Subjetividade Personalidade Identidade

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Subjetividade, individualidade, personalidade e identidade: concepes a partir da psicologia histrico-cultural* Flvia Gonalves da SilvaNa psicologia, termos como subjetividade, individualidade, personalidade e identidade so comumente usados seja para se referir ao objeto de estudo dessa cincia, seja para designar processos e/ou resultados que compem ou auxiliam na compreenso do objeto da cincia psicolgica. Na psicologia histrico-cultural (para alguns a psicologia scio-histrica), que tem em seus fundamentos terico-metodolgicos as produes de Vigotski, Leontiev, Luria e outros autores soviticos, o objeto de estudo a conscincia, mas, para compreend-la, necessrio considerar os processos que a constituem e fazem com que seja constituda. Entre estes esto a subjetividade, a individualidade, a personalidade e a identidade. Nas produes de autores brasileiros, que buscam na psicologia histricocultural seus fundamentos, muitas vezes esses termos so utilizados como sinnimos ou so descartados um em detrimento de outro sob a justificativa que um termo retrata melhor a historicidade e a dinamicidade do psiquismo que outro. Mas, afinal, o que vem a ser subjetividade, individualidade, personalidade e identidade? So palavras diferentes que designam a mesma coisa? Ou so palavras diferentes para processos diferentes? Para responder parcialmente a essas questes, buscaram-se fundamentos tericos em Vigotski e Leontiev, que so os autores soviticos mais conhecidos e estudados no Brasil (assim como Luria) e que usualmente referendam as produes brasileiras da vertente histrico-cultural.* Texto extrado parcialmente da tese de doutoramento, defendida no Programa de Estudos PsGraduados da PUC-SP com financiamento do CNPq e CAPES. ,

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Muitos psiclogos utilizam atualmente o termo subjetividade, mesmo aqueles que buscam os pressupostos terico-metodolgicos na psicologia histrico-cultural, com as mais diferentes definies, sem um consenso sobre o que se entende, de fato, por ela. Geralmente, subjetividade entendida como aquilo que diz respeito ao indivduo, ao psiquismo ou a sua formao, ou seja, algo que interno, numa relao dialtica com a objetividade, que se refere ao que externo. compreendida como processo e resultado, algo que amplo e que constitui a singularidade de cada pessoa. A ideia de que a subjetividade algo, mas sem definir claramente o que vem a ser esse algo, bastante recorrente, como podemos verificar na citao abaixo:O fenmeno psicolgico deve ser entendido como construo no nvel individual do mundo simblico que social. O fenmeno deve ser visto como subjetividade, concebida como algo que se constituiu na relao com o mundo material e social, mundo este que s existe pela atividade humana. Subjetividade e objetividade se constituem uma outra sem se confundirem (Bock, 2004, p. 6)

Gonzalez Rey (2005) afirma que a subjetividade a categoria-chave para a compreenso do psiquismo, definindo-a como um sistema complexo capaz de expressar atravs dos sentidos subjetivos a diversidade de aspectos objetivos da vida social que concorrem em sua formao (p. 19). Em outro texto, o autor afirma:A subjetividade representa um macroconceito orientado compreenso da psique como sistema complexo, que de forma simultnea se apresenta como processo e como organizao. O macroconceito representa realidades que aparecem de mltiplas formas, que em suas prprias dinmicas modificam sua autorganizao, o que conduz de forma permanente a uma tenso entre os processos gerados pelo sistema e suas formas de autorganizao, as quais esto comprometidas de forma permanente com todos os processos do sistema. A subjetividade coloca a definio da psique num nvel histrico-cultural, no qual as funes psquicas so entendidas como processos permanentes de significao e sentidos. O tema da subjetividade nos conduz a colocar o indivduo e a sociedade numa relao indivisvel, em que ambos aparecem como momentos da subjetividade social e da subjetividade individual. (Gonzalez Rey, 2001, p. 1)170Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

Apesar das duas concepes acima destacarem a historicidade e o carter dialtico da subjetividade em relao objetividade, pressuposto j contido nas ideias de Leontiev, Gonzalez Rey que oferece uma definio mais clara do termo. No entanto, tal definio apresenta algumas diferenas na concepo de subjetividade defendida por Leontiev. Segundo Leontiev (1978b), subjetividade refere-se ao processo pelo qual algo se torna constitutivo e pertencente no indivduo; ocorrendo de tal forma que esse pertencimento se torna nico, singular. Nas palavras do prprio autor:1A tese de que o reflexo psquico da realidade sua imagem subjetiva indica que a imagem pertence ao sujeito real da vida. Mas o conceito de subjetividade da imagem no sentido de seu pertencimento ao sujeito da vida, implica a indicao de sua atividade. (p. 46) Por isso, o conceito de subjetividade da imagem inclui o conceito de parcialidade do sujeito. (...) Alis, muito importante destacar que essa parcialidade est objetivamente determinada e que se expressa no na inadequao da imagem (ainda que tambm possa expressar-se nela), mas em que esta permite penetrar ativamente na realidade. Dito de outro modo, a subjetividade no nvel do reflexo sensorial no deve ser compreendida como um subjetivismo, mas como sua subjetualidade, isto , seu pertencimento ao sujeito ativo (p. 46-47)2 A funo de situar o homem na realidade objetiva e transform-la uma forma de subjetividade. (p. 74) Posto que se partirmos do pressuposto que as influncias externas provocam diretamente em ns, em nosso crebro, a imagem subjetiva, imediatamente surge a questo de como essa imagem parece existir fora de ns, fora de nossa subjetividade, ou seja, nas coordenadas do mundo exterior. (p. 102)

Optou-se por colocar vrias citaes, mesmo que extensas, para melhor referendar a posio aqui defendida em relao subjetividade. Em todas elas, Leontiev aponta que a subjetividade o que permite a particularidade do indivduo, seja nas esferas constitutivas das funes psquicas, da atividade, da conscincia, seja nas da prpria personalidade.1 Todos os trechos em que a palavra subjetividade aparece na obra Actividad, consciencia e personalidad foram transcritos no presente texto e traduzidos pela autora. 2 As tradues de todas as citaes so de responsabilidade nossa.

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O fato de a subjetividade referir-se quilo que nico e singular do sujeito no significa que sua gnese esteja no interior do indivduo. A gnese dessa parcialidade est justamente nas relaes sociais do indivduo, quando ele se apropria (ou subjetiva) de tais relaes de forma nica (da mesma maneira ocorre o processo de objetivao). Ou seja, o desenvolvimento da subjetividade ocorre pelo intercmbio contnuo entre o interno e o externo, relao essa que Vigotski (1995) descreve quando se refere gnese das funes psicolgicas superiores.3 Desse modo, subjetividade no categoria-chave para a compreenso do psiquismo, como afirma Gonzalez Rey, mas um processo que deve ser considerado na constituio do psiquismo, visto que ele no o psiquismo em si. Em sntese, subjetividade o processo de tornar o que universal singular, nico, isto , de tornar o indivduo pertencente ao gnero humano. Antes de prosseguir, importante esclarecer o que se entende por universal, particular e singular ou os processos de universalidade, singularidade e particularidade. A universalidade refere-se s possibilidades construdas pelo gnero humano e que podem ser apropriadas pelo indivduo, o que permite aos homens produzirem seus meios de satisfao das necessidades, apropriarem-se desses meios por eles produzidos e do conhecimento decorrente dessa atividade, tornando-os rgos de sua individualidade, transformando-os em seu corpo inorgnico e em condio de sua existncia. A singularidade o que distingue um homem de outros, o que o torna nico na ontognese humana. A singularidade produto da histria das condies sociais e materiais do homem, a forma como ele se relaciona com a natureza e com outros homens. Conforme a complexificao dessas relaes (que foram perdendo o carter eminentemente imediato para mediato), o indivduo se distancia das relaes imediatas, apropria-se das mediaes e objetiva outras. por isso que o homem s se individualiza, por meio da subjetividade, na relao com outros homens. A forma como indivduo percebe e representa a realidade possibilita a construo e a atribuio de significado s suas apropriaes e objetivaes,3 Todas as funes psquicas superiores esto relacionadas com a interiorizao da ordem social, que so o fundamento da estrutura social da personalidade. Sua composio, estrutura gentica e modo de ao, em uma palavra, toda a sua natureza social; inclusive ao converter-se em processos psquicos continuam sendo quase sociais (Vigotski, 1995, p. 151).

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produzindo, a partir das relaes sociais, sentidos a essas (o contedo sensvel, o significado e o sentido pessoal para Leontiev) de maneira nica; a sua singularidade, que construda pela mediao do particular entre o singular e o universal. A particularidade constitui as mediaes que determinam a singularidade e a universalidade e concretizada na singularidade. O indivduo (singular) apropria-se do corpo inorgnico e transforma-o numa possibilidade de se desenvolver plenamente (universalidade). Cada sociedade oferece condies materiais especficas para que os seus membros possam se desenvolver e essas condies se referem particularidade.Ora, dado que a relao do homem com a espcie humana , desde o incio, formada e mediatizada por categorias sociais (como trabalho, linguagem, intercmbio, etc.); dado que, por princpio, no pode ser muda, mas se realiza apenas em relaes e vnculos que operam em nvel da conscincia; dado isso, tem lugar no interior do gnero humano, que a princpio tambm um ente que existe apenas em-si, realizaes parciais concretas que, no desenvolvimento da conscincia genrica, assumem o lugar desse em-si precisamente atravs de sua parcialidade e particularidade concreta. Ou seja: a genericidade universal biolgico-natural do homem, que existe em-si e que deve continuar ineliminavelmente a persistir como em-si, s se pode realizar como gnero humano na medida em que os complexos sociais existentes, precisamente em sua parcialidade e particularidade concreta, faam sempre com que o mutismo da essncia genrica seja superado pelos membros de tal sociedade, uma superao que os torne conscientes, no quadro desse complexo, da sua genericidade enquanto membros desse complexo. (Lukcs, 1979, p.145)

As categorias singular-particular-universal no podem ser entendidas em si, mas apenas na relao de uma com as outras. No se pode perder de vista nenhuma dessas categorias, nem utiliz-las de modo equivocado, apesar dos equvocos ocorrerem em duas situaes:O primeiro refere-se delimitao do que seriam os polos extremos da relao singular-particular-universal. A categoria de sociedade algo mais imediatamente percebido do que a categoria de gnero humano. Nessa sequncia de raciocnio baseada na obviedade, na imediaticidade do que perceptvel, a relao indivduo-sociedade passa a ser relao a ser considerada nas anlises, como se correspondesse relao singular-universal. Obviamente, como consequnciaPsic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

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imediata dessa escolha, a categoria de gnero humano fica descartada. Como esse processo impulsionado pelo bvio, esse descartar nem chega a ser percebido por muitos. O segundo erro refere-se ao fato de que a realidade da categoria de indivduo e de sociedade concebida como sendo aquilo que est sendo manifestado, aquilo que se pode ver, medir, observar, de imediato. Como estamos na sociedade de classes, os polos da relao indivduo-sociedade se mostram necessariamente antagnicos, j que este antagonismo um reflexo das relaes sociais de produo que servem subordinao e domnio a sociedade de classes. Nesse modo em que o raciocnio fica restrito ao imediatamente dado, s meras manifestaes fenomnicas, a vida do homem singular vista como algo contraposto totalidade social. E as mediaes sociais, que, na sociedade de classes so alienantes e alienadoras so esquecidas nessa luta lgico-formal do ou...ou, isto , de um lado o indivduo e do outro lado a sociedade, como se esta pudesse ser eliminada para que aquele pudesse concretizar-se. (Oliveira, 2001, p.18)

Assim, a subjetividade enquanto processo de constituio do psiquismo possibilita ao homem apropriar-se das produes da humanidade (universalidade), a partir de determinadas condies de vida (particularidade), que constituem indivduos nicos (singularidades), mesmo quando compartilham a mesma particularidade. Feita essa exposio, sigamos agora para a individualidade. O termo individualidade, assim como subjetividade, refere-se ao indivduo. Para Leontiev (1978b), a constituio desse indivduo ocorre por meio de elementos da filo e da ontognese, da integrao e do desenvolvimento de caractersticas herdadas geneticamente e adquiridas socialmente desde os primeiros dias de vida.O indivduo inteiro um produto da evoluo biolgica cujo transcurso opera-se no somente no processo de diferenciao dos rgos e funes, mas tambm de sua integrao, de seu ajuste recproco. (...) O indivduo antes de tudo uma formao genotpica. Mas o indivduo no apenas isso, sua formao contnua como sabido na ontognese, durante o curso da vida. Por isso, na caracterizao das mesmas que se formam ontogeneticamente. (p. 136).

Caractersticas naturais (herdadas biologicamente) como constituio fsica, modo de funcionamento do sistema nervoso, emoes, a dinmica das necessidades biolgicas, pertencem ao indivduo e vo se singularizando e diferenciando-se de outros ao longo de seu desenvolvimento. Apesar da base inata, esses aspectos174Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

se modificam nos e por meio dos processos de objetivao e apropriao da realidade e assim sendo pela atividade do indivduo sendo produtos da integrao da evoluo biolgica e ontolgica, como Leontiev sinaliza acima. A individualidade refere-se a essas caractersticas naturais que constituem todo o indivduo e que servem de base para o desenvolvimento da singularidade e do psiquismo como um todo. Como podemos perceber acima, Leontiev no menciona o termo individualidade, e no foi encontrado na obra Atividade, Conscincia e Personalidade nenhuma referncia a ele. Nem mesmo nas obras de Vigotski esse termo aparece (pelo menos no frequentemente como personalidade). No Brasil, entre os estudiosos da teoria histrico-cultural, o termo individualidade ganha maior notoriedade a partir do estudo de Duarte (1999), publicado na obra A individualidade para-si. Nela, o autor busca compreender o que vem a ser a individualidade a partir da ontologia marxiana compreendendo-a como o produto e ao mesmo tempo o processo, da relao universalidade, particularidade e singularidade, diferenciando a individualidade em-si como aquela que consequncia de apropriaes alienadas, e individualidade para-si, que se refere ao indivduo que consegue se apropriar das produes mais elaboradas do gnero humano. Em 2004, Duarte organiza uma coletnea de textos que versavam sobre a Crtica ao fetichismo da individualidade, em que vrios autores, inclusive Duarte, expem como na sociedade atual (capitalista) as explicaes e responsabilidades para os fatos contemporneos recaem nas individualidades que so fetichizadas,4 desconsiderando as determinaes histricas, sociais e a sociedade dividida em classes sociais. Nessa obra, a individualidade entendida, de forma geral, como aquilo que se refere singularidade do indivduo, sem qualquer distino entre subjetividade e personalidade. importante destacar que no era objetivo do autor fazer tal distino, tampouco poderia ser sua preocupao, tendo em vista que tais diferenciaes se referem psicologia e no educao, objeto central das investigaes de Duarte.4 O termo fetichismo refere-se a atribuir a objetos materiais caractersticas que foram construdas socialmente, mas so percebidas como naturais. Objetos fetichizados so aqueles aos quais so conferidos fora e poderes como algo natural deles, mas que no correspondem efetivamente realidade concreta.

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No entanto, entende-se que no campo da psicologia a compreenso desses diferentes processos/produtos no se refere ao mero preciosismo terminolgico, mas preciso terica necessria para uma rigorosa e coerente anlise dos fenmenos que se referem a cincia psicolgica, no caso, de vertente histrico-cultural. Retomando as discusses feitas at o momento, subjetividade se refere ao processo de apropriao da realidade objetiva, sendo processo bsico para a constituio e compreenso do psiquismo, enquanto a individualidade a herana biolgica de toda pessoa, que a base para o processo de subjetivao e construo de todo o psiquismo. J a personalidade se refere complexificao da individualidade de forma superior, cuja base a individualidade, sendo a gnese e o desenvolvimento histrico-sociais o tecido que possibilita seu desenvolvimento (alm da atividade e da conscincia, que so as outras categorias centrais, junto com a personalidade, para a compreenso do psiquismo).Dessa forma, no se nasce personalidade, chega-se a ser personalidade por meio da socializao e da formao de uma endocultura, atravs da aquisio de hbitos, atitudes e formas de utilizao de instrumentos. A personalidade um produto da atividade social e suas formas podero ser explicadas somente nestes termos. (Leontiev, 2004, p. 129)

Martins (2001) afirma que a personalidade uma objetivao da individualidade, a sua expresso mxima, mais complexa. um processo resultante da relao do indivduo com o mundo, tendo origem endopsquica, que engloba as particularidades das funes psicolgicas superiores e do temperamento, e a exopsquica, que abarca as experincias vividas pelo indivduo na sociedade. claro que h uma relao de interdependncia do endopsiquismo e do exopsiquismo, j que a gnese das funes psicolgicas superiores social, e a dimenso biolgica tambm determina o mbito social;5 mas a gnese da personalidade, apesar da dimenso biolgica tambm ser dela constitutiva, social. A personalidade um processo resultante de relaes entre as condies objetivas e subjetivas do indivduo, que, inserido numa sociedade (e essa a condio fundamental), singulariza-se e diferencia-se ao ponto de ser nico.5 A premissa marxiana que as circunstncias fazem os homens tanto como os homens fazem as circunstncias (Marx e Engels, 1984, p. 49) perpassa toda a compreenso das categorias atividade, conscincia e personalidade.

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De acordo com Martins (ibid., p. 107) em sua gnese, a personalidade resulta de relaes dialticas entre fatores externos e internos sintetizados na atividade social do indivduo. Por fatores externos a autora entende as condies sociais (materiais) do indivduo, desde suas relaes mais imediatas com outros indivduos quelas que se estabelecem com o gnero humano. Os fatores internos (as condies subjetivas) se referem materialidade biolgica e psicolgica do indivduo, que se desenvolveram em decorrncia da atividade social deste (ibid.). Nesse sentido pode-se entender a personalidade tal como Sve (1979, p. 390) prope: um sistema de processos objetivos e subjetivos, resultado da luta entre indivduo e sociedade, em que o primeiro se diferencia do segundo a partir da sua atividade e de seu modo de existncia, marcada na contemporaneidade pela luta de classes sociais. A personalidade um produto da atividade individual condicionada pela totalidade social (Martins, 2001, p. 114). Dessa forma, pela atividade do indivduo que possvel compreender a gnese e o desenvolvimento da personalidade, sendo a unidade de anlise psicolgica do processo de personalizao6 (Leontiev, 1978b e Sve, 1979). Leontiev (1978b) reafirma propositalmente, em vrias partes de seu texto, a exigncia terico-metodolgica de ter a atividade como unidade de anlise para a compreenso da personalidade, pois[...] no possvel obter nenhuma estrutura da personalidade a partir de uma seleo de algumas peculiaridades psquicas ou psicossociais do homem; a base real da personalidade do homem no est em programas genticos postos nele, nem profundezas de seus dotes e inclinaes inatas, tampouco nos hbitos, conhecimentos e habilidades que adquire, includos os profissionais; mas no sistema de atividades que cristaliza esses conhecimentos e habilidades. (...) ... preciso, a partir do desenvolvimento da atividade, de seus tipos e formas concretas e dos vnculos que estabelecem entre eles, enquanto seu desenvolvimento modifica radi6 fundamentalmente nesse ponto (da atividade como unidade de anlise) que h divergncias entre os estudos desenvolvidos por Leontiev e seus colaboradores e seguidores com outros autores soviticos como Bozhovich. Dos autores ocidentais, Van der Veer e Valsiner (1996) e Gonzalez Rey (1995) so os mais conhecidos no Brasil que questionam a demasiada importncia dada por Leontiev funo da atividade no desenvolvimento da conscincia e da personalidade. Duarte (2000) traz alguns argumentos em defesa da complementariedade dos estudos de Vigotski e Leontiev, mas ainda necessrio no Brasil pesquisas que contestem as posies defendidas por Gonzalez Rey e Van der Veer e Valsiner, entre outros.

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calmente a significao dessas premissas. Consequentemente, a investigao no deve estar orientada a partir dos hbitos, habilidades e conhecimentos adquiridos nas atividades que os caracterizam, mas no contedo e nos vnculos das atividades, na busca do como, mediante que processos se realizam e so possveis. (p. 145)

Se a atividade a unidade de anlise, torna-se patente o estudo do processo de sua constituio, ou seja, preciso conhecer quais so as necessidades, os motivos e os fins que a engendram, alm da relao hierrquica estabelecida entre as atividades, o que implica identificar e analisar qual (ou quais) a atividade principal naquele momento da vida do indivduo. A necessidade sempre necessidade de algo (seja de um objeto material ou ideal) que foi produzida na atividade. Ao longo do desenvolvimento da atividade, as relaes (os vnculos) que o indivduo vai estabelecendo entre necessidades e seu objeto se dinamizam, de tal forma que se torna difcil conhecer qual o objeto que satisfaz aquela necessidade. Mas, para se entender a atividade, preciso conhecer essa necessidade, que se objetiva justamente nesse processo de descoberta do objeto, e este (objeto) descoberto (que corresponde a uma necessidade) ganha a funo de estimular e orientar a atividade, ou seja, tornase um motivo. Assim, no h atividade sem motivo, que pode at ser desconhecido pelo prprio indivduo, mas que nesses casos encontra-se no reflexo psquico como um tono emocional, conferindo a positividade e/ou negatividade a satisfao das necessidades. Logo, o estudo das emoes pressupe o estudo da atividade. Sem emoo, no haveria necessidade como elemento ativo na conscincia, pois tambm no existiria a motivao, a mobilizao nem a regulao da atividade (Leite, 1999). As reaes emocionais tm sua materialidade nas funes cerebrais, mas so condicionadas e reguladas pela experincia individual do homem.[...] a emoo est relacionada necessidade objetiva de suportar a situao que se torna crtica aguent-la, domin-la, isto , experimentar emocionalmente algo. Logo, a emoo representa uma atividade emotiva de grande intensidade, que contribui para a reorganizao do mundo ntimo da personalidade e para a consecuo do equilbrio necessrio. (Petrovski et al, 1989, p. 370)

Leontiev ainda aponta que o desconhecimento do motivo pode ocorrer178Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

[...] como resultado da diviso de funes dos motivos, que se opera durante o desenvolvimento da atividade humana. Essa diviso ocorre porque a atividade se torna necessariamente polimotivada, isto , responde ao mesmo tempo a dois ou vrios motivos (1978b, p. 157).

No entanto, a tomada de conscincia do motivo da atividade surge somente no nvel da personalidade e que reproduz de forma constante durante o curso de seu desenvolvimento (ibid., p. 157). Isso porque os princpios gerais que orientam o processo de desenvolvimento da personalidade so, justamente, 1) as especificidades dos vnculos do indivduo com o mundo; 2) o grau e organizao da hierarquia de atividades em relao aos motivos e 3) o grau de subordinao desta organizao conscincia sobre si e autoconscincia (Martins, 2001, p. 149). O primeiro princpio refere-se relao entre os motivos, fins e necessidades da atividade que o indivduo engendra em seu modo de vida, especialmente a qualidade desses vnculos (desde os aspectos quantitativos aos contedos desses vnculos, que esto na dependncia da atividade). O segundo princpio, por referir-se hierarquia das atividades em relao aos motivos, implica o estudo da estrutura motivacional da personalidade. A compreenso desses processos demanda a identificao daquelas atividades que tm funo predominante no desenvolvimento do indivduo, ou seja, da atividade principal. a atividade principal a responsvel pelas mudanas mais significativas dos processos psquicos e da personalidade. A atividade principal tem por caracterstica o fato de no seu interior se originarem outros tipos de atividade; aquela na qual se formam ou se reorganizam os seus processos psquicos particulares (Leontiev, 1978a, p. 293), mas no exclusivamente nela; e dessa atividade que dependem as mudanas psicolgicas fundamentais relacionadas personalidade. Assim, podemos sintetizar a atividade dominante como aquela cujo desenvolvimento condiciona as principais mudanas nos processos psquicos (...) [do indivduo] e as particularidades psicolgicas da sua personalidade num dado estdio de seu desenvolvimento (ibid.). Com o enriquecimento e a complexificao da atividade, ela pode entrar em contradio com os motivos que a geraram, particularmente em determinados perodos do desenvolvimento (Leontiev, 1978b). O distanciamento entre os motivos e os fins da atividade principal modifica toda a relao hierrquica da atividade e, consequentemente, da estrutura motivacional da personalidade,Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

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o que leva o indivduo s chamadas crises no seu desenvolvimento. Leontiev, em suas obras publicadas em lngua portuguesa e espanhola,7 no desenvolve estudo muito aprofundado sobre esse tema, mas aponta que ele largamente estudado na psicologia evolutiva e se baseia, fundamentalmente, nas pesquisas de Vigotski sobre o assunto. De acordo com Vigotski (1996), as crises no desenvolvimento so marcadas, fundamentalmente, por trs peculiaridades, sendo a primeira o fato de no haver uma idade definida para que elas ocorram e a dificuldade em identificar o incio e fim das crises. Outra peculiaridade a diminuio no ritmo e rendimento do indivduo em relao a perodos de estabilidade no desenvolvimento, e a terceira se refere ao que Vigotski denomina ndole negativa do desenvolvimento, aspecto esse mais importante do ponto de vista terico, mas tambm o de maior dificuldade de compreenso, segundo o prprio autor. Para Vigotski, essa terceira peculiaridade implica a perda do que foi desenvolvido anteriormente pelo indivduo e que o caracterizava (naquela fase do desenvolvimento), para que algo novo possa surgir. Na verdadeA criana mais perde o que conseguiu antes do que adquire algo novo. O advento da idade crtica no se distingue pelo aparecimento de novos interesses, de novas aspiraes, de novas formas de atividade, de novas formas de vida interior. A criana, ao entrar nos perodos de crises, se distingue melhor por traos contrrios: perde os interesses que antes orientavam toda sua atividade, que antes ocupava a maior parte de seu tempo e ateno, e agora diria que esto vazias as formas de suas relaes externas, assim como sua vida interior. (1996, p. 257)

Isso significa que os motivos e os fins da atividade principal entram em conflito, sendo necessria uma reorganizao hierrquica da atividade. Um exemplo a crise dos trs anos8 na qual o negativismo se evidencia quando a criana no tem mais interesse em cumprir uma determinada ordem ou tarefa. Para Vigotski (1996) a negao da criana no se refere ao contedo em si, mas pessoa que a solicitou, sendo uma forma de a criana mostrar para si e para7 Desenvolvimento do psiquismo e Actividad, consciencia y personalidad. 8 Vigotski, (1996/1932) descreve e analisa seis crises ao longo do desenvolvimento do indivduo: a crise ps-natal (primeiro ano de vida), a crise de um ano (infncia precoce), a crise dos trs anos (idade pr-escolar), crise dos sete anos (idade escolar), crise dos treze anos (puberdade) e crise dos dezessete anos (idade adulta).

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outros sua independncia. Ou seja, o negativismo est sempre relacionado com o fato de que a criana motive seus atos no por contedo da prpria situao, mas por suas relaes com outras pessoas (ibid.). Na verdade, as crises se referem s relaes sociais da criana com os indivduos que a rodeiam. Mas, o autor ainda completa que por trs de cada sintoma negativo se oculta um contedo positivo que consiste, quase sempre, num passo de uma forma nova e superior (ibid., p. 259) no desenvolvimento. No caso da crise dos trs anos, ela possibilita melhor compreenso da realidade e principalmente de si, tanto que, em geral, nessa idade que a criana deixa de usar o prprio nome para referir a si mesma e passa a utilizar a primeira pessoa do pronome pessoal. Outro aspecto sobre as crises do desenvolvimento analisadas por Vigotski importante: todas elas no ocorrem, necessariamente, para todos os indivduos. As crises dependem do contedo da atividade e no da idade e do desenvolvimento biolgico do indivduo. Como afirmou Leontiev (1978a, p. 296)Na realidade, estas crises no acompanham inevitavelmente o desenvolvimento psquico. O que inevitvel no so as crises, mas as rupturas, os saltos qualitativos no desenvolvimento. A crise, pelo contrrio, o sinal de uma ruptura, de um salto que no foi efetuado no devido tempo. Pode perfeitamente no haver crise se o desenvolvimento psquico da criana se no efetuar espontaneamente, mas como um processo racionalmente conduzido, de educao dirigida.

Importante ressaltar que os conflitos entre os fins e os motivos da atividade que resultam na mudana da atividade principal do indivduo ocorrem inmeras vezes at o fim da vida do indivduo, sempre determinada pela sua histria de vida e pelas condies scio-histricas de seu tempo. S para exemplificar algumas situaes, o ingresso ou trmino de um curso superior, a mudana de emprego, uma unio (ou separao) conjugal, a maternidade (ou paternidade), podem ser situaes que alterem a estrutura motivacional do indivduo e a hierarquia da sua atividade, modificando no apenas seu modo de vida, mas tambm propiciando desenvolvimento psicolgico.9 Afinal, como bem pontuou Leontiev (1978b, p. 171):9 Vigotski tinha clareza da continuidade das crises no desenvolvimento, mesmo aps a ltima por ele descrita. Nossa hiptese para a descrio e anlise de Vigotski, como de alguns outros autores, at a adolescncia ou puberdade (entre 14 e 18 anos) por ser nesse perodo que o desenvolvimento da estrutura cerebral (a neuroanatomia) se completa (como o volume e o tamanho dos crtices).

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As hierarquias dos motivos existem sempre, em todos os nveis do desenvolvimento. So elas que criam as unidades relativamente autnomas da vida da personalidade, que podem ser menores ou maiores, desunidas entre si ou entrar em uma nica esfera motivacional.

importante salientar que desenvolvimento psicolgico e cerebral (neuroanatmico e neurofisiolgico) no ocorrem apartados, e, tendo em vista esse aspecto, Vigotski (1996, p. 258) afirma queOs perodos de crises que se intercalam entre os estveis, configuram os pontos crticos, de virada no desenvolvimento, confirmando uma vez mais que o desenvolvimento da criana um processo dialtico em que o passo de um estdio a outro no se realiza por via evolutiva, mas revolucionria.

Aps discorrermos sobre o segundo princpio para o desenvolvimento da personalidade (a hierarquia da atividade e a estrutura motivacional do indivduo) falta discutir o terceiro apontado por Leontiev (1978b) e Martins (2001): a autoconscincia. Para Leontiev (1978b) e Martins (2001), a autoconscincia se refere ao fato de o indivduo poder refletir sobre sua existncia enquanto ser social, pertencente ao gnero humano, compreendendo as possibilidades e limites da genericidade. Vigotski (1996), ao discutir a autoconscincia, o faz pensando no apenas no mbito da qualidade desta em face das possibilidades do gnero humanoO que continua a alterar aps esse perodo a funcionalidade cerebral (a neurofiosiologia e a neuroqumica), como a quantidade e qualidade das sinapses, a dinmica de funcionamento de neurotransmissores, enfim, do metabolismo neuronal como um todo. Esse fato se reflete em caso de pessoas que sofrem de leses cerebrais com alterao na anatomia cerebral: quanto mais jovem a pessoa, em especial crianas, maiores so as probabilidades de reabilitao. Isso porque at os dezessete, dezoito anos, tanto a neuroanatomia como a neurofisiologia e a neuroqumica esto em processo de desenvolvimento; aps a idade mencionada apenas os aspectos referentes funcionalidade cerebral continuam a se desenvolver, o que dificulta a reabilitao. Luria e Leontiev desenvolveram muitos trabalhos com pessoas que sofreram leses cerebrais, principalmente durante a II Guerra e fazem ampla discusso sobre o assunto, bem como a neurologia contempornea. Dessa forma, inquestionvel que o desenvolvimento neuroanatmico implica desenvolvimento neurofisiolgico e neuroqumico, mas, em consonncia com os pressupostos terico-metodolgicos aqui defendidos, essa materialidade do psiquismo no se desenvolve de forma evolutiva, espontnea. determinada (e ao mesmo tempo determina) pelas e nas relaes sociais que o indivduo estabelece com o mundo desde os primeiros momentos de sua vida, ou seja, as relaes sociais so as condies essenciais para que o desenvolvimento cerebral ocorra.

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e de um processo de humanizao mais pleno para o indivduo, mas tambm como condio para que este se humanize. nesse sentido que Vigotski (1996, p. 232) afirma que[...] a autoconscincia no outra coisa que um certo momento no processo do desenvolvimento do ser consciente, um momento inerente a todos os processos de desenvolvimento em que a conscincia comea a cumprir um papel mais ou menos notvel.

A autoconscincia , para Vigotski (ibid.), o fato de o homem ter conscincia de si mesmo como indivduo, de suas capacidades, limites e possibilidades, que a conscincia sobre si, mas tambm de compreender-se na universalidade do gnero humano, determinada historicamente. De acordo com o autor, a personalidade justamente[...] a autoconscincia do homem que se forma justamente at ento: o novo comportamento do homem se transforma no comportamento para si, o homem toma conscincia de si mesmo como de uma determinada unidade (Ibid., p.231).

Como bem sintetizou Martins (2001, p. 147)Entendemos que o nvel de conscincia sobre si fecha-se no mbito da individualidade em-si, da particularidade, enquanto o da autoconscincia, sem preterir o primeiro, o supera, permitindo ao homem a efetivao de sua essncia enquanto um ser que trabalha, consciente, social, universal e livre.

Para Vigotski, tanto quanto para Leontiev (1978b), a personalidade no pode ser desenvolvida, tampouco compreendida, independentemente dos elementos da individualidade, das funes psquicas, das emoes, sentimentos, da conscincia e do modo de vida do indivduo. Nessa perspectiva, a personalidade, para Vigotski (1996), um sistema psicolgico integrado, indissolvel e estvel, mas de forma alguma esttico. A personalidade no poderia ser entendida de forma diferente, pois, como j foi sinalizado, h a relao de interdependncia de todas as esferas constitutivas do psiquismo (as funes psquicas, as emoes, os afetos, o inconsciente, a conscincia) e essa justamente a lei geral do processo de constituio da personalidade. Mesmo para os casos denominados personalidades patolgicas, Vigotski (ibid.)Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

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aponta que essa lei geral de desenvolvimento tambm se aplica, afirmando que as enfermidades da personalidade se manifestam antes de tudo na transformao do papel das diversas funes, da hierarquia de todo seu sistema (ibid., p. 246). Bratus (1990, p. 135), fundamentando-se nesse pressuposto defendido por Vigotski, afirma que[...] os mecanismos psicolgicos so os mesmos para o desenvolvimento normal e patolgico, mas eles funcionam em condies diferentes, que resultam em diferenas qualitativas e, primeira vista, produtos finais incompatveis.10

Mas, e a atividade, nesse processo? Vigotski desconsiderou-a ou a deixou em segundo plano? A resposta : de maneira alguma. verdade que nas obras de Vigotski, no encontramos com frequncia meno atividade, nem mesmo um texto especfico discorrendo sobre ela, como o caso de Leontiev e a parte mais substantiva de sua obra. No entanto, entende-se que Vigotski tinha clareza da atividade como pressuposto fundante do indivduo, em consonncia com a prpria exigncia epistemolgica que utilizava. Vale ressaltar, ainda, que como bem apontou Duarte (2000, p. 164) Leontiev ampliou a estrutura de anlise proposta por Vigotski, estabelecendo uma relao entre a estrutura da atividade humana e a estrutura da conscincia humana. Leontiev (1978b) aponta que necessrio conhecer os elementos constitutivos da conscincia, algo que possvel, entre outros, por meio da apreenso do sentido e significado por meio da linguagem. Segundo Lane (1984), a melhor forma de compreender o indivduo investigar no s a linguagem e o pensamento, mas, tambm, a atividade do sujeito, buscando apreend-lo em sua totalidade, ou seja, em sua indissolvel relao com a realidade objetiva. Outro aspecto importante abordado por Vigotski (1995) a conscincia que o indivduo deve ter de suas aes e atividade para ter melhor e maior controle10 Todo o estudo do autor, na obra aqui utilizada, voltado para a hiptese que nos indivduos que sofrem de alguma enfermidade da personalidade h uma significativa alterao na estrutura motivacional e, consequentemente, na relao dos motivos, fins e necessidades. A partir disso, Bratus (1990) faz vrios estudos sobre as anomalias da personalidade pesquisando pessoas que sofrem de epilepsia e dependncia qumica. Zeigarnik (1981) tambm fez estudo sobre psicopatologia a partir dessa premissa.

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de si, como pode ser observado na anlise do autor sobre o processo de escolha, que denominou de livre arbtrio. Vigotski (1995, 1931, p. 289) afirma que[...] o livre arbtrio no consiste em estar livre dos motivos, mas consiste na tomada de conscincia da criana da situao, tomada de conscincia da necessidade de escolher, qual o motivo que se impe, e que sua liberdade, neste caso dado, como diz a definio filosfica, uma necessidade gnosiolgica.

A tomada de conscincia da situao refere-se justamente insero da atividade num determinado contexto e da necessidade de a criana conhecer os motivos desta para optar por uma escolha. possvel afirmar que assim como para Leontiev (1978b), para Vigotski o desenvolvimento da personalidade se refere ao desenvolvimento da autoconscincia do individuo no sentido mais denotativo da expresso, que implica um sistema psicolgico integrado. No entanto, esse processo s possvel e decorrente da atividade do indivduo. Nesse sentido, a teoria de personalidade vigotskiana, de um modo geral, compatvel com a teoria desenvolvida por Leontiev, sendo que os dois primeiros princpios para o desenvolvimento desse sistema psicolgico, apontado por Martins (2001) as peculiaridades dos vnculos entre o indivduo e a realidade e a organizao e hierarquia da atividade com os motivos , so a base estrutural para o desenvolvimento da terceira, a autoconscincia. Vale ressaltar que, apesar de os dois primeiros serem base para o terceiro, cada um determina e determinado pelo outro, numa constante relao dialtica. Posto isto, a afirmao de Leontiev (1978b) de que a atividade a unidade de anlise para a apreenso da gnese e do desenvolvimento da personalidade patente. De acordo com o exposto, possvel afirmar que se a personalidade fragmentada e alienada, com pouco desenvolvimento de suas possibilidades ante o gnero humano, podemos caracteriz-la como uma personalidade em si alienada, encerrada em atividades abstratas, desenvolvidas na cotidianidade11 do indivduo. Essa proposio vai na mesma direo da tese de individualidade desenvolvida por Duarte (1999), em que defende que uma individualidade11 Por cotidianidade entende-se, de acordo com Heller (1972), que a vida do indivduo inserido historicamente em uma sociedade, ou seja, as formas como esses indivduos singulares agem no mundo. As aes cotidianas no so sinnimas de aes dirias, mas so aquelas que se referem reproduo da sociedade, enquanto as aes no cotidianas so aquelas que so a reproduo do indivduo.

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presa no cotidiano e com poucas (ou com contedo qualitativamente inferior) apropriaes e objetivaes da genericidade humana, uma individualidade em si alienada. Quando o indivduo consegue romper com as esferas cotidianas de sua vida, ou seja, com o conhecimento aparente da realidade, propicia (e ao mesmo tempo resultado) o desenvolvimento de uma individualidade para si, que lhe permite conhecer as multideterminaes de si e da realidade, tendo um corpo inorgnico rico, o que o leva a ser livre e universal, ou seja, ao desenvolvimento da autoconscincia, e, consequentemente, da personalidade para-si. No mbito da autoconscincia, esse processo se reflete, de acordo com Martins (2001), quando o indivduo tem uma relao consciente com os motivos e os fins de sua atividade na relao com o gnero humano. Assim, uma personalidade desenvolvida na direo das mximas possibilidades do gnero humano, que tem nas atividades concretas o principal cerne para seu desenvolvimento, uma personalidade para-si, sendo tambm uma objetivao de uma individualidade para-si. claro que numa sociedade que tem como modo de produo e organizao o capitalismo, as possibilidades para o desenvolvimento de uma individualidade e personalidade para-si esto tolhidas, principalmente para a maioria das pessoas que so desprovidas de condies materiais adequadas e necessrios para o desenvolvimento mais pleno do indivduo. Mas, apesar de restritas, essas possibilidades esto postas e nelas e por elas que se devem planejar as aes, seja de indivduos como profissionais (nas mais diferentes reas de atuao e do saber) e/ou como militantes polticos. A individualidade e a personalidade para-si podem ser, aparentemente, uma exceo no capitalismo, mas Sve (1979) aponta numa hiptese extremamente interessante, o quanto essa exceo pode ser, de fato, aparente. O autor faz essa reflexo reportando-se restrita existncia de gnios na humanidade.No ser j tempo de pr termo vacuidade terica flagrante de uma certa mitologia biolgica do gnio, interrogando-nos sobre a existncia dos grandes homens, das personalidades que se realizaram, no seria a prova de que o estdio de desenvolvimento alcanado pela sociedade torna regra geral, possvel esta autorrealizao, e, se, por consequncia, o fato de a enorme massa dos indivduos permanecerem embotados no advir de que estes so impedidos de se desenvolverem, ao mesmo tempo que tal permitido a outros, devido s relaes sociais186Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

desumanas, no sentido histrico concreto do termo, que anulam, no que lhes respeita, as possibilidades de um desenvolvimento integral implicadas pelo nvel geral das foras produtivas e da civilizao? Os grandes homens, excees de uma poca na exata medida em que a imensa maioria dos outros homens embotada pelas condies sociais, no seria, num certo sentido, os homens normais dessa pica, e no seria, precisamente, a regra comum do embotamento a exceo que seria necessrio explicar? (p. 284)

Sendo regra ou exceo, a constituio de uma personalidade mais plenamente desenvolvida ser decorrente de um conjunto de atividades, com relaes entre os motivos e os fins distintos, mas no divergentes, que correspondam a necessidades humanas, que propiciar o desenvolvimento de uma conscincia que possibilite ao indivduo apreender as determinaes no s aparentes, mas fundamentalmente concretas da realidade. Isso s ser possvel por meio da subjetividade, processo constitutivo de todo o psiquismo, que tem como base material, alm das condies objetivas de vida do sujeito, a individualidade deste, que se constitui pela herana gentica e caractersticas biolgicas, que vo ganhando singularidade ao longo do processo de desenvolvimento, at se complexificar em personalidade, que incorpora, por superao, a individualidade. O ltimo termo proposto para anlise neste artigo de identidade, uma categoria elaborada teoricamente por Antonio da Costa Ciampa na dcada de 1980. Ciampa fazia parte do grupo de pesquisas e estudo coordenado por Silvia Lane, no Programa de Estudos Ps-Graduados da PUC-SP na poca, um dos , principais centros de pesquisa em psicologia social no Brasil e de estudos dos autores soviticos, especialmente Leontiev e Vigotski. A dcada de 1980 foi um dos principais perodos na psicologia brasileira de contestao das abordagens burguesas na psicologia, que no consideravam as necessidades e peculiaridades sociais e histricas da sociedade brasileira (Carone, 2007). O grupo coordenado por Lane buscava acompanhar e elaborar teorias psicolgicas que fossem crticas realidade social, e parte desse grupo, inclusive Lane, encontrou nas obras de Leontiev e Vigotski caminhos para a almejada criticidade, especialmente por estes autores usarem como fundamento a epistemologia marxista. De Leontiev, Lane e parte do grupo se apropriaram das categorias atividade e conscincia, expostas na obra Atividade, Conscincia e Personalidade. No entanto, a categoria personalidade foi deixada de lado por esse grupo por, naquelePsic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

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momento, entenderem que o termo personalidade estava muito atrelado a concepes burguesas, mecanicistas e a-histricas do psiquismo, que individualizam em demasia as formaes psquicas, privilegiando a formao do eu como algo que emanava do prprio indivduo, mesmo com as interferncias do meio social. Esse grupo buscava uma compreenso de eu histrica e socialmente determinada, que se modificava com as alteraes do meio social em que o individuo estava inserido, e que no fosse esttico ou pouco dinmico, como as teorias psicolgicas da poca postulavam. Por essa compreenso, e pelo fato de a personalidade ser um termo to caro psicologia, Ciampa, orientando de Lane, elabora a categoria identidade como substituto personalidade, mas que explicava (e explica) a constituio do eu de forma dinmica, numa abordagem psicolgica mais crtica. A partir da publicao do livro A estria do Severino e a histria da Severina de Ciampa, em 1987, quase todos os estudos voltados para a constituio do eu coordenados por Lane, em seu grupo conhecido como aquele que estudava a psicologia scio-histrica, adotaram a categoria identidade. Dentro das epistemologias crticas, Ciampa no usou os fundamentos marxistas na sua elaborao terica. De Marx, Ciampa (1987) usa a compreenso de atividade, no sentido de atividade vital trabalho que promoveu o desenvolvimento da humanidade e o ncleo do capitalismo, por meio da explorao do trabalho. As bases epistemolgicas da categoria identidade esto especialmente em Habermas, mas tambm a menes a Hegel, Bosi e Stanislaviski. Para Ciampa (ibid.) identidade metamorfose, um processo de constituio do eu que promove constantes mudanas pelas condies sociais e de vida que o indivduo est inserido. Nas palavras de Ciampa (ibid., pp. 241-242)[...] identidade identidade de pensar e ser (...). O contedo que surgir dessa metamorfose deve subordinar-se ao interesse da razo e decorrer da interpretao que faamos do que merece ser vivido. Isso busca de significado, inveno de sentido. autoproduo do homem. vida.

No processo de constituio da identidade, os papis que o indivduo assume ao longo de sua vida fazem parte de sua construo, partindo de uma identidade pressuposta (o que o outro ou a prpria pessoa idealizava em relao ao desempenho daquele papel), a vivida e a que ser vivida enquanto projeto de vida. Assim, a identidade posta e reposta continuamente, pois o indivduo188Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

vivencia ao mesmo tempo vrios papis, o que o torna um personagem da vida, que sempre se metamorfoseia de acordo com as condies histricas e sociais a que est submetido (ibid.).Em cada momento da minha existncia, embora eu seja uma totalidade, manifestase uma parte de mim como desdobramento das mltiplas determinaes a que estou sujeito. Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pai; com meu pai, como filho; nunca compareo frente aos outros apenas como portador de um nico papel, mas como uma personagem (chamada por um nome, Fulano, ou por papel, o Papai, etc), como uma totalidade ... parcial. O mesmo pode ser dito de meu filho e de meu pai (ibid., p. 170)

O autor, alm da categoria atividade (entendida na verdade como trabalho), tambm utiliza a categoria conscincia, pois, o mtodo para o estudo da identidade foi a narrativa, em que s se tem acesso a elementos que so conscientes, que para Ciampa (1987) se refere dimenso dos sentidos e significados. Deixando de lado as concepes que Vigotski e Leontiev apresentaram em suas obras sobre sentidos e significados, Ciampa buscou a teoria de Habermas, especialmente sua elaborao terica do agir comunicativo, para explicar como esses contedos participavam da formao da identidade. A partir de Habermas, Ciampa (ibid., p. 212) afirma que a reproduo da vida precisa ser mediatizada pela interpretao do que merece ser vivido, sob as condies dadas, sendo um dos elementos bsicos para compreender o agir comunicativo. Ciampa ainda prossegue afirmando que[...] a despeito de diferentes pontos de partida sobre como a humanidade garantiu seu desenvolvimento esquematicamente, o trabalho ou a socializao (dinmica pulsional) , h como que um princpio norteador levando a espcie a se elevar acima da existncia animal, ou seja, pode-se perceber, atravs dos dois pensamentos comparados [de Marx e Freud], um movimento progressivo de humanizao do homem, graas a um sistema de autoconservao da espcie (sociedade ou cultura), que no fundo traduzvel pelo interesse da razo. (p. 209)

O interesse da razo em garantir a autoconservao da espcie humana se explica porque a reproduo mediatizada pela interpretao do que merece ser vivido, e esse merecer est vinculado autoconservao e determinado pelas condies de vida do indivduo.Psic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

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O autor, nos seus estudos, trabalhou com processos de metamorfoses de identidade que eram conscientes para o indivduo, mas no descartou a possibilidade de muitos contedos envolvidos na metamorfose estarem no inconsciente, o que exigiria uma interpretao das profundezas. Sobre esse aspecto, Ciampa (ibid., p. 195) afirma que a[...] narrativa autobiogrfica analisada ficou praticamente restrita s representaes conscientes, o que significa que a psicanlise (com seus desenvolvimentos) no possa ser utilizada no estudo da identidade; pelo contrrio. Especialmente uma psicanlise livre dos perigos do mecanicismo, do a-historicismo (e de certo positivismo) tem muito a contribuir.

Essa possibilidade de aceitar as contribuies da psicanlise, nas condies acima apontadas, explica-se por Habermas ver nessa teoria uma forma de explicar alguns elementos referentes ao psiquismo. No entanto, as condies exigidas por Ciampa em relao psicanlise no so possveis sem que a psicanlise deixe de ser ela mesma. O ncleo terico da psicanlise, de qualquer vertente, o inconsciente constitudo por impulsos libidinais. So esses impulsos que determinam a vida psquica do indivduo, a partir de interferncias do meio social. H ainda outros elementos contraditrios da categoria identidade que foram identificados por Castro (2009),12 como o idealismo hegeliano e algumas concepes da fenomenologia, especialmente se considerarmos as colocaes de Marx e a inteno de dar identidade um carter material. No entanto, aventa-se que os objetivos de Ciampa no eram construir uma teoria marxista, mas crtica realidade social brasileira em face das demandas possvel de serem atendidas pela psicologia. Como afirma Carone (2007, p. 63)[...] o programa de Psicologia Social, sob a batuta de Slvia Lane, estava muito mais preocupado com as mudanas de contedo da Psicologia Social e suas decorrncias metodolgicas, ou seja, com mudanas ontolgicas, epistemolgicas e polticas,12 O autor, nesse artigo, faz uma crtica ao modo como Codo, Lane e demais do grupo denominado scio-histrica compreendem o psiquismo, partindo das concepes mecanicistas de Leontiev e idealistas da categoria identidade e conscincia, que para ele entendida como representao. Apesar da pertinncia da crtica, avalia-se que a forma como autor avaliou a obra de Leontiev foi equivocada, especialmente pela leitura tendenciosa feita a partir de crticos j bastante conhecidos do autor russo. No entanto, esse assunto no cabe no presente artigo.

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do que com mudanas formais na grade curricular. Alm disso, no havia uma indicao expressa em buscar no marxismo o solo privilegiado para dar a grande guinada ontolgica, mesmo porque a obra clssica de Marx (Marx, 1978) no comportava e no expunha nenhuma teoria psicolgica, embora fosse baseada numa antropologia crtica e filosfica do trabalho alienado.

Essa afirmao explica o fato de Carone ter buscado na teoria crtica da escola de Frankfurt os fundamentos para compreender a psicologia, e Ciampa, em Habermas, os fundamentos para a categoria identidade. Vale frisar que ambas fazem parte do conjunto de teorias crticas da psicologia em geral e da psicologia social em especfico. No entanto, no podemos denominar essas teorias legitimamente marxistas, como se pretende na teoria histrico-cultural e naqueles que a denominam scio-histrica. Mas notrio o fato de a categoria identidade ser usualmente utilizada em conjunto com as categorias atividade e conscincia nos estudos de autores brasileiros da psicologia que buscam nas bases marxistas a compreenso de sociedade e de homem, inclusive na sua dimenso psicolgica, utilizando os trabalhos de Vigotski, Luria e Leontiev. comum esses autores que utilizam as categorias atividade, conscincia (na concepo dos autores soviticos) e identidade denominarem seus estudos psicologia scio-histrica, que, em sua origem, tinha um srio comprometimento no apenas em construir uma psicologia crtica, mas uma psicologia crtica e marxista. Tendo em vista as bases epistemolgicas, no possvel conciliar teorias to diversas, que partem de concepes de mundo radicalmente opostas, como o caso da psicanlise (que tem algumas influncias em Habermas) e da teoria desenvolvida pelos autores soviticos j mencionados. A prpria proposio de Ciampa de tirar da psicanlise o positivismo, mecanicismo e a-historicismo impossvel, sem descaracterizar a prpria psicanlise. Em 1927, Vigotski, ao discorrer sobre a crise da psicologia de sua poca, afirmava, de modo bastante pertinente, que[...] o procedimento de associar ideias alheias se assemelha a um tratado de aliana entre dois pases, mediante o qual nenhum dos dois perde sua independncia, mas concordam em atuar conjuntamente, partindo da comunidade de interesses. Este procedimento o que ocorre quando se quer associar o marxismo e a psicologia freudiana. Neste caso, se utiliza o mtodo que por analogia com aPsic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

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geometria poderamos denominar mtodo de sobreposio lgica de conceitos. Define o sistema marxista como monista, materialista, dialtico, etc. Depois se estabelece o monismo, o materialismo, etc do sistema freudiano; ao sobreposicionar os conceitos, estes coincidem e se declaram unidos no sistema. Mediante um procedimento elementar se eliminam as contradies bruscas, que saltam aos olhos, excluindo-as simplesmente do sistema, as consideras exageradas, etc. Assim como se dessexualiza o freudismo, porque o pansexualismo no concorda em modo algum com a filosofia de Marx. Bem, nos dizem, admitimos o freudismo sem os postulados da sexualidade. Mas ocorre que esses postulados precisamente constituem o nervo, a alma, o centro de todo o sistema. Cabe aceitar um sistema sem o seu centro? Porque a psicologia freudiana sem o postulado da natureza sexual do inconsciente o mesmo que o cristianismo sem Cristo, o budismo com Al (Vigotski, 1991, p. 296-297).

Assim, compreende-se que para se ter coerncia epistemolgica no campo da psicologia, necessrio utilizar as categorias atividade, conscincia e personalidade (na compreenso aqui exposta), sendo incoerente substituir a personalidade por identidade, se atividade e conscincia forem entendidas em bases legitimamente marxistas, tal como Leontiev e demais autores soviticos propem (Bratus, Zeigarnik, Davidov, entre tantos outros). Entende-se que quando a categoria identidade foi elaborada, e at meados da dcada de 1990, o uso dela em conjunto com atividade e conscincia era plausvel, tendo em vista o precrio acesso s obras dos autores soviticos, pela necessidade de romper com uma psicologia a-histrica e acrtica, e do incio de estudos com uma teoria que era nova no cenrio da psicologia brasileira. No entanto, aps a metade da dcada de 1990, vrias obras dos autores soviticos foram traduzidas para a lngua portuguesa alm de uma srie de obras em lngua espanhola que passaram a ser mais acessveis aos pesquisadores brasileiros.13 estranho que mesmo aps quinze anos de acesso a essa literatura, ainda persistem trabalhos que tentam conciliar o que inconcilivel.13 Almeida (2008) traz em sua tese de doutoramento uma lista de obras de autores soviticos que fazem parte do acervo de algumas bibliotecas de universidades pblicas brasileiras. Muitas dessas obras so referncias importantes para uma melhor compreenso da produo sovitica e da busca por uma compreenso do psiquismo com bases no marxismo.

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ResumoO artigo tem por objetivo discutir como a subjetividade, individualidade, personalidade e identidade so compreendidas a partir da psicologia histrico-cultural. Por subjetividade entende-se o processo pelo qual algo se torna constitutivo e pertencente ao indivduo de modo singular. o processo bsico que possibilita a construo do psiquismo. A individualidade se refere herana biolgica do indivduo, sendo a base (mas no apenas ela) para o desenvolvimento da personalidade, que o sistema psicolgico integrado que possibilita a formao do eu. A identidade compreendida como metamorfose do eu, e foi elaborada numa tentativa, no Brasil, de substituir o termo personalidade por, supostamente, estar contaminado por correntes tericas vinculadas a prticas reacionrias dentro da psicologia. Palavras-chave: subjetividade, individualidade, personalidade, identidade

AbstractThe aim of this article is discuss how the historical-cultural psychological approach understands the terms. Subjectivity is understood as the process in which something become constitutive and belonged to individual in a singular form. It is the basic process that allows building the psyche. Individuality refers to an individual biological inheritance, one of the bases of the personalitys development. Personality is the entire psychological system that enable to individual formation. Identity is comprehended as individual metamorphosis, and it was a Brazilian elaboration in attempt to replace the term personality, because this term would be contaminated by reactionary practices and theories produced inside psychological science. Keywords: subjectivity, individuality, personality, identity

ResumenEl articulo tiene el objetivo de discutir cmo la subjetividad, la individualidad, la personalidad e identidad son comprendidas a partir de la Psicologa Histrico-Cultural. Como subjetividad se comprende el proceso por el cual algo llega a ser constitutivo y pertenece al individuo e manera singular. s el proceso bsico que hace posibe la construccin del psiquismo. La individualidad hace referencia a la herencia biolgica del individuo, siendo la base (pero no solo ella) para el desarrollo de la personalidad, que es el sistema psicologico integrado que hace posible la formacin del yo. La identidad e entiende como metamorfose del yo, y fue elaborada em uma tentativa, en el Brasil, de substituir el trmino personalidad, pues suponen que estea contaminado por corrientes tericas com vnculos a las practicas reaccionrias em psicologa. Palabras claves: subjetividad, individualidad, personalidad, identidadPsic. da Ed., So Paulo, 28, 1 sem. de 2009, pp. 169-195

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