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Stélio Furlan José Carlos Siqueira Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Literatura Brasileira pela UFSC e graduado em História pela UFSC. Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portu- guesa pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Linguística pela USP. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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Stélio Furlan

José Carlos Siqueira

Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Literatura Brasileira pela UFSC e graduado em História pela UFSC.

Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portu-guesa pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Linguística pela USP.

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O HumanismoJosé Carlos Siqueira

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,muda-se o ser, muda-se a confiança;

todo o mundo é composto de mudança,tomando sempre novas qualidades.

Luís de Camões

O homem como centro do universo No romance Os Maias (1888), do escritor realista Eça

de Queirós, há um personagem bastante divertido chamado João da Ega, que pretende escrever um livro muito peculiar, As memórias de um átomo:

Este átomo (o átomo do Ega, como se lhe chamava a sério em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo, rolando ainda no vago das Nebulosas primitivas: depois vinha embrulhado, faísca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: enfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda mole do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura do Orango, pai da humanidade – e mais tarde vivia nos lábios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heróis, palpitava no coração dos poetas. [...] Achando-se finalmente no bico da pena do Ega, e cansado desta jornada através do Ser, repousava – escrevendo as suas Memórias... Tal era este formidável trabalho – de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

– É uma Bíblia! (QUEIRÓS, 1997, p. 1.116) Esboço dos movimentos de um homem, em desenho de Leonardo da Vinci.

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A graça desse texto está no fato de que a bíblia da modernidade seria o percurso de um átomo pela história, um átomo como outro qualquer, sem nada de especial, símbolo da materialidade da vida. Deus perde, assim, a prerrogativa de criar e de reger o universo. Essa exclusão da centralidade de Deus que, no século XIX – quando Eça escreveu o seu texto – é tomada de modo debochado e banal, no século XV e XVI foi uma grande revolução em Portugal e em toda a Europa. É o que ficou conhecido como humanismo, com o homem e a racionalidade humana tomando o lugar central na escala de valores do mundo ocidental.

Segundo Óscar Lopes e António José Saraiva, quem promoveu o Renascimento em Portugal fo-ram os humanistas:

A palavra humanismo com que se designou este movimento, inspirada pelo conceito de humanitas (o de humanidade, ou qualidade humana, como cultura e estrutura moral) de Cícero, exprime a crença num conjunto de valores morais e estéticos universalmente humanos, os quais se achariam definidos tanto nas Escrituras e na Patrística como na cultura profana da Antiguidade. (LOPES; SARAIVA, 1979, p. 175-176)

Do ponto de vista político, os humanistas advogavam a escolha dos governantes segundo o saber e a capacidade, condenando a guerra e propondo soluções pacíficas para os conflitos políticos e religiosos. Da perspectiva do ensino, o ideal humanista propunha a realização harmoniosa das faculdades morais e estéticas do indivíduo, por meio da substituição da dialética e da retórica escolástica, que era baseada no aristotelismo, pela leitura e o comentário dos textos de autores clássicos, defendendo assim uma crítica de base filológica e histórica. Seus seguidores retomavam Platão e os filósofos neoplatônicos, como Plotino.

Apesar de o humanismo ser uma corrente de pensamento e não um programa estético, ele foi a base de toda arte e cultura renascentistas. Sua origem se deu na Academia Platônica de Florença, na Itália, seu local de origem e um de seus principais mentores foi o filósofo Marsílio Ficino (1433-1499). Ficino foi tradutor de Platão, Plotino, Jâmbico, Proclo e Sinésio, e recebeu na Academia as principais figuras de seu tempo, como o arquiteto Alberti, o filósofo Pico della Mirandola, o poeta Poliziano e até Maquiavel. E a Academia Platônica de Florença foi muito além da tradição grega antiga, gerando as bases para o pensamento humanista.

No âmbito da literatura, esses pensadores reconheceram a superioridade artística e literária das civilizações antigas e, a partir daí, conceberam a noção de homem completo (corpo e espírito), integrado na humanidade e participante do vasto conjunto da natureza. Portanto, tais pensadores superaram a noção de homem individual pela noção mais ampla e complexa de humanidade. Isso tudo não negava a existência divina, mas colocava em primeiro plano o estudo do homem e da natureza.

Detalhe da pintura Zacarias no Templo (1490), de Domenico Ghirlan-daio, na capela de Santa Maria Novella, em Florença. Aqui aparecem Marsílio Ficino (à esquerda), Cristoforo Landino, Angelo Poliziano e Demetrios Clakondyles.

Representação de um átomo de hélio.

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O Humanismo em Portugal As ideias humanistas chegaram à literatura portuguesa por intermédio do contato de escritores

portugueses com o meio literário italiano. Um dos casos clássicos desse intercâmbio foi o do poeta Francisco de Sá de Miranda (1481-1558). De 1521 a 1526, Sá de Miranda frequentou os meios literários italianos. Ao retornar dessa viagem, ele trouxe na bagagem a nova estética humanista, introduzindo na literatura portuguesa o soneto, a canção, a sextina, as composições em tercetos e em oitavas, o decassí-labo. Além de várias composições poéticas, Sá de Miranda também escreveu comédias e tragédias.

Outro importante poeta desse momento foi Garcia de Resende (1470-1536), que era ainda cronista, músico, desenhista e arquiteto. Sua principal obra é o Cancioneiro Geral, na qual reúne compo-sições de mais de 200 poetas das cortes de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I, além dos próprios traba-lhos. É o maior repositório poético do final do período medieval e início do período clássico.

Entre os prosadores marcados pelo pensamento humanista, podemos destacar Fernão Lopes (c. 1380-c. 1460), cronista no reinado de D. Duarte, havendo escrito a história dos reis D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Também podemos nos lembrar de João de Barros (c. 1496-c. 1570), tesoureiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta – o que lhe deu a oportunidade de escrever as Décadas da Ásia (1552-1563), que tratam dos descobrimentos portugueses no Oriente. Além das Décadas, João de Barros escreveu a Crônica do Imperador Clarimundo (1520), Ropicapnefma ou Mercadoria Espiritual (1532) e Gramática da Língua Portuguesa (1540).

No entanto, o escritor que é considerado o maior humanista português, e mesmo um dos maiores da Europa, chamava-se Damião de Góis (1502-1574). Na função de embaixador de Portugal, ele viajou por vários lugares da Europa, estabelecendo relações com reis, príncipes e diversas figuras de expressão no cenário político e cultural daquele momento. Por manter contato com Erasmo, Lutero e outros refor-madores protestantes, acabou sendo acusado de heresia pela Inquisição. Foi um dos cronistas reais e escreveu Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel (1566-1567) e a Crônica do Príncipe D. João (1567).

Podemos ainda citar Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559), que escreveu a História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses (1551-1561), ou Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583), autor de Peregrinação (1614), como outros dois importantes prosadores que produziram à sombra do humanismo português.

No âmbito da prosa, interessa-nos, no entanto, especialmente Bernardim Ribeiro (c. 1480-c. 1540), provavel- mente o primeiro escritor português a adotar a língua portuguesa na prosa erudita, já que até esse momento apenas o latim era considerado digno para tanto. Quase nada se sabe da vida de Bernardim Ribeiro, sendo incertas as datas de nascimento e morte. Acredita-se que tenha visitado a Itália na companhia de Sá de Miranda e frequentado o meio literário da corte portuguesa. De sua autoria, chegou-nos alguns poucos versos, o romance (gênero de poema) Ao Longo de uma Ribeira (1550) e a novela Menina e Moça (1554), havendo esta última se transformado em uma referência obrigatória da origem da prosa portuguesa, pois seria a primeira novela pastoril da península Ibérica.

A Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, do humanista Damião de Góis.

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Alguns acreditam que Menina e Moça possa ser um roman à clef, isto é, um romance codifica-do que retrata a própria vida amorosa do autor, já que há muitos possíveis anagramas1 nos nomes das personagens. Por exemplo, Binmarder seria um anagrama de Bernardim; Natércia, de Caterina; Arima, de Maria; e assim por diante. Menina e Moça é uma “novela sentimental”, que funciona como uma “can-tiga de amigo” ampliada, resultando na visão feminina de uma “novela de cavalaria”.

Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tan-tas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. (RIBEIRO, 2002, p. ii).

Assim tem início o relato dos diversos sofrimentos amorosos que a narradora ouviu contar ou que, em parte, também experimentou. O tom sentimental, as diversas tramas amorosas e a exacerbação das sensações fizeram com que essa obra se transformasse em referência fundamental, já no século XIX, para os escritores portugueses ligados à escola romântica.

Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo

O dramaturgo Gil Vicente caiu nas graças da corte quando, em 1502, a rainha D. Maria assistiu em seu quarto à apresentação do Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, que saudava o nascimento de seu filho, o príncipe D. João. A partir de então, o rei D. Manuel nomeou Vicente como seu mestre de ce-rimônias, cargo que ele manteve também no reinado de D. João III – o mesmo D. João que o dramaturgo vira nascer – e de quem chegaria a receber terças (propriedades feudais) e prêmios.

Gil Vicente conseguiu adquirir tanto prestígio na corte que, dentro de seu espírito humanista, chegou a censurar os frades de Santarém por explicarem o terremoto de 1531 como resultado da ira divina. E, em uma carta ao rei, ainda condenou a perseguição impin-gida aos judeus.

Considerado o fundador do teatro português (e mesmo do teatro ibérico, ao lado de Juan del Encina), Gil Vicente é o expoente máximo do humanismo literário português. Pouco se sabe sobre sua vida. Pode ter sido ourives e autor da famosa custódia2 de Belém, obra-prima da ourivesaria portuguesa que se encontra atualmente no Museu de Arte Antiga de Lisboa. Mas certamente foi um grande dramaturgo, havendo trabalhado no mínimo durante 34 anos, de 1502 a 1536, data de sua última encenação, compondo cerca de 50 obras.

1 Anagrama: transposição de letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente.2 Custódia ou ostensório: receptáculo em que a hóstia fica exposta à adoração dos fiéis.

Gil Vicente, o inventor do teatro português.

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Também sobre as encenações das peças vicentinas pouco se sabe. Algumas provavelmente necessitariam de certa sofisticação material, como o Auto da Lusitânia, em que há a sugestão de que a ação se passa em dois andares distintos. A maioria, no entanto, exigia pouco aparato teatral para ser encenada.

O teatro vicentino e suas fontes A classificação dos autos de Gil Vicente em formas preestabele-

cidas apresenta uma série de dificuldades. Na edição de suas obras realizada por seu filho Luís Vicente, em 1562, já depois de sua morte, sob o título de Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a obra vicentina aparece dividida em cinco livros:

obras de devoção;::::

comédias;::::

tragicomédias;::::

farsas;::::

obras miúdas (diversas).::::

Porém, muitos estudiosos discordam de tal distribuição porque o próprio Gil Vicente se refere a alguns de seus trabalhos como moralidades, evocando assim gêneros dramáticos já em desuso no momento de publicação da Copilaçam e oriundos do teatro medieval. O teatro medieval apresentava uma grande diversidade de gêneros, tais como:

mistérios:::: – encenações da vida de Cristo, com muitos atores;

moralidades:::: – peças curtas com alegorias dos vícios, das virtudes e de outros atributos, ou com tipos morais;

milagres:::: – encenações de vidas de santos ou intervenções milagrosas da Virgem;

farsas:::: – cenas satíricas de caráter popular;

sotties:::: – espécie de farsa protagonizada por parvos3;

sermões burlescos:::: e monólogos – mais curtos que os anteriores, encenados por atores ou jo-grais mascarados com vestes sacerdotais;

autos pastoris:::: – éclogas dramáticas ambientadas no campo;

tragicomédias :::: – fantasias alegóricas de comemoração áulica ou política;

comédias sentimentais cavaleirescas:::: – tratavam do amor aristocrático e tinham final feliz.

Em Portugal, há poucos registros da existência de mistérios, moralidades ou milagres antes de Gil Vicente. Em documentos da Igreja, há apontamentos sobre possíveis representações, de modo geral indicando alguns excessos e solicitando sua proibição. Todavia, não se especifica a exata natureza de tais encenações. Assim, é de se supor que o dramaturgo tenha buscado o modelo para tais gêneros entre

3 Indivíduos tolos, bobos.

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A custódia de Belém.

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seus contemporâneos espanhóis, mais especificamente no dramaturgo castelhano Juan del Encina, de Salamanca. Segundo os historiadores António José Saraiva e Óscar Lopes, o Auto da Visitação, que introduziu Gil Vicente na corte, teve por modelo obras desse dramaturgo espanhol. Vale lembrar que nessa época a corte portuguesa empregava tanto o português quanto o castelhano, uma vez que durante o século XVI todas as rainhas de Portugal eram castelhanas, isto é, nascidas no reino de Castela, na Espanha. Aliás, o próprio Gil Vicente também escreveu obras em castelhano. Assim, não é de se estranhar que ele tenha optado por começar sua produção teatral tomando um autor castelhano como modelo.

No entanto, nos trabalhos posteriores, Gil Vicente incorporou diversos novos elementos, muitos já presentes na tradição portuguesa, como o sermão burlesco, as ladainhas, os despropósitos de parvos. Além disso, integrou elementos da realidade portuguesa, por ele atentamente observada. Do exterior, importou ainda a fantasia alegórica do também castelhano Torres Naharro e as moralidades e os mistérios franceses e ingleses (se é que já não estavam integrados às encenações portuguesas da época, das quais se têm poucos registros). Além disso, é muito provável que a obra vicentina tenha sofrido influência de narrativas da tradição oral. A partir de tal quadro de referências estéticas, dificilmente a obra de Gil Vicente poderia ser enquadrada em formas estanques.

Classificando as obras vicentinas Como já indicamos, uma das principais dificul-

dades para os estudiosos da obra de Gil Vicente está na classificação de seus autos em gêneros. Todavia, Óscar Lopes e António José Saraiva procuraram fazer tal classi-ficação e, assim, identificaram cinco grandes grupos de peças, observando que ainda assim uma mesma peça poderia se encaixar em mais de uma categoria.

Autos pastoris – autos ambientados no cam-::::po, com os mais diversos propósitos (Auto Pastoril Castelhano, 1509; Auto de Fé, 1510; Auto da Sibila Cassandra, 1513; Auto da Mofina Mendes, 1515; Auto Pastoril Português, 1523; Templo de Apolo, 1526; Tragicomédia da Serra da Estrela, 1527).

Autos de moralidade – subdividido em autos ::::que resumem a teologia da Redenção (Auto da Sibila Cassandra, 1513; Auto dos Quatro Tempos, 1513; Auto da Mofina Mendes ou Mistérios da Virgem, 1515; Breve Sumário da História de Deus, 1527) e autos que, de forma acentuadamente alegórica, oferecem um

Capa original da peça Tragicomédia Alegórica do Paraíso e do Inferno.

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ensinamento religioso ou moral (Auto da Barca do Inferno, 1517; Auto da Alma, 1518, Auto da Barca do Purgatório, 1518; Auto da Barca da Glória, 1519; Auto da Feira, 1526).

Farsas – episódios cômicos flagrados na vida de personagem típica, sendo que, por vezes, não ::::há unidade de ação mas apenas episódios independentes (Auto da Índia, 1509; Velho da Horta, 1512; Quem tem Farelos?, 1515; Farsa de Inês Pereira, 1523; O Juiz da Beira, 1525 ou 1526; Farsa do Almocreves, 1527; O Clérigo da Beira, 1529 ou 1530).

Autos cavaleirescos (:::: Comédia de Rubena, 1521; D. Duardos, 1522; Auto de Amadis de Gaula, 1523; Comédia do Viúvo, 1524).

Autos alegóricos de temas profanos –:::: uma alegoria central serve de eixo ou de espaço para o desenvolvimento de episódios, cenas, bailados (Exortação da Guerra, 1514; Cortes de Júpiter, 1521; Frágua de Amor, 1524; Templo de Apolo, 1526; Nau de Amores, 1527; Triunfo do Inverno, 1529; Romagem de Agravos, 1533).

Mas os próprios historiadores sabem que estão fora de tal classificação algumas peças como o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro (1502) ou o Sermão Perante a Rainha D. Leonor (1506), que seriam respectivamente um monólogo e um sermão. Também a Exortação da Guerra ou a Tragicomédia da Serra da Estrela poderiam ser classificadas simplesmente como tragicomédias, as-sim como os Mistérios da Virgem ou o Breve Sumário da História de Deus, poderiam ser tomados ape-nas como mistérios.

No fundo, à época do dramaturgo os gêneros eram muitos e não possuíam uma definição única e rigorosamente normatizada. Desse modo, contaminavam-se uns aos outros: um auto de moralidade difere razoavelmente de um sermão burlesco ou de um monólogo, mas nem sempre é fácil distinguí-lo de um auto pastoril, de um auto de milagre ou mesmo de uma farsa.

As força dos personagens vicentinosPor muito tempo, a tradição crítica afirmou que Gil Vicente não construiu personagens com densi-

dade psicológica capazes de se individualizarem por suas características. Mas o que dizer de perso-nagens como Inês Pereira, por exemplo, que tem vontade e evolução própria dentro da farsa, ou de Constança, a adúltera senhora do Auto da Índia, ou de Oriana, da Tragicomédia de Amadis de Gaula, cujo titubear em crer no amor de Amadis a leva a viver um dos mais belos “dramas psicológicos” do teatro cavaleiresco? Portanto, fica difícil falar em total falta de densidade psicológica. De qualquer modo, a tônica dominante na elaboração dos personagens vicentinos está em caracterizar tipos sociais, ou cons-truir alegorias, quando não se apropria de figuras da história mítica ou religiosa.

O interessante é que, com tal procedimento, Gil Vicente acaba por delinear tipos sociais que ainda hoje têm muita vitalidade, com os quais podemos nos deparar a qualquer momento. De fato, há em seus personagens a universalização de certos traços de caráter do homem dito ocidental. Representam, assim, alguns comportamentos morais que se tornaram exemplares, no bom ou no mau sentido – geralmente no mau.

Os personagens vicentinos mais comuns são:

tipos sociais – o parvo (o bobo), o pastor, a moça da vila, a alcoviteira, o camponês, o escudeiro, ::::o frade folião etc.;

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personificações alegóricas – Roma (representando a Igreja) estações do ano etc.;::::

personagens bíblicas e míticas – profetas, deuses greco-romanos etc.;::::

figuras teológicas – santo Agostinho, são Tomás de Aquino, são Gregório ou são Martinho.::::

Quando o dramaturgo português começou a escrever, os gêneros do teatro medieval já se encon-travam um tanto mesclados, como vimos. Todavia, pelo que foi exposto, ao menos em linhas gerais, é possível saber o que é uma moralidade ou uma farsa a fim de que possamos analisar duas peças muito famosas: O Velho da Horta e o Auto da Barca do Inferno. A primeira (uma farsa) é um episódio cômico flagrado na vida de uma personagem típica. A segunda (uma moralidade) é um auto que, de forma alegórica, oferece um ensinamento religioso ou moral.

O Velho da Horta A farsa O Velho da Horta foi representada pela

primeira vez em 1512. Trata da súbita paixão do Velho agricultor pela Moça que vem comprar verduras em sua horta. Observe-se que ninguém tem nome próprio: são tipos sociais. A já experiente Moça, ao perceber a paixão do Velho, passa a zombar dele, estimulando-o com frases ambíguas. Mesmo censurado pela Mulher, ele mantém sua paixão. Em meio a isso, aparece a Alcoviteira, que passa a fazer a suposta mediação entre o Velho e a jovem. No entanto, a Alcoviteira apenas deseja tomar aos poucos todos os bens do Velho. Ao final, ela acaba sendo presa e o Velho toma conhecimento de que a Moça se casara com um belo rapaz, de modo que termina a peça infeliz e arrependido de ter gastado com uma ilusão amorosa tudo o que acumulara para a família.

Aqui a crítica recai sobre a então incipiente classe burguesa, que ainda possuía um estreito vínculo com o campo. Note-se que toda a ação se passa na horta, com poucos personagens em cena, todos eles vestidos sem qualquer ostentação. Isso fazia com que a peça pudesse ser representada em qualquer lugar, sem grande aparato ou dificuldade.

É também fácil observar que há um claro distanciamento dos princípios dramáticos clássicos, que, em seu conjunto, postulam que uma peça se construa a partir de uma lógica interna: todos os personagens, todas as cenas, todas as ações têm de ser muito bem amarradas, fazendo com que nada fique solto ou sem explicação clara. Em O Velho da Horta a entrada e a saída de alguns personagens não são muito claras. O tempo em que transcorre toda a ação da peça – um dia – é muito pouco para que o Velho se apaixone, seja explorado pela Alcoviteira e ainda se arrependa de perder suas economias. Apenas o espaço respeita a unidade aristotélica. A peça caminha quadro a quadro, sem que a motivação de um para o outro seja devidamente amarrada. Quando os guardas chegam para prender a Alcoviteira, por exemplo, a situação é um tanto inverossímil, pois não ficamos sabendo quem denunciou sua explo-ração sobre o Velho. Todavia, o efeito surpresa que isso acarreta é mais forte e mais cômico do que se fôssemos preparados para tanto.

O Velho da Horta, montada pelo Grupo Polí-cromo Alecrim, na Mostra Rio-São Paulo de Teatro de Rua de Paraty em 2005.

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ção.

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Os princípios clássicos logo passariam a ser muito valorizados em Portugal, definindo assim uma nova estética renascentista. Mas é importante lembrar que, de modo efetivo, o renascentismo só chegaria a Portugal 14 anos depois da estreia de O Velho da Horta: como vimos, isso ocorreu em 1526, quando o poeta Sá de Miranda retornou a Lisboa, depois de sua viagem de estudos à Itália, tra-zendo na bagagem todo o ideário estético renascentista. De qualquer modo, Gil Vicente jamais ade-riu plenamente a ele, embora seja considerado, como já referido, o principal autor dos primórdios do Renascimento em Portugal, pois o dramaturgo foi sempre fiel ao seu humanismo – este sim em sinto-nia com o mundo mental renascentista, conforme discutiremos adiante – bem como às formas do te-atro de tradição medieval.

Lembremos ainda, com relação às farsas, que algumas delas não trabalham só com quadros, mas se prendem a um enredo mais denso. É o caso, por exemplo, da famosa Farsa de Inês Pereira, peça muito conhecida. Ali há toda uma progressão da ação:

Inês deve se casar;::::

é apresentada, mas rejeita Pero Marques, por ser ele simples e pobre;::::

aceita se casar com um elegante escudeiro;::::

desilude-se com esse escudeiro e sofre muito;::::

fica viúva e acaba por se casar com Pero Marques.::::

Mas se a ação lembra a trama de uma comédia clássica, o tratamento dado ao tempo não traz aquela amarração exigida pela tradição greco-romana. No mesmo momento em que conhece o escu-deiro, Inês se casa com ele. No momento seguinte, o marido parte para África. Logo em seguida, já se passaram três anos e chega a notícia de sua morte. Como se vê, tudo com uma amarração bastante frá-gil, o que demonstra como o teatro vicentino não é nada homogêneo, explorando diversas variações dentro do repertório dos gêneros dramáticos medievais.

Vale ainda lembrar que, apesar de se tratar de uma farsa, em O Velho da Horta há momentos de algum lirismo. Mesmo sendo ridicularizado em sua paixão, algumas falas do Velho trazem consigo uma quase renascentista concepção do amor, que é tomado como um sentimento paradoxal, um mal maior do que a morte, mas que todos desejam em vida: “O maior risco da vida e o mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída [...].” (VICENTE, 2008).

A crítica ao comportamento do Velho que está embutida na peça tem, naturalmente, uma base ca-tólica, pois condena o amor de um homem maduro e casado por uma jovem solteira. Mas também há um alerta para nossa fragilidade emocional, revelando como estamos todos sujeitos a transgredir as regras em qualquer fase de nossas vidas, isto é, há um alerta de que a paixão humana é algo sempre vivo e imprevisí-vel, precisa ser domado pela razão constantemente, até o último dos nossos dias. O Velho é ridicularizado em seu amor, mas, ainda que fadado ao fracasso, esse amor aparece como profundo e verdadeiro.

Auto da Barca do InfernoO Auto da Barca do Inferno foi representado pela primeira vez provavelmente em 1517, na Semana

Santa, no quarto da rainha D. Maria (ela se encontrava enferma de um mal que a mataria) tal como ocor-rera com o Auto da Visitação, 15 anos antes.

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Embora muito provavelmente não tenha sido escrita para com-por uma trilogia, o grande sucesso obtido por sua representação ins-pirou o dramaturgo a redigir duas outras peças, o Auto da “Praia” do Purgatório e o Auto da Barca da Glória. Assim, os três autos contemplam os três lugares em que um cristão, após a morte, pode ter por morada: o inferno, o purgatório e o paraíso.

O Auto da Barca do Inferno se passa em uma praia. Dois barcos es-peram os que acabaram de morrer para os levar ou para o paraíso ou para o inferno, havendo uma sucessão de cenas envolvendo aqueles que chegam e também o Diabo e o Anjo, que recebem a todos. A con-denação e a salvação de cada um é decidida de acordo com sua vida terrena. Os que chegam são o Fidalgo, o Onzeneiro (agiota), o Parvo, o Sapateiro, o Frade, Florença (amante do frade), Brísida Vaz (alcoviteira), o Judeu, o Corregedor, o Enforcado (ladrão) e quatro Cavaleiros. Desse modo, a peça é um conjunto de cenas sobrepostas, ligadas pelas figu-ras do Diabo e do Anjo.

No Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente critica as três instâncias sociais do mundo medieval: no-breza, clero e trabalhadores, salvando apenas o Parvo e os Cavaleiros, realmente dignos desse nome. Tal como na farsa O Velho da Horta, os personagens são em sua maioria tipos sociais. Todavia, quem prota-goniza a cena são figuras alegóricas do bem e do mal (o Anjo e o Diabo). Assim, diferentemente do que encontramos em uma farsa, temos aqui o recurso da alegoria, com uma fundamentação religiosa explí-cita, isto é, temos um auto de moralidade.

Note-se como cada um dos personagens possui uma forma de linguagem própria, que a carac-teriza. O Fidalgo fala de forma elegante e arrogante ao Anjo, revelando sua falta de respeito e amor ao próximo:

Que me leixeis embarcar:

sou fidalgo de solar,

é bem que me recolhais. (VICENTE, 2008)

Já o Parvo assim diz ao Diabo:Ò inferno?... Era má...

Hiu, hiu, barca do cornudo,

Pêro Vinagre, beiçudo, rachador d’Alverca, huhá.

Sapateiro da Candosa!

Antecosto de carrapato!

Hiu, hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa! (VICENTE, 2008)

Como se vê, o Parvo emprega muitas interjeições e uma linguagem de baixo calão, demonstran-do sua grosseria, mas também uma alma pura, ao reconhecer e atacar fortemente o Diabo.

Os trechos dedicados aos nobres e ao clero são mais longos, pois são os dois grupos mais critica-dos no decorrer da ação. O auto apresenta uma óbvia função moralizadora e os valores morais ali pre-sentes são medievais e cristãos, impregnados por valores humanistas.

Ilustração com cena do Auto da Barca do Inferno.

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É curioso notar que os motivos que os diversos passageiros alegam para sua salvação são justamente aqueles que os condenam, revelando o descompasso entre a ordem humana e a ordem divina. Também é fácil observar que o papel desempenhado pelo Diabo é o de agente moralizador da fé cristã, sendo até mesmo mais eficiente que o Anjo.

Uma sutileza: o Judeu é rejeitado até mesmo pelo Diabo e não pode embarcar (mantém sua condição de er-rante) – o que de alguma forma o preserva, mesmo que duplamente condenado. Retomando aqui a já menciona-da defesa que Gil Vicente fez dos judeus junto ao rei, podemos compreender que mantenha essa figura social em um lugar nebuloso e impreciso, fora dos padrões cristãos de julgamento.

A salvação dos Cavaleiros (que, por terem morrido nas batalhas das Cruzadas contra os infiéis, são merecedores do Céu) tem fundamentação na ideologia da Igreja, mas também na ética da cavalaria me-dieval: eles são salvos por serem corajosos, íntegros e, sobretudo, por terem lutado contra os infiéis.

Notemos finalmente que há elementos farsescos nas figuras do Diabo e do Parvo, o que aponta para a contaminação de gêneros que já mencionamos várias vezes.

A vertente de crítica social da obra vicentina Para entendermos melhor a crítica social que as obras de Gil Vicente veiculam, primeiramente é

necessário entender em que mundo de ideias ele viveu. Se analisarmos a estratificação da sociedade medieval, encontraremos três instâncias sociais:

aqueles que oram (:::: oratore) – os clérigos;

aqueles que lutam (:::: belatore) – os nobres e cavaleiros; e

aqueles que laboram (:::: laboratore) – os camponeses.

São três categorias distintas e complementares, e cada uma delas tem necessidade das outras duas. O seu conjunto forma o harmonioso corpo da sociedade, praticamente havendo trânsito entre es-ses grupos, isto é, há pouquíssima mobilidade social.

Todavia, em fins da Idade Média, com o surgimento do capitalismo comercial, tal ordem começou a mudar. O acúmulo de riquezas nos reinos estimulou o crescimento da classe dos comerciantes e da classe de trabalhadores que prestavam serviços aos nobres. O saber prático e especulativo, sem inten-ção teológica, começou a ser valorizado e, por conta disso, houve uma reabilitação dos valores clássicos (pagãos) de raiz greco-romana. Muitos homens que se encontravam fora da hierarquia clerical (isto é, fora do grupo daqueles que oravam) passaram a exercer atividades letradas, buscando conhecimentos práticos – e passaram a ser chamados de humanistas, isto é, homens que acreditavam em um conjunto de valores morais e estéticos universais para todos os seres humanos, valores que poderiam ser encon-trados tanto nas Escrituras quanto na cultura da Antiguidade Clássica.

As barcas do céu e do inferno.

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Por tudo isso, a crítica social presente na obra de Gil Vicente tem forte base humanista, mas ainda guarda vínculo com os valores medievais. No aspecto social, ao mesmo tempo em que percebe que o lavrador é a base econômica, o autor deseja que a sociedade se mantenha estática e tradicional, temen-do que a mudança do homem do campo para a cidade venha a descaracterizar tal sociedade – procu-rando sempre uma mediação entre os valores da Corte e os valores populares.

Dessa forma, Gil Vicente representa uma perspectiva crítica, mas conservadora, acerca da socie-dade portuguesa. Para resumir, podemos dizer que ele ridiculariza:

os padres porque pregam uma coisa e fazem outra;::::

os escudeiros porque imitam e parasitam a nobreza;::::

os fidalgos, magistrados e administradores porque se consideram acima das leis.::::

Já em relação à Corte, ora a ridiculariza, ora a elogia. Assim também procede com os judeus. Já em relação aos parvos e aos lavradores, tem por eles toda a simpatia.

Traçando um retrato bastante crítico da sociedade portuguesa do século XVI, no entanto ele não deixa de ter no tripé sacerdotes-nobres/cavaleiros-camponeses sua referência primordial de sociedade, na qual, no entanto, o homem letrado poderia substituir o sacerdote, muitas vezes com maior proveito. Foi exatamente o que fez Gil Vicente.

Dicas de estudoAs peças de Gil Vicente são muito reencenadas. Veja se na sua cidade não há nesse momento ::::montagem delas.

Há um romance de Fernando Campos intitulado :::: A Sala das Perguntas (1998), publicado pela Difel, que retrata a vida do humanista Damião de Góis.

Na internet, há um estudo muito competente sobre o Humanismo: “Humanismo e Literatura ::::no Portugal Quinhentista”, de Maria Leonor Carvalhão Buescu, disponível em <http://mem-bers.tripod.com/CECLU/humanism.htm>, site do Centro de Estudos de Culturas Lusófonas.

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Textos complementares

Redondilhas

(MIRANDA, 1989, p. 57-59)

1

Ó meus castelos de vento que em tal cuita me pusestes, como me vos desfizestes!

Armei castelos erguidos, esteve a fortuna queda, e disse: – Gostos perdidos, como is a dar tão grã queda! Mas, oh! fraco entendimento! em que parte vos pusestes que então me não socorrestes?

Caístes-me tão asinha caíram as esperanças; isto não foram mudanças, mas foram a morte minha. Castelos sem fundamento, quanto que me prometestes. quanto que me falecestes!

2

Comigo me desavim, sou posto em todo perigo; não posso viver comigo nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia, antes que esta assi crecesse;

agora já fugiria de mim, se de mim pudesse. Que meio espero ou que fim do vão trabalho que sigo, pois que trago a mim comigo, tamanho imigo de mim?

Soneto

(MIRANDA, 1989, p. 162)

O sol é grande, caem co’a calma as aves,do tempo em tal sazão, que sói ser fria;esta água que d’alto cai acordar-m’-iado sono não, mas de cuidados graves.

ó cousas, todas vãs todas mudaves,qual é tal coração qu’em vós confia?Passam os tempos vai dia trás dia,incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,vi tantas águas, vi tanta verdura,as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,também mudando-m’eu fiz doutras cores:e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Poemas de Francisco de Sá de Miranda

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Atividades 1. Qual a maior ruptura promovida pelo humanismo no pensamento dos séculos XV e XVI em

Portugal?

2. Por que é difícil classificar a obra de Gil Vicente?

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3. Quais os subgêneros que caracterizaram a prosa humanista portuguesa?

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FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

MIRANDA, Francisco Sá de. Poesia e Teatro. Lisboa: Ulisseia, 1989.

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RIBEIRO, Bernardim. História de Menina e Moça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

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_____. Auto da Barca do Inferno. Disponível em: <http://www. dominiopublico. gov. br/download/tex-to/ua00111a. pdf >. Acesso em: 4 ago. 2012.

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Gabarito1. A maior ruptura proporcionada pelo humanismo no Portugal dos séculos XV e XVI foi a de retirar

Deus do centro do universo, colocando ali a figura do homem. Se até então todas as preocupa-ções e explicações sobre o universo giravam em torno da figura de Deus, a partir desse momento o homem e a natureza tomam esse lugar. É o início do que depois irá ser designado como pen-samento científico e que, mesmo não descartando a ideia de Deus em um primeiro momento (Descartes tentou demonstrar a necessidade da existência Deus), privilegia as capacidades físicas e intelectuais do homem aplicadas ao conhecimento e ao domínio dos fenômenos naturais.

2. Porque as peças vicentinas nem sempre se encaixam precisamente neste ou naquele gênero, quer porque tais gêneros – de origem medieval e popular – muitas vezes apresentam subdivisões pouco precisas, quer porque Gil Vicente não se prendia rigorosamente a eles.

3. A prosa humanista portuguesa se caracterizou por:

crônicas reais, como as de Damião de Góis ou de João de Barros;::::

relatos de viagem, como o de Fernão Mendes Pinto; e::::

novelas sentimentais, como a de Bernardim Ribeiro.::::

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