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Em dezembro de 1895, o major José Ignácio de Camargo Penteado, fazendeiro de São Carlos, recebeu uma carta em língua italiana ameaçando incendiar sua fazenda ou assassiná-lo caso não deixasse trinta contos de réis no pontilhão da es- trada de ferro na noite de natal. 1 O major, que já recebera outra carta do mesmo teor e certamente não queria deixar tal presente de natal para italia- nos desconhecidos, desconsiderou a carta. Na noite de 25 de dezembro, o depósito de aguar- dente e outras instalações da fazenda foram in- cendiados, resultando em prejuízos de aproxima- damente 35 contos de réis. No dia 26, recebeu outra carta dizendo que ele seria assassinado se não depositasse o dinheiro no lugar indicado duas noites depois. Desta vez, o major alertou o delegado de polícia, que foi com a força pública e vários voluntários observar o pontilhão na noi- te do dia 28. Por volta das seis horas do dia 29 chegou um indivíduo e olhou o pontilhão. Ele foi preso, mas parece que foi solto por falta de pro- vas, porque não foram encontradas mais referên- cias sobre ele no inquérito a respeito do incêndio. SOLIDARIEDADE ÉTNICA, PODER LOCAL E BANDITISMO: uma quadrilha calabresa no Oeste Paulista, 1895-1898 * Karl Monsma, Oswaldo Truzzi e Silvano da Conceição * Esta pesquisa recebe o apoio do CNPq e do Progra- ma Brasil Latino da Fundação Cassamarca. Anterior- mente, recebeu financiamento da Fapesp. Uma ver- são anterior foi apresentada no XXVI Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, MG, outubro de 2002. Agrade- cemos os comentários de Elisabete da Costa Leal e de um parecerista anônimo da RBCS. Agradecemos ainda a gentileza e a atenção de diretores e funcio- nários da Fundação Pró-Memória de São Carlos, do Arquivo do Estado de São Paulo e da Unidade Espe- cial de Informação e Memória da Universidade Fede- ral de São Carlos. Carolina Albuquerque da Silva, La- nia Stefanoni Ferreira, Simone Medeiros e Thiago Soares, bolsistas do PIBIC, pesquisaram alguns dos processos discutidos neste artigo. Artigo recebido em outubro/2002 Aprovado em maio/2003 RBCS Vol. 18 nº. 53 outubro/2003

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Em dezembro de 1895, o major José Ignácio

de Camargo Penteado, fazendeiro de São Carlos,

recebeu uma carta em língua italiana ameaçando

incendiar sua fazenda ou assassiná-lo caso não

deixasse trinta contos de réis no pontilhão da es-

trada de ferro na noite de natal.1 O major, que já

recebera outra carta do mesmo teor e certamente

não queria deixar tal presente de natal para italia-

nos desconhecidos, desconsiderou a carta. Na

noite de 25 de dezembro, o depósito de aguar-

dente e outras instalações da fazenda foram in-

cendiados, resultando em prejuízos de aproxima-

damente 35 contos de réis. No dia 26, recebeu

outra carta dizendo que ele seria assassinado se

não depositasse o dinheiro no lugar indicado

duas noites depois. Desta vez, o major alertou o

delegado de polícia, que foi com a força pública

e vários voluntários observar o pontilhão na noi-

te do dia 28. Por volta das seis horas do dia 29

chegou um indivíduo e olhou o pontilhão. Ele foi

preso, mas parece que foi solto por falta de pro-

vas, porque não foram encontradas mais referên-

cias sobre ele no inquérito a respeito do incêndio.

SOLIDARIEDADE ÉTNICA, PODER LOCAL E BANDITISMO: uma quadrilha calabresa no Oeste Paulista, 1895-1898*

Karl Monsma, Oswaldo Truzzi e Silvano da Conceição

* Esta pesquisa recebe o apoio do CNPq e do Progra-ma Brasil Latino da Fundação Cassamarca. Anterior-mente, recebeu financiamento da Fapesp. Uma ver-são anterior foi apresentada no XXVI Encontro Anualda Anpocs, Caxambu, MG, outubro de 2002. Agrade-cemos os comentários de Elisabete da Costa Leal ede um parecerista anônimo da RBCS. Agradecemosainda a gentileza e a atenção de diretores e funcio-nários da Fundação Pró-Memória de São Carlos, doArquivo do Estado de São Paulo e da Unidade Espe-cial de Informação e Memória da Universidade Fede-ral de São Carlos. Carolina Albuquerque da Silva, La-nia Stefanoni Ferreira, Simone Medeiros e ThiagoSoares, bolsistas do PIBIC, pesquisaram alguns dosprocessos discutidos neste artigo.

Artigo recebido em outubro/2002Aprovado em maio/2003

RBCS Vol. 18 nº. 53 outubro/2003

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O incêndio na fazenda de José Ignácio Pen-teado foi o primeiro evento de uma onda de cri-mes em São Carlos e municípios vizinhos, que ater-rorizou sobretudo as elites e durou mais de doisanos. Os autores pertenciam a uma quadrilha deimigrantes italianos, liderada por Francisco Manga-no. Com o fracasso desta e outras tentativas de ex-torsão, eles passaram a praticar assaltos a pessoase arrombamentos de casas e lojas, atuando tantona cidade como na zona rural, mas sobretudo es-pecializando-se em emboscadas nas estradas ru-rais. Os alvos preferidos dos assaltos eram fazen-deiros que traziam grandes quantias de dinheiro dacidade para pagar os colonos e os camaradas. Emmarço de 1898, quando foram presos, os principaisintegrantes da quadrilha preparavam assaltos aoBanco União e ao trem de pagamento da Compa-nhia Paulista de Estradas de Ferro.

O Quadro 1 apresenta uma cronologia dosprincipais crimes mencionados no inquérito e noprocesso criminal contra o bando. O quadro suge-re que a freqüência dos crimes se acelerou até aprisão do bando, embora tal impressão possa re-sultar de uma ênfase maior nas atividades mais re-centes no inquérito e no processo. Ou seja, várioscrimes do início do período podem simplesmentenão aparecer nas principais fontes disponíveis.

No início de novembro de 1897, o roubo ea tentativa de latrocínio contra o fazendeiro Joa-quim Botelho de Abreu Sampaio sensibilizaram aselites locais, e o delegado em exercício coronelLeopoldo Prado, que também era fazendeiro, nãopoupou esforços na tentativa de capturar os cri-minosos. Uma carta anônima denunciou três ita-lianos como autores do crime. O delegado pren-deu-os, mas teve de soltá-los por falta de provas.

Quadro 1Cronologia dos Principais Crimes Envolvendo o Bando Mangano

(eventos mencionados no processo)

• 25 para 26/12/1895 – Incêndio na fazenda de José Ignácio de Camargo Penteado.• 5/10/1896 – Assalto ao italiano Giacomo Baptisaco, trabalhador de roça (trazendo dinheiro do banco

para o fazendeiro João Borges de Oliveira).• 4/12/1896 – Roubo do cofre do hotel dos italianos Francisco Loriggio e Vicente Callibo.• 30/1/1897 – Agressão e tentativa de assalto a Florêncio José de Moraes.• 18/9/1897 – Arrombamento e roubo à casa do espingardeiro italiano Fortunato Baroni.• 1/11/1897 – Roubo de cavalos de Antonio Salles e Antonio da Cunha.• 6/11/1897 – Assalto e tentativa de assassinato, com ferimentos graves, do fazendeiro Joaquim Bote-

lho de Abreu Sampaio.• 1/1898 – Roubo da casa do italiano Paschoal Cachuchelli.• 1898 – Assalto a um “patrício”.• 1898 – Roubo a Miguel Lebre.• 2/1898 – Ferimentos com tiros e assalto ao mascate “turco” Salomão Elias.• 4 ou 5/2/1898 – Roubo e assassinato do fazendeiro português José Joaquim Duarte Moreira.• 5/2/1898 – Roubo e espancamento do “preto” José Moreira da Silva, roceiro.• 5/2/1898 – Tentativa de assalto e ferimentos graves (de espingarda) em Porfírio Alvares da Cruz, ad-

ministrador de fazenda.• 12/2/1898 – Arrombamento e roubo da casa comercial dos “turcos” Abdo Kfouri e Antônio Kfouri.• 25/2/1898 – Ferimentos com tiros e tentativa de assalto ao “preto” Marcos Barbosa, maquinista.• 6/3/1898 – Assalto e espancamento do negociante ambulante português Dionísio Antônio da Silva.

Fonte: Conceição, 2001; Fundação Pró-Memória de São Carlos, Processos Criminais, Caixas 272 e 273, n. 90, 1898,

vários réus.

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Ele também prendeu e espancou vários outros ita-lianos, mas acabou não descobrindo nada.2 A co-munidade italiana parecia impenetrável.

Os integrantes da quadrilha provinham deuma região da Itália, a Calábria, bem conhecidapelo banditismo no século XIX, e há indícios deque alguns deles já tivessem experiência com essaatividade antes de emigrar. Apesar de mais de 36%dos italianos imigrados para o Brasil entre 1878 e1902 serem meridionais (Trento, 1989, p. 39), e dasuper-representação de italianos entre os acusadosde roubos e arrombamentos na época da imigra-ção em massa (Fausto, 1984), o envolvimento deimigrantes italianos no banditismo ou no crime or-ganizado era raro no Brasil. A quadrilha Mangano,de São Carlos, é o único exemplo que conhece-mos, embora o tema seja pouco pesquisado, po-dendo ter havido outros bandidos italianos no Es-tado de São Paulo com atuação mais limitada. Araridade do banditismo italiano no Brasil contras-ta não somente com a do Sul da Itália, mas tam-bém com algumas das grandes cidades dos Esta-dos Unidos, onde uma parte dos imigrantes,especialmente sicilianos, organizou quadrilhas es-pecializadas em extorsão, fenômeno inicialmenteconhecido na mídia como a “Mão Negra” (BlackHand). Na década de 1920, com a Lei Seca, algu-mas dessas quadrilhas adquiriram um papel pre-dominante no tráfico de bebidas alcóolicas e trans-formaram-se em poderosas redes criminosas,conhecidas coletivamente como Máfia ou “CosaNostra” (Anderson, 1965).

Caso excepcional no Brasil, a quadrilhaMangano, que atuou no campo e na cidade deSão Carlos, pode nos ajudar a entender por que,de maneira geral, o Estado de São Paulo não for-necia condições propícias nem para o banditismorural, como o da Itália meridional, nem para qua-drilhas urbanas de imigrantes, tal qual presenteem algumas cidades norte-americanas. A compa-ração com a Calábria e com os Estados Unidos, ea história do próprio bando Mangano, apontam aimportância decisiva de dois fatores para explicara raridade do banditismo e do crime organizadoentre italianos no Brasil: a falta de elites dispostasa apoiar e proteger esta atividade e as dificulda-des para italianos corromperem as autoridades lo-

cais, especialmente a polícia. Em São Carlos, ondehavia certa concentração de calabreses, entremuitos italianos de outras origens, uma quadrilhade bandidos calabreses atuou com impunidadedurante alguns anos em função de uma epidemiadevastadora de febre amarela, que afastou grandeparte da elite local e debilitou a polícia.

A organização, a trajetória e o desmantela-mento da quadrilha Mangano também fornecemevidências sobre as formas e os limites da solida-riedade italiana à quadrilha. A solidariedade étni-ca dos calabreses contribuiu para a coesão internado bando, que não tinha estrutura formal de lide-rança, rituais de adesão ou regras internas explíci-tas, mas não explica o silêncio dos outros italia-nos. Concluímos que estes não denunciaram aquadrilha principalmente porque desconfiavamdas autoridades brasileiras e temiam a vingança dobando. Com a prisão dos bandidos e o evidentefim de sua impunidade, não faltaram italianos dis-postos a depor contra eles, e os líderes da comu-nidade italiana celebraram a queda da quadrilha.

A emigração calabresa

A quadrilha de assaltantes que agia em SãoCarlos era formada por imigrantes originários daCalábria, a maior parte deles proveniente da pro-víncia de Catanzaro. A emigração dessa regiãoapresentava uma característica notável, qual seja,um caráter marcadamente transoceânico, quandocomparado a de outras regiões da Itália. Nas pro-víncias do Norte, havia uma parcela significativa deimigrantes que se deslocavam no interior do pró-prio continente europeu. Na Calábria (e tambémna Campania) o destino era sobretudo a América.E no próprio interior da região calabresa, Catanza-ro foi a província que apresentou o maior númerode emigrantes. Ali a emigração tornou-se mais fre-qüente a partir da última década do século XIX. Noperíodo de 1892 a 1901, que inclui os anos deatuação da quadrilha Mangano, mais da metadedos calabreses emigrados ao Brasil saíram de Ca-tanzaro. Scalise (1905, p. 10) afirma que, para oscalabreses de modo geral, era mais caro emigrarpara outros países ao norte da Itália do que para a

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América. As Tabelas 1 e 2 apresentam dados rela-tivos aos destinos da emigração calabresa, em par-ticular de Catanzaro.

Scalise ainda aponta que a cada dez emi-grantes, sete eram homens e oito adultos, a gran-de maioria com profissões rurais: pequenos pro-prietários, trabalhadores rurais contratados oudiaristas. Apenas um quarto deles viajava acom-panhado de familiares, e a faixa etária mais co-mum era entre 15 e 35 anos.

A literatura (cf. Foerster, 1919) aponta umconjunto heterogêneo de causas que concorre-ram para a generalização da emigração em todoo sul da Itália. Embora intimamente inter-relacio-nadas, elas podem ser, por motivos didáticos,agrupadas em causas naturais e sociais. Entre asprimeiras, vale citar a ocorrência de secas provo-cadas por um regime pluviométrico que alterna-

va seis meses contínuos sem chuva com seis me-

ses de chuva forte.

Nem sempre foi assim, o que demonstra, ao

menos nesse caso, a prevalência de fenômenos

sociais por detrás dos caprichos da natureza. A

mudança climática precipitou-se a partir da derru-

bada de áreas florestais desde o início do século

XIX e, ironicamente, encontra-se associada à abo-

lição dos direitos feudais (em 1806 no continente,

em 1812 na Sicília) e à secularização das terras da

Igreja (1855-1873). A devastação das florestas na-

tivas em uma região de relevo acidentado predis-

pôs o solo a erosão e deslizamentos freqüentes, o

que ocasionava inundações e formação de pânta-

nos nas terras baixas. Isso teve efeitos desastrosos

sobre a agricultura. Ademais, terremotos abateram

o ânimo das populações rurais. Apenas na Calá-

Tabela 1Destinos de Emigrantes Calabreses, 1876-1901

1876-1881 1882-1891 1892-1901 1876-1901 1899-1901Europa 1.376 3.072 6.762 11.210 3.677África 1.354 11.128 6.579 19.061 2.183Argentina 4.320 35.525 60.722 100.567 24.779Brasil 5.157 18.228 45.051 69.036 13.663Estados Unidos 1.043 34.098 59.264 94.405 26.047América 13.035 94.665 172.485 280.185 69.583Total* 15.655 110.109 185.893 311.657 75.478

* Inclui outros destinos.

Fonte: Scalise (1905, p. 134-137).

Tabela 2Destinos de Emigrantes da Província de Catanzaro, 1876-1901

1876-1881 1882-1891 1892-1901 1876-1901 1899-1901Europa 29 99 336 464 200África 757 4.240 2.497 7.494 590Argentina 19 7.788 13.125 20.932 6.970Brasil 49 1.348 25.583 26.980 7.000Estados Unidos 12 13.033 35.326 48.371 17.752América 368 25.351 74.982 100.701 32.634Total* 1.154 29.687 77.880 108.721 33.461

* Inclui outros destinos.

Fonte: Scalise (1905, pp. 134-137).

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bria eles foram registrados em 1854, 1870, 1894,1905, 1907 e 1908.

Na Itália meridional, as origens da aglomera-ção dos camponeses em vilas localizadas em ser-ras remontam à insegurança e à anarquia endêmi-cas na região, prevalecentes durante muitosséculos após a queda do Império Romano. Porém,a malária, que vicejava nas terras baixas, em de-corrência da devastação ecológica do século XIX,criou um novo motivo para residir em colinas al-tas, longe das planícies mais férteis, onde o mos-quito transmissor abundava (Blok, 2001c). O cam-ponês tinha de se deslocar diariamente paratrabalhar, o que constituiu mais um fator capaz deinibir o sucesso de pequenas propriedades.

Sobre tais causas ditas “naturais” agiram ain-da a estrutura fundiária, as formas de contrato agrá-rio e suas implicações para a renda e a produtivi-dade dos agricultores. Acompanhado de técnicasde cultivo primitivas, o grande latifúndio permane-ceu, não obstante as oportunidades de mudançadesse perfil agrário. Uma delas apresentou-se coma abolição dos direitos feudais, no início do sécu-lo XIX, quando de fato houve uma grande distri-buição de terras pertencentes aos nobres. Muitasdelas foram adquiridas por grandes proprietáriosde forma fraudulenta, e, das terras distribuídas aospobres, grande parte foi, algum tempo depois,transferida a credores. Após meio século, ocorreuoutra grande distribuição, relativa aos bens da Igre-ja. Em algumas regiões as terras eclesiais foram dis-tribuídas mediante uma renda perpétua que deve-ria ser paga pelos favorecidos. Contudo, o valor doarrendamento era alto, forçando os mais pobres arenunciar a seus lotes. As imposições do Estadotambém concorreram para a desapropriação dospobres. “Após a Unificação, impostos elevados for-çaram muitos dos pequenos proprietários, que ha-viam se endividado para comprar terras, a vende-rem estas aos poucos que tinham capital” (Banfield,1958, p. 145).

Nos casos em que a família lograsse reter otítulo de sua propriedade, o frazionaménto entreherdeiros, garantido pelo direito sucessório pro-mulgado no novo Código Civil, inviabilizava eco-nomicamente a propriedade. Em todo o sul daItália permaneceu, então, uma situação em que os

grandes latifúndios conviviam com propriedadesminúsculas, superfracionadas. “A população au-mentava rapidamente e as pequenas proprieda-des, divididas por heranças, tornavam-se cada vezmenores” (Idem, p. 145).

Tanto na grande como na pequena proprie-dade, outra característica marcante foi a ausênciado proprietário. Na Calábria, um inquérito parla-mentar sobre as causas da emigração ao final doséculo XIX informou que

[...] grandes proprietários são, como regra, au-sentes. Os da zona costeira, com seus cultivosextensivos; os ricos – verdadeiramente grandesproprietários – vivem muito distante de suas ter-ras. Os das zonas montanhosas são também au-sentes, mas suas rendas não lhes permitem dei-xar a capital da província ou as adjacências; defato, do ponto de vista agrícola, é como se habi-tassem do outro lado do mundo, pois visitamsuas terras apenas uma ou duas vezes por ano(Foerster, 1919, p. 72).

A ausência do proprietário tornava necessárioque a propriedade fosse administrada por um pre-posto ou arrendatário. Na Sicília, esse agente erachamado gabellotto; na Calábria, o papel cabia aoindustriante (Jamieson, 1997, pp. 471-472). Essetipo de especulador, intermediário por excelência,tratava de sublocar as terras a outros arrendatáriosque, por sua vez, contratavam camponeses maismiseráveis. Na província de Catanzaro, predomina-va o arrendamento de um ano, exceto para o cul-tivo de cereais, que se prolongava por quatro acinco anos. Essas pequenas sublocações eram nor-malmente pagas em produtos, e raramente os con-tratos eram renovados. Na região da Calábria comoum todo, apenas um sexto da população emprega-da na agricultura cultivava sua própria terra – ciframuito menor que a observada em regiões da Itáliasetentrional ou central. Dois terços dos agricultores(contadini) eram trabalhadores contratados, algunscom contratos anuais, mas cerca de três quartosdestes era composta por miseráveis que se deslo-cavam cotidianamente ao mercado, antes do ama-nhecer, para serem contratados por dia, os giorna-lieri (Foerster, 1919, p. 85).

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Nesse quadro, não faltavam obstáculos parauma agricultura mais eficiente: estrutura fundiáriapolarizada entre latifúndios e pequenas proprieda-des – nas grandes, os proprietários pouco se impor-tavam com a introdução de melhorias ou inova-ções, e os arrendamentos de curto prazo impeliama práticas agrícolas danosas que retiravam o máxi-mo da terra no menor tempo possível –; métodosde cultivo atrasados, herdados ainda do império ro-mano; e, por fim, a destruição do meio ambiente.

Além dessas circunstâncias, como de fato vi-via a população calabresa? As casas dos contadinieram pequenas e rústicas – casas-dormitório – lo-calizadas em aldeias sobre colinas, feitas de barro,pedra, tijolos ou lava, sem água corrente ou esgo-to, iluminadas, às vezes, com lamparinas a óleo,com pouca privacidade, freqüentada por animaisdomésticos. A rua era normalmente o espaço desociabilidade. Uma dieta reduzida de pão seco epouca proteína refletia-se no estado físico debilita-do dos homens, ainda agravado pela malária epelo tracoma. “Era um tempo em que qualquererva era cozida e comida, sem sal e sem condi-mento, para dar ao estômago a ilusão de sacieda-de” (Scalise, 1905, p. 45).

A grande maioria da população era analfabe-ta, conseqüência do baixo investimento educacio-nal. Os dados relativos ao censo de 1901 revelamque, se para a Itália como um todo o percentualde analfabetos (maiores de 7 anos) já era elevado(51,5%), as taxas de alfabetização calabresas en-contravam-se entre as mais baixas do país (21,3%).Scalise reclama das depreciações comuns proferi-das pelos nortistas, os quais consideram que “oscalabreses são os mais analfabetos, os mais degra-dados e pertencem a uma outra raça ínfima, quenão pode ser confundida com a nossa de privile-giados”, mas reconhece que a Calábria é marcadapelo analfabetismo, “pois foi o ponto de toda aItália meridional onde a dominação foi mais cruele opressiva” (1905, pp. 94-97).

Nessa região, quase não existiam associaçõessolidárias, como as sociedades de ajuda mútua, en-fatizadas nos trabalhos sobre imigração e solidarie-dade étnica (cf., por exemplo, Baily, 1999, pp. 172-216). Na literatura sobre a Itália meridional, osautores, de modo geral, criticam a falta de espírito

associativo. Banfield é um dos mais enfáticos: criti-ca o “egoísmo em todas as relações extrafamilia-res”, chegando à conclusão de que a “extrema po-breza e o atraso são explicados, em grandemedida, pela incapacidade dos habitantes de agircoletivamente para o bem comum, ou para qual-quer fim que transcenda o interesse imediato, ma-terial da família nuclear” (Banfield, 1958, pp. 9-10).

Em função desses problemas, o campo tinhapoucas condições de absorver parcelas cada vezmaiores da população. Com uma vivência asso-ciativa inexistente, melhorar de vida passou a sig-nificar emigrar. Como em geral acontece, não fo-ram os mais miseráveis que emigraram. Muitosintegravam uma espécie de “proletariado de pro-prietários”: impossibilitados de tirar o sustento desuas pequenas glebas, eram forçados a buscaremprego em propriedades maiores, sob o jugodos industrianti. Além disso, havia uma propa-ganda intensiva no sentido de convencer os recal-citrantes a emigrar.

Um número incalculável de agentes e subagentesda emigração espalhou-se por toda a Calábria,percorrendo as zonas rurais, encorajando os tími-dos, descrevendo com cores vivas o local de des-tino aconselhado e, como pais amorosos, os go-vernos aos quais serviriam; uma infinidade defolhetos de propaganda foram disseminados emcada esquina, e grandes cartazes foram afixadosnas portas das igrejas, diante dos quais se aglome-ravam os camponeses que logo confiavam naque-les que podiam facilitar e iluminar o obscuro edesconhecido caminho (Scalise, 1905, pp. 30-31).

Banditismo e crime organizado na Calábria e nos Estados Unidos

Violência e banditismo na Calábria

Há muito, um considerável grau de insegu-rança reinava em distritos rurais do sul da Itália.

Aquele que se desloca pela zona rural do altipla-no calabrês, a cada passo encontra uma cruz es-cangalhada ou um vestígio de cruz e, em algunspontos, chega a lhe parecer que está em meio aum velho cemitério abandonado: símbolos do

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martírio, que a piedade dos sobreviventes planta-va no local ainda rutilante do sangue da vítima(Scalise, 1905, p. 66).

A longa história de banditismo, assaltos rurais eassassinatos explica, por exemplo, por que à épo-ca muitos camponeses caminhavam para o traba-lho com rifles nos ombros. No continente, o re-levo escarpado, que propiciava esconderijos,também facilitava crimes.

No período entre 1890 e 1897, em que seobserva um baixíssimo nível salarial, o roubo naSicília tornou-se um meio de vida (Foerster, 1919,p. 98). Ali, a vendetta (homicídios por vingança)era praticada em uma proporção cinco vezesmaior que nas províncias italianas setentrionais.“Covil e refúgio de bandidos graças à sua posiçãoquase no coração da sela dos Apeninos”, a Calá-bria não ficava atrás. Scalise observa, em relaçãoaos crimes de vingança, o

[...] sentimento feroz e quase selvagem, junto àmassa da população, da honra familiar, sentimen-to em nome do qual não se transigia nenhum ins-tante e que inexoravelmente armava a mão doofendido, o qual, depois, refugiava-se nas flores-tas virgens, onde persistia no delito, e para quema visão do sangue odiado lhe havia feito provartoda a volúpia do instinto primitivo. O banditis-mo, por essa trágica e cruenta concessão da hon-ra doméstica, apenas sob essa rubrica, recrutavagrande parte de seus militantes (1905, pp. 84-85).

A análise de Banfield exagera quanto à inca-pacidade de os italianos meridionais agirem demaneira coletiva, já que muitos, efetivamente, co-laboravam em atividades ilegais. O banditismo en-dêmico da Calábria sempre envolveu a colabora-ção entre não parentes dentro dos bandos e certograu de apoio do restante da população. No iníciodos anos de 1860, na esteira da unificação italiana,a grande onda de banditismo na Calábria repre-sentou uma espécie de levante coletivo contra onovo Estado “piemontês” e contra os latifundiá-rios por camponeses e ex-soldados do exércitodos Bourbons (Adorni, 1997; Hobsbawm, 2000,pp. 107-108). No século XX, muitos indivíduos daregião meridional organizaram-se para a ação co-letiva em organizações criminosas de grande por-

te – Ndrangheta calabresa, Camorra napolitana,Sacra Corona Unita pugliana e Máfia siciliana –,mantendo, internamente, uma solidariedade ba-seada na extensão do vocabulário e dos símbolosfamiliares (Blok, 1974, 2001b; Hess, 1998, p. 187;Jamieson, 1997).

Se os italianos meridionais eram capazes deagir coletivamente em benefício de grupos parti-culares, resistiam, é verdade, em participar de pro-jetos para o bem-estar da comunidade. Séculos dedominação estrangeira, de governos arbitrários ecorruptos e de dominação local por latifundiáriosdeixaram os camponeses dessa região profunda-mente desconfiados da autoridade pública, o queprovocou a canalização da ação coletiva para viasinformais, personalistas e clientelísticas, contri-buindo para um ambiente de insegurança e vio-lência privada (Adorni, 1997; Gambetta, 1992, pp.93-131; Hess, 1998, pp. 14-46). Em 1901, um ma-gistrado calabrês, em artigo de jornal, denunciou

[...] o absenteísmo do governo central, a poucaretidão dos seus funcionários, [que] produziramno ânimo desta população desconfiança, a maiorpossível na Justiça, a qual não sabe proteger osfracos da prepotência dos fortes [...]. É lógico quetodos os fracos, em vez da justiça dispensada nassalas do Fórum, têm recurso àquela praticadacom o fuzil, com o punhal ou com a navalha(apud Jamieson, 1997, p. 471).

Eric Hobsbawm (1959; 2000), ao fazer umadistinção entre criminosos predatórios, que rou-bam de qualquer um, e “bandidos sociais”, queconstituem um tipo de “rebelde primitivo”, viti-mando os ricos e conquistando o apoio dos po-bres, reconhece a existência de um grande lequede casos intermediários, e que muitos “bandidossociais” gozam da proteção de facções da elite lo-cal. As teses desse autor têm estimulado bastanteo debate sobre o banditismo em várias partes domundo. Elaborada originalmente pelo antropólo-go holandês Anton Blok (2001a),3 a linha principalde crítica a Hobsbawm reconhece o mito populardo “bandido social”, mas afirma que, na realidade,os bandidos geralmente colaboram com elites lo-cais, sobretudo latifundiários, e que sua atuaçãotende a impedir, em vez de facilitar, a mobilização

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dos camponeses.4 Por causa de seu banditismo en-dêmico, esses autores privilegiam a análise da Itá-lia meridional (cf. também Blok, 1974).

Sem o apoio da população ou de parte daelite, segundo Hobsbawm, os bandidos não so-breviveriam por muito tempo. O autor fornece vá-rios exemplos de colaboração entre bandidos eelite, como, por exemplo, as famílias de latifun-diários que usavam os serviços de bandidos parase vingar ou lucrar às expensas de outras famíliasproeminentes (2000, pp. 99-104). As autoridadesmilitares encarregadas de reprimir o banditismona Itália meridional, após a unificação, reclama-vam que não apenas os camponeses, mas tam-bém alguns latifundiários protegiam os bandidos.Um comandante militar escreveu de Catanzaro,província de origem da maior parte do bandoMangano, em 1864:

Senhores dos mais influentes pela posição e ri-queza não mostram nenhum escrúpulo em prote-ger o banditismo de todos os modos possíveis[...]. [Convém] aos grandes proprietários, porquepor meio dos bandidos, que eles protegem, exe-cutam suas vinganças privadas, asseguram suaspropriedades e continuam a exercer uma espéciede autoridade feudal, da qual foram despojadoscom a queda do governo borbônio (apud Ador-ni, 1997, pp. 295-296).

A extorsão de dinheiro mediante ameaças àvida e à propriedade era uma tática de banditismobastante conhecida entre a população calabresa.Em 1862, referindo-se especificamente a Catanza-ro, outro militar escreveu em relatório reservado:

É sistema dos bandidos escrever bilhetes aos pro-prietários exigindo deles quantias de dinheiro,objetos preciosos, vestes ou armas, sob ameaça àvida e ao patrimônio, e estes, sob o pesadelo domedo, quase sempre mandam as quantias e osobjetos exigidos; e também, enquanto isso, mui-tas vezes acontece de um proletário qualquerusar de tal meio com o nome de um bandidopara ganhar dinheiro e gozá-lo em paz, porqueacobertado por esse estratagema (apud Adorni,1997, p. 295).

Em suas tentativas de extorsão, a quadrilha Man-gano, em São Carlos, apenas transpunha um pro-cedimento do banditismo calabrês para um novocontexto.

Conseqüências da migração calabresa para ocrime na Calábria e no Estado de São Paulo

É significativa a observação de Foerster deque o banditismo na Basilicata e na Calábria ha-via sido reduzido menos pela ação policial doque pelos efeitos da emigração. Scalise já haviaobservado, com certa satisfação, que o fenômenoda emigração tinha solucionado o problema dobanditismo:

O estado psíquico e social da Calábria teria per-manecido tal como era, ou até piorado, inevita-velmente, com o agravamento da situação econô-mica, se a resolução heróica da emigração não ohouvesse subvertido pela raiz [...] a emigração so-lucionou o banditismo e a esse fenômeno deve-mos o fato de hoje nas florestas da Sila e do As-promonte não mais fervilharem os ferozes einevitáveis expoentes da fome e da opressão(1905, pp. 67-69).

Isso se devia, segundo Scalise, ao fato de ser a“massa dos imigrantes composta de indivíduosque, pela prevalência do sexo masculino e pelaidade, são mais inclinados a delinqüir”. Podemosacrescentar que a emigração também constituíauma alternativa atraente para os foragidos da jus-tiça. Em vez de se refugiar nas florestas e monta-nhas, sustentando-se pelo banditismo, tanto osvingadores da honra familiar como os criminososcomuns podiam embarcar para a América.

Scalise analisou ainda a variação da taxa dehomicídios, por região, em toda a Itália entre oscensos de 1881 e 1901, época da grande emigra-ção de italianos para o Brasil. Nos dois períodosdiscriminados na Tabela 3, a Calábria esteve en-tre as três regiões da Itália onde mais homicídiosper capita ocorreram, mas a taxa diminuiu demodo significativo (-41,7%). As cifras anuais dosextremos do período são ainda mais significativas:no ano de 1880 registraram-se na Calábria 525 ho-

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micídios (41,7/100 mil habitantes), enquanto, em1900, essa mesma cifra caiu para 231 (16,9/100 milhabitantes). Scalise também observou a diminuiçãode casos de agressão pessoal registrados na região:no período de 1887 a 1889, foi apurada uma médiaanual de 9.106 agressões, ao passo que nos anos de1899 e 1900, essa média foi de 7.175 casos.5

Se a emigração de grande número de homensjovens, justamente a categoria demográfica mais impli-cada em agressões e homicídios, afastou muitos cri-mes da Calábria, é lógico pensar que também levouao aumento nas taxas de crime violento no Estado deSão Paulo, um dos principais destinos dos calabreses.Estes e outros italianos meridionais eram super-repre-sentados entre os italianos acusados de crimes em SãoCarlos no período de imigração mais intensa. Não in-cluindo os participantes da quadrilha Mangano, con-seguimos identificar a origem regional de 274 dos 421italianos acusados de crimes em São Carlos no perío-do entre a abolição e a Primeira Guerra Mundial:70,1% eram meridionais e, entre os meridionais acu-sados, 40,8% eram calabreses. Incluindo aqui os 38 in-diciados por participação na quadrilha,6 os calabresesconstituíram 37,3% dos italianos e 50,7% dos meridio-nais acusados.

Em contrapartida, o aumento nos delitos con-tra os bons costumes e contra a ordem familiar naCalábria (média anual de 373 entre 1880 e 1886 e de571 entre 1896 e 1900) parece se explicar pelo dese-quilíbrio entre os sexos, decorrente de uma emigra-ção de caráter eminentemente masculino (inclusive aemigração desacompanhada de muitos homens ca-sados), que levou a certo relaxamento dos laços fa-miliares. Em 1901, de cada cem mulheres casadas naCalábria, dezesseis tinham os maridos ausentes. Aesse respeito, Scalise afirma:

[...] o aumento dos delitos contra os bons costu-mes e a ordem da família [ocorre] graças ao ex-cessivo desequilíbrio de sexos e ao número ini-maginável de esposas que permanecem sós eprivadas do esposo, do vigilante custódio da fa-mília e de sua honra (1905, pp. 80-81).

A falta de homens na Calábria correspondiaa um excedente de homens calabreses na Améri-ca, produzindo agressões entre imigrantes motiva-das por ciúmes ou entre homens competindo pormulheres, tendência que se verifica nos inquéritose processos criminais de São Carlos. Um jovem in-tegrante da quadrilha Mangano, por exemplo,numa noite de 1896, baleou um português quecom ele havia brigado por ciúmes da “rapariga”brasileira que dormia com o calabrês.7

Italianos e crime organizado nos Estados Unidos

Ao contrário do que se observa no Brasil ena Argentina, o crime organizado de italianos edescendentes foi notável nos Estados Unidos. En-tretanto, é importante observar que as redes ma-fiosas se estabeleceram somente em algumas dascidades norte-americanas com grande concentra-ção de italianos. A literatura sobre as origens his-tóricas das máfias norte-americanas (Hess, 1998,pp. 161-174; Nelli, 1970, pp. 125-155, e 1976)aponta quatro fatores para explicar seu crescimen-to em cidades como Nova York, Chicago e outrasmenores: 1) elevada concentração de italianos me-ridionais – cerca de 80% dos imigrantes italianosnos Estados Unidos (Klein, 1989, p. 112) –, o quefortaleceu a solidariedade étnica, consolidando acoesão interna das quadrilhas e garantindo o silên-cio da comunidade italiana; 2) falta de outras op-ções de mobilidade social, especialmente nas cida-des mais antigas, devido à presença de outrosgrupos imigrantes já estabelecidos; 3) corrupçãoda polícia e controle de políticos locais, por meio,sobretudo, da capacidade de arregimentar os vo-tos de italianos nessas cidades, permitindo a impu-nidade das quadrilhas; e 4) imigração de muitosforagidos e outros criminosos italianos em buscade novas oportunidades. Certamente, a falta deoportunidades e a existência de comunidades re-

Tabela 3População e Homicídios

(Calábria, 1880-1900)

1881 1901

População 1.257.883 1.370.208

1880-1886 1896-1900

Média anual de homicídios 423 268

Homicídios/100 mil habitantes 33,6 19,6

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lativamente homogêneas – originárias de uma re-gião conhecida pelo banditismo e outras formasde crime organizado – favoreceram o desenvolvi-mento de redes criminosas. Mas somente o graude corrupção na política e na polícia locais podeexplicar a diferença entre cidades norte-america-nas com intensa presença da Máfia e outras, comoBoston, onde, apesar da grande concentração deitalianos meridionais, se observou pouca atividademafiosa (Nelli, 1970). Os imigrantes criminososconcentravam-se em cidades que, de certa forma,garantiam seu “exercício profissional”, justamenteonde era possível corromper as autoridades locais.

A proibição de bebida alcóolica apenas criounovas oportunidades para as gangues criminosasaumentarem seu lucro. Nas disputas entre quadri-lhas para controlar o tráfico de álcool, os italianos,em geral, venceram outras gangues étnicas, com-postas sobretudo por irlandeses ou judeus, o quecontribuiu muito para a consolidação do poderdas máfias.

Aqui interessa-nos mais a fase anterior à LeiSeca. Em uma análise das origens da Máfia deChicago, Humbert Nelli (1970, pp. 125-155) mos-trou que o crime “organizado” de italianos na ci-dade começou, ao final do século XIX, com pe-quenas quadrilhas, muitas vezes compostas decriminosos profissionais da Itália, especializadosem roubar de outros italianos mediante a extorsãoe a chantagem. Essas quadrilhas, conhecidas co-letivamente como a Black Hand, operavam comrelativa impunidade porque se beneficiavam coma corrupção da polícia local, a “solidariedade” deitalianos, que olhavam as autoridades norte-ame-ricanas com suspeita e tinham medo de falar, e odescaso do resto da população, que pouco se im-portava com crimes limitados à comunidade ita-liana. Em outras cidades, como Boston, com ele-vada concentração de italianos meridionais, mascom pequenos índices de corrupção policial e po-lítica, as quadrilhas não prosperaram.

Nas primeiras duas décadas do século XX, al-gumas quadrilhas italianas de Chicago cresceram eaumentaram sua lucratividade entrando no ramodos “vícios proibidos”, principalmente o jogo e aprostituição. Elas tinham fregueses de todas as et-nias e eram favorecidas pela corrupção de políti-

cos locais e da polícia, os quais protegiam essesnegócios da interferência da justiça. Uma parte im-portante desse sistema era a capacidade de os ma-fiosos arregimentarem votos italianos para políti-cos que, por sua vez, protegiam seus negóciosilícitos. Após a promulgação da Lei Seca, essas fo-ram as quadrilhas que entraram na disputa paradominar o tráfico de bebidas alcóolicas na cidade.É bem provável que a solidariedade étnica tenhaajudado as quadrilhas italianas – que nem sempreeram 100% italianas – a vencer quadrilhas de ou-tras etnias, muito embora, mesmo no auge de AlCapone e de sua organização, os italianos nuncatenham conseguido o monopólio do crime organi-zado em Chicago (Dinnerstein e Reimers, 1999, p.169). Além da lealdade familiar e da tendência asuspeitar de estranhos e autoridades, característi-cas observadas na população do Sul da Itália nes-sa época, o forte preconceito e a discriminaçãodos norte-americanos contra os italianos meridio-nais – vistos como raça inferior e semi-selvagem –devem ter fortalecido os laços solidários entre es-tes (Jacobson, 1998).

Hipóteses sobre a ausência relativa do banditismo e do crime organizado entre imigrantes italianos no Brasil

Mesmo tendo em vista as diferenças signifi-cativas entre o Oeste paulista, a Calábria e as ci-dades norte-americanas, essa discussão permiteavaliar algumas hipóteses para explicar a quaseausência de quadrilhas etnicamente organizadasentre imigrantes italianos no Brasil.

Primeiro, a literatura comparativa mostraque havia mais oportunidades para a mobilidadesocial dos italianos no Brasil e na Argentina doque nos Estados Unidos. Herbert Klein (1989)apresenta evidências de que, em comparaçãocom os Estados Unidos, os italianos no Brasil e naArgentina tinham maiores oportunidades para ad-quirirem terras ou para virarem donos de estabe-lecimentos comerciais ou industriais (cf. tambémBaily, 1983, 1999). Na ausência de outras possibi-lidades, certamente o crime se torna mais atraen-te para indivíduos ambiciosos e empreendedores.

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Podemos questionar, porém, se as oportuni-dades para a primeira geração de italianos em SãoPaulo foram suficientes para anular os atrativos dacriminalidade. Muitos conseguiram comprar sítiosou pequenas lojas, mas poucos enriqueceram. Avida dos integrantes da quadrilha Mangano de-monstra que alguns imigrantes não se interessa-vam em trabalhar a vida inteira para dar melhoresoportunidades aos filhos, preferindo enriquecerrápido com atividades arriscadas e voltar para aItália. Para os calabreses, segundo Zuleika Alvim(1986), a vida rural estava associada à miséria. Por-tanto, eles geralmente não compartilhavam o so-nho, tão comum entre os camponeses da Itália se-tentrional, de adquirir terras e tornar-se pequenosagricultores independentes, e sua aversão a serviros fazendeiros provavelmente era maior que a dossetentrionais. Tanto a pesquisa de Boris Fausto(1984), na cidade de São Paulo, como a nossa emSão Carlos mostram que havia certo número deitalianos dispostos à prática de furtos, arromba-mentos e assaltos como estratégia de sobrevivên-cia e de mobilidade social. Recrutas potenciaispara o crime organizado italiano não faltavam.

Em segundo lugar, no Brasil, a mistura de ita-lianos de diferentes origens pode ter dificultado asolidariedade do grupo, elemento importante tan-to para a coesão interna das quadrilhas norte-ame-ricanas, como para a tendência generalizada entreos italianos de não colaboração com a polícia, oque se observava no Sul da Itália e nos EstadosUnidos. Contudo, os calabreses e outros italianosmeridionais chegaram ao Brasil em número sufi-ciente para se concentrar em certos bairros urba-nos, criando as condições necessárias para o de-senvolvimento de um sentimento solidário – emSão Carlos, por exemplo, uma região próxima aocentro tornou-se conhecida como “Pequena Calá-bria”. Ademais, eles se concentravam em certascategorias profissionais, como o trabalho rural as-salariado (Alvim, 1986), o que também favoreciaa formação de redes étnicas. Em São Carlos, asocupações dos integrantes da quadrilha Manganosugerem que muitos vendedores ambulanteseram calabreses. Portanto, a presença de grandenúmero de italianos de outras regiões não pode,

por si só, explicar a raridade do crime organizadoitaliano no Brasil.

Em terceiro, as ligações entre bandidos eelite local, sobretudo latifundiários, os quais, naItália, exerciam um papel crucial para a sobrevi-vência dos bandidos, eram mais difíceis de sedesenvolver no Brasil. Na primeira geração, asdiferenças culturais e lingüísticas impediram talaproximação. E, sobretudo, os fazendeiros ha-viam trazido os italianos para trabalhar em suaslavouras e estavam preocupados em controlá-los; quando precisavam de capangas, preferiamempregar brasileiros.

Por fim, no Brasil, sobretudo nas cidades dointerior, foi difícil aos criminosos italianos corrom-perem a polícia e os políticos locais, pois estes jáestavam comprometidos com os “coronéis”. Alémdisso, italianos influentes não podiam controlaruma quantidade significativa de votos, já que amaior parte dos italianos não se naturalizou e,portanto, não votava. Como conseqüência, nãohavia moeda de troca, e as quadrilhas italianasnão podiam atuar com impunidade, como era ocaso em algumas das grandes cidades norte-ame-ricanas. Por conta disso, também, os italianos nãotinham tanto medo de denunciar as quadrilhas.

Essa discussão sugere que os fatores críticosque explicam a ausência relativa do banditismo edo crime organizado entre italianos no Brasil erama falta do apoio de uma parte da elite brasileira ea dificuldade de os italianos corromperem a polí-cia e os políticos locais. Mesmo na ausência dessesimpedimentos, a heterogeneidade da “comunida-de” italiana teria limitado a conivência e a conspi-ração de silêncio aos conflitos de certos bairros eem determinadas categorias profissionais com altaconcentração de italianos meridionais.

Apesar das condições pouco propícias parao banditismo italiano no Brasil, encontramos umaquadrilha relativamente grande, que aterrorizouas elites e outros moradores de um dos principaismunicípios produtores de café no Estado maisrico da federação, operando com relativa impuni-dade por mais de dois anos. A seguir, examinare-mos a composição e a organização dessa quadri-lha, suas relações com outros italianos e a históriade sua atuação e extinção, para identificar as cir-

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cunstâncias que permitiram seu estabelecimento esua atuação.

A composição e a organização da quadrilha

Para Charles Tilly (1990), a unidade de aná-lise nos estudos de migrações deve ser a rede,não o indivíduo, porque são as redes que setransplantam, se reconstituem e se transformamnas migrações. A quadrilha Mangano não era umarede de bandidos que imigrou já constituída daItália. Dos 38 homens indiciados por participaçãona quadrilha, Francisco Mangano e quatro outroseram da vila de Monterosso, na Província de Ca-tanzaro, Calábria, e certamente se conheciam an-tes da emigração. Esse pequeno grupo era maisvelho e, pode-se dizer, mais elitizado que o restodo bando: Mangano tinha 44 anos em 1898 e eradono de uma venda no subúrbio de Vila Isabel.Antonio Farina, 46 anos, era negociante e marce-neiro, estabelecido perto da estação de trem deSão Carlos. Antonio Morano tinha 63 anos, era ne-gociante volante e morava perto de Antonio Fari-na, aparentemente no mesmo quarteirão. LuigiGiordano, 33 anos, era carpinteiro e dono de umhotel em Torrinha. Francisco Farina, irmão de An-tonio, também era carpinteiro com 33 anos e re-sidente em Torrinha. Todos os cinco provenientesde Monterosso eram alfabetizados e casados, em-bora seja provável que alguns tivessem deixadosuas famílias na Itália.

Tanto Hobsbawm como Blok ressaltam a im-portância de laços entre bandidos e elites, no senti-do de que elas fornecem proteção, facilitam fugas ecolaboram na venda de propriedade roubada. Nãohá evidência de ligação do bando Mangano comos italianos mais ricos de São Carlos, e muito me-nos com a elite dos fazendeiros locais, mas a qua-drilha incluía integrantes ou colaboradores da pe-quena burguesia italiana da região, que ajudavama esconder e vender mercadorias roubadas, e cujosnegócios constituíam pontos de encontro do ban-do. Os donos de vendas, hotéis e restaurantes ocu-pavam uma posição estratégica para a formação deredes de relações e para coletar informações perti-

nentes sobre viagens de ricos, carregamentos demercadorias e movimentos da polícia. Os partici-pantes da quadrilha com estabelecimentos comer-ciais em outras cidades facilitavam a mobilidadedo bando, fornecendo lugares de pouso e escon-derijos. Dos indiciados, um era dono de hotel emSão Carlos, outro tinha restaurante em Torrinha, eoutros três se diziam negociantes.

Seis dos indiciados foram identificados comonegociantes ambulantes. Se acrescentarmos doiscarroceiros e um “carteiro particular”, pelo menosnove indiciados tinham profissões que implica-vam um grau elevado de mobilidade. Isso é con-sistente com a observação de Blok (2001a, pp. 26-27) sobre a tendência do banditismo em envolver“profissões móveis”, que trazem vantagens, por-que facilitam a coleta de informações sobre víti-mas em potencial e permitem o deslocamentosem levantar suspeitas. Dos outros indiciados comprofissão identificada, nove eram artesãos e so-mente seis eram trabalhadores braçais, entre elescamaradas, jornaleiros e serradores.

Na maioria dos casos, não fica claro se os in-tegrantes da quadrilha haviam participado de açõesde banditismo antes de emigrarem. No inquéritoe no processo, aparecem evidências de que trêsdeles já eram ladrões na Itália. Pasquale Gabarro,negociante ambulante de 53 anos, tinha cumpri-do pena de 24 anos na Itália.8 Vicente de MondiCeriani, segundo testemunha, veio de uma famí-lia de ladrões:

[...] elle declarante conhece toda a familia de Ce-rianni da Italia e que todos são criminosos; queCerianni era constantemente preso por delictosque praticava, tendo até esta data um seu irmãocumprindo sentença e um outro fallecido no car-cere; que alem destes dois irmãos de Cerianni, hátambém uma irmã que é uma refinadíssima ladra.9

Porém, não há esse tipo de evidência a respeitodos outros. Com certeza, eles conheceram o ban-ditismo como forma de ação coletiva na Calábria,onde era comum, mas não podemos dizer maisdo que isso sobre sua experiência anterior.

Além dos cinco de Monterosso, os outros ho-mens indiciados vieram de várias aldeias e vilas daCalábria, principalmente da província de Catanza-

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ro. Não há indicação de naturalidade para dez de-les (todos italianos, a maior parte foragidos), masé pouco provável que não fossem meridionais, jáque os outros 28 eram todos da Calábria. Desses,dezenove eram de Catanzaro, dois de Cosenza,dois de Reggio di Calábria e cinco sem indicaçãoda província. Incluindo os de Monterosso, temosinformação sobre aldeia ou vila de nascimento em24 casos. Havia pouca concentração: dois de Tor-re de Ruggiero, Catanzaro, dois de Corigliano Ca-labro, Cosenza, dois irmãos de Dinami, Catanzaro,dois irmãos de Palmi, Reggio di Calábria. Os ou-tros vieram de onze municípios distintos. Com ori-gens tão dispersas, é evidente que a maior partenão tenha se conhecido na Itália, e que o bandosó tenha se formado em São Carlos, onde foi esta-belecida a ligação de pequenas redes ou indiví-duos à rede central de Monterosso.

Havia certa concentração de calabreses emSão Carlos, o que facilitou a formação e a atuaçãoda quadrilha. As informações contidas nos registrosde casamento paroquiais, única fonte disponívelpara se inferir a procedência regional dos italianosem São Carlos, indicam que, depois dos vênetos –de longe a categoria mais numerosa, os calabresesconstituíram o segundo maior grupo de noivos ita-lianos. Na cidade, as ruas localizadas entre a esta-ção ferroviária e o mercado municipal, principalzona de comércio da cidade, eram informalmenteconhecidas como “Pequena Calábria”.

É pouco provável que os calabreses tivessemuma identidade regional forte antes de emigrar. Aliteratura sobre o sul da Itália naquela época afir-ma que as identidades eram sobretudo locais. Oscalabreses tinham em comum o dialeto e a cultu-ra regional, em que o banditismo era consideradoum meio de sobrevivência para foragidos, umavia de mobilidade social e, às vezes, segundoHobsbawm, uma forma de vingança e resistênciacontra os ricos. No Brasil, entretanto, desenvol-veu-se uma identidade regional que contrastavacom a dos brasileiros e também com a dos imi-grantes da “Alta Itália”, como se dizia na época. Écomum, nos processos criminais, os outros italia-nos referirem-se a eles como calabreses e comen-tarem a impossibilidade de entender seu dialeto.Esse tipo de categorização tende a criar fronteiras

étnicas e a reforçar a identidade do grupo (Pou-tignat e Streiff-Fenart, 1997). A origem regionalcomum e a nova identidade certamente ajudaramo desenvolvimento da confiança e da cumplicida-de necessárias para atividades criminosas colabo-rativas, e o dialeto, a guardar segredos dos nãocalabreses.

A epidemia de febre amarela que grassavapelo município de São Carlos naqueles anos facili-tou a atuação da quadrilha. Os bandidos enfrenta-vam os mesmos riscos que o restante da população,mas a doença criou boas oportunidades para rou-bos. O vírus matava pessoas, mas deixava sua pro-priedade intocada, e grande parte da elite refugiou-se em outros municípios, deixando lojas e casasdesprotegidas. A doença também causou várias bai-xas na polícia e desorganizou as forças da ordem.

É possível distinguir entre o grupo que rea-lizava os assaltos e a rede de colaboradores, quefornecia informações sobre vítimas potenciais,ajudava na venda de bens roubados e dava apoiologístico, na forma de abrigo, comida, transportee esconderijo. De maneira geral, os assaltanteseram mais novos e mais pobres, com forte ten-dência para serem negociantes ambulantes, arte-sãos ou trabalhadores braçais. A rede de apoio in-cluía sobretudo homens maduros e donos denegócios com endereço fixo. Alguns indivíduos-chave, como Francisco Mangano, pertenciam aambos os grupos. Os “espiões” podiam ser umamigo ou conhecido que falava livremente sobreo que sabia de possíveis vítimas, ou ainda inte-grantes do bando enviados especificamente paracoletar informações ou seguir vítimas potenciais.

O bando era pouco hierarquizado, caracteri-zando-se mais como uma rede do que como umaorganização. Francisco Mangano tinha o respeitode todos e geralmente liderava as operações demaior vulto, mas segmentos menores da redetambém realizavam assaltos de maneira indepen-dente. Michelangelo Monteleone reivindicavauma posição de liderança, sem, ao que parece,confrontar-se com Mangano. A colaboração deum número relativamente grande de pessoas semhierarquia é um bom indício de que havia enten-dimentos compartilhados e certa solidariedade in-terna no bando, apesar da ausência de rito de ini-

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ciação ou outro ritual formal que afirmasse aidentificação e a solidariedade entre os membrosdo grupo – nada além de um aperto de mão an-tes de saírem para um assalto. Sua composiçãoquase inteiramente calabresa – com a colaboraçãode um ou dois sicilianos, cujos nomes não cons-tam no processo, e de duas portuguesas, mulhere ex-namorada de integrantes calabreses – sugereque a solidariedade regional ou étnica dos cala-breses foi essencial para a coesão da quadrilha.

Um exemplo curioso de solidariedade en-volveu Antonio Parise, trazido por Mangano deSão Paulo para ajudar na realização de um assal-to ao trem de pagamento. O pé de Parise foi es-magado por um trem, quando ele, aparentemen-te, tentava serrar o trilho, e membros da quadrilhaorganizaram uma subscrição para ajudá-lo. Miche-langelo Monteleone, comovido pelo acidente,afirmou que: “era um companheiro seu muito va-lente e que já havia feito seis mortes”.10 Mas a so-lidariedade interna da quadrilha também se reve-lou limitada em várias desavenças sobre a divisãoda propriedade roubada.

Relações do bando com a comunidadeitaliana

É evidente que vários integrantes da quadrilhaviam o banditismo como meio de mobilidade so-cial. Em declarações e conversas com pessoas que,mais tarde, depuseram como testemunhas o princi-pal propósito dos assaltos não tinha relação comqualquer forma de protesto social, ao contrário, ointuito era enriquecer e voltar para a Itália.

Apesar de a quadrilha estar distante do mo-delo de banditismo social que Hobsbawn elabora,havia um elemento inegável de vingança social nosassaltos a fazendeiros, nas ameaças de assassinatosde autoridades locais e nas fantasias que algunsmembros do bando relataram a testemunhas. Esseaspecto de atuação e de auto-imagem talvez tenhaatraído certo nível de apoio e cumplicidade entreoutros italianos pobres, inclusive os setentrionais,para os quais não faltavam razões de aversão aosfazendeiros e às autoridades.

Os integrantes da quadrilha odiavam os fa-zendeiros, isso é patente nos autos. Há indíciosde que vários deles haviam trabalhado em fazen-das. Rafael Sabatine, segundo o testemunho deum parceiro, assassinara o administrador de umafazenda dois anos antes de sua prisão. Em outraocasião, ele ficou escondido no mato durantedois meses “por causa de um barulho que fez emuma fazenda”.11 Vicente Ceriani havia trabalhadocomo camarada na fazenda de Bento Carlos deOliveira, mas, segundo a declaração de outro réu,foi descoberto passando notas falsas aos colonose fugiu da fazenda. Como o fazendeiro o procu-rava, Ceriani “fez algumas esperas no intuito dematá-lo”.12 Ademais, os vendedores ambulantesdo bando talvez tenham experimentado a prepo-tência e a violência dos fazendeiros e seus admi-nistradores, que, normalmente, não permitiam aentrada, sem permissão de estranhos nas fazen-das. Além disso, é provável que os calabreses jánutrissem certa antipatia pelos latifundiários naItália e que suas experiências nas fazendas decafé tenham tão-somente confirmado o ódio aoslatifundiários em geral. Em uma carta (escrita em“italiano viciado”), tentando extorquir dinheiro dofazendeiro coronel Leopoldo Prado – delegadoem exercício –, os líderes do bando declararamque o assalto ao fazendeiro Joaquim Botelho deAbreu Sampaio foi “um serviço à sociedade”, e as-sinaram a carta como “Sociedade Anarchista Italia-na da Calábria” (A Opinião, 22/12/1897). Issoprovavelmente foi mais uma tentativa de assustaro coronel, do que uma declaração ideológica.

Aparentemente, o bando escrevera cartas avários fazendeiros “pedindo dinheiro e ameaçan-do-os de morte”, mas só chegou a incendiar a fa-zenda de José Ignácio de Camargo Penteado.13 Éprovável que eles tenham começado a assaltar fa-zendeiros e administradores de fazendas porquesuas tentativas de extorsão fracassaram. Assaltosbem-sucedidos ocorriam em meio a várias tentati-vas frustradas, graças a informações errôneas que,às vezes, os obrigavam a permanecer dias escon-didos no mato à espera do fazendeiro.

Se a quadrilha tivesse restringido suas ativida-des à extorsão e a assaltos a fazendeiros e outrosindivíduos abastados, talvez pudesse ter ganho cer-

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to apoio ou tolerância popular. Ao que parece, mui-tos camaradas e colonos alimentavam fantasias deincendiar fazendas como vingança pelos abusos so-fridos. No inquérito após o incêndio na fazenda deJosé Ignacio de Camargo Penteado por exemplo, apolícia inicialmente suspeitava de um camaradaportuguês que, poucos meses antes, tinha prometi-do incendiar a fazenda como vingança a uma mul-ta imposta pelo fazendeiro.14 Nesse contexto, pode-se inferir que muitos imigrantes teriam apreciado amorte de um fazendeiro ou administrador. Em SãoCarlos, estão registrados, pelo menos, três assassi-natos desse teor: um administrador de fazenda,morto por colono, um irmão de administrador,morto por camarada, e um fazendeiro, baleado porcolonos (Monsma e Medeiros, no prelo).

Contudo, o insucesso das tentativas de extor-são, sobretudo quando comparado com a eficáciadessa tática na Calábria, sugere que o apoio popu-lar ao bando, especialmente entre os não italianos,era limitado. Na Calábria, as ameaças eram maiscríveis porque os bandidos podiam incendiar cam-pos e construções ou assassinar pessoas sem opo-sição ou denúncias da população local. Em SãoCarlos, as ameaças não assustavam os fazendeirosnem outros grupos abastados o suficiente parasurtir o efeito desejado pelos bandidos, pois, mes-mo se aqueles não recebessem uma apreciação fa-vorável dos imigrantes italianos de modo geral,eles podiam contar com a proteção de capangasbrasileiros e da polícia. Ou seja, a divisão étnicaentre italianos e brasileiros tendia a esvaziar asameaças e a tornar ineficaz esse tipo de banditis-mo calabrês. Os assaltos que o bando realizoucom maior sucesso dependiam muito menos datolerância da população do que da surpresa doataque. Cumprir ameaças era mais difícil, e depen-dia da anuência popular, pois, ao fazer as amea-ças, o bando anunciava suas intenções e perdia avantagem da surpresa.

Um aspecto essencial do bandido social, re-conhecido até pelos críticos de Hobsbawm, éque, na imaginação popular, especialmente de-pois da morte, ele tende a assumir contornos he-róicos, distantes, portanto, da realidade vivida emsua carreira criminosa. Ao bando Mangano certa-mente não faltaram ousadia e coragem. Além dos

assaltos a fazendeiros e a administradores de fa-zendas, eles pretendiam assaltar o Banco União,arrombando a parede com dinamite, e prepara-vam ainda o ataque ao trem pagador da Compa-nhia Paulista. O plano, que resultou no pé esma-gado de Parise, era serrar uma parte do trilho edeixá-la no lugar, só retirando-a quando o trem seaproximasse. Antes de levar o dinheiro, eles pre-tendiam matar todos os sobreviventes do descar-rilamento, para não deixar testemunhas. Algumasde suas artimanhas certamente poderiam divertirplatéias populares, tornando-se histórias folclóri-cas, purificadas das crueldades cometidas. Logodepois de assaltar e espancar um vendedor portu-guês, por exemplo, eles enganaram a polícia, aotrocar de roupa rapidamente, chegando até a aju-dar na busca por pistas dos assaltantes.15

Se, para ganhar o apoio popular, bastava, naspalavras de Hobsbawm, viver “sem curvar as cos-tas”, os integrantes da quadrilha eram bons candi-datos a se tornar bandidos sociais. Contudo, oproblema era que eles assaltavam qualquer pessoacom dinheiro ou objetos de valor, inclusive algunstrabalhadores italianos. Até mesmo os ataques di-rigidos à elite acabavam muitas vezes prejudican-do os pobres. As emboscadas a fazendeiros, porexemplo, geralmente visavam roubar o dinheirode pagamento dos trabalhadores. Uma de suasações mais ousadas a falta de respeito evidenciasua pelos interesses dos trabalhadores: eles leva-ram o cofre de um hotel depois de doparem vá-rios hóspedes e os donos do estabelecimento, queeram italianos, com uma mistura de vinho e ópiooferecida pelos próprios ladrões. Mas a maior par-te dos doze contos apurados na caixa-forte perten-cia a camaradas e colonos hospedados no hotel,os quais certamente não eram ricos. Um dos do-nos chegou a declarar que não havia suspeitadodo ladrão que servia o vinho porque ele era “mui-to amigo dele e [de] seu sócio”.16

Às vezes, assaltos a trabalhadores motivaramdiscussão e polêmica no interior do grupo, sobretu-do porque rendiam pouco. Consta no processo que,em conversa a esse respeito, Antonio Calsone disse

[...] que fazião mal em roubar pobres homens tra-balhadores quando podiam roubar fazendeiros ri-

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cos como por exemplo Dª Mafalda Ferraz que ti-

nha muito dinheiro e que no dia seguinte vinha

de São Paulo com oitenta contos.17

Certa vez, quando esperavam um fazendeiro pas-

sar pela estrada, chegou uma turma de camaradas:

[...] queriam, uns que fossem atacados, e outros

não; que Michelangelo era um dos que insistia

pelo ataque, dizendo que era preciso pegar o pei-

xe grande e o peixe pequeno; a isto disse Cerian-

ni que não concordava pois se tal fizessem po-

diam com isso lucrar uns duzentos mil réis,

quando poderiam lucrar contos de réis; que em

vista disto ficou resolvido que nada se fisesse e

assim foi.18

Mas apesar dos conflitos internos a quadrilha, não

mostrava piedade quando se tratava de dinheiro.

Pode-se ler nos autos que certa vez um colono

[...] foi convidado por Paschoal Bolonha, Francis-

co Pillege e Luige Nery para darem um passeio e

matarem o bicho19 e quando chegaram ao fim da

rua General Ozorio ahi foi seguro por Luige Nery

e Paschoal Bolonha que armados de facca e re-

vólver o ameaçaram enquanto que Francisco Pil-

lege lhe tirava de uma perneira os setecentos mil

réis que ahi tinha guardado.20

Alguns integrantes eram capazes de muita cruelda-

de por pouco lucro. Segundo Antonio Monteleone,

Pasquale Gabarro tinha lhe contado que

[...] no mez de Janeiro na estrada que desta vae

para Belem do Descalvado, sem, digo, se encon-

trou com um camarada a quem convidou para

trabalhar consigo e conseguindo leval-o para

dentro do matto, arrancando do revólver, o inti-

mou a lhe entregar todo o dinheiro que levava, e,

como este só tivesse quatro mil réis, tomou-lhe,

deu-lhe uma surra e largou-o; que mais avante

encontrando-se com outro, a quem fez a mesma

intimação, conseguindo obter cinco mil réis, des-

fechando-lhe em seguida um tiro de revólver, ma-

tando-lhe e enterrando-lhe no lugar. [...] sabe que

muitos camaradas de fazenda, foram roubados

por esses indivíduos.

Ao que parece, a quadrilha pouco se preo-cupava em receber apoio ou ter a cumplicidadede outros italianos ou de brasileiros pobres; pre-feria, ao contrário, fazer ameaças de morte paragarantir o silêncio de quem soubesse de suasações. Os depoimentos do processo mostramque, apesar de desconhecerem os detalhes de as-saltos, muitos italianos sabiam que se tratava deladrões. Um dos donos do hotel, cuja caixa-fortefora roubada, quando perguntado se sabia algosobre os outros assaltos, “respondeu que seus au-tores devem ser todos os indivíduos que seacham presos por serem geralmente conhecidoscomo gatunos”.21 Outra testemunha afirmou

[...] conhecer a todos estes indivíduos como la-drões de profissão [porque] morando perto dacasa de Pepino Rechelle frequentada constante-mente por estes individuos, teve occasião de verpor mais de uma vez que sahiu de casa alta noi-te, armados de espingardas, garruchas, revólveres,faccas e navalhas, recolhendo-se sobre a madru-gada, dormindo de dia ou nada fazendo, não lheconstando que exerceu qualquer outra profissão.22

Desconfiança para com a polícia e o silênciodos italianos

O bando aparentemente assassinou um ho-mem por ele ter falado demais.23 Em contraparti-da, alguns dos integrantes da quadrilha gostavamde alardear seus feitos a outros italianos, e não ti-nham medo de serem denunciados. Isso pode serexplicado apenas parcialmente pela divisão étni-ca entre italianos e brasileiros – dada a diferencia-ção marcada entre os meridionais e outros italia-nos, não é claro por que italianos do norte teriamprotegido bandidos calabreses. Para uma análisemais detida, é preciso examinar as relações da co-lônia italiana com as autoridades brasileiras.

Os italianos, de maneira geral, não confia-vam nas autoridades, especialmente na polícia.Como em outras cidades do Estado, o número deitalianos cresceu rapidamente em São Carlos du-rante os anos de 1890, e as elites locais tendiam aculpar a comunidade italiana por crimes e desor-dens (cf. Fausto, 1984).24 Além disso, sabe-se que,

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não importa a época, os pobres no Brasil sempresofreram abusos policiais, e nesse período de in-tensa imigração italiana a polícia usava os mes-mos métodos costumeiros ao tratar com italianos,o que causava atritos freqüentes. Para muitos, aatuação policial era deliberadamente preconcei-tuosa em relação à colônia. Os inquéritos policiaise processos criminais de São Carlos incluem vá-rios relatos em que a polícia abusava da sua au-toridade, e, certamente, houve muitos outros deespancamentos e abusos que as vítimas não ousa-ram denunciar. Havia casos, por exemplo, de po-liciais que espancaram e roubaram italianos, oufurtaram dinheiro de italianos presos.25 Em 1896,praças da polícia espancaram onze italianos pre-sos em uma venda, o que levou à morte de Giu-seppe Sciarra. O jornal sancarlense Ordem e Pro-gresso fez comentários desfavoráveis sobre o casoe o cônsul italiano reclamou, perturbando o che-fe de polícia do Estado.26 Segundo o que lhe foiinformado, o espancamento se originou da rivali-dade entre o dono da venda e o dono de outroestabelecimento freqüentado por policiais. Essesproblemas não se limitavam a São Carlos: as re-clamações do cônsul italiano ao chefe de políciamostram que italianos sofreram a violência poli-cial em todo o Estado.27

Por outro lado, a polícia encontrou nos ita-lianos um grupo mais petulante, e mais bem ar-mado, se comparado à população pobre do Bra-sil. Nesse contexto, não é de surpreender quetenha havido pelo menos dois casos de italianosque atiraram em policiais no centro da cidade. Emum desses eventos, o policial baleado morreu e oitaliano conseguiu fugir. As testemunhas, incluin-do cinco italianos, disseram que não reconhece-ram o assassino, o que podemos duvidar.28 O ou-tro aconteceu em plena luz do dia, diante demuitas pessoas. Segundo uma das testemunhas, otiro de espingarda não acertou o soldado, mas“juntou muita gente, uns como que para aplaudi-rem e outros por curiosidade”.29

Em primeiro de janeiro de 1894, a cidadepresenciou uma batalha aberta na avenida SãoCarlos, principal via da cidade, entre italianos,que atiravam de dentro das casas, e a GuardaNacional.30 A batalha começou logo depois de a

Guarda tentar dispersar uma multidão de italia-nos que a vaiava no Largo de Santa Cruz, centrocomercial empreendido por italianos na cidade.Durante o tiroteio, um italiano foi baleado e mor-reu. Quase todos os brasileiros que depuseram noinquérito instaurado, representantes da classe mé-dia urbana, estavam convencidos de que o italia-no fora baleado por um compatriota. Em contra-partida, as testemunhas italianas ou disseram queo autor do tiro fatal havia sido um oficial da Guar-da ou declararam ignorância a esse respeito. Apóso incidente, um dos líderes da colônia italiana,conhecido como Del Simoni,31 percorreu as ruasda cidade, segundo um farmacêutico brasileiro,

[...] gritando e chamando as armas os seus compa-triotas. Quando isso fasia revelava-se perfeito anar-chista e assim que descompunha com as palavrasmais injuriosas, como iguais as filhos de uma putae outras semelhantes a estes, a Guarda Nacional eaos brasileiros em geral. A proporção que elle as-sim procedia os italianos moradores nas ruas poronde elle passava iam se reunindo e se armando.[...] Não demorou dois grupos de italianos acha-vam-se formados, um mais ou menos em frente aoHotel do Comércio, outro em frente a casa de delSimoni; grupos estes que se podia calcular numcento e tanto a duzentos homens. [...] Sabe maisque é público e notório que del Simoni procurounessa cidade organisar um batalhão só compostode italianos com fim disia elle de distrahir-se e nãoauxiliar a justiça e nem o Brasil.32

Esse relato foi confirmado por várias teste-munhas brasileiras. Del Simoni dirigiu-se à esta-ção, com um grupo armado, exigindo do chefedesta o envio de um telegrama ao cônsul italianoem São Paulo. A Guarda Nacional saiu à procurados italianos armados, mas eles haviam se disper-sado, evitando uma nova confrontação. O portu-guês Gaspar Berrance, tenente da Guarda Nacio-nal envolvido nesse conflito, depois se tornoudelegado de polícia e foi o responsável pela pri-são da quadrilha Mangano.

Outros conflitos podem ser observados duran-te a epidemia da febre amarela em São Carlos. Aatuação dos responsáveis pelo serviço sanitário, in-vadindo casas e removendo doentes à força, cau-sou vários distúrbios envolvendo italianos e outros

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imigrantes, o que aumentou a desconfiança dessapopulação em relação às autoridades.33

O atrito agravou-se em função das tentati-vas desastradas da polícia em descobrir quematuava na quadrilha Mangano. Depois do assaltoao fazendeiro Joaquim Botelho de Abreu Sam-paio, o qual foi baleado e, ao ser consideradomorto pelos bandidos, deixado na beira da estra-da,34 o delegado de São Carlos prendeu todos ositalianos que estavam na fila do banco aguardan-do para depositar dinheiro, supondo, de manei-ra grosseira, que qualquer italiano com dinheiroseria suspeito. Logo depois teve de soltá-los porfalta de provas.35 O coronel Leopoldo Prado – fa-zendeiro e delegado em exercício nesse período –agiu de forma especialmente violenta em suastentativas de descobrir os autores do crime. Seusmétodos transparecem no inquérito a respeitodo italiano Paulo Lafarina, o qual ameaçava-o demorte após ter sido preso por ele em duas oca-siões. O advogado Rodolpho Faria disse a umatestemunha que o coronel

[...] era violento e arbitrario, pois tinha por sabi-do arrancar a confição dos réus por meio deameaças, tanto assim que diversos italianos sequeixavam de tais excessos, que um italiano jáfôra a sua casa consultal-o sobre a resolução,que tinha tomado de assassinar o Coronel Leo-poldo Prado a quem elle doutor Rodolpho dis-suadira desse intento, que mais tarde o mesmoindividuo [...] voltava novamente ao seu escrip-torio insistindo em querer realizar o assassinatodo Coronel Leopoldo Prado e que elle doutorRodolpho o ameaçara em denunciar caso elle in-sistisse em querer praticar o crime que em vistadisso o italiano se retirara e se embarcara notrem das onze horas [...]. [I]sso era motivado pe-las inúmeras prisões feitas pela autoridade paraaveriguações sobre o assalto do cidadão Joa-quim Botelho.36

Segundo o doutor Rodolpho, que parece tersoltado vários italianos presos pelo delegado,com pedidos de habeas corpus, “por diversas ve-zes ouvira de diversos italianos ameaças contra apessoa do Coronel Leopoldo Prado caso elle con-tinuasse a prender a torto e a direito a fim de des-cobrir os assaltantes de Joaquim Botelho”.

O valor da publicidade

Em conseqüência dos conflitos entre italia-nos e polícia, os membros da quadrilha Manganonão tinham muito medo de denúncias, tanto que,às vezes, os documentos sugerem que eles que-riam publicidade, e não sigilo, ao menos no inte-rior da comunidade italiana. Michelangelo Monte-leone, um dos líderes do bando – negocianteambulante de 28 anos, sem moradia fixa que sehospedava muitas vezes na casa de FranciscoMangano e era o maior divulgador dos feitos dobando.

Claramente, ele queria ampliar sua fama dehomem poderoso e valente. Certa vez, contou aoutro negociante ambulante que não integrava obando: “em São Carlos somos nós que mandamos;eu sou o chefe e devia também ser o delegado depolícia”.37 A respeito do assalto ao fazendeiro Joa-quim Botelho, ele disse a um negociante “que foielle que mais coragem revelou na occasião [...]”.38

O dono de uma hospedaria também comentouque “ouvio [Monteleone] dizer a diversos patríciosseus que era elle Monteleone quem mandava emSão Carlos”.39 Ao vangloriar-se de suas peripécias,Michelangelo ameaçava de morte quem contasseàs autoridades, mas tudo indica que ele apreciavaa divulgação de suas proezas entre os italianos.

Os outros integrantes da quadrilha não semostravam preocupados com sua tagarelice. Aoque parece, essa publicidade lhes era convenien-te. Eles também queriam ser respeitados e temi-dos, e Monteleone sistematicamente retratava obando como uma organização muito mais pode-rosa do que era na realidade. Caracterizar a qua-drilha dessa maneira – poder, ousadia, êxito e, so-bretudo, impunidade – servia para atrair novosparticipantes. O processo indica que Michelange-lo foi o principal recrutador do bando. Ele sonha-va em realizar grandes assaltos e voltar para a Itá-lia como um homem rico, e tentava estimular osmesmos desejos em possíveis integrantes da qua-drilha. Em São Paulo, por exemplo, Monteleoneconvidou Salvatore Spadari

[...] para vir a São Carlos, aonde se tornava facil apratica de roubos, devido á frebre amarella; alle-

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gando Spadari não poder vir a São Carlos, por serconhecido da Policia, Monteleone insistia dizen-do que viriam juntos a estação de Colonia, ali de-sembarcariam seguindo a pé para São Carlos,onde podiam chegar de noite e immediantamen-te tractariam de matar o delegado e o carcereiroe uma vez feito isto, ficariam a vontade porque ossoldados estavam morrendo todos de febre ama-rella e que uma vez que juntassem uns oitentacontos iriam embora para a Itália.40

Em várias conversas com o negociante am-bulante Rafael Lagrutencia, Monteleone narravaos assaltos e lhe convidava para participar:

Encontrando-se outra occasião em São Paulo comMonteleone, este convidou a elle declarante paravir para São Carlos, dizendo elle declarante nãohaver aqui interesses devido à febre amarella,Monteleone insistindo disse a elle declarante queviesse, que era uma occasião muito boa para ar-ranjar dinheiro e que se pegava n’um individuoqualquer, se derrubava no chão e se matava e quedez mil réis que tivesse já servia [...]. Declarou maisque Monteleone lhe fez o seguinte convitte e pelaseguinte forma: “Oh Raphael, você quer vir conos-co para roubarmos o trem de pagamentos que trazsempre muito dinheiro? Nós somos muito compa-nheiros, o trem quase sempre chega aqui de noi-te; nós vamos para fora da cidade, cortamos os tri-lhos, fazendo descarrilhar o trem e tomamos todoo dinheiro!?” que elle declarante, sendo homemtrabalhador, não acceitou semelhante convitte. De-clarou mais que egual convite recebeu de Monte-leone para assaltarem o Banco União na colonia,dizendo Monteleone ser isso muito faccil porquebastantes companheiros armados de espingardasmatariam as poucas pessôas que guardavam oBanco e roubariam todo o dinheiro. Declarou maisque tendo recebido diversos convittes do mesmoMonteleone para a pratica de muitos outros rou-bos e tendo dito a este que um dia se sahiria malpois que podia ser preso, Monteleone lhe dissenada recear visto que havendo entre todos oscompanheiros feito uma sociedade se deffende-riam uns aos outros da seguinte forma: “Si algumdos companheiros fôsse preso e processado, osoutros justariam advogado para sua defesa e nocaso de que fossem presos muitos, ainda poderiamser libertos por meio de um assalto á cadêa e des-ta maneira, dariam egualmente a liberdade uns aosoutros presos à sociedade”.41

Além de construir a reputação dos bandidose recrutar novos integrantes, essas representaçõesserviam para transmitir a impressão de poder eimpunidade, intimidando os italianos para quenão os denunciassem, quando questionados pelapolícia. Talvez o grupo mais importante a ser con-trolado fosse integrado pelos participantes perifé-ricos do bando, os quais forneciam serviços deapoio, mas não participavam diretamente nos as-saltos. O carroceiro Giuseppe Giglioti, que às ve-zes transportava mercadorias roubadas pela qua-drilha, contou

Que uma occasião, tendo elle declarante trans-portado desta cidade para Visconde do Pinhal al-guns jacás com queijos pertencentes a Michelan-gelo, na volta, vindo este em sua companhia, emconversa lhe narrou o seguinte: que há tempos ti-nha dado um roubo na casa de um espingardei-ro na rua de São Carlos e que nada tinham des-coberto até agora; que igualmente se tinha dadoa mesma rua um roubo de onze contos e queigualmente estava por descobrir e que no entan-to n’elle tomaram parte Affonso Pugliese, Salva-dor Spadari, Cosme Scorsa Favo e outros cujosnomes não citou que formão uma sociedade po-derosa; que ninguem pode com ella á qual elleMonteleone pertence, assim como muitos outros,narrando-lhe igualmente o assalto ao fazendeiroJoaquim Botelho [...]. Que Monteleone lhe contouainda que esta sociedade operava em muitos lo-gares, inclusive no sertão; que ao elle declarantedespedir-se de Monteleone, este lhe disse quenada revelasse do que ouvio, por que sinão lhecortarão a cabeça.42

O guarda-livros de Francisco Mangano ne-gou todo conhecimento dos crimes no primeirointerrogatório porque, segundo sua confissão pos-terior, estava “receoso de ser assasinado por algumdos individuos envolvidos no mesmo crime quelhe é imputado, a exemplo do assassinato de An-tonio Hyppolito nesta cidade, que foi victima dasua indiscripção sobre factos que não lhe eram ex-tranhos”. Ele confessou ter escrito as cartas amea-çando José Ignácio de Camargo Penteado, cuja fa-zenda foi incendiada, e admitiu que sabia dealguns dos assaltos. “Declarou mais que Mangano

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o ameaçou de morte caso elle declarante revellas-se alguma cousa do que visse ou soubesse.”43

Prisão e desmantelamento da quadrilha

O que destruiu a quadrilha não foi o traba-lho da polícia nem alguma denúncia de outro ita-liano, mas a traição interna. Depois do assalto aJoaquim Botelho, Antonio Farina, um dos quepertencia ao grupo de Monterosso, escreveu umacarta anônima denunciando vários participantes,os quais foram presos, mas, em seguida, liberta-dos por falta de provas. Depois do roubo à casacomercial de dois turcos em fevereiro de 1898,Farina denunciou novamente os outros envolvi-dos, apesar de ter, aparentemente, participado daação. Desta vez, vários integrantes contaram frag-mentos do que havia ocorrido, possibilitando queo delegado prendesse a maior parte da rede emmarço desse ano.44 Outros acusados não forampresos, o que sugere que fugiram e nunca maisforam encontrados. O motivo dessas denúnciasnão é claro. É pouco crível que fosse um desejode sair da criminalidade: dez anos depois, Farinaseria preso por recepção de bens roubados.45 Asdesavenças sobre a divisão dos bens roubadostalvez tenha motivado as delações. Os dois rou-bos denunciados por Farina provocaram discus-sões, e parece que o desentendimento sobre a di-visão do que se apurou no roubo dos turcos foiespecialmente intenso. Denunciar os companhei-ros seria, então, uma forma de vingança pela di-visão desigual dos bens roubados.

O inquérito estendeu-se por vários meses, eo promotor só apresentou sua denúncia ao finalde outubro. Em parte, o atraso deveu-se à epide-mia de febre amarela, visto que a cadeia de SãoCarlos se tornou um foco de infecção, levando àmorte alguns acusados e à decisão de transferirmuitos dos presos.46 Domenico Putrini, um dosacusados, acometido da febre, fugiu do hospitalde isolamento, aparentemente subornando oguarda e os enfermeiros.47 Em meio ao inquérito,o próprio delegado Berrance contraiu a doença,sendo obrigado a suspender as atividades até seurestabelecimento.48

Na cadeia, Michelangelo Monteleone elabo-rou manifestações mirabolantes e, sob alguns as-pectos, revolucionárias, do poder e dos planos daquadrilha:

[...] que achando-se detido na mesma prisão emque se acha Michelangelo Monteleone, este emconfidencia lhe revelou o seguinte: que pertencea uma grande associaçãó composta de cincoentamembros entre os quaes estava tractado o seguin-te plano: Primeiro, os companheiros que se achamem liberdade o que se achassem em liberdade, to-dos reunidos assaltassem a cadêa onde se achas-sem presos os seus companheiros matando assentinellas, o carcereiro e em seguida o delegadode policia Gaspar Berrance dando immediata li-berdade aos companheiros; que era plano destaassociação assaltar em primeiro logar ao BancoUnião na colonia, ao seu gerente Bento de Abreuquando este fosse a fazenda fazer pagamentos, aVicente e por ultimo a cada um por sua vez a to-dos os fazendeiros ricos deste e de outros muni-cipios [...] que fazia parte desse plano o assassina-to das autoridades de São Carlos a quem em tempodirigiram uma carta de ameaça e intimação paradepositar certa quantia; [...] Que esta associaçãoesta ramificada por diversas localidades do Estadosendo a sede principal – São Paulo.49

É impossível dizer até que ponto Michelan-gelo acreditava nisso, mas certamente queria inti-midar os outros presos para que não falassem aodelegado o que sabiam sobre a quadrilha. Eletambém aproveitava sua platéia cativa para con-fundir a investigação, tentando implicar váriosinocentes nos assaltos. Disse a pelo menos umpreso que o chefe da quadrilha era Rafael Spada-ri, nome que nem aparece nas declarações dosoutros acusados. O delegado Gaspar Berranceacreditou em muito do que Michelangelo disse,escrevendo ao chefe de polícia que a quadrilhaestava ramificada por todo o Estado e que ele,Berrance, estava ameaçado de morte.50

Vários integrantes do bando falaram profu-samente quando interrogados pelo delegado, qua-se sempre acusando os outros e minimizando suaprópria participação. As ameaças de morte torna-ram-se ineficazes, uma vez que a maioria dosmembros estava presa ou foragida. Além disso, aviolência do delegado era convincente o bastante

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para minar a solidariedade do grupo e superar omedo da vingança dos companheiros.

Em julho de 1898, com o restabelecimentodo delegado e a divulgação das conclusões do in-quérito, São Carlos entrou em clima de celebraçãopública. As elites da colônia italiana tiveram par-ticipação proeminente nas comemorações. O jor-nal A Opinião (9/7/1898) publicou vários artigoselogiando o delegado Berrance incluindo um es-crito em italiano. Entre os que participaram de umato público de reconhecimento a Berrance pelosserviços prestados à comunidade sancarlense es-tava o italiano Del Simoni, o mesmo que suscita-ra um levante da comunidade italiana contra apolícia no início de 1894 (A Opinião 12/7/1898).Em agosto, o professor de música Antonio Mug-nai, regente da banda italiana da cidade, apresen-tou uma nova composição no Theatro São Carlosintitulada “Dobrado Berrance”, e ofereceu, ao fi-nal da execução, a partitura ao delegado (Jun-queira, 1998, p. 96; A Opinião, 2/9/1898).

Conclusão

A relativa ausência do crime organizado edo banditismo envolvendo italianos no Brasil, emcomparação com a Itália meridional e com as ci-dades norte-americanas, certamente não se expli-ca pela hipótese de que faltava, entre os italianosque emigraram para o Brasil, indivíduos dispostosa colaborar em empreendimentos criminosos. Obando Mangano podia chamar amigos e conheci-dos de várias cidades paulistas para ajudar emações específicas. Segundo a pesquisa de BorisFausto (1984), não eram poucos os ladrões e osgatunos italianos atuantes na cidade de São Pau-lo na época de imigração em massa. Eles levaramesse tipo de ação a tal nível de sofisticação quesugere sua profissionalização no crime ainda naItália. Entre a população de imigrantes sicilianosque chegaram aos Estados Unidos no final do sé-culo XIX e início do XX, havia uma minoria nãodesprezível de jovens mafiosos (chamados pic-ciotti), os quais mais tarde passaram a atuar nasquadrilhas urbanas norte-americanas (Hess, 1998,pp. 162-163). Não há razão para supor que a na-

tureza da imigração calabresa para o Brasil fossemuito diferente. Temos evidência de que algunsintegrantes da quadrilha Mangano já eram crimi-nosos na Calábria e suspeitamos que vários ou-tros já tivessem algum grau de envolvimento como crime antes de emigrar. O banditismo era bas-tante conhecido nas comunidades rurais da Calá-bria; estava, pode-se dizer, inserido na vida coti-diana dessa população.

A heterogeneidade da colônia italiana no Es-tado de São Paulo tampouco é suficiente, por sisó, para explicar a raridade do banditismo e docrime organizado entre imigrantes italianos noBrasil. No período de 1878 a 1902, mais do queum terço dos imigrantes italianos que aportaramno Brasil eram meridionais, e estes se reuniam es-pecialmente no Estado de São Paulo (Trento,1989, p. 39). Em São Carlos, os calabreses e ou-tros meridionais concentravam-se em certos bair-ros e em determinados ofícios, facilitando a cons-piração do silêncio – a famosa omertà – edificultando as investigações policiais, ainda queem menor escala se comparado à Itália ou aos Es-tados Unidos. A demais, a desconfiança da políciageneralizou-se entre os italianos, e o caso do ban-do Mangano ilustra como era possível usar a inti-midação para impedir denúncias. No entanto, apresença de muitos italianos setentrionais em SãoCarlos talvez explique vários dos depoimentos in-criminadores apurados após a prisão da quadri-lha,51 assim como o evidente alívio entre as elitesda colônia italiana, as quais só podiam ver a atua-ção dos bandidos compatriotas como uma amea-ça a seus interesses materiais e uma vergonhapara a comunidade.

De acordo com a evidência apresentada nes-te artigo, a ausência de vínculos com elites bra-sileiras e a dificuldade de corromper as autorida-des locais explicam melhor por que o banditismoitaliano não se consolidou no Estado de São Pau-lo. Os fazendeiros não precisavam dos serviçosde bandidos italianos porque já tinham capangasbrasileiros, que, alias, eram mais confiáveis para arepressão de imigrantes. Em relação à corrupçãoda polícia, era praticamente impossível, já que os“coronéis” mantinham o controle da política e dasautoridades locais. Sem ter capacidade de neutra-

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lizar as forças repressivas do Estado, os bandidositalianos no Brasil não gozavam da impunidadenem sempre podiam contar com o silêncio da co-munidade italiana, sobretudo se levarmos emconta a heterogeneidade desta.

As circunstâncias particulares que permiti-ram à quadrilha Mangano atuar com impunidadepor mais de dois anos em São Carlos reforçamnossa explicação pelo fato de que o banditismoitaliano no Brasil tenha sido bastante raro. Acre-ditamos que o sucesso dessa quadrilha resultouda combinação de dois fatores, a saber, certaconcentração de calabreses em São Carlos, sobre-tudo em alguns bairros da cidade, e a epidemiade febre amarela entre 1896 e 1898, que atingiugravemente o município e neutralizou as forçasda ordem.

Embora ainda não existam dados conclusi-vos sobre o número de calabreses no município,há indícios de que era relativamente alto. Exem-plo disso é o fato de existir na cidade uma zonachamada “Pequena Calábria”, além da presençaexpressiva de calabreses nos processos criminais,como réus ou vítimas, e ainda do número consi-derável de noivos calabreses que constam nacúria diocesana. Essa concentração étnica teria fa-cilitado o recrutamento de uma rede de partici-pantes e colaboradores, assegurando o silênciode pelo menos uma parte da colônia italiana.

A epidemia afugentou os mais abastados,desorganizou a polícia e abriu espaço para a açãodo bando. As vantagens de propriedades sem mo-radores e de soldados doentes ou mortos são evi-dentes. Além disso, a ausência das elites permitiauma atuação mais aberta, porque o grupo maispropenso a colaborar com a polícia e mais inte-ressado em denunciar o bando acabou por ausen-tar-se da cidade. Dessa maneira, a epidemia quese alastrou por São Carlos facultou aos bandidos,temporariamente, a mesma impunidade de queseus congêneres na Itália e nos Estados Unidosgozavam por causa da proteção de parte das eli-tes ou da corrupção policial. São Carlos servia, in-clusive, como base segura para assaltos e arrom-bamentos em municípios vizinhos.

Este caso excepcional do banditismo italianono Brasil também fornece evidências relevantes

sobre as formas de solidariedade e as clivagens nacomunidade italiana. O entendimento mútuo doscalabreses e suas disposições antiestatais e antila-tifundiárias ajudaram na cooperação interna dobando. Ademais, a falta de uma definição claradas fronteiras da quadrilha, no sentido de saberquem era ou não integrante, o que se evidenciacom a ausência de rituais de iniciação, e o fato deeles não se preocuparem em manter suas ativida-des em sigilo sugerem que os bandidos contaramcom a anuência da maioria dos calabreses.

Nas fontes disponíveis, é mais difícil perce-ber as atitudes dos italianos setentrionais. Sabemosque o preconceito contra os meridionais, conside-rados ignorantes, pouco civilizados e violentos,era amplamente difundido no Norte da Itália nasprimeiras décadas após a unificação. No Brasil, asdiferenças regionais demoraram em se diluir, ape-sar dos brasileiros colocarem todos os italianos namesma categoria. Nas entrelinhas dos processos,pode-se observar a evidência do preconceito anti-meridional. Os calabreses são chamados, por ou-tros italianos, de “calabreses”, ao passo que quasenunca se encontra referências às origens regionaisde vênetos, friulanos ou piemonteses. Essa ten-dência nominativa tem um paralelo no hábito, evi-dente nos autos da época, de se referir aos negrosbrasileiros como “pretos”, e não como brasileiros.Da mesma maneira que os negros não eram acei-tos como cidadãos e semelhantes por brasileirosbrancos, os calabreses eram vistos pelos outrositalianos como um grupo estranho e mal assimila-do pela civilização italiana. Mais tarde, as cliva-gens no seio da colônia italiana no município fo-ram expressas pela fundação, em 1900 e 1902, deduas sociedades distintas: a “Meridionali Uniti Vit-torio Emmanuele III” e a “Dante Alighieri”, respec-tivamente. A primeira congregava, conforme suadenominação explicita, os italianos do sul (Truzzi,2000, p.74).

Devido ao preconceito contra os calabresese aos assaltos da quadrilha a italianos, é duvido-so que italianos de outras regiões apoiassem ouaplaudissem as atividades do bando. Ao mesmotempo, fica evidente na leitura do processo crimi-nal que muitos suspeitavam de suas atividades,mas não os denunciavam, sobretudo por causa do

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medo e da desconfiança em relação à polícia. Issonão era específico a São Carlos e, portanto, nãopode explicar por que essa cidade, e não outras,constituiu uma base adequada para o banditismonaqueles anos. Entretanto, juntamente com a exis-tência de uma comunidade significativa de cala-breses e a epidemia da febre amarela, a descon-fiança da polícia, generalizada entre os italianos,facilitou, com certeza, a atuação do bando. Tudoindica que grande parte dos italianos se sentia in-comodada não apenas pela quadrilha mas tam-bém pela polícia, e não queria colaborar com ne-nhum dos lados. De fato, tanto a quadrilha comoa força pública costumavam usar de violênciapara intimidar e roubar trabalhadores italianos.

Embora não tenhamos dados sobre as ori-gens regionais das elites italianas que celebrarama prisão da quadrilha, é mais provável que fos-sem setentrionais. No processo contra a quadri-lha Mangano, aparece uma pequena burguesiacalabresa representada por donos de vendas, res-taurantes e pensões, mas não temos notícia dapresença de italianos meridionais entre os gran-des comerciantes da cidade na última década doséculo XIX. Na época de atuação da quadrilhaMangano, pelo menos um italiano, Aurelio Civat-ti, já era fazendeiro importante em São Carlos, ese tornaria o primeiro vereador de ascendênciaitaliana nesse município (Abreu, 2000). Ou seja,já existia uma pequena elite italiana, e muitas desuas preocupações, sobretudo no que diz respei-to a crimes contra o patrimônio e a ordem públi-ca, eram concordantes com as da elite brasileira.Em meados de 1897, por exemplo, Civatti sofreuo incêndio criminoso da máquina de beneficiarcafé de sua fazenda.52 Parece-nos que a chegadade cada vez mais italianos pobres, entre eles par-celas de meridionais, considerados, por sua vez,perigosos e pouco civilizados, criou certa aproxi-mação entre italianos abastados e a classe domi-nante brasileira. A transformação de Del Simoni,de líder de um protesto armado contra a GuardaNacional a adulador do delegado Berrance, é em-blemática das mudanças por que passava a eliteitaliana da cidade.

NOTAS

1 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixas 272 e 273, n. 90, 1898, FranciscoMangano e outros, depoimento de José de AraújoCintra no inquérito, 6/1/1896; João Manoel de Cam-pos Penteado, delegado em exercício, São Carlos, aBento Bueno, chefe de polícia, 26/12/1895; Arqui-vo do Estado de São Paulo, C02803, Polícia, 1895; AOpinião (São Carlos), 9/7/1898.

2 Fundação Pró-Memória de São Carlos, Criminais,caixa 333, s./n., 1897, Paulo La Farina.

3 O artigo de Blok criticando Hobsbawm foi publica-do originalmente em 1972.

4 Para uma boa introdução à literatura sobre banditis-mo na América Latina, ver Joseph (1990) e as res-postas publicadas em número subseqüente da mes-ma revista (Slatta, 1991; Singelmann, 1991; Birkbeck,1991; Joseph, 1991).

5 Quanto ao aumento de furtos, raptos, extorsões,trapaças e fraudes, Scalise observou que, na provín-cia de Catanzaro, isso se deveu aos danos causadospela filoxera, uma praga que destruiu as riquíssimasvinhas dos habitantes de Nicastro, um dos municí-pios mais importantes da província. Também entre1896 e 1899, em muitas aldeias do norte de Catan-zaro, a mosca oleácea anulou por vários anos oproduto das oliveiras.

6 Estamos supondo aqui que todos fossem calabre-ses. Temos informação sobre a naturalidade de 28,e todos esses eram calabreses, o que sugere que osoutros dez também o eram.

7 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 213, n. 243, Salvador Spadari, 1896.

8 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Antonio Monteleone.

9 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, depoimento de Francesco Lascalla.

10 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Antonio Farina.

11 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Francisco Farina.

12 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Antonio Monteleone.

13 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Ernesto Falcone.

14 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, depoimento de Felix Martins Corrêa.

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15 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, depoimento de Angela Romana. A Opi-nião, 23/7/1898.

16 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Francisco Lorijo.

17 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Antonio Calsone.

18 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Antonio Monteleone.

19 Expressão que designa tomar bebida alcoólica.

20 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Antonio Calsone (grifonosso).

21 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Francisco Lorijo.

22 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, depoimento de Rafael Lagrutencia.

23 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Achilo Aielo.

24 A tendência de culpar imigrantes pelo aumento dacriminalidade manifesta-se em muitos países e emdiversos momentos históricos (Tonry, 1997).

25 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 333, n. 2242 (1895); caixa 333, n.1207/3644 (1897).

26 Bento Bueno, chefe de polícia, ao delegado de po-lícia de São Carlos, São Paulo, 24 de abril de 1896,Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 334, n. 2235 (1896).

27 Arquivo do Estado de São Paulo, Polícia, várias latas.

28 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 279, n. 3719 (1895).

29 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 194, n. 105 (1889), Giuseppe Nanc-ci Pizzuco, depoimento de Luiz Barbosa Corrêa.

30 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 462, s./n. (1894). Este conflito é dis-cutido com mais detalhe em Monsma, 2000.

31 Segundo um oficial da Guarda Nacional, o nome(ou sobrenome) verdadeiro de Del Simoni era Fe-naccio (depoimento de Augusto Souza Franco).

32 Depoimento de José Florêncio de Albertim Duarte.

33 Delegado de São Carlos a chefe de polícia (telegra-ma), 5/5/1896, Arquivo do Estado de São Paulo,C02832, Polícia; Rodolpho Faria a chefe de polícia,2/5/1897, Arquivo do Estado de São Paulo, C02844,Polícia; Rodolpho Faria a chefe de polícia (telegra-

ma), 30/4/1897, Arquivo do Estado de São Paulo,C02847, Polícia; Delegado de São Carlos a chefe depolícia (telegramas), 30/4/1897 e 4/5/1897, Arquivodo Estado de São Paulo, C02849, Polícia.

34 Sampaio sobreviveu.

35 Ludovico Gioia (cônsul d’Itália) ao chefe de polícia,4/12/1897, Arquivo do Estado de São Paulo,C02839, Polícia.

36 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 333, s./n., 1897, depoimento de An-tônio de Almeida Souza.

37 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, depoimento de Raphael Lagrutencia

38 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 213, n. 1195, depoimento de Do-menico Lipero.

39 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, depoimento de Giuseppe Averse.

40 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 213, n. 1195, depoimento de Do-menico Lipero.

41 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, depoimento de Rafael Lagrutencia.

42 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Giuseppe Arcuri Giglioti.

43 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Achillo Aielo.

44 Vários telegramas de Gaspar Berrance (delegado deSão Carlos) a chefe de polícia, março de 1898. Ar-quivo do Estado de São Paulo, C02879, Polícia.

45 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessosCriminais, caixa 213, n. 213, 1908.

46 Gaspar Berrance a chefe de polícia (telegrama),3/3/1898, Arquivo do Estado de São Paulo, C02887,Polícia; Gaspar Berrance a chefe de polícia,3/4/1898 e 10/4/1898, Arquivo do Estado de SãoPaulo, C02884, Polícia.

47 Gaspar Berrance a chefe de polícia (telegrama),18/4/1898, Arquivo do Estado de São Paulo,C02884, Polícia.

48 Gaspar Berrance a chefe de polícia (telegramas),19/4/1898 e 21/4/1898, Arquivo do Estado de SãoPaulo, C02884, Polícia.

49 Fundação Pró-Memória de São Carlos, ProcessoMangano, declaração de Ernesto Falcone.

50 3/4/1898, Arquivo do Estado de São Paulo, C02884,Polícia.

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51 Infelizmente, não temos informação sobre a origem

regional da maior parte das vítimas e testemunhas

italianas.

52 Aurelio Civatti a chefe de polícia, 30/8/1897, Arqui-

vo do Estado de São Paulo, C02842, Polícia 1897.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 177

SOLIDARIEDADE ÉTNICA,PODER LOCAL E CRIMEORGANIZADO: UMAQUADRILHA DE BANDIDOSCALABRESES NO OESTEPAULISTA, 1895-1898.

Karl Monsma, Oswaldo Truzzi eSilvano da Conceição

Palavras-chaveBandidos; Crime organizado; Imi-gração; Italianos; Calábria.

A história de uma quadrilha de ban-didos calabreses no município deSão Carlos, oeste paulista, ao finaldo século XIX permitiu-nos investi-gar por que o banditismo italianoera raro no Brasil. A quadrilha con-tou com certa rede de apoio entrecalabreses e com o silêncio de out-ros italianos, seja pela intimidação,seja pela desconfiança que estesnutriam das autoridades brasileiras.Uma epidemia devastadora de febreamarela, que afastou da regiãogrande parte da elite local e debili-tou a polícia, garantiu ao bandoalguns anos de impunidade. O fatode terem imigrado para a região ital-ianos de várias origens não é sufi-ciente para explicar a raridade dobanditismo e do crime organizadoentre italianos no Brasil. Dois fatoresforam decisivos nesse sentido, aocontrário do que ocorreu naCalábria e nos Estados Unidos:ausência de elites dispostas a prote-ger bandidos imigrantes e dificul-dade para os bandidos cor-romperem as autoridades locais,especialmente a polícia.

ETHNIC SOLIDARITY, LOCALPOWER, AND ORGANIZEDCRIME: A CALABRIAN GANGIN THE WEST OF SAO PAULOSTATE, 1895-1898

Karl Monsma, Oswaldo Truzziand Silvano da Conceição

Key wordsBandits; Organized crime; Immi-gration; Italians; Calabria.

The story of a late 19th centuryCalabrian bandit gang in the munic-ipality of São Carlos, in western SãoPaulo state, allows us to investigatewhy Italian banditry was rare inBrazil. The bandits depended on asupport network among Calabrians,and imposed silence on otherItalians by either intimidation or dis-trust on Brazilian authorities. A dev-astating yellow fever epidemic,which drove away much of the localelite and seriously weakened thepolice force, helped the gang toenjoy a few years of impunity. Themixture of immigrant Italians fromvarious regional origins is insuffi-cient to explain the relative absenceof banditry and organized crimeamong Italians in Brazil. Two issueswere decisive to do so then, on thecontrary of what happened inCalabria and the United States: thelack of Brazilian elites willing toprotect immigrant bandits and thedifficulty in corrupting local author-ities, especially the police.

SOLIDARITÉ ETHNIQUE,POUVOIR LOCAL ET CRIMEORGANISÉ: UN GROUPE DEBANDITS CALABRAIS ÀL’OUEST DE L’ÉTAT DE SÃOPAULO, 1895-1898

Karl Monsma, Oswaldo Truzzi etSilvano da Conceição

Mots-clésBandits; Crime organisé; Immi-gration; Italiens; Calabre.

L'histoire d'un groupe de bandits cal-abrais à la ville de São Carlos, àl'ouest de l'État de São Paulo, à la findu XIXe siècle, nous permet derechercher les raisons par lesquellesle banditisme italien était unphénomène si rare au Brésil. Legroupe a compté avec le soutiend’un réseau d’immigrants calabrais etavec le silence d'autres italiens, grâceà l'intimidation, ou à la méfiance desimmigrants par rapport aux autoritésbrésiliennes. Une épidémie dévasta-trice de fièvre jaune, qui a éloignéune bonne partie de l’élite locale et aaffaibli la police, a garanti à cegroupe quelques années d’impunité.L'hétérogénéité régionale des Italiensne suffit pas pour expliquer la raretédu banditisme et du crime organiséparmi les Italiens au Brésil. L'histoirede ce groupe, outre la comparaisonavec la Calabre et les États-Unis,indique l'importance décisive dedeux facteurs : l'absence d'élites dis-posées à protéger les délinquantsimmigrants et les difficultés de ceux-ci à corrompre les autorités locales,en particulier la police.