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9 Revista de História Regional 8(2): 9-47, Inverno 2003 Sons de São Paulo: a atividade radiofônica paulista nos anos 1930/40 * Geni Rosa Duarte ** A cidade de São Paulo sofreu mudanças acentuadas em sua fisionomia no início do século XX, pelo incremento das atividades econômicas e pelo aumento populacional. O crescimento urbano, com especificidades, implicando redirecionamentos de espaços de moradia e de sociabilidade, fez com que a cidade passasse a ser pensada como um espaço constituído por múltiplas nacionalidades, especialmente italianos, que transformavam a vila provinciana num espaço moderno e cosmopolita, de muitos sotaques e muitas fisionomias. Conseqüentemente, com um perfil musical diferente daquele do Rio de Janeiro, muitas vezes referido como centro de atração de migrantes internos, especialmente de populações negras, com um cosmopolitanismo voltado mais para o exterior, para a Europa. Em São Paulo, embora também tivesse havido a fixação de negros libertos, principalmente em bairros da periferia, a cidade continuava a ser pensada como “cidade italiana”, centro de levas migratórias, cidade de muitos povos e de muitos sotaques. Referindo-se ao panorama musical paulista nas primeiras décadas do século, J. L. Ferrete assinala nele uma certa especificidade, em função das influências decorrentes * Este trabalho consiste no desenvolvimento de aspectos abordados na tese de doutoramento Múltiplas Vozes no Ar: o rádio em São Paulo nos anos 30 e 40, orientada pela Profa. Dra. Maria Odila L. da Silva Dias, e defendida em 2000 na PUC-SP. ** Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon PR. E-mail: [email protected]

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Sons de São Paulo

Sons de São Paulo: a atividaderadiofônica paulista nos anos

1930/40 *

Geni Rosa Duarte **

A cidade de São Paulo sofreu mudanças acentuadasem sua fisionomia no início do século XX, pelo incrementodas atividades econômicas e pelo aumento populacional. Ocrescimento urbano, com especificidades, implicandoredirecionamentos de espaços de moradia e de sociabilidade,fez com que a cidade passasse a ser pensada como um espaçoconstituído por múltiplas nacionalidades, especialmenteitalianos, que transformavam a vila provinciana num espaçomoderno e cosmopolita, de muitos sotaques e muitasfisionomias. Conseqüentemente, com um perfil musicaldiferente daquele do Rio de Janeiro, muitas vezes referidocomo centro de atração de migrantes internos,especialmente de populações negras, com umcosmopolitanismo voltado mais para o exterior, para a Europa.

Em São Paulo, embora também tivesse havido a fixaçãode negros libertos, principalmente em bairros da periferia, acidade continuava a ser pensada como “cidade italiana”,centro de levas migratórias, cidade de muitos povos e demuitos sotaques.

Referindo-se ao panorama musical paulista nasprimeiras décadas do século, J. L. Ferrete assinala nele umacerta especificidade, em função das influências decorrentes

* Este trabalho consiste no desenvolvimento de aspectos abordados natese de doutoramento Múltiplas Vozes no Ar: o rádio em São Paulo nos anos30 e 40, orientada pela Profa. Dra. Maria Odila L. da Silva Dias, edefendida em 2000 na PUC-SP.** Professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE,campus de Marechal Cândido Rondon – PR. E-mail:[email protected]

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da intensa imigração estrangeira: predominava, segundo ele,a música cantada, particularmente o tango, a modinha, acanção de serenata, a toada, além da existência de “inúmerosgrupos de chorões atuando num gênero de criação melodicamentemais próximo das cançonetas italianas ou das cantigasportuguesas, diferençando-se, assim, do choro de raízes negrascariocas” 1

Existiria realmente uma produção musical paulistaextremamente diferenciada em relação aos demais centrosurbanos? Poder-se-ia pensar numa música popularespecificamente paulista, caudatária das influências aquifixadas?

É difícil delimitar geograficamente característicasmusicais. Os próprios historiadores da música brasileiraapontam como característica fundamental da música populara variabilidade no ritmo, na harmonia, no modo de executarou de cantar, além de influências de algumas produções sobreoutras. Nas festas populares – por exemplo, nas inúmerasfestas do boi no interior do Brasil - podem ser observadasmudanças de uma região para outra, e mesmo de um anopara outro.

Pensando nos vários territórios da cidade de São Paulo,deparamo-nos com uma heterogeneidade de sons, ritmos einfluências. No Bexiga, a concentração dos negros no bairrocomeçou já no século XIX, quando existia ali um quilombosemi-rural. Distante das ferrovias, a região não comportavaindústrias, mas tornou-se um bairro popular, habitadotambém por imigrantes pobres, em decorrência daproximidade de áreas de moradia da elite, que garantiaempregos domésticos especialmente às mulheres negras, edas reformas urbanas que embelezaram o antigo centro,expulsando parte da sua população, que ia em busca deterrenos mais baratos. Em decorrência, o bairro foi assumindocaracterísticas ítalo-africanas, onde a música italiana semesclava com os sons dos choros e dos sambas.

A presença ruidosa dos italianos em São Paulo

1 FERRETE, J.L. Capitão Furtado: viola caipira ou sertaneja? Rio de Janei-ro, FUNARTE/Instituto Nacional de Música, 1985, p. 45.

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expressava-se nas festas religiosas, bem como dos circos,bandas, apresentação de óperas, etc. José Geraldo Vinci deMoraes, analisando as “sonoridades paulistanas” nasprimeiras décadas do século, destacou o sentido depreservação da identidade e tradições grupais seja atravésde festas tradicionais do calendário religioso (São Genaro,Nossa Senhora de Achiropita), de espetáculos circenses (comoos da família Temperani, Spinelli, Casali e dos irmãosQueiroloso, não restritos, aliás, aos limites paulistanos), dosjornais e teatros operários, de influência anarquista, dasassociações esportivas e de lazer, preservando o gosto pelamúsica lírica e incentivando a formação de algumas bandasmusicais, como as do maestro Lira, Ettore Firamosca e a dosBersaglieri. 2

Por outro lado, as populações negras, desde fins doséculo passado, concentravam-se na capital paulista emregiões já em parte deterioradas próximas ao centro e nosbairros de estrutura urbana precária, geralmente próximosàs ferrovias. A Barra Funda, anteriormente ocupada poritalianos, antes da construção da estrada de ferro, passava aser palco das atividades ligadas às tradições e ao cotidianodessas populações, ligadas por elos étnicos, sociais e culturaiscomuns. Vale a pena reproduzir o texto em que José GeraldoVinci de Moraes descreve os elos desse verdadeiro territórionegro paulistano:

As ‘tias africanas’, por exemplo, à semelhança do Rio deJaneiro e Salvador, abrigavam muitos negros em atividadescoletivas religiosas, do jongo às festas cristãs. Nashabitações geralmente coletivizadas, onde moravamextensas famílias, eram freqüentes as atividades musicaisem grupo. Muitos dos negros que levavam um tipo de vidamais inferiorizada e marginal, trabalhando nos serviçospesados da ferrovia e armazéns, guardavam certa distânciadas atividades coletivas, mas realizavam suas rodas departido alto, de capoeira e pernada, além de serem

2 MORAES, José Geraldo Vinci de. Sonoridades Paulistanas: a músicapopular na cidade de São Paulo – final do século XIX ao início do século XX.São Paulo: FUNARTE, 1995.

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reconhecidos por todos como os melhores e os maishabilidosos jogadores de futebol da cidade. Como eles viviamno trecho inferior da alameda Glete, ficaram conhecidoscomo os ‘negros da Glete’ ou os ‘bambas da Barra Funda’.3

Assinale-se que a Barra Funda foi berço da maisantiga escola de samba paulista, o Cordão Camisa Verde, apartir dos blocos com origem nas famílias extensas lideradaspelas tias de origem africana. Prossegue Vinci de Moraes:

Parece-nos que estas características reforçam justamenteo aspecto da diversidade de elementos que compunham aelaboração cultural dessas camadas sociais. As tensõesque daí emergiram, estabelecendo relações de assimilaçãoe resistências, torna muito difícil e sem sentido buscaruma preponderância e o predomínio de tons na medida emque elas se realizavam baseadas numa polifoniaextremamente atraente.4

Essa polifonia , como acentua Vinci de Moraes, foiresponsável pelo nascimento de tantos músicos, cantores ecompositores filhos e descendentes de imigrantes - algunsaté mesmo estrangeiros - entre os quais podemos citarGaroto, Canhoto, Vadico, Rieli, Paraguassu, entre tantos.Músicos que, no processo de profissionalização, nos contatoscom músicos de outras procedências, enriqueciam ediversificavam suas produções, incorporando influências ecriando uma música que podemos qualificar de popular (nosentido de agradável ao povo; que tem as simpatias dele, deacordo com o registro do dicionário).

Podemos pensar também em outros espaços musicaisna cidade: primeiramente, aqueles circunscritos a umarelação executante/ ouvintes: conjuntos amadores ou emvia de profissionalização, seresteiros, cantores einstrumentistas que também se apresentam em festas,circos, cafés...Percebemos, além disso, margens por ondepodia se dar a efetiva profissionalização e o alargamento dainfluência desses músicos, desde as festas tradicionais,

3 Idem, ibidem, p. 63/44 Idem, ibidem, p.65)

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como o carnaval e outras, até chegar ao teatro, ao circo, aodisco, depois ao cinema, e posteriormente, ao rádio.

Nesses espaços de criação/execução, havia ointercâmbio de influências as mais variadas. Se podemosentão falar em algumas circunstâncias, de uma músicaurbana “mais paulista”, é porque podemos talvez distinguiralgumas características que as personalizam, sem que setornem territórios exclusivos e infensos a quaisquermudanças ou influências outras. Mais do que músicas ouestilos representantes de centros urbanos como um todo,preferimos nos referir a espaços onde determinadasinfluências se tornam mais visíveis, ligadas a experiênciasde grupos ou camadas da população no interior das cidades.

Havia conjuntos e músicos que percorriam a cidadeem serestas ou se apresentavam em festas populares nosdiversos bairros. Em depoimento concedido ao Museu daImagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) , Roque Ricciardi, oParaguassu, narrou a forma como se iniciou como músico:participando das serenatas pelas ruas da cidade, comacompanhamento de flauta, violão e cavaquinho, cantandocomposições de Eduardo Souto, Zequinha de Abreu, MarceloTupinambá e outros compositores. Com catorze anoscomeçou a cantar nos cafés, em especial no Café Parisien(Café Donato), dividindo com os demais músicos a coleta feitaentre os ouvintes presentes. Construiu sua carreira, pois,cantando em diferentes espaços da cidade - circos, cinemas,teatros, cafés - para posteriormente se destacar no mundodo rádio e do cinema. Foi, segundo afirmou, o primeirocontratado da Rádio Educadora Paulista, desde suainauguração em 1924. Posteriormente, trabalhou na RádioCruzeiro do Sul.

Dedicando-se a temáticas brasileiras e adotando opseudônimo que o identificava como essencialmentebrasileiro, gravou canções, toadas, modinhas - algumascélebres no século passado - além de sambas, cateretês,emboladas, etc. Músicas que faziam referência muitas vezesa um mundo rural, ao violeiro, ao caboclo, ao caipira,utilizando um modo de falar que construía um referencial do

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morador de fora das cidades. A utilização do sotaqueacaipirado procurava dar sentido a uma visão idílica do mundorural, com seus prazeres simples, referidos a uma atitudecontemplativa da natureza - distanciado portanto do durotrabalho cotidiano dos seus habitantes. A oposição campo/cidade também se situava no terreno dos valores, opondo apureza rural ao artificialismo urbano.

Outras influências atingiram São Paulo. Uma dela foia música nordestina, especialmente a embolada, que a partirdos anos de 1910 fez muito sucesso no Rio de Janeiro e depoisem São Paulo através de artistas que aí se fixaram ou seapresentaram. Esse ritmo foi incorporado às composições deartistas cariocas e paulistas, que lhe deram outra linguagem.Em São Paulo, Raul Torres teve seu nome ligado a esse ritmo,tendo tido muito sucesso no rádio. Paraguassu gravou váriascomposições, “retrabalhadas” com novas temáticas e sotaquemais caipira. Um dos seus maiores sucessos por exemplo,foi o “samba-embolada” Bem-te-vi, que ele interpretou em filmedirigido por Luiz de Barros. Sem se transformar num cantornordestino, dentro do mesmo espírito de suas cançõessertanejas, toadas e serenatas, misturava o lirismo dascanções ditas sertanejas com a ironia e a mordacidadepossibilitada pelo andamento mais rápido.

A atividade radiofônica se consolidou a partir desseselementos e dos espaços musicais já existentes na cidade.Pequenos conjuntos, cantores, instrumentistas, amadoresou quase, junto com alguns poucos profissionais, disputavama chance de serem ouvidos a partir das ondas sonoras – asquais, aliás, não atingiam um número expressivo deouvintes. O amadorismo era, todavia, o que caracterizava aprogramação nesse período, tanto nas instalações dasemissoras, como na estruturação do que era produzido etransmitido.

O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, no final dadécada de 20 e inícios dos anos 30, publicava uma pequeninaseção, denominada Radiotelephonia, onde informava aosleitores a programação das rádios paulistas. As informaçõeseram simples e diretas, e dirigiam-se, nessa época, a um

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público ainda restrito. Este, formado por “sócios e ouvintes”,eram brindados com uma programação sempre diferente –embora bem parecida - e irregular quanto aos dias e horáriosde transmissão. Não havia programas estruturados;anunciavam-se horários em que se tocariam “discos” , semqualquer outra indicação, e outros que apresentavamprogramação feita ao vivo.

No caso da Rádio Sociedade Record, PRA-R(posteriormente PRB 9), anunciavam-se, numa linguagemcom um alto grau de familiaridade, “emboladas pelo Torres”,“canções pelo Radamés”, “solos de banjo pelo Garoto do Banjo”,“números de canto pelo Jacatuba”, “duos caipiras, por Lázaro eMachado”, ou por “Lauriano e Machado”, “números de flautapor Atílio Grani”, ou números de canto apresentados porcantoras denominadas respeitosamente, senhoritas ousenhoras, acompanhadas ao piano ou violão por professoresou maestros.. Números de música clássica, orquestrais oucantados por tenores e barítonos, eram apresentadas ao ladode “números regionais”, que podiam ser modas caipiras,tangos, valsas, polkas, emboladas, sambas, quasesimultaneamente com números de declamação ou anedotas.

A primeira demonstração do que era a radiotelephoniahavia se dado em 1922, na exposição comemorativa docentenário da independência do Brasil no Rio de Janeiro. Oautor da experiência, Roquete Pinto, reconheceu que ela nãofoi muito bem sucedida, valendo mais como curiosidade: umsom roufenho saído dos alto-falantes, mostrando apenas quealgo que estava acontecendo num ponto da cidade podia serouvido por pessoas em locais mais distantes.

Roquete Pinto, todavia, enxergou o potencial educativodesse novo meio de comunicação. Conseguiu sensibilizar adiretoria da Academia Brasileira de Ciências para a questão,e assim em 1923 foi fundada a Sociedade Rádio do Rio deJaneiro – PRA-2.

Fundaram-se posteriormente associações voltadaspara aqueles que queriam conhecer e experimentar essanova tecnologia em diferentes cidades do Brasil. Em SãoPaulo, a Sociedade Rádio Educadora Paulista – PRA-6 foi

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fundada em 1923 com sede provisória no Instituto deEngenharia, na Rua da Quitanda, com um conselho consultivoe uma diretoria para o biênio 1924/25. As “demonstraçõespúblicas com as irradiações”, todavia, só foram iniciadas emfevereiro de 1924.

A Rádio Club de São Paulo – ou Sociedade Rádio SãoPaulo - PRA-5, fundada em 1924, tinha por objetivo, conformenota do Correio Paulistano de 18 de junho desse ano,possibilitar “o estudo e o desenvolvimento da nova sciência”,bem como “manter um curso especial para habilitar osassociados que quiserem dedicar-se” a ela - para isso dispondo“dos apparelhos mais modernos e completos”. 5 Não chegava aser uma estação transmissora, mas sim um clube, onde osassociados podiam ouvir a única emissora paulistana (aEducadora) ou emissoras estrangeiras. Só se transformouem emissora em 1934.

Uma outra possibilidade de integrar o universo dos“radiouvintes” era o ouvinte dispor de um receptor; o da marcaPekam, anunciado nos jornais, através do qual se podiamouvir “todas as principais estações americanas”, custava1:200$000 - “preço de reclame”, mas acessível apenas a umaelite. Uma família de trabalhadores, composta de cincopessoas, ganhava por volta de 500$000 por mês. 6

Embora alguns cantores populares e respeitados, jácom inúmeras gravações, como Paraguassu, por exemplo,se apresentassem em alguns horários, o que caracterizavaessas iniciativas era mesmo a improvisação. Na própriaprogramação eram previstos “números extras”, sem qualquerindicação a respeito.

Para o radialista Enéas Machado de Assis, emdepoimento arquivado no Centro Cultural São Paulo, o rádionesse período era marcado pela pobreza e pela precariedadede recursos :

5 TOTA, Antonio Pedro. A locomotiva no ar. Rádio e Modernidade em SãoPaulo 1924-1934. São Paulo, Secretaria do Estado da Cultura, 19906 Idem, ibidem, p. 28

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[...] os grandes artistas, as grandes orquestras, os grandesespetáculos da época preferiam outros meios de divulgação.O teatro preferia manter dentro de sua linha e era difícilque um grande artista de teatro desejasse caminhar para oentão principiante rádio. Mesmo porque esse rádio, nãotendo ainda a compensação publicitária, (...) era um veículopobre. Era um veículo de poucos recursos para poder retribuiraos grandes talentos que estavam no mercado artístico.(...) Aconteceu que o rádio começou a viver do amadorismoartístico e, posteriormente, de alguns astros, de algumasestrelas que à época eram de grande aceitação no rádio,mas que vinham de uma escola amadorística, que nãotinham formação artística especializada.

Para esse radialista, era o custo que determinava queas emissoras preferissem apresentar música popular:

... era a programação mais barata, a programação maiseconômica. Eram os amadores que faziam isso, eram oscantores regionais, cantores esses que depois foram setornando ídolos e daí já não eram mais amadores, já recebiamseus cachês...7

O rádio não constituía, portanto, um espaço autônomode produção musical. Ele tinha necessidade de atrairmúsicos que se firmavam, muitas vezes, em outros espaços.Cantores, músicos, instrumentistas, vinham para seapresentar nesse novo veículo, que era essencialmente umespaço de divulgação.

O rádio paulista criava, não obstante, alguns ídolos,na medida em que estes começavam a participar daprogramação com uma certa regularidade. O sucesso, todavia,era mais local, mais restrito, e nem sempre representavauma porta de entrada para a gravação de discos, uma vezque o Rio de Janeiro é que era “a meca da música popular, degravadoras, da distribuição da música popular para o Brasil”,na expressão do radialista citado anteriormente. Asemissoras paulistas, além disso, tinham pequeno alcance.Ao mesmo tempo, não chegavam na capital paulista na época

7 Centro Cultural São Paulo – Arquivo de Multimeios

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as transmissões das emissoras cariocas, talvez por influênciada Serra do Mar.

As mesmas características da programação e aintermitência dos horários de transmissão eram o queaproximavam as duas emissoras paulistas - Rádio SociedadeRecord e Sociedade Rádio Educadora Paulista. Anunciavam-se programas de música erudita (ou semi-erudita), ao ladode “programas regionais”, nos quais se executavam polkas,valsas, choros, sambas, emboladas, cateretês, etc., comacompanhamento de um conjunto chamado de “regional”(conjuntos com poucos instrumentos, sem estruturaorquestral). Pouca ou nenhuma estruturação em programasou gêneros, a não ser uma diferenciação entre clássicos epopulares.

Havia uma nítida valorização da música clássica, líricae orquestral, principalmente, em detrimento da popular.Como a programação era quase toda feita ao vivo, tornava-semais fácil a apresentação isolada de cantores einstrumentistas, em duplas ou formando pequenos conjuntos.Com a afirmação da atividade radiofônica, começaram a servalorizadas as orquestras, que algumas emissoras chegarama possuir.

A música popular custou a ter um peso significativona programação radiofônica. Podia ser considerada umproduto de melhor ou pior qualidade, mas ficava longe dacategoria erudita, na avaliação de muitos profissionais.Todavia, sua inclusão se justificava quando ela passava ater uma função aglutinadora, ou seja, quando ela traziaouvintes para usufruir da “essência educativa do rádio”.

Na programação radiofônica da época, “regional”englobava a música de raízes folclóricas, mas também podiareferir-se à música popular urbana (sambas, valsas, polkasetc.). Da mesma forma, “conjunto regional” era aquele formadopor músicos para tocar e acompanhar cantores de músicabrasileira.

Alguns solistas também se apresentavam com muitafreqüência, isoladamente ou como acompanhantes dedeterminados cantores, os quais se especializavam neste

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ou naquele gênero: Januário de Oliveira normalmente seapresentava cantando sambas, o nome de Raul Torres ligava-se às emboladas, etc. Alguns cantores tiveram um sucessorestrito mais a São Paulo, uma vez que as apresentações aovivo nem sempre eram garantia de gravação de discos, o quefaria com que esses nomes se tornassem mais conhecidos.Outros, como Paraguassu, desenvolveram atividadesradiofônicas restritas à capital paulista.

A dupla formada por Lázaro e Machado, hoje poucoconhecida, era outra presença constante na programação;ora cantava modas caipiras, ora se aliava ao cantor Barretoe ao Pinheirinho formando o “Quarteto dos Calungas”. Parase ter uma idéia do repertório do conjunto, na apresentaçãodo dia 12/11/1930, na Rádio Sociedade Record, anunciavam-se os seguintes números: Quá quá quá (samba); Na ladeira(embolada); Chora nenê (toada paulista); Deixa esta mulher(samba); Minha cabocla (samba); Sedenta de Amor (fox trot).Em outras ocasiões, o repertório constava exclusivamentede emboladas, ritmo que fazia sempre muito sucesso.

A ênfase dada a esse tipo de apresentação, que aparececom bastante freqüência, indicava a valorização,principalmente, da música popular de conotação folclórica.Esta não era apresentada sempre “em sua forma autêntica”,tal qual era recolhida pelo folclorista, embora pudesse sê-loàs vezes, como “curiosidade”.

O crescimento da audiência das estações de rádiodependia do aumento do número de sócios, inscritos econtribuintes. Os chamados “rádio sociedade” ou “rádioclube”, estruturavam-se “num sistema em que os ouvintes-sócios, com suas contribuições mensais de 5 mil réis, cobriambasicamente os custos operacionais e de manutenção dasestações.”8

Para crescer, tornava-se necessário que o rádiopassasse a fazer parte do cotidiano da cidade. Isso significavaduas coisas: participar dos acontecimentos urbanos e trazer

8 O Rádio paulista no centenário de Roquete Pinto. 1884-1984.São Paulo,Centro Cultural de São Paulo, 1984, p. 21

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a população (sócios e possíveis sócios) para a área deinfluência da emissora. Assim, em junho de 1930 a RádioSociedade Record anunciava que, em vista do sucessoalcançado pela irradiação do programa especial por ocasiãodo dia de Santo Antonio, faria o mesmo no dia de São João.Era talvez uma das primeiras tentativas da radiodifusão departicipar das atividades realizadas fora dos limites do estúdiodo estúdio, embora mais numa direção voltada para apreservação de costumes e festas tradicionais. Não haviatanto empenho em documentar os acontecimentos; o rádiobuscava muito mais interferir em algumas festividades dacidade, colocando-se como um dos espaços em que elas sedavam.

Aos poucos, a atividade radiofônica paulistana ganhavanovas dimensões. Em junho de 1931 a Record, comprada porum grupo de empresários do qual participava Paulo Machadode Carvalho, anunciava, pelo O Estado de S. Paulo, oprosseguimento das “experiências de sua nova estaçãotransmissora”, passando a divulgar sua programação commais regularidade. No mês seguinte a emissora anunciavaa introdução do chamado “quarto de hora”, que sinalizariauma estruturação mais racional da programação,apresentada nos jornais para o dia, e às vezes até para o diaseguinte. Da programação constava principalmente músicaexecutada ao vivo, com o apoio ora da orquestra, ora do JazzBand Record, ora do Grupo Regional Record. A adoção do“quarto de hora” possibilitava a estruturação da programaçãoem horários fixos, ainda que os mesmos nem sempre fossemrespeitados.

No mesmo mês, a emissora apresentava um programade meia hora com os artistas integrantes do filme Casa deCaboclo - dirigido por Augusto Campos, e baseado na cançãohomônima de Luiz Peixoto e Heckel Tavares - que seria poucodepois lançado em São Paulo. No mês seguinte, novoprograma com o elenco desse filme, no qual os artistascantavam ou declamavam.

O rádio paulistano procurava, assim, pouco a pouco,reservar para si um lugar dentro dos acontecimentos

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culturais da cidade, como divulgador dos mesmos, com ocuidado de não se apresentar como concorrente dos mesmos,para que não fosse acusada de retirar o público dos espaçostradicionais. Entrevistavam-se personalidades do mundoartístico que passavam pela cidade, quando concordavam emfalar diretamente ao speaker, “ao microfone” – artistaspopulares ou eruditos, nacionais ou estrangeiros, escritores,intelectuais de renome, etc.

Nota-se uma confluência da programação do rádio comalgumas atividades do cinema e do teatro. Os artistas de Casade Caboclo não vinham apenas divulgar o filme: eles seapresentavam ao microfone, cantando ou declamando. Omesmo se dava com a apresentação de pequenas peçasteatrais em rádio.

Como isso não se mostrasse suficiente, iniciava-seentão a discussão sobre a possibilidade de uma linguagemradiofônica específica para essas apresentações em rádio.Primeiramente envolvendo a apresentação de peças teatrais,uma vez que deveriam utilizar somente sons, sem o recursoda cenografia. Com esse objetivo, a 21 de novembro de 1931,a Record apresentava palestra de Joracy Camargo, nomepopular da dramaturgia na época, sobre a especificidadedessa linguagem no rádio, até mesmo sinalizando algo emrelação ao radioteatro e às radionovelas que tanto sucessofariam nos anos seguintes.

Ao mesmo tempo, o rádio abria campo para aapresentação de numerosos artistas do teatro e do cinema,em peças, sketches humorísticas ou não, além dos programasjá citados de divulgação de peças e filmes. Isso faria com quemuitos artistas “migrassem”, definitivamente ou não, doteatro (ou cinema) para o rádio. Muitas vezes, o que essesartistas faziam era “contar uma piada”, ou apresentar emforma de diálogo um episódio engraçado, no estilo do teatrode revistas.

Assim, como não havia ainda uma linguagemradiofônica estruturada, também não ficava muito claro queespaço o rádio ocupava dentro da cidade. Músicos que seapresentavam no rádio eram, muitas vezes, os mesmos que

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tocavam na sessões de cinema. Alguns cantores maisfamosos constituíram-se em chamarizes para o públicocinematográfico ou apresentavam-se nos teatros de revistas,não havendo ainda, a rigor, artistas exclusivamente de rádio.

Muitas vezes, os próprios espaços do cinema seconfundiam com os do rádio, naquilo que dizia respeito àsapresentações dos cantores de música popular. Em dezembrode 1931, por exemplo, a Record anunciava um programa comos grandes cartazes do rádio carioca, Francisco Alves, MárioReis, Lamartine Babo e outros, que tinham vindo a São Pauloespecialmente para se apresentarem no Cine Paramount,dividindo o palco com os filmes apresentados. O rádio - maisespecificamente a pequena emissora paulista - talvez nãotivesse ainda fôlego para patrocinar a vinda desses artistas,como chegou a fazer posteriormente. Mas procurava aomáximo participar desse acontecimento, mesmo de formasecundária.

Mas não se pode negar que esses artistas passavam ater uma maior visibilidade frente ao público. O rádiopossibilitava que os paulistanos, por sua vez, tivessem umcontato mais amiúde com os artistas cariocas. Surgia anecessidade de ver, mais do que de ouvir, os portadores dasvozes apresentadas. Era o que o cinema podia fazer.

Foi significativo, nessa época, o sucesso do filmemusical Coisas Nossas, segundo filme sonoro brasileiro delonga metragem, ainda no sistema “vitaphone” (em que acâmara está sincronizada com discos). Dirigido por WallaceDowney (que mais tarde seria diretor artístico da RádioCruzeiro do Sul) em São Paulo, contava no seu elenco com osprincipais cartazes do teatro, do disco e do próprio rádio,alguns destes assíduos nas emissoras paulistas e/oucariocas: Procópio Ferreira, Sebastião Arruda, Paraguassu,Jayme Redondo, Arnaldo Pescuma, Gaó, Jararaca, Pilé,Helena Pinto de Carvalho, etc. Esse filme, ao mesmo tempo,divulgava a produção radiofônica e discográfica paulistana,dando visibilidade aos seus artistas, alguns dos quais eramapenas conhecidos no âmbito local.

Por essa época, começavam a aparecer na programação

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os patrocínios de empresas, como o “quarto de hora da CasaSotero”, o “quarto de hora ‘Café e Assucar União’”, o da empresa“Cruzeiro do Sul”, etc., sinalizando o interesse pela divulgaçãodos referidos produtos através do rádio (anterior mesmo aodecreto-lei presidencial autorizando a veiculação depublicidade pelo rádio).

Além de procurar trazer aos seus microfones os artistasque vinham se apresentar na cidade, o rádio passava a darforça também à atividade fonográfica: no início de agosto,um programa especial organizado por Jayme Redondo,contava “com o concurso dos elementos da Columbia PhonographCompany”. Aliás, a própria emissora evidenciava o apoio quevinha tendo do comércio – especialmente, saliente-se, aqueleligado aos aparelhos sonoros – e anunciava um novoprograma, patrocinado então pela Telefunken.

Se o rádio tinha certas dificuldades para transmitir oseventos musicais realizados na cidade, dado o perigo detornar-se concorrente dos mesmos, podia, não obstante,promover seus próprios espetáculos

Certas iniciativas parecem ter aberto possibilidadesde divulgação pelo rádio de atividades realizadas em outrosespaços, estabelecendo não mais uma concorrência, masampliando a rede de ouvintes e de participantes. No dia 6 deagosto de 1931, a Record transmitia o IV ato da ópera Aída, deVerdi, com orquestra, cantores e coro espalhados pelasexíguas salas da emissora..Em outubro, com patrocínio daGeneral Motors, a Record irradiava do teatro o último ato daópera Madame Butterfly, de Puccini, conjuntamente com aRádio Phillips do Rio de Janeiro. Em novembro, a RádioEducadora apresentava, em irradiação simultânea com aRádio Club de Santos, o espetáculo de estréia da temporadalírica do Teatro Municipal de Campinas.

Outra frente de expansão voltava-se para a direção donoticiário jornalístico. Sem contar ainda com uma estruturajornalística propriamente dita, a Record anunciava queiniciaria, em meados de agosto, a irradiação de “notícias deúltima hora”, para o que contaria com informações fornecidaspela reportagem d’ O Estado de S. Paulo. Não se tratava ainda

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de um “jornal falado”, mas sim de uma atividade que sesustentaria num outro meio de comunicação já melhorestabelecido – no caso, na imprensa escrita. Assinale-se queesse mesmo jornal dava apoio à divulgação das atividades daRecord, mais do que à da emissora concorrente.

A programação musical, mesmo a irradiada atravésde discos, começava a mostrar uma maior diferenciação eum maior cuidado de divulgação. Anunciava-se “música leve”,“música suave”, “música lenta”, “música para dança”, “músicafina”, etc., em vez de simplesmente “musica de disco”, ou“discos”. Valorizando essa forma de apresentação, emnovembro a Record apresentava a ópera O Barbeiro de Sevilhanão mais ao vivo, mas “gravada em discos”.

A estruturação dos programas, todavia, não visava aincorporação de novas camadas sociais a esse meio decomunicação, mas representava uma diversificação nosentido de atender aos interesses dos ouvintes. Passava-segradualmente a dar atenção especificamente à mulher e àcriança.

A diferenciação que tornaria as emissoras mais“especializadas”, dedicando-se uma mais ao esporte, outraàs radionovelas, ou aos programas populares, etc., só se deuposteriormente, com o crescimento do número de estações.As mudanças introduzidas nessa época tinham por objetivoatender ao público que já era ouvinte da emissora.

Em setembro, tentando já efetivamente umadiversificação na programação destinada à parcela do públicofeminino, a Record anunciava a transmissão de uma sériede palestras proferidas “pela senhora Blumenschein”oferecidas, no início do horário vespertino, “às senhoras donasde casa pelos irmãos Lever”. Tais palestras tratavam dequestões como formação para o trabalho no lar e organizaçãodo espaço doméstico, educação feminina, cuidado com ascrianças, moda, etc.A emissora também investia naprogramação para as crianças – preocupação que a Educadoratambém tinha. Alguns desses programas eram transmitidosà noite (começando às 21 horas), posteriormente transferidospara outros horários, vespertinos ou matutinos, ou para

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alguns dias específicos da semana. Alguns deles passaram aser dirigidos por professoras, com um conteúdo nitidamenteescolar, outros constando de leitura de obras literárias porescritores de renome, etc. Em dezembro de 31, por exemplo,a Record anunciava palestra com Monteiro Lobato dirigida“ao público infantil”. Cleómenes Campos, apresentado comosendo “da Academia Paulista de Letras”, também esteve diantedos microfones, contando histórias ou lendo suas obras.Também houve apresentação ao público infantil do compositorLamartine Babo.

Outra maneira de diversificar a programação, nãosaindo das camadas “letradas” da cidade e tendo em vista opúblico já conquistado, consistia em atender as diversas“colônias estrangeiras” que conviviam no espaço paulistano.Em setembro de 31, a Record apresentou dois programasdirigidos à “colônia norueguesa”, “sugeridos” pela presençaem São Paulo do vice-cônsul da Noruega, além de programassubseqüentes de música alemã, espanhola, portuguesa,russa e outras. Essas realizações, entretanto, se limitavama apresentar música erudita ou “semi-erudita”, não seconstituindo ainda em programas “populares”, ou dedicadosàs “camadas populares”.

A importância desse público estrangeiro podia sersentida até mesmo no cinema. Saliente-se que, por essaépoca, muitos dos filmes anunciados traziam observaçõessobre a língua na qual eram falados, especialmente em setratando de produção italiana ou espanhola, sugerindo ointeresse dessas colônias por essas realizações.

Outras mudanças viriam logo a seguir, algumasapenas anunciadas. A Record sugeria a apresentação de umprograma de ginástica, substituído por palestra sobreeducação física dirigida às mulheres, talvez devido ao horáriotardio de início das transmissões radiofônicas. Aliás, airradiação de palestras passava a ser uma constante, emambas as emissoras - sobre o alcoolismo, sobre assuntosliterários e científicos (arquitetura, arte, literatura, saúde,higiene, turismo, medicina, etc., bem como a colaboraçãoem campanhas, como a da construção da nova Catedral da

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Sé.A Record, no início de 1932, estruturava já o seu

primeiro jornal falado diário, com duração mais longa, bemcomo um programa semanal, denominado Rádio-Cosmos,transmitido aos sábados, recapitulando os acontecimentosda semana. Mais tarde, ampliou seu horário transmitindo oJornal da Manhã, das 8:30 às 9:30 horas. Já contava entãocom jornalistas contratados pela emissora, não se apoiandomais totalmente na imprensa escrita.

Nas mudanças da programação, ficava clara umatentativa da Record de expandir sua rede de ouvintes. PauloMachado de Carvalho referiu-se, em depoimento, à realizaçãode programas feitos “da janela, para aqueles que estavam naPraça da República terem ocasião de ver ou ouvir alguma coisa...”9

A Record buscava um contato mais próximo, mais direto comseus ouvintes - ou possíveis ouvintes.

Essa aproximação se dava também através deprogramas realizados a partir de sugestões enviadas por cartaou telefone à emissora (caso da Hora do Sócio, transmitidoaos sábados à noite). Outras realizações ultrapassavam oespaço radiofônico propriamente dito, caso de exposições econcursos diversos dirigidos ao público infantil e adulto. Emmarço de 1932, a emissora realizou, no seu endereço na Praçada República, uma exposição infantil, com livros e objetos,coletando simultaneamente doações para as missõessalesianas que trabalhavam com os índios do Alto Amazonas.Logo depois, entre outros empreendimentos, realizouconcurso literário proposto pela Companhia Editora Nacional.

Em dezembro 1931, no Natal, a Educadora apresentavaum programa especial alusivo à data. A Record, além do seupróprio programa natalino, do qual participaram figuras comoCleómenes de Campos, Genelino Amado, Affonso Schmidt,Guilherme de Almeida, Origenes Lessa, César Ladeira eoutros, inovava com um concurso de sketches humorísticascom prêmios em dinheiro, para o qual se votava através decupom que deveria ser recortado do jornal escrito.

9 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios

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No Carnaval de 1932, a Record apresentava umconcurso de músicas carnavalescas, tentando firmar suaposição nos festejos da cidade. Enquanto isso, a Educadora,significativamente, ignorava essa festa na sua programação.

O radialista Raul Duarte, em depoimento, referiu-seespecificamente às mudanças na linguagem radiofônica quea Record passava então a adotar, visando conseguir umamaior aproximação com o ouvinte – o que significava,simplesmente, torná-la mais coloquial, sem deixar de visara correção e o padrão mais culto:

... a Educadora era muito respeitosa, muito formal, muitosolene. (...) E a Record veio mais irreverente, com muitomais intimidade com o ouvinte. (...) A Educadora só faltavachamar [o ouvinte] de Vossa Excelência. E a Record veiocom uma linguagem coloquial... (...) de amigo ouvinte. (...)... a Record começou a partir a programação de quinze emquinze minutos. Então deu outra dinâmica. Começou aseparar a programação. (...) ... e começou a estabelecer umaintimidade maior entre o locutor, que era o representantedo ouvinte, e o público”.10

A linguagem mais coloquial visava, simplesmente,corresponder à diversificação da estruturação dos programasque se estavam desenvolvendo. O apego à norma culta ficavaclaro no nível exigido para contratação dos locutores, dando-se preferência a pessoas mais qualificadas culturalmente,como acadêmicos de direito, conforme acentuou em seudepoimento ao MIS-SP o radialista Nicolau Tuma, referindo-se à sua própria contratação pela Educadora e depois à suaatuação nesse sentido quando na direção da Rádio Difusora.

Em maio de 1932, mais uma emissora paulistacomeçava a transmitir com regularidade. A Rádio Cruzeirodo Sul- PRB-6 propagava pelas seções dos jornais o iníciosistemático de suas transmissões, após uma recepçãooferecida em seu moderno estúdio. Anunciava queconstituiria uma cadeia com a PRAX, Rádio Philips , PRA-K,Rádio Mayrink Veiga (depois PRA-9, fechada em 1964), ambas

10 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios

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do Rio de Janeiro, com a PRA-J, de Juiz de Fora, e com aPRA-S, de Santos, formando a chamada Cadeia Verde Amarela,depois ampliada - utilizando para isso mais de 1.000 km decabos telefônicos. Além disso, acrescentava, inovaria,transmitindo de locais diversos da própria cidade de SãoPaulo. As transmissões durariam a princípio três horasdiárias, e seriam inicialmente apenas ao vivo.

A Educadora tinha a sua força centrada nas suasmelhores condições técnicas, segundo seus concorrentes OAlmanaque do Rádio Paulistano, publicado em 1951, recordava:“Seu estúdio era um dos mais bem montados de São Paulo:amplo, todinho atapetado, paredes forradas de celotex, grandescortinas amortecedoras de som e, de espaço a espaço, umafotografia de um grande compositor – Carlos Gomes, Beethoven,Chopin, Wagner, Brahms, etc.”

As emissoras pareciam estar ampliando seu campode recepção, atingindo uma maior quantidade de ouvintes, eoferecendo uma programação mais variada. Aumentava acompetição entre elas, se não pela estrutura da programação,pelo menos na qualidade do produto que passavam a oferecer.

A atividade quase amadora da radiotelefonia,entretanto, não se colocava fora das disputas políticas entreos grupos. Já em 1930, antes da deposição de WashingtonLuís, ocorreram episódios envolvendo as emissoras paulistas,quando a Educadora foi acusada de “perrepismo”, por secolocar ao lado das forças do então governo federal.

No dia 8 de março de 1930, numa nota denominada “Avergonhosa conduta da Rádio Educadora”, o jornal O Estado deS, Paulo referia-se ao “espetáculo degradante” oferecido poressa emissora “a nós e aos amadores dos países vizinhos”,depois que esse “patrimônio do povo” (a rádio Educadora)transmitiu “notícias falsas e caluniosas” referentes à situaçãopolítica nacional, ou seja, ao processo de apuração eleitoral.Referia-se ao apoio dado à emissora à candidatura JúlioPrestes, motivo pela qual posteriormente foi ocupada pelasforças revolucionárias, tendo assumido, então, uma novadiretoria. Por conta dessas disputas, o jornal paulistadeclarava que, doravante, se recusava a publicar,

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“gratuitamente, como vinha fazendo”, a programação da referidaemissora.

Essa nota sinalizava um distanciamento também dojornal com relação à Rádio Educadora, a primeira emissorainstalada em São Paulo, e um firme posicionamento a favorda sua rival: passava a transmitir exclusivamente, se bemque de modo ainda irregular, a programação – tambémirregular - da Rádio Sociedade Record.

Ao mesmo tempo, o episódio situava limites entre orádio (e, por extensão, a imprensa) e o governo. O jornal OEstado de S.Paulo em diversas ocasiões havia aceitado ainterferência estatal, mas considerando-a provisória,conjuntural. Todavia, parecia esperar que a atividaderadiofônica se situasse no âmbito da sociedade civil, e nãono âmbito governamental. Isso não impediu, todavia, que asrádios (tais como os jornais) se colocassem ou a favor oucontra o governo, o que fez com que, nos episódiosrevolucionários de 1930 e 1932, a atuação de muitos dosrevoltosos se voltasse para a ocupação das emissoras, mesmoas locais.

Com a subida ao poder do novo governo, em 1930,parecia que a vida cultural da cidade voltava a assumir aresde normalidade. Recomeçavam os concertos e saraus,momentaneamente interrompidos. Todavia, a presença dorádio nesses espaços, mesmo que significasse “a divulgaçãoda arte e da cultura”, era vista ainda com certos cuidados.Havia na cidade um espaço definido de divulgação eapresentação de atividades artísticas, em especial ligado asetores eruditos, com os quais o rádio não deveria concorrer.Além disso, a atividade radiofônica era vista ainda com certadesconfiança. Temia-se até mesmo que a transmissão deum concerto pelo rádio afastasse o público de suas salas,impossibilitando a continuidade dessas atividades.

Significativamente, em 21 de dezembro de 1930, OEstado de S. Paulo publicou memorial da Associação Brasileirade Música dirigido ao Ministro da Educação, alertando para anecessidade de estabelecer limites para as atividadesradiofônicas. Sugeria a criação de uma estação federal da

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Rádio Cultura, com receptores federais em todos os estados,dispondo de uma programação que pudesse atender a “todasas classes e camadas sociais”.

Esse manifesto era apresentado de forma um tantodúbia. Ao lado do desejo de expandir as atividades culturais,ficava claro o desejo de disciplinar as estações de radiodifusãoque estivessem fora do controle governamental, ou seja, noâmbito da iniciativa privada. Seus autores tambémexpressavam a aspiração de introduzir limites ao crescimentoda radiodifusão, bem como da vinculação dessa ao poderestatal. Sugeria-se a ação estatal no sentido de que fossemirradiados concertos, mas, principalmente, ficasse proibida“a veiculação de concertos de salas particulares que espalhamprogramas de gosto duvidoso”, num claro direcionamento aoestabelecimento de mecanismos de censura ou de controle.Alegavam também que essas transmissões, de espetáculosde qualidade indiscutível, poderiam também prejudicar oartista, que não teria então público em sala, numa situaçãode concorrência direta. Entre outras medidas, a associaçãosolicitava também restrição ao número de emissorasautorizadas, isso apesar do seu pequeno número nessaépoca.

Ao mesmo tempo, mesmo setores não adeptos dointervencionismo estatal preocupavam-se com um certocontrole das atividades radiofônicas. Afinal, o rádio eraformador, era educativo. Faziam restrição também à presençada propaganda radiofônica, identificando-a com apossibilidade de macular os objetivos mais altos pensadospara esse meio de comunicação.

As discussões envolvendo especificamente asduas emissoras paulistas continuavam. Em janeiro de 1931,Mário de Andrade publicou uma série de crônicas no jornalDiário Nacional criticando alguns posicionamentos da RádioEducadora Paulista. Do ponto de vista político, acusava aemissora de “perrepismo”, ou seja, de ter apoiado o governodestituído pela Revolução de 30. Do ponto de vista musical,as acusações eram de utilização da mesma pelos diretores -aliás, estrangeiros, salienta o articulista - com a finalidade

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de “fazer propaganda de si mesmos” como professores,promovendo audições amadoras com alunos e sessões dedeclamação, o que provocava a diminuição do número desócios e a necessidade de que a rádio veiculasse propagandaaté mesmo nos horários dedicados à “música séria”. Alémdisso, Mário de Andrade deplorava a falta de critério naprogramação, ignorando toda a produção nacional ligada àsfestas do ciclo natalino, programando tão somente discosnessas ocasiões.

Na visão de Mário de Andrade, tal utilização daradiofonia ia contra os seus objetivos mais amplos, deinterferir no ambiente cultural da metrópole e transformava-se num meio de vender determinado produto - no caso,produtos poderiam ser até aulas de música ou coisa parecida.Em decorrência, colocava-se o autor contra a estatização -neste caso, argumentava, o que seriam vendidas seriam asposições oficiais, como deixou claro em crônica publicada nomesmo Diário Nacional em 14/09/32. Ao mesmo tempo,parabenizava a Record pela programação mais cuidada, maisnacionalista, mais atuante politicamente - apresentandoparódias contra a ditadura, além de discursos ordenados sobreos temas do momento. Criticava tão somente a apresentaçãoda palavra oficial dos chefes constitucionalistas no programaRádio-jornal:

E se a gente observa a mais, que isso destróiostensivamente a liberdade generosa com que a Recordserve à causa que adotou, essa imposição fere como umainjustiça vermelha (...) E ferem de morte a verdadeira‘mentalidade nova’ destes moços, cujo único defeito éestarem agindo melhor e mais desinteressadamente quemuitos outro”.11

A colocação do rádio fora dos limites estreitos docontrole estatal, entretanto, não significava a descrença nasua força como meio de mobilização. No artigo citado acima,Mário de Andrade destacou que a Record tinha se tornado,

11 ANDRADE, Mário de Táxi e Crônicas no Diário Nacional. São Paulo,Duas Cidades,/ Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.

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“na mais legítima significação da palavra, uma entidade social”.E concluiu: “Está representando com uma integridade semvacilações, o seu papel de socializadora.” O significado dessasafirmações pode ser deduzido a partir das negações que eleconstruiu nas diversas crônicas em que abordou a questãodo rádio: ele não deveria ser uma empresa dirigida a partirde critérios econômicos, vivendo da venda de anúncios, nempoderia ser uma instituição estatal; não poderia estarvinculado a vanguardas, nem a interesses e forçastradicionalistas; não pertencer a grupos, mas, comoassociação, decidir seus rumos a partir da própria adesãodos cidadãos a ela...

Aliás, a posição de Mário de Andrade a respeito darevolta de 32 ficava expressa no seu comentário ao dísticoTudo por São Paulo, que a maioria dos soldados escrevia nalateral de seus bibis, e na vinculação regionalismo/nacionalismo por ele construída:

Tudo por São Paulo. Note-se bem: isso não indica de formaalguma, separatismo, nem este me preocupa agora. Quemquer que tenha ascultado sinceramente o sentimento dagrande gente paulista será obrigado a verificar que o ‘Tudopor São Paulo’ exprime apenas o amor à terra paulista, arevolta contra os que indevidamente se apropriaram dopatrimônio paulista, o desespero com que surpreendeu aospaulistas, de sopetão, a verdade de que a revolução não sefizera contra um regime detestável, mas contra São Paulo.

E concluía comentando o dístico visto no bibi de umdos soldados federais: “Tudo por dinheiro...” 12

Portanto, as tensões sociais envolvendo a atividaderadiofônica superavam as opções estatizar/liberalizar. Numcerto sentido, Mário de Andrade, assim como outrosintelectuais, cultivava uma certa ambigüidade no trato comas questões envolvendo o rádio e outros meios decomunicação: reconhecia seu poder formador e educativo,justificador da intervenção do poder público; ao mesmo tempo,tentava preservar uma fronteira entre esse objetivo e o da

12 Idem, ibidem, pp.589/590

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propaganda e mobilização política propriamente ditascolocadas nas mãos do poder público. De forma mais imediata,essa posição ficou clara na resistência das emissoraspaulistas às investidas centralizadoras do governo federalapós 1932, em especial durante os trabalhos da AssembléiaConstituinte. As emissoras recusavam-se inclusive aapresentar o noticiário federal da Hora do Brasil, muitas vezessubstituindo-o muitas vezes por uma Hora de São Paulo.

Com o início da revolta constitucionalista, novosconfrontos envolveram a atividade radiofônica. As emissorasassumiram posições diferenciadas, travando-se umaverdadeira batalha radiofônica, verdadeira guerra pelo “éter”.13

A Record, ao lado da Cruzeiro do Sul, assumia a fala em nomedos revoltosos paulistas, contra os posicionamentosveiculados pela Rádio Phillips do Rio, apresentando-se comorepresentante das forças governistas.

Depois de ocupada pelos revoltosos, a Record deixou deirradiar sua programação normal, transmitindo boletinsnoticiosos e conclamações, estendendo seu horário até amadrugada, quando o sinal da emissora podia ser captadomais longe.

A Educadora e a Cruzeiro do Sul irradiavam tambémnoticiários diários, mas não abandonaram a programaçãomusical. Esta última deixava de apresentar o programa emcadeia com as emissoras cariocas e passava a anunciarprogramação especial dirigida aos soldados das frentes debatalha: principalmente música lírica e uma ópera a cadadia. Passou a transmitir também boletins noticiosos eminglês e espanhol durante a madrugada, para ser captada auma distância maior

Colocava-se novamente em discussão a questão docontrole sobre a atividade radiofônica. Nos depoimentosanalisados, muitos radialistas que atuaram nessa época,como Arnaldo Câmara Leitão, referiram-se com muitoentusiasmo a essa fase, atribuindo ao rádio a possibilidadereal de mobilizar “massas populares”, ou seja, as camadas

13 TOTA, op. cit.

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sociais que ouviam rádio:

... quando a voz bonita e a ênfase interpretativa de umsimples locutor, César Ladeira, pela Rádio Record, haviaconseguido mobilizar as massas populares, notadamente aclasse média, nos rumos pretendidos pela burguesia e ogoverno, promotores do levante militar daquele ano.14

J. Antonio D’Ávila, também em depoimento, atribuiuao rádio a formação de uma consciência contra a ditaduragetulista, mais do que uma mobilização:

O César Ladeira na Rádio Record mobilizou esse Estado-nação criando uma consciência de São Paulo contra aditadura. (...) O apogeu do rádio brasileiro como meio decomunicação, como expressão de comunicação com asmassas em São Paulo, (...) que não apenas movimentouSão Paulo... (...) vários estados, Mato Grosso, Minas, umaparte do Norte... estava com São Paulo sem alcançar asondas da Record, pela repercussão, pelo boca-a-boca, peloouvi dizer...”15

A força atribuída ao rádio fez o citado depoentepraticamente responsabilizar o pequeno alcance das ondasda Record pela derrota paulista, pois isso, segundo ele,permitira a divulgação de boatos sem fundamento:

Até que no Nordeste se espalhou a notícia de que ositalianos iam tomar conta de São Paulo; foi como elesmobilizaram o Nordeste para combater a revoluçãopaulista.”16

Na memória dos radialistas entrevistados que falaramsobre o movimento de 32, percebia-se claramente aidealização dessa participação. Eles, em seus depoimentos,referiam-se ao posicionamento do rádio paulistano,especialmente da Record, como estando acima dos interessesde classes e grupos, homogeneizando sentimentos edisposições. Na verdade, as transmissões radiofônicas, tanto

14 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios15 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios16 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios

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quanto os jornais envolvidos com o movimento, procuravamdar destaque às notícias de vitórias, escondendo percalços eeventuais dificuldades. Também se empenhavam, como aimprensa escrita, em mobilizar e convocar voluntários paraas frentes de batalha, procurando afastar os ouvintes dasnotícias veiculadas pelas emissoras cariocas, identificadascom a ditadura. J. Antonio D’Ávila, em depoimento, comparaa Rádio Record de 1932 com a Rádio Nacional dos anos 40, dotempo do Estado Novo, para reforçar esse papel idealista doprimeiro, realizando mesmo um deslocamento temporal:

[...] Qual é o valor maior? O valor maior de uma emissoraque se instalou com o gordo e farto dinheiro da ditadurapara contratar músicos, orquestras, cantores,programadores, escritores, importar novelas cubanas,novelas mexicanas, transmissores fabulosos de altapotência como é o caso da Rádio Nacional, ou uma emissorade São Paulo que fez o grande movimento, o primeiro gritode “deu tudo errado com a revolução de 30”[...] Se o rádio daRádio Nacional vendeu sabonetes e sabão e xampu e sei láo que... e cigarro ... e creolina... São Paulo “vendeu” umaconsciência nacional, vendeu a consciência nacional com omovimento constitucionalista, vendeu o espírito daConstituição que se procura até hoje!17

Mais do que vencer distâncias, desejava-se firmar osvalores de uma paulistaneidade passível de se impor por seuspróprios valores. Para tanto, exageravam o pequeno alcancedas emissoras paulistanas, que nem sequer eram captadasno interior do estado: “Chamados provincianos, realmenteéramos na época, quer dizer, cuidávamos mais de São Paulo doque qualquer outra coisa; o rádio de São Paulo era um rádiopaulista”, assegurou o radialista Henrique Lobo,estabelecendo a distância entre esses objetivos e o mar deantenas que captava o som das emissoras cariocas.18

Derrotado o movimento de 32, percebe-se que asemissoras demoraram a rearticular sua programação,

17 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios18 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios

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reduzindo o tempo de permanência no ar. A Record, porexemplo, demorou alguns meses antes de recomeçar aapresentação do seu jornal falado. Contratou MarceloTupinambá para dirigir o conjunto regional e lançou umprograma que já havia anunciado antes do movimentoconstitucionalista: Radio-Film, com Guilherme de Almeida.

Frente a essa situação, a Cruzeiro do Sul procuroutambém diversificar sua programação. Continuou atransmitir em cadeia com a Phillips e a Mayrink Veiga do Riode Janeiro, o que barateava seus custos e punha em campoinfluências mais diversificadas. Iniciou também aapresentação de um programa de crítica literária: Acaba deaparecer...”, um dos vários que seriam lançados procurandopreservar esse espaço radiofônico como espaço de cultura ede educação popular.

Essa emissora lançou também, dentro dos mesmospropósitos, um programa infantil a cargo da Profa. MaryBuarque, Nova Viagem a Pequenópolis, contando com aparticipação de crianças.

E passou, ainda, a investir em mudanças significativastendo em vista as questões e os recursos humanos da própriacidade de São Paulo. Introduziu programas humorísticos, acargo de Ariovaldo Pires, abordando personagens e situaçõesque diziam respeito à cidade de São Paulo; quartos de horacom apresentação de modas de viola – muitas vezes entreum programa com orquestra de concerto e orquestra de dança.Aos poucos estruturou um programa noturno apresentado acada dia em horários diferentes, Os Sertanejos, comandadopor Raul Torres. Isso poderia representar uma tentativa detornar a emissora mais popular, e mais paulista, marcandouma posição a esse respeito. Era um movimento no sentidode popularizar a programação do rádio, mas ainda sem tentaratingir outras camadas da população.

Além disso, valorizando assuntos que dissessemrespeito de perto à vida da cidade, essa emissora passava aapresentar o Programa dos Bairros, abordando questõesreferentes a Bela Vista, Higienópolis, Consolação, VilaMariana, Brás, Liberdade, Luz, Santa Cecília, Paraíso,

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Cambuci e Consolação. Até então, o rádio dirigia-se para acidade, demarcando os espaços em que passava a atuar. Comesse programa, a Cruzeiro do Sul passava a trazer as questõesdos bairros para serem discutidas através dos microfones,numa aproximação não somente com a vida urbana, mascom aspectos de uma cidade em particular. Pode-se pensarmesmo numa delimitação espacial da cidade, tendo em vistaos bairros incluídos na programação e os que ficavamexcluídos dela.

Isso aproximava o rádio daquilo que seria considerado“serviço de utilidade pública”, ainda muito incipiente noperíodo. Alguns anos depois, em 1937, a Record passava aapresentar um programa chamado A voz do Povo, quandotrazia ao microfone “entrevistas rápidas sobre os mais diversosassuntos”.

Além disso, os aparelhos de rádio distanciavam-se dosmodelos anteriores, de galena com fones: o modelo capelinhase adaptava perfeitamente às salas das residências, e podiaser ouvido em conjunto pela família. Em decorrência, aprogramação também deveria sofrer mudanças.

A preocupação da diretoria da Record em colocar aemissora a serviço das causas políticas teve continuidadedurante o período da Assembléia Constituinte (1934) . À noite,passou a apresentar o programa Jornal da Constituinte,durante o qual o microfone era colocado à disposição dasprincipais lideranças paulistas. O rádio tornava-seinformativo, sem deixar de cumprir seu papel formativo.

Muitos dos redatores que passaram a escreverpara o rádio já haviam tido participação em órgãos daimprensa escrita, seja em jornais como O Estado de S. Paulo,Correio Paulistano, Diário Nacional e outros, como naspequenas revistas literárias, humorísticas, de variedades,organizadas muitas vezes em torno de posicionamentospolíticos.

Ao transplantar para o novo veículo de comunicação aexperiência jornalística, tornava-se claro a necessidade dese estruturar um novo tipo de linguagem. Em primeiro lugar,tratava-se de sintetizar a notícia: o rádio tinha um tempo

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preciso, não se podiam “acrescentar minutos” a esse tempo,como salientou Nicolau Tuma.

Em segundo lugar, mudava a maneira de narrar oacontecido. O radialista Maurício Loureiro Gama, emdepoimento, procurou exemplificar essa mudança: destacouque, ao se ler uma notícia no jornal escrito, podia-se aqualquer momento voltar a lê-la para complementar ainformação. O rádio, ao contrário, tinha que transmitir amesma notícia de modo que ela fosse sempre inteligível apartir do próprio enunciado. Ele cita um exemplo: ao narrarum desastre de avião, vai-se acrescentando informações, erepetindo a notícia: “Caiu ontem um avião da VASP. No aviãoque caiu ontem, que pertencia à força Aérea de São Paulo, faleceuo escritor Beltrano”, de tal maneira que a qualquer momentoo ouvinte saberia que se estava falando de um acidente deavião.19

Em terceiro lugar, introduzida a publicidade no rádio,através do decreto-lei no. 21.111 de 1º de março de 1932,colocava-se a necessidade de falar ao público mais amplo, ouseja, mais do que se voltar ao público que ouvia rádio, tratava-se de se dirigir àqueles que poderiam ser atingidos peloanúncio.

A rigor, não se pode afirmar que a veiculação dapublicidade no rádio introduziu mudanças profundas naprogramação. O que se nota, de início, é uma divisão entreos espaços publicitários e a programação normal da emissora.Aos poucos, esta foi-se estruturando no sentido de atenderaos diferentes interesses dos seus ouvintes e a propagandafoi acompanhando essa diversificação: os produtos para o lareram anunciados nos programas femininos, etc.

Houve também alguma preocupação em direcionar aprogramação para assuntos do meio rural brasileiro, mas nãoainda no sentido de expandir a rede de ouvintes nessa região.Concomitantemente à expansão da atividade radiofônica nacapital, tinha havido a instalação de rádios nas principaiscidades do interior do estado, mas a programação destas não

19 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios

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era essencialmente diferente daquela das suas congênerespaulistanas. Assim, podemos supor que a programação parao homem do campo das emissoras paulistanas visava alcançarmuito mais aquele que já era ouvinte, que vivia ou tinhatrânsito no meio urbano e interesse nas atividades agrícolas.

Em 1933, a Rádio Educadora anunciava uma Hora daFazenda. Pelas informações em jornais, sabe-se que pelomenos em 1937 esse programa estava sob a direção doagrônomo Annibal Machado, diretor do Jornal dos Produtores.Também nesse ano a Cruzeiro do Sul apresentava o programaHora Agrícola, em que consultas eram respondidas pela equiperesponsável pela revista Sítios e Fazendas.

Essa preocupação com o mundo rural, maisespecificamente com o homem do campo, portanto, eraessencialmente educativa. O rádio deveria levar ao interiorinformações especializadas e conhecimentos científicos quepossibilitassem uma atuação mais racional na agriculturae na pecuária.

Essa atuação educativa, em certo sentido, respondiaàs demandas colocadas por diversos setores daintelectualidade referentes aos destinos do Brasil a partirdas políticas centralizadoras governamentais pós-30. Emtorno de Sud Mennucci congregavam-se vozes que defendiaminvestimentos no setor agrícola brasileiro, visando amodernização e a mecanização da agricultura. A ponta delança desse projeto ruralista era colocada na educaçãofundamental, que deveria ser fundamentalmente técnica,tendo por objetivo impedir o êxodo rural e fixar a populaçãono campo. O cinema educativo e o rádio tinham uma posiçãodestacada nesse sentido, dado o acesso precário da populaçãoaos meios de transmissão escritos (jornais, revistas, livros).20

Em 1934, quando São Paulo já atingia uma populaçãode aproximadamente 1.060.000 habitantes, novas emissoraspassaram a disputar a audiência na capital : além da Record,da Cruzeiro do Sul (posteriormente, Rádio Piratininga) e da

20DUARTE, Geni Rosa. Rumo ao Campo: a civilização pela escola. São Pau-lo, 1910/20/30. São Paulo, PUCSP, 1995 (dissertação de mestrado)

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Educadora, começaram a transmitir com regularidade,disputando a preferência dos radio-ouvintes, entre outras, aRádio São Paulo, PRA-5, a Rádio Cultura, PRE-4, a Excelsior,PRG-9, a Kosmos, PRH-7 (posteriormente RadioPanamericana, depois Jovem Pan) e a Difusora, PRF-3. A partirde 1937, entram no ar a Rádio Bandeirantes de São Paulo,PRH-9, e a Rádio Tupi de São Paulo, PRG-2.

O surgimento desta última, inclusive, que foiinaugurada em novembro de 1934, veio precedida deanúncios bastante destacados nos jornais, que veiculavama sua potência e aquele que será o seu slogan (sugerido porGuilherme de Almeida) : “A Estação do ‘Som de Cristal’.” “Doalto da Torre da Difusora se avista toda a América do Sul...”,dizia um dos anúncios, antecipando a fase em que asemissoras de rádio se voltariam para fora, não apenas para ocotidiano paulistano.

Nicolau Tuma narrou em depoimento ao MIS-SP, aliás,como se deu a inauguração dessa emissora. Considerandoque São Paulo tinha sido derrotado militarmente, pretendeupromover um verdadeiro espetáculo de reconciliação nacional.Iniciou transmitindo o hino Paris Belfort, identificador domovimento de 32, e aos poucos o som foi baixando e sendosubstituído pelos acordes do Hino Nacional Brasileiro.Sinalizava também uma etapa de preocupação não mais como imediato, com o mais próximo - o rádio paulista lançava osolhos para horizontes nacionais, e até mesmo para fora dopaís.

Durante o ano de 1935, a Difusora se envolveu numaverdadeira guerra publicitária com as demais emissorasatravés dos jornais. Ao lado da programação que o jornal OEstado de S. Paulo publicava, a emissora inseria pequenosanúncios, destacando partes de sua programação; porexemplo, a participação de Francisco Alves, ou o programaChá no Ar (escolhido exatamente porque podia ser confundidocom a expressão francesa Chat Noir). Depois disso, começoua publicar também anúncios maiores, reproduzindo cartassobre a recepção da emissora em locais distantes: “DoIpiranga ao Tejo”, acusando a recepção em Portugal. A Record,

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sublinhando ser “a voz de São Paulo”, respondeu com outroanúncio, reproduzindo trechos de cartas e destacando, sobreum mapa da América do Sul, as cidades receptoras do seusinal. Ao que a Difusora respondia com outro anúncio, nosmesmos termos. E assim prosseguia a disputa.

A Rádio São Paulo, que começava a transmitirregularmente, procurava também assumir umacaracterística mais paulista. Tentava se firmar com base noseu “cast” de artistas contratados: assim, no carnaval de 1935,publicou anúncio destacando que seus artistas tinhamconseguido colocações excelentes tanto no concurso demúsicas carnavalescas tanto da comissão oficial, quanto doconcurso promovido pela sua concorrente, Rádio Record: “Maisque “Record”, era como destacava seus êxitos.

A Rádio Kosmos tinha uma programação especialtransmitida a partir do seu elegante salão de chá que ficavana Praça Marechal Deodoro. À tarde, a emissora apresentavauma programação ao vivo de filmes, dirigida “aos sócios e suasexcelentíssimas famílias”. Não se tratava simplesmente defazer chegar o som aos lares dos radiouvintes, mas trazê-lospara o espaço radiofônico, num processo claro decomprometimento com uma determinada emissora, e nãocom todas.

Percebia-se, com o estabelecimento das novasemissoras paulistas, que o seu objetivo era a ampliação doslimites, agora não mais no sentido de diversificação segundoos interesses do seu público, mas, agora sim, de atingir outrascamadas que ainda não tinham tido acesso à programaçãoradiofônica. Com esse objetivo, várias emissoras passarama investir nos programas humorísticos. Cada emissorapoderia se destacar das concorrentes através do seu “cast”de artistas, concentrados em torno de determinadosprogramas de sucesso.

Esse direcionamento ao popular, todavia, tambémrecebia críticas. Randal Juliano destacou que, através dosprogramas humorísticos, o rádio abandonava aquele padrãoculto e elitista imposto por Roquete Pinto, contrabalançandoa notícia comentada e a música. Tentou explicar o porquê

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desse sucesso, a partir das necessidades sentidas pelo públicoque passou a ser fiel a essa nova programação:

Havia uma sede de bom humor naquela época do Brasil. OBrasil estava carente de motivos que o levasse a rir. Entãoo povo estava predisposto à risada e o rádio partiu, deu aopovo motivos para ele rir, caricaturando o próprio povo. Ascaricaturas que o rádio fazia de figuras do povo, o povoencontrava a graça e o povo ao final acabava rindo-se de simesmo.21

Aos poucos, portanto, sem deixar de lado suafinalidade educativa e integradora, o rádio assumia uma facemais voltada para o lazer e o entretenimento, abrindo-se paraoutras camadas sociais.

A popularização através do humorismo, todavia, nãofazia com que o rádio esquecesse suas matrizes culturais eeducativas. Intelectuais como Affonso Schmidt eramcontratados para escrever crônicas, interpretadas porlocutores escolhidos por seu excelente nível cultural e suadicção esmerada. A questão do sotaque adotado por essesprofissionais era de extrema importância, valorizando-se,segundo Henrique Lobo, o acento paulista ou o gaúcho,considerados mais inteligíveis e elegantes.

Ampliavam-se os horários de transmissão dosprogramas, alguns a partir de 6:30 ou 7:00 h da manhã. Numatentativa de abertura para outras camadas da sociedade,começaram a ser apresentados em diferentes emissoras osprogramas caipiras e/ou regionais. A princípio, a cargo dosartistas que já tinham efetuado uma trajetória significativano rádio, como Raul Torres, que durante algum tempoapresentou um programa na Rádio Cruzeiro do Sul, Torres eos Sertanejos, depois Embaixada do Torres, com “emboladas,toadas sertanejas, sambas e novidades”. Inicialmente nohorário noturno (às 19:30 horas ou depois), passou em seguidapara a parte da tarde (entre 13 e 14 horas). Eventualmente,a dupla Laureano e Soares, bastante conhecida, apresentavaum quarto de hora de modas de viola.

21 Centro Cultural de São Paulo – Arquivo de Multimeios

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Cornélio Pires passou a fazer um programa diário às18:30 h, pela Difusora de São Paulo, “narrando piadas e causos,transmitindo gravações musicais de fundo humorístico”.Enquanto isso a Rádio Cultura, dia sim dia não, apresentava,das 13 às 13:30 h, um programa caipira, intercalado com umoutro de uma orquestra húngara.

Ainda em meados da década de 30, começaram aaparecer os programas de calouros, em que os candidatos eramchamados a apresentar seus talentos. A pioneira nesse setorparece ter sido a Rádio Cruzeiro do Sul, com Ariovaldo Pires, oCapitão Furtado (que disputa essa primazia com Ari Barroso,no Rio de Janeiro), cujo programa foi “ressuscitado” em 1937,dada a ida do seu criador para o Rio. Nesse ano, a Rádio Culturaapresentava, à tarde (14 h), seu Programa da Peneira,enquanto a Rádio Record lançava o concorrente Há-tchá-tchá.

Havia o cuidado de preservar certos programas da pechade popularesco. Em março de 1937, a Rádio Cultura divulgavao Programa da Peneira, que seria apresentado diretamentede seus estúdios, à Av. Jabaquara, 2983, “naquele ambientede distinção, cordialidade e justiça”. Anunciando valiososprêmios, divulgava também a Comissão do Gongo: Dr. SylvioPrado, Dr. Antonio Prado e Sra., Dr. Antonio Ribeiro dosSantos, Dr. Roberto de Souza Queiroz e Sra., Dr. B. OrlandoMartins, Sra. Vera da Silva Prado, Sr. Plínio de Barros Loureiroe Sra.

Abrindo-se para novos espaços, ampliando a cada dia oseu alcance, o rádio paulistano passava a repensar suafunção. Deixava de ser o rádio provinciano, ligado somenteàs coisas da capital, para englobar também as cidades dointerior.

Por outro lado, percebe-se claramente que a guerrapor audiência se dava tendo por pano de fundo ainda algumasquestões políticas, com algumas delas assumindo umapaulistaneidade ainda centrada nos temas da revolta de 1932,ainda não totalmente resolvidos, apesar da tentativa daDifusora de centralizar a superação do separatismo implícitonas manifestações ligadas ao 9 de julho.

Em maio de 1934, o governo federal instituiu a

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obrigatoriedade de apresentação, por todas as emissoras, da“Hora Nacional”, além de outras medidas controladoras daimprensa em geral e da atividade radiofônica em particular.Tais medidas centralizadoras tinham tido origem na criação,em 1931, do Departamento Oficial de Publicidade, como órgãode controle e difusão de informações. Segundo SilvanaGoulart, o órgão era ligado à Imprensa Nacional, dirigido porum jornalista, e seus redatores não atuavam como censores,mas produziam matérias para orientar na divulgação elegitimação do novo governo. “O DOP se propunha a alterar acondição de ‘deseducação cívica do povo’, a ausência de intençõesúteis e patrióticas, e a defender o patrimônio coletivo contra oderrotismo incentivado pela imprensa”.22

Em 1934 o DOP foi reorganizado, nascendo oDepartamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), quepassou a ser dirigido por Lourival Fontes. Esse órgão foi maisuma vez reorganizado em 1938, surgindo então oDepartamento Nacional de Propaganda (DNP) – depoisabsorvido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),também sob a direção de Fontes.

As determinações no sentido de transmitir aprogramação elaborada pelos órgãos federais de controle deinformação não foram acatadas de forma plena pelasemissoras paulistanas, que responderam com a instituiçãoda “Hora do Silêncio”, com os equipamentos desligados noshorários determinados pelo governo federal.

Os empresários donos das estações de rádio paulistasorganizaram-se, fundando a Federação Paulista das Emissorasde Rádio. O governo central foi obrigado a recuar, limitando oprograma a apenas meia hora, das 19 às 19:30, e bancandoos custos dessa retransmissão. Mesmo assim, algumasemissoras se recusavam, transmitindo outros programasnesse horário. A Rádio São Paulo, em 1935, anunciava pelosjornais a transmissão da Hora de São Paulo, patrocinada pelaCasa de São Paulo, sociedade por ações destinada à colocaçãodos produtos paulistas em outros mercados. Aliás, a própria

22 GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial.São Paulo: Marco Zero/CNPq,1989 , p. 56.

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venda das ações dessa associação apelava ao dever que cadapaulista deveria cumprir, para o bem de São Paulo.

Goulart destaca que a Constituição de 1934 jáapresentava algumas restrições à liberdade de imprensa, secomparada à de 1891. Já em 1931, Getúlio Vargas jádestacava o papel da imprensa na luta de reconstruçãoiniciada em 1930, condenando “a imprensa mercenária, pagapara iludir e elogiar”; para ele, “o jornalismo estava no plano doideal de liberdade, a serviço de uma grande causa”, conclui aautora citada.

Pela Constituição de 1937, a imprensa se viu investidade uma função de caráter público, passando a funcionarcomo”importante sustentáculo do Estado no seu esforço de auto-justificação e legitimidade”, e o jornalista passou a serconsiderado “um funcionário do Estado” . Aumentavam ospoderes do DIP, a par da regulamentação da intervenção doEstado em todos os meios de comunicação, passando ainterferir até mesmo na propaganda comercial. 23

A programação cultural veiculada pela Hora do Brasilnão era incoerente com aquilo que os radialistas paulistasdestacavam ser a essência educativa do rádio. A programaçãoveiculava a “boa música”, privilegiando autores brasileirosconsagrados, pretendendo assim interferir no gosto dosouvintes; incluía ainda comentários sobre arte popular dosmais diversos recantos do Brasil, além de descrições de pontosturísticos e exaltação dos heróis do passado.

Podemos concluir que as disputas no terreno daradiodifusão, entre os órgãos de imprensa paulistas e ogoverno federal, não podem ser pensadas fora desse embatepelo controle dos mesmos. Durante o Estado Novo, o maisimportante órgão de imprensa, o jornal O Estado de S.Paulo,esteve sob intervenção, enquanto seu diretor-proprietário seexilava. E a disputa por esse controle colocava em camposopostos a radiodifusão paulista e o governo federal, com seuprojeto centralizador.

23 Idem, ibidem, pp. 48/52.

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Nesses embates, São Paulo tentava firmar-sepoliticamente. O rádio, então, transfigurava-se numinstrumento de afirmação do poder regional e de reiteraçãode uma paulistaneidade que se expressava como formadorada consciência nacional.

Nessa direção, citamos um estudo sobre a radiodifusãoem São Paulo publicado em 1942, onde o autor, Caldeira,assegurava que ela era “suscetível de apressar a evolução denossa pátria”. Referindo-se ao seu potencial educativo e dehomogeneização cultural, o autor destaca seu papel demodernizador e moralizador da atividade política, fazendo comque esta superasse os limites estreitos do mandonismo local,podendo ser pensada nacionalmente – liderança, aliás,

reivindicada com toda força por São Paulo:

... [o rádio] dilui ainda mais a autoridade do “coronel”,tradicional intermediário entre as capitais e o Interior,embora a sua prejudicial atuação já tenha sidodesprestigiada pela eliminação dos partidos políticos.24

24 CALDEIRA, Nelson Mendes. Estudo sobre a radio-difusão em São Pau-lo, Brasil. São Paulo, Federação Paulista das Sociedades de Rádio, 1942,p. 7

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Sons de São Paulo

Resumo: A partir dos anos 30, o rádio em São Paulo buscouconsolidar-se como um importante referencial na vida cul-tural da cidade. Abandonando um padrão elitista e impesso-al característico dos primeiros anos, procurou pouco a poucoabranger camadas mais amplas da população, redefinindoassim seu papel cultural. Com o crescimento do número deemissoras e a expansão do rádio de recepção de suas ondaspara regiões mais distantes, houve uma significativa diver-sificação na programação. Este estudo tem por objetivo dis-cutir o crescimento da atividade radiofônica enquanto umadas atividades que permite acompanhar o crescimento e atransformação da cidade numa metrópole.

Palavras-chave: rádio, programação radiofônica, vida urbana

Abstract: From the thirties’, the radio in São Paulo ask forestablishing itself as an important point of reference in thecultural life of the city. Abandoned a kind of impersonal “up-per-class” style, a characteristic of its first years, the broad-casting tried, little by little, to reach wider strata of the popu-lation, redefining its role. As the number of stations in-creased, subsequently reception enlarged, there was a mean-ingfully diversification in their programs. This study intendsto consider the broadcasting enlargement as a way that showsthe transformation of the city into a metropolis.

Key-words: radio, broadcasting, urban life.

Sons de São Paulo: a atividade radiofônicapaulista nos anos 1930/40

Geni Rosa Duarte

Artigo recebido para análise em 22/07/2004Artigo aprovado para publicação em 15/12/2004

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