SOS PROFESSOR

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Agressões, ameaças, desrespeito, humilhação. Nada disso parece combinar com uma sala de aula. Mas quem trabalha na rede pública de ensino sabe que, na prática, professores e alunos são obrigados a lidar com isso todos os dias. Alguns docentes chegam até a adoecer, ou mesmo se afastar. TEm gente que perde a razão e compra briga. Mas, mesmo com todos os problemas, há escolas, diretores e professores que, com criatividade e dedicação, conseguem dar a volta no problema. Com o SOS Professor, essa realidade pode ser compreendida por meio de histórias contadas por diversos educadores. Tudo como objetivo de tratar de um assunto que, apesar de muito mencionado, não recebe a devida importância, e que é apenas um reflexo da situação complicada em que se encontra a escola pública brasileira.

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FICHA CATALOGRÁFICA

So71

SOS professor / Aline Torrieri et al. 2010. 96 f. Monografia (graduação em Jornalismo) --Faculdade de Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2010. Orientação: Verónica Aravena Cortes 1. SOS Professor 2. Relação professor-aluno 3. Escola - Violência I. Torrieri, Aline CDD 070.4

Diagramação e Capa: Renato Cassio Revisão: Renata Holdack Fotos: Marina Dantas e Nathália Salvado Impressão: Prol Gráfica

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Aos nossos pais, pela dedicação e amor incondicional.

“Quando a criança e o adolescente se tornam uma ameaça, é sinal de que

esta sociedade atravessa uma profunda decadência”. (CESARE De La ROCA)

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AGRADECIMENTOS ..................................................................................................................9

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................ 11

PARTE I ........................................................................................................................................................13

Capítulo 1 – Cada dia uma surpresa ................................15

Capítulo 2 – Ataque ............................................................................................23

Capítulo 3 – Batalha diária ...................................................................45

Capítulo 4 – Contra-Ataque .................................................................53

Capítulo 5 – Raiz .......................................................................................................61

Capítulo 6 – Professor rock ’n’ roll ......................................67

PARTE II .....................................................................................................................................................75

Capítulo 7 – É possível .................................................................................77

Guia para uma boa escola ...............................................................................88

ANEXO ........................................................................................................................................................90

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................92

SUMÁRIO

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SOS Professor - �

Primeiramente, agradecemos a Deus pelas preces atendidas du-

rante um ano repleto de orações. Aos nossos pais: Constância e Alberto

Camargo, Neusa e Lenildo Rodrigues, Carmem Lúcia e Luís Carlos Guima-

rães, Ana e Cássio Salvado. Obrigada pela paciência durante nossas cri-

ses nervosas, pelas incontáveis sugestões, pelo apoio financeiro e pelo

orgulho estampado a cada progresso nosso.

Também agradecemos a André Torrieri, Andreia Torrieri, Heitor

Arrais, Gabriel Nahas, Natália Otero, Páschoa Caivano, Regina Azevedo,

Rodrigo Sertek, nossas famílias e amigos. Vocês foram fundamentais na

obtenção de fontes e para nosso equilíbrio psicológico.

À Verónica Cortes, pela atenção, dedicação, críticas construtivas

e delicadeza. Aos nossos professores da Universidade Metodista de São

Paulo, por contribuírem na nossa formação de jornalistas e por amplia-

rem nossa perspectiva.

Nosso muito obrigada aos nossos chefes, que permitiram altera-

ções no horário, folgas e atrasos durante um ano cheio de compromis-

sos.

Agradecemos com todo o coração aos professores e escolas que

nos receberam e compartilharam histórias tão íntimas e dolorosas. Sem

vocês, esse livro simplesmente não existiria. Obrigada à direção da E.E.

Leopoldo Santana e da E.E. Samuel Morse, por abrirem os portões da es-

cola com tanto entusiasmo e nos darem dicas para uma boa instituição

de ensino.

Por fim, agradecemos umas as outras pela proeza de escrever um

livro a oito mãos sem brigar e por garantir momentos de pura felicidade

em meio a tanta tensão.

AGRADECIMENTOS

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Falar de escola pública normalmente remete a salas de aula bagunçadas,

onde professores frágeis são vítimas de alunos malvados que não têm limites e

não respeitam a autoridade. Tráfico de drogas, carteiras voando, jovens armados.

Salas vandalizadas, mal cuidadas, muitas vezes sem professor.

Esse cenário nos atraiu e fomos a campo. Mas logo nas primeiras entrevis-

tas, percebemos que essa era uma visão ingênua. O problema é muito mais com-

plexo do que se imaginava. Parece que o assunto só ganha visibilidade quando

um professor é empurrado escada abaixo.

Ao conversar com professores de diversas regiões, nos deparamos

com situações e depoimentos críticos. Não encontramos apenas histórias

de violência cotidiana, mas também pessoas que já estão, no nosso en-

tendimento, descontroladas psicologicamente. Esses casos de violência

na escola não são isolados. De acordo com uma pesquisa realizada em

2007 pela UDEMO (Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério

Oficial do Estado de São Paulo), a Grande São Paulo teve a maior ocor-

rência de violência nas escolas naquele ano, com �7% de casos em 122

escolas. Já na capital, foram ��% em 100 instituições consultadas. Um

número alarmante.

Ao longo das entrevistas, compreendemos que não se pode vitimar ou

culpar uma categoria. Na verdade, professores, alunos, família e governo devem

estar unidos para garantir um bom ensino. Isso não é tarefa fácil, mas no SOS

Professor você vai conhecer duas escolas inovadoras, que construíram uma insti-

tuição de qualidade.

Nós não temos a pretensão de salvar a educação do Estado de São Paulo

e nem os profissionais, mas esperamos chamar a atenção para o tema e permitir

que o professor se sinta parte de um livro. SOS Professor significa, então, um pedi-

do de ajuda e, ao mesmo tempo, uma luz sobre esse complexo problema.

• • •

Para preservar a identidade das personagens, todos os nomes de menores

de idade e de professores que passaram por alguma situação de violência foram

alterados.

APRESENTAÇÃO

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PARTE I

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Ca

da

dia

um

a s

urp

resa

capítulo 1

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Ca

da

dia

um

a s

urp

resa

capítulo 1

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Assim que o sinal tocou, Sofia buscava entrar em uma sala. Não

sabia direito em qual classe precisava entrar, pois aquela era a primeira

vez que estava naquela escola.

— Vai pra sala! Vai pra sala, que a professora já tá lá! – dizia uma

mulher desconhecida, empurrando a jovem de 23 anos para dentro de

alguma sala.

— Mas senhora... – tentava explicar Sofia, meio sem jeito.

— Vai pra sala, menina!

— Mas eu sou a professora!

O começo para a jovem educadora foi confuso. Além de ser con-

fundida com alunas o tempo todo, Sofia ainda tinha que enfrentar a ira

das adolescentes do Ensino Médio, que viam nela uma rival, já que era

tão “novinha”.

Dez anos se passaram e só agora, no ano de 2010, conseguiu se

firmar como professora efetiva do Estado de São Paulo. Com muita perso-

nalidade, ela é dona de um sorriso fácil, que só desaparece ao falar dos

problemas enfrentados diariamente durante esses anos. A menina que

começou a dar aulas desapareceu e deu lugar a uma mulher que impõe

respeito dentro de sala de aula.

Formada em Biologia, já deu aulas em escolas públicas de Santos,

São Vicente, Cubatão, Guarujá, Bertioga e, atualmente, na zona sul de

São Paulo. Nunca quis ser professora e largaria tudo se conseguisse um

emprego na área de pesquisa. Mesmo assim, se orgulha de nunca ter

pensado em desistir de lecionar. Nunca? Bem, com toda sinceridade que

lhe caracteriza, ela admite: só uma vez.

• • •

Carlos era um aluno inteligente e empenhado, habituado a acertar

todos os exercícios propostos em sala de aula. A direção e o corpo docen-

te da escola foram informados de que o aluno do Ensino Médio sofria de

uma deficiência mental e tomava um remédio controlado. Essa era toda

a informação que a família forneceu à escola.

Durante uma aula, Carlos errou um exercício e foi repreendido por

Sofia. Habituado a acertar, o aluno ficou transtornado por ter sido cha-

mado atenção e tornou-se agressivo. Sentado em seu lugar, o estudante

resmungava, falando consigo mesmo. Acostumada com essas situações,

Em 2006, do total

de alunos com

deficiência incluídos

em turmas regulares

de ensino, menos

da metade (42%)

estudava em escolas

nas quais estava

estruturado o devido

apoio pedagógico

especializado.

Fonte: Ministério da Educação- Censo Escolar de 2006

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Sofia não se importou e continuou a aula.

Ainda transtornado e irritado, Carlos pegou um compasso em seu

estojo e anunciou:

— Eu vou te matar! – já indo em direção a Sofia.

Os outros alunos conseguiram segurar o colega de classe. A atitu-

de deixou o estudante ainda mais nervoso. Enquanto tentavam acalmar

Carlos, a inspetora, que era vizinha dele e conhecia a família, chegou

para tentar contornar a situação e teve sucesso.

Aparentemente mais calmo, levaram o estudante para o corredor

e ele começou a gritar novamente. Assim, encaminharam-no para a di-

reção. A mãe de Carlos logo chegou e contou que seu filho não tomava

remédio há dois dias, já que estava sem dinheiro para comprar os me-

dicamentos.

Numa sociedade que se considera inclusiva, as escolas são obri-

gadas por lei a incorporar todas as crianças e adolescentes, sejam porta-

dores de deficiência ou não, no estudo regular. O que Sofia questiona é a

falta de treinamento para lidar com situações como a que passou. Desde

a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1��6, os docen-

tes lecionam para crianças com deficiência e menores infratores. Porém,

na maior parte das vezes, não recebem nenhum preparo para isso. Sofia

queria desistir, não porque Carlos queria matá-la e, sim, porque o siste-

ma de inclusão nas escolas não prepara seus funcionários.

A apreensão ao contar a história de Carlos desaparece do rosto de

Sofia ao relembrar histórias que envolveram o tráfico de drogas dentro

da escola.

• • •

Durante uma aula, um celular tocava insistentemente. Sem ce-

rimônia, o aluno do Ensino Médio atendia às chamadas dentro da sala

falando alto, acima do tom de voz de Sofia:

— Então, não dá, porque eu tô na escola. Tu faz o bagulho aí!

— Meu amigo, ou eu ou você! E aí, o que vai ser? – repreendeu a

professora assim que ele desligou o telefone.

— A senhora é muito folgada!

— Sou folgada, me garanto e moro longe!

— Eu tô trabalhando!

Lei de Diretrizes e

Bases da Educação

Cap. V

Art. 59: Os

sistemas de ensino

assegurarão aos

educandos com

necessidades

especiais: Item III

- professores com

especialização

adequada em nível

médio ou superior,

para atendimento

especializado, bem

como professores

do ensino regular

capacitados para a

integração desses

educandos nas

classes comuns;

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— Eu também! Então continua o seu trabalho lá fora!

— Não vou sair!

— Ah, você vai sair sim! – disse Sofia aos berros.

Sem falar mais nada, o aluno resolveu deixar a sala. Ao passar

pela porta onde estava Sofia, ele se aproximou, encostando a professora

na porta, quase nariz com nariz, e gritou:

— Vai tomar no cu!

E saiu chutando o lixo e resmungando. O aluno não voltou mais

para a escola naquele ano. Quando pensou que não veria mais o ado-

lescente, no ano seguinte, a professora foi surpreendida pelo nome na

lista de chamada. Sem acreditar, foi dar aula. O aluno que a maltratou

a tratava bem e não permitia mais que nenhum aluno levantasse a voz

dentro da sala. Agora, ele a protegia.

Quanto à sua opção de vida, não havia nada que ela pudesse fa-

zer. A carreira dele já estava escolhida, e seria no mundo do crime. Sofia

decidiu que não vale a pena bater de frente com esses adolescentes.

“Eles (alunos) vivem em um meio que o que é errado é legal,

passa a ser natural. A maioria não sabe quem é o pai e a mãe já tem

cinco filhos, um de cada namorado. O que falta, realmente, é estrutura

familiar”, opina Sofia.

O cotidiano às vezes é tão ruim que alguns vão para a escola mes-

mo quando já não são obrigados, porque, se ficarem em casa, apanham

dos pais, precisam cuidar dos irmãos e até trabalham.

“A gente sabe quando a criança tem estrutura familiar. O que tem

mãe chega limpinho. O que não tem chega suado e sujo, porque teve de

levar o irmão mais novo na creche e vir correndo. Eles já têm responsa-

bilidades de adulto com apenas 10, 11 anos”, conta Sofia, desanimada.

Certa vez, a professora encontrou um de seus alunos com fortes

olheiras e reclamando de cinco em cinco minutos que estava com dor

de cabeça.

— Você tá gripado? Tá sentindo mais alguma coisa?

— Não, só a cabeça — dizia Lúcio, um menino magro de quase 12

anos, com a voz fraca.

— Você almoçou?

— Não!

— Quando foi a última vez que você comeu?

— A merenda de ontem, professora!

Das 86% de escolas

que afirmaram ter

sofrido violência

em 2007, 88%

declararam haver

desacato contra

professores,

funcionários ou

direção.

Fonte: Pesquisa

“Violência nas

Escolas”, realizada

pela UDEMO em

2007 com 683

escolas do Estado

de São Paulo

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Lúcio já estava há 24h sem comer.

A fome não é único problema. Alguns não tomam banho e outros

estão tão desanimados que não fazem as lições. Quando os pais são

chamados, a reação é sempre a mesma, para o desespero de Sofia:

— Eu não acredito que você me chamou aqui por isso! Eu tenho

13 filhos para criar! Você acha que eu tenho tempo de ficar aqui ouvindo

essas besteiras?

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ATA

QU

E

capítulo 2

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Os alunos de Juliana não gostavam dela. A professora, consi-

derada rica, morava com a família na Zona Sul de São Paulo. Não era

bem-vinda na escola cheia de problemas em Santana, na Zona Norte.

Ninguém nunca havia dado chances para que ela provasse o contrá-

rio, mas a opinião de todos era a mesma: fresca.

Certa vez, no meio do tumulto de uma aula do Ensino Fun-

damental, um dos alunos pisou acidentalmente no pé direito de

Juliana.

— Aiiiiiii meu péé! Cuidado com onde você pisa, menino!

— Ih, ó a psora fazendo frescura. Acho que nunca pisaram no

pé dela antes — disse Lucas rindo para seus amigos e chamando-os

mais para perto.

Lucas pisou mais uma vez no pé dela, agora com mais força.

Enquanto segurava a professora, outros quatro amigos se revezavam

para se divertir dando mais pisões. E, quando ela finalmente conse-

guiu se libertar da confusão, saiu correndo já com o pé sangrando.

Juliana levou o caso à direção. Nada foi feito.

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Dignidade escada abaixo

— Lauro, você é um sorvete. Se derrete por qualquer coisa — disse

a diretora com desdém.

Nervoso, Lauro subia as mãos pelo rosto até a altura da testa,

apertando os olhos com irritação e levantando os óculos. Respirou fun-

do.

— Eu caí aqui. Você está vendo que meu pé tá torcido, tá vendo

que minha cabeça tá contundida e não quer acreditar?

A merendeira, que passava por ali, entrou na conversa e confir-

mou a história do educador.

— Você pode até ter caído em outro lugar, mas aqui não foi – afir-

mava a diretora da escola.

Mais uma vez, o professor baixo e de traços indianos repetiu a

história que vinha contando nas últimas semanas e resultou em sua

remoção daquela escola.

Tentando equilibrar a pilha de quase dez livros de geografia, Lau-

ro subia as escadas rapidamente para chegar a sua sala. Era quase a

hora de bater o sinal. No topo da escada, olhando e rindo do professor

atrapalhado, estava a garota com quem ele havia brigado logo no início

do dia.

Clarissa conversava o tempo todo, e tinha uma fala rude e arro-

gante. Pensando que “Inferno”, como Lauro era conhecido, ia à direção

fazer reclamações dela, não teve dúvidas: empurrou o professor escada

abaixo.

Voaram livros, óculos, estojo e a dignidade de Lauro. As gargalha-

das dos alunos ao redor ecoavam enquanto ele rolava degrau por degrau

até o chão. Nenhum deles o ajudou a se levantar. Ficou ali, imóvel, até

que a merendeira lhe estendesse a mão.

Mesmo humilhado e com dores pelo corpo inteiro, o educador

deu sua última aula até o fim. Levou para casa um pé torcido, uma ca-

beça contundida e uma tristeza que mais tarde iria se transformar em

depressão.

Após o ocorrido, ele obteve uma licença médica de 15 dias e apro-

veitou para descansar com sua família no interior de São Paulo. Pensou

em desistir de dar aulas. Não tinha saído da Unesp, uma das melhores

universidades públicas do país, para ser professor.

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Por insistência da namorada, continuou no ensino público, pedin-

do transferência para uma escola na Zona Leste de São Paulo. Mesmo em

um dos bairros mais violentos da cidade, a escola é considerada exem-

plar. Não há registros recentes de violência contra o professor. A diretoria

incentiva os docentes a criarem aulas criativas e dinâmicas, para que os

alunos sintam-se interessados nas aulas e no conteúdo.

Lauro, por exemplo, costuma realizar debates e julgamentos de

temas polêmicos dos assuntos que trata. E admite: nem todos gostam

dele. Mas não há desrespeito como o que ele sofreu nas outras esco-

las.

Um dos maiores problemas que ele enfrentou em classe este ano

foi uma aluna com celular e revista na mão. O caso foi levado ao diretor,

que fez a menina prometer não repetir aquilo novamente.

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Rodrigo tentava falar sobre globalização, mas ninguém parecia

estar interessado. Ouviam música, cantavam, conversavam e jogavam

bolinhas de papel.

Ao virar-se da lousa para os alunos, seu rosto quase foi atin-

gindo por uma pedra que ultrapassou a janela e deixou estilhaços

por todo o chão. Enquanto os alunos debruçavam-se para ver quem

tinha feito a proeza, Rodrigo foi até a direção e contou o que havia

acontecido.

— Ah, você se machucou? — perguntou a diretora com uma

doçura irônica na voz.

— Não, mas...

— Então pega uma vassoura e limpa!

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30 - SOS Professor

Vingança contra inocentes

— Eu não sabia que era o seu carro, professora!

— Se não fosse o meu, ia ser de outro professor. É a rua onde

ficam os nossos carros – dizia Marcela calmamente, tentando encarar a

menina que fugia ao seu olhar.

— Desculpa! Desculpa! – repetia Jéssica.

— Não te desculpo! Eu vou esquecer, vai passar, mas eu não te

desculpo. Você tem de aprender que não se faz isso com as coisas das

pessoas. Sabe quantos anos eu demorei pra comprar o carro?

— Mas...

— Se não fosse o meu, ia ser de outro. Não justifica! – disse a

educadora, encerrando a conversa.

Marcela sentia-se agredida. Não entendia muito bem o que tinha

feito para aquela menina para receber tal tratamento. Tudo começou em

uma sexta-feira de maio de 2010.

Por volta das cinco horas da tarde, a professora de geografia dava

as últimas aulas do dia, sonhando já com o descanso merecido do final

de semana. Enquanto os alunos faziam a lição do dia, a luzes começaram

a falhar. Marcela pensou ser apenas uma queda repentina. Enganou-se.

O bairro ficou sem energia e a gritaria começou. Os adolescentes

saiam dos seus lugares, bagunçando e conversando com os colegas.

Bombas explodiram na quadra poliesportiva. Marcela tentava contê-los e

dar conta da sala ao lado da sua, que estava sem professor. Alguns mi-

nutos se passaram e a direção resolveu liberar as 22 salas, uma a uma.

Assim que terminou de dispensar os alunos, Marcela pegou sua

bolsa na sala dos professores e tratou de deixar a escola. Ao chegar à

esquina, avistou seu carro, um Fiat Uno Mille, na rua ao lado. Apertou os

olhos, sem acreditar no que via. Deu alguns passos apressados e com-

provou: do capô à traseira, o veículo estava completamente riscado.

Marcela sentiu como se tivesse acabado de levar um tapa. Para

completar o cenário, na frente do veículo, o nome e a série do possível

pichador se destacavam: Bru 6ª B. Sem pensar, a professora entrou no

carro e foi para casa. O pensamento de pedir remoção a acompanhou

durante todo o final de semana.

Na segunda-feira, ao chegar à escola, uma aluna pediu para falar

com ela.

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— Professora, escreveram meu nome no seu carro.

— Bruna, tá escrito Bru. Pode ser qualquer um, não significa que

é você.

— Não, professora. Eu tenho certeza que é pra mim. Não fui eu que

fiz isso. Eu briguei com a Jéssica e agora tudo o que ela faz de errado,

ela põe o meu nome.

Assim que terminaram as aulas, foi até a delegacia fazer um Bole-

tim de Ocorrência e inseriu os dados que Bruna tinha contado mais cedo

naquele dia. A professora voltou para escola e comunicou à diretora que

tinha a intenção de deixar a escola. Paula buscou tranquilizá-la e prome-

teu apurar o caso.

Bruna foi chamada à direção e reafirmou a história que já tinha

contado para Marcela. Depois disso, Jéssica foi chamada. Além dela, Ma-

ria Luiza e Alessandra também vieram, eram “cúmplices”. O trio negou

enquanto conseguiu.

A diretora mandou que elas trouxessem o caderno e comparou as

letras com a inscrição no carro. Nada fazia com que as três admitissem.

As adolescentes foram separadas e, só assim, admitiram que picharam o

carro. Os pais foram chamados e arcaram com todo o conserto.

Marcela não pediu remoção, mas o caso continua se repetindo

com outros professores. No carro da vice-diretora, que é alta e bem ma-

gra, escreveram “Salsichão”, já o da professora de ciências ganhou um

pênis no capô.

Das 86% de escolas

que declararam

haver violência na

instituição, 70%

registraram Boletins

de Ocorrência

Fonte: Pesquisa

“Violência nas

Escolas”, realizada

pela UDEMO em

2007 com 683

escolas do Estado

de São Paulo

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Era uma quarta-feira comum. Regina passava o conteúdo de

Língua Portuguesa para a classe da sexta série, quando uma aluna da

sétima entra correndo pela porta, ofegante.

— Professora, você precisa ir lá na sala. O professor Marcelo

pirou.

Como mediadora de conflitos da escola, era dever de Regina

resolver os problemas que aconteciam durante o dia. Ela deixou os

quarenta alunos da sexta série sozinhos e partiu para a sala que

ficava duas portas à frente no corredor.

Quando entrou na sala de aula, Regina encontrou alunos para-

lisados, com olhos arregalados, olhando o professor de história bater

a cabeça na parede, descontrolado.

Uma aluna tinha sido a responsável pela cena. Colocou um

apelido ridículo no professor e ele explodiu.

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Medo da própria sombra

Um garoto do segundo ano entrou na sala de aula. Ele estava dro-

gado, mas a professora não sabia disso. Ele virou-se para ela e disse:

— Eu tô indo embora!

Ela, acostumada a brincar com ele, retrucou:

— Tudo bem. Quem não tá presente, tá ausente!

Adriano pegou o diário de classe da professora Rosana e foi para

o fundo da sala. Ela colocou as mãos no ombro dele e pediu para que

devolvesse porque se tratava de um documento. Mas o jovem a empur-

rou, amassou o diário, chutou mesas e cadeiras mesmo com os alunos

sentados e foi pra cima dela. Adriano era um garoto alto, de cintura fina

e braços largos, parecia um armário. A professora desceu as escadas

chorando enquanto os demais meninos tentavam segurar Adriano. As-

sustadas, as meninas saíram correndo.

Um colega professor contou que o aluno morava numa favela e

era filho de um traficante do Rio de Janeiro. Ela então fez o B.O. e não foi

trabalhar por dois dias, pois ia participar de um curso fora da escola.

Rosana era muito querida pelos alunos e, quando um grupo ficou

sabendo do que acontecera, mandou baterem no menino. No dia se-

guinte ao ocorrido, Adriano demorou a chegar, mas alguns garotos ainda

esperavam por ele na porta da escola. Quando ele apareceu, apanhou

muito. A briga foi parar na sala dos professores e até quebraram cadeiras

em cima de Adriano. Para sorte dele, alguns policiais estavam por perto,

provavelmente alertas por já saberem da história. Um deles foi até a sala

e retirou o menino. Adriano nunca mais voltou. O policial que o retirou

da briga disse que o aluno comentou que não ia fazer nada de errado no

dia seguinte, só pedir desculpas à professora.

Mais tarde, Rosana ficou sabendo que ele estava drogado, tinha

bebido e tomado anabolizante pouco antes da aula. “Dois anos depois, o

vi num mercado e fiquei com medo dele me reconhecer. Quatro ou cinco

anos depois, ele voltou para a escola para pegar o histórico e ninguém

o reconheceu. Estava só o pó, parecia aidético. O pessoal só reconheceu

pelo nome e a foto na ficha. De tanto se drogar, deve ter pegado AIDS,

porque estava muito diferente”.

E, por algum tempo, o medo de Adriano achar que ela havia man-

dado que batessem nele perseguia Rosana. “Uma vez, voltando para

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casa, vi uma sombra e saí correndo. Quando me dei conta, era a minha

própria. Olhava para tudo, para cada lado, sempre”.

O garoto foi chamado pela polícia para depor sobre o caso, mas a

professora decidiu não levar a acusação para frente.

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— O Júnior morreu!

— Como assim o Júnior morreu?

— Morreu, foi assassinado na chacina que teve na favela.

— Gente, não é possível! Aquele menino era excelente!

— Professora, ele era traficante. Dono da boca.

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3� - SOS Professor

Arquivo morto

Por 25 anos, Roberto deu aulas de matemática em uma escola

estadual de Ensino Médio de um dos bairros mais pobres de São Paulo,

onde mora desde menino. E desde pequeno vive o cotidiano dos vizinhos

do tráfico de drogas.

Um dos alunos que ele teve foi Caiuá. Com cerca de 1� anos, per-

tencia a uma quadrilha famosa na cidade de São Paulo. Eram bandidos

que chegavam a bancos em motos grandes e potentes para fazer assal-

tos rápidos, em menos de três minutos.

Em seu primeiro dia de aula, Caiuá entrou armado, como entrava

em qualquer outro lugar. Era uma pistola 45 milímetros, presa à cintura

e visível para todo mundo.

Roberto, o professor de matemática que todos da escola chama-

vam carinhosamente de professor Beto, não gostou daquilo. Baixinho,

com cabelo bem aparado e roupas simples, mas elegantes, Beto abriu

um sorriso animado para o aluno novo e chamou-o para conversar fora

da classe.

— Olha. Não dá pra você ficar na sala de aula com essa arma.

— Ah, professor, dentro da escola não vai ter problema nenhum.

— Se não tem problema, então, quando você entrar na escola,

você vai deixar sua arma. Vamos falar com a coordenação, você deixa ela

numa gaveta... Se você quiser a gente até tranca.

Negócio fechado. Durante todo o tempo que Caiuá estudou naque-

la escola, ele entrava, guardava a arma na sala da diretora com chave, e

chegava à sala de aula desarmado. Era um aluno muito bom e inteligen-

te. Alguns anos depois os professores souberam que ele foi morto numa

tentativa de fuga do presídio Carandiru, antes de desativarem aquele

complexo.

• • •

Além da escola em que Caiuá estudava, o professor Beto também

já trabalhou em vários outros colégios públicos. Em um deles, um dia,

ele teve de sair para nunca mais voltar.

Era uma noite comum, fim de aula. Roberto dirigia-se a seu carro

para finalmente chegar em casa. Naquele dia, o controle automático do

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portão, que ficava numa esquina, estava quebrado. Ele foi até a saída e

abriu o portão. Voltou para o carro, colocou-o na rua. Fechou o portão.

Quando voltou para abrir a porta do carro, sentiu o cano gelado de uma

arma em seu pescoço.

— Passa devagarzinho a chave do carro pra cá.

Além da matemática, o professor Beto também era muito bom

com as artes marciais. Não pensou duas vezes: com um golpe rápido

de karatê, conseguiu dominar o bandido e deixar a arma dele no chão.

Pediu que ele fosse embora, entrou no carro e, se pudesse, teria literal-

mente voado de volta para casa.

A tentativa de assalto aconteceu em uma terça-feira e, na quarta,

Roberto não ia para essa escola. Mas, na quinta-feira, quando ele estava

chegando à rua de seu trabalho, seu carro foi fechado por três motos.

Todos pareciam jovens, os rostos estavam escondidos atrás dos capace-

tes.

Logo uma arma foi apontada para o vidro do carro do professor.

Quando ele o abaixou, um dos motoqueiros viu quem era:

— É o professor Beto. Não mexe não.

Beto, imóvel dentro do carro, já estava certo de que seria morto.

No entanto, os bandidos foram embora.

Esse mesmo garoto que o reconheceu não era um aluno de Ro-

berto, mas uma das pessoas que frequentavam o comércio do pai dele.

Alguns dias depois, procurou o professor para conversar.

— O meu amigo tentou levar seu carro e você reagiu, né? Bom, não

vai te acontecer nada. Mas você não vai mais poder dar aulas naquela

escola. Senão eles vão te pegar.

Roberto obedeceu e pediu remoção. Não informou a polícia, não

fez ocorrência, nada do tipo. Porque ele sabe que, quando o problema é

com gente do tráfico, não se faz Boletim de Ocorrência — é morte certa.

Eles determinaram e o professor aceitou.

“Lá na periferia a gente é sujeito a essas coisas”.

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40 - SOS Professor

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SOS Professor - 41

Era um dia chuvoso, o que sempre atrapalhava Mônica. Como

professora de Educação Física, ela tinha que exercitar a criatividade

quando a quadra de esportes, que não possuía cobertura, ficava in-

disponível.

Ela levou os cerca de quarenta alunos da terceira série para

uma sala de aula vazia e passou uma atividade de desenho.

As crianças começaram a dividir papéis e estojos de lápis de

cor, mas Murilo não quis participar. Ele tinha nove anos, mas com

traços de uma criança ainda menor. Carente, sempre pedia atenção

e abraços dos professores.

Para a docente, a necessidade de afeto aparente do garoto era

resultado da falta de uma família. Murilo morava em um abrigo e

nunca conheceu os pais.

Preocupada, Mônica tentou descobrir por que o menino não

quis participar da aula. “Fui falar com ele e ele disse que o sonho

dele, o que ele mais queria, era virar bandido, se tornar traficante,

pegar uma metralhadora e matar gente.”

Page 42: SOS PROFESSOR

42 - SOS Professor

Arma branca

Em pé na frente da sala, Leandro tentava lecionar na sua aula

normalmente, mas algo o incomodava. Um insistente e ininterrupto “tec,

tec, tec”. E só poderia vir de dentro da sala, tão alto era o som. Aprovei-

tou a visão que tinha de toda a sala e procurou pelo responsável pelo

barulho. Logo encontrou Eduardo, que batia o canivete suíço na mesa

sem parar. O garoto vivia aprontando, ora intimidando os professores

com o canivete, ora com maços de cigarro na carteira. Algumas vezes até

tentou acender cigarro na sala de aula.

Já impaciente, o professor pediu que Eduardo guardasse o canive-

te. Sem resultados. O canivete continuava girando nas mãos do garoto.

— Isso é uma arma e pode ferir alguém por acidente, alertou Le-

andro.

Mas Eduardo pouco se importou. Então o professor teve uma

ideia. Virou-se para os alunos, a maioria deles sentados e interessados

na aula, e disse:

— Galera! Enquanto o Eduardo não guardar o canivete, não vou dar

a minha aula, pois considero isso uma ameaça.

Em seguida, saiu da frente da lousa, sentou-se na cadeira e cru-

zou o braço. Como Eduardo teimava em não guardar o objeto, a turma

começou a se manifestar:

— Cara, se você não quer assistir aula, vai embora! – dizia alguém

lá no fundo.

— Fica em casa! – completava outro estudante.

— O professor está certo, ele é legal com a gente, vamos respeitá-

lo! — concordava uma garota lá na frente.

Então Leandro interveio:

— Não estou aqui para humilhá-los. Quero ajudar vocês a escolhe-

rem uma boa profissão, mas vocês precisam me ajudar.

— O canivete não é uma arma – retrucou Eduardo.

— É uma arma branca e a que mais mata em ambientes como

escola e bares, por razões fúteis. No documentário “Pro dia nascer feliz”,

uma aluna narra como matou outro colega com uma faca dentro da es-

cola, isso no Ensino Médio. O caso é real, e muito triste.

Depois de conhecer essa história, Eduardo nunca mais levou o

canivete para a sala de aula.

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capítulo 3

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SOS Professor - 47

Dou aula para 700 crianças por semana. Meu salário não é

compatível com o esforço. É ridículo um profissional fazer faculda-

de para ganhar mil e poucos reais. Você estuda uma vida inteira,

sonha, faz projetos e depois põe na ponta do lápis e vê que é o

valor de um aluguel. O professor não vive, sobrevive. O dinheiro

dá para o extremamente necessário e às vezes nem isso. Que bom

que tenho meu marido, porque senão meus filhos não consegui-

riam estudar em escola particular, por exemplo.

Mas há um interesse do governo nisso. O salário é tão baixo

que precisamos trabalhar em três turnos para garantir o sustento.

Então não conseguimos tempo para programar uma aula diferente.

Chego em casa pra fazer comida, ver lição dos filhos. A que horas

vou fazer isso? De madrugada?

• • •

Meu nome é Júlia. Todos os dias, acordo às 6h30 e vou à

escola, em um município vizinho, começar meu dia de trabalho.

Tenho essa rotina praticamente igual há 15 anos. Ao chegar ao

colégio, que fica por trás de um extenso muro cinzento, cumpro

um ritual.

Passo por dois portões grandes e escuros antes de entrar na

escola. Deixo para trás a cidade colorida e iluminada para lecionar

Educação Física em salas pintadas de branco na metade superior e

azul na inferior, que frequentemente possuem baldes espalhados

pelo chão, buscando conter as goteiras que tomam toda a escola.

As três mesas e bancos compridos utilizados pelas crianças na

hora do almoço ficam completamente molhados quando o tempo

fecha. E o pátio, local onde os alunos passam o intervalo conver-

sando, costuma ficar repleto de pombos, que disputam os farelos

de comida.

Passo a manhã lá e depois sigo para outra escola, em um

bairro vizinho. À noite, participo das reuniões de HTI. O horário em

que vou embora varia. Em alguns dias, quando as reuniões são

mais curtas, chego em casa às 1� horas, mas, às vezes, só consigo

retornar às 22h.

Quando finalmente estou em casa, cozinho o jantar e ajudo

Piso salarial dos

professores da rede

pública:

- Educação infantil

até o 5º ano do

Ensino Fundamental:

R$ 785,00 - jornada

semanal de 22 horas

- 6º ao 9º ano do

Ensino Fundamental:

R$ 9,28 - valor da

hora-aula, com

duração máxima de

50 minutos (período

diurno) e 40 minutos

(período noturno)

- Ensino Médio:

R$ 10,33 (diurno) e

R$ 9,28 (noturno) -

valores da hora-aula,

com duração máxima

de 50 minutos

(período diurno) e

40 minutos (período

noturno)

Fonte: Sindicato

dos Professores

de São Paulo

(SINPRO). Disponível

em: http://www.

sinpro.org.br/guia_

consultas.asp?mat=7

HTI remete à

hora-atividade. É o

momento oferecido

aos professores

para que eles

possam preparar

suas aulas, corrigir

exercícios, entre

outros

Page 48: SOS PROFESSOR

4� - SOS Professor

meus três filhos, todos menores de 15 anos, com a lição de casa.

Mas cuido da minha família com muito prazer, sou uma supermãe

e meus três meninos são as prioridades da minha vida.

Durante meu expediente, convivo com os problemas básicos

dos professores de hoje, falta de material, bagunça, desrespeito

e alunos com problemas de desestrutura familiar fazem parte do

dia-a-dia. Mas essa situação piorou quando conheci Cleiton.

Ele tinha nove anos e estava na terceira série. Mesmo tão

novo, tinha que enfrentar uma realidade dolorosa. A mãe não ha-

via planejado a gravidez e ele sabia disso. Os pais não moravam

juntos e tinham uma relação complicada. Além disso, o pouco

contato que ele tinha com o pai era de violência.

Até então, o comportamento de Cleiton não diferenciava tan-

to do dos outros alunos. Pequeno e magro, ele até mesmo passava

despercebido, de tão quieto que ficava em algumas aulas. Porém,

tinha repentes. Quando isso acontecia, xingava os funcionários da

escola e perturbava os colegas e o andamento da aula, com provo-

cações e correria pela sala.

A situação piorou quando ele notou a presença de Ricardo,

um garoto brincalhão e saudável. O colega de sala tinha um pai

muito presente, que o buscava ao fim das aulas e era assunto

constante nas conversas na hora do intervalo.

A realidade de Ricardo incomodou Cleiton. Ele percebeu a

diferença da ligação que tinha com o próprio pai em relação aos la-

ços familiares do amigo. Por isso, começou a incomodar o garoto.

Era bolinha de papel direto na cabeça de Ricardo, xingamentos e

cutucões. Eu e o restante dos professores começamos a nos preo-

cupar com aquelas brigas constantes, mas ele teve que passar um

tempo em um abrigo com a mãe, para fugir das atitudes violentas

do pai, e não tivemos chance de tomar alguma atitude.

Quando Cleiton voltou, a raiva e o descontentamento fica-

ram muito mais aparentes. A gota d’água aconteceu durante uma

aula minha. Era uma manhã muito quente e os alunos estavam

animados esperando que jogo eu iria propor. Comecei a organi-

zar as crianças quando, de repente, Cleiton partiu para cima de

Ricardo.

Vermelho de irritação, o garoto começou a bater no colega,

Page 49: SOS PROFESSOR

SOS Professor - 4�

Em 1998, somente

13% dos alunos

com deficiência

da educação

básica estavam

matriculados nas

mesmas turmas

que as demais

crianças. Em 2006,

esse percentual

registrou um

salto significativo,

chegando a 46%.

Fonte: ANDI (Agência de Notícias dos

Direitos da Infância)

que revidou. Desconcertada, tentei apartar a briga, colocando-me

entre os alunos tão pequenos. A minha intervenção perturbou Clei-

ton ainda mais. Revoltado, ele levantou o braço para me dar um

tapa. Mais forte e rápida, eu impedi e o levei direto para a dire-

toria.

Os pais de Cleiton foram chamados à escola para conversar

sobre o garoto. Quando a mãe chegou, notei a semelhança física

entre os dois. Mas a aparência frágil da mulher confrontava-se

com as diversas tatuagens espalhadas pelo corpo.

Durante a reunião, levantei os problemas do menino e con-

tei sobre as vezes em que ele passava a tarde em uma praça,

conhecida por ser ponto de tráfico na região. Mostrei que isso

que aconteceu foi um pedido de socorro dele. Ao ouvir sobre o

comportamento do filho, o pai de Cleiton, usuário de drogas, deci-

diu “educar” a criança ali mesmo. Ele bateu no menino na nossa

frente. Foi horrível.

Não tenho como diagnosticar, mas o menino não mostrava

arrependimento de nada, não pedia desculpas, então acho que

ele pode apresentar um quadro de psicopata. Para ajudar a famí-

lia, passamos Cleiton para outro horário na escola, assim ele não

estuda mais na mesma sala de Ricardo. Além disso, os pais do

aluno procuraram auxílio psicológico. Já há sinais de recuperação

e esse é o meu maior orgulho. Uma situação muito berrante, que

você consegue resgatar de alguma maneira, dá muito prazer. Esse

menino eu tenho como troféu.

• • •

Hoje temos muito mais alunos de inclusão dentro da sala de

aula do que antes. Há casos em todas as escolas onde trabalho e

às vezes alguns problemas nem são considerados como de inclu-

são. É o caso da hiperatividade. Só se for um grau muito alto para

constar em laudo.

Eu concordo com a inclusão, o problema é que não recebe-

mos preparo para isso. Às vezes existe uma palestra, mas é tudo

muito superficial. Outras vezes eles oferecem cursos, mas traba-

lhando em três turnos fica impossível conciliar.

Page 50: SOS PROFESSOR

50 - SOS Professor

Por conta disso, já passei por uma situação bastante compli-

cada. Em um dia de chuva, tive que levar os alunos para uma sala

vazia, pois a quadra de esportes não possui cobertura. Mas naque-

le grupo havia cinco crianças de inclusão, sendo uma cadeirante.

Quando há alunos especiais em uma classe, é necessária a presen-

ça de mais um professor. Contudo, nem sempre isso acontece. Eles

colocam esses professores de inclusão substituindo quem falta e,

com o alto nível de stress dos docentes de hoje, é muito comum

o professor faltar.

Sozinha em meio a tantas crianças, tive que empurrar a

cadeira da menina, enquanto os outros seguiam em volta, rumo à

sala. Durante o trajeto, um garoto socou as costas de uma aluna. A

confusão foi geral. A menina agredida chorava, mas ainda precisei

levar todos a uma sala, para impedir que mais uma confusão se

instaurasse.

Depois do sufoco, ainda tive que enfrentar os pais da garota.

A mãe ficou muito revoltada por ela ter apanhado durante a aula

e me denunciou à ouvidoria. Eu tive que chamá-la para conversar

e explicar minha situação. Eu não tinha condições de evitar o que

aconteceu.

• • •

O governo quer manter a situação em que a educação está

hoje. Às vezes vem dinheiro público para ser usado na educação,

em capacitação de professores, e o governo encontra uma brecha

e passa para a seção de limpeza da escola. O interesse é que essas

crianças não tenham nível universitário, para não compreender a

realidade e continuar votando nos mesmos políticos.

Eles também fazem isso por meio da Progressão Continuada.

Só podemos reprovar a cada dois anos. Você fica na mão do aluno.

Tenho uma aluna que reprovou ano passado, está muito mal esse

ano e vai ter que passar. O que mais desanima é isso e não o sa-

lário. Eu me vejo como instrumento do governo para manipular e

alienar essa parcela da população.

Mas eu acredito muito na capacidade do ser humano. Como

é difícil agir no papel de professora, quero sair da situação de

Na cidade de São

Paulo, 31% das

receitas anuais de

impostos devem

ser aplicadas na

educação. Esse valor

costuma girar em

torno de mais de

cinco bilhões de

reais. Através do

portal da Secretaria

Municipal da

Educação, podem-se

verificar os gastos

de cada diretoria

regional de ensino.

Para que uma verba

seja usada para um

destino diferente

do especificado na

Lei Orçamentária

Anual do município,

seria necessário o

uso de ferramentas

ilegais. Mas o que

muitos diretores

reclamam é que,

às vezes, o governo

costuma repassar

quantias que não

condizem com as

necessidades. Sobra

dinheiro que é

determinado para

algumas áreas e

falta em outras.

Fonte: Secretaria Municipal de Educação de

São Paulo – Orçamento 2009

Page 51: SOS PROFESSOR

SOS Professor - 51

A aplicação

da progressão

continuada surgiu

na prefeitura de

Luiza Erundina,

quando Paulo Freire

era Secretário

de Educação

(1989 – 1991).

Mas o conceito

“Progressão

Continuada” foi

instituído nas

escolas estaduais de

São Paulo a partir

de 1998. Segundo

ele, a reprovação de

um aluno só pode

acontecer ao final

dos ciclos escolares,

em casos extremos,

ou por conta de

faltas acima de 25%.

É defendido porque

evita a possível

desmotivação

do aluno com a

repetência. Mas

também criticado

por permitir que

alunos passem

de ano sem ter

aprendido o

necessário.

Fonte: ANPED (Associação Nacional de

Pós Graduação e Pesquisa)

sala. Estou cursando Pedagogia e pretendo chegar a um cargo de

chefia. Não aceito essa ideia de que pobre é pobre pra sempre.

Tenho muita fé, sou uma idealizadora, sonhadora e, como diretora,

tenho mais chances de realizar tudo isso.

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capítulo 4

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54 - SOS Professor

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SOS Professor - 55

Família Vaca

- Eu posso ser a melhor professora que vocês já tiveram na vida, ou

a pior. Vai depender do comportamento de vocês. Não exijo silêncio. Apenas

que fiquem sentados, porque ninguém aprende na bagunça. E nem pensem

em levantar a mão pra mim. Porque se vocês baterem em mim, eu bato em

vocês.

Cada vez que Luiza dá aulas para uma turma pela primeira vez, pas-

sa esse recado aos alunos. Baixinha, morena, com a voz rouca de quem

já gritou muito na vida, não tem a menor intenção de bater em alguém. O

discurso é apenas um aviso para que as crianças percebam com que tipo de

professora estão lidando.

Por mais que procure manter a calma, Luiza já participou de discus-

sões agressivas com alunos. Grita, xinga e até fala palavrão.

Certa vez, havia passado atividades em papel para alguns alunos de

quinta série fazerem enquanto ela organizava seu diário de classe. Disper-

sas, crianças aproveitavam o momento para cantar, bater uns nos outros e

atirar bolinhas de papel, borrachas e estojos de um lado para o outro da

sala.

Até que Luiza sentiu um lápis bater em seu rosto, arranhando-o. Ime-

diatamente ela levanta-se e dá um tapa forte na mesa. Silêncio.

— CARALHO! – Grita a professora, com os olhos arregalados percorren-

do os rostos dos alunos um a um. — JOGA ESSA PORRA DE LÁPIS NA CARA DO

SEU COLEGA, NÃO NA MINHA, CARALHO!

A classe apenas observa, estupefata. “Caralho? A professora disse

caralho?”, pensavam eles. Alguns faziam careta, outros engoliam uma risa-

dinha. Algumas meninas pareciam horrorizadas.

— QUE QUE É? VOCÊS VIVEM FALANDO E EU NÃO POSSO FALAR? PALA-

VRÃO É O MESMO PRA TODO MUNDO!

Pausa. Era o momento certo para aproveitar e fazer com que eles

ficassem quietos de vez. Luiza para de gritar, e avisa:

— Não quero saber quem foi. Tá marcado. O primeiro que levantar e

abrir a boca vai para a direção sendo acusado de ter jogado o lápis no meu

rosto.

Ninguém falou mais nada. Mas um dos alunos, desses que adoram ser o

centro das atenções e puxar a bagunça, não conseguiu segurar a piada.

— Professora, o que é caralho?

Page 56: SOS PROFESSOR

56 - SOS Professor

— É aquilo que tu tá precisando levar pra ficar bem quietinho – res-

ponde Luiza com rispidez, sem dar espaço para que aquilo se transformasse

em uma discussão.

• • •

As explosões de nervosismo da professora já tiveram consequências

bem desagradáveis. Na mais memorável delas, Luiza acabou perdendo aulas

e ficando proibida de ensinar um garoto: Felipe.

Felipe era conhecido naquela escola por criar problemas. Luiza até

evitava mandar o garoto para a diretora, porque ficava ainda mais nervosa

do que os professores quando precisava lidar com ele. Magro, sempre de

boné em sala de aula, é o tipo de criança sem limites, que fala o que quer

sem se preocupar com nada.

Naquele dia, os outros professores até já tinham avisado que Felipe

estava ainda mais arredio que o normal. O sinal bateu, a aula acabou, e

Luiza ainda não conseguira que ele escrevesse nada. Pediu então que ele a

acompanhasse para próxima sala em que ela fosse.

— Quero ver você me tirar daqui! — disse Felipe, com escárnio.

— Eu não vou. Você vai com as suas pernas. Não vou nem chegar

perto. – Ainda estava calma, organizando suas coisas para deixar a classe.

Pediu mais uma vez que Felipe pegasse seu material para sair, mas ele ig-

norava. De pé, falava alto e chamava a atenção dos outros alunos. Luiza já

estava se irritando.

— Você cala sua boca. Tá me enchendo o saco. Pega suas coisas e

vam’bora!

— Quer saber de uma coisa? Não vou fazer merda nenhuma!

— Escuta aqui, moleque, tu tá pensando que eu sou o quê? – O rosto

da professora já estava vermelho, a voz cada vez mais rouca. Felipe respon-

deu com o que estava faltando para que ela perdesse o controle:

— Você é uma vaca!

— Vaca é a sua mãe! Você é uma vaca! Sua família é uma vaca!

Luiza nem lembra o que o garoto disse de volta, de tão intenso que

era o estado de nervosismo em que ela estava. Sabe que ele revidou, xingou

mais, falou palavrão. E ela também. Falou que ele não iria ser nada na vida,

que a mãe dele – que, na verdade, tinha problemas psicológicos e tomava

remédio de tarja preta – era uma vaca que não sabia educar o filho.

Page 57: SOS PROFESSOR

SOS Professor - 57

Já havia saído de sua mesa para ficar frente a frente com o garoto.

Deixava as mãos para trás para impedir-se de fazer algo pior. O garoto apon-

tava-lhe o dedo, quase encostando no olho dela.

— Tira esse dedo daí! – berrou a professora.

— Você vai me bater? — Era um desafio. Havia até um sorrisinho irô-

nico nos lábios de Felipe.

— Com as mãos para trás? Só se for com a língua! Vou dar linguada

aqui!

Antes que a situação pudesse piorar, virou as costas e saiu andando.

Estava louca de vontade de dar um tapa na cara do garoto. Já haviam man-

dado ela “se foder”, “tomar no cu”... Mas um garotinho de 12 anos falar que

ela era uma vaca já era demais.

O dia passou, o nervoso também. Luiza nem se preocupou em nar-

rar o fato para a direção da escola, porque achou que o problema estava

resolvido.

Na manhã seguinte, a diretora telefona para a casa da professora. O

avô, a irmã e até uma tia de Felipe estavam na escola reclamando por terem

sido xingados de “vaca”. Ameaçavam reclamar à ouvidoria da Secretaria da

Educação, o que poderia resultar em um processo administrativo. Processos

desse tipo sempre dão dor de cabeça, podendo até acabar em perda de

aulas ou demissão.

Marcaram uma reunião para resolver o problema no dia seguinte.

Luiza chegou à conclusão de que a única coisa que ela poderia fazer

seria pedir desculpas ao avô do garoto, que, realmente, não tinha nada a ver

com a história e era uma boa pessoa.

— Gostaria de me desculpar com o senhor. Seu neto me deixou muito,

muuuiito nervosa. Mas ele é apenas uma criança, eu não deveria ter me re-

baixado aos 12 anos dele. Gostaria que o senhor me perdoasse. Foi um erro

que não vai acontecer novamente.

Depois de muita discussão, as desculpas foram aceitas e a família

de Felipe desistiu de fazer uma denúncia formal na ouvidoria pública. Luiza

recebeu uma advertência por escrito da direção e largou as aulas na classe

daquele garoto para que eles não precisassem conviver mais.

Naquela época, Luiza estava passando por diversos problemas de

saúde causados pelo trabalho. Calos nas cordas vocais, LER (Lesão por Esfor-

ço Repetitivo) no braço direito e, obviamente, stress. Pediu que seu médico

atestasse que aqueles motivos a impediriam de dar aulas e pediu algumas

semanas de licença, que acabaram emendando-se às férias.

Page 58: SOS PROFESSOR

5� - SOS Professor

Da Europa à escola pública

Baixinha, miúda, com óculos de grau e aparelho transparente nos

dentes, Amanda não aparenta seus 53 anos de idade. Com cerca de

1,55m de altura, até poderia ser confundida com os alunos se não esti-

vesse com roupas adultas – vestido florido, salto alto e bolsa vermelha

– e por carregar livros e diários nos braços. Afinal, ela é professora.

Amanda formou-se há 25 anos, mas investiu em outra paixão: a

arte. Só depois de algum tempo foi para a Educação, lecionando na rede

particular. Mas a vida a chamou para outros desafios, e a professora

voou para a Europa, onde passou quase dez anos pesquisando.

De volta para o Brasil, viajou a serviço de uma ONG para realizar

um trabalho voluntário na Amazônia. Em 2005, ingressou na rede pública

de ensino, depois de passar num concurso e se efetivar no Estado, onde

leciona para jovens do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. “Na-

quela época, achei tudo horrível na rede pública. Passei por momentos

de angústias e depressão, tanto que pensei em exonerar”.

Devido à insatisfação que sentia, Amanda foi transferida no ano

seguinte para uma escola num bairro de classe alta. Parecia que tudo

mudaria. O espaço físico era agradável e a escola estava localizada pró-

ximo à casa de Amanda. “Quando mudei de bairro, achei que o meu

trabalho na sala de aula seria mais fácil e calmo. Ma a idade dos alunos

para os quais lecionavam continuava complicada. Eram adolescentes de

13 a 15 anos.”

• • •

Num dia de abril de 2006, Amanda lecionava para uma �ª série. A

aula corria bem, até que Cristiano, que nunca havia entrado na aula dela,

caminhou até o fundo da sala com um cano de ferro nas mãos. A escola

estava em reforma e, por um descuido dos pedreiros, o menino teve livre

acesso ao instrumento que foi retirado para ser substituído por um mais

novo. Ao notar a cena, Amanda tentou conversar com o garoto.

— Olá! Por favor, se apresente e me entregue esse cano.

— Eu não vou entregar nada, sua vaca!

— Não sou obrigada a ouvir insultos de você, filho da puta! Me

entrega isso agora!

Page 59: SOS PROFESSOR

SOS Professor - 5�

A saída, então, foi retirar o instrumento das mãos de Cristiano à

força. O jovem tentou correr atrás de Amanda por entre as carteiras den-

tro da sala, mas ela o empurrou a tempo. Para retrucar, Cristiano jogou

a mochila pesada sobre a professora.

“Minha vontade era de bater nele, bater muito. Mas, na função

de professora, eu não poderia fazer isso. Então peguei o Cristiano pelo

colarinho da camiseta, arrastei para a diretoria e o coloquei para fora da

escola. Reconheço que a minha atitude não foi a mais adequada, mas eu

também sou humana. Não podemos lidar com essas coisas sem reagir”.

Amanda demorou três dias para voltar à escola. Quando fez isso,

chamou a mãe de Cristiano para conversar e pediu desculpas por ter se

dirigido ao garoto como “filho da puta” e por desejar socá-lo. “Nós duas

choramos juntas. Ela não sabia o que fazer com o filho. No fim, ele foi

para outra escola e eu não coloquei o ocorrido no histórico dele. Eu não

desejava mal ao Cristiano, só queria que a ficha dele caísse... A minha

caiu”, desabafa.

Depois da experiência com Cristiano, Amanda procurou sempre

construir um bom relacionamento com os alunos e dificilmente leva pro-

blemas para a diretoria da escola. “Eu fiquei muito abalada com aquela

situação, não sou de fazer isso. Desejei nunca mais viver algo parecido,

e realmente não aconteceu novamente. Em algumas situações, ainda

bato boca na sala de aula com alunos, mas sou muito respeitada tam-

bém. Tenho consciência de que não é nada pessoal, mas um problema

da escola”.

Page 60: SOS PROFESSOR

60 - SOS Professor

Capítulo 5

Ra

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capítulo 5

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Ra

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capítulo 5

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SOS Professor - 63

— Professora, perguntei pra minha mãe quem é meu pai e ela

disse: Como você quer que eu diga se nem eu sei?

Page 64: SOS PROFESSOR

64 - SOS Professor

Astro do karatê

A fila foi formada logo, Carla sabia como controlar a classe. No pé

da escada, em frente a um alto portão azul, ela esperava para levar os

alunos para sala de aula. A tranquilidade da 6ª B foi abalada por Tiago, o

furacão particular daquela série. Sem se preocupar, ele beliscava os ami-

gos, conversava com as meninas e desfazia toda a ordem da fila. Tudo

isso sem parar de pular de um lado para o outro.

Depois de algumas broncas e o pedido para que fosse o primeiro

da fila, todos subiram para a sala. Como se fosse um astro do karatê, o

menino de 12 anos deu uma “voadora” na porta semiaberta.

— TIAGO! Na reunião eu vou conversar com a sua mãe e você tá

perdido! – ameaçou Carla, dona de uma voz firme, apesar da delicadeza

de suas feições.

— Ah, professora! Eu não vou fazer mais, juro!

Nem dois minutos se passaram e lá estava ele, empoleirado na

cadeira e de costas para o quadro conversando com os amigos do fundo.

A classe tinha mais de 40 alunos, os problemas de Carla já eram sufi-

cientes sem Tiago bagunçando por aí. A professora repetiu as ameaças

de conversar com a mãe do menino e ele continuava prometendo que

ia parar.

Duas semanas se passaram e o dia da reunião finalmente chegou.

Carla tratou de contar tudo para a tia de Tiago, já que a mãe não pôde

comparecer. Contou dos golpes na porta, da bagunça na classe e da falta

de postura na fila. Sentiu-se um pouco mais aliviada, quem sabe aquele

furacão não mudava um pouquinho.

Na semana seguinte, enquanto dava aula na 5ª série, Carla foi

interrompida pela professora Rosana, que dava Língua Portuguesa na 6ª B. A colega perguntou se ela havia conversado com os pais dos alunos

na reunião e, quando recebeu a resposta afirmativa, pediu que a acom-

panhasse.

Assim que chegaram à porta da outra classe, Rosana chamou Tia-

go e pediu que saísse da sala. Para o espanto de Carla, o menino estava

todo machucado. O rosto, ainda de traços infantis, estava roxo, princi-

palmente na área dos olhos.

— Tiago, por que você está assim?

— Ah, porque a senhora reclamou de mim. A minha mãe me bateu

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SOS Professor - 65

– explicou o garoto, sem perder o jeito agitado de falar.

— Mas o que aconteceu com a sua cabeça? Por que tá toda roxa

assim?

— Eu tentava fugir e ela segurava minha cabeça – esclareceu, meio

sem jeito.

A reunião tinha sido numa sexta-feira, era segunda e os joelhos

de Tiago ainda sangravam um pouco. Naquele momento, Carla percebeu

como os pais podem ser violentos. Sabia que não estava preparada para

isso. Resolveu nunca mais reclamar de Tiago. Quando queria que ele

ficasse quieto, só ameaçava chamar a mãe do aluno e a paz voltava a

reinar na sala de aula.

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capítulo 6

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A maior parte dos alunos de Cláudio não enxerga perspectivas de

vida que estejam além do mundo cinzento que são muitos bairros no

extremo Leste de São Paulo. Mas ele insiste em fazer sua parte, e até dá

a si mesmo como exemplo: mora ali desde que tem um ano de idade.

Usa cabelo comprido, joga videogame, toca bateria e ouve heavy metal,

mas, com muito sacrifício, conseguiu juntar dinheiro para completar a

graduação de história e trabalhar com o que gosta. E se ele chegou onde

queria, acredita, seus alunos também podem chegar.

O bairro em que mora e trabalha está há anos sob grande in-

fluência do PCC (Primeiro Comando da Capital), organização criminosa

ligada principalmente ao tráfico de drogas. E, dentro da escola, todos os

professores sabem dizer quem é quem, inclusive Cláudio:

Os traficantes não costumam “trabalhar” na sala de aula, mas

acontece. E, por mais que tentem disfarçar, eu conheço os tipos. Tenho

amigos que já fizeram isso, tive colegas e vizinhos que acabaram seguin-

do o mesmo caminho. Você acha que se um grupo de garotos fala sobre

droga - mesmo trocando as palavras-chaves por código -, eu não vou

saber? Já vi trouxa de maconha dentro de mochila de aluno. Já vi gente

chegar aqui com o cheiro tão forte da droga que até eu poderia ficar

“doidão” com aquilo. Também já vi gente com o nariz branco de cocaína.

E vi, mais de uma vez, a direção da escola dispensar aluno com medo do

que seus “chefes” poderiam fazer.

Mas acho que se eu mostrar medo ou fragilidade diante do alu-

no, ele vai aparecer na frente da minha casa - que todo mundo aqui do

bairro sabe qual é - e, sei lá, envenenar meus cachorros, jogar pedra na

minha janela. Claro que também não brinco com o perigo. Não saio por

aí ameaçando chamar um amigo do tráfico, nada disso. A minha namo-

rada vive com medo de que eu fale alguma coisa que algum deles não

goste, mas eu estou tranquilo. Sei o que estou fazendo. Certa vez, um

aluno em que dei bronca disse assim:

— Professor, o senhor não conhece essa vida que tem aí fora não.

Um dia alguém pode pegar e apavorar você, te dar um caldo, aí, pode

acontecer.

Olhando nos olhos dele e sem estremecer, respondi calmamente:

— E quem vai dar o caldo, você? Você vai me dar um caldo? Tem

que ser muito homem. Mas muito macho mesmo pra falar isso na minha

cara. Diz pra mim que vai ser você. — Me aproximei. — Você vai bater em

Quatro em cada

dez professores

consideram o

envolvimento com

drogas a causa da

violência dentro das

escolas.

Fonte: Estudo

“Violência nas

Escolas”, realizado

pela Unesco em

2002. A pesquisa

ouviu 13.000 pais e

professores.

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70 - SOS Professor

mim? Vai bater na minha cara, vai me machucar?

Depois de dar aquela olhadinha para ver se a classe estava olhan-

do, o garoto magro, baixinho, de boné virado para frente, corrente de

prata e tênis Nike sorriu e mudou o tom da “conversa”.

— Ééééé, o professor tá machão heim? Tá malandro, psor!

Tudo bem, até tem um ou dois que me assustam sim. Mas não

são esses que enfrentam os professores. Aquele que trafica mesmo, que

é bandido de verdade, não fala. Não precisa, porque todo mundo já sabe.

Na verdade esse tipo de garoto é até gentil com você e, muitas vezes,

bom aluno.

Certa vez, um aluno meu sumiu por mais de um mês. Quando per-

guntei por ele em sala de aula, responderam o que eu já esperava: que

trabalhava com “os irmãos”. Os irmãos, na gíria do pessoal lá do bairro,

são os ligados ao PCC. E tem de tudo: garoto que esfaqueou o padrasto,

aluno que participou de assalto a banco, recém-saído da Fundação Casa

e os famosos L. A. (Liberdade Assistida). São bem diferentes dos que

costumamos chamar de Bandidinhos. Os Bandidinhos são esses meninos

que tentaram entrar para o crime, mas não foram “espertos” o suficien-

te. Sempre acabam se ferrando — normalmente por falar demais.

— Aaahhh psor, tô com medo de morrer. Os irmãos falaram pra

mim que se eu fizer alguma merda de novo eu vou morrer. — estava de-

sesperado, gritando para a classe inteira ouvir. Tinha o cabelo raspado

com um círculo fino desenhado no alto da cabeça, o casaco largo, a calça

caindo e deixando a cueca à mostra. Calmamente eu cheguei perto e

pedi que ele saísse da sala para conversar comigo.

— Olha, Wellington. Eu não gostaria de saber esse tipo de detalhe

da sua vida...

— É que eu roubei um carro, psor, tá ligado? Só que aí os maluco

vieram atrás de mim com a polícia pra me pegar... Tô nervoso, psor, num

tô a fim de fazer a lição não.

— Eu não quero saber se você rouba. Na verdade, eu não quero

que você roube, mas se você resolver roubar, por favor, não anuncia

isso na minha aula, tá? Eu quero fazer o meu trabalho. Aqui dentro eu

gostaria que você ficasse quieto.

É assim que aprendi a trabalhar. Se eles roubam, traficam, se

drogam, que façam isso fora da minha sala de aula. Comigo, eu espero

que eles possam ver que existem muitos caminhos para se dar bem na

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SOS Professor - 71

vida de outras formas.

• • •

Sou professor há dois anos, desde que concluí minha graduação

em história. Comecei como eventual, substituindo aqueles que faltavam

e, recentemente, passei no concurso para efetivo. O pessoal da sala dos

professores me considera jovem: tenho 27 anos.

Entre o colégio e a faculdade, trabalhei em posições considera-

das medíocres. Cozinheiro de fast-food, operador de telemarketing, o

que fosse necessário para juntar dinheiro. A princípio, queria comprar

instrumentos para minha carreira de baterista, mas depois percebi que

precisava de uma faculdade. Aqui nesse bairro, sem um apadrinhamen-

to, um pai ou uma mãe que possam ajudar, a gente tem que lutar e ir

atrás. E eu fui.

Acho que, como sou mais jovem, tenho facilidade de falar com

meus alunos em uma linguagem que eles entendem. Procuro tornar a

matéria mais interessante, trazer os conteúdos para a realidade deles.

Associo história com jogos de videogame, passo filmes... Às vezes até

indico as páginas onde eles podem baixar essas coisas. Mesmo assim,

não é fácil prender a atenção dos alunos. Porque o que eles querem é

isso mesmo, encher o saco. Eu era assim com treze anos, e aposto que

você também era.

Quando tenho algum problema, procuro não levá-lo à direção,

chamar os pais. Essas coisas não resolvem nada porque a grande maio-

ria do pessoal aqui no bairro larga o filho na escola para ele não ficar

em casa incomodando. Eles fazem parte de uma geração — a minha,

inclusive — de pessoas que tiveram filhos com 13, 14 anos de idade. E o

que um garoto de 15 anos faz quando tem um filho? Confia a educação à

mãe ou à sogra e vai curtir a vida. Quando o menino chega aos 12 anos,

ele não sabe o filho que tem. Pensa que cuidar é dar presentes.

— Viu só minha jaqueta nova, professor? Ganhei do meu avô on-

tem. Ele disse que custou trezentos reais — veio uma vez um garoto

dizer para mim, todo orgulhoso, depois de ter contado a novidade para

a classe inteira.

— E de que adianta se você não vai ter nada no futuro? — Res-

pondi. — ele franziu a testa, confuso. — O que um cara como você vai

ter na vida, se não consegue ficar sentado no lugar por cinco minutos

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72 - SOS Professor

de explicação?

A única coisa que essas crianças aprendem com esse tipo de edu-

cação é que tudo chega com facilidade. E aí já viu, né?

• • •

Nunca sofri agressões físicas. Acho que é porque eles sabem que,

se alguém encostar em mim, não vou ser tão bonzinho assim. Mas

também não acho certo revidar tudo na mesma moeda, falar palavrão,

como muita gente faz. Lógico que tem coisa que escapa — e quando isso

acontece, peço desculpas. E quando você pede desculpas... Percebe que

chegou no seu limite. E, às vezes, gritar, xingar, falar alguma palavra

esquisita torna-se a única forma de chamar a atenção deles. Como fiz

certa vez com Lucas.

— Lucas, vem sentar aqui na frente. Copia isso aqui que eu tô

passando porque é importante.

— Não tô a fim.

O mesmo diálogo se repetiu várias vezes. — Senta! — Não quero.

— Senta, por favor. — Não. — Até que minha paciência chegou ao fim.

— Então vai à merda! — falei sem pensar. O menino imediatamente

levantou-se para sair da sala. Gritei para chamá-lo de volta.

— LUCAS! LUCAS! — Ele não respondia. Peguei um livro e joguei na

parede. Bati a porta de metal contra o batente. A classe observava em

silêncio, assustada. Lá no fundo, uma voz escondida começou um coro

que logo foi repetido, cheio de risadas:

— Aêêê, o professor vai bater no Lucaaas! Porrada! Porrada!

-Você vai me bater? — Era um desafio. Mas Cláudio manteve os

braços ao lado do corpo e os olhos firmes nos do aluno.

— Cara, pra eu te bater, a coisa tem que ser feia. Eu não vou dar o

meu emprego pra você. Porque é isso que vai acontecer se eu te bater...

E eu não sou trouxa o suficiente para isso.

Não mesmo. Se professor bate em aluno, perde o emprego. Mas

vontade é o que não falta. O que você faz com um cara que não faz

nada e ainda xinga você de idiota, retardado? Que levanta e vem intimi-

dar você, falando a milímetros do seu rosto e babando na sua cara com

aquele hálito maravilhoso? Ou você baixa os olhos, o que vai fazer com

que ele sinta que está no comando... Ou mostra que não tem medo.

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PARTE II

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é p

ossív

el

capítulo 7

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A voz dos alunos

- Um bom professor deve entrar

na sala de aula e cumprimentar

a classe. Nós sentimos falta

desse tipo de contato. E ele

também tem que conversar

com os alunos. Se não houver

diálogo, não há parceria. Tem

que conhecer a gente, saber

quem somos, mas também não

precisa se tornar melhor amigo.

- Discutir com a gente como

se fosse um de nós faz com

que o professor perca a moral

dentro da sala. Se tiver algum

aluno atrapalhando a aula, o

professor deveria colocá-lo para

fora da sala e encaminhar para

a diretoria.

- Muitos professores punem

a classe inteira quando só

um aluno apronta. Não é

justo deixar a sala inteira

sem intervalo porque um fez

bagunça.

- Por mais interessante que

seja o assunto, apenas copiar

a matéria da lousa deixa

qualquer um de saco cheio. Por

isso, o professor deveria dar

aulas diferentes, com vídeos,

experiências e dinâmicas. Tem

que nos mostrar como aquele

conceito pode ser aplicado no

dia-a-dia. E isso não precisa

acontecer todos os dias, uma

vez por semana já seria ótimo.

Alunos do terceiro ano do Ensino Médio participaram de um

bate-papo sobre o que um professor precisa fazer para ter atenção e

ser respeitado. O resultado foi um docente completamente real e possí-

vel. Os estudantes não fizeram muitas exigências. Eles apenas pediram

educação, diálogo justiça e aulas diferenciadas.

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�0 - SOS Professor

Problema de um, problema de todos

— We will, we will rock you...

Por volta das 16h10, o hit do Queen começa a tocar e alunos e pro-

fessores deixam as salas. Era o sinal para o intervalo. André Luiz entrava

e saía apressado da sala de professores, chamando os profissionais

um a um para serem entrevistados. A escola precisava de professores

eventuais e, mesmo localizada no Capão Redondo, um dos bairros mais

violentos do Estado de São Paulo, cerca de quinze pessoas estavam an-

siosas por uma vaga.

Feitas as entrevistas, o coordenador ainda tinha de lidar com Cláudia.

— Eu não quero falar com ele — gritava a menina com os olhos

arregalados e voz firme.

A inspetora que a acompanhava não se alterou e pediu que ela sen-

tasse nas cadeiras que ficavam perto da sala do coordenador. O corredor era

estreito e ficava ainda menor com tambores, tubas e pratos espalhados pelo

chão. Cláudia balançava as pernas e estalava os dedos a todo momento. Ela

já tinha na cabeça a história que contaria a André dali a alguns minutos.

Quando o momento chegou, levantou a cabeça e entrou.

— Boa tarde, Cláudia! — saudou André, sorridente, oferecendo a

cadeira a sua frente.

— Eu não entrei na aula, Dedé, porque a Thayrine tava bêbada caindo

pela rua, aí eu fui ajudar e queria trazer ela pra dentro da escola ou pro

hospital, mas aí ela não queria, disse que você ia brigar com ela e...

— Fala mais devagar que eu não tô entendendo nada do que você

tá falando.

Um pouco mais calma, a adolescente de 15 anos, com traços de

criança e corpo curvilíneo, contou a desventura de sua amiga extrema-

mente bêbada. Naquela manhã, Cláudia encontrou Thayrine caindo de

bêbada pela rua próxima à escola. Preocupada, levou a amiga para casa

de outra colega, cuja mãe levou a bêbada para o hospital. Cláudia voltou

para escola após a epopeia, mas foi impedida de entrar por causa do

horário. Ou, pelo menos, é a história que ela defendeu até o final da

reunião com André.

— Você bebeu? Tô sentindo cheiro de pinga.

— Não, Dedé. Eu não bebi, ela que tava bebendo. Olha pra mim,

você acha que eu ia tá falando assim se eu tivesse bebido?

Em 2003,o bairro

Capão Redondo

registrava 61,59

homicídios em

cada cem mil

habitantes, muito

acima do índice

aceito pela ONU (dez

homicídios). Em

2009, esse número

caiu para 15,44,

considerado um

número mediano.

Fonte: Movimento

Nossa São Paulo

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SOS Professor - �1

— Você tem certeza? Você acha bonito mulher ficar bebendo?

— Não! Eu não acho bonito nem homem ficar bêbado por aí, quan-

to mais mulher!

André foi interrompido pelas batidas na porta. A mãe e o irmão

menor de Cláudia entraram. O pai nem ficou sabendo da história, eram

separados. Dona Luiza já perguntava o que a filha tinha aprontado. O

coordenador pediu que a menina, já com os olhos cheios lágrimas, se

retirasse por alguns minutos.

Dona Luiza não tinha comparecido à reunião e não fazia ideia da

baixa frequência da filha. Ela já tinha 66 faltas do início do ano até junho.

Para a mãe, era impossível. Cláudia era educada na rédea curta. Não

dormia na casa das amigas, não saía de noite e deixava a casa todos os

dias para ir à escola no horário correto. Mesmo assim, não era a primeira

vez que Dona Luiza ouvia relatos de que a filha frequentava bares no

horário da aula e andava com “más companhias”. Ela já tinha perdido a

confiança na menina fazia tempo.

Todos os professores de Cláudia foram chamados para a reunião.

Os casos na Leopoldo Santana são resolvidos assim. O problema de um

é o problema de todos. Com os diários em mãos, os educadores foram

traçando o perfil da aluna em sala de aula. O relato era sempre o mesmo:

era uma aluna inteligente, mas arrogante, agressiva e ausente. Ela sem-

pre faltava nas primeiras e últimas aulas de sexta-feira. E o boato entre

os colegas era que entrava em sala de aula bêbada.

A adolescente não desistiu fácil e procurava rebater o que os pro-

fessores falavam. Se reclamavam do atraso, ela dizia que eram apenas

dois minutos. Se perguntavam sobre a bebida, ela negava veementemen-

te. André ponderava a situação com a mãe, dizia que “aborrescentes”

são problemáticos, mas que devem ser acompanhados de perto. Tentava

ensinar a mãe a educar a filha para o mundo. No final, Cláudia cedeu e

prometeu mudar.

• • •

Leopoldo Santana tem fama em todo o Capão Redondo. À primei-

ra vista, os muros coloridos e grafitados com tema da Copa do Mundo

2010 que contornam todo o quarteirão dão uma impressão psicodélica e

alegre à escola. Porém, por dentro a arquitetura é a mesma: grades em

Page 82: SOS PROFESSOR

�2 - SOS Professor

todo o canto, portões com cadeados separando os ambientes e paredes

azuis. O que muda é a estrutura para os alunos e professores, que con-

tam com bons computadores, biblioteca com vários títulos e uma biblio-

tecária apaixonada pela escola, câmeras de segurança, palco no pátio

para apresentações diárias, entre muitos outros detalhes que fazem a

escola diferente da maioria.

Não recebem nenhum apoio externo, mas têm diretores, coor-

denadores e professores interessados em fazer dar certo. Para os pro-

blemas de desestrutura familiar, uma professora, também formada em

Psicologia, está sempre à disposição dos alunos. Em mais de dez anos,

quase todos os problemas são resolvidos dentro da escola e o Conselho

Tutelar nunca precisou ser chamado.

Logo no início do período letivo, a aliança entre alunos, pais e

colégio se formaliza por um Termo de Ciência, atualizado anualmente.

(Confira o anexo 1)

O segredo da escola é tornar o ambiente agradável. Os educadores

têm em mente que se o aluno encontra tudo quebrado, ele vai se sentir

motivado a depredar ainda mais. Durante o ano, há festivais de música,

feiras culturais, gincanas e bailes para os pais.

As atividades têm como resultado final a solidariedade. Os alunos

doam sangue, consertam praças e arrecadam alimentos para asilos e outras

entidades carentes. Tudo isso unindo diversão e responsabilidade social.

Além disso, a direção cobra aulas dinâmicas dos professores e

pede que evitem o “giz-lousa”, em que os alunos apenas copiam a

matéria do quadro. Há debates, simulações de julgamentos e diversas

experiências.

A escola valoriza muito a interação com os pais dos alunos e a

comunidade do bairro. A quadra poliesportiva fica aberta todas as noites

para a população, desde que se respeite o ambiente escolar. Nada de

drogas, bebidas ou bagunça. Os pais participam de decisões importantes

da escola por meio do Conselho Participativo, que ocorre várias vezes

durante o ano. Cerca de 70% dos alunos enfrentam problemas familiares

e a escola só consegue resultados positivos graças a essa integração.

— Não é porque a escola é pública que precisa estar jogada. O alu-

no não tem culpa de ter nascido pobre, na periferia. Se escolhemos ser

professores, temos de levar até o fim – diz André, que coordena a escola

há mais de dez anos.

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�4 - SOS Professor

Os Rs do Samuca

— Antes, a gente encontrava um corpo jogado na esquina todo dia

– lembra a diretora Maria de Fátima.

Nada estranho para uma escola que fica em um bairro conside-

rado, em 2000, o mais violento do mundo, segundo a ONU (Organização

das Nações Unidas). A escola que ela dirige há quatro anos fica no bairro

Jardim Ângela. Hoje a situação melhorou. Mas ainda existem problemas

de estrutura e saneamento básico, como a falta de água.

Mesmo assim, cerca de 200 alunos pediram transferência para a

E.E. Professor Samuel Morse, carinhosamente chamada de Samuca. Des-

de 200�, o colégio recebe um incentivo do Instituto Unibanco por meio

do programa “Entre Jovens”.

O projeto nasceu após notar-se que muita gente termina o Ensino

Fundamental e desiste de estudar. Por isso, é aplicado apenas no Ensino

Médio. A escola recebe cerca de R$ 100 reais por aluno, um total de R$

100 mil no Samuca.

Para que o dinheiro seja liberado, o Instituto aplica uma prova de

diagnóstico nos jovens. Com os resultados, elabora-se um plano de ação

correspondente às necessidades materiais e pedagógicas da escola. Na

estratégia estipulam-se sete objetivos – os sete R (Resultados Esperados)

-, que devem ser alcançados com ações específicas para cada proble-

ma.

Na Samuel Morse, o primeiro “R” busca a melhora no desempe-

nho de Português e Matemática. Para aumentar as notas nessas discipli-

nas, a escola leva os alunos a museus e promove o “Show do Milhão”. A

brincadeira reúne todas as séries do Ensino Médio. Eles se dividem em

equipes, por cores, e respondem 20 questões elaboradas pelos profes-

sores.

É uma farra. Os alunos se preparam com antecedência, criam gri-

tos de guerra e estudam para a disciplina proposta no jogo, afinal, a sala

que tiver o melhor resultado ganha ingressos para o cinema.

A ideia fez tanto sucesso, que uma semana depois da primeira

edição da brincadeira, a comunidade pediu para participar dos próximos

eventos. Além disso, a proposta foi adaptada para as classes do Ensino

Fundamental. A diferença fica na premiação. Como a renda do projeto

só pode ser investida do 1º ao 3º colegial, os alunos campeões da 1ª a �ª

Em 2003, o bairro

Jardim Ângela

registrava 82,24

homicídios em cada

cem mil habitantes,

colocando-o como o

quarto pior bairro

da cidade no índice.

Em 2009, esse

número caiu para

14,27, considerado

um número

mediano.

Fonte: Movimento Nossa São Paulo

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SOS Professor - �5

série ganham uma sessão pipoca na própria escola.

O segundo objetivo do Samuca é obter um alto índice de frequên-

cia. A solução encontrada foi a de colocar uma televisão no pátio, apa-

relho de videokê, mesa de ping-pong e jogos de dama e xadrez durante

o intervalo. Essas ações ainda contribuem para prevenir o vandalismo.

“Aluno à toa quebra a escola”, explica a diretora Maria de Fátima.

O estudante que mais se destacar durante o bimestre em cada

sala ainda ganha uma vale-presente no valor de R$ 50. E esse conceito

de diversão reforça-se a todo o momento na escola. Em 2010, o colégio

promoveu o concurso Miss Samuel Morse, para elevar a autoestima das

alunas. A empolgação foi tanta que a escola decidiu realizar um concurso

de Mister e Miss infantil e mirim.

Desenvolver alunos com atitude de responsabilidades socioeconô-

mica e ambiental faz parte do terceiro “R”. O “Superação” acontece uma

vez por ano e aborda um tema planejado, como o meio-ambiente. Nesse

dia, os alunos apresentam projetos, participam de gincanas e arrecadam

alimentos para a comunidade, tudo com a supervisão do Instituto Uni-

banco.

A quarta e quinta metas da escola são destinadas aos professores.

Para incentivar a frequência dos 30 docentes do período noturno, no final

do ano, a escola oferece um pacote turístico para os quatro melhores

professores de cada série.

Além disso, o professor com menos faltas durante o bimestre

recebe um vale-presente de R$ 150. Mas todos acabam ganhando. Cada

educador ainda leva 11 ingressos para o cinema, sem precisar cumprir

metas.

Para manter um ambiente confortável, o projeto financiou a refor-

ma na sala dos professores. O espaço agora conta com três sofás novos,

geladeira, bebedouro e uma máquina de café expresso.

Mas apenas empolgação não assegura uma aula perfeita. A fim de

melhorar a metodologia das aulas, os professores passam por cursos de

informática e outras oficinas.

Os outros dois “R” contemplam a parte administrativa do colégio.

O dinheiro do incentivo serve também para contratar um contador e

comprar um sistema que facilita a organização das notas dos alunos.

• • •

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�6 - SOS Professor

Depois de alguns meses de projeto, já dá para notar uma melhora

geral no Ensino Médio. Mas quem visita a escola no período da manhã

conhece outro Samuca. Os alunos andam pelo telhado, xingam os pro-

fessores e quebram cadeiras e mesas, que ficam empilhadas em cantos

do colégio. E como não recebem os mesmos benefícios dos professores

do período noturno, os educadores do Ensino Fundamental se sentem

preteridos.

Enquanto isso, no Ensino Médio, os jovens gostam cada vez mais

da escola e impedem que colegas bagunceiros prejudiquem os resulta-

dos do projeto. E os pais, que no começo só participavam das brincadei-

ras, hoje lotam as reuniões de pais e mestres.

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Page 88: SOS PROFESSOR

�� - SOS Professor

Ambiente agradávelLimpeza e conforto são fundamentais. Se o local estiver bem cuidado,

o professor terá mais vontade de dar aulas e os alunos de assisti-las.

Para o professor - Além de uma classe organizada, é preciso ofere-

cer uma sala dos professores confortável, com local para refeições, café

e um espaço gostoso para o intervalo.

Para o aluno - Uma escola com muros grafitados, por exemplo,

pode fazer com que o aluno se sinta mais próximo ao ambiente escolar.

Ele também deve ter disponível um espaço de lazer para os intervalos.

Mesa de ping-pong, pebolim e xadrez sempre fazem sucesso.

Direção Hoje, o diretor precisa ser multifuncional. Ele tem o papel de juiz,

psicólogo, gestor e educador. O que a escola precisa não é de uma fi-

gura rígida, mas sim de um diretor que se preocupe com o bem estar

de funcionários, professores e alunos. Ele deve saber resolver conflitos,

acompanhar o andamento das aulas e estar aberto ao diálogo. A maioria

das escolas tem a mesma cara de quem as dirige.

Professor – suas necessidadesCapacitação – O docente precisa estar constantemente atualizado

na disciplina que leciona. É importante que a escola ofereça cursos.

Além disso, é interessante que o professor possa acompanhar as novas

tecnologias. Cursos de informática são essenciais para o profissional uti-

lizar os recursos da Internet em suas aulas.

Motivação – Para estimular os professores, as escolas podem ofe-

recer premiações e bonificações financeiras aos que se destacarem em

itens como assiduidade e bom rendimento de alunos.

Guia para uma boa escola

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SOS Professor - ��

Professor – suas práticasRelacionamento – Um bom convívio com os alunos começa com

um simples “bom dia”. Simpatia e bom humor fazem toda a diferença

na hora da aula. O professor tem de saber se aproximar dos alunos e

conquistá-los, mas sem perder a posição de autoridade.

Didática - A escola não precisa ser um ambiente apenas de obri-

gações e deveres. É importante que os professores saibam oferecer ativi-

dades diferentes e criativas em suas aulas. Debates, passeios, gincanas

e dinâmicas são ações que deixam a aula agradável e atrativa para os

alunos. Eles aprendem sem perceber e ainda deixam de faltar. Premiar

os que se destacam também é uma forma de incentivar o progresso no

desempenho.

Integração com a comunidadeColetividade - Concursos e gincanas envolvendo a comunidade

elevam a autoestima dos alunos e melhoram a imagem da escola. A po-

pulação do bairro acaba se mobilizando e participando mais da educação

dos filhos. Quando os pais estabelecem essa relação, passam a proteger

a escola.

Reuniões - Um dos maiores problemas enfrentados pelos profes-

sores na sala de aula é a falta de estrutura familiar dos alunos. Conse-

lhos de classe participativos, feitos reunindo coordenação, professores,

alunos e pais são uma boa alternativa para trabalhar o problema em

conjunto.

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�0 - SOS Professor

1. Termo de Ciência entregue aos alunos da E. E. E. M. Leopoldo Santana no início do ano letivo

ANExO

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SOS Professor - �1

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�2 - SOS Professor

ABRAMOVAY, Miriam e RUA, Maria das Graças. Violência nas Escolas – Versão Resumida. Brasília: UNESCO Brasil, 2003. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/00133�/133�67por.pdf

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Page 94: SOS PROFESSOR
Page 95: SOS PROFESSOR
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