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1 39.533 toques O sotaque paulistano veio do caipira O sotaque paulistano propriamente dito, caracterizado por uma entonação e por uma pronúncia que o diferenciam do gaúcho, do nordestino e do carioca, por exemplo, tem uma história muito antiga, e remonta ao encontro das populações portuguesas com os índios. Segundo Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), durante mais de 200 anos as vilas de São Vicente e São Paulo foram irradiadoras de ondas de migração para o Sudeste e o Sul do País e falavam em grande medida uma língua indígena baseada no tupi, o nhengatu, a língua-geral simplificada pelos jesuítas e utilizada pelos bandeirantes para comunicação com os índios. Essa língua-geral de tronco tupi era uma das línguas francas faladas na Capital, onde também coabitavam tribos de outros troncos linguísticos. O nhengatu sistematizado por jesuítas como Anchieta, que fez a primeira gramática de tupi, foi predominantemente falado pela

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Os sotaques de São Paulo - reportagem de Marcos Gomes sobre os diferentes cidades da Capital paulista, remontando à língua-geral indígena nhengatu, que teria dado origem ao sotaque do caipira paulista. A reportagem focaliza também o impacto das comunidades estrangeiras nos falares locais da cidade - como o espanhol dos bolivianos que veio substituir o dos imigrantes europeus do século passado - assim com o árabe, o coreano, o italiano, o chinês, o japonês, o alemão com forte presença nos falares locais da cidade. A reportagem também focaliza o impacto dos sotaques das populações brasileiras de outros Estados em São Paulo, principalmente Nordeste

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39.533 toques

O sotaque paulistano veio do caipira

O sotaque paulistano propriamente dito, caracterizado por uma entonação e por uma pronúncia que o diferenciam do gaúcho, do nordestino e do carioca, por exemplo, tem uma história muito antiga, e remonta ao encontro das populações portuguesas com os índios.

Segundo Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), durante mais de 200 anos as vilas de São Vicente e São Paulo foram irradiadoras de ondas de migração para o Sudeste e o Sul do País e falavam em grande medida uma língua indígena baseada no tupi, o nhengatu, a língua-geral simplificada pelos jesuítas e utilizada pelos bandeirantes para comunicação com os índios. Essa língua-geral de tronco tupi era uma das línguas francas faladas na Capital, onde também coabitavam tribos de outros troncos linguísticos. O nhengatu sistematizado por jesuítas como Anchieta, que fez a primeira gramática de tupi, foi predominantemente falado pela população da vila de São Paulo até quase meados do século 18, quando seu uso foi oficialmente proibido pelo marquês de Pombal. São Paulo voltou a falar a língua portuguesa, mas carregada de sotaques indígenas.

Essa língua se aproximaria muito do que é hoje o caipira do interior. Assim o quadro O Violeiro (1899), de Almeida Júnior, que mostra um casal de caipiras recostados na janela de grossas vigas, seria também um retrato arcaico de como era a vida na capital paulista até o século XVIII. As roupas naturalmente seriam diferentes e eles estariam falando nhengatu ou um português carregado do sotaque nhengatu (depois da proibição da

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língua pelo governo português). Teria sido por influência principalmente indígena que ocorreram acréscimos de vogais para fazer com que as consoantes fossem pronunciadas como no caso de “mele” em vez de “mel”, “nóis” em vez de “nós”. As consoantes finais dos infinitivos também foram suprimidas no falar popular como em “falá” em vez de “falar”.

Os bandeirantes e tropeiros que ali primeiro se estabeleceram, por influência indígena, também teriam adotado o hábito de pular consoantes no meio das palavras (“muié” por “mulher”, por exemplo) e usariam o “R” retroflexo (“porrta”). Também ocorreram mudanças nas formas de tratamento: os mamelucos diziam “mecê” em vez de “vossa mercê” (depois a própria língua culta adotaria “você”, que veio de formas intermediárias populares, como “vosencê”).

Palavras indígenas também fazem parte do vocabulário e das expressões comuns do paulistano, como capim, abacaxi, mandioca, jabuticaba, sabiá, curió, piranha, “estar na pindaíba”, “estar de tocaia”.

A cidade de São Paulo cresceu, instituiu faculdades como a de Direito, teve mais observância pelas normas cultas da língua e a pronúncia do paulistano foi perdendo parte do sotaque e da pronúncia “caipira” das palavras que ela tinha antes, mas conservando um pouco de sua música.

O Rio de Janeiro teria sotaque semelhante, antes da chegada da leva de migrações de Portugal que veio com a Família Real em 1808. Isso fez predominar naquela cidade a pronúncia mais européia do “S” (em “cosstas”, por exemplo), que também é característica de diferentes regiões litorâneas nas quais predominou a imigração portuguesa, como litoral de Santa Catarina, Santos, Pará.

A pronúncia de São Paulo já era característica, marcada por contribuições do nhengatu e de outras línguas indígenas ao português falado em Portugal, pelo linguajar popular e pela

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posterior predominância do linguajar mais erudito. Também houve as contribuições dos escravos negros na entonação e no vocabulário (“caçula”, “moleque”), por exemplo. Mas a presença das línguas nativas africanas não foi tão intensa na Capital como o foi nas plantações de café do Interior e em outras regiões do Brasil, como Nordeste, principalmente Bahia, e no Rio de Janeiro. O toque final foi dado pela chegada de levas de imigrantes estrangeiros, que trouxeram novas línguas e diferentes sotaques que hoje se ouvem na Capital.

O professor chama a atenção para o fato de a troca de “R” por “L”, chamada tecnicamente de rotacismo, não ser uma característica exclusiva do caipira, pois é falada pelas crianças (a exemplo do linguajar das revistas da Mônica e do Cebolinha), tipicamente pelos chineses e é encontrada em todas as regiões brasileiras, estando mais relacionada a variáveis ou aspectos sociais, como a escolaridade do falante, do que a motivos dialetais circunscritos a uma dada região. Esse rotacismo pode ter sido intensificado em dado período por influência indígena, mas está ligado ao modo mais fácil ou mais elaborado de emitir o som das letras, sendo que já existia no latim (“flagellum” e “fragellum”, por exemplo). e no português dos clássicos (Camões usa “frauta” em vez de “flauta”, por exemplo). “Isso denota que pode se tratar de um caso de manutenção”, diz Santiago Almeida.

Viagem pelos sotaques de São Paulo

O paulistano tem sotaque? Tem, e esse sotaque tem a ver com a pronúncia das palavras e das frases, que seguem determinados ritmos e melodias. Se a maneira de falar do paulistano já é um dialeto próprio, com seu sotaque característico, tem ainda subsotaques. O Diário do Comércio foi conferir alguns desses ecos de outras regiões, povos, línguas e culturas, que podem ser ouvidos hoje na Cidade.

Zona da Mata, Agreste, Sertão

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A Grande São Paulo tem mais de 2 milhões de moradores nascidos no Nordeste, quase 10% do total de sua população. Estima-se que população de nordestinos e seus descendentes diretos chega a mais de 8 milhões na região metropolitana, segundo estimativas, pois a migração é antiga e já passou por duas ou três gerações. Em alguns lugares, como o Largo da Concórdia, no Brás, e os extremos das zonas Leste e Sul, é possível ouvir o cantado nordestino nas ruas, bares e mercearias (“casas do Norte”). E o cantado das frases e o vocabulário podem ser diferentes, conforme a pessoa veio da Zona da Mata litorânea, do Agreste intermediário ou do Sertão dos interiores do Brasil. Em geral a palavra “delícia”, por exemplo, é pronunciada “délícia” com a antepenúltima sílaba aberta.

Praticamente todas as feiras livres têm setores nordestinos, que vendem artigos como carne seca, azeite de dendê, pimentas típicas, temperos como coentro e outras coisas. A forte influência indígena na cultura nordestina se pode perceber em pratos como a tapioca, que é uma espécie de panqueca feita com polvilho de mandioca, receita típica indígena, mas que é muito apreciada pelos nordestinos.

“Tá fazendo um frio arretado! Nem os cachorros ficam mais com os quartos pra cima no sol, tá tudo encolhido...”, comenta Raimundo Souza, que mora na zona leste e passa pelo largo da Concórdia para pegar trem, aproveitando para fazer algumas comprinhas para casa nas lojas do Norte da região. “Às vezes levo até rapadura, para matar a saudade...” Mas hoje ele está “avexado” (“com pressa”) para voltar para casa porque o filho de oito anos faz aniversário e a família preparou uma festinha. Raimundo foi buscar manteiga de garrafa e “um vinhozinho de caju para servir aos adultos”. “Ó xente, num é que vai chover e eu armei a churrasqueira com tijolos no quintal?, Vixe, vai ter de mocozar todo mundo dentro da casa, que já é pequena...”

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Raimundo é mestre de obras. Muitos nordestinos recém-chegados encontram seu emprego em São Paulo na função de pedreiros, serviços domésticos e humildes postos de vigilante, atendente, porteiros de prédios.

O cantado nordestino que se ouve na região do Brás se espalha por vários pontos da cidade, mas se reúne no Centro de Tradições Nordestinas, que fica na Rua Jacofér, 615, no bairro do Limão (atrás do prédio do Estadão). Na sede do CTN são promovidas feiras de culinária e artigos típicos e concorridos shows, que chegam a lotar a área, com capacidade para sete mil pessoas. Funciona de segunda a quinta no horário do almoço, de sexta e sábado das 11h às 4h e de domingo das 11h à 0h, com muito forró. Entre as iguarias, um destaque para as várias formas de servir carne-seca, inclusive desfiada. Também fazem sucesso a buxada de bode, os pratos com abóbora (jerimum), o sarapatel (sangue e miúdos de porco), o baião-de-dois (feijão com arroz e carne). As porções para 4 ou 5 pessoas custam de R$ 35 a R$ 45. E lá também não falta a tradicional cozinha baiana, com suas moquecas, o vatapá e o acarajé (entre R$ 7 a R$ 8, sempre muito bem servido, com vatapá, camarão seco, várias especiarias, frito no dendê fresco).

As festas de São João chegam a reunir mais de 1 milhão de pessoas em animadas comemorações. O local tem quiosques e restaurantes com barzinhos de comidas típicas e um palco onde se apresentam shows de música e dança. Além disso, há também uma capela, construída em homenagem ao Frei Damião, símbolo da fé cristã nordestina, e um parque de diversão para crianças e adultos.

Mas o CTN não se limita a promover a cultura, ele desenvolve muitas ações sociais, como campanhas (SOS Nordeste, por exemplo), encaminhamentos de pessoas com problemas aos

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órgãos competentes, campanhas de alfabetização de adultos, ações em saúde, como vacinação, distribuição de camisinhas, etc. Tem também uma bolsa de empregos, que pode ser consultada no site da organização.

“Estive agora mesmo na casa de Maria, num sabe?”, diz uma moça conversando com outra na frente do repórter numa fila para comprar acarajé. O sotaque nordestino fica visível na entonação da frase, e na pergunta num sabe, que se repete em várias outras frases na língua falada. Também caracteriza o tom nordestino da frase a falta de artigo em “casa de Maria”.

Sons da Itália na Mooca e no Bexiga

Quem anda um dia pela Mooca já pega o sotaque de forte inspiração italiana: “ Luciána, num isquéci de pegá o quêjo na cantína!” ou “Bélaaa, qui qui ti aconteceu, Bélaaa?” É um bairro antigo, onde os imigrantes italianos criaram raízes, o que sucede também com o Bexiga. Nesses dois bairros é possível perceber o sotaque junto com os costumes da Itália, o que se expressa no grande número de cantinas e pizzarias, por exemplo. É que a influência italiana é muito expressiva na Capital: dos dez milhões de habitantes da cidade de São Paulo, 60% (6,5 milhões de pessoas) possuem alguma ascendência italiana. São Paulo tem mais descendentes de italianos que qualquer cidade italiana (Roma, por exemplo, a maior cidade da Itália, tem 2,5 milhões de habitantes). Embora o italiano seja o mais espalhado dos sotaques de São Paulo, ele se concentrou nesses bairros de origem operária, onde os primeiros italianos que chegaram ao Brasil iam trabalhar em tecelagens e moinhos.

Na Mooca, que acabou se tornando bairro de classe média e alta, a tradição italiana é bem preservada pelos muitos descendentes,

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conforme explica a professora Maria Lúcia Armelini, que dá aula de italiano no Clube Juventus. “Neste bairro vivem muitos descendentes de italianos, é só ver os sobrenomes dos sócios do Juventus.”, diz a professora.

“Temos orgulho do sotaque. Todas as escolas de línguas do bairro, as associações de moradores têm curso de italiano, o pessoal gosta de manter as tradições, mesmo sendo neto ou bisneto de italianos.” Outro interesse, segundo a professora, é o de tirar passaporte e ter cidadania italiana. “Muitos alunos que tive eram filhos de italianos e queriam conhecer a língua para requerer seus direito à cidadania italiana. Não precisa nascer na Itália para ser italiano. Qualquer descendente de italiano é italiano. Por isso eles pesquisam para ver se têm parentes na Itália e se podem conseguir a cidadania e entrar para a comunidade europeia. Muita gente aqui na Mooca tem cidadania italiana e contatos com a Itália, até profissionais.” Um senhor que assistia à entrevista e não quis dar o nome, interrompeu: “Até o presidente Lula tem cidadania italiana por causa da mulher...”

Mas a professora admite que falar o italianado (mistura de português com italiano) nas ruas é mais coisa de gente idosa. “Este bairro tem muita gente da terceira idade, muitos avós que vieram da Itália e tem muitas atividades para idosos, como maratonas, é muito bom viver na Mooca.” Tendo como fonte os mais idosos, que leem o poeta Dante no original, o sotaque italiano foi sendo legado a seus filhos e netos e hoje é um bem cultural do bairro, um patrimônio imaterial.

Além do sotaque, Maria Lúcia, que já viveu na Itália muitos anos, aponta que Mooca tem um clima de Itália, que se pode sentir em festas tradicionais, como a de San Genaro, e lugares que são verdadeiros pedaços da Itália. “O supermercado Extra, da Paes de Barros, por exemplo, que foi feito conservando um prédio da

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Tecelagem Crespi, tem até uma capela nos fundos, a capela da família Crespi, que foi tombada pelo Patrimônio Histórico”. Ela diz que se sente na Itália quando come um quitute na doceira Di Cunto, fundada em 1935. Quanto à culinária, a Itália também está presente em pizzarias como a São Pedro e Don Giovanni, lembra a professora. Ela acha que a Mooca tem as dez melhores pizzarias de São Paulo, mas nem lembra todos os nomes: “São tantas.”

Outra característica dos falares típicos da Mooca e do Bexiga é não usar a letra “s” no final das palavras, em frases como “As menina vão sair”. Isso se deve em grande parte ao fato de a língua italiana não fazer plural com “s”, mas com “i”.

Na Mooca, que virou bairro residencial de classe média, o sotaque está mais presente na entonação das frases e na pronúncia das palavras. No Bexiga, as coisas são diferentes: o bairro é mais comercial e a presença italiana fica evidenciada no nome das cantinas e pizzarias que se espalham pela Rua 13 de Maio, por exemplo. É no Bexiga que se realiza a mais importante festa italiana do Brasil, a de Nossa Senhora de Achiropita, que chega a atrair 2 milhões de pessoas, com suas barracas de quitutes como fogazza, pizzas calzoni e vários tipos de macarrão.

E a memória do bairro está preservada no Museu do Bexiga, que guarda, além de lembranças da cidade, como roupas dos combatentes da Revolução de 1932, os pertences de Adoniran Barbosa. O sotaque e o vocabulário extremamente popular do músico mostram uma fusão do português dos muito pobres e do italiano no Bexiga em torno dos anos 1940: “Domingo nóis fumo num samba no Bixiga/ Na Rua Major, na casa do Nicola./ À mezza notte o’clock saiu uma baita duma briga/ E era só pizza que avoava, junto com as brajola”

Hoje as festas com pizza e samba quase não se fazem nas casas particulares, mas em cantinas e pizzarias. Mas ainda se houve o

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sotaque italiano nos gritos de uma senhora que da sacada do apartamento se dirige à vizinha: “Concheta! Concheta! Acabô meu arroiz!”

O espanhol de São Paulo agora vem dos Andes

Dentro de São Paulo existe uma cidade de pessoas que falam espanhol, principalmente hoje, com a globalização. Mas muitas dessas pessoas são imigrantes, que vieram em duas levas, uma da Espanha, do século 19 até a Segunda Guerra, e outra da Bolívia, que começou a chegar na década de 1990. Hoje os bolivianos são oficialmente uma comunidade de mais de 200 mil cidadãos paulistanos. É deles o espanhol que ouvimos hoje nas ruas da cidade porque a maioria dos antepassados imigrantes da Espanha já morreu, deixando milhões de descendentes espalhados pela cidade que já não falam mais espanhol.

Na primeira metade do século 20, chegaram ao Brasil mais de 600 mil espanhóis, a maioria se fixando na Capital paulista, onde constituiu as populações operárias do Brás e de bairros vizinhos. Grande parte foi ser operária nos bairros industriais, outros se dedicaram a ramos específicos, como ferros-velhos, carvoarias e marmorarias. Descendentes desses espanhóis se espalharam pela cidade, misturando-se com a população, e hoje só se concentram em poucos bairros como Cambuci, onde é possível ver idosos conversando em espanhol nos bares. Oficialmente o governo espanhol estima que vivam no Brasil 15 milhões de descendentes de espanhóis – a maioria em São Paulo.

A tradição da culinária está mantida em vários excelentes restaurantes espanhóis que se espalham pela cidade, servindo pratos como paellas (cozido de arroz e frutos do mar temperado com açafrão). Muitos frequentadores são descendentes, que não falam mais o espanhol com seus amigos, embora entendam a língua.

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Mas hoje o espanhol que a gente mais ouve nas ruas próximas do Centro não é mais o dos espanhóis e sim o dos nossos irmãos e vizinhos bolivianos. Segundo o Consulado da Bolívia, eles já perfazem uma colônia de 200 mil moradores na Capital paulista, mas estimativas dão conta que o número passa dos 300 mil, incuindo imigração ilegal. A maioria é composta de humildes operários, que se dedicam ao trabalho esmerado da pequena indústria, como o trabalho para as confecções de roupas. Alguns chegam até a ser escravizados por compatriotas inescrupulosos. Comunidades de outros hispânicos estão se estabelecendo, como paraguaios e peruanos, com ocorrência de mortes e conflitos entre gangues de adolescentes como reflexo da disputa por pontos de trabalho nas confecções.

Os bolivianos e seus descendentes brasileiros estão espalhados por praticamente toda a cidade, principalmente nos bairros de subúrbio, mas predominam e trabalham em muitos pequenas oficinas de costura em suas próprias casas, principalmente numa área próxima ao centro, entre o Pari e o Bom Retiro, incluindo a esquina da Rua Coimbra com a rua Bresser, e principalmente a praça Kantuta, na rua Pedro Vicente, perto da Estação Armênia do Metrô. O próprio nome “Kantuta”, que os bolivianos preferem assim, com “k”, é uma palavra boliviana, nome de uma flor típica do pais, que tem as cores da bandeira pátria: verde, amarelo e vermelho. Muitos bolivianos trabalham para as confecções e lojas dos coreanos, que com eles convivem no Bom Retiro.

“Quánto tiempo no necesitaria pa hacer una pieça tán grande?”, pergunta Juan, descendente de bolivianos que nasceu em São Paulo há 17 anos, referindo-se em portunhol a um tapete vendido numa das barracas da plaza Kantuta. Ele visita a feira com uma garota e um garoto mais velhos, que são bolivianos e se mudaram para São Paulo há cinco anos. A menina e o menino conseguiram emprego em confecções de coreanos graças à associação cultural

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que tem como sede a praça Kantuta. Os dois falam portunhol, misturando algumas palavras em português, mas predominando as palavras espanholas.

O menino tem o cabelo índio penteado com gel nos moldes moicanos do Neymar. A menina, de olhos e cabelos de um negro profundo, rosto corado e traços índios, elogia as comidas da feira: “En la Bolívia las personas son pobres, pero tienem mucho lo que comer, hay mucha gente que hace comida en las calles.” Pouco depois os jovens falam da economia mundial. “Adonde eso vá lhegar?”, pergunta o Neymar boliviano. “El domingo es el unico dia en que no trabajo y puedo passear, los otros dias trajo mucho”, diz Juan, que aprendeu a costurar. Ele ganha um salário mínimo “y aun unos 200 reales de horas extras”, diz o garoto, que estuda em escola estadual e muitas vezes perde o começo das aulas.

A comunidade boliviana trabalha duro nas oficinas caseiras. E também têm de trabalhar muito os que juntam algum capital e acabam se estabelecendo no comércio para sacoleiros da feira da madrugada. No domingo as moças aproveitam para passear e os rapazes jogam bola nos campinhos de terra do Pari e Bresser.

Na feira da plaza Kantuta, o ambiente é animado pelo som de música popular boliviana que sai de alto-falantes num palco ao lado da sede da Associação Gastronômica e Cultural: “No me interesa ni tu oro, ni tu plata, yo quiero que seas mia y de mas nádie” (‘Não me interessa nem teu ouro nem tua prata, quero que sejas minha e de mais ninguém’)”, diz uma canção.

Além de concentrar gente falando o espanhol da bolívia, que tem um cantado diferente do espanhol da Espanha, a visita à feira dominical da Praça Cantuta permite almoçar comida boliviana a bons preços. Um empanado boliviano (salteña) custa R$ 3,50 e para muita gente já vale por um almoço. Ele é bem recheado com cozido de porco ou de frango e é servido com pratinho e colher

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para a pessoa não se lambuzar com o recheio molhado e muito bem temperado. Quem quiser uma refeição mais completa pode optar por porco com batatas e milho bolivianos a R$ 12 o prato muito bem servido, ou por frango com batatas muito macio e crocante, a R$ 10.

A feira começou há mais de dez anos, em outro endereço, na praça Padre Bento, no largo Santo Antônio do Pari, na frente da igreja. “A iniciativa foi de uma boliviana, dona Berta Valdez, que fazia um churrasco de coração de boi muito apreciado pelos coreanos”, conta Wilson Campos, presidente da Associação Gastronômica, Cultural e Folclórica Boliviana “Padre Bento”. “Outros bolivianos se uniram a ela e atraíram conterrâneos para o passeio de domingo com comidas típicas. Logo a feira começou a atrapalhar o trânsito na Praça Padre Bento e com apoio da Prefeitura foi mudada para a Praça Kantuta, que tem mais espaço. Mantivemos no nome a homenagem ao ‘Padre Bento’ da praça anterior.”

Campos explica que a feira boliviana já chegou a gerar mais de 400 empregos, mas hoje diminuiu porque milhares de bolivianos que trabalhavam para confecções mudaram de ramo e estão vendendo para sacoleiros na feira da madrugada do Brás, que se espalha pela rua Oriente e adjacências, como o Largo da Concórdia. Essa feira congrega principalmente bolivianos, nordestinos, fazendo um retrato das correntes migratórias que vieram para a Cidade.

Em sua maioria católica, a comunidade boliviana tem apoio da Pastoral do Imigrante e transformou a associação cultural num ponto de encontro e de ajuda mútua. “Muitos bolivianos me procuram precisando de emprego. Já indiquei modelos latinos para agências de propaganda e marketing e gente que fala espanhol para empresas.” Campos também chama a atenção para

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as línguas indígenas faladas pela comunidade boliviana, que fazem ecoar sons dos Andes nas conversas particulares entre os grupinhos: “Além do espanhol, os bolivianos em geral falam as língua indígenas de suas regiões de origem, que são ensinadas nas escolas: as principais são a língua quíchua da gente de Cochabamba e a aimará, de La Paz.”

O presidente da associação cultural dos bolivianos, é casado com a boliviana Helen Mirian, cozinheira de mão cheia que faz as salteñas que ele vende numa barraca da feira. Ele revela que os bolivianos falam línguas indígenas quando não querem que saibam os assuntos de suas conversas: “Se for um grupo de jovens, quando você está perto deles e eles percebem que você entende espanhol, muitas vezes eles passam a falar em língua indígena. Aí eles podem até te xingar que você não entende nada...” Campos cita uma expressão em quíchua que se ouve na Plaza Kantuta: “Jacu rripuna!” (“Vamos embora!”, que em espanhol boliviano também se fala diferente: “Vamanos!”). Outra expressão quíchua que se ouve na praça é “Apuracui!” (“Anda logo!”).

A feira vende também pães caseiros e secos e molhados da cozinha boliviana, como quínua, vários tipos de milho e batata (tubérculos) que não existem no Brasil. Artesanato e roupas da Bolívia podem ser ainda encontrados. Uma boa dica para conferir a São Paulo de ecos andinos.

Coreanos substituem os judeus na José Paulino

Tradicional reduto de judeus, a rua José Paulino hoje fala coreano. A maioria dos judeus se mudou e se espalhou pela cidade. Suas pequenas confecções não conseguiram competir com os preços dos coreanos. A maioria dos judeus mais ricos foi morar em Higienópolis e nos Jardins, em cujas ruas podemos ainda ouvir palavras em iídiche (os que vieram da Europa do

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leste) ou hebraico (os que vieram de países árabes), apesar de muitos grupos falarem francês. Os judeus mais velhos que aprenderam português ainda falam com sotaque que lembra o dos alemães e norte-americanos falando portuglês. Muita gente em São Paulo já ouviu a canção “Nava Naguila” (“Alegremo-nos”) em hebraico, muita cantada em festivais judaicos.

As correntes de migração de judeus para o Brasil são posteriores à proclamação da República, que separou a Igreja do Estado e permitiu liberdade religiosa (o Império era católico). Grandes levas de judeus asquenazes, provenientes do Leste Europeu, como Polônia, Rússia, Ucrânia, chegaram a São Paulo desde o começo do século até a criação do Estado de Israel, depois da Segunda Guerra. Ainda em 1942, durante a guerra, a estimativa é de que havia 60 mil judeus no Brasil. Nessa época, a imigração, que tinha sido acentuada pela ascensão do nazismo, passou a ser barrada pela ditadura de Getúlio Vargas. Mas os judeus já tinham marcado sua presença em São Paulo, principalmente no Bom Retiro – e também em outros Estados, como Rio Grande do Sul. As migrações de judeus diminuíram muito depois da Segunda Guerra. Os imigrantes diretos hoje já são pais, avós ou até bisavós.

Uma pesquisa sobre origem étnica dos judeus que hoje vivem em São Paulo aponta que a maioria é brasileira (39,11%), com 16,73% de origem israelense, 6,46% de origem polonesa, 6,05% italiana, 5,64% alemã, 4% portuguesa. Uma parcela menor veio de países árabes, como o Egito. Os imigrantes judeus praticamente não encontraram resistência religiosa, como chegou a ocorrer nos EUA e na Argentina, o que facilitou sua integração.

Mas hoje a maior parte dos donos das lojas da José Paulino já é constituída por imigrantes da Coreia do Sul. Eles trazem algum capital, ao contrário dos bolivianos, que chegam praticamente sem dinheiro e trabalham nas confecções dos coreanos – o que gera migrações complementares. Suas confecções não deixam

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nada a desejar comparadas com produtos estrangeiros de boa qualidade e são vendidas em grandes lojas pelo Brasil todo.

Segundo o Consulado da Coreia do Sul, moram em São Paulo mais de 50 mil coreanos, que começaram a vir a partir da década de 1960. Desde os anos 1990, a migração de coreanos para o Brasil diminuiu muito, segundo explica Cristina Choi, que trabalha no consulado da Coreia do Sul. “É possível encontrar gente falando coreano em lugares do Bom Retiro como a Rua Correia de Melo e a Três Rios.” Os coreanos que já falam português ainda conservam uma melodia e um sotaque que visto por leigos se assemelha ao do japonês ou do chinês, mas suas frases são mais melódicas e menos sincopadas – o coreano é completamente diferente dessas duas línguas. Muitos coreanos que enriqueceram mudaram-se para a Aclimação, em casas de classe média ou média alta, levando seu sotaque para lá.

Cristina lembra que no Bom Retiro é possível ouvir expressões típicas coreanas como “Páli-páli!” (“Rápido, rápido!”) ou “Anion” (uma mesma palavra que serve para dizer “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, “tudo bem?”). Nos restaurantes em que os coreanos mais se concentram é possível saborear a comida de seu país, como o bulgogui (churrasco típico, cuja carne é adocicada) e tok (um doce à base de arroz). Os preços das refeições são baratos, em torno de R$ 15.

Os sons da Coréia também são marcantes, pois a música popular coreana atual, conhecida como K-pop, tem feito sucesso entre a colônia no Brasil e entre os jovens em geral, inclusive de outros países, como Europa e Japão. “Muitos brasileiros também gostam da música coreana. O ritmo é simples e fácil de decorar”, diz Cristina.

Ecos do Sol nascente

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Mais de 180 mil japoneses imigraram para o Brasil nas primeiras décadas do século XX, em várias ondas com navios cheios, muitas vezes com destino certo - como as fábricas da Capital e as plantações do Vale do Ribeira, por exemplo. Dos cerca dos 1,5 milhão de descendentes de japoneses e pioneiros que hoje vivem no Brasil, 400 mil moram na Grande São Paulo. São muitas casas em que as avós ainda preparam o manju, um doce especial de feijão. Os melhores elas separam para oferecer aos antepassados, geralmente num sincretismo de catolicismo com xintoísmo, que venera totens familiares.

Em bairros como a Liberdade, onde moram muitos descendentes de japoneses, além de receber muitas visitas de descendentes que lá vão fazer compras, ou o Bosque da Saúde, onde moram os de classe média e média alta, o sotaque japonês está presente nas frases. Com ele vêm outros aspectos típicos da cultura, como a culinária que usa algas, arroz, peixe cru e temperos como gengibre e molhos adocicados para acompanhar carnes. O tradicional “arigatô” (“obrigado”, na frase “domo arigatô gozamaishitá”) ou saudações como yokosô (“bem-vindos”) ainda são ouvidos pelas ruas, assim como a letra japonesa “tsu”, que não era pronunciada em português, mas agora está na imprensa, depois que ficou divulgada a palavra tsunami para substituir a inapropriada “maremoto”. A expressão “gozamaishitá”, sozinha, não possui um significado, mas é utilizada nas formas polidas de se falar com outra pessoa. Uma variação dela também está presente no “bom dia” em japonês: “Ohayo gozaimasu”.

Muitos descendentes de japoneses se reúnem nos restaurantes das ruas próximas da praça da Estação Liberdade do metrô, onde se realiza uma tradicional feira dominical, ou em festas típicas pelas ruas do bairro, como o Tanabata Matsuri, que relembra uma antiga lenda do encontro de duas estrelas e se realiza no inverno.

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Tradições da China milenar

Estimativas dão conta de que vivem hoje em São Paulo mais de 130 mil chineses e seus descendentes. Oficialmente os primeiros chineses a chegar à Capital constituem um grupo de 107 pessoas, que desembarcou em São Paulo no dia 15 de agosto de 1900. Grandes ondas migratórias ocorreram nos anos 1950 por causa das guerras internas que levaram Mao Tsé Tung ao poder e abalaram a economia, provocando surtos de fome.

Além do fenômeno do rotacismo (troca de “R” por “L”, como em “tliste”), os chineses e trouxeram uma entonação própria nas frases, que é diferente da sincopada entonação japonesa: hoje chineses e descendentes que falam a língua ainda se destacam por pronunciar mais suavemente, as frases parecem ter maior riqueza melódica. Isso se deve ao fato de o chinês ser uma língua tonal, na qual a entonação com que é pronunciada uma palavra influi em seu significado. Na verdade, os linguistas apontam que o chinês possui quatro tons. A expressão “xiao hua” pode significar “piada” se pronunciada num tom e “digestão” se o tom da pronúncia for outro. “Ki she” pode significar “carro” ou “andar de bicicleta”, dependendo do tom.

Além da tradicional cozinha chinesa, caracterizada por cozidos como o frango xadrês com amendoim, que leva molho shoyu, pimentão e acelga, ou o porco agridoce, a cozinha chinesa tem os famosos rolinhos primavera, pasteizinhos com carne e repolho ou acelga, e o macarrão iakissoba - cujo nome é japonês porque também foi adotado no Japão (convém lembrar que o macarrão foi inventado pelos chineses e levado para a Europa por Marco Polo).

Também com os chineses vieram a acupuntura, as artes marciais, o horóscopo chinês, o I-Ching, uma filosofia milenar. Muitos descendentes de chineses comandam pastelarias ou operam pequenas lavanderias familiares. Há também os que se dedicam ao pequeno comércio, como o das mercearias. A aliança entre as colônias japonesa e chinesa no Brasil traduz-se pelo fenômeno atual de muitas mercearias da Liberdade que têm placas em

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japonês terem sido compradas por chineses, que falam chinês entre eles e arranham japonês e português com os frequeses. O dialeto mais comum é o mandarim, oficial na China.

Os chineses, que na maioria chegavam com a roupa do corpo e moravem em cortiços, não chegaram a constituir um bairro próprio em São Paulo. Seus descendentes se distribuíram pela cidade, justamente por causa da natureza de suas ocupações (lavanderias e pequenos comércios, que têm de estar distribuídas nos bairros).

Mas até hoje muitas palavras e expressões da língua chinesa podem ser ouvidas nos restaurantes típicos, nas ruas da Liberdade e em muitos estabelecimentos comerciais, como lojas de importação de eletrônicos e mercearias. Uma delas é “xie-xie” (“obrigado”). Outra é “bu yong xié” (“de nada”, constituído pela sequencia palavras “não”, “usar” e “agradecer”). A palavra “xié”, decomposta em seus ideogramas significa “falar” e “corpo dobrado em reverência”.

Outra expressão típica é “ni háo”, que quer dizer “olá” (sequência dos ideogramas “você” e “bom”, “boa”). Acrescentando a partícula interrogativa “má”, podem ser feitas frases como “ni háo má?” (“como vai você?”). Já a expressão “até a vista”, que em italiano se resume por “tchau”, em chinês tem dois ideogramas: “zai jian” (sequência dos ideogramas que significam “novamente” e “ver”). Os ideogramas dessas palavras podem ser vistos no verbete “língua chinesa” da Wikipédia.

Por influência do poeta norte-americano Ezra Pound, o mecanismo metafórico e poético da língua chinesa chegou a influenciar os poetas concretos brasileiros nos anos 1960 e 1970. Um exemplo do aspecto poético dos ideogramas chineses é dado pelo símbolo de brilho, que põe lado a lado os ideogramas que significam “sol” e “lua”. O ideograma para “tranquilidade” é feito com o ideograma “teto” sobre o ideograma “mulher”. O ideograma “mulher” seguido do ideograma “filho” significa “benevolência”.

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Fora esse predomínio do pensamento por metáforas, a gramática chinesa é uma das mais fáceis do mundo porque o chinês não conjuga os verbos nem flexiona os substantivos e adjetivos. Assim a grafia e a pronúncia do verbo “ser” (“shi”) são sempre as mesmas, qualquer que seja o sujeito ou o tempo, indicados pelo contexto da frase.

“Ó Maria, preparaste o bacalhau?”

“Ó Maria, o que estás a fazeire, o que procuras que não estás a encontraire?” Uma frase como essa com ecos de Portugal ainda se ouve espalhada pelos quatro cantos da cidade e principalmente nas ruas da Vila Maria, onde sobraram redutos com ecos de além-mar. Primeiro os portugueses colonizaram o Brasil e sua língua sofreu influências das línguas indígenas (veja boxe). A descoberta de ouro em Minas Gerais no século 18 atraiu mais portugueses que ajudaram a desbravar os sertões brasileiros.

Mas em 1872 o Brasil tinha só 10 milhões de habitantes, com pouco mais de 800 mil no Estado de São Paulo (quase 500 mil na Capital). A grandes migrações começaram depois da abolição da escravatura e da República, quando o país começou a se industrializar. Em 1910 a população do País já tinha dobrado, passando dos 22 milhões. O Estado de São Paulo já tinha mais de 3 milhões de habitantes nesse ano.

Nessa época estavam em curso as grandes ondas de migração da Europa e do Japão para o Brasil, constituindo os lavradores do campo e a classe operária que veio substituir a mão de obra escrava nas cidades.

Só de Portugal vieram mais de 1,3 milhão de pessoas no começo do século 20, a maioria constituída por homens pobres e solteiros que se estabeleceram em cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Depois a corrente migratória cessou e só foi retomada entre 1945 e os anos 60, por causa da ditadura salazarista. Nessa época chegaram ao Brasil mais de 250 mil portugueses de todas as classes sociais. Essa foi a última grande corrente migratória do exterior que se dirigiu para o Brasil no século 20.

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Hoje moram no Brasil cerca de 700 mil portugueses, que vieram entre 1930 e 1960, mas estima-se que haja no país 25 milhões de descendentes dos imigrantes do começo do século 20. Estudos genéticos apontaram que metade dos cromossomos Y da população brasileira provêm de portugueses. Cerca da metade (48%) dos genes dos negros brasileiros também possui genes não-africanos herdados da miscigenação com antepassados portugueses. Ainda hoje, muitos donos de padarias, bares e restaurantes são descendentes de portugueses. E o sotaque vem acompanhado de pratos típicos, como o bacalhau assado com batatas, cebola e azeite e os pães de alho – sem esquecer o vinho do Porto e os quitutes da doçaria portuguesa, como os pastéis de belém e os fios d’ovos.

Ecos árabes na 25 de Março

O sotaque árabe que pode ser percebido nos donos das lojas da rua 25 de Março veio de uma corrente migratória que começou no final do século 19, quando libaneses e sírios migraram para o Brasil fugindo do domínio dos turcos, que submeteram os árabes ao Império Otomano. Vieram também parcelas menores de egípcios, marroquinos, jordanianos e iraquianos. Expressões em árabe, como ‘mash’allah’, que expressa admiração e significa literalmente “se deus quiser”, “udéch” (“quanto custa?”), “kifel aele” (“como vai a família?”) podem ser ouvidas na 25 de Março.

Um detalhe interessante da língua árabe é que ela forma muitas palavras em português por causa do grande desenvolvimento científico dos árabes na Idade Média, muito superior ao dos ocidentais na época. Assim a maioria das palavras começadas por “al” é de origem árabe, como “alface”, “alfândega”. Outro, que se pode conferir com descendentes que trabalham na 25 de Março e mantêm a cultura, é que o pronome “tu” é flexionado de acordo com o gênero. Dizemos “ezaiák?” quando perguntamos “como vai?” a um homem, e “ezaik” quando perguntamos “como vai?” a uma mulher.

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Junto com a língua, os árabes trouxeram pratos típicos, como o quibe, a esfiha, que se espalharam pela cidade toda. Vários tipos de coalhada e pratos com óleo de gergelim (hómus), além de assados de carneiro também fazem parte desse cardápio que, como o dos judeus, exclui a carne de porco, muito apreciada pelos chineses.

Segundo estatísticas do IBGE, até 1959 tinham chegado ao Brasil quase 190 mil árabes. Mais da metade veio para São Paulo. A outra metade se espalhou pelo Brasil, muitos exercendo o trabalho de mascates viajantes. Hoje calcula-se que haja 15 milhões de descendentes de árabes no Brasil. A integração com a população foi completa, com descendentes de árabes exercendo todas as profissões – até a de governador do Estado.

Um almanaque de 1893 já chamava a atenção para a presença de sírios e libaneses na rua 25 de Março: na época havia seis casas de armarinhos e uma mercearia pertencentes a árabes. Eles estavam começando a emergir da mascatagem e entrando no comércio varejista. Em 1901, já havia mais de 500 empresas de sírios e libaneses inscritas no almanaque e que estão na origem do que atualmente é o maior centro de comércio da América Latina.

Sons da Alemanha no Brooklin

Chucrute (repolho cortado em tiras e fermentado), apfelstrudel (torta de maçã), eisbein (joelho de porco defumado) são algumas palavras em alemão que se ouvem em muitos restaurantes espalhados pela cidade toda. A imigração alemã data do final do século 19 ao final da primeira metade do século 20, quando chegaram ao Brasil mais de 176 mil alemães. Hoje seus descendentes são mais de 5 milhões, espalhados principalmente pela região Sul do país.

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Os primeiros alemães de São Paulo chegaram em 1827 pelo porto de Santos e foram levados para Santo Amaro. Os grupos seguintes fixaram-se também na Zona Sul, em Itapecerica da Serra. E a região do Brooklin faz até uma festa típica, a Maifest, que celebra a primavera no hemisfério norte. A festa costuma ser realizada no quadrilátero formado pelas Ruas Joaquim Nabuco, Princesa Isabel, Barão do Triunfo e Bernardino de Campos e é uma das atrações do calendário cultural da Cidade.

Como o alemão é uma língua declinada, os que falam português, mantendo o forte sotaque nos “R” costumam deixar os verbos no infinitivo e não saber flexionar as palavras em gênero e número. “Os tremm ir chegar” é um exemplo de pronúncia no português-alemão que se pode ouvir dos mais velhos do bairro, assim como palavras ou expressões como como “Prost” (“saúde”) ou “Wie geht es Dir?” (“Como você está?”), “Ich habe Hunger” (“Estou com fome”), “Pass auf Dich auf!” (“Se cuida!”).