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Sonia Sant’Anna Leopoldina e Pedro I A Vida Privada na Corte

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Sonia Sant’Anna

Leopoldina e Pedro iA Vida Privada na Corte

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Ilustrações: Clarissa da Costa Moreira

Capa: Sérgio Campante

CIP-Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Sant’Anna, Sonia, 1938-S223L Leopoldina e Pedro I: a vida privada na corte / Sonia Sant’Anna. – Rio

de Janeiro : Zahar, 2004.

Inclui bibliografiaISBN 978-85-7110-792-2

1. Pedro I, Imperador do Brasil, 1798-1834. 2. Leopoldina, Imperatriz, consorte de Pedro I, Imperador do Brasil, 1897-1826. 3. Brasil – História – Império, 1822-1889. I. Título.

CDD: 981.0404-1150 CDU: 94 (81) “1822/1899”

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Introdução

Rio de Janeiro, entrada da baía de Guanabara, 5 de novembro, 1817

Num lugar tão belo é impossível não ser feliz. Montanhas que se levantam abruptamente do mar, florestas a perder

de vista, esse mar tão azul, praias, tantas praias. Como dar as costas a tanta luz e encerrar-se num camarote? Mas é preciso descer, trocar-se, não vá o noivo se decepcionar ao vê-la.

— Dona Leopoldina, vinde logo, ou não estareis pronta quando chegar vosso noivo.

Velas vão sendo arriadas, a fragata desliza entre fortalezas que salvam festivamente e penetra baía de Guanabara adentro, bandeiras desfraldadas nos mastros e cordames. Embarcações de todo tamanho e feitio se acercam e compõem um comboio festivo em torno da frota.

Dona Leopoldina, Arquiduquesa d’Áustria e Princesa Real do Brasil, Portugal e Algarve, se entrega resignadamente aos cuidados das damas de honra. A paisagem pode esperar, haverá de visitar cada recanto ao lado de Pedro, o homem que ama sem jamais tê-lo visto, que lhe dirá o nome de cada ilha e montanha. Será ele tão belo quanto o retrato que contempla às escondidas, suspirando, todas as noites?

Olha-se no espelho emoldurado em ouro, como de ouro são os can-delabros, a bacia e a jarra com que se lava, escovas, pentes, tudo o que reveste sua mesa de toalete e a baixela da qual se serve à mesa. Como é rico o país de Pedro! O espelho lhe devolve a imagem de uma jovem de vinte anos, face rosada, olhos de um azul profundo, cachinhos louros a

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cair sobre a testa. Ausente o riso que normalmente lhe enche o rosto de covinhas. Como estar sorridente e descuidada quando vai pela primeira vez ver o homem com quem se casou há seis meses, por quem atravessou o oceano e abandonou pátria e família? Lembra-se do que lhe disse Maria Luiza, a irmã bem-amada, que foi imperatriz da França e por isso entende de moda e beleza: “Leopoldina, mesmo baixinha estás ficando bonita, um dia poderás tornar-te bela. Só precisas cuidar mais da toalete, os maridos apreciam mulheres que se vestem para agradá-los.” Sente-se confiante, não, não é feia, foi Maria Luiza quem disse.

Chegam-lhe aos ouvidos o repicar dos sinos, o estrondo dos canhões. Gostaria de voltar ao convés para ver o espetáculo montado em sua honra. Mas Annony, sua ama, a retém.

— O vento desfará vosso penteado. Lembrai-vos de que não estamos de férias em Laxemburgo. Este é o momento mais solene de vossa vida.

A condessa Künburg insiste: — Alteza, que diria vosso augusto pai se vos visse tão agitada? Dai-me

o braço, ainda faltam os braceletes. Assim, pronto. Agora sentai-vos para não desarranjar vosso traje.

Para damas e diplomatas, tudo não passa de missão oficial a cumprir sem desvios de etiqueta. Esquecem-se de que, além de princesa, ela é mulher, uma noiva que aguarda o noivo e vai conhecer seu novo lar. Como não estar agitada?

Repassa na memória o pequeno discurso que escreveu em português — que língua difícil essa — com o auxílio do marquês de Marialva. En-tra em pânico ao pensar no discurso. Sente os enjoos de estômago que sempre a acometem nos momentos de tensão. Deus não permita que lhe venham as cólicas intestinais que costumam acompanhá-los. Desde menina, quando se sente insegura ou infeliz, come em demasia, depois estômago e intestinos punem os excessos. Respira fundo, reza, decide que, haja o que houver, sua força de vontade há de sustentá-la.

A fragata lança âncora ao largo da Ilha das Cobras. Anoitece. Ardem fogueiras no topo dos morros. Leopoldina volta ao convés. De pé sob o toldo, ereta como foi ensinada desde quando o querido papai a levava a assistir desfiles militares, sua vontade é correr à amurada, tamanha a an-siedade por ver o esposo que chega com a família, num galeote dourado.

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O rei, enfermo, não pode galgar a escada para saudá-la, é ela quem deve baixar ao galeote. Ao pé da escada um jovem em uniforme — só pode ser ele — oferece-lhe a mão como apoio. Leopoldina fecha os olhos, as pernas fraquejam. Reabre os olhos e vê diante de si aquele por quem esperou tantos meses. Como é belo! O retrato não a enganou. O príncipe recua e se posta ao lado do rei. Ainda não se devem falar, embora marido e mulher, não foram apresentados um ao outro.

Diante do rei a princesa ajoelha e promete amor e obediência filiais. — Sois agora meu pai e meu soberano — diz ao sogro comovido, que

a faz levantar e lhe beija a testa. Uma simpatia instantânea se estabelece entre ambos.

O marquês de Marialva faz as apresentações: Sua Majestade a rainha dona Carlota Joaquina, o Príncipe Real dom Pedro, as infantas, o infante dom Miguel. Leopoldina faz profunda reverência à rainha, se esforça por sorrir a todos, mas só tem olhos para Pedro, que se adianta para beijar-lhe a mão com palavras de boas-vindas. Não desmaies, Leopoldina, ordena a si mesma ao sentir a onda de calor que lhe sobe ao rosto. Com voz quase inaudível recita o pequeno discurso. Pronto. Findou o cerimonial.

Leopoldina chega ao Brasil

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Sua vez de convidá-los a subir a bordo, embora o rei não possa acompanhá-los. Há troca de presentes, erguem-se brindes a Portugal, à Áustria, às casas de Bragança e Habsburgo. Aos noivos. Às nove horas tudo termina. Os visitantes se retiram, amanhã voltará o galeote para levá-la a terra, quando pisará sua nova pátria.

Pedro se foi, resta a Leopoldina ainda uma noite de solidão. Entretanto, não mais com um retrato em sua moldura de diamantes, mas com um homem de carne e osso sonhará esta noite.

No dia seguinte, às duas horas da tarde, a noiva, em seu vestido branco bordado em ouro e prata, um finíssimo véu também branco a lhe cobrir o rosto, desembarca no Arsenal de Marinha. Pelo braço de Pedro cami-nha até a carruagem que deve levá-los e a Suas Majestades pelas ruas da cidade. Os olhares percebem, assustados, o colar de opalas da princesa. Todo brasileiro sabe que opalas são pedras de mau agouro.

Cortejo até a Capela Real, onde o bispo abençoa o casal. A música é magnífica, como haviam prevenido Leopoldina, o coro comparável aos melhores da Europa. Banquete no palácio; não o imaginava tão simples. Como que adivinhando seus pensamentos, alguém lhe explica que a residência real é outra, fora da Cidade, num recanto bucólico. Talvez seja algo parecido com seu amado Laxemburgo, o castelo de verão dos Habsburgo, com seus lagos e grutas, e a torre medieval em que nas férias encenava aventuras com os irmãos. Várias vezes deve assomar à sacada para acenar ao povo. A cada aparição renova-se o entusiasmo. Uma parada militar. Negros por toda parte...

Negros na cidade do Rio de Janeiro

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Desfile em carruagem até o Arsenal de Marinha, para tomar outra vez o galeote, que corta a baía impulsionado por cem remadores, até São Cristóvão. Mais um pouco, um curto trajeto em coche sob um céu estrelado, e logo estará em casa, sua nova casa.

O cerimonial não terminou ainda, mesmo passada a meia-noite. Faz doze horas que se agita, vê gente desconhecida, acena, curva-se em reve-rências, se esforça por falar em língua estrangeira. O rei a convida para conhecer os aposentos que mandou preparar, com móveis encomendados na Europa. Segue junto a família real, mais damas e cortesãos. Diante de um busto de Francisco i, pai de Leopoldina, há um álbum que o rei in-siste para que abra agora mesmo. Retratos! Aquarelas pintadas em Viena, de toda a sua família. A princesa cai em pranto diante de presente tão delicado. Os camareiros começam a se retirar, enfim vai ficar a sós com Pedro, com quem mal trocou algumas palavras o dia todo. Mas a rainha e as infantas começam a despir Leopoldina, que não sabe para onde olhar, enquanto o rei e dom Miguel se encarregam de despir Pedro. Vestem-lhes os trajes noturnos. A condessa Künburg, mais ruborizada que Leopoldi-na, deve deitá-la no imenso leito cujo dossel é sustentado por cupidos dourados, dom Miguel faz deitar Pedro ao seu lado, e só então se retiram.

Fecham-se as portas do aposento nupcial, ouvem-se passos cada vez mais distantes. Faz-se o silêncio no palácio de São Cristóvão.

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O noivo

A retirada — Lisboa, novembro de 1807

A pobre louca chega em uma sege preta, cortinas corridas para que não a vejam. Dona Maria havia passado a vida entre frades e confessores. Casa-ram-na com um tio, dezoito anos mais velho, também afeito às coisas da Igreja. Aos cinquenta e dois anos enviuvara. A seguir morreu-lhe o filho primogênito, cumprindo a maldição que perseguia a Casa de Bragança, desde que um deles, muitos e muitos anos atrás, dera um pontapé num frade esmoler que lhe pedia um donativo. Meses depois da morte do fi - lho, em questão de dias, morreram-lhe também uma filha, um neto recém-nascido e o genro. Só podia ser a ira divina, punindo-a pelos pecados do pai ao sancionar os crimes do marquês de Pombal .1 Sua religiosidade mórbida havia aumentado. Com as notícias da revolução que ocorria na França, onde reis eram de-capitados, temendo a mesma sorte, enlou-quecera. Dona Maria é rainha de Portugal e ali está, no embarcadouro junto à Torre de Belém, terço à mão e aos uivos de “Ai, Jesus!”, a caminho da América.

Dom João, Príncipe Real Regente, é filho de dona Maria. Quarenta e um anos, gorducho e ar bonachão, se aflige com a travessia. Teme tempestades e oceanos. Não fossem as tropas francesas às portas

O marquês de Pombal

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de Lisboa, jamais iria para tão longe. Se permanecesse em Portugal, pre-veniam os aliados ingleses, seria prisioneiro de Napoleão Bonaparte, o conquistador que faz tremer as cabeças coroadas da Europa. A seguir, já senhor de Portugal, o imperador francês se apossaria do Brasil — a mais próspera colônia lusitana —, que os ingleses não querem ver em mãos do inimigo comum. Mas, com dom João no Rio de Janeiro, e com a pro-teção da Marinha inglesa, as minas de ouro, o precioso açúcar do Brasil não cairiam em mãos francesas. Portugal perderia temporariamente seu território europeu, porém a porção maior e mais rica do império estaria salva. Depois de concordar e recuar mil vezes, dom João se vira forçado pelo bom senso a aceitar o conselho dos aliados.

João raramente tem ocasião de fazer o que quer. Seu desejo seria seguir a vida eclesiástica, viver num convento entre cantatas e oratórios. A boa voz e o amor pela música lhe garantiriam um lugar no coro. Mas a mal-dição dos Bragança, ao levar para o túmulo o primogênito de dona Maria, fizera recair sobre seus ombros o fardo do governo. Outra contrariedade é a princesa espanhola que razões de Estado lhe haviam destinado como esposa, e que suporta como mais uma das obrigações desagradáveis que lhe cabem por ser filho e neto de reis.

Sob forte chuva chega ao cais a mulher de dom João, dona Carlota Joaquina de Bour-bon, numa carruagem puxada por seis cava-los, acompanhada por filhos, filhas e criadas. Tem trinta e dois anos. É feia, muito feia, e nem as sedas, plumas e joias com as quais costuma se cobrir conseguem ocultar o fato. Mais feio ainda é o seu falar, entremeado de impropérios. Dona Carlota se enche de ódio à ideia de viver no Brasil, que segundo os livros que leu — pois Carlota é mulher letrada — é terra atrasada, habitada por índios e pretos, sem o conforto a que está habituada a gente civilizada. Carlota odeia muitas coisas e mui-tas pessoas. Acima de tudo odeia o homem que lhe coubera desposar. Carlota Joaquina de Bourbon

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Aos dez anos de idade, após cansativa e enfadonha cerimônia e muitas festas, haviam-na levado ao leito de João, oito anos mais velho. A menina se indignou quando aquele homem que mal conhecia tentou deitar-se sobre ela e tirar-lhe a rica camisola. A infanta não estava disposta a brincadeiras de mau gosto, ainda mais que em nada lhe agradava o companheiro. Mordeu-lhe a orelha, depois correu a refugiar-se no quarto da mãe, queixando-se do comportamento do príncipe português.

Em vão tentou a rainha da Espanha convencer a filha de que assim eram os casamentos, e que o comportamento do príncipe era o que se esperava de maridos. Carlota batera o pé, não voltaria àquele quarto. E novo contrato matrimonial fora redigido, estipulando que a infanta manteria, pelo tempo que fosse necessário, seus aposentos privados. Só depois que a natureza a fizesse mulher se consumaria o casamento que, esperava-se, daria a Portugal muitos príncipes e princesas.

No cais reina a confusão. A mudança era cogitada há várias semanas. Caixas, caixotes e baús vinham sendo embalados, lacrados e devidamente etiquetados, contendo joias, pratarias, obras de arte, a vasta biblioteca real, uma tipografia e, sobretudo, o Tesouro português, formado por bar-ras e moedas de ouro brasileiro e diamantes da mesma origem. Alguns coches haviam sido desmontados, e suas peças acondicionadas, para serem remontados no Brasil, permitindo que naquele inferno tropical os viajantes — ou fugitivos — pudessem se locomover com alguma pompa e dignidade. Sempre havia algo mais a levar. Deixar para trás os trajes de ce-rimônia, os móveis e reposteiros que guarneciam os salões do palácio? E os paramentos, cálices, ostensórios e imagens indispensáveis ao culto? Uma corte precisa de músicos, e com eles iriam partituras, instrumentos musi-cais e cenários de teatro. As nobres famílias escolhidas para acompanhar dona Maria e o regente também teriam direito a levar consigo seus bens mais preciosos, para salvá-los da pilhagem que se seguiria à tomada da capital. A bagagem deixa atônitos os marujos, que temem que possam ir a pique naus tão sobrecarregadas, levando ainda cães de estimação e

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os mais belos animais das cavalariças do Paço, fora vacas, bois, patos e galinhas para alimentar toda essa gente.

Cortesãos encapotados, as plumas dos chapéus a pingar água, solenes ministros e desembargadores, senhoras idosas metidas em capas e tou-cas, rapazes e moças, excitados, antevendo a intimidade em que seriam forçados a viver durante a temporada a bordo, chapinham na lama e se empurram na pressa de embarcar.

No meio de tudo um menino que mal completou nove anos, alto para a idade, forte e bonito, parece encantado com a aventura. Em vão tentam os preceptores mantê-lo quieto a seu lado. Que será deles, preceptores, se Pedro, o Príncipe da Beira,* se perder entre a multidão? Depois de se despedir da mãe e das irmãs, Pedro e o mano Miguel, de cinco anos, sobem à nau capitânia, em que viajarão em companhia da avó louca e do pai. Há quatro anos, desde que Carlota conspirara para usurpar o posto de João, o casal vive separado. Encontram-se algumas vezes, raramente, é verdade, porém o suficiente para cumprir seu dever de príncipes: preservar a di-nastia, do que é prova a infanta Ana de Jesus, de apenas um ano de idade.

Então, diante do povo, incapaz de perceber o acerto da decisão, atô-nito ao ver fugir seus governantes, partem as naus, em cujos tombadilhos oram padres, pedindo aos céus que os levem a bom porto.

Um rapaz de quinze anos, chamado às pressas do seminário em que estudava, debruçado à amurada do brigue em que o alojaram, contempla as águas. É Francisco Gomes, oficialmente filho do ourives da corte, mas, como é do conhecimento geral, filho bastardo do conde de Vila Nova da Rainha, que incluíra os Gomes, pai e filho, na comitiva. O conde, para se casar com uma jovem da nobreza, amiga de dona Carlota, fora obrigado a deixar a mãe de Francisco, mas não havia desamparado seu rebento. Com um generoso dote, fornecido pelo amante, a mãe de Francisco se casara com o ourives, que legitimara o menino como seu. Quem sabe, sonhava Francisco, no país dos diamantes faria fama e fortuna, impossíveis de outra forma ao filho de um simples ourives.

* O herdeiro do trono usava o título de Príncipe Real; o filho primogênito do herdeiro recebia o título de Príncipe da Beira.

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Arrostaram tempestades, algumas embarcações se desgarraram do com-boio e foram ter a outros portos, a comida era insuficiente para alguns milhares de pessoas. Água somente para beber, assim mesmo parcimo-niosamente, e os piolhos e incômodos de pele atormentaram os viajantes, não poupando príncipes e princesas. Depois de uma curta permanência na Bahia para se recuperar, haviam chegado ao Rio de Janeiro, onde o vice-rei, prevenido por uma das embarcações desgarradas da frota e que ali viera ter, se havia preparado para receber a rainha e sua corte. Era o mês de março, do ano de 1808.

Um ano no Brasil

Por uma semana o regente e família tiveram que se mostrar à sacada várias vezes ao dia para que os brasileiros pudessem fartar-se de vê-los e aplaudi-los. Dom João, que jamais havia suscitado o entusiasmo em sua terra natal, tomou-se de amores pelo país e por essa gente que o recebia tão calorosamente. Carlota reclamava da feiúra reinante, do calor, dos mosquitos, do canto dos negros que entrava pelas janelas e fazia com que se sentisse cercada por uma horda selvagem. Trancava-se em seus aposentos com suas damas, e sentada sobre tapetes e almofadas, à moda mourisca em uso em sua Espanha natal, passava as horas dedilhando a guitarra. Até que se acomodassem em definitivo, teria que dividir o mes-mo teto com o marido; felizmente a sogra louca havia sido alojada num convento, onde gritaria “Ai, Jesus!” à vontade.

Um retoque aqui, um disfarce ali, a cidade de vielas estreitas e malcheirosas aos poucos adquiria um ar passável de corte. As ruas principais, alargadas e aplainadas para permitir o trânsito de veículos. As gelosias que escon-

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diam as janelas das residências foram demolidas por ordem de dom João, para gáudio das mu-lheres, até então reclusas como muçulmanas, enfim livres para verem e serem vistas. Drenavam-se mangues, capinavam-se praças, comerciantes abriam lojas e im-portavam mercadorias estrangei-ras para atender ao novo público, formado por nobres e diplomatas

transferidos para a nova sede do governo. Esse comércio elegante era possível porque dom João havia posto fim ao monopólio português do comércio com o Brasil. Navios de todas as bandeiras ancoravam no porto, e marinheiros de falas variadas enchiam a praça diante do Paço.

O regente transferiu sua moradia para uma quinta de veraneio, no local chamado São Cristóvão, que lhe fora ofertada por um próspero português. Móveis, quadros, tapetes e porcelanas do Reino fizeram da rústica Quinta da Boa Vista um local habitável. Ali viviam os infantes Pedro e Miguel, com o pai e a aia, a nobre senhora dona Maria Genoveva do Rego Barros, que lhes servia de mãe.

No Paço da Cidade, com as filhas, ficara a princesa Carlota, em li-berdade para retomar suas intrigas amorosas. Embora feia, quase anã e manca, nenhum homem, cortesão ou de baixa categoria, se recusava aos seus avanços, embora esses amantes não fossem tantos quantos dizia a maledicência popular.

Cenas de uma corte tropical

Em São Cristóvão, cercado por seus cortesãos favoritos, a maioria idosos e beatos, dom João saboreia a notícia trazida pelo correio diplomático. Seu cunhado, rei da Espanha, havia sido destronado e preso por Bonaparte, e a coroa espanhola repousava agora sobre a cabeça plebeia de José, irmão do imperador francês.

As gelosias permitiam a entrada de ar, mas impediam que o interior das residências

fosse devassado