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Texto que discute a produção de conhecimento em geografia de autoria de Martina Low. Texto em ingles

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  • O spatial turn: para uma sociologia do espao

    Martina LwTraduo do alemo e do ingls de Rainer Domschke e Fraya Frehse

    A difuso veloz de tecnologias globais de informao e comunicao, uma progressiva diviso internacional do trabalho, a presena miditica do mun-do nos espaos privados, as correntes migratrias, as mudanas climticas globais: todos esses fenmenos so aspectos de um processo que abalou de maneira duradoura as noes de proximidade e de distncia. Como observa com razo Peter Noller, a globalizao conduz no apenas a uma mudan-a social, mas a uma mudana mental, isto , redefinio de conceitos e modelos que devem ajudar a entender o mundo. O que, nos anos de 1970, se anuncia empiricamente como globalizao acompanhado por uma transio epistemolgica, a passagem de uma compreenso tradicio-nal, geograficamente limitada, para outra, ps-tradicional, aberta e plural, do espao social (Noller, 2000, p. 21). A percepo de que a mudana social no pode ser explicada satisfatoriamente sem uma reconceituao das categorias relativas componente espacial da vida social chamada de spatial turn 1 (cf. Berking, 1998; Schlgel, 2003; Dring e Thielmann, 2008). Vigora cada vez mais a noo de que ser e tempo2 no encerram toda a dimenso da existncia humana (Schlgel, 2003, p. 9), e de que o espao no apenas um continer ou uma realidade apriorstica da natu-reza; diferentemente, ele precisa ser pensado e investigado como condio e resultado de processos sociais (cf., por exemplo, Berking, 1998; Massey, 1999; Lw, 2001; Cresswell 2004).

    1. Em portugus, virada espa-

    cial. Optou-se por manter, no

    corpo do texto, as expresses em

    ingls utilizadas pela autora na

    redao em alemo, vertendo-as

    para o portugus apenas em nota,

    a fim de ser fiel ao seu estilo

    literrio (N. T.).

    2. uma aluso obra Ser e

    tempo, publicada pelo filsofo

    Martin Heidegger em 1927

    (N. O.).

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    Este texto volta-se para a questo de como, em consequncia desse turn, a so-ciologia tem integrado o espao em seus fundamentos tericos, e quais as ques-tes investigativas atuais da resultantes. Contraporei duas posies influentes: uma concepo materialista de espao e outra fundada na teoria da ao. Essa comparao mostra que existe um dissenso particularmente em relao ques-to de se o espao, como condio e resultado de processos sociais, apenas formado, ou se ele em si opera de modo estruturador. Oferecerei, ento, sob a rubrica dualidade do espao, uma sntese das duas posies, porque estruturas espaciais e ao espacial aparecem assim como dois lados da mesma moeda.

    Sociologia do espao forjada no materialismo

    Henri Lefebvre ([1971]* 1991) considerado um terico dos funda-mentos do espao (cf., por exemplo, Frehse, 2013a, 2013b, no prelo). Seus trabalhos do suporte precisamente a uma sociologia do espao de orientao materialista, a fim de explicar a nova formao de relaes de poder em con-sequncia do spatial turn (cf. Harvey, 1989; sobre a influncia que Lefebvre exerceu tambm na pesquisa americana sobre o espao, cf. Shields, 1999).

    O representante mais proeminente de uma sociologia materialista David Harvey, que com base em Lefebvre argumenta ser o controle do espao um mecanismo central de reproduo no capitalismo. Tal controle seria sistematicamente vinculado ao dispndio de tempo e a recursos financeiros. Visando especulao imobiliria, por exemplo, um fator decisivo para a obteno do maior lucro possvel a venda no momento certo (o que implica ter o dinheiro para poder esperar). Nesse sentido, Harvey parte da ideia de que tempo, espao e dinheiro so reciprocamente conversveis, cabendo ao dinheiro, no capitalismo, uma funo-chave. A posse de dinheiro possibilita o controle do espao e do tempo, assim como o poder sobre o espao e o tempo gera lucro financeiro. Eis algo que, escreve Harvey (1991, p. 158), tanto os generais como os gerentes de supermercado sabem. Com base numa retrospectiva histrica, Harvey enfatiza, assim como antes dele Lefebvre, que a economia capitalista (ou, de fato, sociedades de economia monetria em geral) gerou o espao homogneo e fragmentado: por meio da cincia de navegao e da cartografia, o espao foi mapeado e homogeneizado. A partir de ento, cada pedao de espao parece comparvel a outro e, na mesma medida, passvel de ser pago com recursos monetrios. O advento do cadastro permitiu que se impusesse o direito propriedade da terra. O espao tornou-se universalmente representvel.

    *A data entre colchetes refere-se

    edio original da obra. Ela

    indicada na primeira vez que a

    obra citada. Nas demais, indica-

    -se somente a edio utilizada

    pelo autor (N. E.).

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    Martina Lw

    Ao ser produzido como fixo e fragmentado, o espao torna-se control-vel e vira mercadoria. Quem j viu um mapa-mndi produzido em outro continente rapidamente se d conta de que todos os mapas so construes sociais. Emerge uma nova imagem diante dos olhos do observador quando de repente, por exemplo, a bota italiana figura como o centro do mundo, l onde antes reinava o imprio do arquiplago indonsio (sobre a construo social de mapas, cf. Harley, 1988). Quando se afirma que o espao em si homogneo e igual em qualquer lugar, os pedaos unitrios repartidos podem ser comparados e vendidos como mercadorias.

    Assim, o espao no se cria a partir da vivncia subjetiva, mas con-templado quase que objetivamente a partir de uma posio externa. Nesse contexto, o lucro financeiro resulta no apenas da transformao do espao em mercadoria, mas da superao cada vez mais rpida de espaos. Distribuir de modo cada vez mais gil mercadorias por distncias cada vez maiores permite um acesso cada vez mais amplo a novos mercados. The incen-tive to create the world market, to reduce spatial barriers, and to annihilate space through time is omni-present, as is the incentive to rationalize spatial organization into efficient configurations of production.3 (Harvey, 1989, p. 232). por isso que Harvey chega concluso de que o termo mais exato para descrever o desenvolvimento ps-moderno seria compresso tempo--espao (Idem, p. 240).

    Por meio de tecnologias de transporte cada vez mais rpidas e de novas tecnologias de comunicao, o mundo aproxima-se mais e mais. Harvey constata que o Estado nacional perde significado, enquanto o contrrio se aplica economia financeira internacional. Esta trabalha em prol de que o espao perca totalmente seu significado e s o tempo conte (cf., por exem-plo, Idem, p. 306).

    David Harvey consegue assim instaurar uma discusso sobre o significado ou para ser mais exata a perda de significado do espao em meio a con-dies de globalizao. Se, como Lefebvre, ele enfatiza a produo social de espaos e a impossibilidade de se compreender o espao para alm das aes (cf. Idem, p. 225), a compresso de tempo e espao tambm se baseia na ideia de um substrato material chamado espao. Espaos diferentes como um produto da ao social num pedao de terra permanecem impensveis no mbito da concepo harveyana. Pelo contrrio, o autor atribui certa dinmica prpria justamente materialidade, passvel de ser comparada a uma estrutura social no sentido marxista:

    3. Em portugus, O incentivo

    para criar o mercado mundial,

    para reduzir barreiras espaciais e

    aniquilar o espao atravs do tem-

    po encontra-se to onipresente

    quanto o incentivo para racionali-

    zar a organizao espacial em prol

    de configuraes eficientes da

    produo (N. T.). Ver, para uma

    leitura em portugus deste livro,

    David Harvey, Condio ps-

    moderna, trad. Adail Ubirajara

    Sobral e Maria Stela Gonalves.

    So Paulo, Loyola, 1992 (N. O.).

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    I shall argue that space relations and geographical phenomena are fundamental

    material attributes that have to be present at the very beginning of the analysis and

    that the forms they assume are not neutral with respect to the possible paths of

    temporal development. They have to be construed, in short, as fundamental and

    active moments within the contradictory dynamics of capitalism4 (Idem, p. 33).

    Harvey entende, por exemplo, a segregao residencial como um fen-meno no apenas socialmente produzido, mas que tambm gera relaes sociais. Em sua materializao, o espao operaria numa dinmica prpria.

    Edward Soja compartilha com Harvey o fundamento marxista de uma teoria do espao que pretende integrar o tempo ou a historicizao como um de seus componentes centrais. No entanto, ele combina de maneira acentuada concepes marxistas com posies ps-estruturalistas. Preten-dendo desenvolver uma perspectiva espao-temporal acerca da sociedade e da vida social (cf. Soja, 1989, p. 73), o autor concebe essa viso explicita-mente como historical geography of capitalism5 (Idem, p. 3). Para tanto prope, tambm com referncia a Lefebvre, diferenciar entre espao como realidade dada e espacialidade como realidade socialmente produzida (cf. Idem, p. 79). A sua trialectics de spatiality, historicality e sociality 6 (cf. Soja, 1996) separa espacialidade/geografia, temporalidade/histria e societalida-de7/sociedade em trs campos mutuamente entrelaados. Assim, a histria sempre tambm um produto espacializado, a geografia uma formao que se modifica temporalmente em termos sociais, e a sociedade, estruturada espacial e temporalmente. Apoiando-se em Lefebvre, Soja (2000) diferen-cia entre firstspace, secondspace e thirdspace8. O primeiro abarca as relaes e prticas materializadas, as coisas no espao. O segundo o espao representado, as imagens espaciais. O terceiro, enfim, o espao vivido que engloba os primeiros dois.

    Soja sempre enfatizou tambm a efetividade prpria do espao. Em suas publicaes ele se volta reiteradamente tanto contra a concepo de que a histria aconteceria no espao passivamente dado, quanto contra a imagem de que espaos foram processos sociais. Em vez disso, ele pleiteia uma geo-grafia which recognizes spatiality as simultaneously [...] a social product (or outcome) and a shaping force (or medium) in social life9 (Soja, 1989, p. 7).

    Essa posio materialista de fundo, de que o espao precisa ser com-preendido como produto social ou atividade de criao, vem encontrando grande receptividade entre os cientistas sociais empenhados na formulao de teorias. No entanto, tem sido objeto reiterado de questionamentos ou

    4. Em portugus, Argumentarei

    que as relaes espaciais e os fen-

    menos geogrficos so atributos

    materiais fundamentais em todo e

    qualquer incio de anlise, e que as

    formas que eles assumem no so

    neutras com respeito aos possveis

    caminhos de desenvolvimento

    temporal. Eles tm de ser inter-

    pretados, em suma, como mo-

    mentos ativos e fundamentais no

    mbito da dinmica contraditria

    do capitalismo (N. T.).

    5. Em portugus, geografia

    histrica do capitalismo (N.

    T.). Ver, para uma leitura em

    portugus deste livro, Edward

    Soja, Geografias ps-modernas,

    trad. Vera Ribeiro, rev. tc. Berta

    Becker e Lia Machado. Rio de Ja-

    neiro, Jorge Zahar, 1993 (N. O.).

    6. Em portugus, espacialidade,

    historicalidade e socialidade

    (N. T.).

    7. No original alemo, Gesell-

    schaftlichkeit (N. T.).

    8. Em portugus, primeiro espa-

    o, segundo espao e terceiro

    espao (N. T.).

    9. Em portugus, que reconhece

    a espacialidade simultaneamente

    [...] como um produto (ou resul-

    tado) social e uma fora confor-

    madora (ou meio) na vida social

    (N. T.).

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    Martina Lw

    crticas a suposio da derivada, de que o espao poderia, mediante o seu carter estruturante, desenvolver uma fora efetiva prpria. Como exporei a seguir, em particular concepes forjadas na teoria da ao rejeitam de modo explcito a efetividade prpria do espao.

    Sociologia do espao forjada na teoria da ao

    A teoria da ao procura pensar a ao como categoria mediadora en-tre os aspectos materialmente perceptveis dos espaos e as consequncias sociais das estruturas espaciais. A categoria de ao permite vincular o posicionamento fsico, a percepo e as operaes construtivas dos sujeitos com artefatos materiais e enquadramentos institucionais. Como demonstrei na seo anterior, uma abordagem desse tipo tambm um componente essencial das teorizaes materialistas. No entanto, Harvey, entre outros, concentra-se mais no carter estrutural da ao do que em observar as po-tencialidades dela.

    Em contrapartida, o socilogo ingls Anthony Giddens (1988) concebe, em sua teoria da estruturao, estruturas sociais que no operam de maneira rigidamente determinante, mas como meio e resultado de aes repetitivas (cf. tambm Bryant e Jary, 2001, p. 12). O autor compreende estruturas no sentido de regras e recursos incrustados de modo recursivo nas instituies. Nesse sentido, regras referem-se constituio de sentido ou sano da ao. Elas designam os modos de operao dos processos de negociao nas relaes sociais, at o nvel da codificao. Sua caracterstica estrutural de que a sua conceituao depende do referenciamento a recursos. Estes, por sua vez, so mdias 10 atravs das quais o poder exercido como elemento rotineiro da realizao dos comportamentos, na reproduo social (Gid-dens, 1988, p. 67).

    O autor diferencia entre recursos alocativos isto , recursos materiais que resultam do domnio da natureza e recursos autoritativos11 ou seja, recursos simblicos que se referem a pessoas. O carter recursivo das estruturas pode ser mais bem exemplificado atravs da lngua. Todos os membros de uma comunidade lingustica com algumas excees insignificantes usam as mesmas regras e prticas lingusticas. Na fala, eles reproduzem tais regras, as quais, ao mesmo tempo, lhes possibilitam falar (cf. Idem, p. 76). o que acontece com as estruturas sociais. Estas possibilitam a ao e, ento, se reproduzem novamente graas ao recurso ativo s regras de formao. Estruturas so conjuntos isolveis de regras

    10. No original ingls, media

    (N. T.). A opo por mdia,

    aqui, difere do trecho corres-

    pondente na verso brasileira do

    livro de Giddens (A constituio

    da sociedade, trad. lvaro Cabral.

    So Paulo, Martins Fontes, 1989,

    p. 18 ), em que o sinnimo

    escolhido foi veculo (N. O.).

    11. No original ingls, authorita-

    tive, termo que alude quilo que

    tem ou procede da autoridade (N.

    T.). Trata-se de uma diferena em

    relao verso brasileira do livro

    de Giddens (Idem, ibidem), em

    que o adjetivo , no trecho cor-

    respondente (p. xxxv), traduzido

    por impositivo (N. O.).

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    e recursos, por exemplo jurdicos, econmicos ou polticos. Estrutura designa a totalidade de estruturas diversas.

    No intuito de exprimir o condicionamento mtuo entre ao e estru-tura, Giddens fala na dualidade de estrutura e ao, que ele denomina tambm dualidade da estrutura. O termo dualidade designa uma dupli-cidade, e no uma oposio, como ocorre no discurso sobre o dualismo. A concepo de dualidade de estrutura e ao enfatiza que regras e recursos envolvidos na produo e reproduo da ao social so, ao mesmo tempo, os meios [media] de reproduo do sistema (Idem, p. 70). Para o autor, as rotinas so uma categoria-chave para a compreenso dos processos sociais: Rotinas so constitutivas tanto da reproduo contnua das estruturas de personalidade dos atores em suas aes cotidianas, como das instituies sociais; afinal, as instituies se definem como tais apenas em virtude de sua reproduo permanente (Idem, p. 111). Seria nas rotinas que as ins-tituies sociais se produzem, e as prprias aes se tornam hbitos. Gid-dens percebe as rotinas como causas do carter recursivo da vida social. As estruturas sociais reproduzem-se recursivamente na repetio costumeira da ao cotidiana. Rotinas transmitem segurana e a certeza de que se [Seinsgewissheit].

    Consequentemente, o conceito de ao designa um fluxo contnuo de atividades, no uma ao intencional isolada. Enquanto o autor desenvolve a noo de rotina com base num contexto microssociolgico e visando a pro-blemas relativos teoria da estrutura, a noo de instituio pressupe a lgica inversa. Segundo Giddens (cf. Idem, p. 76), instituies so os traos mais duradouros da vida social. Instituies so construtos que se reproduzem de maneira duradoura em rotinas.

    O autor volta-se contra uma prtica comum a vrios cientistas sociais: assumir o espao e o tempo como meras condies marginais da ao. Conforme sua argumentao, o espao e o tempo teriam de ser conceitua-dos como dimenses centrais da ordem. No poderiam ser negligenciados ou tratados ao bel-prazer; ambas as categorias seriam o cerne das teorias sociais (Idem, p. 161).

    Porm, como em sua obra o socilogo no utiliza a noo de espao nem de modo consistente nem constante para analisar a realidade social (cf. Werlen, 1997, p. 166), as interpretaes acerca das facetas tericas do espao variam muito nessa mesma obra (cf. tambm Gregory, 1989; Saun-ders, 1989; Urry, 1991). Numa rplica a seus crticos, Giddens (1989, p. 276) enfatiza que o espao remete contextualidade das interaes sociais.

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    Assim, ele deixa claro que o espao se torna relevante como referncia de localizao na ao: portanto, no como referncia geogrfica (place), mas como locale, ou seja, como lugar que no se define pela materialidade, mas pelo social12. Na arquitetura da teoria giddensiana da estruturao, o espao torna-se relevante como ferramenta terica no sentido de lugar e de regiona-lizao no nvel dos sistemas (cf. Giddens, 1988, p. 161). O autor diferencia entre estruturas e sistemas. Conceitua as estruturas como regras e recursos que permanecem no espao e no tempo. A noo de sistema conota, para ele, o entrelaado de aes espao-temporais, rotinizadas ou institucionalizadas.

    A prpria noo de ao, Giddens s a relaciona de maneira unidimen-sional com o espao: aes parecem evidentemente estar localizadas. Ele, por exemplo, no se pergunta se aes podem produzir espao. Por sua vez, define a noo de estrutura excluindo explicitamente o espao. Como conjunto de regras e de recursos recursivamente organizados, a estrutura encontra-se fora do espao e do tempo, exceto em suas realizaes e coordenao como rastros da memria; e ela se caracteriza por uma ausncia do sujeito (Giddens, 1988, p. 77). Enquanto Henri Lefebvre, por exemplo, mas tambm Pierre Bourdieu (1991) e John Urry (1991) desenvolvem uma ideia de estruturas espaciais como componentes da espacialidade dos processos sociais, a suposi-o de Giddens, de que estruturas seriam regras e recursos que persistem para alm do espao e do tempo, remete os espaos concretude do espao como lugar. Em sentido inverso, o autor tampouco se questiona sobre o espao como produto da ao, mas sua ateno se volta para como esto equipados os locales, para os modos da contextualidade. O espao , para Giddens, o lugar onde ocorrem eventos, que apresentam qualidades especficas. Natu-ralmente, um mesmo recorte espacial pode ser o local para uma variedade de eventos sociais que ocorrem simultaneamente, e que so passveis, cada um, de englobar uma multiplicidade de encontros (Giddens, 1988, p. 124). A citao atesta claramente tanto a paralelizao entre espao e lugar, quanto a premissa de que eventos podem ser mltiplos, embora espaos diversos num mesmo lugar permaneam impensveis.

    Nos termos de Giddens, o espao e o tempo dividem-se em zonas por referncia a prticas sociais repetitivas. Esse processo recebe o nome de re-gionalizao. Casas seriam regionalizadas em cmodos, corredores, andares. Dia e noite ofereceriam zonas para a distino entre perodos de sono e de trabalho. Norte e sul seriam, alm de reas geogrficas, traos sociais dis-tintivos (Idem, p. 174). O autor enfatiza o vnculo entre regio geogrfica e atribuio ou orientao sociais. Um aspecto fundamental da caracterizao

    12. Traduziu-se o original Ort

    como lugar e Platz como

    local. Adotou-se para Plat-

    zierung e platzieren, respec-

    tivamente, alocao e alocar

    (N. T.).

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    da regionalizao seria a medida de disponibilidade de presena. Isso signi-fica: regies definem-se pelas possibilidades de se estar junto socialmente. Para Giddens, os fenmenos sociais estendem-se espao-temporalmente em regies. Devido sua conscincia, entretanto, os seres humanos so capazes de distanciar-se disso. O modelo da presena/ausncia tambm estaria na base da distino entre regies de frente e de fundo13. Em todos os nveis sociais existiria uma diviso em zonas conforme o padro regio de frente-regio de fundo, que remete ao campo de tenso entre exibio e ocultao. E isso, quer se trate da segregao de indivduos em prises ou instituies psiquitricas com o objetivo de ocult-los da sociedade e, ao mesmo tempo, impor-lhes, por meio de controle permanente, a obrigao da exibio; quer, por outro lado, se trate da diviso das cidades em regies de frente, que so mostradas aos visitantes, e em regies de fundo para os pobres, que so escondidas um fenmeno j tratado pela Escola de Chicago (cf. Park et al., [1925] 1974). Essa concepo tambm pode ser encontrada na diviso de cmodos dos apartamentos, e ela seria observvel igualmente na diviso dos corpos. Nos termos de Giddens, a regionalizao do corpo em lado frontal (rosto) e traseiro encontra o seu correspondente espacial em contextos de interao. Precisamente o lado frontal, o rosto, associado fachada, sugerindo que o lado frontal a ser exibido no autntico.

    Benno Werlen (1997, 2000) utiliza o conceito giddensiano de regionali-zao para elaborar uma mudana de perspectiva na geografia, passando de uma geografia dos objetos a uma geografia dos sujeitos (Werlen, 2000, p. 611). Partindo de uma geografia que se entende como cincia do espao, ele enfatiza que no o espao, mas exclusivamente a ao poderia ser o conceito--chave da representao do mundo (Idem, ibidem). Werlen (1997) subdivide esse conceito em ao teleolgica, em ao orientada por normas e em ao comunicativa ou orientada pelo entendimento mtuo. Diferente-mente de Giddens, ele tematiza o espao no apenas como setting14, mas como produto da ao. Nas diferentes referncias da ao tambm se altera a constituio do espao porque os relacionamentos com o corpo resultam diferentes (Werlen, 2000, p. 612). Isso significa que, dependendo do tipo de ao, o espao originado de modo diferenciado. Consequentemente, o autor tambm tematiza o momento principal da constituio do espao, a regionalizao, em conformidade com os tipos implcitos de ao. Seguindo o diagnstico de poca giddensiano, de que as condies de vida se apro-ximariam em mltiplos sentidos do tipo ideal das formas de vida espao--temporalmente desancoradas da modernidade tardia (Idem, p. 617) que,

    13. No original ingls de Gid-

    dens, front and back regions

    (N. T.).

    14. Em portugus, cenrio

    (N. T.).

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    portanto, a unidade entre espao e construto social (por exemplo, os Estados) estaria se dissolvendo , Werlen formula diferentes tipos de regionalizao. Focando o aspecto da regionalizao produtivo-consumidora, o gegrafo se questiona a respeito das condies e implicaes globalizantes subjacentes a como os sujeitos econmicos agem no mundo cotidiano nos lados tanto da produo quanto do consumo , sem que tais aes j incluam o componente poder (Werlen, 1997, p. 271). Tais relaes de poder encontram o seu lugar no contexto das regionalizaes normativo-polticas. J regionalizaes informativo-significativas, baseadas na concepo do interesse orientado pelo entendimento, enfocam as geografias da informao e, assim, o conheci-mento, a vinculao emocional e a apropriao simblica.

    Em Werlen, depois do spatial turn, os espaos e as regies deixam de ser concebidos, de um lado, como objetos ou substncias. Porm, de outro lado, eles tampouco so reduzidos ao carter de signos. J na sociologia, que por longos anos mal reparou em ordenamentos-ordens espaciais, a proposta de tematizar o espao somente como decorrncia, e no propriamente como conceito-chave, soa bem menos revolucionria do que na geografia. Por que, entretanto, limitar-se a um conceito-chave? Ou, por outra: a afirmao de Werlen oculta uma convico profunda de que, [e]m oposio aborda-gem forjada na cincia do espao, no se trata, na perspectiva centrada na ao, de fornecer uma explicao dos padres espaciais. Pelo contrrio, so o processo de criao e, sobretudo, a reconstruo das decorrncias regio-nalizantes para outros agentes que devem estar no centro dos interesses (Werlen, 2000, p. 617).

    Mas pode-se perguntar tambm ser que os padres espaciais no so to relevantes para a anlise quanto o processo de sua criao? Werlen procura compreender a(s) estrutura(s) em Giddens de modo consequente apenas por referncia ao significado que ela(s) alcana(m) atravs da ao. Assim, ele pouco focaliza a potncia das estruturas em possibilitar a ao (tal como demonstrado anteriormente em relao a Soja ou a Harvey). De fato, ao no pensar o espao (tambm) no plano estrutural, Giddens (e, na sequncia, Werlen) reproduz o dualismo entre estrutura e ao, em vez de levar adiante a dualidade dos dois aspectos. em face disso que John Urry (1991, p. 160) sustenta o carter duplo do espao: By contrast, I shall argue that time and space should be seen as produced and producing, as contested and determined and as symbolically represented and structurally organized15.

    H muitos indcios de que os espaos no apenas so experienciados corporalmente, mas tambm operam retroativamente sobre os corpos;

    15. Em portugus, Em contra-

    partida, argumentarei que tempo

    e espao deveriam ser considera-

    dos como produzidos e produ-

    centes, como contestados e deter-

    minados, e como simbolicamente

    representados e estruturalmente

    organizados (N. T.).

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    nesse sentido, portanto, eles so o ponto de referncia ou produto da ao e ao mesmo tempo, como instituies, estruturam a ao. Renate Ruhne (2003) j demonstrou como a construo do espao pblico se relaciona com a produo respectivamente da mulher insegura e do homem que se sente seguro. Tal interao tem sido estudada de modo mais abrangente por referncia ao processo de etnicizao. Assim, Andreas Eckert (1996) mostrou como atravs da poltica espacial colonial se produz na frica uma etnicizao dos corpos.

    Em suma, possvel afirmar que Giddens analisa a localizao da ao. Nesse sentido, ele trabalha com dois pressupostos em princpio separados, a saber: existe a ao processual e h condies espaciais, sendo que ambas precisam estar relacionadas reciprocamente uma deduo de modo algum evidente na sociologia. O autor decide estabelecer essa relao no nvel do edifcio de sua teoria da ao que ele denomina sistema; portanto, unindo os dois pressupostos num entrelaado de aes localizadas. Com o auxlio desse procedimento, Giddens consegue captar a interao entre a regionali-zao e a ao. Mas, como ele s tematiza o espao como setting inserido em lugares, perde a oportunidade de servir-se de espao e lugar como conceitos sociolgicos que designam fenmenos distintos. Por exemplo, deixa de ser possvel nomear a diferena entre o lugar singular e o espao instituciona-lizado. Assim, permanece inexplicada a relao de um lugar especfico com sua materialidade e as formas generalizveis de regionalizao. Tambm permanece inexplorado, por exemplo, um fato destacado por Derek Gregory (1989): como so produzidas as prprias localities diversas, e no apenas sua regionalizao.

    verdade que Werlen busca ampliar a perspectiva giddensiana por meio de tipos de regionalizao passveis de constiturem perspectivaes cientfi-cas (materialidade/economia, normas/poltica, assim como conhecimento/signos). No entanto, isso lhe acarreta o problema de que tambm a relao entre esses aspectos permanece inexplicada, para no falar do problema de preciso na separao entre os campos.

    A dualidade do espao

    Para compreender a dinmica dos espaos, o seu carter processual, o seu vir a ser, a sua multiplicidade, mas tambm a sua fora estruturante, proponho ampliar a compreenso giddensiana de uma dualidade de estrutura e ao em prol de uma dualidade do espao. Concebo espaos como ordenamentos-

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    -ordens16 relacionais de seres e bens sociais em lugares. O termo ordenamento--ordem enfatiza que, primeiramente, espaos se baseiam na prtica de ordena-mento (como atividade de associao cognitivo-perceptiva e tambm como prtica de alocao17), mas, em segundo lugar, espaos tambm estabelecem uma ordem j existente. Essa ordem, no sentido de estruturas sociais, tanto precede a ao como sua consequncia. Portanto, pode-se falar de estruturas espaciais quando a constituio de espaos isto , respectivamente, o orde-namento ou a sntese de bens ou pessoas como espaos (o reconhecimento, a associao e a intuio de ordenamentos-ordens) est inscrita em regras e assegurada por recursos. Sob esse prisma, estruturas polticas, econmicas ou jurdicas fazem par com estruturas espaciais (e temporais). Em conjunto, elas formam a estrutura social. Como qualquer forma de estrutura, as estruturas espaciais precisam realizar-se na ao, mas tambm estruturam a ao. Nesse sentido, a dualidade de ao e estrutura tambm a dualidade do espao. Isso significa que estruturas espaciais geram uma forma de ao que, na constitui-o de espaos, reproduz essas mesmas estruturas espaciais.

    Falar de uma dualidade do espao traz tona a reflexo de que os espaos no existem simplesmente, mas so criados na ao, e que, como estruturas espaciais, incrustadas em instituies, guiam a ao. Em princpio, os seres humanos agem de modo repetitivo, isto , eles se acostumam a ou aprendem rotinas que deixam suas atividades transcorrerem em percursos habituais. No precisam refletir muito sobre qual caminho tomar, onde se alocar, como armazenar mercadorias e associar coisas e seres humanos entre si. Eles desenvolveram um conjunto de aes condicionadas pelo hbito que lhes ajudam a moldar a sua vida cotidiana. Para compreender isso de modo preciso, til a distino proposta por Anthony Giddens (1988) entre a conscincia discursiva que abrange os fatos que os agentes podem expressar em palavras e a conscincia prtica que compreende o conhecimento (tambm no sentido corporal e emocional) que os agentes atualizam na vida cotidiana sem recorrer a processos reflexivos conscientes. A ambas as formas de conscincia soma-se, na ao cotidiana, o inconsciente, motivos reprimidos da ao. A constituio de espao ocorre, em princpio, a partir de uma conscincia prtica, o que se evidencia particularmente no fato de que os seres humanos raras vezes comunicam uns aos outros como criam espaos. Na constituio recproca contnua de ao social e de estruturas sociais, os espaos surgem como resultado e precondio do decurso da ao. Em princpio, eles se baseiam em dois processos reciprocamente condicio-nantes: a atividade de sntese e o spacing18 (cf. Lw, 2001).

    16. No original, (An)ordnun-

    gen (N. T.).

    17. No original, Platzierungen

    (N. T.).

    18. Em portugus, ato de espa-

    cializar (N. T.).

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    Primeiramente, espaos surgem do fato de que os seres humanos associam elementos ativamente. Isso significa que, por meio de processos de percep-o, de imaginao ou de lembrana, bens sociais e seres humanos/vivos so associados uns aos outros como espaos. Como j demonstrou Immanuel Kant ([1781] 1996), objetos/seres humanos/eventos so associados, de modo que os limites se tornam evidentes e surge uma conexo espacial a partir dos objetos individuais. Esse processo denominado atividade de sntese.

    Em segundo lugar, na maioria dos casos (com exceo do desenho arqui-tetnico, por exemplo), o surgimento de espaos vem de mos dadas com alocaes. Portanto, o espao tambm se constitui atravs da alocao de bens sociais e seres humanos, ou ento pelo posicionamento de marcaes primariamente simblicas no intuito de identificar conjuntos de bens e seres humanos como tais (por exemplo, placas de entrada e sada de lugares). A partir de agora, denominarei esse processo spacing, que designa a atividade de erguer, de construir ou posicionar. Como exemplos podemos citar a colocao de mercadorias no supermercado, o posicionamento dos seres humanos uns diante dos outros, a construo de casas, a medio de fron-teiras territoriais, a interligao em redes de computadores como espaos. Trata-se de um posicionamento em relao a outras alocaes. No caso de bens mveis ou de seres humanos, spacing designa tanto o momento da alocao quanto o movimento rumo prxima alocao. Na ao cotidiana da constituio de espao, a atividade de sntese e o spacing ocorrem simul-taneamente, j que a ao sempre processual. De fato, as atividades de construir, de erguer ou de alocar enfim, o spacing so impossveis sem a atividade de sntese isto , sem a associao simultnea dos bens sociais e dos seres humanos circundantes como espaos.

    O que importa, para a compreenso desse conceito de espao, que os seres humanos associam no apenas coisas (ou seja, o mundo material), mas outros seres humanos ou grupos de seres humanos (os quais, por sua vez, interferem, eles mesmos, ativamente nos acontecimentos). Se, tal como plantas, pedras ou montanhas, os seres humanos podem ser parte de uma construo de espao, a distino entre espaos sociais e espaos materiais/fsicos perde o sentido.

    Surgindo na ao e baseando-se em atividades de construo, os espaos so sempre sociais. So materiais os objetos que, alocados, so associados como espaos. No entanto, essa materialidade no pode ser percebida ou intuda como pura, alheia a influncias ou at mesmo natural. Como seres socializados, os humanos percebem tambm a materialidade por meio de um

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    sistema tradicional de atribuies de sentido e, assim, de marcadores simb-licos. A particularidade dos seres humanos que eles alocam a si mesmos e abandonam alocaes. Alm disso, influenciam as construes de espao com mmica, gestos ou fala. Ainda que, em suas possibilidades de movimentao e de deciso, os seres humanos sejam mais ativos do que os bens sociais, seria redutor supor que bens sociais se contrapem aos seres humanos como os objetos passivos aos ativos. Bens sociais tambm exercem efeitos exterio-res, por exemplo em cheiros e rudos; e dessa maneira eles influenciam as possibilidades das construes de espao. A atmosfera torna-se, assim, uma qualidade dos espaos que no raramente resulta em incluses ou excluses (no sentido de estados de bem-estar ou de estranhamento especficos a tal ou qual grupo) (cf. Lw, 2008b).

    Qualquer que seja o nvel da constituio de espao tanto aquele da associao perceptivo-cognitiva quanto o das alocaes , os seres humanos no agem nem de modo individualmente singular nem de maneira am-plamente idntica. Pelo contrrio, as sociedades estruturam-se em classes, gneros, etnias ou grupos etrios. Os espaos podem tornar-se relevantes de diferentes maneiras, para cada grupo social. Podem ser experimentados de modo diverso. Eles podem orientar oportunidades de acesso ou excluses. Podem tornar-se campos de controvrsias na luta por reconhecimento. Assim, na maioria das vezes atravs de constituies de espao que se negociam relaes de poder e de dominao.

    Em suma, qualquer constituio de espao se define, de um lado, pelos bens sociais e os seres humanos e, de outro, pela associao dos mesmos. Ape-nas quando se conhecem ambos os aspectos isto , tanto os tijolos do espa-o quanto a sua relao recproca , h como analisar a constituio de espao. Para a sociologia do espao isso significa que preciso chegar a afirmaes tanto a respeito de cada um dos elementos quanto sobre o estabelecimento de relaes entre eles. Outra consequncia que, em princpio, dependendo do grupo social (por exemplo, diferenciando entre crianas e adultos), possvel imaginar snteses espaciais variadas num mesmo lugar. Ento, passa a ser so-ciologicamente relevante enfocar tambm formaes espaciais concorrentes num mesmo lugar.

    A potncia do espao

    Em resposta questo se o espao sobretudo consequncia da ao (Werlen), ou se ele opera socialmente como estrutura, a heurstica de uma

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    O spatial turn: para uma sociologia do espao, pp. 17-34

    dualidade do espao oferece o resultado de que, como ordenamento de potencial e de coero, o espao opera de modo estruturante; no entanto, tais estruturas precisam ser geradas individual e coletivamente no ato da alocao e da sntese. Nem toda alocao formadora de estrutura, mas o prprio espao pode ser estrutura social. Como exemplo, temos a anlise de Tovi Fenster (1999) acerca da tenda dos bedunos. Na vida cotidiana, a tenda o espao comum da famlia. Quando eles recebem a visita de um estranho e estranhos so todos os no parentes, amigos ou empregados , cria-se de modo flexvel, com cortinas, uma rea para os hspedes que fica interditada s mulheres da casa at o visitante deixar a tenda. Tal prtica s pde desenvolver-se em construes mveis dos espaos de moradia, e hoje em dia ela se encontra de tal modo rotinizada que no h mais nem como pensar na organizao das relaes de gnero sem essa estrutura es-pacial de apoio. A prtica israelense de fomentar a construo de casas para a populao beduna nmade conduz, nesse contexto, a dificuldades quase insuperveis, para que o respeito ao hspede seja conciliado com espaos fe-mininos aceitveis. De modo correspondente, os sentimentos dos moradores em relao casa se mantm, com frequncia, altamente ambivalentes. A casa de construo fixa permanece por um bom tempo bem pouco prtica, aos olhos da maioria dos bedunos.

    Quando se fala do efeito das estruturas espaciais sobre o agregado social, sempre h o perigo de se essencializar o espao. No entanto, partindo-se de uma dualidade do espao, a suposio de uma interao permanente entre estrutura e ao implica que o espao como agregado estrutural nunca gere efeitos por si s, mas dependa sempre do reconhecimento na ao (cf. tambm Alpsancar et al., 2011). Assim como a estrutura espacial da tenda dos bedunos somente tem efeitos sociais estruturantes por ser reconhecida como um padro, h como encontrar exemplos nos quais as estruturas espaciais so sistematicamente ignoradas (por exemplo, quando as pessoas abandonam as vias caladas do parque para buscar caminhos prprios ali). A consequncia disso que o espao desenvolve o seu poder pleno quando todos os atores tm a impresso de no serem influenciados, em suas convenes, por estruturas espaciais, seguindo-as, na conscincia prtica, como se fossem evidentes. A regulao da ao atravs dos espaos ocorre de maneira eficaz quando ela pode se basear em um conhecimento preexistente j consolidado em convenes e rotinas.

    Resumindo, quis demonstrar que, mesmo enfatizando a potencialidade dos espaos, as abordagens materialistas no conseguem (e muitas vezes

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    no querem) avanar conceitualmente at os espaos do cotidiano. De modo inverso, abordagens forjadas na teoria da ao conseguem informar muito acerca de lugares e atos de criao de espaos, porm sem apreender teoricamente a potncia que os espaos tm de provocar aes. Reformu-lando a tese giddensiana de uma dualidade da estrutura, sugiro neste texto, diferentemente, uma dualidade do espao como via conceitual de acesso ao problema. O duplo carter do espao simultaneamente uma estrutura ordenadora e uma forma de ao presta-se a uma reflexo sobre a potncia dos espaos. O conceito de espao descreve, hoje em dia, uma forma de organizao da contiguidade, assim como a noo do tempo designa uma formao da sucesso. Portanto, em termos sociolgicos, os espaos desig-nam as relaes entre alocaes simultneas. Esse algo alocado (tambm no sentido de crescido, construdo, plantado) precisa aparecer no plural, a fim de ser percebido como espao. O objeto no espao, mas o espao se estende entre objetos. Por isso, espao noo que encarna simultaneidades.

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    Resumo

    O spatial turn: para uma sociologia do espao

    Este artigo tem como objetivo conferir plausibilidade ao conceito sociolgico do espao

    como disposio relacional de seres e bens. Como os processos da globalizao tambm

    interferem nos modos de vivenciar o espao, a Sociologia v-se obrigada a repensar sua

    conceituao. Em termos metodolgicos, oporemos duas posies contrrias: teoremas

    materialistas que partem da estrutura espacial, de um lado, e abordagens orientadas na

    prtica e que partem da ao, de outro. Como concluso, com referncia teoria da

    estruturao de Anthony Giddens, apresentamos a proposta de uma sntese das duas

    abordagens. Dessa forma, torna-se possvel uma teoria do espao que no atribui ao

    espao foras essencialistas, nem o reduz a meras sequncias de ao.

    Palavras-chave: Espao; Ao; Estruturas; Atmosferas; Globalizao.

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    O spatial turn: para uma sociologia do espao, pp. 17-34

    Abstract

    After the spatial turn: for a sociology of space

    The aim of this article is to lend plausibility to the sociological concept of space as a

    relational disposition of beings and goods. Since globalization processes also interfere

    in peoples ways of experiencing space, Sociology has been forced to rethink its concep-

    tualizations. In methodological terms, I juxtapose two contrary positions: materialist

    theorems that set out from spatial structure, and practice-oriented approaches that

    set out from action. Citing Anthony Giddenss theory of structuration, I conclude by

    proposing a synthesis of these two approaches. This allows us to develop a theory of

    space that neither attributes it with essentialist forces, nor reduces it to a mere sequence

    of actions.

    Keywords: Space; Action; Structures; Atmospheres; Globalization.

    Texto recebido em 10/01/2013 e

    aprovado em 24/01/2013.

    Martina Lw professora de So-

    ciologia do Planejamento e da Ar-

    quitetura na Technische Universi-

    tt Berlin. Foi professora visitante

    em vrias universidades do mun-

    do (entre outras, Universidade Fe-

    deral da Bahia, cole des Hautes

    tudes en Sciences Sociales, Uni-

    versidade de Gothenburg), alm

    de ter sido, entre 2012 e 2013,

    presidente da Sociedade Alem

    de Sociologia. E-mail: martina.

    [email protected].

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