Subjetividades contemporâneas Leila Machado

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Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999 1 Subjetividades contemporâneas 1 Leila Domingues Machado 2 Introdução A noção de subjetividade que colocamos em discussão não está referida às concepções de identidade, de estrutura psíquica ou de personalidade, ou seja, não se trata de uma palavra mais atual para dizer a mesma coisa. Trabalharemos a partir de uma idéia de subjetividade que vem questionar a presença de uma interioridade em separado de uma exterioridade, tais como as polarizações clássicas: sujeito e objeto, consciência e mundo, corpo e alma ou individual e social. Pois mesmo que a separação entre o pólo interior e o pólo exterior conceba uma relação entre ambos, ainda há a manutenção de um binarismo que pressupõe a determinação de um pólo sobre o outro. Concepção que utiliza a referência de causa-efeito e atualiza a perspectiva metafísica ao localizar em um dos pólos o lugar da verdade. Atualmente falamos em subjetividades intimistas, ligadas à esfera privada, e temos para com essa forma uma relação de verdade que nos faz acreditar que sempre fomos assim e, por conseguinte, vamos continuar sendo. Há uma crença de que a “natureza” da subjetividade estaria referida à interioridade, à intimidade ou à idiossincrasia e, assim, tratamos uma forma- 1 Artigo revisto e ampliado. Publicação original: MACHADO, Leila Domingues. Subjetividades Contemporâneas. In: BARROS, Elizabeth Barros (org.) Psicologia: questões contemporâneas. Vitória: Edufes, 1999. 2 Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.

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Psicologia: questões contemporâneas - Vitória: EDUFES - 1999

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Subjetividades contemporâneas 1

Leila Domingues Machado 2

Introdução

A noção de subjetividade que colocamos em discussão não está

referida às concepções de identidade, de estrutura psíquica ou de

personalidade, ou seja, não se trata de uma palavra mais atual para dizer a

mesma coisa. Trabalharemos a partir de uma idéia de subjetividade que vem

questionar a presença de uma interioridade em separado de uma

exterioridade, tais como as polarizações clássicas: sujeito e objeto,

consciência e mundo, corpo e alma ou individual e social. Pois mesmo que a

separação entre o pólo interior e o pólo exterior conceba uma relação entre

ambos, ainda há a manutenção de um binarismo que pressupõe a

determinação de um pólo sobre o outro. Concepção que utiliza a referência de

causa-efeito e atualiza a perspectiva metafísica ao localizar em um dos pólos o

lugar da verdade.

Atualmente falamos em subjetividades intimistas, ligadas à esfera

privada, e temos para com essa forma uma relação de verdade que nos faz

acreditar que sempre fomos assim e, por conseguinte, vamos continuar sendo.

Há uma crença de que a “natureza” da subjetividade estaria referida à

interioridade, à intimidade ou à idiossincrasia e, assim, tratamos uma forma-

1 Artigo revisto e ampliado. Publicação original: MACHADO, Leila Domingues. Subjetividades Contemporâneas. In: BARROS, Mª Elizabeth Barros (org.) Psicologia: questões contemporâneas . Vitória: Edufes, 1999. 2 Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo.

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subjetividade, que possui uma história e está inserida num contexto, como

sendo natural e não variável. A supervalorização da esfera privada é uma

forma-subjetividade bastante comum em nossos dias, contudo não é a única

possibilidade de forma para a subjetividade.

Para pensarmos essa problemática, propomos uma distinção entre

modos de subjetivação - processos de subjetivação ou modos de existência -

e formas-subjetividade, como aspectos presentes na constituição da

subjetividade. A subjetividade nos fala de territórios existenciais que podem

tornar-se herméticos às transformações possíveis, como mapas, ou podem

tornar-se abertos a outras formas de ser, como nas cartografias. Os modos de

subjetivação referem-se à própria força das transformações, ao devir, ao

intempestivo, aos processos de dissolução das formas dadas e cristalizadas,

uma espécie de movimento instituinte que ao se instituir, ao configurar um

território, assumiria uma dada forma-subjetividade. Os modos de subjetivação

também são históricos, contudo, tem para com a história uma relação de

processualidade e por isso não cessam de engendrar outras formas.

Imaginemos uma rede cujos fios - constituídos por materiais de

expressão diversos, como: palavras, gestos, moedas, musicalidades,

conhecimentos etc. - se entrelaçam. Uma rede que não fosse lisa e sim

estriada e cujos fios se misturam em uma trama embaralhada. A rede e os fios

que a constituem são históricos. Pensemos que essa rede faça dobras,3

aproximando pontos distanciados e distanciando pontos próximos. Mas as

dobras que se formam também se desfazem e outras então se formam em um

movimento incessante. Como um lenço que rola na areia e vai formando

desenhos variados ao sabor do vento. As dobras constituem então formas

provisórias. Uma espécie de um dentro que não é fechado e que continua

sendo parte de um fora-rede.

3 A idéia de dobra é desenvolvida por Gilles Deleuze e aparece principalmente nos livros: A

dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, [1988] 1991 e Foucault, 1988.

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A subjetividade pode ser pensada então como sendo formada por

dobras. Mas as dobras são a própria rede, ou melhor, nós somos a própria

rede, assim como o sistema econômico, político, educacional etc. também são.

As dobras são formas que se produzem e conferem um sentido específico para

o que chamamos desejo, trabalho, arte, religião, ciência etc. As dobras não

são nem interiores e nem exteriores e sim formações provisórias de um entre

que mistura finitos materiais de expressão em ilimitadas combinações.

Acreditamos que a idéia de poder possa se oferecer como ferramenta

de trabalho para pensarmos mais essa idéia. Foucault (1984) concebe o poder

desvinculado da perspectiva de propriedade. O poder não é algo que se detém

ou que pertença a uns e não a outros. O poder é um exercício. Através de sua

análise, a oposição entre senhores e escravos é questionada. O poder, como

um exercício, é exercido por todos. Desta forma, o poder não seria

categorizado a partir de um viés binário – os dominantes e os dominados -,

mas pensado através das práticas que produz. Não haveria ninguém que

somente estivesse no campo de dominação ou de submissão. Em nossa vida

cotidiana, muitas de nossas práticas mostram-se como exercício de dominação

e tantas outras como exercício de resistência.

O poder não está desvinculado da resistência ou as práticas de

dominação não estão separadas das práticas de revolta. Não existe um vilão e

não existe um herói. Nossas ações são ora de vilania e ora de heroísmo. Tanto

o poder quanto a resistência são exercícios anônimos. O que não quer dizer

que pessoas os realizem, mas, como dissemos anteriormente, não pertencem

a ninguém. Há um complexo jogo de forças que forma uma rede que não

possui nem começo e nem fim. O emaranhado dos seus fios vai tecendo

contornos variados e vai constituindo formas. Essa rede conjuga forças

variadas que se atravessam, que estão em luta, onde o combate não fala de

vitórias ou derrotas mas de ultrapassamentos, de transformações no próprio

jogo das forças. Cada época histórica é marcada pela emergência de

determinadas configurações dessa rede como, por exemplo, formas de sentir,

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de trabalhar, de desejar, enfim, de viver. A economia, a cultura, a sociedade, a

natureza, a tecnologia e os valores assumem contornos específicos. Produz-se

uma forma-homem, uma forma-política, uma forma-conhecimento... O mesmo

se dá em diferentes sociedades onde o jogo de forças também pode assumir

formas variadas em relação a uma outra sociedade, seja em sua totalidade ou

em alguns aspectos.

O que acreditamos ser nossa personalidade, nosso mais íntimo desejo,

são expressões-em-nós da história de nossa época. A própria necessidade de

acreditarmos que temos coisas que nos são particulares e que nos diferenciam

do resto do mundo é uma produção própria do momento em que vivemos hoje.

Nós somos atravessados por toda uma complexa teia de aspectos desejantes,

políticos, econômicos, científicos, tecnológicos, familiares, culturais, afetivos,

televisivos... Entretanto, cada um de nós tem uma história de vida que é

singular e que não é interior. É como se inúmeras peças de um jogo se

embaralhassem de formas variadas e com intensidades distintas, fazendo com

que afirmássemos essa composição como sendo nosso eu ou nossa

individualidade. Mas em cada momento histórico as peças se modificam,

algumas se introduzem, algumas se mantêm e outras vão sendo esquecidas.

Experimentamos a composição de algumas delas ao longo de nossa vida e

muitas vezes, querendo ou não, elas se embaralham e assumem outras

formas.

Nós desejamos fervorosamente uma unidade com a qual nos identificar,

uma harmonia, uma estabilidade. Quando as peças se embaralham muito nos

sentimos sem chão, é como se alguém nos tivesse tirado o tapete. A questão é

que ansiamos pela ordem e repudiarmos o caos, a desestabilização de nossas

certezas, de nossas verdades. Queremos um escudo protetor que nos afaste

do desconhecido e, assim, nos faça manter uma mesma personalidade para o

resto da vida. Parece que precisamos de unidades que nos tranqüilizem. Mas

o problema é que não as pensamos como provisórias.

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A era do tempo intensivo e sem densidade

Quando vivemos atravessados pela velocidade talvez a melhor arma

seja a desaceleração. O que seria diferente de uma imobilidade. Da mesma

forma que o poder massifica, ele também individualiza. A transitoriedade das

informações pode produzir letargia e a aceleração da velocidade pode produzir

inércia. As sociedades contemporâneas são marcadas por um processo

contínuo de aceleração onde as matérias de expressão tornam-se rapidamente

obsoletas. Parece que o mundo transforma-se numa seqüência aleatória e

infinita. Neste sentido, a pluralidade configura-se em intensidade e não em

densidade. As muitas coisas que somos, que gostamos, que fazemos às vezes

não chegam nem mesmo a assumir uma forma ou somente assumem formas

padronizadas. O cotidiano transforma-se em uma coleção de tarefas sem cor,

sem sabor e sem cheiro. Passageiros aflitos da próxima novidade, desliza-se

incessantemente por tudo, repletos de informações e de um sentimento de

vazio.

Uma cronopolítica está em curso cujos desdobramentos

ainda são desconhecidos, mas que implica

necessariamente no declínio de uma profundidade de

campo nas nossas atividades as mais cotidianas. Um

achatamento temporal que proporciona um presente

eterno, sem história para trás nem para frente, sem

passado nem futuro. Presente sem espessura, ilusão da

imortalidade que ignora o começo e o fim, a morte e o

imprevisto, que só integra o desconhecido enquanto

probabilidade calculável. O paradoxo é que a

desmaterialização provocada pela velocidade absoluta

equivale a uma inércia absoluta. Estranha equação em que

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coincidem velocidade máxima e imobilidade total.

(PELBART, 1993, p. 34)

O contemporâneo traz no ideário da velocidade o desejo de um tempo

contraído sobre o instante pontual e um espaço abolido (LÉVY, 1993)

Inaugura-se uma idéia de espaço bem diferente das que se faziam presentes

no início do século. As distancias são minimizadas. O trem bala, os aviões

supersônicos, as naves espaciais, vieram expressar que o deslocamento

poderia assumir uma rapidez inimaginável. O desejo de um domínio sobre o

espaço veio acompanhado de um desejo de domínio sobre o tempo. Torná-lo

tão rápido que não haveria mais “espaço” de tempo.

O processo de disciplinar através dos espaços fechados estaria

perdendo seu predomínio para um processo de controle através do tempo.

Após a segunda guerra mundial, com a crise do capitalismo e a constituição do

capitalismo mundial integrado, com a globalização da mídia e a constituição da

era da informação, entre outros aspectos:

sociedade disciplinar é o que já não éramos mais, o que

deixávamos de ser. (...) São as sociedades de controle

que estão substituindo as sociedades disciplinares.

Controle é o nome que Burroughs propõe para designar o

novo mostro, e que Foucault reconhece como nosso futuro

próximo. Paul Virilio também analisa sem parar as formas

ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as

antigas disciplinas que operavam na duração de um

sistema fechado. (DELEUZE, 1992, p. 220)

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A crise dos espaços fechados - como a escola, a prisão ou os hospitais

psiquiátricos - também pode ser percebida no Brasil, contudo, misturamos de

uma forma específica exercícios de poder que evidenciam soberania, disciplina

e gestão da vida. As formas de controle constroem modelos de espaço-tempo

que da mesma forma que impõe limites e dizem não, produzem desejos e são

afirmativas. Embora não possamos negar a intensidade do biopoder entre nós,

também não podemos esquecer que nos trópicos promovemos coquetéis

bastante diversos e até considerados exóticos para os pensadores do velho

mundo.

Atravessado pela aceleração vive-se os processos de

desterritorialização4 como falta de territórios, contudo, muitas vezes, o que

ocorre é uma dificuldade de criação de sentidos e, com isso, uma dificuldade

na composição de territórios.5 Quando a desterritorialização é por demais

brutal, podem não ocorrer agenciamentos de subjetivação ou a configuração

de suportes expressivos para os materiais existenciais descorporificados.

Fazendo com que permaneçam passivos ou à deriva e percam a possibilidade

de constituírem uma consistência (ROLNIK, 1989). Assim, prisioneiros da idéia

de limite e de ordem, nós construímos barreiras para impedir a avalanche das

transformações. Fixamos-nos no conhecido e conferimos sentidos

manufaturados ao que nos pareça sem sentido. Movidos pelo consumo,

desejamos ter tudo e não nos afetarmos com nada. Desejamos desejar - nas

formas-desejo capitalistas - porque o verbo é infinito. Seria como fazer sexo

pela internet: sem cheiro, sem cor, sem sabor, sem contato e sem sofrimento?

4 O processo de desterritorialização é um movimento de destruição dos territórios constituídos,

podendo desdobra-se em processos de territorialização, onde novos territórios provisórios seriam inventados, ou em processos de reterritorialização, onde o processo de desterritorialização é capturado e em lugar da invenção de outros territórios teríamos a recomposição de territórios vinculados à ordem de produção capitalística. Os territórios se compõem de materiais existenciais, como comportamentos, valores, relações sociais, etc. Os territórios e as desterritorializações fazem parte e produzem formas de subjetividade. O que não quer dizer que o território seja uma identidade e que cada um tenha o seu. Muitos e variados territórios compõe nossa existência e eles podem ter sido produzidos ou não a partir da perspectiva de personalidade. Os territórios são organizações de materiais de expressão históricos.

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Montagem de territórios por meio de sistemas de referência gerais ou mapas,

valorizados a priori e que não representem a desestabilização do poder

territorial narcísico. Encontros sem contato, sexo sem suor.

Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante,

a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso e a

produção singular de existência. A subjetividade

capitalística, tal como é engendrada por operadores de

qualquer natureza ou tamanho, está manufaturada de

modo a premunir a existência contra toda intrusão de

acontecimentos suscetíveis de atrapalhar e perturbar a

opinião. Para esse tipo de subjetividade, toda

singularidade deveria ou ser evitada, ou passar pelo crivo

de aparelhos e quadros de referência especializados.

Assim, a subjetividade capitalística se esforça por gerar o

mundo da infância, do amor, da arte, da loucura, da dor, da

morte, do sentimento de estar perdido no cosmos... É a

partir dos dados existenciais mais pessoais - deveríamos

dizer mesmo infra-pessoais - que o Capitalismo Mundial

Integrado constitui seus agregados subjetivos maciços,

agarrados à raça, à nação, ao corpo profissional, à

competição esportiva, à virilidade dominadora, à star da

mídia... Assegurando-se do poder sobre o máximo de

ritornelos existenciais para controlá-los e neutralizá-los, a

subjetividade capitalística se inebria, se anestesia a si

mesma, num sentimento coletivo de pseudo-eternidade.

(GUATTARI, 1990, p. 34)

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A reversão dos processos totalitários que experimentamos no presente

não seria o recurso a territórios fabricados em conformidade com o status quo.

Em lugar de inventarmos outros territórios existenciais nos fixamos em

territórios modelos, que são tratados como uma espécie de escudo mágico

contra a “loucura” da atualidade. Enfim, num movimento de tentativa de

organização das mudanças aceleradas, nos assentamos em formas

padronizadas que nos surgem carregadas de um colorido de novidade. É

quando casais apaixonados, por exemplo, mantém apartamentos separados e

pregam a importância de um espaço próprio e, em contrapartida, promovem

um controle recíproco de horários, em tempo real, através do celular. É

necessário estarmos sempre forjando territórios existenciais provisórios e que

venham escapar a uma forma-subjetividade serializada. A provisoriedade pode

funcionar apenas como uma adesão ao descartável ou ser uma tentativa de

reversão do que se tornou instituído em uma época.

VIDA E ARTE: UMA SIMPLES FORMALIDADE? 6

A chuva forte deixa nebulosa a paisagem do bosque daquela pequena

cidade. As árvores se transformam em enormes sombras. Um homem corre,

parecendo sem destino, por caminhos que se descortinam imprevisíveis em

meio a escuridão. O som de seus passos são acompanhados pelo forte

palpitar do seu peito. Uma luz surge ofuscante. Uma pergunta ecoa

incansável: quem é você? Um assassinato, um assassino, a polícia procura

por.

O ritual de interrogatório percorrerá toda a noite. Quem é você? Como

se chama? Me diga seu nome! O homem completamente molhado, que vagava

sem capa e sem documentos em meio a tempestade, responde Onoff, como

6 Baseado no filme Uma simples formalidade, dirigido por Giusepp Tornatore, 1994, 108’.

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quem poderia dizer Shakespeare ou qualquer outro escritor consagrado. O

comissário retruca com ironia ser Leonardo da Vinci e começa a recitar: “Até

hoje eu duvido ter vivido aqueles dias, (...) de ter conhecido quem me surgia

diante dos olhos. Um corpo que precisava de um sopro.”

O homem molhado permanece a olhar indiferente o comissário que aos

berros diz conhecer a biografia de Onoff como ninguém, acusando-o de falsa

identidade. Após um silêncio arrastado diz: “Seus olhos copos precisam de

uma luz... e seus lábios, um último lamento. E esse sonho precisava de um

dormente...”

“Onoff! Como não o reconheci! Eu que já vivi em tantos dos seus

mundos!” As regras do jogo estavam postas. Onoff e o comissário. Perguntas

se avolumam na tentativa de elucidação de um assassinato. A imagem do

escritor oscila entre o heroísmo e a suspeita, entre a verdade e a mentira,

entre extremos opostos que lançam percalços à tentativa de configuração do

perfil do assassino.

As respostas desdobram-se em novas questões, em lugar de aplacar a

saga detetivesca do comissário. A história se descortina em múltiplas

possibilidades, onde acompanhamos uma suposta “mesma cena” sob

diferentes ângulos, em diversos tempos, com diferentes personagens, com

sequências multifacetadas... Acreditamos em estações e em trens que dizem

nunca terem existido. As “contradições” só seriam possíveis na literatura?

Percorremos as fotografias em busca de algum sinal, de alguma unidade e

todas se mostram artificialmente construídas.

Por fim, o quem é permanece sem resposta ou se configura

indefinidamente em várias possibilidades. Não sabemos quem matou e nem

quem morreu, se eram homens ou mulheres, quais os motivos envolvidos. Não

sabemos sequer se todas aquelas histórias existiam de fato. Permanecemos

sob o fio da navalha que insiste em não opor-se em pólos, que insiste em

embaralhar falsos e idênticos, verdades e mentiras, heróis e assassinos.

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Como escritor, Onoff falava da vida que não lhe pertencia, que não

cabia nos limites do seu corpo e criava mundos, outras vidas nas quais

vagavam seus leitores. Onoff era um autor-personagem, sua biografia de

grande escritor fora toda inventada, seu nome não era verdadeiro. Da mesma

forma que escrevia seus livros, escrevera a história de sua própria vida para

ser consumida por leitores ávidos de detalhes do seu cotidiano, dos seus

hábitos, da identidade do herói. Autor e personagem se atravessavam, se

entrecortavam, misturavam vidas imaginárias e reais.

Como homem, vivia condenado a escrever mas não era digno de sua

obra. Onoff nascera das fantasias de um mendigo-escritor, um velho amigo

que lhe inventara o nome adequado para um futuro promissor. Após sua morte,

recebera junto de uma carta uma série de manuscritos desconexos que

decifrara tempos depois. Publicou a obra sob o nome Onoff. Emprestava

tardiamente ao amigo a identidade de escritor forjada em comum. O sucesso

deste livro passou a lhe pesar nos ombros. Nada parecia comparável àquelas

páginas rascunhadas ao longo de toda uma vida.

Febraio, nome de batismo do homem-molhado-sem-documentos

encontrado no bosque, queria se libertar de Onoff. A força da obra perpassava

o corpo do homem e o dilacerava, não conseguia mais ter passagem. A busca

da perfeição aprisionava o seu dia-a-dia, a sua possibilidade de amar, a

abertura para a própria invenção da vida. A obra ficou enclausurada ao autor.

O escritor teria domesticado seus escritos. Onoff era a identidade que

precisava ser calada para abrir espaço aos afetos, às múltiplas formas de

existência.

O filme “Uma Simples Formalidade” coloca em cena a temática da

identidade e da verdade, ou melhor, da verdadeira identidade. O anonimato

não nos seria suportável? Autor e obra são chamados a afirmar sua

individualidade e sua unidade, a própria coerência, um fio que costura a

disparidade das experiências e a não uniformidade da escrita. Do homem

Febraio era exigida a construção e a manutenção do nome Onoff, a vida do

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autor deveria ser assegurada. Do autor era exigida a continuidade da obra, a

contínua consagração. No entanto, o impasse se coloca quando o autor é

suspeito de assassinato e quando a obra é suspeita de plágio.

Foucault indaga: o que é um autor? A imagem que insistimos em

produzir para o autor seria:

(...) aquilo que permite ultrapassar as contradições que

podem manifestar-se numa série de textos: deve haver - a

um certo nível do seu pensamento e do seu desejo, da

sua consciência ou do seu inconsciente - um ponto a

partir do qual as contradições se resolvem, os elementos

incompatíveis encaixam finalmente uns nos outros ou se

organizam em torno de uma contradição fundamental ou

originária. Em suma, o autor é uma espécie de foco de

expressão, que, sob formas mais ou menos acabadas, se

manifestam da mesma maneira, e com o mesmo valor,

nas obras, nos rascunhos, nas cartas, nos fragmentos,

etc. (FOUCAULT, 1992, p. 53)

Me deram um nome e me alienaram de mim *

A multiplicidade nos aflige. Exigimos certa constância de valores, uma

unidade estilística, uma autenticidade, para podermos dizer: concordamos ou

discordamos, gostamos ou odiamos, somos amigos ou não. Como tais

unicidades podem ser pensadas como construções que venham aplacar a

angústia de estarmos sempre diante de imprevistos, esquecemos do livro que

* LISPECTOR, Clarice, 1978, p.37.

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não gostamos, da mágoa que o amigo causou, da opinião que abominamos ou

sequer lemos ou ouvimos alguma coisa vinda do escritor não grato. Assim,

voltamos a bela totalidade uníssona das identidades e de suas verdades. Não

perdoamos ao autor um livro ruim e nem admitimos as metamorfoses

produzidas nos jogos, nos encontros. Enfim, a multiplicidade nos apavora.

Parece que somente admitimos uma pluralidade de “eus” ou uma identidade

plural.

Com isso, não estamos defendendo o consenso, parte do ideário da

política neoliberal. Não há aqui nem uma apologia de respeito ao próximo, nem

uma apologia dos jogos de interesse e nem, tampouco, uma apologia às

constantes produções reativas de discordâncias, de intolerâncias, de

autoritarismos, de generalizações, de preconceitos, de xenofobia. Não se trata

de ser submisso e nem de ser do contra. O que pode ser uma boa forma de

continuar cada um na sua e bola pra frente. A idéia de diferença que se faz

presente em tais práticas somente reafirma a identidade, o outro se resume a

alguém distinto de um “eu”, o que vem configurar a manutenção da polaridade

sujeito e objeto. Admite-se a diversidade de uma forma asséptica. Mecanismos

de um processo de indiferença que faz a diferença ser banalizada, pregada

aos quatro cantos num discurso de aceitação e respeito distanciados. O que

não significa envolvimento, possibilidade de afetar e de ser afetado pelo outro,

abertura para as transformações promovidas nos encontros da vida.

O que teria produzido tal crença-seguro na unidade, no idêntico e esse

pânico a tudo que se mostre intempestivo, provisório, estranho? O século XIX

comportou idéias que afirmavam a razão, a supremacia da consciência, bem

como, o inconsciente e sua outra lógica, seu insistente descumprimento dos

princípios da racionalidade, da cronologia, das leis e normas dos contratos

sociais. Descontinuidade nada desprezível. Produção de um novo discurso

sobre o sujeito. Entretanto, se o lugar da verdade mudava de endereço, a

“busca de” seguia seu rumo.

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Para se saber “quem é você?” não bastaria um exame de consciência,

um padre, uma confissão, seria preciso escutar esse outro lado, pois “penso

onde não sou, portanto sou onde não me penso”. E aí, o ato de confissão

torna-se sofisticado, pecar não é só fazer, mas ter a “intenção de”, desejar,

imaginar, sonhar. Não tem saída, se pensou pecou. Não basta, também, falar

para alguém é preciso estar só-consigo-mesmo, estar atento a todos os

detalhes, às palavras que disse e às que não disse, aos nomes que trocou ou

até às piadinhas que escaparam, pois tudo isso fala. Estamos diante de todo

um processo de aperfeiçoamento rebuscado de um olhar para o próprio

umbigo. Intimismo mesclado de narcisismo, de uma desenfreada preocupação

com a sexualidade, do medo do desconhecido, do desprezo pelo espaço

público que não comporte as mazelas da vida privada. Contudo, a vida pública

não encolheu, o espaço privado é que teria estendido seus domínios,

recoberto o público e dado a ele novos adereços (SENNETT, 1988).

No século XX, o processo intimista ganha os matizes do psico-tudo,

busca de auto-conhecimento assumindo as formas mais variadas, cristais,

florais, tarôs, hipnoses, até um “eu o.k., você o.k.” com ar tupiniquim. As crises

político-econômicas transformam-se em conflitos existenciais, muitas vezes. A

descrença nas lutas sociais, em uma sociedade mais igualitária, abre espaço

para um “gosto de levar vantagem em tudo”. A “lei do Gerson” pode ser vista

como expressão do descrédito nos movimentos sociais e lembrança de que se

você não correr alguém pode chegar na frente. Velocidade desenfreada a nos

lembrar que “não deixe pra amanhã o que você pode fazer hoje”. “Ética” do

meu desejo. O espaço público é considerado hostil. A privacidade precisa

oferecer-lhe contornos mais pessoais, com toques mais íntimos. Trata-se de

uma espécie de relação com o espaço público como se esse fosse uma esfera

pública do domínio privado.

Diante da telinha rimos de nós mesmos. A televisão consegue ser

homogeneizadora e especular. O cotidiano mais particular é passado em

cadeia nacional e nos deliciamos ao ver a reprodução dos nossos dilemas,

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nossa comédia da vida privada: se o ultraje é a rigor ou não, eu me amo e não

posso mais viver sem mim. Parte dos rituais que compõe o culto do interior na

atualidade. O problema é que naturalizamos determinadas concepções de

desejo e de subjetividade. Acreditamos que sempre foi, é e será assim.

Quando uma visão crítica é lançada sob tais aspectos produz-se, muitas

vezes, um sentimento de que não tem saída, é tudo grande demais, longe

demais e não podemos alcançar. O que pode se configurar em sentimentos de

descrédito e cansaço promovendo aceitações incondicionais. Diante do “que

não tem remédio, remediado está”, nos restaria cruzar os braços e aderir a

saga da “privatização” desenfreada.

Na atualidade, ser yuppie coincide com os valores massificados, nos faz

estar na moda, nos oferta territórios padronizados e autenticados com o selo

do sucesso, nos coloca na crista da onda do consumo.7 Deixar-se afetar pelo

estranho, pelo inatual, não nos confere certezas. Muitas vezes nos parece

mais confortável a adesão a uma subjetividade serializada. Mas também nos

sentimos desconfortáveis no reino da falta-consumo. “A época contemporânea,

exacerbando a produção de bens materiais e imateriais em detrimento da

consistência de territórios existenciais individuais e de grupo, engendrou um

imenso vazio na subjetividade que tende a se tornar cada vez mais absurda e

sem recursos”. (GUATTARI, 1990, p. 30). Desta forma, seria preciso uma

reinvenção cotidiana da existência, uma luta incansável pela não-captura, uma

curiosidade ilimitada pela vida, por suas cores, por seus cheiros, por seus

sabores, por suas densidades intensivas.

O contemporâneo, neste sentido, não se configuraria como uma via de

mão única, existem as pluralidades, as diferenças, as fragmentações. Contudo,

7 Suely Rolnik utiliza as imagens do yuppie e do antropófago para falar de formas

diferenciadas e que estariam presentes na atualidade para lidar com a dispersão, com o fragmentado, com o pluralismo, com a velocidade, com o consumo, com o descartável, com a mídia, etc. O que tenta mostrar é que o contemporâneo em si não significa um processo de adesão ou de contestação, de transformação ou de submissão, do mal ou do bem. É preciso pensar como cada época oferece todo um repertório de materiais de expressão que podem ser utilizados e recombinados de ilimitadas formas. O importante é efetuarmos movimentos que escapem à captura dos exercícios de poder que visam a dominação ou a massificação.

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o plural ou a “diferença” podem estar a serviço da manutenção de territórios-

modelo. As diferenças identitárias podem significar um distanciamento

respeitoso, e uma indiferença para tudo o que não nos diga respeito

diretamente. A pluralidade pode significar máscaras que desfilamos

ecleticamente para nada afirmar. Mas a fragmentação, o pluralismo e a

diferença também podem significar a multiplicidade que nos constitui, as

diferenças que nos produzem, os fragmentos que nos marcam. Não em uma

intensidade vazia mas na construção de densidades repletas de marcas da

história e de sua superação.

A problematização da idéia de identidade não deveria ser entendida

como uma recusa frente à existência de sujeitos concretos ou como a negação

da história de vida de alguém. Mas, também, não consideramos que se trate

de substituir a idéia de sujeito pela idéia de estrutura ou de funções.

Pensamos a subjetividade como podendo assumir diferentes formas. O que

significa podermos perceber o contemporâneo como um jogo de forças que

fala de desejos e de medos que se fazem presentes em nosso cotidiano.

Contudo, significa também pensarmos que as formas assumidas pela

subjetividade na atualidade não são as últimas e nem são as únicas. Nesse

campo de forças, outras formas podem ser criadas quando permitimos o

acesso ao intempestivo, ao estranho, ao desconhecido, ao inatual, ao devir

sempre-outro.8

A unidade, a identidade, a coerência podem ser sacudidas em seu

curso natural. Um nome não expressa a nossa essência, fala de nossa história.

Dessa forma, em lugar do “ponto final” poderíamos fazer afirmações-

problematizantes. A processualidade transforma a vida em um constante fluxo-

8 O devir-outro seria a corporificação, na dimensão visível, das diferenças que iriam se

engendrando na dimensão invisível, que estariam aquém e além do eu. Cf. ROLNIK, Suely. Cidadania e alteridade: o psicólogo, o homem da ética e a reinvenção da democracia. In: Spink, M. (org.). A cidadania em construção. São Paulo: Cortez, 1994.

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questão, faz as certezas serem provisórias, nos torna permeável ao devir.

“Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente”.9

Dentro de mim sou anônimo. Viver exige tal audácia 10

Em lugar da permanência em campos mapeados, onde podemos dizer

“eu sou assim”, “mãe é sempre igual só muda de endereço”, “o povo não sabe

votar” ou “toda mulher tem medo de barata”, criar novas cartografias. Em lugar

do Bem e do Mal, como valores morais absolutos e homogeneizadores do

campo social, apostar em bons encontros, em relações que venham aumentar

nossa potência.11 Não destruir a si sob a força da culpabilidade e não destruir

o outro sob a força do ressentimento. A potência em lugar da impotência.

Possibilidade de afetar e permitir-se ser afetado, onde o encontro produza

ações que venham instaurar a vida e não simplesmente evitar a morte.

Para pensarmos em uma ética da existência seria preciso não tratar o

desejo ou a subjetividade como idéias vinculadas a um plano do absoluto. A

ética não estaria no plano do transcendente mas no plano do imanente. Os

valores estariam abertos sempre para novas produções. Vinculados à

expansão da vida, são questionadores de tudo que se mostre paralisado,

cristalizado, mumificado. Dão acesso à diferença como possibilidade de outra

coisa, de estranhamento de si, do outro e do mundo. Não um olhar que vaga

9 LISPECTOR, Clarice, 1978, p. 13. 10 LISPECTOR, Clarice, 1978, p. 37. 11 Os bons encontros ocorreriam quando um corpo compõe com o nosso e toda a sua força

ou parte dela vem aumentar a nossa. Um mais de força não no sentido de um acúmulo de força, mas no sentido de uma maior intensidade das forças ativas, que venha produzir uma outra qualidade de força, uma potência de agir. Os maus encontros ocorreriam quando os corpos em suas relações produzem decomposição de forças - forças reativas- que se expressariam no se contentar ou se acomodar em sofrer os efeitos, em reclamar, em se lamentar, em acusar. Estas seriam as paixões tristes , a potência de padecer .

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sobre as regiões de visibilidade reconhecendo sentidos, mas um olhar que

venha produzir sentidos.

Desnaturalizar a idéia de subjetividade, seria pensar na constituição do

desejo atravessada por todo um conjunto de aspectos econômicos, culturais,

políticos etc. Ao datarmos o que vivemos, ao pensarmos em outras sociedades

e em outros momentos históricos, podemos perceber que nem sempre foi

assim e nem sempre será. Não cabe aqui nenhuma nostalgia e sim a

possibilidade de pensarmos a subjetividade como um processo em constante

transformação.

Parece-nos questionável pensar um momento histórico como portador

somente de forças reativas. A mídia, por exemplo, é constantemente criticada

por promover a passividade, a alienação, a não criatividade, o aumento da

violência, enfim, a transformam em grande vilã. Não poderíamos pensar que a

mídia não teria nada a ver com isso, entretanto não nos parece adequado

dizer que produza sozinha tudo isso e nem que somente produza esse tipo

efeito. É possível utilizar-se da mídia de inúmeras formas, apropriando-se de

sua maquinaria de forma ativa em lugar de nos rendermos ao seu padrão

centralizador de sentido.

O que condena o sistema de valorização capitalístico é seu

caráter de equivalente geral, que aplaina todos os outros

modos de valorização, os quais ficam assim alienados à

sua hegemonia. (...) fazer transitar essas sociedades

capitalísticas da era da mídia em direção a uma era pós-

mídia, assim entendida como a reapropriação da mídia por

uma multidão de grupo-sujeito, capazes de geri-la numa

via de ressingularização. (GUATTARI, 1992, p. 51 e 47 )

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A informática, que também muitas vezes é tida como grande

colaboradora de uma espécie de distanciamento social, vem nos apresentando

muitas questões a serem pensadas. A própria montagem do conhecimento

vinculado à informática traz a idéia de que as afirmações precisam ser

provisórias. Não há para esse saber uma verdade que vai sendo burilada, mas

um defrontar-se constante com inúmeros deslocamentos que são a própria

possibilidade da sua existência. Estamos diante do “conhecimento por

simulação” onde não haveria algo a ser lido ou interpretado e sim explorado.

“Para inventar a cultura do amanhã, será preciso que nos apropriemos das

interfaces digitais. Depois disso, será preciso esquecê-las” (LEVY, 1993, p.

132).

Não acreditamos tratar-se de elaborar listas de culpados. O lamento e a

indignação não produzem transformações. Não cabe um debate sobre o

presente pensado como uma realidade exterior da qual somos vítimas

subjugadas. Nosso interesse está centrado em esboçar algumas

considerações acerca do contemporâneo, na perspectiva de um presente

pensado em sua positividade, no que vem afirmar.

Uma sociedade nos parece definir-se menos por suas

contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por

todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar

em tal ou qual momento as linhas de fuga que se

delineiam. (DELEUZE, 1992, p. 212)

...é exatamente na articulação: da subjetividade em estado

nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente

no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo

a saída das crises maiores de nossa época. (GUATTARI,

1990, p. 55)

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Consideramos importante problematizarmos a atualidade indicando os

exercícios de poder que se pretendem soberanos e que produzem servidão.

Mas entendendo que eles não serão eternamente dominantes e nem tampouco

totalitários. Será sempre possível inventar outras possibilidades, brechas

através das quais podemos fazer outras afirmações. Não há um poder que seja

total, ou melhor, todo exercício de poder é acompanhado de sua possível

reversão. Deleuze nos diz que não “se deve perguntar qual o regime mais

duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as

liberações e as sujeições. (...) Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas

armas” (DELEUZE, 1992, p. 220).

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