“Sou onde não penso”: semblantes do Inconsciente em Naruto ... · da literatura pop ganhou um...

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“Sou onde não penso”: semblantes do Inconsciente em Naruto Alan Paulo Borges do NASCIMENTO 1 Resumo As narrativas em quadrinhos, que passaram a configurar uma versão mais pop da literatura a partir do século XX, vêm chamando a atenção de estudiosos da área já há algum tempo. Inicialmente monopolizada pela indústria norte-americana, essa vertente da literatura pop ganhou um novo e significativo expoente nas narrativas dos mangás, a versão nipônica das HQs ocidentais, quando da passagem do século XX para o século XXI. Dentre as muitas publicações orientais, cuja receptividade para além das fronteiras do Japão se configurou como um grande sucesso de público, está Naruto. A obra de Masashi Kishimoto, publicada em mangá de 1999 a 2014 e em exibição na televisão desde 2002, chama a atenção, dentre outras coisas, pela grande aproximação com a abordagem psicanalítica, ao tratar de questões como: o Inconsciente; o Complexo de Édipo e a castração; o papel da cultura na formação do sujeito; a confrontação e elaboração de situações traumáticas. O presente estudo busca realizar uma articulação entre alguns momentos-chave da trama de Kishimoto e os apontamentos de Freud e Lacan acerca da dinâmica do Inconsciente, metaforizado na narrativa através das Bestas de Cauda e seus portadores, sendo o personagem-título o mais importante destes hospedeiros. Palavras-chave: Naruto. Psicanálise. Cultura pop nipônica. Abstract The narratives in Comics shape, that came to be seen as a pop version of literature towards the 20 th Century, are usually faced as a curious phenomenon to some scholars interested on this field of literature. Initially dominated by the USA companies, this part of the pop literature made ways to the Japanese version of the Western Comics - the mangá -, as long as the dawning of the 21 st Century took place. Among the huge number 1 Mestrando em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e bacharel em Psicologia pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca (Unifavip DeVry). CEP: 55660-000. Bezerros, PE. E-mail: [email protected].

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“Sou onde não penso”: semblantes do Inconsciente em Naruto

Alan Paulo Borges do NASCIMENTO1

Resumo

As narrativas em quadrinhos, que passaram a configurar uma versão mais pop da

literatura a partir do século XX, vêm chamando a atenção de estudiosos da área já há

algum tempo. Inicialmente monopolizada pela indústria norte-americana, essa vertente

da literatura pop ganhou um novo e significativo expoente nas narrativas dos mangás, a

versão nipônica das HQs ocidentais, quando da passagem do século XX para o século

XXI. Dentre as muitas publicações orientais, cuja receptividade para além das fronteiras

do Japão se configurou como um grande sucesso de público, está Naruto. A obra de

Masashi Kishimoto, publicada em mangá de 1999 a 2014 e em exibição na televisão

desde 2002, chama a atenção, dentre outras coisas, pela grande aproximação com a

abordagem psicanalítica, ao tratar de questões como: o Inconsciente; o Complexo de

Édipo e a castração; o papel da cultura na formação do sujeito; a confrontação e

elaboração de situações traumáticas. O presente estudo busca realizar uma articulação

entre alguns momentos-chave da trama de Kishimoto e os apontamentos de Freud e

Lacan acerca da dinâmica do Inconsciente, metaforizado na narrativa através das Bestas

de Cauda e seus portadores, sendo o personagem-título o mais importante destes

hospedeiros.

Palavras-chave: Naruto. Psicanálise. Cultura pop nipônica.

Abstract

The narratives in Comics shape, that came to be seen as a pop version of literature

towards the 20th Century, are usually faced as a curious phenomenon to some scholars

interested on this field of literature. Initially dominated by the USA companies, this part

of the pop literature made ways to the Japanese version of the Western Comics - the

mangá -, as long as the dawning of the 21st Century took place. Among the huge number

1 Mestrando em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e bacharel

em Psicologia pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca (Unifavip DeVry). CEP: 55660-000.

Bezerros, PE. E-mail: [email protected].

of Eastern publications which turned into best-sellers and/or blockbusters in our

hemisphere, Naruto is certainly one of the most well-known. Masashi Kishimoto’s

masterpiece was run in mangá from 1999 to 2014 and is still being presented as an

animated series, since 2002. It is possible to find some psychoanalytic interfaces along

the story, just like: the Unconscious; Oedipus complex and castration; the role of

culture at the development of the subject; confrontation and elaboration of traumatic

situations. This study looks for a dialog between some key moments at Kishimoto’s story

and the appointments of Freud and Lacan about the Unconscious’ dynamics, which

have their metaphor in the Tailed Beasts and their carriers, being Naruto the main host

among the nine ones in the tale.

Keywords: Naruto. Psychoanalysis. Niponic pop culture.

1. Introdução

Fenômeno dos mais característicos de uma contemporaneidade assinalada pelo

intercâmbio de valores culturais e visões de mundo, a literatura pop japonesa apresenta-

se como algo bem maior do que um lucrativo filão no mercado do entretenimento.

Unindo elementos comuns ao Ocidente e ao Oriente, essa vertente da cultura pop

dominada sobretudo pela produção de mangás (as histórias em quadrinhos nipônicas) e

animes (seriados de animação) chama a atenção também pela profundidade com que

tende a abordar questões existenciais profundas, ao mesmo tempo em que as

problematiza de forma sutil, porém intensa.

O presente estudo enfoca uma das produções de maior sucesso de público desse

segmento na atualidade: Naruto, de Masashi Kishimoto. Iniciada em 1999, a obra em

questão alcançou grande popularidade dentro e fora do Japão, justamente por tratar de

dilemas comuns à própria condição humana, a despeito de diferenças culturais

quaisquer. Acerca desses mesmos dilemas, verifica-se uma significativa aproximação

entre alguns elementos da narrativa e os conceitos veiculados pela Psicanálise, no que

tange aos impositivos da cultura e da sociedade para com o indivíduo, aqui

compreendido enquanto sujeito para além da razão pura e simples.

Ao considerar a tensão entre desejo e razão, indivíduo e coletividade em O mal-

estar na civilização, Freud (1996) levou a Psicanálise para além do campo clínico puro

e simples, inaugurando uma visão filosófica que considerava tanto o contexto sócio-

histórico e político, quanto o sujeito e sua singularidade. O estudo que se segue propõe

uma abordagem da narrativa de Kishimoto considerando a Psicanálise não como um

saber atrelado apenas às lides psicológicas, mas como um modelo filosófico capaz de

buscar no sujeito as configurações psíquicas decorrentes da cultura, bem como os

mecanismos que se opõem a tais imperativos, na interminável jornada do homem em

busca de si mesmo.

2. O mundo ninja de Masashi Kishimoto

Naruto é certamente a obra máxima de Masashi Kishimoto. Iniciada pelo

referido quadrinista em 1999 e concluída em 2014, a trama tem lugar num mundo

paralelo onde elementos comuns ao folclore oriental se mesclam à cena contemporânea.

Além do mangá, a série também ganhou uma versão animada para a televisão que foi ao

ar pela primeira vez em 2002, seguindo em exibição até os dias de hoje.

O mundo concebido por Kishimoto é formado prioritariamente por aldeias ninja,

havendo cinco mais poderosas a saber: a Folha, a Areia, a Nuvem, a Pedra e a Névoa.

Cada uma dessas aldeias está oculta no coração das cinco maiores nações que são,

respectivamente: o País do Fogo, o País do Vento, o País do Raio, o País da Terra e o

País da Água. Outras nações menores também compõem o continente onde se desenrola

a trama. Em algumas também existem aldeias ninja de menor relevo, como a Grama, a

Chuva, o Som, a Cachoeira etc. Não obstante, o foco narrativo é mantido sempre na

Aldeia da Folha, a mais antiga e próspera das cinco grandes vilas.

O modelo administrativo é muito semelhante ao do Japão na era feudal. Cada

país é governado por um daimyou (senhor feudal) que a seu turno, mantém

financeiramente as aldeias ninja na qualidade de suporte militar para períodos de guerra.

Durante os períodos de calmaria, as vilas Shinobi2 servem como o fiel da balança para

garantir o equilíbrio político entre os países. Apesar de receber recursos do governo de

cada nação, as aldeias primam pela autonomia. Os ninjas de cada vila realizam serviços

que podem ir desde a localização de animais de estimação até a escolta de chefes de

estado em missões diplomáticas. A prestação de serviços é fundamental para o erário

2 Literalmente, sorrateiro, em japonês. É um dos principais sinônimos para ninja e um dos termos mais

usados ao longo da série para se referir aos mesmos.

das aldeias, uma vez que garante o funcionamento das mesmas sem que haja uma

dependência sistemática destas para com os senhores feudais. Apesar de integrarem uma

estrutura administrativa maior, as vilas Shinobi compõem Estados paralelos onde a

cultura, a economia e a organização social giram em torno da formação de guerreiros e

estrategistas, à semelhança do que ocorria com Esparta, na Grécia Antiga.

O personagem principal e que dá nome ao mangá, é um garoto órfão de doze

anos, nascido na Folha numa data fatídica para todos os habitantes da Aldeia: o ataque

da Raposa de Nove Caudas. Essa besta mística, uma das nove que compunham a Besta

Primordial de Dez Caudas, foi selada pelo então líder da vila no pequeno Naruto logo

após o seu nascimento. Posteriormente, descobre-se que Naruto é na verdade o filho de

Minato Namikaze, o Quarto Hokage3, que se sacrificou juntamente com a esposa,

Kushina Uzumaki, para garantir que a vila não fosse destruída. Kushina era inicialmente

a Jinchuuriki4 da Raposa. A mesma foi extraída de si por ocasião do parto, quando o

selo que mantinha a besta sob controle foi quebrado e um antigo discípulo de Minato

decidiu lançar a criatura contra a Folha, como prelúdio para o que ele chamava de “novo

mundo”. Com muito custo, o então Hokage consegue deter o misterioso inimigo

mascarado, mas nem ele e nem Kushina poderão estar perto de Naruto para vê-lo

crescer e fazer dele um grande Shinobi. Ambos se sacrificam para garantir que o filho

sobreviva e possa deter as ambições malignas do inimigo que surgiu naquela noite,

confiando-lhe para isto o imenso poder da Raposa de Nove Caudas, da qual ele passa a

ser o novo portador.

Naruto cresce sem tomar conhecimento do segredo que abriga e ignorando

igualmente que é filho do maior herói da vila. Hiruzen Sarutobi, o Terceiro Hokage que

havia deixado o posto em favor de Minato, reassume o comando da Folha e acompanha

de perto o garoto, provendo-o em suas necessidades escolares e financeiras. O menino,

porém, é o pior aluno da academia ninja. Esmera-se em praticar todo tipo de travessura

3Ho (fogo), Kage (sombra). Literalmente, a sombra do fogo, em japonês. Os líderes das grandes nações

Shinobi utilizam o termo Kage sufixando o termo relativo ao país a que pertencem. O Hokage é o líder da

Folha, assim como o Kazekage (Kaze = Vento) o é da Areia; o Mizukage (Mizu = Água), da Névoa; O

Raikage (Rai = Raio), da Nuvem e o Tsuchikage (Tsuchi = Terra) o é da Pedra. Vale salientar que tanto

homens quanto mulheres podem ocupar tais cargos de liderança.

4Termo usado no anime/mangá para designar os hospedeiros das Bijuus, as Bestas de Caudas.

Originalmente, Jinchuuriki ou Hitobashira eram as pessoas destinadas a servir de sacrifício para os

deuses no Japão em épocas mais remotas. Geralmente, as vítimas eram enterradas vivas nas fundações de

uma construção para garantir que a mesma durasse para sempre. Em Naruto, o papel do Jinchuuriki é

bem semelhante, uma vez que os hospedeiros das bestas são peças-chave para a segurança nacional,

sendo simbolicamente sacrificados em prol do bem-estar da coletividade.

e é tratado com desprezo pela maioria das pessoas da vila. A antipatia generalizada pela

figura de Naruto deve-se ao fato de ele trazer encerrada em si a calamidade que quase

aniquilou a Folha. Não obstante, a fim de evitar que ele passasse por mais sofrimento, o

Hokage proibiu terminantemente todos os aldeões de mencionar o selamento da Raposa,

de maneira que Naruto só vem tomar conhecimento da razão pela qual os seus

compatriotas o desprezam ao final do primeiro episódio do anime e a revelação se dá de

forma excepcionalmente dramática. O garoto é envolvido numa trama suja para roubar

um pergaminho secreto, sem saber que está sendo usado por um dos professores da

academia para tanto. No exato momento em que se encontrava prestes a ser assassinado

pelo traidor, Naruto é salvo por Iruka, seu professor, com quem estabelece um vínculo

suficientemente forte para superar o preconceito com que sempre fora visto na Folha. É

o início da trajetória do herói mais improvável do mundo Shinobi, numa jornada

análoga à própria experiência humana: repleta de altos e baixos, descobertas e

decepções, perdas e conquistas, onde ele inclusive se tornará alvo de uma organização

criminosa formada por ninjas de elite – a Akatsuki5 – que pretende concentrar o poder

de todas as Bestas de Cauda para deflagrar o Apocalipse no mundo ninja.

3. Desdobramentos psicanalíticos na trama

No que se refere à filosofia presente na trama concebida por Kishimoto, verifica-

se uma maciça presença de ideias comuns à Psicanálise e à Psicologia Analítica

junguiana, embora deva-se salientar que boa parte do arcabouço teórico das duas

abordagens mencionadas, bebeu em vários momentos da filosofia oriental. Sobretudo a

escola fundada por Jung depois de sua ruptura com Freud, onde a questão do simbólico

através das culturas foi analisada por um prisma que transcendeu a teoria clínica

5 Há duas interpretações possíveis para o nome da referida organização e ambas se justificam ao longo da

série. Akatsuki tanto pode significar “amanhecer”, “alvorada”, quanto pode ser traduzido por “lua

vermelha” (Aka = Vermelho; Tsuki = Lua). A primeira versão tem a ver com a fundação da organização,

inicialmente uma associação Shinobi nascida na Aldeia da Chuva que pregava o pacifismo e que escolheu

esse nome justamente por representar o ideal de uma era de tolerância e de paz. Posteriormente, quando a

ação de Madara Uchiha – o principal antagonista da trama – subverteu completamente os princípios nos

quais a organização havia sido fundada, a segunda versão passou a referir-se à Grande Lua Escarlate cuja

luz aprisionaria o mundo ninja numa ilusão perpétua, onde cada indivíduo estaria engolfado na realização

do próprio sonho, enquanto estivesse imerso num sono letárgico. Os ideais de Madara prevaleceram e a

Akastuki passou a trabalhar na captura das Bestas de Cauda, a fim de com isso reviver a Besta Primordial

de Dez Caudas e poder consumar o Mugen Tsukuyomi (Ilusão Perpétua do Deus da Lua).

propriamente dita, para ganhar um aspecto mais antropológico ao dialogar com culturas

relativamente distantes do Ocidente judaico-cristão.

Abstração feita da ruptura com Freud, boa parte das ideias de Jung ainda

preservaram o arcabouço psicanalítico no que se refere às dinâmicas do Inconsciente e

os complexos que lhe são comuns. E é justamente sob o prisma de tal arcabouço que as

considerações acerca de Naruto serão feitas. A teoria do Complexo de Édipo, que serve

de base para o edifício teórico da Psicanálise, mostra-se presente com grande pujança ao

longo da narrativa de Kishimoto, assim como as implicações que daí derivam.

Os conceitos de um “eu oculto” que estaria para além da razão propriamente

dita, veiculados no Ocidente pela abordagem freudiana e pela abordagem junguiana,

encontram eco nas filosofias hinduísta e budista, milenarmente mais antigas que a

escola vienense do Inconsciente iniciada por Freud. A tradição budista, que surge

inicialmente como uma dissidência do hinduísmo, estabelece que o ego é uma ilusão,

havendo uma instância psíquica para além do mesmo e que só poderia ser acessada pela

via da meditação e do autoconhecimento por ela ensejado. O acesso a tal instância do

psiquismo é que favoreceria a iluminação, o Nirvana. A Psicologia Junguiana utiliza-se

do conceito de Self como sendo uma instância de consciência mais consistente do que o

ego, numa analogia sutil ao ideal nirvânico do budismo. A Psicanálise, por sua vez, não

concebe a existência de tal dimensão de plenitude psíquica, deixando em aberto a

condição de humanidade como sendo um processo de construção constante, mediante a

percepção mais acurada da dinâmica do Inconsciente.

Ambas as escolas, a freudiana e a junguiana, lidam com o Inconsciente e

fundamentam na sua ação a prática terapêutica que lhes é comum. Em Naruto, o

Inconsciente enquanto sinônimo de pulsão6 em desalinho é metaforizado pelas Bestas

de Cauda. A franca maioria dos hospedeiros passa uma parte significativa da vida em

conflito com as entidades que foram seladas em seus corpos, numa luta constante para

não sucumbir ao poder da Bijuu que, por ser uma besta mística, dispõe de poderes

psíquicos além da compreensão humana, tal como ocorre na relação com o Inconsciente

6 Termo comumente usado no meio psicanalítico para designar as forças libidinais que seriam

intermediárias à razão e ao instinto, sendo basicamente divididas em dois grandes grupos: Pulsão de Vida

e Pulsão de Morte. O termo é usado a princípio por Freud, sendo posteriormente adotado por Lacan e

outros de seus continuadores. A escolha do termo pulsão ao invés de instinto deve-se ao fato de que a

espécie humana experimenta o primado do instinto apenas no que se refere à necessidade de

sobrevivência. A pulsão, em contrapartida, está para além da sobrevivência. Ela diz respeito, sobretudo, à

ânsia humana de satisfazer desejos inconscientes relativos a algum tipo de frustração imposta pela cultura.

É, numa palavra, uma espécie de meio termo entre a razão e o instinto propriamente dito.

e a razão propriamente dita. Via de regra, o Jinchuuriki libera o poder de sua respectiva

Bijuu quando está sob pressão emocional extrema, tal como sói ocorrer nos movimentos

de surto em que o indivíduo rompe temporariamente com a realidade e pode praticar

atos que normalmente não levaria a efeito quando em pleno gozo da razão.

A forma como a dinâmica psíquica é retratada na obra de Kishimoto não deixa

de lembrar as considerações tecidas por Ricoeur acerca da função da metáfora:

[...] Neste sentido, uma metáfora é uma criação instantânea, uma

inovação semântica que não tem estatuto na linguagem já estabelecida

e que apenas existe em virtude da atribuição de um predicado

inabitual e inesperado. Por conseguinte, a metáfora assemelha-se mais

à resolução de um enigma do que a uma associação simples baseada

na semelhança; é constituída pela resolução de uma dissonância

semântica. (RICOEUR, 1995, p. 99-100)

A presença das Bijuus na narrativa presta-se às duas circunstâncias mencionadas

por Ricoeur. Tanto simboliza o intraduzível do Inconsciente através da imagem da fúria

incontrolável da natureza, quanto se propõe a responder o enigma da dicotomia

razão/desejo aludida pela Psicanálise, por meio da tumultuosa relação dos hospedeiros

com as bestas místicas seladas em seus corpos. Na verdade, a metáfora das Bestas de

Cauda materializa inclusive o dramático dessa circunstância, onde apenas a morte pode

operar a cisão definitiva entre o sujeito da razão estabelecido pela cultura e o sujeito do

desejo selado pelas convenções sociais.

Em Naruto o Inconsciente se materializa como uma dimensão psíquica habitada

pelas pulsões de vida e de morte, onde ora o indivíduo é colocado em situação de

extremo risco pelas manifestações que lá têm lugar, ora é salvo do perigo justamente

por essas mesmas manifestações. No caso específico do protagonista, é o poder da

Raposa de Nove Caudas que mais de uma vez o salva de perigos mortais. Em outras

circunstâncias, é também o motivo pelo qual ele é posto em perigo. Um momento

bastante emblemático dessa circunstância ambígua do Inconsciente na narrativa do

mangá/anime, tem lugar quando a Quarta Grande Guerra Ninja é deflagrada. A Aliança

Shinobi, nascida da união inédita das cinco grandes nações, opta por esconder Naruto

em uma ilha secreta da Nuvem, onde o personagem terá a possibilidade de ser treinado

por Killer Bee, o portador da Besta de Oito Caudas. Tanto Bee quanto Naruto são o alvo

principal da Akatsuki, uma vez que ambos possuem as últimas Bijuus necessárias para

reviver a lendária Besta Primordial. Bee é um dos poucos hospedeiros capazes de

estabelecer um vínculo com a sua Bijuu, ao ponto de ambos lutarem unindo forças e

dialogarem sem maiores problemas. O treinamento de Bee faculta a Naruto a

possibilidade de estabelecer um vínculo legítimo com a Raposa de Nove Caudas, um

vínculo para além da circunstância meramente compulsória do selamento. De forma

que, ao mesmo tempo em que os personagens em questão se encontram em perigo

iminente pelo fato de abrigarem as bestas em seus corpos, também têm nesse fato a

possibilidade de lutar abertamente contra o inimigo em questão. Posteriormente, Naruto

e Bee ingressam na batalha a despeito da ferrenha oposição da principal liderança da

Aliança Shinobi, tornando-se peças fundamentais para a derrota da Akatsuki.

4. Da cena edípica à retificação subjetiva

O mito de Édipo, extraído por Freud da célebre trilogia trágica de Sófocles e que

se tornou um dos pilares principais da teoria psicanalítica, trata basicamente de um

príncipe tebano fadado a assassinar o pai e desposar a própria mãe que, tentando fugir a

tão hórrido destino, acaba por consumá-lo sem se dar conta. A analogia freudiana

remete justamente à dinâmica do Inconsciente, onde o sujeito, absorto no afã de evitar o

sofrimento, acaba por materializá-lo quando supunha não fazê-lo.

Na verdade, quando Freud cunhou o termo “Complexo de Édipo”, referia-se

inicialmente à estrutura familiar burguesa, presente na sociedade vienense de sua época

e pautada por valores característicos da era vitoriana ainda vigente. A ideia inicial era

trazer, por meio desta analogia, a primeira experiência de castração vivenciada pelo

sujeito e que consistia na impossibilidade de ter para si em caráter definitivo o primeiro

grande amor, ou seja, a figura materna. A presença do pai ou, na ausência concreta de

tal figura, a presença do “nome do pai” a que se refere Lacan (1999), seria o interdito à

consecução do desejo incestuoso. Não obstante, há que se considerar o fato de que a

teoria freudiana serve aqui tão somente na qualidade de lastro teórico, uma vez que

tanto o ambiente cultural em que surge a narrativa de Kishimoto, quanto o mundo

criado pelo quadrinista nipônico, se inscrevem em uma dimensão assaz diversa do

Ocidente.

Em se tratando de Naruto, a consecução do desejo incestuoso consistiria no

desaparecimento do sujeito hospedeiro, tragado pela voracidade de Besta de Cauda. A

mãe nessa cena seria muito mais o discurso cultural do mundo Shinobi, do que a

genitora propriamente dita. Aliás, é pertinente assinalar que dois dos principais

Jinchuurikis na narrativa, Naruto e Gaara, perderam as mães quando do nascimento.

Simbolicamente, as mães enquanto genitoras saem de cena, para que subsista tão

somente a Grande Mãe que cada aldeia representa.

O treinamento iniciado por Killer Bee consiste basicamente na confrontação de

tudo aquilo que o Jinchuuriki evitou enxergar ao longo de sua vida. Admitir o ódio, o

medo e a frustração – emoções comuns aos hospedeiros das Bestas – decorrentes de

uma existência repleta de privações, é o primeiro passo para o contato direto com a

Bijuu. Após cumprir as etapas necessárias a isso, Naruto inicia o trabalho de integração

com Kurama (esse o nome da Raposa de Nove Caudas), num procedimento análogo ao

que ocorre no processo psicanalítico, já que ele teve de se haver com a instância paterna

e a instância materna inscritas no seu Inconsciente.

É oportuno salientar duas circunstâncias em que ocorreu uma liberação profusa

de conteúdos recalcados no Inconsciente. Em ambas, Naruto teve acesso à sua história

pregressa. Mais precisamente, descobriu quem eram os seus pais e qual a razão de não

ter convivido com os mesmos. A primeira ocasião se deu quando da batalha contra um

dos principais líderes da Akatsuki, onde o jovem Uzumaki liberou o poder da Raposa

numa proporção descomunal. Quando estava prestes a romper completamente o selo e

abdicar da consciência em definitvo, Naruto se deparou com a figura do Quarto Hokage,

que o deteve e revelou ser na verdade o seu pai. A intervenção de Minato obstando-o de

liberar em completude as pulsões desgovernadas, remete às considerações de Lacan

sobre o “nome do pai”, quando considera a questão dos três tempos do Édipo:

No primeiro tempo e na primeira etapa, portanto, trata-se disto: o

sujeito se identifica especularmente com aquilo que é objeto do desejo

de sua mãe. Essa é a etapa fálica primitiva, aquela em que a metáfora

paterna age por si só, uma vez que a primazia do falo já está

instaurada no mundo pela existência do símbolo do discurso e da lei.

(LACAN, 1999, p. 198)

A identificação com o desejo materno é simbolizado tanto pela Raposa que foi

repassada ao protagonista logo após o seu nascimento, quanto pela sua identificação

com a figura do Quarto Hokage, sempre venerado pela mãe sob cuja égide o garoto

cresceu: a própria Vila da Folha. Naruto herdara a Bijuu de Kushina (a mãe biológica) e

fora sempre exposto às vicissitudes da sua condição de Jinchuuriki pelo discurso

cultural da Folha (a mãe simbólica). A metáfora paterna foi inscrita no Inconsciente do

personagem pela via do discurso cultural. Minato foi o herói que salvou a vila da

destruição e surge na psique de Naruto, justamente quando este se encontra prestes a

liberar a calamidade por ele contida dezesseis anos atrás. Em outras palavras, o Quarto

Hokage inscreveu-se como um pai grandioso, o ideal de Shinobi que a Folha, na

qualidade simbólica de mãe, desejava e buscava em seus cidadãos. Não sendo Naruto,

de forma alguma, exceção a este primado do desejo materno, com o qual veio a

identificar-se especularmente.

O encontro entre pai e filho tem lugar nos episódios 167 e 168 da fase

Shippuden7 (volume 47 do mangá, capítulos 439 e 440)8. É um dos momentos mais

emocionantes da série, contando inclusive com um violento desabafo de Naruto

questionando que tipo de pai selaria uma Bijuu no próprio filho. A resposta de Minato é

desconcertante e traduz muito bem a inscrição do sujeito na condição faltosa. Ele afirma

de forma categórica que o filho seria capaz de usar o poder da Raposa para evitar que

uma imensa calamidade destruísse o mundo ninja. A reação de Naruto é de total

incredulidade. Ele diz que todos nutrem expectativas demais a seu respeito, mas que não

dispõe de meios pra fazer o que esperam dele. O Quarto Hokage, longe de se dar por

vencido, sentencia peremptório: “ser um pai é ter grande confiança em seus filhos.”

Logo em seguida, Minato reconstrói o selo (localizado justamente no umbigo, não por

acaso), frisando que o fará pela última vez. É o corte capaz de separar o sujeito da

demanda materna que, no caso de Naruto, seriam as exageradas expectativas e

cobranças da vila a que ele, inconscientemente, se submetia.

A ação de Minato impedindo a liberação de Kurama remete ao segundo tempo

do Édipo (LACAN, 1999), onde o pai se inscreve como a lei, a instância capaz de

impedir que a demanda materna faça o indivíduo afundar na ilusão de ser o objeto de

gozo da mãe. No terceiro momento, o pai deixa de ser apenas uma instância de discurso

para se converter em alguém real, concreto. Até o contato com Minato no momento em

que iria liberar a Raposa, Naruto conhecia tão somente o herói lendário que evitou a

destruição da Folha. Ao final desse encontro, Naruto conhece o pai, o seu pai. O homem

7 Em uma tradução livre, Shippuden pode ser lido como as crônicas do furacão, uma alusão ao

sobrenome materno de Naruto (Uzumaki = vórtice, redemoinho). A divisão entre saga clássica e saga

Shippuden existe apenas no anime. O mangá não muda de título quando se inicia essa etapa da narrativa.

8 Disponível em: <http://www.naruto.com.br/midia/mangas.html>;

<http://konohaonline.info/capitulos/439#12> e < http://konohaonline.info/capitulos/440#1>. Acesso em

14 agosto 2015, às 13h26min.

que, apesar de todo o poder e renome com que foi ornado pela cultura (o discurso da

mãe simbólica), não conseguiu impedir os planos de um misterioso mascarado que

lançou a Bijuu contra a vila. Minato incumbe Naruto de deter o inimigo, revelando-se

desta forma não como o pai onipotente da tradição veiculada na Folha, mas sim como o

pai potente, o sujeito faltoso que não pode fazer tudo e, ao assumir tal condição,

demonstra para o filho que ele também terá de se haver com a própria condição faltosa.

A segunda ocasião se deu durante o treinamento com Killer Bee, quando Naruto

entrou em contato com a sua instância materna. A cena em que ele consegue encontrar-

se com Kushina é de uma riqueza simbólica magnífica. O protagonista libera Kurama da

prisão e a enfrenta de igual para igual, extraindo da Bijuu uma quantidade considerável

de chakra9. É a metáfora da extração do gozo a que se referem os psicanalistas, quando

do corte capaz de separar o indivíduo da imago materna a que se mantém preso. A este

respeito, é oportuno mais uma vez trazer Lacan (1999, p. 198), quando se refere ao

segundo tempo do Édipo:

Segundo tempo. Eu lhes disse que, no plano imaginário, o pai

intervém efetivamente como privador da mãe, o que significa que a

demanda endereçada ao Outro, caso transmitida como convém, será

encaminhada a um tribunal superior, se assim posso me expressar.

Note-se que o encontro entre Naruto e Kushina só ocorre depois de o pai se

constituir efetivamente como a metáfora da lei, o interdito, quando do episódio em que

Minato impede o filho de ser tragado pela pulsão. Esse corte foi fundamental para que o

jovem Uzumaki pudesse extrair o chakra de Kurama – literalmente, extrair a mãe do

torvelinho das pulsões e dissociá-la das mesmas – a fim de ficar frente a frente com a

genitora que, apesar de ausente, inscreveu-se no Inconsciente do filho de forma

extremamente pujante.

O terceiro tempo é este: o pai pode dar à mãe o que ela deseja, e pode

dar porque o possui. Aqui intervém, portanto, a existência da potência

no sentido genital da palavra – digamos que o pai é um pai potente.

Por causa disso, a relação com o pai torna a passar para o plano real.

(LACAN, 1999, p. 200)

9 Do sânscrito: roda. Em Naruto, o chakra é a energia vital utilizada pelos ninjas para criar técnicas de

combate e até mesmo para salvar vidas. Ninjas médicos como Sakura, Tsunade e Kabuto, são capazes de

realizar cirurgias com chakra e mesmo de infundir chakra nos companheiros, quando estes se encontram

debilitados.

O jovem Uzumaki é, desta forma, “entregue” à mãe depois de ter se avistado

com a lei representada pelo pai. O simples fato de Naruto levar o nome da mãe

(Uzumaki) ao invés do sobrenome paterno, numa cultura altamente centrada no modelo

patriarcal como o é a cultura nipônica, já é algo bastante significativo. A nível de

personalidade, Naruto inclusive é bem mais parecido com Kushina do que com Minato,

posto que a mãe era extremamente geniosa e temperamental, enquanto o pai era firme e

conciliador.

Digo exatamente: o pai é um significante que substitui um outro

significante. Nisso está o pilar, o pilar essencial, o pilar único da

intervenção do pai no Complexo de Édipo. E, não sendo nesse nível

que vocês procuram as carências paternas, não irão encontrá-las em

nenhum outro lugar. (Idem, p. 180)

Após o contato com as suas raízes, Naruto torna-se capaz de utilizar o poder de

Kurama sem estar exposto às intempéries emocionais que antes o acometiam e o

deixavam a mercê da Bijuu. Estabelece-se um equilíbrio entre as duas partes, hospedeiro

e Besta de Cauda, para além do campo de batalha. Naruto torna-se capaz de reconhecer

a importância de trazer em si a Raposa de Nove Caudas, ao mesmo tempo em que

Kurama põe de lado o ódio extremo que nutria pelos humanos em virtude dos muitos

abusos sofridos no passado. É quando tem lugar o que se denomina em Psicanálise de

retificação subjetiva.

Muitas vezes supõe-se que, em análise, todo o mal vem do que

ocorreu muito antes, no relacionar-se com os pais, com o irmão mais

velho, com a irmã mais nova. Desse modo, porém, o sujeito ficaria

despossuído de seu estatuto. Nós analistas sabemos muito bem que

não é assim. Ao contrário, dá-se a retificação subjetiva, quando, em

análise, o sujeito aprende sua responsabilidade essencial no que

ocorre. O paradoxo é o lugar da responsabilidade do sujeito ser o

mesmo do inconsciente. (MILLER, 1997, p. 255)

A retificação subjetiva é o que ocorre quando o sujeito se dá conta da falta e, ao

invés de tentar tamponá-la, compreende que é justamente a falta aquilo que o estrutura.

Entenda-se a falta enquanto metáfora para a interdição ao desejo incestuoso ocorrida

nos primeiros anos de vida e que reverbera na vida adulta, fazendo o indivíduo dar-se

conta da necessidade de admitir que nem sempre terá tudo que mais ambiciona. Na

verdade, é justamente esta a função principal do corte, da castração: habilitar o sujeito à

compreensão de que a falta será uma constante invariável ao longo da existência e que

viver significa confrontar a falta seguidamente. Sintetizando, poder-se-ia dizer que a

castração é o ponto de nascimento da alma. (LACAN, 2010)

No caso de Naruto, a falta representada pela orfandade foi justamente o que o

estruturou enquanto sujeito, ou melhor, que fez dele o que é. Mesmo não tendo

conhecido os pais, a metáfora paterna se fez assaz pujante em sua vida. A ausência

física dos genitores não os excluiu da dinâmica psíquica no Inconsciente do

personagem, antes os tornou ainda mais presentes, ao ponto de ele defrontar-se com as

instâncias correspondentes a Minato e a Kushina, justamente em momentos de grande

tensão. Momentos que foram decisivos para a sua responsabilização por si mesmo.

Quando finalmente entendeu que poderia escolher o que fazer do que havia sido feito

dele até ali, Naruto decide-se por ingressar no combate. Ele se expõe não apenas ao

risco de ser capturado e morto na guerra, mas também se expõe às punições que a

Aliança Shinobi estava disposta a aplicar para mantê-lo vivo e em segurança.

No primeiro episódio da série (volume 1 do mangá, primeiros capítulos), Naruto

picha o monumento Hokage e é posteriormente punido por isso. Indagado pelo seu

professor sobre a razão de fazê-lo, o garoto diz que irá superar todos os Hokages

anteriores, incluindo o Quarto, por quem nutre uma imensa admiração.

Inconscientemente, o jovem Uzumaki tenta destronar o pai em busca do poder da vila

(que faz a função materna na ausência física de Kushina), numa triangulação edípica das

mais clássicas. O pai – que ele até então desconhecia – é alvo tanto da sua admiração

quanto da sua rivalidade. É apenas depois de tomar conhecimento da verdade sobre o

seu nascimento e das razões pelas quais tais fatos sempre foram mantidos na sombra,

que Naruto se torna apto a utilizar o poder de Kurama e se tornar a peça fundamental

para o fim da Quarta Guerra Ninja.

O personagem vai amadurecendo ao longo da trama, descobrindo nos transes

que o acometeram ao longo da existência, os meios necessários para transpor as

dificuldades com que se defronta, tal como afirma Moliné (2004, pp. 29-30), ao

conjecturar sobre o aspecto psicológico presente nas narrativas comuns à cultura pop

nipônica:

[...] na maioria das vezes, os protagonistas de um mangá tem seu lado

psicológico mais profundamente abordado que os ‘heróis de papel’

ocidentais. Diferente do arquétipo do herói 100% perfeito, os

personagens têm seus defeitos e sentimentos: riem, choram, crescem,

amadurecem e alguns morrem, como Anthony Andrew em Candy

Candy, Toru Rikiishi em Ashita no Joe, Tochiro Oyama em Captain

Tsubasa Harlock ou Kazuya Uesugi em Touch, entre outros;

paralelamente ao desenvolvimento do mangá, aprendem a partir de

seus erros, e sua história quase sempre tem um final definitivo,

quando o autor conclui uma série.

A conclusão de Naruto mostra um personagem completamente diferente do

garoto arruaceiro e irritante do início da série. Respeitado pelos concidadãos da Folha e

aclamado pelas demais nações como o grande herói que salvou o mundo ninja de um

colapso, o filho de Minato e Kushina assume o posto de Hokage, sendo o sétimo a

dirigir a vila. Nas escassas produções que ainda se seguem à conclusão da trama no

mangá, Naruto se mostra um líder legítimo, empático e firme. Agora casado, pai de um

casal de pré-adolescentes, ele tem de se haver com a rebeldia do filho que não se

conforma em perder o pai para o posto de Hokage. Premido pelas responsabilidades do

cargo, a sua família agora passa a ser a vila como um todo, mas nem por isso ele deixa

de se impor ao jovem Boruto quando percebe que ele passa dos limites, repetindo a

mesma conduta birrenta do pai quando este tinha sua idade.

5. Considerações Finais

Estabelecer um paralelo entre uma linha de pensamento comum à cultura

ocidental e uma obra produzida em um ambiente diverso deste mesmo ambiente, é

tarefa das mais delicadas. Não é de forma alguma a pretensão deste estudo afirmar que a

narrativa desenvolvida por Kishimoto se baseie em conceitos psicanalíticos, mesmo

porque, como já explicado mais acima, as teorias acerca do Inconsciente só vieram

ganhar notoriedade no Ocidente graças a ação de Freud, no período compreendido entre

o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Por outro lado, boa parte

desta mesma teoria freudiana frutificou a partir das ideias de Schopenhauer

(TRINDADE, 2013) que, a seu turno, teve contato mais direto com a filosofia oriental.

De maneira que a ideia de um Inconsciente ou “eu oculto” nada tem de novo para as

culturas asiáticas alicerçadas em preceitos comuns ao budismo e à tradição hinduísta, de

onde derivou o primeiro.

Uma das maiores contribuições da literatura para o pensamento reside

justamente na possibilidade de simplificar conceitos relativamente complexos e torná-

los apreensíveis. Mais do que isso: a literatura, bem como a arte em suas mais variadas

formas, aproxima o homem de si mesmo ao abstraí-lo das demandas absorventes e

alienantes com que se vê a braços no quotidiano. É o ensejo para a reflexão que a

filosofia nem sempre é capaz de promover por si só, seja pelo fato de esta última dirigir-

se a um público demasiado específico, seja pela tendência ao excessivo racionalismo

que a nossa cultura ocidental apregoa. De qualquer forma, o diálogo intercultural

facultado pela cultura pop nipônica, propicia ao leitor/telespectador algo mais do que o

entretenimento puro e simples. Oferece-lhe também a possibilidade de ponderar

questões de cunho existencial sem que para isso, no caso específico da Psicanálise,

precise estar inserido no contexto de um processo analítico, para ajuizar sobre o dilema

do sujeito frente à sua condição desejante e faltosa.

Referências bibliográficas

FREUD, S. Obras psicológicas completas: edição standard brasileira. Volume XXI

Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, J. O seminário, livro 5: As formações do Inconsciente. Texto estabelecido

por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

_______ O seminário, livro 8: A transferência. Texto estabelecido por Jacques-Alain

Miller; [versão brasileira de Dulce Duque Estrada; revisão de Romildo do Rêgo Barros].

– 2. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2010. pp. 275 – 291.

MILLER, J. A. Lacan elucidado: palestras no Brasil. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1997 – (Campo Freudiano no Brasil).

MOLINÉ, A. O grande livro dos mangás. São Paulo: Editora JBC, 2004.

RICOEUR, P. Teoria da Interpretação. Introdução e comentários de Isabel Gomes.

Tradução de Artur Morão. Porto, Portugal: Porto Editora, 1995.

TRINDADE, R. 5 ideias de Schopenhauer que encontramos em Freud. Razão

Inadequada. 02 março 2013. Disponível em: <

http://razaoinadequada.com/2013/03/02/5-ideias-de-schopenhauer-que-encontramos-

em-freud/> Acesso em: 16 setembro 2015.