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Solidariedade e Cooperação: Uma opção de vida, uma realidade que nunca deve

ser esquecida!

Concurso «Eu conto!» Plano Nacional de Leitura, em parceria com o Banco Popular

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Escola Básica e Secundária de Anadia

Agrupamento de Escolas de Anadia

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A noite ainda dormia quando acordei, naquele dia que havia de ficar para sempre na minha

memória. A minha rotina dessa manhã era a mesma que me acompanhava já desde os meus

escassos dezasseis anos.

Abandonava a minha cama pelas seis e meia da manhã, para “pegar” na fábrica às oito. O

meu ritual diário permanecia imutável ao longo das últimas décadas.

A água escorria livremente pelo meu corpo, ainda robusto, embora a força da idade já

começasse a ficar visível. As calças e a camisola de malha substituíram a toalha que antes fiz

deslizar pelo meu corpo, limpando-o do revigorante banho matinal. Seguiu-se um substancial

pequeno-almoço, do qual jamais prescindia e que assegurava a minha força física para o dia que

então se antevia.

O percurso que fazia até à fábrica, de cerca de vinte minutos, era passado a meditar no

imenso trabalho que me aguardava. O dia despontava tristonho, parecendo adivinhar a

tempestade que estava prestes a cair sobre a minha sólida vida, pensava eu então.

Ao longo de todos estes anos, em que trabalhei nesta fábrica, nunca conheci outro trabalho.

No entanto, fui sempre atualizando os meus conhecimentos, foram muitas as ações e os cursos

que frequentei, pois sabia que eram muito importantes e que o meu emprego também dependia

de uma constante aprendizagem.

Nem dei, como acontecia na maior parte das vezes, que chegava ao estacionamento da

fábrica. Apesar de muitos dos colegas já terem chegado, eles respeitavam-me de tal maneira que

me reservavam o mesmo lugar que ocupava há muito tempo. Por mim, estacionava o carro em

qualquer outro lugar, mas fi-lo nesse espaço, como sempre, embora mais por respeito por mo

guardarem do que por vontade de o fazer.

A minha chegada foi aclamada pelos meus colegas que, embora mais novos, me

acarinhavam sempre com um sonoro bom dia! Eu, embora chefiasse aquela secção, era tido como

um pai, que lhes ensinara os primeiros passos, os ajudara a desbravar o caminho, que até ali

tinham percorrido. E eu sentia-me bem, tal mestre em quem o discípulo confiava e acreditava que

ele tinha a sabedoria e a destreza suficientes para ensinar. Mas, ao mesmo tempo, aprendia. Sim,

eu também aprendia com eles. E eles procuravam-me, pois eu sempre cooperava com eles,

ensinava-lhes tudo o que sabia, sem medo de usurparem o meu lugar, que conquistara com muito

trabalho e sempre, mas sempre, com muito amor pela arte.

Verifiquei todo o trabalho que havia nesse dia, distribui tarefas, dei conselhos, e tinha de me

dedicar à nova contratação, ainda verde mas que me parecia ia dar um bom trabalhador. Quando

estava para lhe dar as habituais explicações, como fazia sempre que era contratado um novo

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funcionário, apareceu o Doutor Amadeu que me disse que deveria dirigir-me urgentemente à

direção. O meu coração saltou-me do peito e senti as minhas pernas cambalearem. O que se

passava? Tantas outras vezes me chamaram igualmente com urgência, porque é que dessa vez

sentia um pânico pelo meu corpo? Por que razão vacilava? Por que motivo ficara eu nervoso?

Os meus pés rastejaram até ao gabinete do diretor geral que, depois dos habituais bons dias,

me mandou entrar e sentar. No seu semblante, sempre inexpressivo, notava uma réstia de mágoa

que jamais me lembrava de lhe ver. Finalmente começou o seu longo discurso, que segui

dormente e certo que o meu fim tinha chegado! Retive alguns trechos acerca da crise, da falta de

encomendas, da necessidade de reestruturar o pessoal e da dificuldade em pagar os salários

todos, de negociar os termos do fim da minha vida profissional nessa empresa… o fim da minha

vida!

Não percebi como era preciso despedir-me, se mantinham o pedido de pessoal. Algo me

escapava, contudo a minha questão ficou sem resposta.

O resto dos dias, que tive de trabalhar, fi-lo com eficiência e profissionalismo, mas com

muita mágoa e uma grande tristeza. Infelizmente chegou o último dia. A “festa” de despedida foi

bonita, se podemos caracterizar de bonito algo bom que termina. Porém os rapazes quiseram

prestar-me uma homenagem e eu não os quis magoar. Sorri, mas qual sorriso triste, infeliz e

sofrido, que não deixava que o meu mais íntimo ser saísse do estado de hipnose e se alegrasse

pela delicadeza da lembrança dos meus amigos. E eis que tudo estava terminado.

Pela primeira vez na minha vida, sem contar nos meus quatro anos em que caíra da bicicleta

nova e chorara, quando o meu avô me disse que um homem não chora, secara o rosto e nunca

mais ninguém me tinha visto verter uma única lágrima. Até àquele dia. Mas pelo menos aprendi

que um homem também chora!

De seguida, retirei o meu carro do meu “lugar cativo” e dirigi-me a casa mantendo o estado

de hipnose, que não me queria abandonar. O que iria fazer? Como iria ganhar a minha vida?

De facto, terminara o curso de mecânica na então Escola Técnica de Anadia, porém isso

tinha sido há mais de 30 anos. Lembro-me vivamente que, desde esse instante, fui admitido na

fábrica de motorizadas e bicicletas, a “Bimovimento”. Jamais tinha feito outro trabalho, quem,

com a minha idade, me empregaria agora?

Fevereiro despedia-se com um sol que irradiava e, afinal, eu despedia-me também. A

história não era bem assim: fora antes despedido!

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Os dias de março desenrolaram-se a um ritmo tão lento e, apesar de solarengos, aclamando

pela primavera que se avizinhava, pareciam-me todos iguais, de uma monotonia letárgica que me

deixava completamente desfeito.

Percorri fábricas, empresas, comércios, padarias, obras, respondi a anúncios, inscrevi-me no

centro de emprego e a resposta era sempre igual. Nada! Sempre nada!

O subsídio de emprego terminara há alguns meses e a possibilidade de ter emprego

também. A idade ajudava na recusa, apesar de não abertamente, sabia que esse era o principal

motivo.

Vivo sozinho. Três anos antes de ser despedido, a minha esposa tinha falecido. Filhos?

Nunca fomos agraciados com eles e por isso, vivo sozinho desde então. Pelo menos, senti-me bem

por ela não estar, por não ver ao que cheguei e de não ter de passar pelo que estou a passar.

Como eu fui e como estou: um verdadeiro caco. Ainda com boa idade de trabalhar, mas velho de

mais para ser aceite e novo de mais para me aposentar.

No dia que pela primeira vez tive fome a sério, a neta dos meus vizinhos, a Maria, uma

menina bonita e esperta, sentou-se no degrau da minha entrada. Trazia com ela a mochila da

escola. Nunca fui de incomodar os outros, por isso, quando os meus vizinhos me perguntavam se

estava tudo bem, eu fazia o melhor dos meus sorrisos e respondia que sim. Pois, com um ou outro

biscate ia conseguindo sobreviver.

Maria perguntou-me, então, na sua vozinha doce e infantil:

- Sabe Matemática?

Perante a minha resposta positiva, ela pediu-me se eu a podia ajudar. Não podia pagar-me,

mas repartiria o seu almoço comigo como forma de pagamento. Vendo o meu ar de recusa, ela

comentou:

- Só aceito a sua ajuda, se “pagar” da maneira que estou a dizer.

Como gosto de ajudar, aceitei.

- Então, primeiro vamos comer para ter forças para aprender, como diz a minha mãe.

A partir desse dia, tenho ajudado a Maria na Matemática. Ela tem muitas dúvidas, que se

estendem também a outras disciplinas e como tal, tenho-lhe dado o meu apoio. Os exames

estavam à porta e esperava que ela conseguisse passar. As notas nos testes, pelo que me ia

contando, não eram lá grande coisa.

Ajudei-a durante o último mês de aulas e aguardei pelos resultados, como se tivesse sido eu

a fazer os exames. A entrada na faculdade, como ela dizia que queria, não me parecia possível. Eu

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bem via as suas questões. Sem dúvida que não iria conseguir, principalmente em medicina como

tanto queria. Nunca lhe quis estragar o seu sonho, embora não o alimentasse muito.

No dia em que saíram as notas, ela não apareceu. Pois, devia ter chumbado. Decerto que

estava triste e sentir-se-ia envergonhada para aparecer. Foi então que vi a colega que às vezes

vinha com ela a casa dos avós. Sem pensar e com a curiosidade a aflorar, perguntei-lhe se sabia as

notas da Maria e se ela tinha passado.

- Passou, sim! - exclamou a menina, numa grande alegria e continuou - Se ela não passasse

mais ninguém o faria. A nota mais baixa dela foi dezanove, e só teve dois, o resto foi tudo vinte!

Ela sempre foi a maior. Ajuda-nos a todos e ainda consegue ter tempo para muitas outras

atividades. Mas hoje está doente e nem pôde ir ver as notas.

Fiquei sem palavras. Como era possível? Eu ensinara-lhe o quê? Como é que eu podia ter

sido enganado por uma menina de dezassete anos? Ela gozara comigo? Fizera-me de parvo? E se o

fez, terá sido com que intenção?

Claro, os meus olhos encheram-se de lágrimas e o meu rosto tornou-se o leito de um rio

após o degelo. Era a segunda vez que eu chorava. Contudo havia uma diferença, desta vez sentia

uma imensa alegria. Deixei assim que as lágrimas escorressem livremente e apercebi-me como

aquela menina era inteligente. No momento em que me pediu o meu apoio, sabia que eu

recusaria a comida, mas percebeu que eu jamais recusaria um pedido de ajuda.

Desta vez, a minha capacidade de ensinar tinha sido superada pela de aprender. Maria

tinha-me dado uma grande lição: a solidariedade e a cooperação não têm preço. Podemos ajudar

sem ter nada em troca, pois foi exatamente o que Maria teve em troca: nada! Mas mais

importante do que receber é dar. Eu pensei que dava, porém afinal recebi muito mais e não falo

apenas da comida, mas muito especialmente do ensinamento que Maria me transmitira de que a

solidariedade deve estar presente em cada um de nós.

Maria apareceu uns dias depois, sorridente e com o seu ar infantil, pediu-me desculpa. Eu

abracei-me a ela e só soube dizer:

- Parabéns, Maria e muito obrigado!

Maria não parou de me surpreender. Por sua vez, tinha uma surpresa, mas eu tinha de ir

com ela. Nesse dia, chegámos ao ATL, onde ela apoiava alguns meninos. Estavam então a precisar

de uma pessoa para ajudar com as crianças e os jovens.

Marcada o dia e hora da entrevista, fi-la respondendo a todas as questões e passado uns

dias, era chamado para o meu novo emprego.

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Com a ajuda dela consegui este emprego. Não tem nada a ver com aquilo que fiz até então,

ou talvez tenha, pois sempre ensinei e cuidei de pessoas mais jovens. Mas sei que adoro o que

faço e que coloco toda a sabedoria, que a vida me ensinou, quando estou com os meninos, mas

sempre, sempre lembro que tudo isto só foi possível devido à solidariedade das pessoas e de uma

em particular, a Maria.

Tempos depois, decidi transformar um dos quartos da minha casa numa sala de estudo e,

quando não estou a trabalhar, recebo alunos das escolas e estudo com eles as matérias das

diferentes disciplinas. Faço-o sem receber qualquer contrapartida financeira, porém recebo uma

grande riqueza, que é a de ver que posso ajudar estes jovens. Ensino-lhes não apenas a estudar,

mas também lhes transmito a máxima que aprendi com a Maria:

A partilha, a cooperação e a solidariedade não se vendem. Pelo contrário, dão-se com amor

e o maior tributo e recompensa correspondem ao amor que se recebe em troca!