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Introdução Embora o soft power seja retratado em diversas dimensões, as teo- rias de Relações Internacionais nos permitem identificar três catego- rias gerais de poder: econômica, militar, e ideológica e cultural. To- das três são, sem dúvida, importantes, mas a última é muitas vezes negligenciada por alguns políticos. Na verdade, esse é um erro sério, ao menos para aqueles que, como Joseph Nye, veem o soft power 501 Contexto Internacional (PUC) Vol. 34 n o 2 – jul/dez 2012 1ª Revisão: 08/01/2013 * Artigo recebido em 19 de março de 2012 e aprovado para publicação em 8 de janeiro de 2013. Tra- duzido por Gabriela Roméro. E-mail: [email protected]. ** Pesquisador e doutorando de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa). E-mail: [email protected]. CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 34, n o 2, julho/dezembro 2012, p. 501-529. Soft China: O Caráter Evolutivo da Estratégia de Charme Chinesa* Paulo Duarte**

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Introdução

Embora o soft power seja retratado em diversas dimensões, as teo-

rias de Relações Internacionais nos permitem identificar três catego-

rias gerais de poder: econômica, militar, e ideológica e cultural. To-

das três são, sem dúvida, importantes, mas a última é muitas vezes

negligenciada por alguns políticos. Na verdade, esse é um erro sério,

ao menos para aqueles que, como Joseph Nye, veem o soft power

501

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 34 no

2 – jul/dez 2012

1ª Revisão: 08/01/2013

* Artigo recebido em 19 de março de 2012 e aprovado para publicação em 8 de janeiro de 2013. Tra-

duzido por Gabriela Roméro. E-mail: [email protected].

** Pesquisador e doutorando de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e

Políticas (ISCSP da Universidade Técnica de Lisboa). E-mail: [email protected].

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 34, no 2, julho/dezembro 2012, p. 501-529.

Soft China:

O Caráter Evolutivo

da Estratégia de

Charme Chinesa*

Paulo Duarte**

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como uma fonte considerável de poder. Discreto, mas efetivo; pací-

fico, mas revolucionário, o “soft power” não deve ser negligenciado

por uma potência como a China. Embora Beijing afirme que não

busca hegemonia oficialmente, não pode esconder o desejo de se tor-

nar uma superpotência neste novo século.

Olhar o conjunto de teorias de Relações Internacionais nos permite

identificar três categorias de poder. Ao poder econômico (do qual a

União Europeia é um exemplo) e ao poder militar (em que os Estados

Unidos está na dianteira), podemos unir o poder ideológico e cultu-

ral. Neste artigo, veremos que a China claramente entende a impor-

tância do soft power e tenta colocá-lo à disposição de sua estratégia

para a Ásia e o restante do mundo. Uma autêntica operação de “char-

me” está no processo de renovar e restaurar a imagem da China no

mundo, como vamos explicar.

Vamos começar definindo a noção de soft power, distinguindo-o,

para esse propósito, dos conceitos de hard power e smart power. Em

uma primeira fase, vamos recorrer primordialmente à teoria, para

destacar as principais características do soft power. A segunda fase,

essencialmente prática, será baseada em um estudo de caso: a análise

do comportamento da China em termos do soft power. Pretendemos

assim fornecer à teoria uma aplicabilidade, ambas sendo partes que

não são mutuamente excludentes, mas que, pelo contrário, interagem

harmoniosamente. Como a “ofensiva de charme” chinesa se mani-

festa no Sudeste Asiático? Como o soft power chinês se comporta

dentro do enquadramento da estratégia marítima da China? Quais

são os pontos fortes e os pontos fracos do soft power chinês? Como a

China se comporta ao lidar com o tema dos Estados-párias? Esses e

outros temas serão tratados neste artigo.

Por enquanto, faremos uma breve introdução do conceito de soft po-

wer, relacionando-o aos conceitos de hard power e smart power.

Paulo Duarte

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Conceituando o poder. Soft,

Hard e Smart: três formas

de poder

Soft power é um termo desenvolvido por Joseph Nye, que significa “a

capacidade de um Estado de conseguir o que ele quer pela atrativida-

de da sua cultura, suas ideias, sua política doméstica e diplomacia”

(TREMBLAY, 2007). Porém, é preciso ser muito cuidadoso para não

confundir soft power com influência. De acordo com Nye (2004, p.

6), “soft power é mais do que apenas persuasão ou a capacidade de

encorajar pessoas pela arte do raciocínio: é também a capacidade de

atrair, a atração frequentemente leva a uma certa submissão; conclu-

indo, soft power é um poder de atração”.

Um Estado é poderoso não apenas em decorrência do seu poder mili-

tar, mas também da sua capacidade de influenciar a decisão de outro

Estado. De fato, um país encontrará bem menos resistência para legi-

timar seu poder sobre outros atores se sua ideologia e cultura forem

bem recebidas por eles. Assim, a abordagem do soft power é baseada

em uma solução pacífica, indireta, sutil e mais ou menos discreta,

dentro do escopo do apelo de ideias; na capacidade de persuadir ao

invés de vencer, em termos de cultura e de ideologia.

Como enfatizado por J. Nye, hard e soft power são inter-relacionados

porque ambos são ferramentas que um ator pode usar para alcançar

seus objetivos, afetando o comportamento dos outros. Porém, esses

dois conceitos diferem na natureza do comportamento e na tangibili-

dade dos recursos. De acordo com Nye (2004, p. 7), “O ‘command

power’, a capacidade de mudar o que os outros fazem, é baseado na

coerção ou na indução”, enquanto o “‘co-optive power’, a capacidade

de moldar o que os outros querem, é baseado na atratividade da sua

cultura e seus valores ou na capacidade de manipular a agenda de es-

colhas políticas para derrotar as preferências dos outros”. Dito isto,

deve-se notar que, se os recursos do soft power estão mais relaciona-

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dos ao que o autor chama de “o fim de cooptação do espectro de com-

portamento”, os recursos do hard power, em contraste, são normal-

mente associados com command behavior. Entretanto, Nye (2004, p.

7) chama atenção para o fato de que, às vezes, essa relação pode não

ser perfeita. De fato, também é possível que alguns países sejam se-

duzidos pelo “mito da invencibilidade” (Stalin e Hitler tentaram de-

senvolver tal mito), através do command power dos outros Estados,

enquanto, em contrapartida, o command power pode algumas vezes

ser usado “para estabelecer instituições que são posteriormente vis-

tas como legítimas”. Portanto, algumas vezes é possível encontrar

soft em hard. Em outras palavras, algumas vezes o hard power tem

um lado de atração, considerando que a “ofensiva de charme não se

limita apenas ao poder civil, mas também se manifesta, em termos

práticos, no nível militar” (STRUYE, 2010, p. 13).

Uma última palavra sobre a relação entre soft e hard power. Hoje,

além da modernização da tecnologia, as mudanças que se deram nas

principais democracias aumentaram os custos do uso do poder mili-

tar. Como enfatizado por J. Nye, democracias pós-industriais dão

mais importância ao bem-estar do que à glória. Isso não significa,

entretanto, que essas democracias não se envolvam em conflitos (a

Guerra do Golfo de 1991 ou a Guerra do Iraque de 2003 ilustram esse

fato). Mas, de acordo com Nye, “se a guerra ainda é factível, é muito

menos ‘aceitável’ hoje do que era há um século, ou mesmo há meio

século” (STRUYE, 2010, p. 19). Como resultado, o hard power tor-

na-se cada vez mais obsoleto e, portanto, “o poder não está mais limi-

tado ao hard power, também inclui o soft power, ambos estando em

última instância a serviço do smart power” (STRUYE, 2010, p. 15).

Um termo recente, o conceito de smart power, (que data de 2004), foi

cunhado por Suzanne Nossel e foi retomado novamente pela secretá-

ria de Estado Hillary Clinton. Como Jacques Charmelot (2009, p. 1)

afirmou, “smart power é uma nova doutrina de ação dos Estados Uni-

dos no mundo, anunciada pela administração do presidente Barack

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Obama”. Esclarecendo a essência do novo conceito, Hillary Clinton

explica que, para lidar com um mundo onde crises estão proliferan-

do, deve-se usar o “poder da inteligência”. Sendo o último formado

por um conjunto de ferramentas diplomáticas, econômicas, milita-

res, políticas, legais e culturais, “nós devemos (de acordo com Hil-

lary Clinton) escolher a ferramenta certa ou a combinação de ferra-

mentas que melhor se encaixam em cada situação” (CHARMELOT,

2009, p. 1). A secretária de Estado norte-americana ecoa assim as

ideias de Suzanne Nossel, a “mãe” do smart power, para quem os in-

teresses norte-americanos são mais bem servidos recorrendo a alian-

ças, a instituições internacionais, diplomacia cautelosa e ao poder

dos valores.1

Como também foi notado por Nye, “smart power é uma

combinação mais segura, unindo a força de armas e de princípios”

(CHARMELOT, 2009, p. 3).

Em conclusão, qual conexão pode ser estabelecia entre os conceitos

de hard, soft e smart power, que nós apresentamos, e o caso chinês?

Como a China não tem (ainda) todas as ferramentas necessárias para

sua afirmação completa na cena internacional, ela deve, enquanto

isso, optar por uma estratégia de soft balancing. Na verdade, como

seu hard power não permite à China contestar o poder do hegemon,2

Beijing é obrigado, então, a usar métodos mais soft e menos suscetí-

veis a causar um “choque frontal”, extremamente danoso para um

poder emergente. De acordo com Daniel Flemes (2007, p. 14), soft

balancing “não desafia diretamente a hegemonia militar dos Estados

Unidos, mas usa ferramentas não militares para retardar, frustrar e

enfraquecer as políticas unilaterais da superpotência”. Tais instru-

mentos incluem, segundo Flemes (2007, p. 14), “estratégias institu-

cionais, tal como o estabelecimento de pequenas coalizões diplomá-

ticas, especialmente no nível das Nações Unidas, para ‘enfraquecer’

o poder norte-americano”, mas também consistem em “fortalecer la-

ços econômicos entre as potências médias através de colaborações

setoriais”. Se Daniel Flemes (2007, p. 14) acredita que a última estra-

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tégia é alcançável, a longo prazo, “às custas da força econômica de

Washington”, a China não está sob pressão. Isso leva tempo. Orien-

tais e Ocidentais têm, de fato, diferentes percepções de tempo. Se os

primeiros são frequentemente nervosos, “correndo” contra o tempo,

a cultura oriental, entretanto, é uma cultura que valoriza o ser ao invés

do ter e é baseada em uma paciência ancestral: o tempo não é perdido

porque ele sempre retorna.

As características do soft

power chinês

De acordo com Li Mingjiang (2008, p. 2), o “soft power não parece

mais ser um conceito estranho para os líderes chineses”, consideran-

do que ele na verdade conquistou um lugar proeminente no discurso

oficial que a China tem na política externa. Beijing vê o soft power

como uma ferramenta que pode ajudar a mitigar, a longo prazo, a teo-

ria da “ameaça da China”, bastante difundida não apenas regional-

mente, como também globalmente.

Como afirmado por Tremblay (2007), o “uso que a China faz do seu

soft power busca aumentar a consciência das intenções de seus líde-

res e convencer a comunidade internacional da natureza pacífica da

sua emergência e das oportunidades que representa para seus parcei-

ros”.

Por outro lado, as autoridades chinesas deram-se conta de que inves-

tir em uma “estratégia de influência” pode provar ser uma opção efe-

tiva, especialmente no momento em que os Estados Unidos parecem

estar perdendo seu soft power. A esse respeito, a Guerra do Iraque de

2003 (contra o conselho dos Aliados e sem a aprovação do Conselho

de Segurança), assim como outros temas controversos da luta contra

o terrorismo (o caso de Abou Ghraib, por exemplo), abalou forte-

mente o soft power norte-americano (NYE, 1992).

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Estratégia marítima chinesa

O discurso oficial chinês, extrovertido, pragmático, de um poder que

está se desenvolvendo de um modo “pacífico” e “harmonioso”, pro-

cura “abrir a China para o mundo e, em particular, o mundo para a

China” (ZAJEC, 2008, p. 2). Não é, portanto, surpreendente que o

soft power chinês também siga o caminho para o mar. É por isso que

decidimos lançar luz em alguns temas específicos relacionados à mu-

dança de estratégia da China com respeito ao mar, já que eles ajudam

a entender as diversas esferas englobadas no soft power da China.

O ano de 2007 testemunhou uma nova “diplomacia naval”. Na verda-

de, navios chineses fizeram visitas oficiais a portos cingapurenses,

australianos, japoneses, russos, norte-americanos, franceses e espa-

nhóis, e também participaram de manobras internacionais na luta

contra a pirataria marítima (MEDEIROS, 2007). A questão que uma

iniciativa tão sem precedentes levanta, em um primeiro relance, é: o

que a China espera do mar?

Certamente, o Mar do Sul da China é rico em hidrocarbonetos e vari-

edades de peixes, mas não são apenas tais recursos que Beijing bus-

ca. De fato, a China parece estar igualmente preocupada em (re)defi-

nir o escopo de suas Zonas Econômicas Especiais e com sua reivindi-

cação por Taiwan. Além disso, o Império do Meio também busca ga-

rantir o acesso de sua frota ao mar aberto, incluindo o corredor marí-

timo do Sudeste Asiático, para além da península da Indochina

(BUSZYNSKI, 2012). Obviamente, não se deve esquecer a necessi-

dade de proteger as linhas marítimas de fornecimento de energia que

são absolutamente vitais para uma China que é atualmente o segundo

maior país importador de petróleo no mundo (ZAJEC, 2008). Se isso

preocupa alguns países na esfera regional e global, alguns autores

como Rizzi (2009, p. 17), porém, não veem nisso nada incomum, es-

pecialmente porque “o que os chineses estão fazendo já foi feito pe-

los Estados Unidos de 1946”.

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Arquipélagos e passagens

cruciais

Além da reivindicação por Taiwan, a ambição de Beijing busca con-

trolar uma série de ilhas e ilhotas, peças fundamentais no tabuleiro de

xadrez de sua estratégia marítima. O caso de Taiwan, como veremos

a seguir, é inquestionável, já que Beijing está determinado a reaver

sua soberania sobre o território, mesmo que isso signifique usar seu

poder militar. Certamente, a China empenha-se para cada vez mais

modernizar sua marinha, através da redução do hiato de tecnologia

entre ela e as frotas mais desenvolvidas. Apesar disso, por outro lado,

como Olivier Zajec (2008, p. 10) salienta, “a marinha norte-america-

na está preocupada com o monitoramento psicológico da evolução

inevitável que deve levar a um retorno pacífico de Taiwan à mãe-pá-

tria”.

Entretanto, não se trata apenas de Taiwan. Com o Japão, por exem-

plo, a China tem disputas em torno das ilhas Diaoyutai, que também

servem de abrigo para uma base militar norte-americana (FRANCO,

2007). Com Vietnã, Taiwan, Filipinas, Brunei, Malásia e Indonésia,

existem disputas sobre os arquipélagos Pratas (Dongsha), Paracel

(Xisha) e Spratly (Nansha) (WOOD, 2012). Esses são extremamente

importantes para a China, não apenas por causa da existência de re-

cursos de gás, petróleo e pesqueiros (que é frequentemente a justifi-

cativa oficial de Beijing para a marinha chinesa atravessar essa re-

gião), mas também em decorrência de sua localização estratégica.

Além de controlar as linhas marítimas ligando o Extremo Oriente a

outros lugares do planeta, esses territórios também são “uma boa lo-

calização para alojar radares de orientação técnica e para monitorar

navios que cruzam o Mar da China” (FRANCO, 2007, p. 12).

Porém, a estratégia marítima chinesa não está limitada ao Oceano Pa-

cífico. Como a China teme “um embargo norte-americano de petró-

leo no caso de um conflito sobre o retorno de Taiwan à mãe-pátria”,

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ela se voltou para “a formação de pontos de suporte terrestre respon-

sáveis por proteger suas rotas de fornecimento” (RANADE, 2009, p.

6). Isso é uma verdadeira linha costeira artificial, formada por “pon-

tos de suporte militar e diplomático ao longo das principais rotas de

navios” (de Myanmar ao Estreito de Hormuz), o que permite à China

“controlar e monitorar o Oceano Índico” (FRANCO, 2007, p. 8). É,

portanto, graças ao fato de que Beijing não tem nenhum recurso téc-

nico ou financeiro para assegurar uma patrulha permanente longe das

bases chinesas que a China tem que negociar tal projeto com os Esta-

dos que fronteiam o Oceano Índico. Tal projeto, sendo conhecido

como “Colar de Pérolas”, deve não apenas ajudar a aumentar o soft

power chinês em tempos de paz, mas também “prevenir a pirataria

em tempos de guerra” (CHEN, 2011, p. 2). Contando com bases em

“Marao (Maldivas); nas ilhas Coco (Myanmar); Chittagong (Ban-

gladesh) e Gwadar (Paquistão)”, não deve ser descartado que, além

da estratégia do “Colar de Pérolas”, Beijing também decida “mandar

tropas para a costa africana, que tem mostrado ser cada vez mais re-

ceptiva aos investimentos chineses” (ZAJEC, 2008, p. 13).

Se Nova Délhi e Washington olham com apreensão as “facilidades”

que Bangladesh ou, por exemplo, o Paquistão deram à estratégia da

China, é no entanto em Myanmar que isso é visto como ameaça para

os interesses indianos e norte-americanos. Além do fato de que pro-

vêm da Grande Ilha de Coco (Myanmar) “todo o tráfico do Estreito

de Cingapura, atividades marítimas indianas, incluindo a área de tes-

te de mísseis de Chandipore, que pode ser monitorada (pelos chine-

ses)”, não se deve subestimar, entretanto, outro tema (XIAOQUIN,

2009, p. 14). Isso é, de fato, uma “verdadeira revolução” porque a

China teria, de agora em diante, “acesso direto ao Oceano Índico”,

que consiste em “uma conexão com estrada e trilho, unida com 1200

km de dutos ligando a costa de Myanmar à província chinesa de Yun-

nan” (XIAOQUIN, 2009, p. 15). Certamente, apesar de ser visto com

cuidado, ou mesmo com preocupação por outros países, o acesso à

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Baia de Bengala é considerado, entretanto, essencial para a China. Os

chineses estão tentando, na verdade, diversificar seu acesso aos re-

cursos energéticos, já que temem que, em caso de conflito, uma inter-

rupção no fornecimento de energia possa ocorrer no Estreito de Ma-

laca.3

Além do projeto dos dutos entre Sittwe e Kunming, a estratégia

da China também enfatiza o desenvolvimento de uma rede ferroviá-

ria que conecte os países da Associação das Nações do Sudeste Asiá-

tico (ASEAN) entre si. Finalmente, Beijing “apoia a produção de gás

liquefeito fora da costa no Sudeste Asiático, especialmente em

Myanmar e na Tailândia”, assim como a construção de “um canal

através do istmo de Kra” (ZAJEC, 2008, p. 9). Essa última ideia, que

é de fato muito antiga (“os primeiros projetos remontam ao século

XVI”), busca criar um “Canal do Panamá asiático (48 km)”, em um

momento em que o “congestionamento e a insegurança no Estreito

de Malaca provam ser um tema muito sensível” (WOOD, 2012, p.

11).

A nova doutrina chinesa

Como forma de contrapor o atraso tecnológico da sua marinha em re-

lação às de países como Japão ou Estados Unidos, a China está gra-

dualmente substituindo as velhas unidades costeiras por navios mais

modernos. Como Jean-Marie Holtzinger (2008, p. 2) aponta, “a ma-

rinha do Exército de Libertação do Povo (PLA) parece ser um instru-

mento militar para Beijing que lhe permite cumprir suas ambições re-

gionais e, ao mesmo tempo, colocar a China entre as grandes potên-

cias navais na região”. Como parte de uma abordagem regional, a es-

tratégia de Beijing busca, no entanto, tornar a China “uma potência

naval no leste asiático” (HOLTZINGER, 2008, p. 3). Além disso, o

quinto Livro Branco de defesa nacional da China publicado no final

de 2006 destaca a prioridade de modernizar a marinha do PLA. Ten-

do isso em mente, o presidente Hu Jintao afirmou, no final de 2006,

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que “a marinha chinesa deve ser fortalecida e modernizada [...] para

melhor servir a mãe-pátria e o povo” (COURMONT, 2007, p. 18).

O que estamos testemunhando hoje é uma mudança física (no senti-

do de uma crescente modernização dos meios militares), acompa-

nhada por uma evolução no pensamento estratégico (HONG;

JIANG, 2010). Ambas estão, entretanto, em interação. Com a China

se tornando militarmente mais forte, ela vai correr mais “riscos” por-

que sabe que pode contar com seus recursos para fazer isso. Ela pode-

ria assim gradualmente se afastar de sua costa e/ou dar suporte a ope-

rações militares em mar aberto. Inspirados pelos ensinamentos de

Sun Zi, os chineses “só partem para a batalha quando estão seguros

de que irão vencê-la” (DE MONTBRIAL, 2000, p. 130). Porém,

eventos atuais retratam uma China que está se tornando mais prag-

mática, mais segura e confiante de si mesma. Além disso, a estratégia

militar chinesa mudou “seu pensamento operacional de submarinos

de ataque”, porque, se antes “eles patrulhavam perto da costa para

prevenir uma invasão”, agora “eles estão espalhados em águas mais

distantes para proteger a soberania e os interesses marítimos da na-

ção” (HONG; JIANG, 2010, p. 151). Essa China mais forte tem –

como Rússia, Índia, Irã, Estados Unidos, Japão e a União Europeia –

também tirado vantagem ao enviar seus barcos de patrulha para as

águas infestadas pela pirataria marítima no Oceano Índico. Mas,

como foi apontado por Tanguy Struye (2010, p. 8),

[...] essa presença esconde, entretanto, outro

tema que vai além da luta contra a pirataria: a

dominação de canais de comunicação, porque,

através dessa dispersão, pode-se notar que há

uma luta tácita entre as grandes potências para

controlar as rotas de navios que vão do Estreito

de Bab el Mandeb4

para o Estreito de Malaca,

artérias do comércio mundial.

Todavia, para o caso específico da China, nós já explicamos acima

como Beijing – dando-se conta de que tinha falta de pontos de supor-

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te – expressou sua ambição de construir uma linha costeira artificial

(o famoso “Colar de Pérolas”) na região. Tudo isso obviamente com-

prova o desejo da China de projetar poder, considerando que não é

um país diretamente presente no Oceano Índico. A pirataria marítima

é, nesse contexto, um argumento útil para Beijing se posicionar mais

facilmente em uma região que é esfera de influência natural da Índia

(COLE, 2010).

O soft power chinês no

Sudeste Asiático

No relatório apresentado pelo Serviço de Pesquisa do Congresso, em

4 de janeiro de 2008, pode-se ler: “o uso crescente que a China faz do

seu soft power no Sudeste Asiático – incentivos não militares que

combinam diplomacia com cultura, ajuda estrangeira, comércio e in-

vestimentos – traz novos desafios para a política externa norte-ameri-

cana” (LUM et al., 2007). De fato, a estratégia chinesa de “charme”

envolve cooperação, uma diplomacia e um papel mais ativo dentro

do quadro de organizações regionais ou no nível dos múltiplos fóruns

multilaterais de cooperação com parceiros asiáticos. Por exemplo,

“desde 2000, a China tem sido um jogador-chave em diversas inicia-

tivas diplomáticas: a Organização de Cooperação de Shanghai (Ásia

Central), ASEAN + 1 e ASEAN + 3 (Sudeste Asiático), o Encontro

China-África e China-América Latina, entre outros” (TREMBLAY,

2007, p. 3).

Porém, a operação chinesa de “charme” também cobre outras inicia-

tivas notáveis. Nós apontamos, por exemplo, o esforço que a China

fez para tratar, dentro de uma perspectiva multilateral, as disputas ter-

ritoriais que a opõem a diversos países do Sudeste Asiático, no Mar

do Sul da China. Também é preciso mencionar o mérito que Beijing

conquistou por ter impulsionado, em 2003, a “famosa conversa das

seis partes” sobre o programa nuclear norte-coreano (TREMBLAY,

2007, p. 3). Como resultado, a China aumentou seu prestígio na re-

Paulo Duarte

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Contexto Internacional (PUC)

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gião, emergindo como uma principal fornecedora de ajuda e, por ou-

tro lado, como mercado para os produtos do Sudeste Asiático, e ainda

fortaleceu sua relação com Estados da região (LUM et al., 2007).

Uma pesquisa conduzida em 2007 ilustra a efetividade do soft power

chinês. Na verdade, esse estudo mostra que “apenas 29% dos indoné-

sios e 27% dos malásios pesquisados expressavam uma impressão

favorável aos Estados Unidos, enquanto 83% dos malásios e 65%

dos indonésios perguntados tinham uma opinião favorável acerca da

China” (LUM et al., 2007). Outra pesquisa revelou, por outro lado,

que mais de 70% dos tailandeses acreditam que a China é a influência

externa mais importante no seu país. De fato, de acordo com Kurlant-

zick (2007, p. 1), “o modo com que a China é percebida no Sudeste

Asiático mudou significativamente desde 1997 [...]; a China é vista

atualmente no Sudeste Asiático como um poder regional potencial-

mente dominante”.

Outras votações, pesquisas e estudos, nos quais se pode ver uma clara

“simpatia” pelo Império do Meio, levaram Nye a declarar que, “em-

bora o soft power chinês esteja longe de se equiparar ao potencial do

soft power norte-americano, seria tolo ignorar o progresso que foi al-

cançado pelo primeiro” (LUM et al., 2007). Para Nye, “é, portanto,

hora de os Estados Unidos darem mais atenção para o equilíbrio de

soft power na Ásia” (apud LUM et al., 2007).

Forças e fraquezas do soft

power chinês

De acordo com Tremblay (2007), “o alto e sustentável crescimento

da China, além da influência econômica que representa para o país,

também faz do modelo de desenvolvimento chinês um exemplo a ser

seguido por muitos líderes ao redor do mundo”. A esse respeito, Bei-

jing estimula diplomatas e políticos para virem e experimentarem, no

campo, o jeito como as instituições chinesas funcionam, em um claro

esforço para exportar o modelo chinês para outros países. Isso pare-

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de Charme Chinesa

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Contexto Internacional (PUC)

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ce, portanto, legitimar que nos perguntemos o que é tão especial nes-

se modelo que faz com que a China seja tão comprometida com a sua

divulgação. O sucesso do “charme” chinês está, entre outros fatores,

em uma rota alternativa para o “Consenso de Washington”. Se o últi-

mo mantém que o desenvolvimento econômico é resultado da com-

binação de liberalização econômica, política e financeira e do respei-

to aos direitos humanos, o “Consenso de Beijing” foca-se principal-

mente na “inovação e crescimento através de uma economia dirigida

pelo mercado, sem insistir na necessidade de adotar um regime de-

mocrático” (TREMBLAY, 2007, p. 4).

Nós encontramos, assim, que o modelo advogado pelos oficiais chi-

neses parece ser bem-vindo em muitos países que começaram seu

processo de desenvolvimento. Pregando uma filosofia de “win-win”,

contrária à filosofia de Washington, que a China acusa de “não res-

peitar a soberania e de ser punitiva contra os países do Sudeste Asiáti-

co”, a política da China orgulha-se de ser uma política de não interfe-

rência (KURLANTZICK, 2007, p. 2). Como Joseph Nye (2005) diz,

[...] na Ásia, África e América Latina, o “Con-

senso de Beijing” (relacionado à coexistência

de um modelo autoritário com uma economia

de mercado) se tornou mais popular do que o

antes dominante “Consenso de Washington”

(que diz respeito à coexistência de uma econo-

mia de mercado com um governo democráti-

co).

O fato de que Beijing se comprometeu, em 2006, a criar um fundo de

desenvolvimento para a África e a perdoar o débito africano de 1,4 bi-

lhão de dólares atesta o vigor do soft power chinês, assim como a im-

portância atribuída à sua parceria com a África. Nesse contexto, a

significância que o Plano de Ação de Beijing (2007-2009) tem para

ambos os lados (China e África) é inegável, já que destaca os méto-

dos, assim como os níveis de consulta e de cooperação (econômica,

legal, organizações regionais e sub-regionais, educação, desenvolvi-

Paulo Duarte

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mento de infraestrutura, relação entre pessoas, saúde etc.) (ALDEN,

2007). Outros exemplos de soft power na África estão presentes, em

particular, por via dos Institutos Confucius existentes na África, as-

sim como através de cursos de mandarim, cada vez mais organizados

por universidades africanas através de bolsas de estudos oferecidas

como prêmio aos estudantes africanos para eles continuarem seus es-

tudos na China. Além disso, “mais de 130 mil chineses estão atual-

mente vivendo na África, principalmente em Zimbábue, Nigéria,

Angola e República da Guiné”, e também vale mencionar que “liga-

ções aéreas diretas estão estabelecidas entre Angola e a República

Popular da China, assim como entre o Zimbábue e a China”

(NIQUET, 2006, p. 1).

No intuito de fortalecer seu soft power, a China estabeleceu casas de

comércio para facilitar os negócios e aumentar os contatos na Ásia

Central. A Rádio Internacional da China também está prestando mai-

or atenção à região, agora transmitindo 24 horas por dia. Transmis-

sões para o Cazaquistão, em especial, aumentaram em tamanho e

qualidade nos últimos anos, com programas direcionados a ganhar os

corações e mentes da população cazaque (STRUYE, 2010). Enquan-

to o crescimento do poder e da influência da China pode causar medo

e apreensão no Ocidente, países em desenvolvimento têm uma visão

bastante mais positiva da República Popular, e os países centro-asiá-

ticos não são exceções a essa tendência. No nível político, houve nu-

merosos intercâmbios parlamentares entre a China e os Estados cen-

tro-asiáticos. Representantes da filial de Xinjiang do Partido Comu-

nista Chinês viajam frequentemente à Ásia Central, e delegações chi-

nesas visitaram os Parlamentos da Ásia Central para aprender sobre

as suas práticas procedimentais (USCC, 2008). É difícil avaliar o im-

pacto disso no soft power da China na região, mas parece evidente

que o apoio implacável dos governos centro-asiáticos a Beijing criou

um grau maior de confiança política do que qualquer outra medida.

Apesar de tudo, o intercâmbio comercial, o aumento do contato de

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pessoa a pessoa e laços históricos serviram para reforçar a sinergia

natural que existe na região, mesmo que a crescente influência da

China tenha causado algum mal-estar lá (STRUYE, 2010).

E o soft power e a presença da China na América Latina? Embora os

investimentos chineses esperados tenham inicialmente demorado

para se concretizar, graças à crescente familiaridade da China em fa-

zer negócios na América Latina e sua enorme reserva financeira (in-

cluindo um excedente em moeda estrangeira que alcançou US$ 2,5

trilhões em meados de 2010), a República Popular da China (RPC)

começou a emprestar, ou investir, dezenas de bilhões de dólares na

região, incluindo ofertas altas, tais como: US$ 28 bilhões em emprés-

timos para a Venezuela; acordo de US$ 16,3 bilhões para desenvol-

ver o bloco de petróleo Junin-4 no cinturão de petróleo Orinoco da

Venezuela; US$10 bilhões para a Argentina modernizar seu sistema

ferroviário; US$ 3,1 bilhões para comprar a companhia de petróleo

argentina Bridas; entre outros (BATSON, 2010). Para as elites tradi-

cionais latino-americanas, o modelo chinês é particularmente atrati-

vo porque sugere que é possível alcançar prosperidade e crescimento

sem renunciar a poder político. Além da oportunidade de comércio, a

crença da América Latina na ascensão da China e sua implicação

transformadora globalmente chamam a atenção do povo e dos líderes

da região para a RPC e moldam seu curso de ação. O presidente cos-

ta-riquenho Oscar Arias, por exemplo, estabeleceu relações diplo-

máticas regulares com a RPC como uma parte necessária de garantir

a relevância de seu país como um ator internacional. No nível popu-

lar, a ascensão da China é o mais provável por trás de um interesse ex-

pandido na língua chinesa na região. A dedicação de cinco anos ou

mais por estudantes para ganhar a capacidade básica na língua man-

darim e seu conjunto de caracteres, por exemplo, é indiscutivelmente

guiada pelo seu cálculo de que a habilidade de comunicar-se em chi-

nês será fundamental para a busca por oportunidades na RPC e com

executivos chineses e oficiais de governo no futuro (ELLIS, 2009).

Paulo Duarte

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No que diz respeito à América Latina, é praticamente impossível en-

contrar hoje na região líderes que coloquem em causa o crescimento

da China, ao contrário do que acontecia há cinco anos. Por outro lado,

deve-se notar que as elites culturais e os homens de negócio chineses

atualmente recebem no Sudeste Asiático o mesmo tipo de tratamento

que era reservado às elites americanas no passado. A China ajustou

sua diplomacia. Mais do que isso, o país foi admitido na Organização

Mundial do Comércio e contribuiu – enviando milhares de tropas – às

operações de paz das Nações Unidas. E, se uma década atrás a econo-

mia chinesa e as políticas de segurança eram com frequência critica-

das pela mídia no Sudeste Asiático, hoje essa situação se tornou mais

rara (KURLANTZICK, 2007).

Outro aspecto que não deve ser negligenciado quando se fala do su-

cesso da “ofensiva de charme” chinesa tem a ver com o fato de que o

número de estudantes registrados na China triplicou de 36 mil (na dé-

cada passada) para 110 mil recentemente. Por outro lado, o número

de turistas cresceu consideravelmente (cerca de 17 milhões por ano)

(NYE, 2005). Além disso, até o final de 2010, a China estabeleceu

322 Institutos Confucius pelo mundo para ensinar sua língua e sua

cultura e, “no momento em que a Voz da América reduziu suas emis-

sões em chinês (de 19 para 14 horas diárias), A Rádio Internacional

da China se prepara para aumentar suas emissões em inglês para até

24 horas por dia” (NYE, 2008). Parece, por outro lado, como Trem-

blay (2007) observa, que “a cultura e criatividade tradicional chinesa

está vendo uma renascença e uma propagação”, depois de ter sido por

um longo tempo “censurada pelo Partido”. Além da cozinha, acu-

puntura ou, por exemplo, a tradicional medicina do Império do Meio,

os asiáticos também se sentem fascinados pela moda, arte contempo-

rânea e pela televisão chinesa. A esse respeito, como alguns observa-

dores notaram, “se hoje jovens ocidentais vestem roupas chinesas e

brincam com brinquedos chineses, não é de surpreender que seus fi-

lhos e netos vão um dia preferir ouvir música pop chinesa e ver filmes

produzidos na China” (TREMBLAY, 2007, p. 6).

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Toda essa hegemonia de influência da China no nível regional pri-

meiro, e assim gradativamente, numa escala global, pode ter menos

efeitos positivos. De fato, até certo ponto, o “soft power chinês pode

se mostrar desastroso para o Sudeste Asiático”, particularmente no

que diz respeito a “democratização, iniciativas de anticorrupção e

boa governança” (KURLANTZICK, 2007, p. 5). A China, na verda-

de, já começou a exportar “suas fracas políticas em termos de traba-

lho e de meio ambiente” (KURLANTZICK, 2007, p. 5). Assim, por

exemplo, no norte de Myanmar, as companhias chinesas (ligadas ao

governo chinês) contribuem para o aumento do desmatamento. Adi-

cione-se a isso o fato de que Beijing não parece estar (muito) preocu-

pado (ao contrário de outros países do Sudeste Asiático) com o im-

pacto negativo de barragens na parte alta do rio Mekong, tendo se re-

cusado a participar do comitê que monitora o rio. Outro efeito adver-

so do “charme” chinês surge toda vez que se fala, por exemplo, de te-

mas que são hostis aos olhos de Beijing. O caso do Tibet é ilustrativo

nesse sentido.

Alguns especialistas acreditam que um dos limites do soft power chi-

nês é que “sua capacidade de sedução está restrita pela natureza do

Estado comunista”; por exemplo, “o comunismo não tem uma visão

coerente do mundo para oferecer” porque continua “prisioneiro de

uma visão do século XIX sobre soberania de Estado e dos temas de

não interferência” (PAN, 2006). Embora a ofensiva de charme não

pare de crescer, a China permanece sendo uma sociedade autoritária

que prende dissidentes. Na verdade, como Bruce Gilley observa, “em

geral, a influência da China ainda continua ligada à segurança” e, por

outro lado, é respeitada porque pode “colocar uma ameaça militar,

econômica e política para muitos países” (PAN, 2006). Esse fato traz

uma aplicação prática. De fato, de acordo com Tremblay (2007),

“muitos elementos das ideias e políticas chinesas afetam a imagem

da China: seu papel suspeito na divulgação de tecnologia nuclear, as

ameaças diretas a Taiwan, o tratamento de minorias nas regiões oci-

Paulo Duarte

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dentais do país e seu recorde altamente negativo em termos de direi-

tos humanos”.

Ao contrário da expectativa mundial em relação à promessa de ofi-

ciais chineses de permissão de livre acesso à Internet, assim como

qualquer outra manifestação pacífica, isso não é o que os jornalistas

puderam ver durante os Jogos Olímpicos em Beijing. Por outro lado,

como Joseph Nye (2008) observa, “os chineses podem ter sido muito

bem-sucedidos em ganhar medalhas de ouro, mas os Jogos Olímpi-

cos não destronaram os Estados Unidos em termos de soft power”.

Não só a China não tem uma indústria cultural como Hollywood,

como também suas universidades ainda estão longe de serem capa-

zes de competir com as universidades dos Estados Unidos e, por ou-

tro lado, faltam à China diversas organizações não governamentais.

Estas contribuem amplamente para o sucesso do soft power america-

no. Deixe-nos acrescentar a esse fator outras “deficiências”, dessa

vez de natureza política. Na verdade, o Império do Meio sofre com

um alto nível de corrupção, profunda desigualdade, falta de demo-

cracia e abusos aos direitos humanos. Não esquecendo, é claro, do

tema de Taiwan, que se choca com o progresso feito pela China em

termos de diplomacia de charme e sedução, especialmente em rela-

ção aos seus vizinhos do Sudeste Asiático (NYE, 2005).

A China e os Estados-pária:

Uma nova diplomacia?

Embora os Estados Unidos e a China nunca tenham lidado coletiva-

mente com temas sensíveis ou mesmo com ameaças colocadas por

Estados-párias, a situação está mudando. A China parece ser um bom

interlocutor, expressando apoio extremamente útil quando se trata de

negociar com esses chamados países “difíceis”. Um ponto que conta

a favor do Império do Meio é, na prática, a boa relação que Beijing

mantém com Estados como Sudão,5

Irã ou Coreia do Norte. Tal rela-

cionamento resulta de uma ação de charme, diplomacia e negócio,

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que faz da China um parceiro diferente, com o qual esses países (am-

plamente marginalizados pela comunidade internacional) podem

contar. Em troca, Beijing parece saber como tirar vantagem da “rela-

tiva falta de competição entre as companhias ocidentais, preocupa-

das com a sua reputação ou simplesmente com dificuldade no nível

operacional” (USCC, 2008).

O fato de a China ser frequentemente acusada de apoiar déspotas, re-

gimes que cometem práticas hediondas, tais como genocídio ou a vi-

olação sistemática dos direitos humanos (ainda que o Império do

Meio não represente, ele mesmo, um bom exemplo), certamente pe-

sou no desejo dos líderes chineses em esperar para discutir o assunto.

Eles veem a si mesmos, por outro lado, enfrentando imperativos eco-

nômicos (o que nenhum poder em desenvolvimento pode certamente

ignorar), mas sofrem, por outro lado, pressão do Ocidente. É, portan-

to, prestígio e credibilidade que a China quer conquistar dos países

ocidentais, o que influencia em contrapartida os investimentos que

esses Estados fazem no Império do Meio. A esse respeito, a China

não pode ter tudo. A China sabe que tem importante peso diplomáti-

co, não apenas como membro permanente do Conselho de Seguran-

ça, mas também em nível regional, em que a ofensiva de charme da

China parece ter um impacto significativo. Beijing está assim consci-

ente de que, se o mundo tem seus olhos fixos em seu comportamento,

um movimento imprudente por parte da China pode afetar sua ascen-

são como uma potência global. É, portanto, essencial que a diploma-

cia chinesa se esforce para encontrar o difícil equilíbrio entre a ambi-

ção de Beijing, a reivindicação dos Estados-párias e a pressão do

Ocidente.

De toda forma, temos que reconhecer que os eventos dos anos recentes

trouxeram uma experiência substancial para a China no campo diplo-

mático, levando até oficiais chineses a, certas vezes, situações descon-

fortáveis. Em relação a Coreia do Norte, Sudão ou Myanmar, por

exemplo, Beijing estava pronto para adotar uma posição que teria in-

Paulo Duarte

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dubitavelmente preferido não tomar. Porém, o resultado foi um grande

aumento na autoconfiança diplomática chinesa (USCC, 2008).

Como mencionado anteriormente, os últimos anos testemunharam o

fortalecimento da “nova diplomacia chinesa” no que concerne aos

Estados-párias. Após o teste nuclear empreendido pela Coreia do

Norte em 2006, o Império do Meio provou ser, como os Estados Uni-

dos, exemplar na defesa de sanções contra Pyongyang (USCC,

2008). Além disso, se em 2005 a China apoiava politicamente qual-

quer líder autoritário que percebia ter seu poder em perigo, ou se Bei-

jing chegou a ameaçar vetar a resolução da ONU que dizia respeito

ao Sudão, a situação iria mudar em seguida. De fato, há três anos, em

2008, a estratégia chinesa parecia ter diferentes contornos. É sufici-

ente mencionar, por exemplo, que a China era a favor de sanções mais

pesadas contra o Irã e que apoiou, por outro lado, o envio de forças da

ONU e da União Africana para Darfur (USCC, 2008).

Atualmente, a nova estratégia diplomática de Beijing parece se tor-

nar mais sofisticada com o objetivo de melhor proteger os cidadãos e

os interesses chineses no exterior. Isso significa que os líderes chine-

ses não estão considerando expressar mais um “apoio incondicional

a regimes impopulares”, especialmente já que o Ocidente parece ter

“grandes expectativas sobre o papel global da China” (USCC, 2008).

Mas essa nova estratégia também significa que a atitude chinesa de

não interferência em assuntos internos está prestes a mudar. De fato,

“a China é a favor, embora em circunstâncias limitadas, de considerar

repressão interna e atrocidades como áreas legítimas para interven-

ção internacional” (USCC, 2008).

Um caminho

frequentemente difícil

Embora tenha havido progressos, o resultado da “nova estratégia chi-

nesa” contra os Estados-párias permanece, por enquanto, atenuado.

De fato, imperativos econômicos parecem ser mais importantes para

Soft China: O Caráter Evolutivo da Estratégia

de Charme Chinesa

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os oficiais chineses. Isso não nos impede, entretanto, de afirmar que a

China tira vantagem considerável da sua boa relação com alguns

Estados-párias, ao encorajá-los a fazer concessões em campos em

que eles sentem algum desconforto.

Outro ponto importante diz respeito à natureza da mudança em ques-

tão. Apesar da determinação que a política chinesa tem mostrado em

relação aos Estados-párias, seria um erro chamá-la de uma “nova

doutrina” de política externa. Tampouco é uma mudança de valores,

já que, como foi mencionado, os aspectos econômicos ainda prevale-

cem sobre os demais aspectos e, além disso, “a China não partilha

(ainda) a visão de Washington sobre direitos humanos e democracia”

(USCC, 2008). Longe de ser tranquilo, o debate sobre a melhor estra-

tégia a ser adotada é confrontado por um lado com as intenções da

“velha guarda” entre os oficiais de governo chineses e, em segundo

lugar, com a ideia dos partidários de uma China “mais responsável”

em relação ao seu papel mundo afora. Mas, em vez de promover a

“nova estratégia” da China, a existência de ideias opostas atualmente

torna difícil qualquer tentativa de mudança de política.

No lado da linha dura, os planos consistem principalmente em apoiar

os Estados-párias para contrabalançar o poder dos Estados Unidos, o

que implica que a China não deve impor sanções ou exercer pressão

em países como o Irã e o Sudão. Porém, essa linha de pensamento

(que é a favor, por exemplo, dos interesses de um lobby chinês

pró-armas e pró-energia) não é frequentemente compatível com o de-

senvolvimento de cooperação entre a China e o Ocidente no que con-

cerne ao tema dos Estados-párias (USCC, 2008). De fato, se o Impé-

rio do Meio parece ser mais sensível hoje ao tema da proliferação nu-

clear, essa sensibilidade permanece, no entanto, mitigada no que diz

respeito à venda de armas chinesas a países problemáticos. Na verda-

de, países como “Myanmar, Irã, Coreia do Norte, Sudão e Zimbábue

continuam a receber variados tipos de armas e tecnologias, origina-

das de atores econômicos e militares chineses” (USCC, 2008). E,

Paulo Duarte

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Contexto Internacional (PUC)

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embora os Estados Unidos tenham no passado punido certas compa-

nhias chinesas que davam suporte tecnológico ao programa de mís-

seis iraniano, a falta de transparência na China não ajuda de forma

nenhuma a saber até que ponto o governo chinês está ou não envolvi-

do na transferência de tecnologia para Estados-párias. Essa não é

uma questão menor, já que permite que se compreenda se o Mundo

Ocidental pode de fato acreditar em Beijing e em sua nova política

“mais responsável” em relação aos Estados “problemáticos”. Ou,

pelo contrário, deve o Ocidente temer a possibilidade de a China esta-

belecer relações com mais Estados ditatoriais e instáveis? Essa res-

posta não é óbvia, especialmente já que, apesar de todos os obstácu-

los, muitos veem o Império do Meio como um parceiro indispensável

para a resolução do tema dos Estados-párias (SUTTER, 2003).

Se os chineses já mostraram grande habilidade para resolver situações

complexas, isso não significa, entretanto, que a China tenha a intenção

de ajudar a estabelecer um regime democrático em Myanmar ou que

Beijing deseja parar de comprar petróleo do Irã. Porém, uma conclu-

são prudente seria que “a política externa chinesa progrediu significa-

tivamente” e que, “mais do que debater se mudanças foram feitas ou

não, o objetivo deve ser, em primeiro lugar, buscar obter a máxima

vantagem dos desenvolvimentos já alcançados” (USCC, 2008).

Conclusão

Como vimos, o conceito de soft power parece não ser mais um ele-

mento “estranho” no discurso político e intelectual da China. Dife-

rentemente do passado, a China de hoje está mais preocupada com a

imagem que passa para o mundo. Não é surpreendente, portanto, que

seu comportamento em relação aos Estados-párias, por exemplo,

seja atualmente matéria de reflexão por parte dos líderes políticos

chineses. Como um poder em ascensão, a China pode usar esse extra-

ordinário instrumento que é, em essência, o soft power, mesmo que

seja muito mais sutil e discreto do que o hard power.

Soft China: O Caráter Evolutivo da Estratégia

de Charme Chinesa

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Americanos, mas também japoneses, russos e indianos, entre outros,

assistem com apreensão à modernização do armamento da China, es-

pecialmente da sua marinha. O que Beijing espera do mar? A China

parece ter entendido o que os Estados Unidos e outras potências ma-

rítimas já sabem há muito tempo: o comércio exige uma marinha

mercante e uma marinha de guerra para protegê-lo, assim como pon-

tos de apoio (abastecimento e reparo) ao longo das rotas marítimas.

Igualmente, Beijing internalizou que uma potência que não entende a

importância dos oceanos é uma potência sem futuro.

Apesar do progresso alcançado em termos de soft power, ainda exis-

tem diversos obstáculos e algumas concepções erradas a serem supe-

rados. Isto é, a China pode, se assim quiser, melhorar ainda mais sua

estratégia de charme. Mas isso significa que ela está pronta para apoi-

ar, por exemplo, o estabelecimento da democracia em regimes com-

plexos e autoritários tais como Irã e Coreia do Norte? A estratégia po-

lítica chinesa vai negligenciar as suposições inerentes ao Consenso

de Beijing? A resposta para esse tema não parece ser clara, nem se es-

pera que seja em um futuro próximo. Por outro lado, é preciso, é cla-

ro, ter em mente que, apesar do progresso alcançado pela estratégia

de “charme” chinesa, ela sempre será confrontada pelos limites e pa-

radigmas do regime comunista chinês, que possui uma visão muito

particular do mundo. Por fim, não se deve esquecer que os julgamen-

tos de “bom ou mal” e “certo ou errado” são sempre subjetivos, pois

dependem de quem os faz e de quem os julga, assim como de normas

e valores culturais, políticos, sociais e históricos.

Notas

1. Ver Nossel (2004).

2. Do grego hegemon, que significa “líder”. Apesar da fragmentação e da in-

certeza do equilíbrio de poder no sistema internacional contemporâneo, consi-

Paulo Duarte

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dera-se, no contexto deste artigo, que os Estados Unidos continuam, para todos

os propósitos, a exercer sua hegemonia (liderança) no mundo.

3. O Estreito de Malaca é um ponto de passagem vital. De fato, mais de 60 mil

navios cruzam o estreito todos os anos, o que significa que 25% do petróleo e 2/3

do gás passam por essa artéria. Como alternativa para o Estreito de Malaca,

existe o Estreito de Sunda (cuja ausência de profundidade não permite a passa-

gem de navios grandes) e o Estreito de Lombok (que, embora facilmente nave-

gável, aumenta a viagem em três ou quadro dias). Se houver uma obstrução de

tal estreito, as embarcações precisarão então passar ao longo da costa da Austrá-

lia, que tem a desvantagem de aumentar a jornada em quinze dias.

4. O Estreito separa a Península Arábica da África e conecta o Mar Vermelho

ao Golfo de Aden, no Oceano Índico. Representa não apenas uma localização

importante e estratégica, mas também uma das rotas marítimas mais movimen-

tadas do mundo.

5. De acordo com Erika Downs, “a China está enfrentado um dilema agudo

porque Beijing precisa melhorar sua reputação internacional pressionando Car-

tum a encontrar uma solução para Darfur, sem contribuir demais com a estabili-

dade no país, o que facilitaria o retorno de companhias ocidentais, e com isso

enfraqueceria a posição das companhias chinesas” (apud STRUYE, 2009, p.

24).

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Resumo

Soft China: O Caráter Evolutivo da

Estratégia de Charme Chinesa

O presente artigo analisa outra vertente (por vezes ignorada ou subestima-

da) do conceito de poder, o soft power, relacionando-o com o caso concreto

de uma potência em ascensão: a China. Inicia-se por definir a noção de soft

power, distinguindo-a, para este efeito, dos conceitos de hard power e de

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smart power. Se, numa primeira fase se recorrerá, sobretudo, à teoria para

destacarmos as principais características do soft power, a segunda etapa, es-

sencialmente prática, baseia-se em um estudo de caso: investiga o compor-

tamento da China em matéria de soft power. Desta forma, pretende-se con-

ferir à teoria uma aplicabilidade, sendo ambas duas peças que não se exclu-

em, antes interagem harmoniosamente. Como se concretiza a “ofensiva de

charme” chinesa no Sudeste Asiático? Que pontos fortes e pontos fracos

tem o soft power chinês? Como se comporta a China perante a questão dos

Estados-pária? Como se comporta o soft power chinês no que diz respeito à

estratégia marítima da China? Estas e outras questões serão abordadas pelo

presente artigo. Na prática, procura-se demonstrar que, ao contrário do pas-

sado, o soft power já não é um elemento “estranho” no discurso oficial chi-

nês. Na verdade, a China de hoje parece estar mais preocupada com a ima-

gem que o mundo tem dela.

Palavras-chave: Soft Power – China – Consenso de Pequim – Consenso de

Washington

Abstract

Soft China: The Changing Nature

of China’s Charm Strategy

This article examines another aspect (sometimes ignored or underestima-

ted) of the concept of power – soft power – relating it to the case of a rising

power: China. It begins by defining the notion of soft power, distinguishing

it, for this purpose, from the concepts of hard power and smart power. In a

first phase, the text brings to bear theory in order to highlight the main featu-

res of soft power. The second – essentially practical – phase is based on a

case study: the analysis of China's behavior in terms of soft power. The text

thus provides the notion of soft power with practical applicability, these two

elements being shown to be not mutually exclusive, but rather able to inte-

ract harmoniously. How does the Chinese “charm offensive” manifest itself

in Southeast Asia? What are the strengths and weaknesses of Chinese soft

power? How does China behave when dealing with the issue of rogue sta-

tes? How does the Chinese soft power behave in the framework of China’s

maritime strategy? These and other issues are addressed in this article. In

practice,it will be demonstrated that, unlike in the past, soft power is no lon-

ger a “strange” element in Chinese official discourse. In fact, the China of

today seems to be more concerned with the image it has in the world.

Keywords: Soft Power – China – Beijing Consensus – Washington Consen-

sus

Soft China: O Caráter Evolutivo da Estratégia

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