais e pós-coloniais. Tudo isso faz emergir uma nova categoria de modelo ideal, o peregrino carismático, fundador de novas comunidades na modernidade religiosa. É o que será tratado neste ensaio a partir de tópicos de um estudo em uma Jurema, o Centro Espírita Vila Alhandra, situada em São Lourenço, Azeitão, Portugal.

ABStRACtFollowing Umbanda and Candomblé, the Jurema Encan-

tada is the most recent Brazilian religion to cross the Atlantic and to penetrate the transnational complex of the Iberian Peninsula, notably Portugal, from where it shows signs of ex-pansion. Religions are, in essence, adept of the transnational. They will transfer from one community to another, despite the cultural differences, and may exist within both, and expand, in a broader sense, as if to designate the passage ways and to allow the phenomenon of a third way, a hybridization of the production of cultural elements: in constant rearrangement, often showing in colonial and post-colonial societies. All this contributes to the emergence of a new category of ideal mod-el – the charismatic peregrine, founder of new communities of modern religiosity. This is the object of our essay, based on topics of a study of one Jurema, the Centro Espírita Vila Alhandra, in S. Lourenço, Azeitão, Portugal.

Palavras-chave: transnacionalização,

religiões lusoafrobrasileiras, Jurema, transe, possessão,

árvore encantada.

Keywords:transnationalization,

luso-Afro-Brazilian religions, trance, possession,

enchanted tree.

Recebido para publicação em julho/2013. Aceito em setembro/2013.

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Questões culturais no Ceará

Gilmar de CarvalhoDoutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC de São Paulo). Professor aposentado do Instituto de Cultura e Arte da UFC.

Falar de cultura implica adentrar um cipoal de teorizações, em buscar aplicabilidade de alguns conceitos e definir uma visão de mundo e de pesquisa como ponto de partida para as reflexões feitas.

Compreendendo, de forma bem rasa e próxima ao senso comum, a cultura como tudo o que tem a marca do humano, podemos ver que a abrangência que temos diante de nós, mais que desafiadora é inibidora e pode levar tanto à megalomania das visadas panorâmicas como à perda de foco pela rejeição de um escopo melhor recortado e definido.

Norteado por tais referências, escolhi alguns temas para pensar e falar, levando em conta as especificidades de uma condição cearense, da ideia de cultura que parte da tradição e se atualiza

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com novas tecnologias e mídias, e do contexto da chamada Indústria Cultural, sob a égide da definição de políticas culturais.

O Ceará existe de fato. O que foi no início uma mera convenção para atender a uma questão geopolítica – a definição de capitanias hereditárias no quadro de um “descobrimento” deste continente por parte de portugueses e espanhóis – ganhou, ao longo do tempo, um caráter que possibilita uma discussão sob o ponto de vista da construção, reforço e desmontagem dos es-tereótipos como guarda-chuva como base para uma definição identitária, tão difícil quanto complicada de ser resolvida assim, com pouco tempo, em um texto que pretende trazer mais inquietações que respostas prontas e acabadas.

Vale ressaltar a pouca importância inicial das terras cearenses, a meio caminho entre os engenhos pernambucanos e a exuberância pré-amazônica do Maranhão. O Ceará instalava um areal, de difícil acesso por via marítima, pro conta das correntes, das dunas semoventes e dos ventos que dificultavam a navegação.

O donatário da Capitania, Antonio Cardoso de Barros, sequer se dig-nou a atravessar o Atlântico para tomar posse da terra que ganhou no novo mundo. E ganhamos assim, a rejeição paterna, em uma proposta que dialoga com o “não” do pai, no pensamento do psicanalista francês Jacques Lacan, atualizando, com forte base linguística, o legado do austríaco Sigmund Freud.

Certo é que não tivemos pai e ganhamos um mito fundante na figura de Iracema, ficção, com base em lendas indígenas, contribuição do romancista José de Alencar, desterrado aos dez anos de idade, na busca de compreender e de estabelecer laços com a terra que o viu nascer.

Iracema, anagrama de América, seria a mulher virgem que era a guardiã dos segredos da jurema, um vegetal que provoca estados alterados de consciência, e que teria se apaixonado pelo homem branco, que aportou na costa. O casal multiétnico e multicultural gerou o primeiro cearense, Moacir, o filho do sofrimento. O homem se afasta, a mulher morre depois de dar à luz o filho e começa aí um processo de errância, um mal-estar que não conhece tréguas, diante da aridez e infertilidade do solo, da escassez de água, da pobreza atávica e da fome ancestral que nos marca até hoje.

CEARENSES?

Diante de um quadro tão desfavorável, por que somos e continuamos a ser cearenses?

A configuração do nosso território ajuda a explicar algumas questões. Além das dificuldades de um porto natural (ainda hoje, passados mais de

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cinco séculos, investimos milhões e importamos tecnologia de ponta para termos um porto no Pecém) e das complicações para a navegação, estivemos protegidos, desde sempre, por contrafortes de serras. A Ibiapaba nos limita com o Piauí. O Apodi faz fronteira com o Rio Grande do Norte. A Chapada do Araripe nos separou e depois nos uniu a Pernambuco. E assim, protegi-dos, podemos desenvolver hábitos, reforçar valores, desenvolver práticas e constituir um repertório comum, que nos dá esta liga, que nos faz irmãos, parecidos e, ao mesmo tempo, tão diferentes.

Mas nem tudo foi tão simples como parece ser a alguns nesses tempos de valorização da diversidade, da compreensão das tensões, da valorização das etnias indígenas, da aceitação da herança africana e da arqueologia em busca de traços mouros, judeus, ciganos. Somos feitos de todo este amálgama, numa receita que não consta de manuais, ao sabor de um sol causticante, diante de dificuldades de tirar da terra o próprio sustento. Isso nos faz únicos e nos faz iguais a tantos povos, a tantas etnias, que sabem o que significa a luta, a migração e o genocídio.

Iracema, nosso mito fundante, foi o resultado do que Alencar ouviu, pressentiu e inventou como forma de justificar nosso berço. E veio como provocação, no momento em que as autoridades do Império decidiam, por decreto, em 1861, que não existiam mais índios no Ceará. Vivíamos este apa-gamento da contribuição indígena, os primeiros donos da terra. Em relação aos africanos, fazíamos a festa porque fomos a Província que primeiro de-cretou a Abolição da Escravatura, quatro anos da luta que levaria a conquista ao plano nacional, e tínhamos as vozes dissonantes a esta algaravia festeira que dizia que a emancipação se dera em razão do número insignificante de cativos entre nós.

Certo é que temos muito forte uma herança indígena, que nos plas-ma, que nos molda e que nos dá parâmetros de uma ancestralidade, e que vem sendo reconhecida aos poucos, com mais ênfase desde 1980, com os Tapeba, passando pelos Tremembé, pelos Potiguara, pelo Pitaguari, pelos Jenipapo-Canindé, etnias que foram ganhando reconhecimento, ainda que não tenhamos resolvido de todo as questões fundiárias, tão incômodas, ainda hoje, para parte das elites oligárquicas cearenses.

Indígenas que trouxeram para nossa cena cultural o toré, uma mi-tologia rica e vida, pinturas das paredes com o barro ou toá, artesanato de contas e penas, o mocororó... Como antes tinham trazido a tecnologia de retirar o veneno da mandioca para possibilitar a fabricação e o consumo da farinha de pau, item essencial de nossa gastronomia, da mesma forma que o subproduto do polvilho ou goma, ingrediente para a tapioca, nosso disco de

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pizza, que vem ganhando as mais inusitadas coberturas ou recheios, fazendo a festa dos nativos e dos turistas.

Indígenas que deixaram vestígios de machadinhas de sílex, ca-chimbos, inscrições rupestres e que contribuíram para a excelência da nossa performance no barro, na modelagem da cerâmica, técnica e arte que se espalha por todo o território cearense, com “ilhas de excelência” em Cascavel, Viçosa do Ceará, Ipu, Limoeiro do Norte ou Missão Velha, por exemplo, com seus fornos que substituíram a queima das peças nas chamadas “coivaras”, quando a lenha reveste as peças e o fogo é ateado até o ponto da queima.

Ancestrais que também nos deixaram a tecnologia da cajuína, quando o suco do caju é decantado e filtrado, com ajuda de enzimas que estão ou estavam nas resinas das árvores e depois são cozidas, obtendo-se um líquido dourado, cujo açúcar vem da própria fruta, o que o torna ainda mais valo-rizado e charmoso nestes tempos de valorização do bem-estar e da rejeição aos excessos de açúcares adicionados.

Herança maior, talvez, em termos de construção de uma simbologia heróica, pela entrada em cena das jangadas, embarcações aparentemente frágeis, sofisticadíssimas sob o ponto de vista da construção naval, que ris-cavam os mares com sua jangada de vela e levando a bordo nossos intrépidos pescadores, com seus “corações guerreiros”, como diz a letra do nosso Hino, de autoria de Tomás Lopes, com melodia de Alberto Nepomuceno.

Ganhamos um legado africano que se perfaz no maracatu, este cortejo que marca com sua batida solene, um tempo ancestral, de rainhas africanas sendo coroadas nas festas e procissões das irmandades religiosas do Icó, do Aracati, do Crato e de Fortaleza, por exemplo.

O maracatu cearense tem um traço comum e diferenciador dos outros maracatus. Ele faz a integração dos negros com os índios no mesmo cortejo. Faz na prática o que os teóricos levaram anos para propor e o que a socie-dade civil ainda hoje, apesar de todo o avanço da legislação, ainda vê com dificuldade: o encontro entre os diferentes, a riqueza que se obtém a partir de várias contribuições no caldeamento cultural.

Os portugueses trouxeram missões jesuíticas que criaram reduções, onde os índios eram educados sob o ponto de vista cristão e aprendiam a fazer a renda com o ponto no ar, a partir dos jogos de bilros e das almofadas cheias de palha. Nascia nossa habilidade, do ponto de vista do contexto dos valores das civilizações ocidentais. Estas rendas vinham de Portugal e dos Açores, mas dialogavam com a Espanha, com Bruges e outras cidades de Flandres (hoje Bélgica) e incorporavam influências de culturas outras, distantes e perdidas.

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Os portugueses trouxeram tantas coisas, mais visíveis ou prevalecentes porque se tratava da cultura oficial, ainda que tenha se mesclado ou caldeado, ao longo do tempo, com a alegria indígena ou com o banzo africano, com a liberdade e com a submissão, com o torém e com o batuque, com Tupã e com Yemanjá.

A religião não é um traço característico nosso, ainda que tenhamos desenvolvido uma fé sem amarras e sem condições, e que o Ceará tenha sido berço de três figuras referenciais do catolicismo sertanejo: Ibiapina, Conselheiro e Padre Cícero.

Ibiapina era o bacharel em Direito, com expectativa de carreira bri-lhante, quadro das elites e que largou tudo para de dedicar aos desamparados de sempre. Antonio Mendes Maciel, o Conselheiro de Quixeramobim, tentou implantar a utopia de uma sociedade socialista e igualitária no sertão da Bahia, até ser massacrado pelo Exército Brasileiro. Padre Cícero protagonizou um milagre, da hóstia que teria se transformado em sangue quando da comunhão de uma beata, em março de 1889, em Juazeiro do Norte. A ousadia foi um milagre ter acontecido aqui, quando o cenário ideal teria sido, de acordo com o então Reitor do Seminário de Fortaleza, Padre Chevalier, as terras da Europa.

Autores falam em ciclos econômicos. Pode-se pensar nas charqueadas como a possibilidade de fazer com que carne, desidratada e salgada resistisse ao tempo e pudesse ser embarcada para Pernambuco, por exemplo.

Assim, ganhamos um dos pratos principais de nossa mesa: a paçoca, esta mesma carne do sol frita, socada no pilão de pedra ou de madeira de lei, com farinha de mandioca e com a cebola dando a liga e fazendo com que o acepipe ficasse ligeiramente úmido, pronto para ser colocado nos embornais dos vaqueiros, dos retirantes e dos romeiros.

O algodão vem desde sempre. Os índios juntavam os fios em novelos, os nimbós, que funcionavam como moeda de troca nos escambos de então. Os fios eram tecidos nos teares manuais e davam forma às redes de dormir, as velhas “inis” da tradição. Nunca um apetrecho se adaptou tão bem à cultura cearense, e as redes são talvez a mais perfeita tradução dessas apropriações, servindo para dormir, para a sesta, para fazer amor e para levar muitos ser-tanejos à última morada, como no poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto.

A etnia Tremembé desenvolveu uma rede que eles chamam de travessa, feita em uma grade ou bastidor, colocada contra uma parede, trabalho realizado pela família, por um grupo, onde se mistura habilidade e brincadeira. Mais que uma tecelagem, um bordado com agulhas grandes, esculpidas em madeira.

Reunindo a rede da tradição indígena, com a renda de bilros trazida pelos portugueses, dona Zefinha, de Potengi, faz uma das peças mais espetaculares

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da cultura cearense: uma rede na almofada de um metro e vinte centímetros de largura, tocada por cento e vinte pares de bilros. Impensável a “engenharia” envolvida, a dança onomatopáica dos bilros e a renda ganhando forma a partir do papelão furado, como um antigo programa de computador, e os espinhos de mandacaru segurando a linha para o ponto no ar.

O algodão passou a ser valioso no mercado internacional, com a Guerra de Secessão que complicava as exportações norte-americanas. O Ceará ganha importância, pode assegurar a formação de riquezas, permite o aformosea-mento de Fortaleza e se interliga à Europa por meio da navegação; e com o algodão ganhamos nossas primeiras indústrias pesadas, as têxteis, além da concretização do caminho de ferro que se interiorizava a passos lentos e só chegou ao Juazeiro do Norte em 1926.

A travessia das boiadas resultou na constituição das fazendas, interio-rizando o Ceará. Surgiu a figura épica do vaqueiro, encourado, com gibão, perneiras e chapéu, guiando as boiadas ou procurando a rês perdida. Este vaqueiro foi um dos autores e/ou protagonista de uma das primeiras histórias de nossa tradição oral: “O Rabicho da Geralda”, boi de “fama conhecido” que teria vivido nos sertões de Quixeramobim e cujo relato das peripécias foi transcrito por muita gente, inclusive pelo jovem Capistrano de Abreu, aten-dendo a uma solicitação de José de Alencar. Estamos diante de dois grandes nomes da inteligência cearense: o pai do romance brasileiro e o historiador que deu novas bases à pesquisa e à escrita da História entre nós.

Mas o boi saiu dos relatos orais, ganhou a forma de performance e temos a dança dramática do bumba-meu-boi, onde a rês preferida do fazendeiro é sacrificada para satisfazer o desejo da mulher grávida do vaqueiro. Depois de danças, competições, personagens que entram e saem, o boi morre, no final, e ressuscita. É uma manifestação das mais difundidas da cultura bra-sileira. Aqui no Ceará, faz parte do ciclo natalino. Em outros estados, como o Maranhão, integra as festas juninas.

Vale uma reflexão sobre o tempo da apresentação, dilatado, que ocupava a noite inteira; hoje, no entanto, os grupos e os artistas têm quinze minutos para a performance ou o show.

O couro curtido em pequenas oficinas se transformou em selas, arreios, armaduras para os vaqueiros, sandálias de “currulepe” e tudo isso é atualizado pela competência, habilidade e invenção de um dos maiores “designers” brasileiros, o Mestre Expedito Seleiro, de Nova Olinda.

O ciclo do boi ou a civilização do couro, no dizer de Capistrano de Abreu, nos deu o aboio, canto plangente para reunir o gado, que pode ter letra ou ser apenas gutural. Esse canto tem afinidades com os muhezins dos

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árabes, da mesma forma que os benditos do catolicismo sertanejo atualizam e adaptam para o nosso contexto o cantochão medieval.

Com os portugueses vieram os cordéis ou uma parte do nosso reper-tório porque a necessidade de fabular está presente em todas as culturas e civilizações, de todos os tempos e lugares. Nosso cordel é uma poesia da voz regada pela cantoria, pelo improviso da viola ou da rabeca que afina com trovadores, jograis, menestréis, com a gesta trovadoresca. Da mesma forma que o cordel nunca foi exposto pendurado em cordões, mas no chão do mercado, nas calçadas das feiras, nos patamares das igrejas, onde quer que tivesse gente disposta a ouvir um trecho da história, interrompido pela advertência cínica ou pragmática de que quem quisesse saber o final do relato teria de adquirir um exemplar.

Tudo isso amplifica voz e letra, mostra resistência e conformismo, acomodação e luta, alegria que deve ter vindo dos índios, saudade e tristeza lusas e banzo africano. Tudo isso serve de pano de fundo para histórias de valentia e de traições. Não tem como simplificar mais ou não tem como reduzir tudo a um pressuposto.

Estávamos tão longe dos centros de decisão que a notícia da Indepen-dência levou mais de três meses para chegar aqui. A imprensa só veio por conta da Confederação do Equador que rompeu o marasmo provinciano com a morte dos nossos primeiros mártires ou heróis no Passeio Público. E essas mesmas máquinas que imprimiam jornais políticos e pouco atraentes, do ponto de vista gráfico-visual depois imprimiram os primeiros folhetos com rima, métrica e melodia, contando histórias que começaram pela adaptação dos clássicos que vinham na bagagem do colonizador, mas depois ganharam cor local e falaram de cangaceiros, Padre Cícero, secas, tanta coisa mais que cabe entre o céu que nos protege e a terra que nos fixa.

Outras influências chegaram com a sofisticação da comunicação. As fotografias eram caras e os daguerréotipos fixavam em caixas de vidro e nitrato de prata imagens para o registro e consumo das elites. O som me-cânico veio a partir do início do século XX, com a Casa Edison, do Rio de Janeiro. O cinema é invenção do final do século XIX e as primeiras emissões de rádio são do centenário da Independência, em 1922, ano da Semana de Arte Moderna, dos rebeldes do Forte de Copacabana que pretendiam uma outra ordem, da formação do Partido Comunista. Enfim, 1922 é um ano para não ser esquecido.

A cultura cearense sofreu influências disso tudo, mesmo estando na periferia da periferia de um capitalismo que se mostrava tímido diante do que se passou a ter depois.

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Nossas elites consumiam o melhor que o mercado colocava nas prateleiras e nos anúncios dos jornais: salmões, bacalhaus, vinho do Porto, queijos do reino, nunca fomos tão gourmets...

Vivíamos uma macaqueação de “belle-époque”, com clones do fran-cês Barão de Haussmann, responsável pelo redesenho de Paris, abrindo os “boulevards” Duque de Caxias, Dom Manuel e do Imperador. Nossa gente já frequentava o Passeio Público que fazia na prática a segmentação social, levando os ricos a uma avenida (ou passeio), as camadas médias a outra e o “zé povinho” a uma terceira via de uma pesada e imaginária pirâmide. Tudo isso tendo como trilha as composições de Ramos Cotôco, boêmio, portador de uma deficiência física que lhe rendeu este apelido depreciativo, desenhis-ta e pintor, apesar de tudo, e crítico ferino de nossas hipocrisias e do nosso faz-de-contas. Em Cantares Bohêmios, publicado em 1892, contemporâneo da Padaria Espiritual, Cotôco “tirava sarro” do prazer de bolinar as criadas, falava em jogo do bicho, no matapasto, no excesso de maquilagem, e fazia uma crônica sonora de uma Fortaleza mais “fuleiragem” que “metida a francesa”.

Talvez nunca tenhamos conseguido um lugar onde colocar as tradições sertanejas. Tudo isso era visto como atraso, para uma concepção de modernidade que convivia, pacificamente, com o predomínio das oligarquias. As secas nos marcavam de vez, desde sempre. Os primeiros registros são do século XVII. E já eclodiam mesmo antes de desmatamento, de intervenções criminosas que vieram depois, em função da ganância, da especulação imobiliária e da pressa de fazer fortuna. Diga-se de passagem que alguns conseguem amealhar riquezas em pouco tempo, quatro anos, por exemplo.

As secas foram catastróficas. Uma delas, que durou de 1877 a 1879, matou um quarto da população da Província. Vale o exercício mórbido de imaginar a morte de dois milhões de cearenses hoje e teremos uma ideia do que nos dizimou. A seca foi reeditada em 1888 / 1889 e vem se repetindo, levando à terminologia equivocada e militar do combate e não do convívio com o semi-árido.

A crônica das secas é um pouco da história do Ceará envolvendo ecologia, política, cultura. Tivemos campos de concentração, inchaço de Fortaleza e exemplares de romance social, além de folhetos de cordel com este mesmo tema.

Não soubemos o que fazer com o que vinha do interior. Nem com as pessoas, nem com seus valores, crenças, práticas, manifestações, folguedos. Eram índices do atraso. Estas populações de baixa renda foram expulsas para a periferia da cidade e nunca foram ouvidas de verdade, nas práticas populistas que permanecem até os dias de hoje.

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Assim, nos arrabaldes, os sambas terminavam com facadas e muita ca-chaça; os bois eram ridicularizados pelas elites pretensiosas; lapinhas resistiam no interior das igrejas; os cantadores souberam passar da rejeição à estética do espetáculo e alugaram espaços, montaram cenários, equipamentos de sons, bancadas de jurados, distribuíram motes e deram a volta por cima.

Da mesma forma, as quadrilhas juninas superaram a chita e passaram a usar tecidos com brilhos, uma estética mais próxima das escolas de sam-ba, passos marcados, alegorias de mão, enredos, trilhas sonoras compostas especialmente para elas.

O que seria essa tal de espetacularização? O processamento de outras estéticas, de outras ideias de gosto e um diálogo com o que mostra a cultura de massas, agora não apenas a televisão, mas a rede mundial de computadores, mostrando a vida em tempo real, a loucura das câmeras fotográficas, que estão nos celulares e registram tudo, mesmo que depois a gente não saiba o que fazer com tanta informação, a não ser jogar a maior parte no lixo virtual.

A espetacularização não pode ser considerada como índice da pouca importância das tradições. Ela funciona como uma catalização, uma propul-são de manifestação que, de outro modo, estariam fadadas ao esquecimento. Algumas delas entraram em baixa ou caíram no desuso pela inadequação aos dias de hoje. A dança de São Gonçalo, por exemplo, com suas jornadas que duram uma hora cada uma delas, e que varava a noite, em cumprimento a uma promessa feita, com seus cordões de fiéis, fazendo o trancelim, sob um arco de frutas e a imagem do santo violeiro sobre um altar.

Como compatibilizar as tradições com a cultura de massas? Não existe receita para isso. Cada caso é um caso e cada comunidade resolve do seu jeito, com suas negociações, suas trocas, seus ganhos e suas barganhas. No Ceará não tem sido diferente. O Boi tanto pode ter o aparato tecnológico de Parintins, na Amazônia, como estar coberto de palha seca de bananeira, como visto em algumas localidades do interior cearense.

A vaquejada deixou de ser a corrida dos vaqueiros, brincadeira depois de levar as reses aos currais, e se tornou competição séria, negócio envolvendo patrocínio de multinacionais, moda, revistas, discos, comida, vários itens de um cardápio vasto e diversificado.

Mas, as discussões sobre as questões culturais no Ceará não se re-duzem nem se esgotam na crítica das mídias, mais que veículos ou meios, um lugar privilegiado onde a sociedade se vê e se discute; o tal espelho de Narciso, a constatação de que diante da urbanização crescente, da explosão demográfica e de tantas complexidades dos dias de hoje, não seria possível o funcionamento da estrutura social sem esse aparato de mediações.

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As discussões sobre cultura envolvem os estereótipos. Bom saber o que pensamos e o que os outros pensam de nós; importante refletir sobre como construímos ou idealizamos essa imagem nem sempre concreta, muitas vezes difusa e borrada.

Falam em caráter guerreiro, em disposição para enfrentar adversidades, mas isso, longe de ser uma prerrogativa cearense, é uma característica de todos os povos. Todos têm seus heróis, mártires, libertadores. Os que lutaram nos ajudaram a fazer as travessias. Tampouco é apenas cearense a determinação ou a ideia de se espalhar pelo mundo como estratégia se sobrevivência.

Também não é apenas nossa a capacidade de não desistir, de ir em frente e alcançar os objetivos. Lutamos contra o sol, a terra, a falta d’água. Mas essa luta não é única, é de todos.

E o que dizer do Ceará que acrescente alguma coisa, que não seja óbvio ou redundante? Talvez o humor seja um viés interessante, uma por-ta de entrada para um universo rico e multifacetado que se chama Ceará. A irreverência, a verve do cearense é a capacidade que o cearense tem de rir de si mesmo. Talvez este riso não seja apenas o reforço de um estereótipo, mas uma construção histórica; e tem como um de seus marcos a Padaria Espiritual, que está sendo homenageada hoje por nós, aqui neste Festival UFC, cento e vinte anos depois.

Não se trata de listar situações risíveis, mostrar o escárnio ou o cons-trangimento que a vaia provoca, mas de compreender o humor como estra-tégia não apenas discursiva, mas como vivência, como atitude e como marca identitária forte de um povo que é rico o bastante para não caber em uma gavetinha com rótulo afixado do lado de fora, prontos para serem retirados dos escaninhos e consumidos ao bel prazer do mercado.

Nosso riso que se confunde com a vaia não é apenas um estereótipo, figura maior da ideologia, no dizer do pensador francês Roland Barthes. Nosso riso é uma atitude, reflete uma visão de mundo, não retira de nós a capacidade do trabalho árduo.

A Padaria Espiritual era uma explosão de mal-estar diante da morri-nha provinciana e um instante fundante de nossa irreverência. Na vaia, nos chistes, em um nacionalismo que fazia sentido naquele instante, da rejeição à fauna e à flora estrangeira, aos clichês de um romantismo já datado, no culto às personagens que mereciam culto e no descarte dos alfaiatas, do clero e da polícia, as marcas do que seríamos daí para a frente.

A Padaria Espiritual deu a este riso um Programa de Instalação, um cânon. Depois, tivemos a Academia Polimática, o Bode Yoyô, Quintino Cunha, a vaia ao sol, as Coca-Colas que namoravam os norte-americanos, o apupo

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aos excêntricos: Levi, Chagas dos Carneiros, Ferrugem, Zé Tatá, Burra Preta. Um riso politicamente incorreto que afetava os diferentes, os especiais, os excluídos. Valia tudo.

Claro que as questões culturais não se reduzem, nem se resolvem pelo riso, num passe de mágica. Como não se resolvem, também, pela crítica às mídias. Passam pelas discussões sobre o que somos, para saber o que queremos ser. As práticas culturais se desenvolvem ao sabor do mercado, na satisfação das expectativas de lucro. Passam pelas descontinuidades das políticas culturais, onde os gestores ouvem a sociedade civil, para depois fazer o que bem querem, o que cobram seus compromissos ou receitam seus caprichos.

Temos uma atávica rejeição ao passado e um apego não ao novo, mas à novidade, que pode ser o velho travestido, a diluição do contemporâneo, do que vem dos chamados grandes centros.

Este foi um passeio pelos bosques da cultura, um momento para o desencadear das múltiplas reflexões que poderão nos dar um rumo.

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BIBlIOGRAFIA ABREU, J. Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / Instituto Nacional do Livro, 1975

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ALENCAR, José de. Iracema: lenda do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1977.

AZEVEDO, Sânzio. Breve História da Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 2011.

BARROSO, Gustavo. Terra do Sol (Natureza e costumes do Norte). 6ª edição. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.

BARROSO, Oswald; CARIRY, Rosemberg. Cultura insubmissa. Fortaleza: IOCE, 1982.

CAMPOS, Eduardo. Capítulos de História da Fortaleza do Século XIX. O Social e o Urbano. Fortaleza, Edições UFC, 1985.

CARVALHO, Gilmar de (org). Bonito pra chover: ensaios sobre a cultura cearense. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003.

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FERNANDES, YACO. Notícia do povo cearense. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1977.

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SOUSA, Francisco. Ceará escrito à luz. Fortaleza: SECULT / Expressão Gráfica e Editora, 2011.

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Recebido para publicação em abril/2014. Aceito em julho/2014.

RESUMOO artigo discute questões pertinentes à história cultural

do Ceará, numa perspectiva da aceitação da multiculturalidade como um dos traços de nossa formação. Pretende, também, na medida em que isso cabe a um artigo, desmontar estere-ótipos e mostrar várias angulações para episódios e fatos da vida política, econômica e cultural do Ceará, na medida em que estes fatos do passado projetam luz sobre o presente e ajudam à formulação de projetos de futuro.

ABStRACtThe article discusses pressing issues to the cultural history

of Ceará, drawing from the perspective of multiculturalism as one of the State’s identifying traits of formation. It seeks to dismantle stereotypes and to present several angles to the framing of episodes and facts of Ceará’s cultural, political, and economic life, insofar as these facts of the past project their light into the present and help us formulate projects for the future.

Palavras-chave: mito, Ceará, cultura,

tradição, mercado.

Keywords:mith, Ceará, culture,

tradition, market.

Entrevista

Ileizi luciana Fiorelli SilvaGraduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (1991), Especialização, com a monografia A Educação pública como Política; Mestrado em Educação pela FE-USP (1998) com a dissertação Reforma ou contra-reforma no Sistema de Ensino Público do Estado do Paraná? Uma análise da meta da igualdade social nas políticas educacionais dos anos 90 e Doutorado em Sociologia pela FFLCH- USP (2006) com a tese Das fronteiras entre ciência e educação escolar - as configurações do ensino das Ciências Sociais, no estado do Paraná (1970-2002). Atualmente é professora efetiva no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. É coordenadora do Mestrado em Ciências Sociais e docente da Especialização em Ensino de Sociologia da mesma universidade. Coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de Sociologia- LENPES e o Observatório da Educação (CAPES-Ciências Sociais da UEL). Tem experiência na área de Sociologia da Educação e Sociologia do Conhecimento, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, política e currículos, sociologia no ensino médio. Desenvolve os projetos de pesquisa “O Ensino Médio no Brasil: análise comparativa das múltiplas desigualdades socioeducacionais nas microrregiões do Paraná”, “Por uma Sociologia das “Novas” e “Velhas” Formas de Evasão nas escolas públicas: estudo exploratório em três colégios do norte paranaense” e “As pesquisas sobre políticas educacionais e as Ciências Sociais: metodologias recorrentes no Brasil, no período de 1990 a 2000”.

Danyelle Nilin GonçalvesDoutora em Sociologia e professora do Departamento de Ciências Sociais, Univerdade Federal do Ceará (UFC). Ao lado de Ileizi, participa da Comissão de Ensino de Sociologia da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).

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A sociologia de volta à escola: um balanço provisório

Entrevista com Ileizi FiorelliPor: Danyelle Nilin Gonçalves

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Danyelle Nilin Gonçalves - Fale-nos sobre sua trajetória profissional, pesquisas e participações institucionais. Ileizi - Sou filha de uma professora de Português e Inglês da Educação Básica (denominada até 1996 de 1º. e 2º. Graus), a querida Margaret Fiorelli. Em termos de trajetória, não resta dúvida de que tenho uma herança de classe, gênero e profissão que orientaram minhas escolhas. Só fui saber disso no curso de Ciências Sociais, aprendendo sobre reprodução social com os pen-sadores clássicos e contemporâneos. Em 1985, iniciei o curso de Direito na UEL e em 1988 o curso de Ciências Sociais. Conclui em 1991 a licenciatura em Ciências Sociais. Ainda na graduação comecei a lecionar História, Geografia e OSPB-Organização Social e Política do Brasil como professora temporária em duas escolas públicas, uma em Cambé e outra em Londrina. Devo dizer que duas coisas me pegaram de jeito: as Ciências Sociais (que conheci nas aulas de Sociologia, ciência política e filosofia ainda no curso de Direito) e pesquisar e ensinar. Logo desenvolvi uma ambição de ser professora univer-sitária. Mas, queria também ensinar no Ensino Médio, pois tenho até hoje uma empatia com os adolescentes e jovens. Gosto dessa faixa etária. Acho os jovens desafiantes com suas risadas, conversas, às vezes uma falsa indiferença, os esforços para entrar e para ficar de fora do “mundo adulto” e assim por diante. Para resumir entrei na rede pública do Estado do Paraná em 1991, passei em um concurso público para História no 1º. Grau e Sociologia no 2º. Grau. Tinha, então, 40 horas aulas semanais, sem hora-atividade, ou seja, eram 40 aulas em sala de aula e mais todo o tempo fora para preparar tudo. Realizei coisas incríveis com essa condição de trabalho, coisas que só aos 22 anos conseguimos mesmo fazer. A energia juvenil faz diferença. Querendo cursar mestrado pensei em tentar algum concurso para ministrar aulas em universidades, que em 1994 ainda admitiam professoras sem mestrado. Abriu, então, um edital de concurso para Metodologia e Prática de Ensino em Ciências Sociais na UEL. Considerei a oportunidade perfeita para unir duas paixões ensinar/pesquisar e continuar em contato com as escolas. Em 1995, conclui a Especialização em Ensino de Sociologia, na UEL, a primeira turma do curso existente até hoje. Em 1998, conclui o Mestrado na Faculdade de Educação da USP e em 2006 conclui o Doutorado em Sociologia na USP. Equilibrei-me nos diferentes mundos, acadêmico, escolar, militância em movimentos sociais e sindicais, educação de minha filha Yolanda e durante o doutorado comecei a me inserir, também, em associações científicas, no caso, a Sociedade Brasileira de Sociologia, através do convite da minha orien-tadora profa. Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins e da parceria com os

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professores Amaury Cesar de Moraes (USP) e Nelson Tomazi (UEL\UFPR), entre outros colegas que foram surgindo também nesse espaço.

Entre 1990 e 1992, participei como bolsista de iniciação científica do CNPq em uma pesquisa sobre Partidos Políticos no Paraná, sob orientação da profa. Dra. Luiza Hermmann de Oliveira. Com ela aprendi fazer pesquisa quantitativa e qualitativa em várias tradições da ciência política, sobretudo na linha das instituições. Nesse mesmo período ministrava aulas no então 1º e 2º graus. Em 1996 conclui uma monografia de 150 páginas sobre os Currículos do estado do Paraná de 1983 a 1991, para fechamento da Especialização em Ensino de Sociologia. Aqui me apropriei da Sociologia da educação e especificamente da Sociologia do currículo tanto em termos teóricos como empíricos. Como desdobramento da monografia, fiz um projeto de mestrado sobre as Políticas Educacionais do Paraná de 1990 a 1998, ampliando as discussões da monografia que se restringiram aos currículos, incluindo a gestão, recursos humanos, en-sino médio evidenciando as propostas sobre a meta da igualdade social. Entre 1998 e 2002 participei ativamente dos debates sobre políticas educacionais, implantação da nova LDB de 1996, eu diria que tudo me encaminhava para ser uma especialista em Políticas Educacionais. Observando de longe, reconheço que no mestrado e na especialização eu uni a formação de ciência política da iniciação científica e a questão da educação. E fiquei satisfeita. Contudo, em 1998 e 1999, ministrando aulas de Metodologia de Ensino de Sociologia, percebi que tinha que estudar outras frentes de pesquisas e teorias da Sociologia, da psicologia e da educação de modo geral. Nesse momento decidi investigar o que existia de produção sobre o ensino de Sociologia, e começo duas pesquisas: a) uma sobre o estado da arte de 1940 a 2002; b) outra sobre a Sociologia no currículo do Estado do Paraná de 1970 a 1999. Delas nasceu meu projeto de doutorado aceito em 2002, com a conclusão em 2006, com uma tese sobre o Ensino de Ciências Sociais/Sociologia no Paraná de 1970 a 2002. Desde então, atuo e pesquiso sobre ensino de Sociologia no Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de Sociologia-LENPES da UEL, no Programa de Pós-graduação lato sensu e stricto sensu. Agora, mais recentemente, retomei estudos sobre políti-cas educacionais para o ensino médio e criei o Observatório da Educação em nosso Programa de Mestrado. Conclui uma pesquisa sobre evasão nas escolas de três municípios do Paraná junto com mais dois colegas e apresentamos na ANPOCS de 2013, artigo ainda em fase de acabamento para publicação. Estou ultimando um relatório de pesquisa sobre metodologias de pesquisa em Políticas Educacionais e iniciando uma pesquisa sobre metodologias de ensino desenvolvidas pelos PIBIDs no Paraná.

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Danyelle - Como estudiosa da temática, qual é o balanço que você faz sobre as pesquisas na área?Ileizi - Um balanço provisório sem muita sistematização indica um cresci-mento no número de artigos, teses, dissertações, coletâneas, textos técnicos e orientações curriculares. Quando comparo o balanço que fiz em 2001 e apresentei em 2002 no Congresso dos Sociólogos em Curitiba, vejo que já perdemos a conta dos trabalhos. Anita Handfas e Julia Polessa Maçaira pu-blicaram um artigo “O estado da arte da produção científica sobre o ensino de Sociologia na educação básica (Revista BIB da ANPOCS, no. 74, 2012, pp.43-59)”, em que apontam 43 dissertações e teses entre 2007 e 2012, sen-do que 23 foram realizadas em Programas de Pós-graduação em Educação e 19 em Programas de Pós-graduação em Sociologia ou Ciências Sociais. Há sem dúvida uma dinamização das pesquisas. Agora, precisamos começar a avaliar a qualidade e os termos do conhecimento que está sendo produzido. Essa é uma tarefa importante para as próximas pesquisas. Os estudiosos que forem começar a estudar essa temática terão um volume bem maior para avaliarem e incorporarem na construção do objeto “ensino de Sociologia”.

Danyelle - Qual é o papel da UEl na formação de professores para o Ensino Médio, na difusão da temática e na produção de pesquisadores?Ileizi - A UEL ganhou um protagonismo no Paraná e depois em nível nacio-nal por uma série de fatores e especificidades da história da educação e das Ciências Sociais locais. No caso da UEL há um dado importante que data de 1982, quando a instituição decidiu alocar o estágio supervisionado das licenciaturas nos respectivos departamentos de cada ciência de referência, tirando do Centro de educação essa tarefa. Isso é um diferencial que fez com que os cientistas sociais convivessem, desde a criação da Licenciatura em Ciências Sociais, em 1973 e até os dias atuais, com as demandas da for-mação de professores para a educação básica. Não sem conflitos, rejeições, lutas, disputas, divisões. Mas, juntos, reunidos no mesmo espaço. Assim, eu trabalho desde 1994 no departamento de Ciências Sociais, convivendo e contando com a colaboração de alguns e com a oposição de outros tantos antropólogos, cientistas políticos e sociólogos. Mas, nesse ambiente criamos os laboratórios e grupos de apoio à formação de professores. O nosso curso de Especialização completa neste ano, 20 anos de existência. A Licenciatu-ra, 42 anos e o Mestrado 14 anos. Isso permitiu um acúmulo de pesquisas e experiências variadas de trabalho com as escolas e professores do ensino médio, criando um modo (que inspira muitas outras IES) de articular tudo

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isso. A criação de uma linha de pesquisa “Ensino de Sociologia” no Mestrado e a proposta de criação de Doutorado, que contempla essa linha, ajudará a consolidar nosso trabalho e esperamos inspirar outros programas de pós-graduação em Ciências Sociais ou em educação.

O LES - Laboratório de Ensino de Sociologia - começou em 2000, e o estruturamos em “Ações Diferenciadas”, tendo a adesão de sociólogos, antropólogos e cientistas políticos do departamento de Ciências Sociais. Congregamos professores do ensino médio e estudantes da graduação. Ele já funcionava como uma espécie de PIBID – Programa de Iniciação à Docên-cia – pois produzíamos materiais didáticos, coletâneas de textos de autores clássicos e contemporâneos, textos didáticos, semanas de Sociologia nas escolas, visitas dos estudantes do ensino médio na UEL, enfim, praticávamos o ensino de Sociologia em regime de colaboração com todos esses agentes. Sem bolsas, sem verba de custeio e sem livros didáticos nas escolas. Dessa forma, a única política de apoio que os professores de Sociologia tinham entre 1998 e 2006/2007 era o nosso Laboratório de Ensino, aqui em nossa região. A primeira ação que antecedeu o Laboratório foi a de convencer as escolas de Londrina a incluírem a Sociologia entre 1993 e 1998. Em 1996 antes da promulgação da LDB, Londrina tinha 19 escolas com Sociologia, dentre as 64 existentes. Nossa maior conquista foi essa: incluir a Sociologia por convenci-mento. Quando a LDB saiu e depois todas as outras regulamentações favoráveis e as desfavoráveis, nós só ampliávamos o número de escolas. Nos períodos desfavoráveis, como o período de 1999 a 2002, as escolas da região de Lon-drina resistiam às ações de retirada da disciplina. Diminuíam a carga horária, sofriam alguma mudança, mas não retiravam a Sociologia dos currículos. As pedagogas eram nossas parceiras desde os anos de 1990 e nos ajudavam muito nesses momentos. Isso fez com que a UEL e a região do norte do Paraná acumulassem mais experiência de ensino e, talvez, por isso hoje podemos ter uma linha de pesquisa no Mestrado e no Doutorado (caso ele seja aceito na CAPES) em Ciências Sociais. A chegada dos programas da CAPES, tais como PRODOCENCIA, PIBID e OBEDUC potencializaram muito os trabalhos que começaram sem financiamento nos anos de 1990 e hoje contam com bolsas para docentes do ensino médio, graduandos, mestrandos, coordenadores, estudantes do ensino médio e mais verbas de custeio para equipamentos, viagens a congressos, etc. Temos hoje cinco salas de laboratórios de ensino no CCH para aulas da licenciatura, com mais de 20 computadores, lousas digitais, TVs, Datashow, som, filmadora enfim, um ambiente para produção de aulas e materiais didáticos.

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Diria que o nosso trabalho começou sem condições materiais, mas com resultados visíveis dos esforços e, hoje, conta com condições materiais que jamais imaginamos ter algum dia. Danyelle - Conte-nos sobre a criação da área de Ensino de Sociologia no Mes-trado da UEl.Ileizi - A Metodologia de Ensino de Ciências Sociais sempre existiu no de-partamento, contudo, no Regimento modificado em 1998, deixaram apenas três áreas: Antropologia, Ciência Política e Sociologia. Do ponto de vista da PROGRAD e das horas do curso de graduação em Ciências Sociais, da espe-cialização e dos estágios, isso estava muito claro, mas na hora de distribuir vagas de concurso para contratar docentes que se dedicassem a essas tarefas, de 1998 em diante perdemos todas as vagas, ou seja, eram quatro vagas que em 2006 se resumia a duas vagas e dois docentes, eu e o prof. Cesar. Depois de muita luta conseguimos algumas vagas de concurso e também mudar o Regimento do departamento, incluindo a Metodologia de Ensino como área de conhecimento que congrega as práticas transversais e interdisciplinares das Ciências Sociais. O resultado disso foi que restabelecemos a área com seis docentes e a partir daí criamos as condições para ter uma linha de pes-quisa no Mestrado. Quero registrar que a linha foi sugerida em reunião de visita do comitê de Sociologia da CAPES ao PPGSOC, em novembro de 2011, Jacob Lima (coordenador da área) mencionou isso explicitamente para os docentes, dizendo que nós estávamos perdendo uma grande oportunidade de firmar o nosso programa com algum diferencial no cenário nacional. Em 2012, nosso grupo propôs a criação da área, e com o “aval da CAPES” as negociações ficaram mais fáceis.

Danyelle - Qual sua análise sobre o material didático de Sociologia para o Ensino Médio?Ileizi - Todo esse envolvimento, mais agentes, mais IES, sujeitos novos e há mais tempo nessas atividades, tem como resultado um crescimento numérico na produção de materiais didáticos em forma de livros, portais na internet, Objetos Educacionais Digitais, vídeos, Blogs, entre outros meios de comu-nicação para além de livros impressos.

A qualidade dos materiais tem sido objeto de estudos nos artigos, dissertações, teses, entre outros. Mas, precisamos de mais avaliações, sobre-tudo, dos Portais e Blogs. São veículos muito potentes, mas que podem ter problemas na fidedignidade científica de nossas disciplinas.

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No caso dos Livros Didáticos, a Sociologia pôde participar de duas versões do Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio, em 2012 e 2015. Participei da primeira versão como parecerista e da segunda como coordenadora pedagógica. Os Guias publicados on-line demonstram o esforço de escrutínio dos livros inscritos. Não podemos esquecer os livros que não são inscritos, ou seja, o resultado dos dois PNLDs é de uma amostra do que existe no mercado editorial. No PNLD-2012 tivemos 14 obras inscri-tas e apenas 02 recomendadas pelos pareceristas. No PNLD-2015, tivemos 13 obras inscritas e 06 recomendadas. Note-se que há uma melhoria da qualidade dessas obras, pois se triplicaram os livros com alguma qualida-de teórica e didática. Entretanto, ao analisarmos esses livros percebemos alguns desafios que apontamos no Guia do Livro Didático-PNLD-2015. O processo de mediação pedagógica produz alguns riscos, o mais frequente é o reducionismo das teorias, a não operação com os conceitos e a falta de diálogo entre nossas disciplinas Antropologia, Ciência Política e Sociologia. O uso de imagens, fotos, pinturas, grafites, desenhos também padece de contextualização e são usados como ilustrações muito mais do que como provocações, problematizações dos conteúdos.

Entretanto, os Livros melhoraram muito em termos de enriquecimento de temas e teorias. Os seis Livros recomendados demonstram que a Sociologia como disciplina escolar poderá oxigenar as Ciências Sociais no Brasil.

Danyelle - Quais os desafios para as licenciaturas e Pós-Graduações nos pró-ximos anos?Ileizi - Vou enumerá-los:a) avaliação das pesquisas produzidas até 2014b) avaliação do PIBID – impactos desse programa nas Ciências Sociais;c) estudo e avaliação da produção de livros do PIBID, PRODOCENCIA, La-boratórios, licenciaturas;d) Inserção nos debates sobre os rumos do Ensino Médio para acompanhar todas as políticas curriculares e garantir a manutenção da Sociologia nos currículos;e) Consolidação dos eventos nacionais, estaduais e regionais, particularmente do ENESEB;f) Fortalecimento da formação nas licenciaturas;g) Criação do MESTRADO Profissional em rede, o PROF-SOCIO;h) criação de mais linhas de pesquisa nos programas de pós-graduação em Ciências Sociais para receber os egressos do PIBID e das licenciaturas que desejem pesquisa sobre ensino de Sociologia;

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A SOCIOLOGIA DE VOLTA À ESCOLA284

i) Fortalecer as ações com os Professores do Ensino Médio, apoiando-os nas lutas pela melhoria de suas condições de trabalho nas escolas e oferecendo as políticas possíveis através da IES que formam cientistas sociais.

E principalmente, continuar firme na utopia da educação e das Ciências Sociais como ferramentas úteis na invenção de sociedade democráticas e justas.

Questões enviadas por e-mail no dia 11 de agosto, e respondidas, pela mesma via ele-trônica, no dia 3 de setembro de 2014.

Resenhas

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Da educação à política: Mário Palmério, um mito no interior mineiro

Por: Fábio Dias de SouzaMestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Visual pela Universidade Estadual de Londrina, como aluno especial. É professor de fotografia no Centro Universitário Cesumar e Faculdade Metropolitana de Maringá. E-mail: [email protected].

Uberaba, cidade do interior de Minas Gerais, foi palco de curiosas transformações na década de 1920. Centro político da região do Triângulo Mineiro, perdeu prestígio e influência pela interrup-ção do processo de modernização. A partir de 1940, uma ideia propagou-se entre alguns cidadãos: a recuperação da cidade como centro promissor.

Com o apoio da mídia e dos principais personagens da cidade mineira, iniciou-se então, uma encenação, com o intuito de seduzir a população, obtendo apoio ao mesmo tempo em que apresentavam quem seriam os líderes daquele “projeto” que transformaria Uberaba, novamente, em uma “cidade prós-

De: André Azevedo da Fonseca A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins.

São Paulo: Editora da UNESP, 2012.

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RESENHA288

pera, dinâmica e civilizada”, povoando, assim, o imaginário das pessoas com o que havia de mais chique e elegante à época e, beneficiando-se de mútuos elogios publicados na imprensa local, firmavam, dessa maneira, os símbolos de suas posições sociais.

Em meio a esse cenário, Mário Palmério – professor, futuro político e escritor, membro de estimada família da cidade – destaca-se por sua capaci-dade profissional e, principalmente, pelo domínio no manejo dos símbolos que o ajudaram a engrandecer seu status social, conduzindo-o a eleger-se deputado federal, mais tarde reconhecido nacionalmente como autor do romance Vila dos Confins (1956).

O livro é estruturado em duas partes. Na primeira, investiga-se o pres-tígio da família Palmério, os estudos e trajetórias profissionais de Mário, e seu status social sob a influência do pai e dos irmãos, chamando-se a atenção para o fato de Mário Palmério haver conseguido criar diversos estabeleci-mentos de ensino em menos de dez anos. Também mostram-se os artifícios utilizados na busca por prestígio social. A segunda parte procura apresentar o contexto histórico na época do pós-guerra e o crescimento político de Mário Palmério, que se apropriou de elementos da cultura regional para efetuar sua campanha política.

O pai de Mário Palmério era um imigrante italiano detentor de grande prestígio na região do Triângulo Mineiro. Engenheiro, Francesco Palmério procurou emprego no Brasil e foi em Uberaba que se instalou definitivamente com a família. A essa altura, já havia também atuado como advogado, diretor e redator de jornal, tornando-se, mais tarde, juiz de direito. Com todo esse histórico, os próprios familiares também gozavam de certo prestígio nos círculos sociais de Uberaba e, apesar de estarem, inicialmente, à sombra do pai, con-quistaram sua reputação às custas de seus próprios esforços. Não foi diferente com Mário Palmério, o filho caçula. Após concluir seus estudos secundários, trabalhou como escriturário, estudou Matemática na Faculdade de Filosofia de São Paulo e foi nomeado, em 1939, professor no Colégio Universitário da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

Uberaba vivia, nessa época, um processo de revitalização que contagia-va a população. Mário Palmério, convencido pelas possibilidades oferecidas pela próspera cidade, voltou de São Paulo após cinco anos, com experiência e bagagem intelectual suficientes para vencer a resistência que ainda atra-vancava a modernização da cidade.

Já em Uberaba, Mário Palmério, vislumbrando a possibilidade de uma grande procura da população pela conclusão dos estudos, naquele contexto de progresso e desenvolvimento, montou, em 1940, em um cômodo na casa

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Fábio DiaS De Souza 289

dos pais, o Curso de Madureza Triângulo Mineiro. Naquele mesmo ano, tam-bém anunciava o Liceu Triângulo Mineiro, oferecendo, além do preparatório para os ginásios, cursos para as escolas normais e comerciais e a instalação da Faculdade de Comércio Triângulo Mineiro. Nesse contexto, observe-se a ambição e sagaz percepção de Mário Palmério, ante o fechamento da escola secundária particular Ginásio Brasil, em 1941: aproveitando a oportunidade, incorporou os alunos e os professores do ginásio ao Liceu Triângulo Mineiro, que passou a funcionar no mesmo prédio onde, anteriormente, funcionava o Ginásio Brasil.

Mesmo sem um satisfatório rendimento financeiro e gozando ainda de pequena influência nos principais círculos da cidade, Mário Palmério trabalhava para o crescimento do Liceu, quando, ainda em 1941, anunciou o Curso Ginasial do Triângulo Mineiro. Sob intensa “campanha publicitária” através de anúncios no jornal e muitas manifestações de apoio e solidariedade, por pessoas reconhecidas no meio social e político, o professor conquistou a simpatia da cidade e angariou recursos financeiros e filantrópicos que garantiram o bem-sucedido funcionamento do ginásio.

Em 1942, um novo anúncio informa que o Liceu Triângulo Mineiro ofereceria os cursos propedêutico e de contador. Em 1943, o curso ginasial já funcionava sob “inspeção preliminar”, ou seja, um quase reconhecimento oficial definitivo. A rápida ascensão de Mário Palmério o levou a dar andamento à ideia da construção de uma sede própria da escola, concluída em 1945, contando com 539 estudantes, contra 639 do quase cinquentenário Colégio Diocesano, que também oferecia cursos ainda não disponíveis no Liceu.

As situações expostas deixam bem visível a capacidade empreendedora de Mário Palmério; e o domínio dos jogos teatrais e simbólicos que permeiam as relações sociais contribui para a ampliação do prestígio, facilitando a con-cretização de negociatas. Dessa maneira, em 1946, o Ginásio Triângulo Mineiro finalmente conseguiu o reconhecimento oficial e, mais adiante, a permissão para o funcionamento dos cursos clássico e propedêutico, tornando-se o ter-ceiro maior estabelecimento de ensino secundário de Uberaba.

Não satisfeito, Mário Palmério anuncia, em 1947, a criação da Fa-culdade de Odontologia do Triângulo Mineiro. Em sua percepção, a ideia inicial de abrir uma Faculdade de Comércio não seria viável, pois a cidade não possuía um perfil industrial. Necessitava, sim, de um curso de Odonto-logia, pois havia poucos dentistas para uma grande quantidade de cidadãos. O jornal Lavoura e Comércio se encarregou de enaltecer as qualidades do novo empreendimento, induzindo a cidade a prestigiar as iniciativas de Mário Palmério. Vale lembrar que a instalação do curso simbolizaria mais

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um avanço na modernização da cidade, como visto, um ideal imaginário das elites, o que faz entender o apoio da imprensa, simpatizando e valorizando as iniciativas do jovem professor. No fim do ano de 1947, estava aprovado o funcionamento da Faculdade de Odontologia do Triângulo Mineiro, em Uberaba, conforme notícia veiculada no mesmo jornal.

Iniciando com um curso de madureza, Mário Palmério implantou, em menos de dez anos, seis estabelecimentos educacionais, segundo ele, a “’maior organização de sentido educacional de todo o interior do país’” (Lavoura e Comércio, 6.7.1949, p. 6, apud FONSECA, 2012, p. 123). E, apesar dos esforços profissionais, o reconhecimento nos círculos dominantes da região firmou-se mais por seu domínio no quesito da visibilidade social, na sua atuação consciente para consolidar-se como uma pessoa de prestígio. Ninguém melhor que a imprensa local para supervalorizar as ações dos conterrâneos, naquela busca pela prosperidade e civilidade imaginada pelos círculos sociais e políticos da cidade.

Mário Palmério procurava meios para consolidar a imagem da escola e de si próprio no imaginário de Uberaba e era através do jornal, nos anúncios, colunas sociais e esportivas, que ganhava visibilidade, expondo seus gloriosos feitos e qualidades, com as bênçãos do Lavoura e Comércio. Nesse contexto, os desfiles não foram ignorados e, a partir de 1943, o professor passou a rea-lizá-los em variadas ocasiões, causando um grande impacto no imaginário das massas populares, pela sua organização e disciplina.

O cuidado com as palavras utilizadas para descrever suas atividades, com as fotografias produzidas para o jornal, a troca de elogios com os mais proeminentes personagens da sociedade uberabense, a preocupação com a própria aparência e com o estilo arquitetônico da nova sede do Ginásio Tri-ângulo Mineiro demostram um domínio consciente e articulado da imagem e do que ela simbolizaria no imaginário de uma cidade.

O lado caridoso, misericordioso e o envolvimento com a cultura católica também não foram esquecidos. Mário Palmério estava ciente de que seriam valorosos recursos para ampliar sua distinção social. Assim, a ascensão do professor revelou-se uma escalada heróica, representada pela combinação dos sacrifícios – aos quais se entregou em prol da população uberabense – com a sua missionária devoção cristã; indo, desse modo, ao encontro dos desejos da população, desolada com as condições precárias da região, que sofria com crise econômica, pobreza, racionamentos, falta de oportunidades, falta de vagas na escola. A imagem desse herói regional, construiu-se, assim, na medida em que Palmério procurava atender anseios de uma população assombrada antevendo possíveis malefícios da guerra.

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Em 1950, em meio a acirradas disputas políticas separatistas, o pro-fessor Mário Palmério publicou um extenso manifesto político esclarecedor e racional revelando, nas entrelinhas, um inédito papel a desempenhar, que o transformaria em “um novo mito: o messias esclarecido que, em meio aos desequilíbrios e incertezas de sua sociedade, enxerga o caminho e chama o povo à razão” (FONSECA, 2012, p. 238). Nas graças das lideranças petebistas, conseguiu impor-se, lançando-se como candidato a deputado federal. Em um breve encontro com Getúlio Vargas, o mentor, líder do partido e candidato à presidência, foi ‘abençoado’e assim pode se sentir preparado (e munido de imagens) para as disputas eleitorais.

A representação heróica de Mário Palmério, veiculada pelo constante parceiro Lavoura e Comércio, corroborou para firmar, no imaginário da população uberabense, o perfil de um homem comprometido, confiante, empreendedor, visionário, guerreiro. Totalmente envolvido com a política, usou toda sua energia e prestígio em maciças propagandas na imprensa, pan-fletagens e em viagens pela região, mobilizando todos que podia. Elegeu-se, sendo o segundo candidato mais votado do PTB mineiro, não apenas por sua capacidade política, mas principalmente pelo domínio da cultura regional e sábio uso desse valioso conhecimento em sua trajetória.

O autor explica em detalhes – apoiando-se em extensa pesquisa e vasta documentação – a trajetória profissional e política de uma das figuras mais emblemáticas de Uberaba. Dentro de um crítico contexto social, político e econômico, que castigava a população, ressaltou a capacidade de Mário Palmério em interpretar os desejos da época, dominando e operando os símbolos que o ajudaram a consagrar-se como um verdadeiro mito da política regional; mostrou como o professor alcançou prestígio social, teatralizando sua imagem como uma distinta figura pública, beneficiando-se das trocas de elogios com as elites e do uso intenso da autopropaganda.

O livro é um perspicaz passeio pelos temas sobre o imaginário social, a simbologia e a mitologia.

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BIBlIOGRAFIA FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São Paulo: Editora da UNESP, 2012.

Recebida para publicação em maio/2014. Aceita em julho/2014.

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A esquerda que não teme dizer seu nome

Por: Sidnei Ferreira de VaresDoutor e Mestre em Educação pela USP e professor do Centro Universitário Assunção - UNIFAI, em São Paulo. Também é autor de dois livros, Reprodução e Resistência na Escola Capitalista (Editora Multifoco, 2010) e Durkheim: o legado de um fundador (Editora In House, 2012). São Paulo, [email protected].

Vladimir Pinheiro Safatle é Doutor em Filosofia pela Universida-de de Paris VIII, França. É também professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e colunista da Folha de São Paulo. Possui uma vasta produção acadêmica, abarcando temas variados como a filosofia de Hegel e de Marx, além de alguns estudos sobre psicanálise e, também, sobre mú-sica. Entre os trabalhos publicados pelo autor, destacam-se A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006), Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008) e Grande Hotel Abismo (Martins Fontes, 2012).

De: Vladimir Safatle A esquerda que não teme dizer seu nome.

1. Ed. São Paulo: Três Estrelas, 2013. 87 p.

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A ESQUERDA QUE NÃO TEME DIZER SEU NOMERESENHA294

Seu trabalho A esquerda que não teme dizer seu nome, publicado pela Editora Três Estrelas, tem 87 páginas, divididas em três capítulos, além, é claro, da introdução e da conclusão. Trata-se, portanto, de um opúsculo, que toma a forma de uma reflexão sobre os rumos da esquerda, em especial da esquerda brasileira, em face das artimanhas ideológicas do capitalismo contemporâneo.

Logo na “Introdução”, o filósofo chama a atenção para o fato de que, nos últimos anos, tem-se presenciado certo discurso fatalista que, em nome de um conservadorismo cada vez mais eloqüente e desnudo, defende o “esgotamento do pensamento de esquerda”. Esse discurso, calcado no fra-casso dos partidos comunistas no Ocidente, atua em duas frentes, a saber: (a) aquela que alega que a esquerda encarna uma espécie de “autoritarismo mal-disfarçado”, nutrida por uma ânsia de proteção dos mais carentes; (b) aquela, presente entre alguns representantes ressentidos da própria esquerda, que aponta para a necessidade de uma leitura crítica e realista mediante as experiências fracassadas da esquerda e do Estado de Bem-Estar Social. Segundo Safatle, essas duas perspectivas analíticas encontraram no Brasil um campo bastante fértil para sua proliferação e, sobretudo durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luís Inácio Lula da Silva, deram vazão à ideia segundo a qual “a divisão esquerda/direita não faz mais sentido”. Visando superar esse tipo de análise, Safatle apresenta, por meio de uma reflexão refinada, as posições que a esquerda, a seu ver, não pode nem deve negociar sob o risco de se perder. Com vistas a alargar as possibilidades da esquerda, o filósofo aponta os dilemas com os quais ela tem que lidar se quiser manter-se firme frente à lógica do capital. Contudo, o autor aposta na força do pensamento e institui a crítica como instrumento eficaz para aquela esquerda que não teme dizer seu nome.

No primeiro capítulo, “Igualdade e a equação da indiferença”, Safatle afirma que a defesa do igualitarismo constitui o pressuposto fundamental do pensamento de esquerda. Este termo refere-se tanto à luta contra as de-sigualdades sócio-econômicas, que por seu caráter primacial está na base de todas as outras lutas, quanto a uma “demanda de reconhecimento”, que toma a forma de uma “política da indiferença” frente às diferenças. Segundo o filósofo, o modelo liberal e o desmonte do Estado de Bem-Estar Social, ambos iniciados nos idos dos anos de 1980, resultaram na maximização dos lucros e, concomitantemente, no aviltamento dos salários dos trabalhadores, estimulando ainda mais as desigualdades sociais. Para o autor, esse processo só pode ser evitado caso o Estado se faça presente no sentido de regular os desmandos da economia, impedindo, por exemplo, que a diferença entre os salários mais altos e os mais baixos torne-se intransponível.

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Na visão de Safatle, um dos trunfos do discurso liberal-conservador é exatamente nos fazer acreditar que o conflito de classes não passa de uma invenção da esquerda, desmobilizando quaisquer ações articuladas de resis-tência. Isso, porém, não isenta a esquerda que, após os anos 60, abriu mão de seus valores fundamentais, adotando a “diferença” como valor da crítica social e da ação política. Esse deslocamento resultou tanto no alargamento na possibilidade social do reconhecimento, contribuindo para a projeção de grupos sociais minoritários, até então sem voz na sociedade (negros, homo-sexuais, feministas etc.), quanto num “multiculturalismo” que secundarizou noções caras ao pensamento de esquerda, como, por exemplo, a noção de “classe social”. Ademais, o culturalismo não superou completamente a lógica da exclusão, visto que, para seus defensores mais ardorosos, aqueles que não se adaptam ao “campo das diferenças” são “irrepresentáveis”. Destarte, caberia à esquerda ser “indiferente às diferenças”, atribuindo centralidade tanto à igualdade quanto à universalidade, bandeiras que, historicamente, sempre caracterizaram o discurso da esquerda.

O segundo capítulo, intitulado “Soberania popular ou a democracia para além do direito”, aborda a relação entre justiça e direito. Nele, Safatle procura demonstrar que o chamado “Estado de Direito” se impõe como uma noção inquestionável, tratando todo e qualquer ponto de excesso em relação aos limites da lei como uma ação criminosa ou como uma ação autoritária. Ancorado nos trabalhos filosóficos de Jacques Derrida, Claude Lefort e Giorgio Agamben, o autor observa que nem sempre “Direito” e “Justiça” estão em sintonia.

É essa, aliás, a condição dos chamados “Estados Ilegais”. Segundo o autor, todas as vezes que o Estado, e consequentemente o sistema jurí-dico, não corresponde àquilo que a sociedade civil dele espera, é possível questioná-lo e até mesmo suprimi-lo. O próprio pensamento liberal, desde João Calvino, passando por autores como John Locke, não deixa dúvida a esse respeito: a vontade popular está acima das leis, e, deste modo, se estas não representam os anseios da população, devem ser modificadas. Assim sendo, a tese segundo a qual o direito é inquebrantável, cai por terra, pois, em última instância, a vontade do povo é inalienável. Numa situação como esta, até mesmo a violência torna-se legítima. Como reitera o autor, “toda a ação contra um governo ilegal é uma ação legal” (p. 42). No caso da socie-dade brasileira, Safatle aponta as contradições inerentes à constituição de 1988, que ainda comporta dispositivos da constituição autoritária de 1967, mostrando-se incapaz de representar, em muitos aspectos, as demandas da sociedade civil. Com efeito, indaga o autor: pode-se falar num Estado verda-

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A ESQUERDA QUE NÃO TEME DIZER SEU NOMERESENHA296

deiramente democrático quando o ordenamento jurídico não representa o povo? Ora, tal circunstância não seria o mesmo que negar a democracia? E se esse mesmo povo, por meio do exercício da política, decidisse modificar as leis com vistas a adequá-las as suas necessidades, isso configuraria um ato de justiça ou uma violação ao Estado de Direito? Para Safatle não há qualquer dúvida: um regime verdadeiramente democrático não é estático, muito pelo contrário: tem por característica o fato de ser dinâmico. Isso porque a democracia “não é medida pela estabilidade de suas instituições e suas regras”, mas “(...) pela possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifestar-se e criar novas regras e instituições” (p.55).

O terceiro e último capítulo, “Do tempo das ideias”, comporta uma análise histórica da trajetória da esquerda. Trata-se não apenas de um balan-ço de seus erros e acertos, mas, sobretudo, de uma avaliação sobre o modo como seus representantes têm lidado com o passado recente. Safatle procura desconstruir as críticas encabeçadas pelos conservadores, segundo as quais a esquerda, durante o século XX, impôs-se pela brutalidade. Não que o autor ignore as atrocidades cometidas, mundo afora, por muitos líderes socialistas. Todavia, argumenta, a violência empreendida pela esquerda não foi maior do que aquela cometida por seus antagonistas. Ademais, não existe uma relação fatalista, como querem os defensores de uma “estratégia da resignação”, entre os erros que a esquerda cometeu e o desejo de um mundo que está por ser construído. Se a esquerda errou em muitas ocasiões – fato que o autor não ignora – isso não significa que ela não possa aprender com os seus erros para, na medida em que compreendê-los, modificar suas estratégias de ação em prol de uma sociedade menos desigual.

Entretanto, para o pensamento liberal-conservador, que entende a sociedade como o resultado da livre associação entre os indivíduos, qualquer forma de ação que tenha como meta superar os sistemas particulares e ego-ístas de interesses está a um passo do totalitarismo. E assim, sob a hipóstase do indivíduo, os liberais-conservadores impedem “o desejo de nos livramos de nós mesmos”, isto é, de gerarmos um “homem novo” (p. 66).

O filósofo ainda denuncia o que, para ele, constitui uma dicotomia empobrecedora: aquela entre reforma e revolução. Dela decorrem dois equívocos, a saber, elevar a revolução como único acontecimento dotado de verdade; e recusar todo e qualquer processo revolucionário, entendendo-o como um desvario da história. Na ótica do filósofo, a esquerda não deve tomar a revolução como um objetivo político – até porque ninguém sabe ao certo como produzi-la –, mas como uma experiência incalculável e imprevisível. Entretanto, se historicamente a esquerda produziu uma refinada “teoria

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do poder”, todas as vezes que conseguiu alcançá-lo não obteve um grande desempenho, exatamente por não dispor de uma “teoria do governo”. Essa incapacidade de lidar com o poder quando o tem em mãos muitas vezes se explica em virtude da tentativa, indubitavelmente condenável, de mimetizar as fórmulas liberais. Como destaca Safatle: “Quando isso acontece, vemos ou o patético espetáculo de um lento processo de degradação da governa-bilidade, com a famosa transformação dos governantes de esquerda em figuras que mimetizam as práticas da corrupção e os valores da direita, ou a guinada em direção ao centralismo totalitário – única forma de conservar o governo quando não se sabe governar” (p. 80). Com efeito, para Safatle, a esquerda, a despeito de seus temores ordinários, deve primar pela ousadia e pelo entusiasmo, confiando em si mesma, inclusive em relação à formulação de um programa de governo autêntico.

Na “Conclusão”, Safatle argumenta que a esquerda deve assumir os seus erros e a sua falibilidade, porém, não deve abrir mão de alguns preceitos centrais para ela, tais como o igualitarismo, o universalismo, a soberania popular e o direito à resistência, sob o risco de se perder. O autor também enfatiza a necessidade da esquerda se afastar dos fatalismos imobilistas, visto que a história é um campo sempre aberto e, portanto, profícuo a mudanças e transformações. Cabe a esquerda recolocar no debate político tudo aquilo que, para ela, é “inegociável”, pois, só assim, uma nova esquerda, que não teme dizer seu nome, despontará forte no cenário político.

O referido trabalho é bastante instigante, sobretudo por conta das críticas construtivas que o autor dirige à própria esquerda, apontando suas fragilidades, mas, também, as possibilidades de superar a inanição política em que se encontra. Sem adotar uma linguagem pedante, habitual na aca-demia, Safatle prima pela simplicidade das palavras, e, sem ser simplista do ponto de vista analítico, tem o mérito de desmistificar os empecilhos que a esquerda enfrenta atualmente. Ancorado na imprevisibilidade da história e na ousadia típica dos que desejam transformar a realidade, Safatle provoca o leitor a pensar sobre a força das utopias, estimulando a resistência em um mundo há muito desencantado, marcado pela resignação e pelo fatalismo.

Recebida para publicação em abril/2014. Aceita em julho/2014.

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FORMAS DE CItAçãOAs citações que não ultrapassarem 3 linhas devem permanecer no corpo do texto. As citações de mais de 3 linhas devem apresentar recuo da margem esquerda de 4cm, espaçamento simples, sem a utilização de aspas, justificado e com fonte menor que a do corpo do texto.

As referências bibliográficas no interior do texto deverão seguir a forma (Autor, ano) ou (Autor, ano, página) quando a citação for literal (neste caso, usam-se aspas): (BARBOSA, 1964) ou (BARBOSA, 1963, p. 35-36).

Quando a citação imediatamente posterior se referir ao mesmo autor e/ou obra, devem-se utilizar entre parênteses as fórmulas (Idem, p. tal) ou (Idem, ibidem quando a página for a mesma).

Se houver mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, deve- se diferenciar por uma letra após a data: (CORREIA, 1993a), (CORREIA, 1993b).

Caso o autor citado faça parte da oração, a referência bibliográfica deve ser feita da seguinte maneira: Wolf (1959, p. 33-37) afirma que...

Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014

INStRUçõES AOS AUtORES

Citações que venham acompanhadas de comentários e informações complementares devem ser colocadas como nota.

FORMAtO DAS REFERÊNCIAS BIBlIOGRáFICASAs referências bibliográficas (ou bibliografia) seguem a ordem alfabética pelo sobrenome do autor. Devem conter todas as obras citadas, obedecer às normas da ABNT (NBR 6023/ 2002), orientando-se pelos seguintes critérios:

livro: sobrenome em maiúsculas, nome. Título da obra em itálico. Local da publicação: Editora, ano.Exemplo: HABERMAS, Jüngen. Dialética e hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.livro de vários autores (acima de 3): sobrenome em maiúsculas, nome et al. Título da obra em itálico. Local da publicação: Editora, ano.Exemplo: QUINTANEIRO, Tania et al. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1990.Obs: até três autores deve-se fazer a referência com os nomes dos três.

Artigo em coletânea organizada por outro autor: sobrenome do autor do artigo em maiúsculas, nome. Título do artigo, seguido da expressão In: e da referência completa da coletânea, após o nome do organizador, ao final da mesma deve-se informar o número das páginas do artigo.Exemplo: MATOS, Olgária. Desejos de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin, in: NOVAES, A. (org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 157-287.

Artigo em periódico: sobrenome do autor em maiúsculas, nome. Título do artigo sem destaque. Nome do periódico em negrito, local de publicação, número da edição (volume da edição e /ou ano), 1a e última numeração das páginas, mês abreviado, seguido de ponto final e do ano em que o exemplar foi publicado.Exemplo: VILHENA, Luís Rodolfo. Os intelectuais regionais. Os estudos de folclore e o campo das Ciências Sociais nos anos 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 32, ano 2, p.125-149, jun.1996.

Obras online: sobrenome do autor (se houver) em maiúsculas, seguido de Nome. Título da obra (reportagem, artigo) destacado. Logo após virá o endereço eletrônico entre os sinais < >, precedido pela expressão “Disponível em”. Após o endereço eletrônico (site) deverá vir a expressão “Acesso em”: dia do acesso, mês abreviado. Ano.

ExEMPlOS: lIVROBALZAC, Honoré. A mulher de trinta anos. Disponível em: <http:// www. terra.com.br.htm>. Acesso em: 20 ago. 2009.

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Periódico em meio eletrônicoGUIMARÃES, Nadeja. Por uma sociologia do desemprego. Rev. Bras. Ci. Soc*., São Paulo, v. 25, n. 74, out. 2010. Disponível em: <http://www. Scielo.br/scielo.php?script>. Acesso em: 11 mar. 2011.

Jornal em meio eletrônico* Sem o nome do autor. Quando a matéria não informa o autor,iniciamos pelo título.TSUNAMI no Japão. O Povo online, Fortaleza, 11mar. 2011. Disponível em: <http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso em: 11mar. 2011.* Com o autorBRÁS, Janaína. Fraternidade: campanha discute proteção à natureza. O povo online, 11mar.2011. Disponível em: <http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso em: 11mar. 2011.

1. Nomes de periódicos podem ser abreviados na referência.

// DOSSIÊ: SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO

APRESENtAçãO

Danyelle Nilin Gonçalves

Educação e pensamento social brasileiro: alguns apontamentos a partir de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre

Amurabi Oliveira

Viver e interpretar o mundo social: para que serve o ensino da Sociologia?

Bernard Lahire

O ofício de ensinar para iniciantes: contribuições ao modo sociológico de pensar

Irlys Alencar Firmo Barreira

Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica de produção de currículo

Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra

Culturas juvenis e agrupamentos na escola: entre adesões e conflitos

Irapuan Peixoto Lima Filho

// ARtIGOS

Os relatórios do desenvolvimento humano (RDHS/PNUD/ONU) da década de 1990 e as propostas para enfrentar as múltiplas formas de desigualdades

Maria José de Rezende

Ética civilizacional e teoria sociológica: uma revisão conceitual de Durkheim

André Oda

As barracas de praia e a “civilização” do lazer: espaço urbano, poder e sociabilidade na Praia do Futuro

Wellington Ricardo Nogueira Maciel

Pequena empresa inovadora e desenvolvimento: indústria naval em Rio Grande

Sandro Ruduit Garcia

A expansão da Jurema na Península Ibérica

Ismael Pordeus Júnior

Questões culturais no Ceará

Gilmar de Carvalho

// ENtREVIStA

A sociologia de volta à escola: um balanço provisório

Ileizi Fiorelli e Danyelle Nilin Gonçalves

// RESENHAS

Fonseca, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério

Fábio Dias de Souza

Safatle, Vladimir de. A esquerda que não teme dizer seu nome

Sidnei Ferreira de Vares

Departamento de Ciências SociaisPrograma de Pós-Graduação em Sociologia