Sorriso em Rosto Duro

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Sorriso em rosto duro por TwoWheelsTouring يبرغم جيلزلا

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Reportagem sobre viagem a Marrocos

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Sorriso em rosto duro

por TwoWheelsTouring

جيلزلا يبرغم

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TwoWheelsTouring يبرغم Marrocos Xcape 2010

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Índice Zellij vivo جيلزلا

Marrocos é um zellij vivo, mosaico de múltiplas cores e ambientes. 4

O que esconde uma cortina ةريب A praça esvazia-se e, onde há minutos fervilhava vida num duelo de aromas e cores, apontam-nos uma porta. 6

Eu sou o caminho ةيران ةجارد Ainda com o sabor fresco da lama do recente curso de fora-de-estrada, aceitamos o desafio de visitar Marrocos. 8

Bar(r)aka ءارفصلا ةصاوغلا Uma semana antes da partida, ensaiamos a coreografia. 10

A Fronteira Visível دودحلا ةيئرم A noite cai sobre umas centenas de carros, motas, furgonetas e caravanas acotoveladas na entrada para Marrocos. 12

Brochura quimérica رفسلا براجت Que espaço reservo na bagagem para os sonhos? 14

Cubo de açúcar em chá de menta شوبرط Em terra de medinas, quem tem GPS é Rei. 16

Tâmara em Ostra Árida زيز ر�ن Da superfície, não se adivinha. Como num recife de coral, é mergulhando no oásis que as maravilhas se revelam. 18

Por entre os dedos dos pés يبشلا قرع Sahid segue descalço guiando quatro dromedários ao vestíbulo do Sahara. 20

De dentes arreganhados جروج ةردت ) De pé sobre os estribos, cotovelos para fora e dentes arreganhados, movemo-nos em colunas de poeira. 23

Rolar em Marrocos ةلمن Conduzir uma moto por Marrocos é uma experiência marcante e nem sempre pelas razões que anteciparíamos. 26

Confortos Algumas das estadias destacaram-se de sobremaneira, por razões diferentes. 29

Contadora de histórias ءانفلا عماج Jemma El Fna conta-nos histórias em cada banca e roda de gente 32

Entranhado ةيا�ن Marrocos é um teimoso grão de areia 33

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Zellij vivo جيلزلا

Marrocos é um zellij vivo, mosaico de múltiplas cores

e ambientes.

Na base relaciona-se com o azulejo, de essências simples e ligadas à terra. Em ambos o efeito é hipnotizante.

Em cada cor, outro idioma. Do Norte ao Sahara, a sonoridade de Marrocos grita bem alto os povos e culturas que se enamo-raram do Maghreb. O espanhol e francês falados, menos exóticos, evocam-me desilusão pelo Português que se desco-nhece. Mas o árabe, mesmo falado, desenha na areia imagens de sonhos.

Prefiro estrear num país que me é estrangeiro conhecendo os rudimentos da língua. Mas Marrocos é uma Bélgica em Áfri-ca: Tarifit no Rif, Tashelhit no centro, Tamazight no Atlas ou Tuareg no Sahara, num desfile de dialectos que pareço con-denado a ver de fora. Faltam apenas cinco dias para a viagem durante os quais ensaio: “La bes”, “Shukran bezzef”,

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“Salaam alaykum”. Arranho cumprimentos elementares, agradecimentos e votos do melhor com quem me cruzar.

Olho para a caligrafia na escrita, dançarina exótica, com uma pontinha de inveja. Escreve-se da direita para a esquerda e, nesta fantasia imaginada, tudo funciona ao contrário.

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O que esconde uma cortina ةريب

A praça esvazia-se e, onde há minutos fervilhava vida num duelo de aromas e cores, apontam-nos uma

porta.

Sob uma galeria da praça em Beni-Mellal, uma porta parece esconder algo que a destaca das demais agora fechadas. Junto a esta numa cadeira um porteiro corpulento, vestido de fato e gravata escuros, levanta a cabeça do telemóvel para nos enco-rajar a entrar.

De fora não se adivinha o que esconde a pesada cortina, coça-da de cor rosa velho, nas suas meias portas entreabertas. O nariz estraga a surpresa. Um denso cheiro a fumo e cerveja recebe-nos, no momento em que uma centena de pares de olhos e outros tantos bigodes marroquinos convergem em nós. Ao início o ambiente é intimidador mas rapidamente nos envolvemos na companhia e não tarda a que nos sejam ofere-cidos amendoins torrados com sal, ora de um lado ora de

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outro, servidos sobre uma folha de jornal. Cinco fileiras de mesas corridas paralelas ao balcão, cobertas com toalhas de plástico floridas. Atrás deste uma televisão tenta competir com o ruído das vozes elevadas. O espampanante espectáculo musical de Bollywood entretém caso falhem as conversas sobre temas universais à volta de dezenas de garrafas vazias de cerveja marroquina, Stork e Speciale, engarrafadas em Casablanca. Na parede em frente à entrada sobre a ombreira da porta, uma fotografia do Rei Mohammed VI dá o mote, figurando a tomar uma bebida, seguramente chá de menta.

Por entre as cadeiras e os nossos companheiros de bebida, circula um vendedor de bayd Mslooq1, carregados num tabu-leiro coberto por um pano que protege o khobz2. Por um punhado de dirhams3, abre um quarto de pão onde coloca o ovo descascado no momento e regado com azeite de uma garrafa de litro opaco, escondida num saco de pano que deixa no chão, aliviando o ombro cansado de um dia de trabalho.

As bebidas são servidas com um ritmo impressionante para a relativa pouca gente que a sala apinhada parece acomodar. As arcas frigoríficas verticais nem estão ligadas, tamanha a rota-ção.

Ao percorrermos a sala encontramos expressões que encon-traríamos num qualquer bar Ocidental: o malte torna uns mais ruidosos enquanto outros, sonâmbulos, lhes parece passar ao lado a animação da discussão dos temas da vida. Mas afinal então o que torna este País muçulmano de berbers orgulhosos assim tão diferente?

1 Khobz bil Bayd Mslooq wa Zeet al-Zaytoon: pão com ovo cozido e azeite (ضيب)

2 Pão marroquino, o nosso companheiro de viagem mais presente

3 Moeda local com valor facial aproximado de 1/11 de euro

Em Marrocos, país muçulmano, não é permitido beber álcool em sítios públicos, sendo tolerado em locais apropriados.

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Eu sou o caminho ةيران ةجارد

Ainda com o sabor fresco da lama do recente curso de fora-de-estrada, aceitamos

o desafio de visitar Marrocos.

Nos recentes anos passados as férias haviam sido degustadas em viagens de moto, sozinhos, e ao longo de estradas alca-troadas. Optávamos então por cadenciar os troços de estradas com caminhadas, sujeitos apenas ao nosso ritmo e andamento. O desafio que agora aceitamos é condicionado pelas opções de um grupo e de um trajecto que ao líder compete seguir.

Não fora faltarem apenas duas semanas para a viagem e não nos aguentaríamos, habituados a planear as coisas, estudar os mapas e guias antecipadamente, estabelecer alguns contactos. Damos por nós a rodar os polegares, ou cutucando o vidro do relógio para acordar o ponteiro adormecido.

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Nos últimos 4 anos a VFR levou-nos a destinos como ao Douro, aos Picos da Europa, à Córsega e aos Alpes.

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Dos cinco pilares do Islamismo fundamental, haj é na essên-cia uma viagem, um percurso a realizar enquanto culminar de uma vida de devoção dos muçulmanos. Viajar torna-se assim realizar e atribuir um significado mais profundo. As crenças berbers antigas palpitam no Maghreb e é de um equilíbrio, pouco ortodoxo aos olhos do Islão, que brotam zawijas, via-gens de adoração.

Enquanto parto para esta nova zawija em terra de viajantes desejo que, ao olhar para trás, a minha haj seja feita de via-gens.

Pilares do Islamismo:

Shahada: a afirmação da palavra de Deus confiada a Maomé;

Salat: a oração cinco vezes ao dia;

Zakat: a obrigação moral de dar a quem precisa;

Sawm: o jejum diurno praticado durante o Ramadão;

Haj: a peregrinação a Meca.

As Zawija são locais de adoração de marabouts sunitas (sayyed, em árabe).

Sayyed: muçulmanos que se destacaram pela sua devoção. O reco-nhecimento destes colide com o Corão, o qual desaprova a adoração de ídolos.

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Bar(r)aka ءارفصلا ةصاوغلا

Uma semana antes da partida, ensaiamos a

coreografia.

Pela nesga da porta entreaberta da loja da MotoXplorers, um sobrolho levantado espreita. A BMW 1150GS, amarela, de faróis assimétricos e bico de pato protuberante fará as honras de nos levar na viagem. Enquanto aguardamos o resto de grupo, ensaio a posição de condução e os receios da altura ao solo excessiva desaparecem. Esta seria a primeira vez que conduzo uma maxi-trail e que melhor sítio para fazer do que por África?

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De E. arriscamo-nos a conhecer-lhe bem as costas, seguindo-o durante 9 dias por Marrocos, confiantes que sabe o cami-nho. Para quem confia nas primeiras impressões, E. assusta. A sua visão para a vida é de uma descontracção que descon-certa e pode ser confundida com falta de empenho, dedicação

Para quem percebe pouco de motos mas vai ao cinema ou vê televisão, a BMW 1150GS assemelha-se à escolhida (1150GSa) por Ewan e Charlie na mediática viagem à volta do Mundo, Long Way Round.

Baraka: estado de graça que envolve as zawijas, locais de adoração de sayyed (ver acima).

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ou mesmo responsabilidade. É preciso prestar-lhe atenção para perceber o contrário.

Nesta viagem a Marrocos, peregrina, viajaremos com o nosso sayyed, detentor de baraka de inúmeras vindas ao Norte de África. Com ele, viaja um grupo de sete devotos que, em preces privadas, roga para que não dê barraca.

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Ao nosso líder de viagem chamaremos E. A sua calça de ganga e polar reforça a postura descontraída face a tudo.

Tem o carisma dos líderes e um sentido de humor a condizer, e um indisfarçável horror à autoridade.

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A Fronteira Visível دودحلا ةيئرم

A noite cai sobre umas centenas de carros, motas, furgonetas e caravanas acotoveladas na entrada

para Marrocos.

Uma frota de oito portugueses e um navegador galego desembarca em África. Nem há seis séculos, ao longo da costa atlântica, semeávamos fortalezas no caminho das rotas desejadas a Sul. Hoje, seis corcéis com o ferro das melhores casas da Bavária4, investem por terra.

À volta, levantam-se paredes móveis com quase dois pisos de altura. Furgonetas carregadas até ao cocuruto e recheadas de colchões, móveis e roupa entre os quais se adivinham pares de olhos, de gente soterrada pela carga. Ao ar carregado de gases dos motores diesel antigos acresce a tensão do momen-to, debaixo de um chinfrim de buzinas e protestos. À volta de 4 Em rigor, um corcel chegou de junco desde o Sol Nascente.

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cada carro os “facilitadores locais” esgrimem argumentos, tentando seduzir os viajantes para aceitarem ajuda no proces-so de preenchimento dos papéis e carimbos de passaportes.

Esta é a nossa primeira negociação de uma fronteira africana. Na nossa cabeça pululam imagens preconcebidas e ecoam as palavras de cautela da visão de um europeu do continente vizinho, enorme e assustador.

Viajar com quem já passou por várias fronteiras em África alivia o momento. Levamos instruções claras: quem trata dos papéis é o líder do grupo e devem ser recusadas quaisquer ajudas. Enquanto vou empurrando as motos ao longo da fila lenta e barulhenta, dou por mim a imaginar como seria se estivesse por minha conta. Esforço-me por absorver tudo o que está acontecer, aqui e lá à frente junto às cabines onde hordas de gente agitam papéis de várias cores. No guichet o guarda impávido vai escrevendo num e noutro papel. Aí, as batidas dos carimbos soam a pancadas de Molière numa encenação africana que se anuncia à plateia impaciente.

Mais ao fundo, o cenário assemelha-se a uma feira; trouxas de roupa espalhadas pelo chão, bagageiras e capots abertos. Tipicamente, as motos não são consideradas veículos suspei-tos, talvez pela limitada capacidade de carga, incompatível com contrabando expressivo.

Seguimos viagem 90 minutos depois de chegarmos à aduana, rumando a Tétouan onde nos espera o primeiro jantar africa-no. Olhando para trás fica a sensação que nos teríamos safado melhor aceitando a ajuda local…

Para atravessar a fronteira de Septa, entrando em Marrocos, é necessário munir-se de Passaporte, Declara-ção de importação temporária da viatura e documento da Imigra-ção. Se estiverem para aí virados, pode ser precisa a Carta Verde do seguro da viatura.

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Brochura quimérica رفسلا براجت

Que espaço reservo na bagagem para os sonhos?

Sempre que iniciamos uma viagem vejo com ambiguidade a democratização do turismo e a extrema facilidade de acesso a mananciais de informação sobre tudo e de qualquer parte do Mundo. Por um lado permite-nos antever, planear e ganhar a ilusão de algum controlo das nossas viagens. Por outro, cria em nós expectativas geradas por conteúdos de uma riqueza gráfica profissional, ilustrando cenários fabulosos. A verda-de? Provavelmente, nunca os recrearemos e, aos poucos, consubstancia-se uma sensação de desconforto e desilusão.

Semanas antes, vagabundo por uma livraria. Tropeço num livro que poderia chamar Carpe Diem. Esta edição “Make the Most of Your Time on Earth”5 da editora Rough Guide colige

5 Make the Most of Your Time on Earth: a Rough Guide to the World: 1000 Ultimate Travel Experiences (Rough Guides Reference Titles; ISBN 978-1843539254, 2007)

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um milhar de experiências que revelam o nosso planeta fan-tástico. Marrocos promete-me onze.

Hesito…

Continuar e arriscar-me à decepção durante a aventura por África ou fechar o livro ilustrado e partir com tábua rasa, receptivo ao que esta tiver para me dar durante a experiência que será só minha?

A carne é fraca e dou por mim a percorrer avidamente o índi-ce, enquanto o queixo descai gradualmente a cada sugestão. Construo secretas esperanças romantizadas de vir conseguir dormir em tendas no deserto profundo, de negociações ani-madas e coloridas com um mercador, irremediavelmente perdido num souq profundo numa qualquer medina. Ou de acordar com o Sol num riad de Sherazad, para tomar um sumo de laranja fresco, acabado de sair do hammam à esqui-na.

Em Tétouan, adormeço na minha primeira noite em África com o desfile de imagens prometidas. Marrocos, vestido a rigor e com uma língua de mercador, promete e eu escolho acreditar, sem sequer regatear.

Ensha’llah.6

6 Esta expressão terá dado origem ao “Oxalá” português.

Dar a volta ao Mundo no Festival da Música Sagrada;

Conduzir pela estrada dos Mil Kasbahs;

Subir até ao cimo do Atlas;

Regatear nos souks de Fés;

Deambular em Jemaa El Fna;

Percorrer a estrada ao longo do Sahara;

Vagabundear por Essaouira;

Aprender a arte da Escrita de Viagens em Marrakesh;

Rapar o fundo de uma Tajine;

Arrastar-se pelas dunas na Maratona das Areias;

Pernoitar com uma família em Merzouga.

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Cubo de açúcar em chá de menta

شوبرط

Em terra de medinas, quem tem GPS é Rei.

Aproximamo-nos de Fés desenhando círculos cada vez mais apertados, como um predador que avalia a sua presa, incerto se o balanço de forças lhe será favorável. A estrada circular passa pelas muralhas sobranceiras ao vale sobre o qual a cida-de se espraia, densa e cinzenta. As paredes ruídas da fortifica-ção fazem lembrar um bolo inglês, cor de laranja com passas. Ao pôr-do-sol milhares de andorinhões negros, de asa em foice, ceifam os céus amuralhados.

À chegada, Fés é confusa e barulhenta. O GPS marca um ponto no miolo da Medina, onde deveríamos deixar as motos passar a noite. Mas nenhum de nós parece acreditar que será ali. À nossa volta já não há automóveis; apenas motocicletas, bicicletas e carros de fruta. Ah! E muita, muita gente. O par-que sugerido pelo GPS é melhor descrito como um amontoa-do de aparelhos nos quais os locais se deslocam, a si e à sua

Como servir o chá de menta em Marrocos

No tabuleiro encontrarão um bule e os copos ornados com arabescos. O bule metálico contém as folhas de menta fresca em abundância e água muito quente.

A quantidade de açúcar varia bastante de casa para casa. Pessoalmen-te, os que mais gostá-mos não tinham prati-camente nenhum açúcar.

O primeiro copo é cheio levantando o bule cada vez mais alto. O chá desse copo volta ao bule, cumprida a função de misturar melhor os sabores. Só então se servem os demais copos, com o mesmo aparato.

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carga. Tudo num lote onde estaria em tempos um edifício. À primeira vista nem parece haver espaço. As nossas motos de anca larga revelam-se desajeitadas. Depois de confirmado que estávamos onde devíamos, com a ajuda dos locais, rapida-mente se abrem espaços e todas as motos estão encaixadas. “Ligo o alarme?”, “Levamos as malas da moto?” são pergun-tas que parecem fazer sentido, ainda que uma sirene de alar-me seria inútil à distância de centenas de metro onde dormi-ríamos.

O caminho até ao Riad apenas é percorrível a pé, pelo labirin-to de ruas estreitas. E. havia feito o reconhecimento prévio e regressa com um ar desanimado “A ver se gostam”, confiden-cia-nos no seu portugalego divertido: “Tem um bocado de humidade. Podemos sempre ir ver outros.” Não é exactamen-te o que me apetecia ouvir neste momento, carregado com as malas e cansado de um dia em estradas exigentes. Chegamos à porta, discreta. Conforme se abre e subimos a escada escura apercebo-me que eu havia caído numa partida: o riad impres-siona. Mal entramos na sua área central, uma fonte parece ser a única coisa que se ouve, sem o rebuliço exterior.

Espera-nos um chá de menta e outro de orégãos, servidos nas mesas baixas do átrio luminoso.

A hora seguinte passámo-la num subir e descer de escadinhas, esbanjando fotos em recantos e pormenores. Não disfarçámos que nos sentíamos naquele momento como crianças, maravi-lhados com a “sorte”. Curiosos? Espreitem a secção “Confor-tos”.

Na idade média, Fés era considerada a cidade mais asseada, muito fruto da água canalizada e banhos públicos construídas pelos Almorávidas. Contudo, asseio não é a primeira palavra que nos vem à mente. Não quando a percorremos, numa manhã cinzenta, pelas ruelas escuras e estreitas no acesso às tinturarias.

Nas ruas da Medina, os condutores de mulas gritam “Balak!”, algo que se assemelhará “Abram Alas!” que vem aí carga.

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Tâmara em Ostra Árida زيز ر�ن

Da superfície, não se adivinha.

Como num recife de coral, é mergulhando no oásis que as maravilhas se revelam.

A aridez da paisagem domina e nem a altitude do Atlas pare-ce dar hipóteses ao verde. Em longas rectas chegamos ao Alto Atlas das suaves curvas, serpentes cinzas em encostas secas e despojadas.

O Sol boceja e a chegada ao descanso adivinha-se, mas olhando em volta nada parece existir.

Foi num mergulho abrupto por um caminho de terra, que descobrimos o que oued7 Ziz tem andado a fazer nos últimos séculos. Um oásis ladeado de palmeiras e vegetação luxurian-te, longo e cultivado à sombra fresca das árvores.

7 Oeud: rio

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Para os marroquinos, a afirmação social derradeira é prover a família; partilhar esta com estranhos vindos de longe é, aqui, uma prova maior da infinita abertura que este povo é capaz.

Atravessamos as portas, recortadas em espessas paredes de um metro, revestidas a adobe numa mistura de palha e barro. Asseguram a protecção do calor cá fora regulando a tempera-tura constante ao longo do dia. O ambiente é escuro, pautado por iluminação fraca. Percorremos os corredores da casa, primeiro quase a tacto, enquanto os olhos se adaptam à escu-ridão. As portas sucedem-se, escondendo áreas interiores onde se dispõem famílias em enxergas espalhadas pelo chão. À entrada, fileiras de sapatos revelam quem por lá está.

O aroma da lenha queimada deixa adivinhar que o khoobz não tarda a sair do forno caseiro. Chegará às nossas mesas baixas, onde em almofadas de lã bordadas em cores vivas, nos esparramamos de copo de chá de menta quente na mão. O espaço de refeição é comunitário e por ele circula o anfitrião, sentando-se em conversas descontraídas. Ao centro, uma ampla clarabóia sustenta-se em 8 pilares revestidos por tape-tes coloridos, e por ela, antevemos o luar intenso da noite.

Enquanto adormeço com os sons do oásis, saboreio na boca Zouala, tâmara recheada e envolta na calda aquecida pelo calor da recepção marroquina.

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De manhã, mal o Sol descobre o oásis, levanto-me para des-cobrir que se veste de outras cores e sons no varrer do pátio com folhas de palmeira, nas roupas brancas estendidas ao vento, nos bons-dias trocados. Num tronco de palmeira deita-do no chão encontro o assento onde rabisco uns traços no caderno negro e anoto ideias soltas, sensações. Suave, o vento traz o aroma do feno e das canas cortadas, ainda húmidas. Da cozinha chegam outros aromas, com as delícias do pequeno-almoço.

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Por entre os dedos dos pés يبشلا قرع

Sahid segue descalço guiando quatro

dromedários ao vestíbulo do Sahara.

O azul das vestes de Sahid combina na perfeição com o deser-to em final de dia, pleno de contraste. Na cadência da passada e do cimo do dromedário, o deserto parece gritar “E daí? Já me consegues ver?”.

Nas costas o Sol ameaça desaparecer e as nossas sombras chegarão ao destino muito antes da caravana. Pelo caminho, Hensel, o dromedário à minha frente larga pistas, redondas e luzidias, as quais Gretel, a minha montada, segue para encon-trar o caminho.

Na chegada ao sopé da duna e à voz de comando de Sahid, surpreendentemente firme e adulta, o imponente animal ajoe-lha-se, mas quem reza somos nós. O ângulo não inspira segu-rança enquanto fitamos o chão, imaginando-nos em desespero pendurados de um pescoço longo de pêlo hirsuto.

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Persigo a minha sombra, sofregamente até ao cimo da duna pela encosta banhada em longos raios de Sol. No cimo, a aresta viva da duna separa o quente do frio, o laranja do negro, as duas faces de um deserto, enigmático e mortífero.

Nada me havia preparado para o deserto, nem para o apelo suicida para mergulhar neste mar de vagas gigantes. Ao longe ecoam rugidos de motores, a face negra da democratização do turismo. “Amanhã cedo o deserto será só meu!”, prometi-me.

São como divãs

Um mosquito irritante, cirandando ao meu ouvido, redime-se: “É manhã e Erg-chebbi pôs-se bonita só para ti”.

Levanto-me com os primeiros raios de Sol, visto-me e à pres-sa saio do quarto com os chinelos numa mão e a máquina noutra. No bolso das calças, leves castanhas, o meu caderno negro de campo e algumas minas de grafite. A ideia do silên-cio do deserto só para mim empurra-me.

Hoje a pé, procuro seguir as pistas deixadas por Hensel, mas o vento lavou o deserto do trilho de migalhas, desaparecidas no manto de areia fina e laranja forte. Mal posso, expulso os chinelos e deixo correr os grãos finos pelos dedos dos pés, enquanto percorro as cumeadas ondulantes das dunas.

Tento resistir ao apelo de me entregar e rebolar pela encosta da duna íngreme…

…mas não consigo evitar.

Bom para o reumático

Regresso ao hotel à “beira-duna” plantado, seguindo a linha de poços artesianos, dispostos como pedras a marcar o cami-nho. Ao longe uma bicicleta inflecte na minha direcção, impelida por um rapaz de 12 anos. Aparenta 18 na idade do deserto. A perspectiva de vender a turistas acordou-o com o galo às 5h30. Percorre novamente os trilhos ao longo dos hotéis, com uma mochila carregada de fósseis, quartzos e “mãos-de-Fátima”.

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“Bonjour, m’ssieur.”, avança. “Ça va?”

Habituados a fazer as perguntas e a conduzir a venda, parece desarmado quando lhe devolvo outras questões. “O que fazes tão cedo pelas dunas”, “E Merzouga? Como é viver aqui ao longo do ano?” ou “Como te chamas?”. “Mohammed”, res-ponde.

Na sua vida apenas conhece Erfoud até onde a sua bicicleta lhe permite chegar numa jorna de trabalho. Divertido, comen-ta “Durante o Verão não há turistas.” Mas do Norte vem gente para se enterrar durante duas horas na areia do deserto, ficando apenas com a cabeça de fora. “Cura o reumático”, assegura-me.

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De dentes arreganhados ( جروج ةردت

De pé sobre os estribos, cotovelos para fora e dentes arreganhados,

movemo-nos em colunas de poeira.

Em Marrocos nem todos os quilómetros nascem iguais. E ainda bem. Quer seja para chegar a um lago mais inacessível, seco ou molhado, ou para ganhar uma vista sobre um oásis no caminho para Tinerhir. Conseguir vencer uma ligação sobre pedra solta ou atravessar uma linha de água em areia molhada e seixos rolados, faz a diferença. Tem sabor de aventura, condimentada com adrenalina.

Recordo o receio e hesitação em atirar a moto por uma estra-da de pedra solta. Lembro a satisfação com que venci o obstá-culo e a vista sobre o Oásis, recompensa redundante. Sobre o meu ombro regressa Carlos, mestre da poeira: “Que o acele-rador esteja contigo”, diria. E acelerando negoceio o regresso

Numa enrascada mecânica a companhia de RA está ao nível do de um Valium.

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à estrada, impelido pela confiança. “Mas afinal, quem é que manda aqui?”.

Sinto ainda os grãos de areia nos dentes no caminho sobre Zouala. Enquanto respiro o vale rasgado do Ziz, corre uma lágrima que podia ser dos ciscos de poeira do caminho.

À noite, todos os calhaus são pardos

Durante este Inverno, o caminho de terra de Asilah até ao local de descanso havia sido um problema. Os terrenos encharcados, sulcados em regos profundos de lama, haviam dificultado a progressão. O carro de apoio teve inclusive bastantes dificuldades para vencer o obstáculo.

Deste então, o escasso mês solarengo não antecipava melhor fortuna para a nossa caravana. Essa perspectiva assombrava-nos, sovados por uma ligação longa, feita sobre auto-estradas ao longo da costa Atlântica marroquina. Depois de tomar o pôr-do-Sol com cheiro lusitano na cidade fortificada, baixa-mos a cabeça e ligamos as luzes.

A entrada para o caminho desconhecido faz-se de noite. O início parece fácil e, nas sombras projectadas pela luz alta dos faróis da moto, o caminho parece suave, pontuado por torrões. Não preciso de galgar com a roda da frente mais do que o primeiro torrão para perceber que o não são. São pedras e das grandes. E estão por toda a parte. “Ok! Já percebi”, digo para mim mesmo: “Desvia-te dos torrões.”.

Poucos metros mais e o terreno parece dizer “Ai escapaste ao meu exército de torrões?” com um esgar mefistofélico. “Então toma lá subidas em pedra solta!”. Uma vez mais o holograma de Carlos, meu sensei na lama e pó, bichana-me ao ouvido: “Em pé e inclina-te para a frente!”. Obedeço e abra-ço com os joelhos o depósito amarelo da BMW. “Esses bra-ços curvados! Descontrai”, corrige Carlos. Lá atrás, a minha pendura poderia estar a entoar rezas.

“E toma lá uns regos!” grita histérico, o terreno.

Nesta fase, é difícil adivinhar se estamos próximos de chegar. O caminho encaixa-se em morros de areia e arbustos, escon-

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dendo o horizonte imaginado apenas. Por um lado o saber que tudo o que se atravessou ao caminho é ultrapassável dá-me força. Por outro, o desconhecido mantém-me alerta. E é nesse estado que o terreno parece segredar às rãs: “Acham que lhes diga das passagens a vau, no riacho”. Estas respondem “Psiu, que já aí vêm. ‘Bora ver.”. O coaxar desaparece à nossa chegada ao riacho. Este galga a estrada, aqui e outra vez acolá. É bom que a água não esconda uma surpresa menos simpática.

Um após outro, cruzamos o portão do hotel, meta da etapa. Enquanto tiramos os capacetes trocamos sorrisos nervosos entre nós. “Até foi divertido”, recordamos olhando para trás. Nesse momento alguém ainda diz “Amanhã a descer é que vai ser bonito.”

O terreno desconhecido à noite assusta, como num quarto de criança repleto de monstros imaginários. Com o nascer do Sol este quarto ilumina-se e as sombras transformam-se em árvo-res, as descidas íngremes em suaves pendentes, e as pedras continuam pedras, imóveis.

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Rolar em Marrocos ةلمن

Conduzir uma moto por Marrocos é uma

experiência marcante e nem sempre pelas razões que

anteciparíamos.

Ao longo do Vale do Todra as vagas não são apenas de um rio. Atravessamos as aldeias por entre pequenas multidões de crianças, descalças. Por momentos fora de si, abandonam os rebanhos e acorrem à estrada para, numa excitação gritada, saudar a caravana. Estendem as mãos a procurar um cumpri-mento. Estão tão próximos de nós que chegamos a recear atingi-los com uma mala ou um retrovisor. O vislumbre das faces dos rapazes e raparigas denuncia sorrisos de orelha a orelha.

Se paramos algures somos envolvidos numa mole de miúdos. Na berma da estrada, paramos perto de Abdoula, uma minús-cula aldeia encaixada no vale fértil do Todra. Um, mais teme-rário, cumprimenta-nos estendendo a mão e, pelo caminho,

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sente o calor do motor. Num instante, uma mão-cheia de crianças aquece agora as mãos nas cabeças do motor da nossa moto. O frio da altitude gela-lhes as mãos enquanto seguram os bordões com que encaminham as ovelhas.

Esta rota está fora do roteiro mais turístico de Marrocos. Quando abrandamos numa travessia de aldeia, arriscamo-nos a levar uma criança às cavalitas das malas da moto. Literal-mente. E abrandar o ritmo é mais do que prudente: é bom senso e civismo. O estado das ruas é irregular e, no dobrar de uma esquina, onde havia um troço de terra compactada há agora uma cratera, coberta de água lodosa.

Antes de encetar a viagem não imaginava que estas travessias fariam parte dos momentos mais cautelosos. Pelo contrário, rolar dentro das cidades era antecipado como algo que inspi-raria cuidados redobrados. As ruas movimentadas engolem-nos numa polme de motociclos e mobilettes. Circular em grupo é um desafio acrescido. Cetáceos num mar de sardi-nhas, os nossos movimentos são calmos e previsíveis e à nossa volta, fluem cardumes prateados.

Os cruzamentos funcionam. Visto de dentro intimida a prin-cípio, mas sobrevive-se numa coreografia ensaiada em cada intersecção de ruas. As buzinas crepitam por toda a parte, inúteis. O truque parece ser preocupar-se apenas com o que está à nossa frente; o que vem atrás fará o mesmo. Recomen-dação: ignorar os espelhos.

O Inverno aqui, como havia sido no “vizinho” Portugal, foi bem regado. As linhas de água ganharam força e ao longo da frente de batalha com as estradas, as baixas são muitas. Nes-tas condições, viajar em cima de um veículo todo-o-terreno é uma opção que potencia a experiência. Atravessar estradas a vau, negociar sequências de buracos e derrocadas, percorrer extensões de obras. Tudo isto seria um aborrecimento noutras circunstâncias, mas não em cima de uma moto destas. O ritmo diminui e o sorriso aumenta.

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Nos finais de dia, o cansaço físico é evidente. Mas o senti-mento é de um dia bem passado, recordado à volta de uma mesa de amigos.

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Confortos

Algumas das estadias destacaram-se de

sobremaneira, por razões diferentes.

Riad Fés

No imaginário ocidentalizado, um mundo árabe é feito de locais como o Riad onde dormimos em Fés. Sentimos nele a sabedoria de séculos de arquitectura inteligente. Em três lados as paredes protegem o quarto lado, fresco e verde, onde o jardim e o elemento de água recordam um Feng Shui mais costumeiro no outro lado do planeta.

Em volta de um pequena praça interior e protegida do exte-rior, dispõem-se as divisões. Por amplas portas, em madeira escura talhada, com 3 metros de altura entra-se no quarto. Também viradas para o átrio, as janelas são ornamentadas por retorcidos de ferro, protectores dos vitrais azul, rosa, laranja e verde. Pesadas cortinas de lã forradas a cetim dourado roçam o rendilhado mosaico em losangos azuis e brancos. E quando erguemos a cabeça para o Céu a agradecer, descobrimos que

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no cimo, a 5 metros de altura, está um tecto de madeira indes-critível.

O nosso quarto desenvolvia-se no primeiro andar, ao longo da aresta maior do rectângulo que é o riad. Duas magnânimes janelas e uma porta de castelo separam-nos da varanda que percorre os demais dois quartos. A cama é coberta por uma rede mosquiteira em V invertido, recolhida contra a cabeceira. Na outra ponta do quarto o lounge, onde se esparramam dois sofás e uma mesa baixa, sobre um tapete de lã de cores diver-sas.

Nicole, depois de passar uma vida na área da Saúde em Fran-ça, decidiu emigrar para Marrocos. Gere agora um espaço com o mesmo cuidado e atenção com que o terá concebido.

Zouala

A casa de hóspedes de Zouala é uma história árabe diferente. Partilha com os riads a sagaz escolha de materiais e linhas arquitectónicas. São as suas paredes com um metro de espes-sura, forradas a adobe (mistura de palha e lama crua de bar-ro), que lhe garantem variações mínimas na temperatura durante o dia. Nos seus corredores escuros não adivinhamos se lá fora é dia ou noite. Os sons da rua permanecem na rua.

Os quartos são pequenos e despretensiosos. Nas divisões maiores dormem famílias em enxergas simples no chão. A família que nos recebe partilha dos espaços com os convida-dos. As refeições são num espaço único comunitário. Os ingredientes são os da horta no oásis, em produção própria. As cortinas e mantas são tecidas pela família.

Riad Marrakesh

Em Marrakesh, a caravana separa-se em dois grupos, cada um em seu riad. Mais pequeno que em Fés, optimiza o espaço e deliciamo-nos em detalhes. E estão por toda a parte: a maça-neta de uma porta; o rebordo de um espelho rendilhado à medida do nicho que ocupa; a moldura de um quadro; uma tina de estanho martelado; candeeiros todos diferentes, como numa competição entre artesãos; a cabeceira da cama. Na

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casa de banho por detrás de uma franja, dois roupões pendu-rados em sentido à espera de serem chamados ao serviço.

Um chá de menta é servido na cómoda e bem decorada sala de estar no piso térreo. Para completar o bouquet de relaxa-mento, uma travessa de Knab al ghazal8.

Dormimos com a porta aberta e, de manhã, acordo com “Allahu Akbar” 9, começo do Adhan10. São seis da manhã e o primeiro instinto seria praguejar. Mas à minha frente, no recorte da porta de arco em ogiva, apercebo-me de onde estou. E nos próximos minutos, absorvo cada versículo como música. Uma pequena curiosidade: ao nascer do Sol, o cha-mamento acrescenta a frase pertinente: “Al-salatu khayru min an-nawm”. Relembra assim aos mais preguiçosos que a ora-ção é melhor que dormir.

Asilah

A casa de hóspedes em Asilah parece escavada na pedra. O nosso quarto é feito de grandes blocos arredondados, caiados de branco e pintados de vermelho forte. Sobre eles, uma cama sem estrutura, composta apenas pela enxerga.

O telhado de colmo cobre a estrutura do tecto em vigas feitas de troncos de pinho.

Para lá chegar, e como tudo o que vale a pena, exige esforço.

8 Knab al ghazal é um biscoito em forma de corno de gazela, com amêndoa e água de flor de laranjeira.

9 Allahu Akbar significa “Alá é maior que qualquer descrição”

10 Adhan é o chamamento muçulmano à oração obrigatória, entoado cinco vezes por dia pelo muezzin a partir do minarete na mesquita. Relembra três crenças basilares: 1) não há nenhum Deus que não Alá; 2) Maomé é o profe-ta, mensageiro de Alá; 3) a Salvação atinge-se pela obediência à palavra de Alá através da oração.

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Contadora de histórias ءانفلا عماج

Jemma El Fna conta-nos histórias em cada banca e

roda de gente

Coração de Marrakesh, dela partem as artérias cheias de vida, em souqs oxigenados de cor e cheiros.

À noite, enquanto deambulo pela praça imagino o que fica por dizer sobre Jemma el Fna. Podia descrever o exotismo das serpentes de boca cozida ou dos macacos, cansados de tantas cabeças rosadas de máquina fotográfica ao pescoço, ou do contador de histórias que, em língua de trapos, coreografa uma qualquer aventura milenar de significados estranhos.

Absorto, perco-me no fumo das bancas de comida que dá ao ambiente um adicional misterioso. Em cada uma, vestidas de branco, línguas de camaleão caçam as moscas que são os visitantes, locais e estrangeiros. Brandem idiomas a gosto, na esperança de convencer a presa das virtudes culinárias da sua banca. Os mais hábeis conseguem ser bastante físicos.

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Entranhado ةيا�ن

Marrocos é um teimoso grão de areia

Ao viajar de moto cada centímetro de estrada, alcatrão ou terra, cada rio que atravessamos, cada garganta que nos engo-le viaja bem perto connosco. E quando regressamos, permeá-veis aos ventos, aromas, gestos e sorrisos, trazemo-los dentro. Penduramos o fato, pejado de recordações e mosquitos e pensamos “Não o vou lavar já… ainda não.”.

É assim que Marrocos fica connosco: entranhado.