Subjetividade e Personalidade

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Psicologia Existencialista i Profª Drª Daniela Ribeiro Schneider ii O Existencialismo já foi moda nos anos posteriores ao pós-guerra (fim dos anos 40 até os anos 60 e 70) devido ao fato de sua filosofia valorizar a vida, as relações, a construção constante de novas possibilidades para a sociedade e para os sujeitos nela inseridos. Era exatamente o que o mundo precisava depois das décadas de destruição, de crises econômicas e políticas e de caos social. O Existencialismo, enquanto uma filosofia da esperança, abria horizontes para o homem moderno. As transformações sociais, econômicas, políticas continuaram e o mundo ganhou novos contornos contemporâneos. A moda existencialista passou e outras vieram em seu lugar, a fim de redefinir as matizes da realidade social e de suas ideologias. No entanto, diferentemente de outras modas voláteis, as sólidas contribuições dessa perspectiva filosófica e psicológica permaneceram atuais, na medida em que puseram em questão o cerne do mundo moderno. Retirado o ufanismo proclamado por uma certa geração em relação ao Existencialismo, ficaram a seriedade epistemológica, a rigorosidade filosófica, a perspectiva de uma nova psicologia científica, alicerces fundamentais para se construir uma sociedade mais justa e mais humana. O Existencialismo tornou-se, assim, uma filosofia clássica, isto é, uma filosofia consolidada, referência obrigatória para qualquer um que queira pensar a realidade humana. Isto porque enfrentou o cerne da questão da modernidade, ao abordar em termos não metafísicos a problemática do conhecimento e fornecer substratos filosóficos para a ciência se firmar definitivamente como a racionalidade necessária para a investigação e o esclarecimento da realidade natural e humana. Para tanto, realizou uma nova ontologia (teoria do ser da realidade) elaborada a partir da dialética da objetividade com a subjetividade; uma nova antropologia (teoria do ser do homem), que enfatiza a relação indivíduo/sociedade e coloca o

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As transformações sociais, econômicas, políticas continuaram e o mundoganhou novos contornos contemporâneos. A moda existencialista passou e outrasvieram em seu lugar, a fim de redefinir as matizes da realidade social e de suasideologias. No entanto, diferentemente de outras modas voláteis, as sólidascontribuições dessa perspectiva filosófica e psicológica permaneceram atuais, namedida em que puseram em questão o cerne do mundo moderno. Retirado oufanismo proclamado por uma certa geração em relação ao Existencialismo,ficaram a seriedade epistemológica, a rigorosidade filosófica, a perspectiva deuma nova psicologia científica, alicerces fundamentais para se construir umasociedade mais justa e mais humana.

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  • Psicologia Existencialistai Prof Dr Daniela Ribeiro Schneiderii

    O Existencialismo j foi moda nos anos posteriores ao ps-guerra (fim dos anos 40 at os anos 60 e 70) devido ao fato de sua filosofia valorizar a vida, as relaes, a construo constante de novas possibilidades para a sociedade e para os sujeitos nela inseridos. Era exatamente o que o mundo precisava depois das dcadas de destruio, de crises econmicas e polticas e de caos social. O Existencialismo, enquanto uma filosofia da esperana, abria horizontes para o homem moderno.

    As transformaes sociais, econmicas, polticas continuaram e o mundo ganhou novos contornos contemporneos. A moda existencialista passou e outras vieram em seu lugar, a fim de redefinir as matizes da realidade social e de suas ideologias. No entanto, diferentemente de outras modas volteis, as slidas contribuies dessa perspectiva filosfica e psicolgica permaneceram atuais, na medida em que puseram em questo o cerne do mundo moderno. Retirado o ufanismo proclamado por uma certa gerao em relao ao Existencialismo, ficaram a seriedade epistemolgica, a rigorosidade filosfica, a perspectiva de uma nova psicologia cientfica, alicerces fundamentais para se construir uma sociedade mais justa e mais humana.

    O Existencialismo tornou-se, assim, uma filosofia clssica, isto , uma filosofia consolidada, referncia obrigatria para qualquer um que queira pensar a realidade humana. Isto porque enfrentou o cerne da questo da modernidade, ao abordar em termos no metafsicos a problemtica do conhecimento e fornecer substratos filosficos para a cincia se firmar definitivamente como a racionalidade necessria para a investigao e o esclarecimento da realidade natural e humana. Para tanto, realizou uma nova ontologia (teoria do ser da realidade) elaborada a partir da dialtica da objetividade com a subjetividade; uma nova antropologia (teoria do ser do homem), que enfatiza a relao indivduo/sociedade e coloca o

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    homem como sujeito da histria social, na justa medida em que sujeito de sua histria individual; uma nova psicologia, que compreende a personalidade como uma construo resultante dos processos scio-histricos de relaes entre a materialidade, a cultura, a famlia, enfim, entre as relaes sociais e sociolgicas e a apropriao ativa realizada dessa realidade pelo sujeito, concretizando-se em sua experimentao de ser.

    Mas, afinal, de que Existencialismo estamos falando?

    O Existencialismo Moderno Estamos falando do chamado Existencialismo Moderno, consolidado por

    Jean-Paul Sartre entre os anos 1930 e 1970. Este filsofo francs, que nasceu em 1905 e morreu em 1980, foi um

    intelectual bastante rigoroso: leu e discutiu os autores fundamentais de sua poca, referncias nas reas da filosofia, epistemologia, psicologia. O grande desafio de Sartre foi responder a alguns problemas que estavam propostos aos cientistas, filsofos e pensadores do perodo: os dilemas trazidos pelo idealismo e racionalismo, por um lado, e pelo materialismo e positivismo, por outro, concretizados em questes como a problemtica do conhecimento, a discusso acerca da objetividade nas cincias e, mais especificamente, nas cincias do homem; a necessidade de reviso da filosofia, trazida pelo marxismo (que postulava um conhecimento que remetesse realidade scio-histrica, pois bastava de contemplar o mundo, cabia, agora, transform-lo!). O contexto estava a exigir, pois, um saber que partisse e voltasse ao homem concreto.

    Desde o incio de suas incurses filosficas Sartre teve claras pretenses de elaborar uma psicologia. Pretendia criar uma psicologia que se opusesse quelas compreenses do humano que lhe pareciam, de um lado, abstratas e despregadas da realidade e, de outro, mecanicistas e causalistas. Descreve Simone: o que interessava antes de tudo eram as pessoas. psicologia analtica e empoeirada que ensinavam na Sorbonne, ele desejava opor uma compreenso concreta, logo sinttica, dos indivduos (Beauvoir, 1960: 52).

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    Os bigrafos de Sartre fazem questo de salientar a importncia da psicologia em seu projeto intelectual.

    A filosofia seria, de qualquer maneira, uma propedutica para a psicologia e para sua criao romanesca. Nas revises da prova de Psicopatologia Geral de Jaspers, nas visitas s apresentaes de casos dos doentes do Hospital Sainte-Anne, onde ele passava seus domingos de manh, em companhia de Nizan, Aron e Lagache, em seu diploma de estudos superiores, quando sustentou, com orientao de Henri Delacroix, sua tese sobre A imagem na vida psicolgica: papel e natureza, Sartre decifrava sobretudo o campo da psicologia (Cohen-Solal, 1985: 140).

    Esse seu interesse pela psicologia o coloca nos trilhos da fenomenologia. Inicialmente, com a traduo do tratado de psicopatologia fenomenolgica de Jaspers (op. cit.), no qual encontrou, entre outras, a noo de compreenso, em oposio de explicao causal, tpica do positivismo que tanto criticava. Depois, seu encontro com Husserl e outros autores fenomenolgicos. Alm destes, Sartre ter como fundamentos de sua teoria tanto o Existencialismo de Kierkegaard, quanto o Materialismo Histrico-Dialtico de Karl Marx.

    Essas so as razes filosficas que constituem a psicologia existencialista.

    O Mtodo Fenomenolgico O mtodo da psicologia existencialista ser o da fenomenologia, na qual

    Sartre sustentou muitas de suas concepes, apesar das crticas que realizou aos aspectos idealistas que a constituem.

    Mas afinal, o que a fenomenologia? Quem Husserl? Fenomenologia uma filosofia surgida no final do sculo XIX, inaugurada

    com Edmund Husserl (1859-1938), que buscou se opor ao pensamento especulativo da filosofia metafsica dominante at ento, ao mesmo tempo em que criticava o raciocnio das cincias positivas predominantes naquele cenrio histrico (Dartigues, 1992). O primeiro produzia conceitos abstratos, despregados da realidade; o segundo, especialmente quando se tratava das cincias do homem, tinha uma perspectiva naturalizante, transformando processos sociais e psicolgicos em elementos naturais, quando sabemos assim no o serem, j que

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    so culturais. O fenomenlogo criticava tambm as cincias por se reduzirem a um mero empirismo, ou seja, a uma descrio de fatos sucessivos sem o questionamento da essncia desses fatos.

    Portanto, era necessrio constituir uma filosofia de rigor, que fornecesse novos fundamentos para as cincias. Para realizar essa nova perspectiva filosfica, Husserl prope um mtodo de investigao, que deve ter como ponto de partida a volta s coisas mesmas, ou seja, a filosofia deve estabelecer seus conhecimentos e verdades sustentada na descrio da realidade circundantes, como apreendida pelo homem, enquanto ser consciente. As coisas ou os variados aspectos da realidade humana e natural na forma como aparecem para a conscincia constituem o que se define por fenmeno. Este um ser que indicativo de si mesmo, que no oculta nada e que pode ser conhecido atravs da srie de suas aparies. Voltar s coisas mesmas seria, de incio, ento, voltar aos fenmenos, descrev-los na suas diversas aparies, pois eles nada ocultam: so a revelao daquilo que sua essncia. Este o ponto de partida para qualquer fenomenologista. A fenomenologia husserliana se prope como fazendo ela prpria as vezes de ontologia, pois, segundo Husserl, o sentido do ser e do fenmeno no podem ser dissociados (Dartigues,1992: 03).

    Pautado nessa concepo Husserl propor uma nova noo de conscincia, no mais como uma estrutura fechada, mas como abertura para os fenmenos, ou seja, como intencionalidade. Isto quer dizer que s h conscincia na medida em que ela conscincia de alguma coisa, ou seja, ela sempre relao a algum objeto e nunca um ser sustentado em-si mesmo. Essas so as importantes contribuies da fenomenologia para as cincias e, especificamente, para a psicologia.

    No entanto, na continuidade das concepes de Husserl para o mtodo fenomenolgico, para o que propor a realizao de uma seqncia de redues1 (recurso emprestado da matemtica, que realiza a colocao entre parnteses de

    1 As redues do mtodo fenomenolgico so as seguintes: a) fenomenolgica, que pe entre parnteses a

    realidade externa para se chegar aos fenmenos; b) eidtica, que pe os fenmenos entre parnteses para se chegar essncia dos mesmos, obtida atravs da variao eidtica; c) transcendental, que pe as essncias

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    um certo contedo, colocando-o em suspenso, para em outro momento retom-lo ou se debruar sobre ele), este filsofo acaba por trair suas proposies iniciais. que seu ponto de partida foi a busca de verdades apodticas (indubitveis, irrevogveis), o que acabou por aproxim-lo da metafsica cartesiana, com todo idealismo que lhe constitutivo. este que Husserl realiza, ao final, quando afirma que a essncia dos fenmenos se encontra no eu puro ou na conscincia transcendental, concepo que pe entre parnteses a realidade externa e remete a fenomenologia a um subjetivismo sem recurso.

    bem por isso que Sartre, ainda que considere a fenomenologia a base de sua psicologia, ir construindo sua crtica a Husserl, principalmente metafsica pressuposta em toda a sua proposta fenomenolgica, at o momento em que precipitar sua ruptura com as idias do referido filsofo. Sartre, portanto, em torno de 1939, passa a centrar seus estudos na obra de Heidegger, outro autor fenomenolgico. Vai incorporando, um aps outro, conceitos heideggerianos fundamentais como ser-no-mundo, mundaneidade, nada, temporalidade. Mas essa apropriao ser feita sempre de forma crtica.

    A Concepo Existencialista Outra das suas razes o existencialismo. A filosofia existencialista foi

    fundada pelo filsofo dinamarqus Sren Kierkegaard (1813-1855) no incio do sculo XIX, em oposio ao racionalismo de Hegel, que dominava o cenrio intelectual de ento.

    O pensador alemo elaborou um sistema filosfico que pregava uma dialtica racionalista e reduzia todo real ao racional, sustentando-se em uma lgica imanente. Os sujeito concretos eram meras peas do sistema, estavam a servio do Estado, guiados por uma lgica pr-definida, submetidos a uma Histria com motor prprio (a evoluo do esprito absoluto). Kierkegaard considerava um equvoco primordial o fato de o hegelianismo ignorar a existncia concreta, ignorar os indivduos em sua subjetividade, enquadrando a realidade humana em um

    entre parnteses, bem como o eu emprico, para se chegar fonte de todas elas, de onde a realidade haure, que a conscincia transcendental ou o eu puro.

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    sistema fechado. O dinamarqus afirmava que o sistemtico se ope vida assim como o que est fechado se ope ao que est aberto (Kierkegaard, apud: Jolivet, 1957: 41). Dessa forma, faz uma filosofia de oposio, que clamava como ponto de sustentao a subjetividade ou a existncia concreta, da sua filosofia chamar-se de existencialismo.

    Entre suas acepes est a de que existir opo, existir escolher-se, ou seja, o que d sentido existncia o indivduo no poder fugir das escolhas e, ao realiz-las, escolher seu ser. Este conceito desdobra-se na famosa mxima do existencialismo: a existncia precede a essncia. Quer isto dizer que primeiramente existimos e depois, ao realizar uma mirade de escolhas, vamos definindo nosso ser, nossa essncia. Portanto, no nascemos prontos, mas construmos o ser que queremos ser. Este aspecto fundamental da existncia humana definido como liberdade: o homem no pode deixar de escolher e ao realizar opes define sua realidade individual e humana.

    Estes aspectos do existencialismo tero grande influncia em Sartre, como podemos notar na palestra do francs intitulada O Existencialismo um Humanismo (op. cit.). No entanto, Sartre realizar uma crtica ao subjetivismo em que acaba retido o fundador dessa filosofia. Kierkegaard acaba no realizando o salto necessrio para compreender esta singularidade no como mera subjetividade, mas sim como produto e produtora das relaes sociais. Dessa forma, acaba postulando uma subjetividade em-si-mesmada, permanecendo dentro da lgica idealista que ele tanto criticara em Hegel.

    Ser o Materialismo Histrico-Dialtico que permitir a Sartre romper com a perspectiva idealista ainda presente em Husserl e em Kierkegaard.

    este fundamento que justamente diferencia a psicologia existencialista das outras psicologias fenomenolgicas ou existenciais. Estas ltimas, compostas por um conjunto de inmeras abordagens, como a Gestalt-Terapia, o Psicodrama, a Daseinanlise (Heidegger), a Terapia Centrada na Pessoa (Rogers), entre outras, tm em comum as razes filosficas acima descritas. Algumas com influncia mais forte da fenomenologia, outras do existencialismo, geralmente acrescidas de outras influncias e, portanto, apresentando diferenas significativas

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    entre elas, podem ser agrupadas, justamente por estas razes em comum, sob o ttulo de psicologias fenomenolgicas-existenciais.

    J a psicologia existencialista, sustentada em Sartre, apesar de tambm possuir essas mesmas razes, construda em uma perspectiva crtica, na qual o francs realiza um rompimento com o subjetivismo e o idealismo, dos quais tanto a fenomenologia de Husserl quanto o Existencialismo de Kierkegaard ficaram refns. Esse rompimento ser possibilitado pela concepo histrico-dialtica que, unida s referidas filosofias, produz uma nova sntese, resultando na peculiaridade da psicologia existencialista.

    O Materialismo Histrico-Dialtico O materialismo histrico-dialtico foi concebido por Karl Marx (1818-1883),

    juntamente com Frederic Engels (1820-1895), em pleno sculo XIX. Crtico do materialismo ingnuo, do qual Feuerbach um dos

    representantes, prope uma concepo materialista sustentada na histria e na anlise dos meios de produo e da luta de classes como motor dessa histria.

    Prope tambm a concepo dialtica da realidade, a partir da famosa inverso hegeliana, em que critica a filosofia de Hegel por ser espiritualista ou idealista, propondo que se utilize os instrumentos de anlise dialtica como o filsofo alemo, mas sob um ponto de vista materialista.

    Se quisermos entender as implicaes dessa concepo dialtica na compreenso do homem, podemos seguir as reflexes de Sartre:

    Se se quiser dar toda a sua complexidade ao pensamento marxista seria preciso dizer que o homem (...) ao mesmo tempo o produto de seu prprio produto e um agente histrico que no pode, em caso algum, passar por um produto. Tal contradio no cristalizada, preciso apreend-la no movimento mesmo da prxis; ento, ela esclarecer a frase de Engels: os homens fazem a sua histria sobre a base de condies reais anteriores (...), mas so eles que a fazem e no as condies anteriores: caso contrrio, eles seriam os simples veculos de foras inumanas que regeriam, atravs dele, o mundo social (Sartre, 1987: 150).

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    Portanto, o materialismo histrico-dialtico fornece as bases para uma antropologia que rompe com o reducionismo das concepes subjetivistas - que concebem o homem como um ente sustentado em si mesmo - colocando-o, definitivamente no terreno da histria e da cultura. Essa concepo antropolgica aproxima a psicologia existencialista, em alguns aspectos, da psicologia de orientao marxista de Vygostski, Luria, Leontiev.

    Eis a as razes da psicologia existencialista, conforme concebida por Sartre. Importante destacarmos, agora, alguns aspectos tericos da psicologia existencialista, para que esta possa ser mais bem compreendida.

    Psicologia Existencialista conceitos chaves Veremos alguns conceitos centrais da psicologia existencialista a fim de

    que vislumbremos os rumos que essa perspectiva cientfica aponta para a disciplina psicolgica.

    Psicologia e Cincia Sartre postula a necessidade de viabilizar o conhecimento objetivo da

    realidade, o que significa viabilizar a cincia. Para realizar tal empreendimento deve-se trabalhar com a noo de fenmeno e, portanto, de fenomenologia.

    Em oposio ao empirismo e ao psicologismo, a fenomenologia faz o estudo dos fenmenos, e no dos fatos. Entende por fenmeno aquilo que se denuncia a si mesmo, aquilo cuja realidade precisamente a aparncia (Sartre, 1938: 22). O ser do existente no algo por detrs da aparncia; esta, na verdade, o revela, o prprio ser. Os fenmenos, conforme esclarece Sartre (1960) em seu Questo de Mtodo, no so jamais aparies isoladas, produzem-se sempre em conjunto. So um conjunto articulados de ocorrncias. preciso, pois, como em Marx, fazer uso do esprito sinttico, a fim de poder apreend-los em seu contexto e em seu conjunto. Sendo assim, a cincia tem como funo fornecer ... a cada acontecimento, alm de uma significao particular, um papel

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    de revelao: (...) cada fato uma vez estabelecido interrogado e decifrado como parte de um todo (Ibid.:27).

    Essa perspectiva revela a importncia da concepo do dado como fenmeno singular-universal. Isso significa que o contexto que envolve o fenmeno objeto primordial de anlise, ao mesmo tempo em que devemos considerar os aspectos peculiares de cada objeto ou situao estudada.

    O que entende, ento, Sartre por cincia? Afirma que as cincias (...) no visam conhecer o mundo, mas sim as condies de possibilidade de certos fenmenos de ordem geral (1938: 13), demarcando a diferena entre o papel da filosofia (conhecer o mundo) e o da cincia. Mas o que so condies de possibilidades? So aqueles fatores sem os quais o fenmeno no ocorreria, quer dizer, so as variveis que determinam que o fenmeno se estabelea e se desenvolva da forma que lhe prpria, que define sua especificidade (Bertolino, 2001A). Fazer cincia , portanto, conhecer as condies de possibilidade dos fenmenos, compreendendo-os em seu contexto. Com base nesse conhecimento, que generalizvel, j que pautado no aspecto singular/universal do objeto e na realizao da sntese das diversas variveis levantadas, criam-se condies para se interferir com segurana nas situaes. Esse o objetivo maior da cincia: intervir com segurana na realidade, para poder alter-la no que se fizer necessrio. Assim, no deve haver teoria sem prtica, nem prtica sem teoria. Esse processo no se d ao acaso e sem regras, mas como em todas as disciplinas, segue os princpios norteadores do fazer cientfico. Se assim no fora, argumenta Sartre, a separao da teoria e da prtica teria por resultado transformar esta em um empirismo sem princpio e, aquela, em um saber puro e fixo (Ibid.: 25). Portanto, no basta estudar o fenmeno, preciso transform-lo. A cincia no pode ficar somente na investigao, preciso ir para a interveno (Bertolino, 2001A).

    O que seria preciso, portanto, para fazer cincia em psicologia e no cair no empirismo que a domina, questiona Sartre (1938)? Seria preciso estudar as condies de possibilidades dos fenmenos psicolgicos (as emoes, por exemplo), ... ou seja, questionar-se se a prpria estrutura da realidade humana

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    torna possvel as emoes (por exemplo) e como que as torna possveis. Portanto, temos de comear descrevendo como se estabelece a realidade humana.

    O homem como ser-no-mundo No existe mundo sem homem nem homem sem mundo. O mundo s se

    constitui, se organiza, atravs do homem. Se no existisse o homem teramos, somente, a realidade bruta, indiferenciada. S h mundo porque o homem transcende aquilo que est dado e estabelece significaes, ordenamentos; organiza, assim, a realidade, tornando-a humana. Da mesma forma, o homem s se humaniza por estar inserido em um mundo que lhe possibilita contornos existenciais. No existe nenhum indivduo que no esteja situado em um certo local, em um dado tempo, em uma certa sociedade.

    que no existencialismo sartriano o subjetivo um momento do processo objetivo. A subjetividade no uma entidade em si, uma estrutura mental; ela um processo dialtico de apropriao da objetividade, de interiorizao da exterioridade. A subjetividade s existe como subjetividade objetivada. Quer dizer, o sujeito encontra-se inserido em condies materiais, sociais, familiares, existenciais concretas e no processo de apropriao dessas condies que constitui sua subjetividade, que imediatamente se objetiva, atravs de seus atos (sua prxis), seus pensamentos, suas emoes.

    A condio para a ocorrncia desse fenmeno o fato de o homem ser, inelutavelmente, corpo/conscincia. O corpo seu primeiro contato com o mundo, a conscincia sua condio, inevitvel, de estabelecer relaes. Dessa forma, o sujeito um conjunto de relaes: com a materialidade que o cerca, com seu corpo, com o tempo, com os outros.

    A relao com a materialidade que nos cerca a primeira condio de existncia de algum. Todos nascemos inseridos em uma dada sociedade, em um certo momento histrico, includos em um certo conjunto de relaes sociais, que nos remetem, necessariamente, s condies materiais em que estamos inseridos. Essas condies, em um primeiro momento, no so por ns escolhidas, nascemos no meio delas. Mas, no entanto, devemos nos apropriar

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    delas, j que essas questes objetivas so aspectos definidores de nossa subjetividade. Os sujeitos se apropriam dessas condies de uma maneira singular, particular. A maneira de se processar essa apropriao deve-se histria e ao projeto de cada um. essa apropriao singular que deve ser esclarecida pela psicologia existencialista, na busca de encontrar o ser do sujeito.

    A relao com o corpo outra condio existencial primordial. J vimos anteriormente que o homem , inelutavelmente, corpo/conscincia; , portanto, uma totalizao dessas duas dimenses de seu ser. Quando ajo no mundo, eu e meu corpo somos uma e a mesma coisa. No somos primeiro dotados de um corpo, para depois captar o mundo, ele no uma tela entre ns e as coisas. No! O corpo nossa relao originria com as coisas, a revelao de nossa relao com o mundo. Sendo assim, o corpo a perptua condio de possibilidade da psique. Todos os fenmenos da psique so psicofsicos.

    A temporalidade outra relao fundamental do homem com o mundo. As coisas, o em-si, no so temporais. Uma roupa em-si mesma no moderna, no est na moda ou dmod, na relao com os padres estticos estabelecidos por uma certa lgica de consumo, por uma dada sociedade, que se define a pertinncia da roupa para certas ocasies, sua modernidade. Portanto, quem dita a temporalidade das coisas o homem, j que atravs dele que a temporalidade vem ao mundo.

    Sendo assim, a humanidade do sujeito constri-se pela sua historicidade. O homem s existe para o homem em circunstncias e em condies sociais dadas, isto significa que toda a relao humana demarcada temporalmente, histrica.

    A temporalidade no um todo catico, ao contrrio, uma estrutura organizada nos trs elementos do tempo: passado, presente, futuro. A dimenso psicolgica caracteriza-se por ser resultante da sntese das trs dimenses da temporalidade. Assim, sou meu passado (que o que ) e meu futuro (que no ainda) enquanto presena no mundo. A dinmica temporal desenvolve-se como processo de totalizao perptua da minha experincia nessas trs dimenses. O meu cotidiano sustenta-se em antecipaes (futuro) e recordaes (passado), bem como em antecipaes baseadas em recordaes (meu futuro como era

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    vivido no passado) e em recordaes baseadas em antecipaes (meu passado visto a partir da perspectiva de meu futuro), para usar expresses caras ao psiquiatra fenomenolgico americano Ernest Keen (op. cit.).

    importante ressaltar uma noo que j apareceu vrias vezes em nossas reflexes e que central na psicologia de Sartre: o projeto. Ele se caracteriza por essa busca do sujeito em realizar o seu ser, j que o homem est sempre indo em direo ao seu futuro. No existe indivduo sem projeto. Mesmo no ter projeto ainda um projeto; quer dizer, o homem, ao lanar-se no mundo, persegue um fim, mesmo que no tenha clareza de qual ele. Em cada posicionamento, em cada comportamento do sujeito existe uma significao que o transcende; cada escolha concreta e emprica designa uma escolha fundamental, ou seja, a realizao do projeto de ser. Exemplifica : tais cimes datados e singulares, nos quais o sujeito se historiariza em relao a determinada mulher, significam, para quem souber interpret-los, a relao global com o mundo, pela qual o sujeito se constitui um si-mesmo (Sartre, 1943: 650). Cada ato exprime uma escolha original em circunstncias particulares. O que define o ser de cada um so as escolhas cotidianas, que concretizam essa escolha fundamental. O homem se constitui, dessa forma, em uma livre unificao das diversas escolhas empricas em direo a um projeto fundamental. O projeto se caracteriza, assim, pela totalizao em curso que o homem.

    O projeto realizado pelo desejo de ser. Todo homem experimenta seu projeto fundamental atravs de seu desejo de ser. O desejo de ser o combustvel da dinmica psicolgica. Sendo a expresso concreta do projeto, o desejo de ser tambm no um a priori da realidade humana, mas sim se constitui na prpria escolha cotidiana.

    Sartre elabora a noo de desejo, essencial na filosofia e na psicologia moderna - na medida em que considerado aquilo que move o homem em termos radicalmente distintos dos at ento elaborados. O desejo no um atributo inconsciente; nem mesmo inacessvel; no uma fora que move o homem sem que ele o saiba, quando seria, ento, definido por um saber que no se sabe; tambm no se reduz a ser da ordem da sexualidade, da projetando-se

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    a outras esferas. No! O desejo de ser constitudo pelo homem na sua prxis cotidiana; realiza-se em cada experincia relacional, emocional, intelectual, etc; define o homem na justa medida em que o homem se define. O desejo , antes de mais nada, desejo de ser, para ento especificar-se em diferentes desejos empricos, concretos. Sendo assim, a sexualidade somente mais uma de suas inmeras possibilidades, uma das formas de se realizar o desejo de ser, mas no o que o define.

    Relao Eu/Outro A existncia do outro fato incontestvel e me atinge em meu mago, na

    justa medida em que o outro o mediador indispensvel entre mim e mim mesmo. O outro , antes de tudo, o ser pelo qual adquiro minha objetividade, ou seja, o outro est presente a mim, onde quer que esteja. 0 outro, portanto, no uma representao minha, mas uma experincia concreta no seio do mundo, que atinge meu ser psicofsico (moi). Sabemos que necessrio reconhecer o outro como outro para que eu me reconhea como eu. O eu surge dialeticamente da relao com o tu, afirma o psicodrama.

    No entanto, as duas atitudes mais comuns e cotidianas na realidade humana so atitudes alienantes, que consistem em: a) fazer-se objeto para o outro (quando levada ao extremo chega-se ao masoquismo); b) fazer o outro de objeto (quando levada ao extremo chega-se ao sadismo). Estas so atitudes de alteridade (Sartre, 1943).

    H, no entanto, ainda uma terceira estrutura possvel do ser-para-outro que implica o ns. Estar com o outro superar o conflito presente nas duas atitudes anteriores; no ns estamos em comunidade, buscamos realizar a reciprocidade, ou seja, o reconhecimento do outro enquanto liberdade, que viabiliza, portanto, a troca com o outro, onde um pode ser mediao para o outro. O ns no uma conscincia intersubjetiva, como querem muitas psicologias, mas uma experincia concreta de ser-no-mundo, experimentada por uma conscincia particular. Ser-com-o-outro compartilhar projetos, dividir situaes, tomar decises conjuntas. o estabelecimento de uma transcendncia comum e dirigida

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    a um fim nico- o projeto que somos em grupo . A noo de ns se desdobrar na concepo sartriana de grupo.

    Sujeitos e Grupos Os sujeitos nunca esto isolados, mesmo uma pessoa sozinha est sempre

    inserida em uma rede de relaes humanas, seja para se alimentar, para se vestir, para trabalhar, para pensar seu mundo, enfim, para ser.

    No entanto, nem toda reunio de pessoas significa, necessariamente, um grupo. H diferentes estruturas nas quais ocorre o agregamento de indivduos, sendo que estes diversos nveis de tecimento social vo consolidando as estruturas da sociedade.

    Os coletivos, por exemplo, considerados simples reunio de pessoas, constituiro o que Sartre designa de srie. Ele utiliza o exemplo do nibus para descrev-los: um nibus comporta um coletivo de pessoas, que a princpio tm o mesmo objetivo chegar a algum destino contemplado pelo itinerrio do nibus. S que essas pessoas de idades, sexos, classes sociais diferentes, no se conhecem, no se tecem entre si. Desse modo, a forma mais bsica de agregamento humano implica em uma pluralidade de solides, quer dizer, as pessoas no se preocupam umas com as outras, no se dirigem a palavra, nem mesmo se observam. Portanto, um espao onde cada um cada um, os indivduos tratam de perseguir seu objetivo de forma isolada, o projeto individual, no h mediao; utilizam-se do mesmo meio de realizar o objetivo, mas no h uma troca entre eles, no h uma ao coletiva. O interesse , portanto, comum (chegar a algum lugar), mas no h uma identidade entre as pessoas. O ser da pessoa est definido de fora, pelos gestos rituais que ele deve fazer, pelo nmero que ele ocupa, independente de sua histria particular, que aqui no interessa. A marca da serialidade , portanto, a alteridade, ou seja, cada um o mesmo que os outros enquanto outro distinto de si; ou seja, como j vimos, cada um cada um, sem tecer qualquer identidade coletiva, permanecendo na solido.

    O que vai caracterizar um grupo organizado, diferente de uma srie a superao da solido dos participantes atravs do tecimento entre seus membros. Este tecimento, aspecto fundamental dos grupos, se organiza em torno de um

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    projeto comum, constitudo a partir da troca entre os projetos individuais. Alm disso, estabelece-se uma afetividade, posto que as pessoas passam a ser importantes umas para as outras. Cada um se torna o mediador entre o projeto individual do outro e o projeto coletivo, estabelecendo relaes de reciprocidade. Portanto, para compreender a dialtica da realidade humana fundamental compreender o papel de mediao que o grupo exerce em relao aos sujeitos concretos. Pela mediao do grupo, o outro se torna um meio para me realizar, assim como eu a ele. Esta estrutura nova, da reciprocidade mediada, se caracteriza pela experincia de compartilhar aes, pensamentos, sentimentos.

    O grupo aos poucos busca instrumentos para evitar a sua volta serialidade, disperso individual. Surge, assim, o que Sartre designa de fraternidade/terror. Fraternidade, porque no grupo existem obrigaes recprocas, baseadas na solidariedade de cada um com os outros, mas ao mesmo tempo, existe o terror, que vem a ser a presso para que as pessoas se dediquem ao grupo, no se dispersem, no o traiam, instaurando-se, dessa forma, um controle sobre o indivduo, para que este permanea comprometido com o projeto do grupo.

    A famlia um dos principais grupos estudados por Sartre, devido sua funo mediadora para os sujeitos concretos, ou melhor, por realizar a mediao entre os indivduos e a sociedade. Diz ele:

    A psicanlise um mtodo que se preocupa, antes de tudo, em estabelecer a maneira pela qual a criana vive suas relaes familiares no interior de uma sociedade dada. (...) O existencialismo acredita poder integrar este mtodo porque ele descobre o ponto de insero do homem em sua classe, isto , a famlia singular como mediao entre a classe universal e o indivduo: a famlia, com efeito, constituda no e pelo movimento geral da histria e vivida, de outro lado, como um absoluto na profundidade e na opacidade da infncia (Sartre, 1960: 47).

    Dessa forma, na psicologia sartriana, o papel mediador da famlia na estruturao do projeto de ser do sujeito fundamental. Muitas vezes uma famlia, em funo das relaes estabelecidas entre seus membros, corroda por uma serialidade interna, ou seja, seus membros no conseguem tecer seus projetos

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    individuais em torno de um projeto coletivo, permanecendo uma pluralidade de solides. A forma como nossa sociedade, nossa cultura ocidental, concebe as relaes entre as pessoas, sustentando-se em concepes metafsicas, que as lanam em um solipsismo, em um subjetivismo, acabam por forjar estruturas familiares serializadas. O terror se instala em seu seio, na busca de escapar dissoluo; as relaes reduzem-se a cobranas morais, a uma exigncia de falsa unidade. Eis aqui uma das fontes da solido social e, conseqentemente, da produo da loucura: as pessoas experimentam-se cada vez mais sozinhas, mais desesperadas, pois desejam uma mediao que est impossibilitada de acontecer em funo da maneira como se estabeleceram as relaes no interior do seio familiar. Boa parte das famlias hodiernas no so grupos, mas sries. Uma famlia quando consegue ser um grupo, estabelece um projeto comum, e se torna uma das principais mediaes do projeto de ser dos sujeitos.

    Portanto, nem vtimas, nem cmplices da sociedade que nos acolhe e a qual escolhemos, somos a totalizao destotalizada dessa engrenagem permanente de mediaes sociais. Destacamos, assim, a importncia da rede de tecimentos dialticos entre os indivduos e os grupos que constituem os alicerces da construo da personalidade dos sujeitos, consolidando a realidade humana.

    Portanto, a noo de mediao fundamental para se compreender a realidade humana. Somos meios uns para os outros para realizar nosso ser. Sem as mediaes sociais no nos humanizaramos, no superaramos a condio de animais comuns. O sujeito humano social por condio, ele no se essencializa, no constri seu ser, se no for no meio de outros homens. preciso compreender, ento, que o outro mediao para mim na medida exata em que sou mediao para ele. o processo de sociologizao, ou seja, o tecimento das relaes de mediao, relaes afetivas com os outros que me so significativos e que, por isso mesmo, ajudam a definir o contorno de meu ser (valores, religio, concepo de vida, de mundo), delineando meu projeto. Aqui importante distinguir meras relaes sociais (participar de certos grupos, relacionar-se com pessoas as mais diversas, cumprir papis e funes sociais, obedecer ou no as regras do jogo) de relaes sociolgicas, de mediao, que comprometem

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    meu ser, definem meu espao muito alm do social, numa dimenso sociolgica (Bertolino 2001A). As relaes meramente sociais fazem parte de nosso cotidiano, mas no so definidoras de nosso ser, por exemplo, quem j no foi a um enterro somente para marcar presena e cumprir formalidade, o que radicalmente diferente de ir a um enterro de algum significativo. Muitas famlias, esfaceladas internamente, vivem relaes puramente formais: seus membros almoam juntos todos os dias, do-se presentes no Natal, conversam banalidades, mas no se colocam efetivamente como mediao, como viabilizadores do ser dos demais.

    A constituio da personalidade Vimos at aqui que a realidade humana dialtica; sendo assim, o

    processo de subjetivao (ou de personalizao) tambm deve s-lo. A apropriao ativa e singular da objetividade (da materialidade, do tempo, dos outros, dos valores sociais e culturais), ou seja, a ao de interiorizao da exterioridade, resulta na constituio da personalidade ou do eu, que se consolida, assim, como uma subjetividade objetivada, quer dizer, uma subjetividade que a totalizao das relaes que o sujeito estabeleceu com o mundo e que nele se objetiva atravs de seus estados, aes, emoes, reflexes, etc.

    preciso destacar: primeiro, que o homem nasce corpo/conscincia, como j vimos. Isto quer dizer que o sujeito concreto nasce com uma dada condio fsica e fisiolgica, trazida com seu corpo, e com uma dada condio de estabelecer relao com o mundo, trazida pela conscincia. Essas so condies possibilitadoras de seu ser, mas no so o seu ser. Sua essncia (quer dizer, aquilo que define a especificidade de seu ser, no caso do homem, sua personalidade) no est dada, precisar ser construda. Da a necessidade de um processo histrico de totalizao das relaes do sujeito com o mundo, mediadas pelo social, que constituiro, assim, os estados, aes e qualidades que, unificados, formaro a personalidade. Com isso, fica claro que nascemos ningum e nos tornamos algum especfico nesse processo de construo constante de nosso ser. Ou seja, primeiro existimos, estabelecemos relaes com o mundo, para ento, a partir da, nos personalizarmos, nos essencializarmos.

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    Temos aqui a sustentao da mxima existencialista para o ser do homem: a existncia precede a essncia.

    A insero social, que j vimos ser fundamental na definio do humano, concretizada atravs da mediao das pessoas que so mais prximas criana, as quais realizam a interseco dos valores sociais e culturais mais gerais, com as necessidades mais imediatas e concretas do sujeito. Dessa forma, a criana inserida no que poderamos designar de placenta social2, quer dizer, um espao sociolgico do qual ela alimentada com conhecimentos, valores, crenas, afetividade, que viabilizam a sua formao como sujeito humano. As pessoas que cercam a criana, desde cedo vo forjando uma identidade para ela, ao efetivarem um conjunto de expectativas em seu entorno: consideram-na parecida com o pai em certos aspectos fsicos e psicolgicos, com a me em outros, com os avs nisso ou naquilo, e assim por diante; dizem que ela muito quieta, ou muito agitada, que chora muito ou pouco, etc; querem que aja de determinada maneira, irritam-se quando ela age de outro, mostram como deve se comportar; constroem, aos poucos, uma maneira de lidar com ela, na afetividade e na racionalidade. importante aqui compreender como se estabelece o cuidado com a criana, como a carregam no colo, o como o banho, o amamentar, os carinhos, etc, elementos concretos, afetivos, que vo dando suporte para a criana consolidar o seu ser.

    O processo das primeiras relaes vo definindo os parmetros para a construo da personalidade. So as nuanas do relacionamento cotidiano com os outros que vo possibilitando ao sujeito forjar seu ser. Em outros termos, as estruturas da famlia, dos grupos primrios a que pertence a criana so interiorizadas por ela em atitudes, e reexteriorizadas em prticas, pelas quais ela se faz ser aquilo que fizeram dela. Dessa forma, o que encontramos na infncia so atitudes, aes, emoes que sempre tm sua origem em uma determinao interiorizada, passando por um processo de totalizao do ser da criana, que acaba por se reconhecer sendo esta ou aquela pessoa, que tem tais alegrias, tais

    2 Termo que faz parte do arcabouo terico do Psicodrama.

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    medos, que gosta de estudar, que no gosta de futebol, que se irrita com facilidade, etc, por exemplo.

    Sendo assim, a totalizao em curso, que em todo momento se destotaliza e retotaliza, e que se objetiva pelas atitudes, pelos atos, o que Sartre considera de personalizao, processo pelo qual o sujeito constitui sua idiossincrasia, atravs de uma constante interiorizao/exteriorizao do contexto scio-histrico. Personalizao essa que ganha uma dinmica prpria. A personalizao no mais do que, no indivduo, a superao e a conservao (assuno e negao ntima) no seio de um projeto totalizador daquilo que o mundo fez - e continua a fazer dele (Sartre, 1971: 657)

    Essas reflexes nos mostram, portanto, que o processo de construo experimentado, em um primeiro momento, na alienao. O que queremos dizer com isso? que uma criana pequena no nasce com a capacidade de refletir. No incio de sua vida, ela somente estabelece relaes espontneas com o ambiente que a cerca, sustentadas em conscincias de primeiro grau, pr-reflexivas. s mais tarde, com o processo de relao com o mundo, mediado por outras pessoas, que aprender a refletir, a abstrair3. Sendo assim, no posicional do eu, pois ainda no tem um ego constitudo, est no processo de formao da personalidade e, por isso, acaba por realizar o ser que modelado pelos outros. Vive, nesse momento, seu ser como um tem-que-ser, o eu enquanto uma tarefa a realizar.

    Todo esse processo de mediaes, na medida em que a criana vai adquirindo a capacidade de abstrair, vai sendo apropriado reflexivamente por ela, constituindo a inteligibilidade ou o saber de ser que ter de si mesma (Bertolino, 2001A ). Para que tomemos posio de si, nos posicionemos enquanto sujeito dos nossos atos, necessrio uma conscincia de segundo grau, reflexiva; portanto, atravs da elaborao reflexiva que vamos estabelecendo um entendimento de como agimos e sentimos, de como pensamos sobre as coisas que nos cercam, enfim, de quem ns somos. Qualquer pessoa unifica o seu ser,

    3 Piaget descreve com muito rigor as vrias etapas da construo do pensamento da criana, que vo desde o

    que ele denomina de estgio sensrio-motor at o estgio de operaes formais, demostrando que a capacidade de abstrair s adquirida mais tarde.

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    sua personalidade com amarras reflexivas; essa inteligibilidade, enquanto totalizao reflexiva de nossas aes, estados e qualidades, que fornece os vnculos de sustentao da personalidade, de nosso eu psicofsico (moi).

    Como vimos, esse processo, em um primeiro momento, vivido de forma alienada, na medida em que o ser da pessoa est na mos dos outros, pois uma criana pequena ainda no tem condies lgicas, nem psicolgicas de ter autonomia, pois ainda no tem um eu constitudo e as primeiras reflexes que vai estabelecendo so espontneas. Mas aos poucos, a ampliao do seu leque de relaes, que vai expandindo pouco a pouco, para alm do ambiente familiar ou institucional, dialetizando os valores e a inteligibilidade social, tambm, vai contribuindo para a aquisio da capacidade dela realizar reflexes crticas, elaboraes reflexivas e, com isso, relativizar o processo de mediaes at ento estabelecido e de, finalmente, tomar o seu ser em suas mos. o momento do chamado nascimento existencial4, que se viabiliza quando a criana rompe a placenta social e nasce para o mundo autnomo. Supera o dever-ser para situar-se no horizonte do poder-ser, quer dizer, no vive mais seu ser como tarefa, mas como um conjunto de possibilidades, cuja realizao depende dela, bem como da situao em que estiver inserida.

    Para resumir, pudemos observar que ningum nasce determinado a priori: a personalidade resultante de um processo histrico de construo do ser, realizado atravs do jogo dialtico entre a objetividade (outros, sociedade, materialidade) e a subjetividade (o sujeito, com suas emoes, seu imaginrio, suas aes, suas qualidades), demostrando que, no homem, a existncia precede a essncia.

    Concluso As concepes da fenomenologia de Husserl e Heidegger, do

    existencialismo de Kierkegaard e da dialtica de Hegel e Marx, retrabalhadas e superadas por Sartre atravs de sua prpria ontologia e antropologia, forneceram o substrato necessrio para se construir uma nova psicologia, que estabeleceu,

    4 Termo tambm utilizado pelo Psicodrama.

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    definitivamente, um corte epistemolgico, metodolgico e terico com a psicologia emprica e seus impasses, bem como com a psicanlise freudiana e sua lgica pautada no determinismo psquico, expresso em noes como inconsciente, represso, etc, que o existencialismo sempre considerou inaceitveis.

    Nesse horizonte, Sartre elaborou um conjunto de arcabouos terico-metodolgicos que permitiram alcanar uma nova proposta de inteligibilidade da dimenso psicolgica do indivduo, perpassada por concepes fundamentais tais como - o homem como um ser-no-mundo; o homem enquanto um ser temporal, histrico; a dialtica da relao eu/outro, indivduo/sociedade, subjetividade/objetividade; o homem como projeto e desejo de ser, como alienao e liberdade enfim, aspectos que redundaram em sua acepo da personalidade como um processo de construo, onde a existncia precede a essncia, o que coloca o homem como sujeito de seu ser.

    Dessa forma, a psicologia existencialista, conforme formulada por Sartre, fornece subsdios necessrios para a implementao de uma nova prtica em psicologia, inclusive na rea clnica. Essa inteligibilidade histrica e dialtica da dimenso psicolgica do homem fundamental para viabilizar uma psicologia cientfica que se inscreva, definitivamente, em um projeto de transformao da realidade social.

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    i Esse texto foi publicado em verso reduzida com o ttulo Dialogando com o Existencialismo, na revista Psicologia Brasil (ano 3, pag. 19-26, 2005).

    ii Psicloga, Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Especialista em Psicologia Clnica (CRP-12), Mestre em Educao (UFSC), Doutora em Psicologia Clnica (PUC/SP), com Formao em Psicologia Existencialista pelo NUCA (Ncleo Castor Estudos e Atividades em Existencialismo Florianpolis).