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JÚLIA CATANI AS LUTAS CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE E DA PSIQUIATRIA PELA NOMEAÇÃO, DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO Sofrimentos Psíquicos z Zagodoni Editora

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JÚLIA CATANI

As LutAs CientífiCAs dA PsiCAnáLise e dA PsiquiAtriA PeLA nomeAção, diAgnóstiCo e trAtAmento

sofrimentos Psíquicos

z ZagodoniEditora

Copyright © 2015 by Júlia Catani

Todos os direitos desta edição reservados à Zagodoni Editora Ltda. Nenhuma parte da obra poderá ser reproduzida ou transmitida, seja qual

for o meio, sem a permissão prévia da Zagodoni.

Editor: Adriano Zago

Revisão: Arilene Teggi

Diagramação: Uli M. Fernandes

Capa: Michelle Z. Freitas

CIP-Brasil. Catalogação na PublicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C356sCatani, JúliaSofrimentos psíquicos : as lutas científicas da psicanálise e da psiquiatria pela nomeação, diagnóstico e tratamento / Júlia Catani ; prefácio Christian Ingo Lenz Dunker.- 1. ed. - São Paulo : Zagodoni, 20155.224 p. ; 23 cm.Inclui bibliografiaISBN 978-85-5524-007-21. Doenças mentais - Diagnóstico. 2. Psicologia. 3. Psiquiatria. I. Título.15-26139 CDD: 616.89 CDU: 616.89

[2015]Zagodoni Editora Ltda.Rua Capital Federal, 860 – Perdizes01259-010 – São Paulo – SPTel.: (11) [email protected]

Aos meus avôs Mauro e Renato, que, apesar do pouco tempo em

minha vida, continuam presentes no meu dia a dia, na minha escrita e

nos meus cafés da manhã.

(In memoriam)

Agradecimentos

A realização da pesquisa que sustenta o livro e a sua escrita foram processos extensos, nos quais contei com a ajuda direta e indireta de muitas pessoas. Em A louca da Casa (2006), Rosa Montero refere-

se ao tempo da escrita observando que “às vezes o processo de gestação é muito mais longo” (p.18). Esta foi exatamente a sensação que experimentei, o tema da pesquisa demorou a germinar, mas quando iniciado parece que frutificou e, apesar dos percalços no meio do caminho, o trabalho aos pou-cos foi ganhando forma, ainda que existissem as autoexigências e a mul-tiplicação de ideias que logo se mostravam infindáveis. Mas foi possível chegar ao final do trabalho... Evidentemente tendo que deixar de lado e experimentar (mais uma vez) a castração. De todo modo, as exigências e a falta de palavras quando se chega aos agradecimentos parecem ainda mais intensas, levando-me a recordar novamente as palavras de Rosa: “O que realmente horroriza é o resultado desse trabalho, isto é, escrever palavras, mas palavras ruins, textos inferiores à sua própria capacidade. Você tem medo de esmigalhar sua ideia redigindo-a de maneira medíocre” (p.38). Tendo agora feito todas as justificativas e desculpando-me de várias for-mas, posso afirmar que nada do que seja escrito aqui será capaz de repre-sentar a gratidão que tenho por muitos e por todos os que aqui aparecem. É chegada então...

A Maria Abigail de Souza, que aceitou desde o início a minha forma de trabalhar e possibilitou o conteúdo deste material, fruto da dissertação. Sem ela este livro, com certeza, não existiria. A Lena – Maria Helena Fernandes –, que nos contatos esporádicos (muito menores do que gostaria) que tivemos, ao longo de minha trajetória como psicanalista, sempre contribuiu de modo muito generoso e crítico investindo em minha possibilidade de transformar-me em alguém mais hábil. A Maria Lívia Moretto, com quem há anos tro-

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co experiências profissionais, nos variados contextos e com quem tenho a oportunidade de aprender muito. Ao Christian Dunker, que nos instantes aflitivos sempre tem uma pequena e valiosa palavra para dizer cujo sentido pode ir muito além e aplacar diversas angústias. Sem as suas palavras não me permitiria seguir muitas vezes.

Aos colegas do Ambulatório de Transtornos Somatoformes (SOMA), por dividirem as dúvidas, angústias e inquietações frente ao sofrimento humano e ao indizivel. Agradecimento especial à querida Bruna Bartorelli, que permite que continuemos remando contra a maré e provando que é possivel fazer operar uma escuta psicanalítica associada à escuta psiquiátri-ca. Ao Eduardo Mutarelli (“Muta”) por demonstrar que é viável aprender um pouco de neurologia mesmo sendo completamente leigo na área. E por ensinar que a paixão pelo que se faz vale a pena em qualquer época da vida. A Abigail Betbedé que, em sendo psiquiatra, é uma excelente psicanalista (ainda bem que optou por “desviar” o caminho já há alguns anos). E ainda pela parceria para pensar como a psicanálise pode existir na instituição. Fe-lipe Nishioka, que comprova que o pensamento clínico pode independer da experiência e que é preciso, para além disso, sensibilidade e interesse pelo outro. Roberto Favaretto, pela importante função de cuidar dos pacientes para além do HC e ensinar que existem recursos na rede que podem e de-vem ser utilizados, de maneira que os pacientes possam ser ainda mais be-neficiados. Ymara Vitolo, pela descontração e pela sua forma espontânea de ser, inclusive nos momentos mais aflitivos. Marina Bilenky pela insistência em lembrar que é fundamental discutir os casos com outros colegas, inde-pendentemente da linha com a qual se tem afinidade. Luiz Teixeira, pelo cuidado em lembrar das questões orgânicas e farmacológicas. Agradeço também a João Paulo Barreta, Alice dos Santos, Ana Cláudia Borghi, Ana Martha Falzoni, Júlia Torres, Joyce Achel, Sabrina Jacques, Simone Cano, Vera Helena Torres, Mariana de Oliveira, Arlete Modelli. Aos residentes que, mesmo ficando conosco um tempo menor do que gostaríamos, deixam marcas essenciais e lembram-nos a importância de repensar constantemente o trabalho. E a todas as outras pessoas que passaram pelo SOMA, mas que por algum motivo não puderam mais estar conosco.

À colega Danuta Medeiros que com um “nada simples” número de te-lefone viabilizou o desenvolvimento de uma das partes mais significativas do meu trabalho.

Ao Prof. Dr. Ruy Laurenti (in memoriam) pelas explicações esclarece-doras a respeito da CID, pelo enorme aprendizado nos breves contatos que tivemos e por me apresentar à Dra. Heloisa Brunow Ventura Di Nubila. À mesma Dra. Heloisa pela receptividade e oferta de seu tempo ao me apre-sentar o Centro Brasileiro de Classificações de Doenças – (CBCD), permitir

a consulta de cada uma das edições da CID e esclarecer todas as minhas dúvidas ao longo deste processo.

Aos colegas do Instituto Sedes Sapientiae, pela trajetória, ao longo des-tes anos de formação, em especial às amigas Evelyse Clausse e Flávia Steuer. Ao grupo de Ferenczi – Márcio Bandeira, Eugênio Dal Molin, Flávia, Paulo Cabral e Yuri Mori – que me ensinou e fomentou diversas reflexões para pensar a clínica do trauma. E que possibilitou, inclusive, a minha entrada no novo grupo Faces do Traumático ao qual hoje pertenço, no Sedes. Ao “Círculo Secreto”, a ausência de palavras resume: Plínio Carpigiani, Milena Cortez, Davi Flores, Tânia Veríssimo.

Ao Eugênio Canesin Dal Molin por todos estes anos de amizade e de discussões que felizmente se estenderam para além do Sedes e ainda pela disponibilidade de colaborar, a cada convite feito.

Aos colegas do LATESFIP (Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psi-canálise da USP) pelas reflexões que me acompanharam para muito além do laboratório, inclusive para a elaboração do meu texto. Aos colegas que descobri na USP em um momento quase solitário da pesquisa: Daniele San-ches, Hugo Lana, Pedro Ambra, Paulo Beer, Rafael Lima, Dulce Coppedê, Luiz Eduardo Moreira, Roberto Propheta, Viviana Venosa, Patrícia Porchat, Karen Alves, Danna De Luccia.

Ao Bernardo Tanis e ao Nelson Ernesto Coelho Junior pelos recursos deles advindos para reformular minha escolha e afinidades teóricas ao lon-go do caminho. A Lily Grego, por sempre acreditar que posso chegar mais longe e porque as minhas conquistas também lhe pertencem.

Às minhas grandes amigas, amizade de longa data, Isabel Moura, Mô-nica Souza, Ana Carolina Pupo, Tallyta Cardoso, Fabiana Alves, Carolina Zambotto, Ana Regina Sica, Renata Anastácio e Giovanna Campos.

A Denice Catani, pelo primeiro modelo do que significa ser pesquisado-ra e pelos infinitos investimentos diários, no sentido mais amplo do termo. Investimentos indescritíveis por meio de palavras, mas talvez quantificáveis pela inúmeras vezes que me deixa emocionada.

A Barbara Catani pela alegria, descontração, amizade e amor; eu a teria escolhido como irmã, caso você já não fosse.

Ao Afrânio Catani e à minha pequena irmã Bertha Catani, que apesar da distância, maior do que eu gostaria, estão sempre perto de mim.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por viabilizar uma parte do caminho para a existência deste livro.

Prefácio

Até que ponto a forma como nomeamos o sofrimento determina a natureza mesma do sofrimento? O brilhante ensaio de história da ciência e de crítica dos conceitos clínicos, de Júlia Catani enfrenta

este problema de modo rigoroso e circunstanciado neste trabalho, cuja ver-são original foi sua dissertação de mestrado junto ao Departamento de Psi-cologia Clínica da USP. Examinando o núcleo normativo da nomeação dos transtornos em geral a partir deste caso estratégico, que são os Transtornos Somatoformes, ela detalha com precisão os pequenos movimentos que culmi-naram na exclusão do conceito de histeria do discurso psiquiátrico hegemô-nico. Contenda maior e ponto de divergência crucial entre duas disciplinas e duas epistemologias, a histeria sempre foi definida como um quadro no qual o paciente apresenta dificuldade para refazer a história dos seus sintomas e organizar a totalidade de seus signos clínicos. Anamnese e exame clínico, os dois pilares práticos da clínica, seja ela psiquiátrica ou psicanalítica, são, portanto problematizados de saída. As histéricas sofrem de reminiscências, diria Freud, mas seus sintomas podem ser produzidos artificialmente, com ajuda do médico, diria Charcot. Quem diz que tais problemas desaparece-ram, que são lendas clínicas do passado, legados deixados para trás pela liberação dos costumes, não conhece como Julia o trabalho do Ambulatório de Transtornos Somatoformes do Hospital das Clínicas da USP. Nele, psiquiatras, psicanalistas e neurologistas depararam-se cotidianamente com o mistério do corpo falante. Exatamente como há mais de 100 anos, na antológica Sal-pêtrière, ali ainda a clínica é soberana.

Quando Cullen classificou os diferentes tipos de doença, na aurora da medicina moderna, em seu Synopsis Nosologiae Methodicae (1769), ele reser-vou uma classe extensa para as doenças dos nervos. As neuroses, defini-das como perturbações dos nervos, sem febre subdividiam-se em quatro

Há sempre algo de ausente que me atormenta.

Camille Claudel

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ordens específicas: 1) os comas (ou perda dos movimentos voluntários, como na apoplexia); 2) as adinamias (doenças constituídas pelo enfraquecimento ou perda dos movimentos nas funções vitais ou naturais, incluindo assim a síncope, a dispepsia e a hipocondria); 3) as afecções espasmódicas sem febre, como o tétano, a epilepsia, a asma e a histeria e 4) as vesânias, como a mania (loucura) e a melancolia. Percebe-se assim que a noção de neurose precede a de psicose, introduzida por Karl Friedrich Constatt, em 1845, para referir-se à “neurose psíquica”. Verifica-se também que a força diagnóstica do paradigma histérico introduzido por Freud remonta ao fato de a histeria apresentar sintomas nos quatro quadrantes das doenças dos nervos: estados de absense parciais (comas), a astenia psíquica e corporal (adinamias), os ataques (espasmos) e a depressão ou loucura (vesânia).

O trabalho de Júlia Catani, uma das mais brilhantes alunas do Laborató-rio de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, permite ver com clareza como a estratégia histórica da psiquiatria de redução da Histeria ao grupo dos Transtornos Somatoformes ganha em segmentação descritiva o que perde quanto à capacidade de pensar a relação entre diferentes sintomas. O pro-blema seria relativamente simples se a questão permanecesse no âmbito da geografia proposta por Freud. Para ele, a psiquiatria está para a psicanálise como a baleia está para o urso polar. Como cada qual pertence a um ambien-te diferente, aquático ou terrestre, não haveria por que comparar práticas e diagnósticos. Não haveria que postular uma ambição de verdade ou adequa-ção entre clínicas de finalidades distintas. Ademais o diagnóstico deveria ser uma categoria sumamente prática, subsidiando antes de tudo uma determi-nada prática, por exemplo, terapêutica, um interesse, por exemplo, epide-miológico, ou uma condição desejável, por exemplo, o aumento da solidez de consensos categoriais, digamos, convenientes para a pesquisa científica.

O argumento freudiano permaneceria válido, mas ele é francamente concernido em uma perspectiva limitada de ecologia. Imaginar que a vida das baleias não afeta a vida do urso polar, pretender que os ambientes aquá-ticos e terrestres são incomunicáveis desconhece a existência de focas e leões marinhos, que podem viver em um ambiente, mas se reproduzem em outro. A geografia freudiana do problema é limitada porque é incapaz de pensar na existência de forças mais poderosas e determinantes do que os interesses locais de uma prática e outra, por exemplo, o degelo dos polos pode lançar os ursos polares para dentro da água, ou deixá-los à deriva em um bloco desgarrado de gelo. A formação de icebergs pode diminuir o ambiente do urso polar, assim como as baleias podem ser caçadas, impiedosamente ca-çadas, e o urso polar extinto. Deixo ao leitor a tarefa de levar adiante como esta analogia cobre o campo de novidades que incidiu sobre a psiquiatria e sobre a psicanálise.

A descoberta de novas medicações, notadamente a partir do pós-guerra, a mudança de lugar social da loucura, causa e consequência do fim dos asi-los manicomiais, a emergência de uma cultura generalizada dos transtornos mentais leves tornaram relativamente banal a experiência de um paciente que é tratado, ao mesmo tempo, por um psicoterapeuta e por um psiquia-tra, que segue uma psicanálise sob efeito de antidepressivos, antiansiolíticos e indutores do sono ou da ereção. O diagnóstico adquiriu com isso uma importância clínica quase inexistente antes disso. Ele tem impacto no tipo de cobertura que paga o tratamento. Assim como existem moduladores de humor, o diagnóstico atua como um modulador de discurso. Ele prescreve não apenas o que fazer, mas também como devemos sofrer. Como se a par-tir do diagnóstico alguém se tornasse apto a inscrever seu sofrimento em um discurso que hoje possui estruturas de reconhecimento inexistentes na época de Freud. Um aluno com dislexia ou com transtorno de atenção com hiperatividade torna-se, depois do diagnóstico, outro aluno no interior do discurso da escola. Um infrator com diagnóstico de transtorno de persona-lidade antissocial torna se outro criminoso diante da lei. Um amante bipolar não é o mesmo que um apaixonado monopolar.

No fulcro desta mudança de ecossistema encontram-se dois temas que este livro enfrenta de modo corajoso e incrivelmente original, dada a pre-mência social da matéria. O primeiro corresponde a uma espécie de inver-são de perspectiva. É muito importante deixar de pensar exclusivamente a partir da disciplina e do território no qual cada qual, psiquiatras, psicana-listas ou psicólogos, se responsabiliza em incluir como ponto constituinte de nossas práticas o paciente. Isso deve ser feito por meio de uma alteração topológica do campo da assim chamada saúde mental. Não mais um centro, no qual se posicionam os cuidadores, e uma periferia na qual estão os pa-cientes, mas uma elipse, com dois focos, sendo o segundo representado por uma categoria que não é nem psicanalítica nem psiquiátrica, mas universal, que é a categoria de sofrimento. Não é preciso advogar o retorno a uma teoria ontológica da doença, para perceber que o sofrimento é um conceito essencialmente pragmático, e que ele deveria ser um articulador incontor-nável de nossos diagnósticos e intervenções. E quem diz sofrimento, diz a voz e a narrativa do paciente, suas expectativas e sua teoria da doença e da cura, sua hermenêutica dos sintomas. Portanto, acima e além da pragmática do psicanalista ou do psiquiatra há a expectativa de reconhecimento de que a clínica clássica levava em conta a experiência de sofrimento. Experiência com a qual nossos territórios e disciplinas deveriam se ajustar. Lembremo-nos do adágio: “a clínica é soberana” contra todas as medicinas baseadas em evidências ou não. Lembremos que soberania é um conceito político. Este li-vro aparece em um momento no qual a medicina brasileira precisa rever sua

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implantação social, um momento de reformulação de suas práticas formati-vas e de redimensionamento da função política de sua prática. E que seja a noção de sofrimento uma categoria incontornável desta transformação.

O segundo ponto decisivo, no livro de Júlia Catani, é que esta compa-ração entre racionalidades diagnósticas não é um assunto para ser tratado conforme a potência deliberatória dos gestores em saúde mental e o inte-resse das instituições na indústria neoliberal do sofrimento. O diagnóstico é um assunto de ciência. Assim como a história dos sintomas, no modo como o paciente a conta, interpreta e autodiagnostica, faz parte do sofrimento a história dos sintomas, no quadro da tradição que a estudou, a saber a psi-copatologia, deve fazer parte da ciência do diagnóstico. Neste caso, há uma diferença substancial entre a psiquiatria e o resto da medicina. Nas outras áreas médicas, as redescrições e as renomeações das doenças sempre estive-ram sujeitas ao aperfeiçoamento na captação e distinção de seu desencade-amento, curso e prognóstico. A renomeação nunca foi apenas uma batalha culturalista para ver quem detinha o monopólio de um processo mórbido. Ela sempre esteve do lado do ganho no aprofundamento da etiologia, da vantagem prognóstica da detecção de variedades ou da especificação de ca-racterísticas de seu curso. Como Júlia mostra minuciosamente, pela compa-ração entre o Manual Estatístico de Diagnóstico dos Transtornos Mentais (DSM), produzido pela Associação Psiquiátrica Americana e a Classificação Interna-cional de Doenças, produzida pela Organização Mundial da Saúde desde 1900, este ganho é simplesmente não verificável quando se trata da noção de Transtorno Somatoforme. Não há nada a acrescentar nas suas diferentes variações, desde sua origem na reação histérica, das primeiras versões do DSM e da CID, em termos de marcadores biológicos, sinais característicos, indicações semiológicas diferenciais. Não há nada a acrescentar em termos de sua causalidade, de sua epidemiologia, de seu tratamento. Portanto, não vale aqui o princípio geral de que em ciência só conta o último capítulo. A historicidade deste objeto faz parte do próprio objeto, assim como a histori-cidade dos sintomas faz parte do próprio quadro.

Isso não significa que o paradigma diagnóstico da histeria em psicanáli-se seja, por si só, mais eficiente e menos confuso. Pelo contrário, também os psicanalistas tentaram especificar e segmentar a generalidade da histeria em tipos, versões e formas deslocadas.

A teoria da ciência proposta por Thomas Kuhn, por volta dos anos 1960, junto com seus desdobramentos e continuadores dos anos 1990, é, provavel-mente, o modelo de lógica da transformação científica mais bem-sucedido e mais amplamente em vigor entre as comunidades de cientistas. Isso se deve, em parte, ao fato de que a teoria de Kuhn explica simultaneamente a lógica da ciência como instituição social, com suas associações de cientistas, seus

jornais, seus centros de excelência, seus sistemas de reconhecimento e de financiamento, mas também a lógica da ciência como forma de conhecimento, com seu léxico, suas operações de demonstração, seus regimes de verdade e de prova. Para Kuhn, a ciência se organiza em torno de paradigmas, e os paradigmas organizam uma lista de problemas reconhecidos como rele-vantes, bem como métodos reconhecidos como pertinentes, para tratá-los. Contudo, há sempre problemas que deveriam ser solúveis pelo paradigma considerado e que, não obstante, não o são. Isso pode ocorrer tanto porque o progresso da ciência normal, estabilizada, ainda não fez o ponto nesta matéria, quanto porque o problema requer outro paradigma, e permanecerá insolúvel, portanto, até que tenhamos uma revolução científica que institua um novo paradigma. Na teoria de Kuhn, este problema tem um nome: ano-malia.

A pesquisa de Júlia Catani não é apenas um estudo comparativo sobre as progressões continuadas e sobre o regime de mutualismo clínico e diag-nóstico de uma categoria tensa entre psicanálise e psiquiatria. Seu estudo poderia ser replicado para a esquizofrenia (esta doença inventada a partir da Spaltug freudiana), para a neurose obsessiva (igualmente segmentada em transtornos de impulso e transtornos do Espectro Obsessivo Compulsivo), mas não é o caso. Além de mostrar que em psicopatologia não vigora a regra banal de que em matéria de ciência só vale o último capítulo, seu tra-balho detém-se sobre um tipo clínico que é um fenômeno de anomalia, do ponto de vista da ciência. O Transtorno Somatoforme é uma anomalia porque ele é manifesto como uma dor, uma perturbação anestésica ou hipersensí-vel, uma experiência sensorial positiva no corpo, e não obstante faltam os recursos para reduzi-la a uma perturbação dos tecidos, uma modificação anatômica, uma descompensação eletro-química. É uma anomalia, para o paradigma de Claude Bernard, que se abram os corpos somatoformes em autópsia, e não se evidenciem dados de corrupção anatomopatológica.

Claro que isso não significa que o paradigma esteja equivocado, mas apenas que ele ainda não produziu as condições de verificabilidade que lhe são pretendidas. Este é exatamente o estatuto de uma anomalia. O paradig-ma psicanalítico oferece uma rede de inteligibilidade para este fenômeno, ainda mais pelos dados positivos, ainda que oscilantes, em termos de rever-sibilidade terapêutica. O estudo desta anomalia mostra-se assim uma esco-lha estratégica utilíssima para o estado atual de discussão da cientificidade das práticas em saúde mental.

Elegante no estilo, sóbrio nas generalizações e inteligente na apreensão clínica dos problemas, o estudo de Júlia Catani supera amplamente o dog-matismo psicanalítico que abunda esta matéria, bem como a desfaçatez que presenciamos na maior parte dos argumentos psiquiátricos. É um destes

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estudos que mudam o patamar da conversa, deixando sua marca na histo-ricidade deste objeto. Ele representa o que de melhor o novo pensamento uspiano em psicanálise pode trazer para revigorar o estado das práticas em saúde mental brasileiras.

Christian Ingo Lenz Dunker

Apresentação

Sofrimentos Psíquicos – As lutas científicas da Psicanálise e da Psiquiatria pela nomeação, diagnóstico e tratamento1 tem como objetivo a descrição e a análise dos conceitos de Transtornos Somatoformes (TS) na pers-

pectiva psiquiátrica e psicanalítica e para isto realiza um mapeamento e uma discussão da temática de modo histórico e nos diferentes campos do conhecimento. O estudo explora o conceito de histeria na obra freudiana, buscando investigar as proximidades existentes entre o conceito psiquiá-trico de TS, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID) e o de Histeria em Freud. Além destas fontes primárias, isto é, os manuais e a obra freudiana, mobilizam-se textos psiquiátricos e psicanalíticos que contribuem para o en-tendimento das questões. A reconstrução histórica possibilita observar que, nas primeiras edições dos manuais psiquiátricos, os TS remetiam ao que a ciência psiquiátrica até aquele momento tinha dificuldade em classificar. Reconhecia-se também a influência dos conflitos psíquicos na manifestação dos sintomas, e o conceito de histeria estava atrelado a esta categoria diag-nóstica. Após 1980, a categoria diagnóstica de histeria foi retirada do DSM e a concepção acabou desmembrada em outros diversos diagnósticos. Tais aspectos explicitam a necessidade de maior compreensão acerca do proces-so histórico e a interlocução entre o campo da Psiquiatria e da Psicanálise, levando-se em conta o modo como é feito o diagnóstico deste transtorno, que ocorre na maior parte das vezes por exclusões. Cabe ressaltar, ainda, que o livro acompanha também a alteração sofrida na nomenclatura de TS

1 O livro resulta da dissertação de mestrado “Uma leitura dos Transtornos Somatoformes e da Histeria segundo o DSM, a CID e a visão freudiana: a identificação do sofrimento psíquico no campo científico” defendida em novembro de 2014 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo sob a orientação da Profª Drª Maria Abigail de Souza, com apoio do CNPq.

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É importante ressaltar que a análise feita aqui busca manter, simul-taneamente, seu enraizamento teórico e sua ancoragem nas práticas e na consideração da experiência no Ambulatório de Transtornos Somatoformes (SOMA) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP). Não se trata de criticar os sistemas ou de escolher outros tipos de instrumentos para afir-mar que seriam melhores que os sistemas classificatórios. Trata-se, sim, de propor reflexões que apontem para o fato de que nem sempre é viável tra-duzir de modo racional o psiquismo humano e também se trata de sustentar que os esquemas e os instrumentos podem, quando utilizados em conjunto, mostrarem-se muito mais produtivos para cuidar dos que adoecem. O em-prego da psiquiatria e da psicanálise articuladas pode ser um bom exemplo para isto.

na última edição do DSM-V (2013). A partir daí são discutidas as implica-ções e transformações produzidas ali para o entendimento deste tipo de so-frimento mental. Desta forma, o modo como o trabalho é desenvolvido visa esclarecer e auxiliar as pessoas interessadas em discriminar quadros pouco identificados do ponto de vista orgânico e casos em que os conflitos subje-tivos interferem substancialmente no corpo prejudicando e/ou produzindo lesões e patologias.

Na atualidade, discussões sobre classificações médicas e psicanalíticas, sua utilização e incorporação no cotidiano das pessoas, de modo geral, es-tão bastante presentes na área médica, na psicologia, na psicanálise e na saúde pública. Um exame detido das características dos sistemas classi-ficatórios pode auxiliar a compreensão da problemática da nomeação do sofrimento psíquico e de seu tratamento. Como as edições mais antigas da CID e do DSM são difíceis de serem localizadas, a sistematização feita no estudo torna-se ainda mais importante para o conhecimento das dimensões históricas das classificações. Soma-se a isto a importância deste entendi-mento acerca dos diagnósticos para os que trabalham em instituições. Isto é fundamental para permitir um diálogo mais efetivo e garantir uma me-lhor assistência ao paciente. Cabe sublinhar que a problemática da classi-ficação de Transtornos Somatoformes é hoje, sem dúvida, um desafio para especialistas e pacientes. No tocante aos estudiosos de psiquiatria, o estudo pretende contribuir ao elaborar sistematicamente as transformações das classificações; e para os de psicanálise, ao reconstituir no interior da obra freudiana a presença da histeria. Além disso, problematizam-se esses dois modos de nomeação do sofrimento, as configurações atuais da histeria e os argumentos que sustentam seu desaparecimento e suas revivescências nos transtornos somatoformes. As classificações, ao longo da história dos aco-metimentos mentais, permitem uma ordenação e um melhor entendimento para tratar os pacientes. Em qualquer lugar do mundo é possível, a partir do código de um diagnóstico, estabelecer um tratamento. Em contraparti-da, os esforços pela objetivação e quantificação do mal-estar produzem um número cada vez maior de fragmentações, e o resultado destes empenhos pode ser observado nas edições da CID e do DSM e em outros textos da lite-ratura especializada. A lógica que preside as classificações leva os especia-listas a criarem novas categorias quando se considera que as anteriores não atendem às necessidades apresentadas pelos pacientes. Além disso, não raras vezes, notam-se nos sujeitos sintomas de intensa gravidade ou com quadros psiquiátricos sobrepostos, de tal modo que as pessoas se valem de situações extremas para apresentarem o seu mal-estar e pedirem ajuda das mais diversas naturezas sugerindo a necessidade de classificações novas que deem conta dos novos fatos.

Siglas

APA – Associação Psiquiátrica Americana

CID – Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems – ICD)

DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnos-tic and Statistical Manual of Mental Disorders)

DSM-R – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – Revi-sado

FMUSP – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

HC – Hospital das Clínicas da FMUSP

IPq – Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP

LATESFIP – Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP

NE – Não Especificado

OMS – Organização Mundial da Saúde

PFAMC – Fatores Psicológicos que Afetam Condições Médicas em Geral (Psychological Factors Affecting Medical Condition)

SOMA – Ambulatório de Transtornos Somatoformes do Instituto de Psi-quiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universida-de de São Paulo (IPq-HCFMUSP)

TS – Transtornos Somatoformes

Sumário

Agradecimentos ................................................................................................. 7

Prefácio, Christian Ingo Lenz Dunker ........................................................... 11

Apresentação .................................................................................................... 17

Siglas ................................................................................................................... 21

1. Introdução: elementos de um mapa do sofrimento psíquico nos séculos XX e XXI ................................................................................. 27 1.1. As leituras possíveis dos transtornos somatoformes e da histeria .................................................................................................. 27 1.2. O diagnóstico em saúde mental numa perspectiva psiquiátrica .......................................................................................... 33 1.3. A histeria em Freud: uma breve apresentação ............................... 35 1.4. Os transtornos somatoformes e a psiquiatria ................................. 36 1.5. Modos de produção do estudo: método e história da questão .... 42

2. O diagnóstico da histeria em psicanálise: identificação e nomeação do sofrimento .......................................................................... 51 2.1. A invenção da histeria: um pouco da história do conceito .......... 51 2.2. O percurso histórico da histeria na obra freudiana. O papel da sedução e da fantasia no reconhecimento da “bela indiferença” ... 58 2.3. A histeria freudiana e a configuração do trauma .......................... 62

3. O diagnóstico em psiquiatria: classificação e controle do sofrimento ................................................................................................... 71 3.1. A configuração de um diagnóstico psiquiátrico: a preservação das fronteiras entre o normal e o patológico .................................. 71 3.2. A CID, as listagens e as classificações. O DSM, as descrições e a inclusão de explicações ampliadas ............................................. 75

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4. Os transtornos somatoformes na Classificação Internacional de Doenças (CID) ...................................................................................... 79 4.1. Primeiros passos para uma classificação internacional ................ 79 4.2. Período anterior à responsabilidade de produção e revisão do manual pela OMS: a classificação das causas de morte de Bertillon e sua integração na elaboração da CID-1 a CID-5 (1900-1938) ............................................................................... 80 4.3. CID-6: a classificação internacional de doenças e transtornos mentais sob responsabilidade da OMS (1948) .......... 82 4.4. CID-7: a incidência das patologias, a definição de classificação e as suas especificidades (1955) ........................................................ 86 4.5. CID-8: a colaboração internacional e as atribuições específicas para a elaboração da CID (1965) ................................... 90 4.6. CID-9: a expansão, a melhoria e as descrições das classificações para a utilização dos profissionais de saúde mental (1975) ....................................................................................... 92 4.7. CID-10: as diretrizes diagnósticas e as diretrizes clínicas dos Transtornos Mentais (1993) ........................................................ 96 4.8. CID-11: novas perspectivas para o futuro (previsão de lançamento 2016) .............................................................................. 104

5. Os transtornos somatoformes no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) ........................................ 107 5.1. DSM-I: a tentativa inicial de padronização e as classificações precursoras relativas ao diagnóstico de transtornos somatoformes (1952) ........................................................................ 107 5.2. DSM-II: a busca de aperfeiçoamento, as atualizações e as influências psicanalíticas para o termo neurose (1968) ............... 112 5.3. DSM-III: uma concepção ateórica? Uma visão global do funcionamento do sujeito e a supressão do termo neurose (1980) ................................................................................... 116 5.4. DSM-III-R: a ruptura decorrente da tentativa de independência (1987) ....................................................................... 122 5.5. DSM-IV: a precisão no estabelecimento do diagnóstico e a acessibilidade aos profissionais de saúde mental (1994) ............ 125 5.6. DSM-IV-R: a procura de estabilidade dos dados e maior confiança no campo da saúde mental (2000) ................................ 132 5.7. DSM-V: a exacerbação do sofrimento para o diagnóstico de sintomas somáticos e transtornos relacionados (2013) ............... 134 5.8. Algumas divergências na concepção dos transtornos somatoformes segundo a CID e o DSM ........................................ 143

6. A identificação do sofrimento psíquico no campo científico .......... 147 6.1. Como nomear a doença ou o sofrimento psíquico do indivíduo? .......................................................................................... 149 6.2. A quantificação da doença ou do sofrimento nos manuais psiquiátricos: entre o normal e o patológico ................................. 151 6.3. O que depreender da crítica aos manuais? ................................... 155 6.4. Da crítica à reflexão... e da reflexão à crítica ................................ 158

7. A histeria e os transtornos somatoformes: nomes diversos para a compreensão do mesmo sofrimento psíquico? .............................. 165 7.1. A desconstrução da histeria nos manuais psiquiátricos, nos artigos e nos dados epidemiológicos ............................................. 168 7.2. A histeria em Freud e os transtornos somatoformes nos manuais: aproximações ................................................................... 175 7.3. Ilustrações clínicas ............................................................................ 177 7.4. A concepção de corpo e suas manifestações ...........................178 7.5. Distinção entre somatização e conversão? Breves considerações ........................................................................ 179 7.6. O que fazer com os que sofrem? ..................................................... 181

8. Considerações finais ............................................................................... 187

Posfácio. As pequenas palavras, Eugênio Canesin Dal Molin ................ 191

Referências ..................................................................................................... 199

Anexos ............................................................................................................. 209 Gráficos SCOPUS – Publicações científicas ......................................... 209 Apêndice A. Edições da CID e do DSM e seus anos de publicação ... 211 Apêndice B. A CID e suas alterações quanto aos transtornos somatoformes ............................................................................................ 212 Apêndice C. O DSM e suas alterações quanto aos transtornos somatoformes ............................................................................................ 214 Apêndice D. Divergências acerca dos transtornos somatoformes na CID-10 e no DSM-IV-R ........................................................................ 217 Apêndice E. Divergências acerca dos transtornos somatoformes e sintomas somatoformes e transtornos relacionados no DSM-IV-R e no DSM- V ........................................................................... 218 Apêndice F. Levantamento da produção existente acerca dos transtornos somatoformes e da histeria ................................................. 219