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SUMÁRIO Epígrafe ...................................................................................................................................... 3 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 4 CAPÍTULO 1 SER .............................................................................................................. 15 A exposição da questão ............................................................................................................ 16 A fÚsij .................................................................................................................................... 31 A fÚsij em sua originariedade ............................................................................................ 39 Real ........................................................................................................................................... 47 Matéria e forma ........................................................................................................................ 54 O nada ....................................................................................................................................... 60 O um e a multiplicidade............................................................................................................ 75 Tempo ....................................................................................................................................... 76 O ser e a verdade ...................................................................................................................... 91 Ser e Música ............................................................................................................................. 99 CAPÍTULO 2 CONSIDERAÇÕES COM A LINGUAGEM ........................................ 104 A Linguagem .......................................................................................................................... 104 Diálogo ................................................................................................................................... 111 Escuta ................................................................................................................................. 111 A tentativa de entrever a escuta originária ......................................................................... 116 A escuta e a fala .................................................................................................................. 130 Fala ..................................................................................................................................... 137 A) Demonstrar ........................................................................................................... 139 B) Declarar ................................................................................................................ 144 C) Voz ....................................................................................................................... 145 D) Verbo .................................................................................................................... 146 E) Falar ...................................................................................................................... 147 F) Palavra .................................................................................................................. 151 A fala enquanto origem ...................................................................................................... 153 O lÒgoj .................................................................................................................................. 161 Tudo é um ........................................................................................................................... 162 Lšgein................................................................................................................................. 166 O lÒgoj do homem? .......................................................................................................... 170 Linguagem e lÒgoj ................................................................................................................ 177 Linguagem e Música .............................................................................................................. 180 CAPÍTULO 3 - HOMEM .................................................................................................... 184 O homem e a experiência ....................................................................................................... 185 Criação .................................................................................................................................... 191 Memória ................................................................................................................................. 199 Pensar e saber ......................................................................................................................... 202 Sentir....................................................................................................................................... 209 Homem e nada ........................................................................................................................ 218 A morada do homem .............................................................................................................. 226 Morte ...................................................................................................................................... 239 Sagrado ................................................................................................................................... 244 Homem e Música .................................................................................................................... 254 CAPÍTULO 4 MÚSICA E ABISMO ............................................................................... 260 A Dimensão Poética ............................................................................................................... 260 Música .................................................................................................................................... 286

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SUMÁRIO

Epígrafe ...................................................................................................................................... 3 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 4 CAPÍTULO 1 – SER .............................................................................................................. 15 A exposição da questão ............................................................................................................ 16

A fÚsij .................................................................................................................................... 31

A fÚsij em sua originariedade ............................................................................................ 39 Real ........................................................................................................................................... 47 Matéria e forma ........................................................................................................................ 54

O nada ....................................................................................................................................... 60 O um e a multiplicidade............................................................................................................ 75 Tempo ....................................................................................................................................... 76

O ser e a verdade ...................................................................................................................... 91 Ser e Música ............................................................................................................................. 99 CAPÍTULO 2 – CONSIDERAÇÕES COM A LINGUAGEM ........................................ 104

A Linguagem .......................................................................................................................... 104 Diálogo ................................................................................................................................... 111

Escuta ................................................................................................................................. 111 A tentativa de entrever a escuta originária ......................................................................... 116 A escuta e a fala .................................................................................................................. 130

Fala ..................................................................................................................................... 137 A) Demonstrar ........................................................................................................... 139

B) Declarar ................................................................................................................ 144 C) Voz ....................................................................................................................... 145 D) Verbo .................................................................................................................... 146

E) Falar ...................................................................................................................... 147 F) Palavra .................................................................................................................. 151

A fala enquanto origem ...................................................................................................... 153

O lÒgoj .................................................................................................................................. 161

Tudo é um ........................................................................................................................... 162

Lšgein................................................................................................................................. 166

O lÒgoj do homem? .......................................................................................................... 170

Linguagem e lÒgoj ................................................................................................................ 177 Linguagem e Música .............................................................................................................. 180

CAPÍTULO 3 - HOMEM .................................................................................................... 184 O homem e a experiência ....................................................................................................... 185

Criação .................................................................................................................................... 191 Memória ................................................................................................................................. 199 Pensar e saber ......................................................................................................................... 202

Sentir ....................................................................................................................................... 209

Homem e nada ........................................................................................................................ 218 A morada do homem .............................................................................................................. 226 Morte ...................................................................................................................................... 239

Sagrado ................................................................................................................................... 244 Homem e Música .................................................................................................................... 254 CAPÍTULO 4 – MÚSICA E ABISMO ............................................................................... 260 A Dimensão Poética ............................................................................................................... 260 Música .................................................................................................................................... 286

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Música e materialidade ........................................................................................................... 287

Música e Linguagem .............................................................................................................. 295

Música e po…hsij .................................................................................................................... 300 A) Obra .......................................................................................................................... 306 B) Saber ......................................................................................................................... 314

Música e Abismo .................................................................................................................... 324 Música e verdade .................................................................................................................... 329 CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 334 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 337

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Epígrafe

Abandono

Amar é estar limitado

A só querer o abandono

Lugar aberto que invado

Ficando atento no sono

Da vida morta do mundo

Na voz que calou vazia

Fez o teu nome fecundo

Sons da mais pura alegria

Vem decifrar meu silêncio

Água contida na mão

Soma de acaso e de enredo

Paz repousando sem chão

Certeza plena me invade

Amar é broto de outono

No campo desta verdade

De só querer o abandono

BRAGA, Diego. Cancioneiro. Rio de Janeiro: Litteris, 2009.

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INTRODUÇÃO

O que nos chama são as questões. Aqui, elas se revelam na medida em que a poética

pensante se dá a pensar musicalmente. A música nos toma de tal maneira que a ela nos

rendemos celebrando a consagração de sua presença. Por ela, música, somos.

O trabalho que se apresenta se mostra na perspectiva dos caminhos. Os caminhos se

dão na guarda e na senda do ser em seu mistério. Caminhantes, buscamos nos encontrar na

referência ao que se concede ontologicamente. A música ontologicamente se manifesta em

uma copertinência originária nos caminhos do ser. A partir dessa copertinência ela se dá

unidade na medida do que por ela se apresenta. Portanto, buscando nos encaminharmos pelos

caminhos que se mostram, buscamos a unidade própria em que a música se dá resguardada.

Nessa medida, o caminho não poderia ser outro que a investigação e pesquisa profundas no

âmbito do ser. Na medida em que o ser a tudo resguarda, ele resguarda a música em sua

unidade de modo a conceder-se musicalmente. Assim resguardada, a música se apresenta

como questão convocando para a discussão o que lhe é inevitável. Na medida do profundo,

inevitavelmente se dispõe a conceder seu dito o ser, a linguagem, o homem, a música. Os

caminhos do ser se revelam de modo a congregar o que se apresenta como questão que, assim,

se dá resguardado no embate entre mundo e terra. Portanto, partimos em busca das questões

na disposição de uma escuta atenta e cuidadosa. Em tal escuta, nos encontramos na esperança

de que a poética pensante e o pensamento poetante se manifestem radicalmente a ponto de nos

concederem os caminhos do ser em sua verdade. Ao longo do percurso, fazemos uso do

procedimento poético hermenêutico, que procura pensar a partir da verdade das palavras.

Partimos também da própria experiência com o fenômeno na medida em que ele se concede

de modo inequívoco e, assim, dá a pensar poeticamente.

Música e abismo se dão nessa copertinência. Como unidade, ambos se articulam na

medida dos caminhos do ser que se revelam na tensão originária. Todo o caminho aqui

percorrido se apresenta na medida da busca profunda que ontologicamente perpassa cada

etapa do percurso. Música e abismo, nos caminhos do ser, reúnem ser, linguagem e homem

para se manifestarem musicalmente abrigados na unidade musical.

Por isso, o primeiro capítulo se dá questionando o ser nas suas múltiplas maneiras de

ser dito. Inicialmente tratamos da própria exposição do ser enquanto questão. Do modo como

ele se concede a ser questionado e qual o âmbito que ele abriga. Nesse sentido, procuramos

um afastamento das maneiras de questionar dominantes no Ocidente. Procuramos nos

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encontrar em atenção ao ser e a sua convocação na medida em que ele se concede nos

caminhos por ele permitidos. A questão do ser, portanto, se apresenta livre da sujeição do

sujeito. Livre, o ser fala e permanece em si mesmo resguardado no mistério. Todos os

questionamentos empreendidos ao longo do trabalho têm como foco a convocação que nos

toma. Convocados e exigidos nos lançamos à investigação do que interessa para o âmbito da

unidade musical ontologicamente. Por isso o capítulo inicial parte em busca da amplitude e da

ambigüidade do ser. Assim, começamos pela herança grega que se manifesta como fÚsij.

Não são todos os seus aspectos que serão abordados, apenas o que dela podemos receber

enquanto verdade. A fÚsij como experiência própria há muito já se perdeu, posto que

somente reverbera na sua verdade na Grécia Antiga. Livrando-a das equivocadas traduções ao

longo da tradição metafísica, buscamos questioná-la em sua verdade. Assim, inicialmente

partimos de Aristóteles, no que ele nos concede da fÚsij a partir de sua Metafísica. O que

procedemos não é uma análise extensa da obra aristotélica, mas sim partindo de dois

pequenos trechos onde a fÚsij se concede na medida de seu movimento de brotação, livre

das concepções empreendidas pelo platonismo. Em seguida, recorremos a dois fragmentos de

Heráclito de Éfeso, para complementar o livre falar da fÚsij em seu vigor originário e

ambíguo. Essa ambigüidade se dá explorada no dizer da permanência constantemente em

movimento que a própria fÚsij se concede. Velada em si mesma, misteriosamente ela

aparece no seu brilho de modo a dispor-se na sua integridade ao confronto.

A partir da discussão com a fÚsij, nos lançamos a perceber o que se dá como

experiência na medida do real. A partir das discussões empreendidas com o real, como uma

das maneiras em que o ser se concede, questionamos as possibilidades, as impossibilidades, a

realidade, as realizações e o irrealizável. Nesse sentido, o real se concede em distintas

possibilidades de discussão. O mais importante é que nesse caminho a concretude própria do

real se dá na sua constituição. Ele revela o poder como não poder na medida em que o âmbito

do irrealizável se encontra como a medida para todas as realizações da realidade, bem como

das possibilidades e impossibilidades do real.

Saindo do âmbito de maior amplitude da fÚsij e do real, buscamos questionar o que é

dito a partir dos nomes matéria e forma. Tais nomes possuem uma longa história na tradição

metafísica ocidental no que se refere ao âmbito da arte. Porém, buscamos nos esquivar de tal

tradição na medida em que tanto matéria quanto forma são investigadas a partir de si mesmas.

Nesse sentido, recorremos a investigar a partir tanto do fenômeno que se concede

materialmente nos seus limites, quanto a partir da hermenêutica. Assim, procuramos nos

encontrar na abertura de modo que matéria e forma falem de modo distinto do que nos mostra

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a tradição. Procedemos desta maneira, na esperança de que o ranço tradicional que

acompanha os termos se encontre alijado da discussão. Ainda nos concede Walter Otto em

belíssima passagem a respeito da forma de modo a nos conceder o fechamento desse

momento da discussão. Dessa maneira, percebemos matéria e forma, já no âmbito da fÚsij

como o que nos seus limites conquista seu próprio espaço.

Em seguida, buscamos investigar o nada. Pela tradição do pensamento o nada

permanece entendido como não passível de discussão. Passando por cima de tal concepção,

procuramos mergulhar de modo profundo na fundura sem-fundo em que o nada mesmo se

concede. Assim, buscamos em sua concretude a possibilidade que ele concede como abismo.

Desse modo, partimos das discussões de Heidegger a respeito do nada e procuramos dialogar

com o pensador. Nesse diálogo, o nada se revela ambíguo de modo que vela radicalmente o

ser. Sua ambigüidade se dá na medida em que o nada se mostra como o absolutamente outro

do ente, o absolutamente outro daquilo que é. Destarte, nessa diferença radical o nada se dá

como o sem fundo, como o ausente da própria ausência e de tudo o que é como o

radicalmente outro. Dessa maneira, velando o ser em sua verdade, apresentamos o nada como

o abismo de simplicidade, o abismo de ambigüidade e do ser e do não ser. Como

simplicidade, o abismo é a radical diferença em que todos os desdobramentos podem se dar.

Assim, o nada se mostra concretamente como abismo em copertinência originária com o ser

de modo que se apresenta como seu véu. No abismo ambíguo de simplicidade o ser se vela

resguardado em sua verdade. A ambigüidade do abismo suporta o âmbito do ser e do não ser

enquanto unidade.

Tomados pela convocação imperante, prosseguimos buscando o tempo na medida em

que ele se mostra radicalmente implicado no ser. As discussões se iniciam na medida em que

todos os entes se mostram temporais, de modo que, sendo, se revelam em manifestação. A

partir da temporalidade dos entes buscamos o tempo em si mesmo. Dessa maneira, os entes se

revelaram durando e demorando manifestos enquanto fenômeno. Travamos um diálogo com

Heidegger em seu ensaio Tempo e Ser. Em tal diálogo, compreendemos o tempo na unidade

tridimensional de presente, passado e futuro. Assim, o tempo se concede ao homem onde este

se mostra na disposição da memória. O tempo em referência à memória se concede em sua

tridimensionalidade. A partir da discussão o tempo se revelou em sua ambigüidade radical.

Ele mesmo, na medida de uma objetividade é inapreensível por si. Nessa ambigüidade,

passando, o tempo permanece como tal. Desse modo, presente, passado e futuro se mostram

retidos e retraídos como ausência ambígua que se concede apresentando-se. O tempo, como

unidade tridimensional, se mostra em copertinência originária com o ser onde ser e tempo se

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velam no abismo de simplicidade. Velados no abismo, ser e tempo se resguardam em si

mesmos na unidade em que habitam.

Em seguida, não poderia deixar de figurar a questão da verdade. Assim, nos

colocamos na disposição de questioná-la no âmbito do ser a partir da experiência. Para isso,

iniciamos com uma obra musical e debatemos a verdade da 5ª Sinfonia de Beethoven.

Percebemos, no plano ôntico, que a verdade dos entes se revela velada no seu próprio

aparecimento. O questionamento prossegue de modo que, buscando a verdade no âmbito

ontológico, percebemos a ambigüidade em que a própria verdade se encontra. A verdade se

mostra ambiguamente velada no abismo de simplicidade. O abismo se apresenta resguardando

toda não verdade da verdade. Assim, a verdade se mostra radicalmente não verdade

resguardada na unidade originária de ser e tempo. Mais uma vez o abismo se apresenta em

todas as questões radicais onde o ser se mostra radicalmente na multiplicidade de modos de

ser dito.

Mais adiante, tratamos da questão ser e música. A música se mostra como unidade

onde reúne músicos, ouvintes, obras musicais e saber musical. No entanto, ela não se resume

a nenhum deles. O abismo de simplicidade se revela musicalmente de modo que ser e tempo

se concedem no acontecimento musical. A copertinência de ser e música se revela de modo

que a unidade originária de ser e tempo se dão musicalmente. Música e abismo conformam

uma unidade em que todos os reunidos no âmbito musical se revelam musicalmente

apresentando e concedendo a simplicidade do abismo na música. Música e abismo em

unidade dão a medida desmedida radical para que os reunidos nessa unidade possam se

desdobrar em um sem-fim de possibilidades. Toda a investigação pelo ser ganha sentido no

âmbito do trabalho quando música e abismo se mostram co-pertinentes um ao outro. Ambos

em unidade se dão resguardados em suas diferenças. No entanto, musicalmente, não há

música sem abismo e nem abismo sem música.

Persistindo na investigação, o capítulo seguinte procede um questionamento a partir da

linguagem em sua verdade deixando-a livre para falar de si mesma. De modo que a linguagem

se mostra provocada diretamente na questão que nos impulsiona. Portanto, na medida da

linguagem, procuramos algumas considerações de modo que a própria linguagem se conceda

de modo próprio. Buscamos no diálogo a verdade da linguagem na medida em que ela reúne

fala e escuta.

Desse modo, nos colocamos a caminho em investigar a escuta de modo a esclarecê-la.

Nas discussões com a escuta, passamos pela audição do corpo e chegamos a um diálogo com

Heidegger. Para isso, recolhemos um pequeno trecho do ensaio a respeito do fragmento de

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número 50 de Heráclito. Nessa discussão percebemos a escuta em uma unidade com o que se

concede como fala. Debatemos dialogando com Heidegger que a escuta se dá como um

pertencer. Discutimos o trecho heideggeriano buscando questionar todas as palavras do dito

de modo que a partir dele a escuta se mostrou. Mostrou-se co-pertinente à fonte inaugural e

originária que brota como fala. Essa fonte se envia para a guarda cuidadosa da escuta que lhe

pertence.

A escuta se mostrou em um limiar, em uma ambigüidade. Ela se revelou como um

pertencer ao que, por si mesmo, se envia. No entanto, ela se apresentou como escuta na

medida em que é concedida aos mortais que dela participam. Assim, ela se apresentou sendo e

não sendo dos homens, porque neles ela brilha pertencendo ao que se envia. Portanto, escutar

é pertencer. Escutar é estar em reunião com o que, por si mesmo, fala. A escuta se mostra

reunida na fala que a pressupõe ao mesmo tempo em que escutar pressupõe um falar. Nessa

reunião, a escuta trouxe o homem de modo inequívoco.

Na medida do diálogo, passamos a questionar a fala em sua verdade. Procedemos

algumas investigações que buscaram na hermenêutica poética recolher a verdade de alguns

termos para o esclarecimento da fala. Dessa maneira, a fala se mostrou como o que brilha por

si mesma. Nesse brilho misterioso, ela traz o combate radical e originário do mostrar que se

vela apelando violentamente. Em seguida passamos a investigar a fala na sua origem de modo

a mais uma vez dialogar com Heidegger. Na origem da fala que brota como tal, percebemos

mais claramente a questão própria da reunião do diálogo. Fala e escuta se co-pertencem. O

que brilha misteriosamente como fala pressupõe a escuta que pode suportar o brilho ofuscante

de seu envio. Dessa maneira, pudemos supor, inicialmente, que a linguagem é uma reunião. A

linguagem reúne ao seu modo o que por ela se dá como tal.

Passamos adiante, discutindo o diálogo na medida em que ele deve ao lÒgoj a sua

existência. A respeito da busca pelo lÒgoj em seu mistério, discutimos dialogando com

Heidegger a partir dos três caminhos de acesso ao lÒgoj heraclítico apontados pelo pensador.

Desse modo, iniciamos discutindo o tudo-um do fragmento de número 50 de Heráclito, onde

o lÒgoj se diz na unidade que reúne a multiplicidade resguardada na simplicidade do abismo.

O um e a multiplicidade se manifestam de modo que ambiguamente o lÒgoj se dá reunindo a

multiplicidade. Assim, ele se concede ao modo de poder suportar toda a multiplicidade do que

se dá. O segundo caminho que tomamos se deu a partir da discussão da palavra grega lšgein.

Tal palavra se revela como seleção e escolha. Portanto, debatemos a escolha e a seleção a

partir de sua própria medida. Os critérios para que algo possa ser escolhido na reunião de sua

unidade se mostraram medidos pelo excluído de toda exclusão. O abismo enquanto excluído

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de toda exclusão mostra um sem-fim de possibilidades que foram deixadas de lado para que a

escolha de um caminho pudesse se dar. Portanto, o lÒgoj na medida do lšgein se mostra o

excluído de toda exclusão permitindo toda a reunião como escolha e seleção. Por último, o

terceiro caminho apontado pelo pensador se dá na discussão do lÒgoj da yuc». Este se

apresenta a partir da discussão do fragmento heraclítico de número 45. Na discussão deste

fragmento percebemos a unidade tensional e originária entre fÚsij e lÒgoj. Tal unidade se

dá na medida em que debatemos com Heidegger a partir de Heráclito, que não há uma divisão

no lÒgoj. Mas sim, que em uma unidade a vida possui lÒgoj porque já é essencialmente

fÚsij. Dessa maneira, fÚsij e lÒgoj se dão na copertinência originária revelados um no

outro. Ambos são nomes distintos abrigados pelas múltiplas maneiras em que o ser se diz.

Seguindo as investigações, passamos a discutir a referência entre lÒgoj e linguagem.

Nessa medida, compreendemos a linguagem como reunião. Reunindo ela abriga o que se

envia, como fonte originária que brota como fala, a escuta, que pertence à essa fonte, e o

homem. Ao homem é permitido estar na reunião por lhe ser consentido habitar a abertura da

escuta. Dessa maneira, não há a linguagem de um lado e o homem de outro. A linguagem em

sua dinâmica de acontecimento abriga o homem. Na dinâmica da linguagem a fala e a escuta

se dão em unidade, elas são o mesmo por uma já pressupor a outra. A linguagem é uma

referência. A referência onde fala, escuta e homem co-pertencem.

A última parte do segundo capítulo buscou discutir a relação entre linguagem e

música. De modo que ambas se dão como unidade no aspecto da reunião, a referência entre

elas é inequívoca. Música e linguagem interagem de modo que a linguagem aparece

musicalmente na música. A música se dá reunião de modo que os que por ela são reunidos se

dão em uma referência a ela mesma. Ao modo da linguagem a música reúne o diálogo. A

música retém o diálogo como acontecimento musical, de modo que o diálogo se dá

musicalmente. Assim, linguagem e música se referem de modo que a linguagem se concede

musicalmente abrigada na copertinência que a unidade musical revela. Música e abismo

abrigam o conceder musical da linguagem.

O terceiro capítulo do presente trabalho se ocupou de questionar o homem. Vários

aspectos são pertinentes na medida em que o homem se põe em questão. O homem em si é

misterioso. Seu modo de ser, resguardado pelo ser é mistério. Assim, o homem convocado

pela questão que nos impulsiona se diz a si mesmo na medida em que se revela

misteriosamente como fenômeno.

O primeiro ponto que investigamos a respeito do homem foi a experiência. Na medida

da experiência questionamos como o homem se mostra na possibilidade de transcender seus

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próprios limites. Ao homem é concedida a dádiva de poder habitar a abertura para o que se

manifesta. Desse modo, percebemos que ele se dá na possibilidade de sair de si mesmo em

direção a alteridade. No entanto, ele pode retornar abrigando o que confrontou. Tal abrigo se

revela necessariamente misterioso. Assim, o homem entende sem poder compreender ou

envolver o que se dá. Na experiência, o homem se vê como outro. Ele é para si mesmo

alteridade.

A seguir discutimos o papel do homem na criação. Para isso buscamos alguns

exemplos da experiência. Desse modo, percebemos que o homem colabora na criação com o

que se concede no envio próprio e radical. A partir do confronto próprio, ao homem é

consentido participar da seleção que se dá na criação. As criações que lhe são permitidas

participar configuram delimitando o âmbito do mundo no abrigo e resguardo da terra.

Portanto, na criação de que o homem participa, percebemos o embate originário da

emergência de um mundo. Um mundo surge no combate violento com a terra que o sustenta.

Na criação, vista a partir de tal perspectiva, a terra aparece com outra possibilidade de se

revelar. Esse aparecimento antes negado a ela se desvela em um mundo. Portanto, o mundo

revela a terra que o sustenta, permitindo que ele possa lhe revelar de tal modo.

Todos os aspectos abordados a respeito do homem, não seriam possíveis se a ele não

fosse concedido estar na disposição da memória. Por conseguinte, ao homem é permitido

estar na disposição da memória. Na disposição da memória, o que se dá se resguarda em sua

unidade. Na discussão com a memória, partimos das palavras de Antônio Jardim. Ele nos

concede a memória como o que resguarda as coisas em sua unidade. Assim, um mundo se dá

como unidade e as criações podem ocorrer porque se dão como memoráveis ao resguardo da

memória. Na disposição da memória o homem pode perceber as coisas em sua unidade que

dura e demora.

Na disposição da memória e lhe sendo permitida a experiência, discutimos o pensar e

o saber na medida do homem. Buscamos debater com Heidegger a questão do pensar e do

saber a respeito de seu entendimento do saber pela interpretação da palavra grega sof…h

disposta no fragmento de Heráclito. Dessa maneira, percebemos o saber e o pensar na

possibilidade de uma referência. Assim, investigamos de modo que ao ser enquanto fÚsij

permanecem fechados o pensamento e a sabedoria. No entanto, pensar e saber somente são

concedidos a partir do ser e abertos ao homem que participa do pensar e do saber. Pensar e

saber partem do ser, mas o ser mesmo não sabe e não pensa. O ser concede ao homem habitar

o pensar e o saber que o próprio ser resguarda.

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Ao homem todas as relações que se mostraram em investigação se dão em unidade.

São simultâneas. Com isso, o sentir é algo que também a ele se dá. Investigamos o sentir a

partir do que se dá como sentido. O sentido se mostra como o que a si mesmo se envia

enquanto unidade. Desse modo, uma flor e uma pedra são puro sentido. Do mesmo modo uma

obra musical também se dá sentido. O que se apresenta enquanto unidade como sentido é que

permite ao homem sentir. Sendo ao homem concedido habitar a abertura para o ser, lhe é

consentido sentir o que se dá como sentido. Por isso o homem sente. Ele sente porque pensa e

sabe na medida em que saber, pensar e sentir lhe são concedidos pelo ser e nele resguardados.

No âmbito das discussões, restou ainda investigar a referência entre homem e nada.

Nesse aspecto, mais uma vez dialogamos com Heidegger nas suas discussões a respeito da

referência entre homem e nada. Na medida em que o pensador nos concedeu seu pensamento,

discutimos o homem na medida de um estar suspenso e lançado no nada. O homem é o único

ente do ser que pode vislumbrar o nada como a alteridade radical. Suspenso e lançado no nada

o homem pode ter um indício do aceno da unidade de ser e tempo em sua verdade. Suspenso

no nada ao homem é concedido ver que o ente é e como ele brilha em seu mistério. Destarte,

pode o homem colaborar na criação, estar na disposição de saber, sentir e pensar.

Outro aspecto relevante na pesquisa a respeito do homem se deu em debater sua

morada. Iniciamos as discussões a partir do fragmento número 119 de Heráclito a respeito da

morada do homem. Procurando discutir o fragmento a partir de algumas interpretações e

traduções distintas discutimos o da…mwn heraclítico a partir de três vertentes: como extra-

ordinário na medida do divino, como extraordinário na medida ontológica, e como escuta.

Todas as vertentes foram debatidas e investigadas como complementares em sua diferença.

Buscamos discutir as traduções de Carneiro Leão e Alexandre Costa, bem como as

interpretações de Heidegger e Antônio Jardim. Nessa medida todos os modos de habitação do

homem se revelaram em unidade. A escuta, o ser e o divino. Após a discussão do fragmento

heraclítico, nos concentramos em debater o poetar pensante de Hölderlin. No poema No azul

sereno floresce..., o poeta nos concede o habitar poético do homem. Em todos os aspectos o

homem somente habita, originariamente, poeticamente esta terra.

Na medida de ser concedido ao homem habitar a abertura para o ser, ele se encontra na

disposição de saber a morte. A morte se dá como questão radical na medida do homem. Ela se

mostra ao homem na medida em que permanece misteriosa. A respeito da morte buscamos na

própria experiência do fenômeno discuti-la em sua verdade. O homem é mortal, se dá como

mortal porque sabe e vive a morte. Vivendo a morte ele se depara suspenso no seu mistério.

Assim, ela permanece como morte no seu próprio mistério. O homem sabe a morte em vida.

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Por isso, vida e morte se dão em unidade. Viver é já estar na disposição e no resguardo da

morte. Dessa maneira, o homem já vive morrendo. Morte e vida se co-pertencem na

copertinência de suas diferenças como o mesmo.

No que se refere ao homem na medida da convocação que nos exige, ainda discutimos

a questão do sagrado. Tal questão é fundamental de modo que não há homem sem sagrado.

Buscamos debater a questão do sagrado a partir da interpretação heideggeriana do poema de

Hölderlin. Onde o céu e o deus se mostram como a medida dos homens. Assim, percebemos

que o homem se mede no divino. O sagrado se mostra respectivamente uma reunião que

dispõe o homem no mistério do que se mostra sagrado. Desse modo, o sagrado se manifesta

permanecendo no mistério próprio de si mesmo e lá se resguardando. Trazemos ainda os

dizeres de Walter Otto a respeito do mito e sua densidade na medida em que ele se concede

consagradamente verdade.

Finalizando o capítulo, buscamos a discussão entre homem e música. A música

enquanto reunião resguarda o homem na medida do músico e do ouvinte. Dessa maneira, o

homem se suspende no acontecimento da unidade musical já aparecendo musicalmente. O

homem se dá musicalmente reunido pela música enquanto músico e ouvinte. Já suspenso, a

ele é concedida a possibilidade de participar do mundo musical que se abre em copertinência

com o abismo de simplicidade.

O quarto, e último, capítulo do trabalho nos é concedido na medida em que nos

colocamos na disposição de questionar a dimensão poética. O início dos questionamentos se

dá na medida em que nos dispomos a escutar atentamente o poetar pensante de Cecília

Meireles. A partir do poema Motivo a poetiza nos concede o âmbito da dimensão poética onde

o abismo de simplicidade é posto a falar em sua verdade. Lá ela nos concede a verdade do

canto, do poeta, do ser, do abismo. Na condição de poder habitar o ser o poeta “é irmão das

coisas fugidias”. Suspenso em sua solidão o poeta sabe de sua condição e vê que o canto

originariamente lhe resguarda em sua verdade como poeta. A partir do poema o tempo se

desvela poeticamente em unidade com o ser. O poetar pensante nos concede reunindo todas as

discussões antes empreendidas no seu dizer que canta. Ser, tempo, homem, linguagem,

música e abismo soam e reverberam nas sábias e belas palavras de Cecília Meireles. Pelo seu

dizer percebemos radicalmente a unidade entre música e abismo pelo presente que nos é

ofertado no poema. No poema o abismo do nada se concede a dizer se revelando

poeticamente. O nada enquanto abismo de simplicidade somente se revela poeticamente.

Prosseguimos a investigação da dimensão poética na medida em que questionamos as

próprias palavras dimensão e poética na busca hermenêutica de sua verdade. Assim,

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percebemos que a dimensão poética é uma unidade que diz a si mesma velada e resguardada

no abismo. O abismo vela a verdade que se dá na dimensão poética poeticamente.

A seguir, os questionamentos se dão na medida da música de modo específico.

Questionamos a música enquanto unidade na medida em que ela reúne o que por ela se mostra

em sua dinâmica. A música se dá reunida quando é a referência para músicos, ouvintes, obras

musicais e saber musical. Todos os reunidos se dão no âmbito da unidade de copertinência

entre música e abismo e, assim, encontram um sem-fim de possibilidades de desdobramento a

partir da simplicidade.

A seguir dispomos a questão da música e da materialidade. A materialidade é

entendida nos aspecto da fÚsij como mãe. Assim, a mãe concede o som e o silêncio na sua

própria medida para se revelarem verdade no acontecimento da obra musical. Percebemos na

discussão, o som e o silêncio se articulando como verdade. Eles se mostram bailando em

movimento próprio nas suas tomadas de medida uns frente aos outros. Assim, se revelam em

sua verdade musicalmente.

No que se refere a investigação de música e po…hsij esta se apresenta na medida em

que discute todos os reunidos na dinâmica musical. Aqui a obra, e o saber congregam ainda

músicos e ouvintes. Todos reunidos se resguardam em unidade na música em co-pertinência

originária com o abismo de simplicidade. A obra se apresenta na medida em que pressupõe

implicados músicos, ouvintes, saber, outras obras musicais, um mundo de inter-relações

musicais, a música e abismo como unidade, que a todos os outros resguarda. Cada um dos

implicados se apresentando pressupõe os outros. Todos somente se dão reunidos e

resguardados no âmbito que os nomeia.

Para finalizar o capítulo nos colocamos na disposição de investigar a referência

originária entre música, abismo e verdade. Nessa discussão percebemos a unidade musical na

copertinência originária que a resguarda sempre velada no brilho de sua verdade como não

verdade. Todos os reunidos na unidade musical recebem suas possibilidades e

impossibilidades no sem-fim abismal em que a música se mostra. A música revela o abismo e

é revelada por ele simultaneamente. A verdade de música e abismo se mostra velada no

próprio aparecimento musical enquanto acontecimento. Como acontecimento a música se

resguarda no abismo de modo a nunca se dar a uma apreensão. A música é unidade de

referência. Nela, ser e tempo se concedem musicalmente. A verdade musical revela ser e

tempo como música resguardados no âmbito musical em copertinência com o abismo.

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Assim, as investigações seguem ao modo de um convite a uma escuta atenta e

cuidadosa. Prestemo-nos à convocação que nos exige e nos lancemos em busca de questionar

na poética pensante que a música como unidade é.

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CAPÍTULO 1 – SER

O que para nós se insinua como questão diante do panorama ao qual nos propomos

assumidos numa suspensão e num lançamento, na medida em que procuramos nos encontrar

de modo próprio na disposição do questionar? A princípio, o que nos motiva como um

inequívoco e irresistível impulso se dá na perspectiva de um chamado e uma convocação.

Assim convocados, podemos nos encontrar na disposição de confrontar os caminhos em que a

música nos conceda dar-se livre de quaisquer interferências. De modo que estamos na

disposição que nos convoca, se insinua, de qualquer maneira, o que antes de tudo se resguarda

na medida de todos os âmbitos: o ser abrigado em sua verdade. É ele que mostra permitindo

os caminhos que se desvelam musicalmente lançados na relação abismal. Assim, pode

desdobrar-se a música como reunião dialogante de modo que se movem dinamicamente em

questão ser, caminhos, música e abismo. Tal permissão se insinua concedendo na exigência

de que sejam postos como questão, na disposição de sua emergência, os que se encontram

implicados movendo-se a partir da simplicidade. O ser é o que, de qualquer modo, sempre

dispõe o homem na disposição de uma referência, desse modo, o homem se vê lançado e

implicado nos caminhos em que o ser se revela no resguardo de sua verdade. No âmbito do

ser, na permissão dos caminhos, a música é permitida e abrigada por ele dialogando enquanto

referência trazendo o homem lançado em uma exigência radical. Dessa maneira, iremos

procurar de modo próprio estar na disposição do ser que indiscutivelmente se insinua como

questão. Assim dispostos, nos colocamos na esperança de que ele nos esclareça ofuscando

toda e qualquer visão e escuta nos diálogos que se apresentem ao longo do percurso. É diante

de tal esclarecimento ao mesmo tempo misterioso que poderemos nos situar na questão que se

impõe com cuidado e no tratamento devidos. Portanto, a questão do ser aqui nos lança em

movimento, na medida em que nos impele a buscar o que se mostra nos empenhos e

desempenhos dos caminhos em que a música se pronuncia na simplicidade do abismo. Ao

mesmo tempo, o ser enquanto questão revela, como imposição, música e abismo implicados

por si mesmos na radicalidade de sua copertinência.

De todo modo, percebemos que é a partir do ser que as questões podem se mostrar. Na

verdade, a questão primordial do ser nos permite vislumbrar a profundidade que a exigência

da convocação que, necessariamente, nos implica, assim já reclama. Perante tal reclamação

nos encontramos postos na disposição de vislumbrar por onde os caminhos dialogantes da

música e do abismo podem se dar lançados no movimento como tal, na ciranda do ser que,

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permanecendo no resguardo de sua verdade, permite o desdobrar-se de todos os caminhos.

Torna-se de todo modo importante enfatizar que percorrer todos os caminhos suscitados pelas

questões que se apresentam - no caso, aqui, num primeiro momento, assim se concede o ser já

na sua própria permissão - é tarefa insustentável para quem quer que seja. Já Heráclito bem

nos alerta no seu fragmento de número 45 sobre tal impossibilidade: “Não encontraria a

caminho os limites da vida mesmo quem percorresse todos os caminhos...”1. Os limites da

vida são de todo modo a metáfora em que se mostra a impossibilidade radical em abarcar o

que assim se impõe. Portanto, os caminhos pelos quais iremos optar no decurso das

investigações irão levar em consideração o foco da questão que nos convoca em exigência,

sendo ela a condição em que nos encontramos dispostos em suspensão de modo radical.

Assim sendo, alguns caminhos serão postos em detrimento de outros tendo em consideração o

que nos convoca enquanto questão na medida de sua verdade como exigência.

Portanto, não pretendemos focar caminhos filosóficos específicos na medida das

questões. No entanto, o pensamento se revela diretamente implicado na medida em que se

encontra, enquanto diálogo, em estreita referência com a poética, esta que mostra arte e

pensamento na conjunção dos caminhos. Assim, os empreendimentos vão procurar ter em

atenção o pensamento poético e a poética pensante, de modo que possamos talvez nos

encontrar em tal conjunção. Caso, de alguma maneira, ambos venham a aparecer separados,

estarão assim na aparência em que determinados modos de proceder podem vir a trazer como

enfoque maior, um em detrimento do outro. No entanto, tal foco momentâneo não deixa de ter

em conta a relação em que pensamento e poética se encontram no mesmo na unidade de suas

diferenças.

A exposição da questão

Quando se põe em questão o ser na medida em que ele, como tal, possibilita o

desdobrar-se de todos os caminhos - de modo que a questão da música enquanto reunião

dialogante onde estão implicados homem, caminho, abismo, de qualquer maneira encontre o

seu próprio âmbito - a pergunta que de modo fundamental se insinua é: o que é isto, o ser?

Talvez na implicação em que nos encontramos empenhados poder-se-ia perguntar diretamente

pelo ser da música, e em qual disposição esta se mostra relacionando de todo modo o abismo

na reunião do diálogo. No entanto, compreendemos que a questão do ser em sua radicalidade

1 Tradução de Emmanuel Carneiro Leão in Os Pensadores Originários, 1999 p. 71.

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pode esclarecer o que pretendemos de modo mais eficaz. A eficácia se dá na medida em que

partindo de tal questão podemos com maior possibilidade, adentrando na profundidade dos

caminhos próprios em que o ser se manifesta, nos encontrarmos postos na disposição de

questionar a música e abismo numa referência à sua verdade. Na referência que permitida

pelo ser, de todo modo obnubila nos ofuscando num esclarecimento enquanto nos

encontramos dispostos na escuta e na visão de modo radical. Por isso é que retomamos a

questão que se insinua, de modo a nela estarmos na disposição de encontrar os caminhos em

que possamos, radicalmente, adentrar aquilo que, já incomodando, impele o movimento em

que nos encontramos dispostos.

Retomando a questão, repetimos: o que é isto, o ser? A questão gramaticalmente se

apresenta de modo muito simples. Existe um questionado que se posta de modo próprio na

distinção do pronome demonstrativo isto e, assim, posteriormente se anuncia pelo nome ser.

Esse modo de inquirir apresenta o demonstrativo em uma aparente separação com o que vem

a ser anunciado em seguida pelo seu nome próprio. Esta é uma separação proposital e se

encontra em um sentido. Na medida em que o aparecimento do demonstrativo se dá, ao

mesmo tempo ele traz a possibilidade de maior atenção - por parte daquele que se encontra na

dinâmica do questionar - ao que se anuncia logo após. No modo como procuramos esclarecer

o questionamento anterior, temos nitidamente a impressão de que este se encontra no âmbito

da funcionalidade, onde percebemos que o demonstrativo se encontra na função de nos

preparar o ânimo para o que vem a seguir. Assim, ele teria o propósito de agir, na ação que

intenta provocar nossa atenção enquanto já dispostos na dinâmica própria do questionar, de

modo que tal provocação possa acontecer efetivamente.

Contrastando o questionamento que se faz presente com o modo que hoje vigora

habitualmente enquanto questionar estabelecido no Ocidente, pode ser que se torne mais clara

a maneira de perceber o que nos encontramos dispostos em discutir. Tal procedimento pode

nos esclarecer pelo menos no que tange à diferença entre as duas formas de discussão.

Costumeiramente compreendido como modo de questionar dizemos no Ocidente: o que é o

ser? A questão inicial, em uma distinção que parece inocente ou até irrelevante - caso haja a

não atenção e cuidado ao modo de sua convocação própria - não se dá dessa maneira. Se ela

assim procedesse, estaria revelado um comprometimento outro com o que nos encontramos

na intenção de questionar. Isso, porque há no modo tradicional de questionar um

posicionamento que se situa fora da possibilidade de estar de maneira concisa no foco da

questão. Deste modo, o questionado em si mesmo se mostra já deslocado da discussão como a

origem desta. A partir da interposição do isto na questão inicial, esta se dá de maneira a

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pertencer a um aparecimento posto. Um aparecimento que se posta, de modo análogo ao se

dizer questionando: o que é isto que se põe à frente confrontando, de modo próprio, com todo

o seu vigor? Nesse desdobramento ainda podemos vislumbrar o entendimento de que o isto se

mostra na condição de separar, efetivamente, o que está em questão de nós mesmos - que nos

encontramos postos na disposição de questionar - de modo que assim este mesmo “isto” se

encontre na possibilidade de marcar radicalmente a delimitação da diferença. Do contrário, se

a questão for colocada apenas como o último exemplo: “o que é o ser?”, então há uma

mudança de posicionamento fundamental. Na medida em que nós que nos encontramos na

disposição de uma investigação, acabamos por fazê-lo a partir da perspectiva já adotada na

tradição do Ocidente, qual seja: a de perguntar a partir nós mesmos, posicionando-nos desse

modo na compreensão e no comprometimento de sermos o sujeito de todas as coisas que nos

rodeiam. O não aparecimento do isto revela a questão partindo do sujeito, de modo que este

fundamentalmente acabe por se encontrar – profundamente arraigado na errância que permite

todo erro - fora da possibilidade de estar aberto à verdade da questão mesma. Isso se dá pelo

simples fato de a questão, em tal perspectiva, somente poder ser vislumbrada a partir da

egoidade do sujeito, na perspectiva do homem errante. No entanto, devemos dizer que essa

não é uma egoidade construída de modo consciente, no que se refere aos hodiernos. Mas sim,

que ela consiste num posicionamento frente às coisas que ultrapassa fundamentalmente e de

maneira essencial toda a possibilidade de entendimento do homem em relação ao que esteja

na proximidade enquanto vizinhança. Em tal posicionamento, toda a sua formação enquanto

homem do Ocidente o lança radicalmente à instituição e constituição de mundo, fazendo-o ser

o que ele é e como ele é nessa compreensão sem que necessariamente ele assim escolha ser

articulado e compreendido em sua complexidade e profundidade. Ou seja, ele é na verdade

escolhido para ser o que é nessa articulação pela tradição que o acolhe. Tradição esta que já

nas articulações metafísicas mostra o homem na formulação de tal egoidade como

pressuposto da articulação de pensar e questionar, para assim se posicionar perante o que se

mostra convocando na exigência como questão. O modo de procedermos e nos posicionarmos

perante as questões que aqui se insinuam pretende já de toda maneira se abster de tal

equívoco.

Assim, voltando à questão que questiona pelo ser, o fato de haver um deslocamento

propiciado pela interposição do pronome demonstrativo: o isto - faz com que a colocação

metafísica acabe por expirar, pelo menos no que tange ao modo de questionar. No entanto, o

“isto” não é nenhuma garantia de que esta posição diferenciada possa efetivamente acontecer.

Apenas podemos dizer que ele é uma garantia inicial de que a tentativa de cuidado se põe a

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caminho nos empenhos e desempenhos em que nos encontramos postos na disposição que nos

ultrapassa. Assim podemos e devemos dizer, por que a tradição se encontra perpassando todos

os níveis de entendimento e compreensão. No entanto, pelo menos tal posicionamento pode

marcar - mesmo visto no âmbito da funcionalidade - uma atenção que se mostre no cuidado

enquanto aquele que guarda a possibilidade de erro a todos os percalços do caminho. Tal

atenção faz com que nós que nos encontramos a caminho, lançados errantes na errância,

possamos perceber um alento de atenção às armadilhas cunhadas pela tradição que

essencialmente nos forma e precede.

Tal lançamento nos coloca na disposição do cuidado que o erro assim suscita.

Portanto, a aparente simplicidade do questionamento esconde a sua real situação. Há muito

que se procura uma resposta que venha satisfazer à altura a complexidade da questão do ser.

Isso vem a atestar a profundidade da mesma de modo que ela pode ser dita como questão de

máxima envergadura, pois que a tudo abarca e compreende. Percebendo-a nesta perspectiva

entendemos não haver questão maior que a do ser. Sendo que ela é, na sua amplitude

ambígua, a direção segura ao mesmo tempo em que insegura para nortear as discussões

dialogantes em que nos pretendemos lançar.

Podem haver algumas objeções ao que dissemos anteriormente. Isso porque a primeira

análise a partir da questão inicial se deu no âmbito gramatical e, posto de um modo ou de

outro, também no âmbito da funcionalidade. Contudo, mesmo diante do que podemos

perceber com alguma facilidade, é bom termos a cautela de dizer, ou melhor, na verdade, é de

fundamental importância enfatizar que a questão inicial não é uma questão do âmbito da

gramática. A questão do ser não se basta ao ser discutida gramaticalmente por não se mostrar

originariamente enquanto questão gramatical. Na verdade, ela deve ser compreendida como

questão ontológica onde, pelo próprio nome, a questão se enuncia como aquela que pretende

investigar o ser. Portanto, antes de ser uma questão de gramática, trata-se de uma questão já

abrigada e resguardada pela linguagem, na medida de um diálogo radical que reúne o homem

numa convocação própria. Assim resguarda como reunião dialogante, a questão do ser

permite os caminhos que se desdobram. Dessa maneira, é uma questão que se mostra na

disposição de estar na dinâmica da sua verdade. Deste modo a questão permite que nos

coloquemos propriamente na disposição que nos abriga diante do que pretendemos buscar. É

justamente isso que o “isto” exposto na questão demonstra: o se posicionar de modo

diferenciado na atenção e cuidado pelo que sempre é maior. Nesta grandeza podemos nos

compreender na reunião como aqueles que pretendem estar na senda de questionar o que se

põe em questão. O “isto” nos possibilita o posicionamento onde nos dispomos a que o ser

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mesmo possa mostrar veladamente, na diversidade de seus caminhos, a verdade. Onde

podemos vislumbrar que tal verdade se dá na reunião em que o desdobramento dos caminhos

que pelo ser se desdobram se mostram como acontecimento.

Deve-se ter claro que não pretendemos com isso dizer que a gramática deixe de ter sua

validade. Aqui não pretendemos desautorizar a gramática naquilo que ela faz com o que

recebe da linguagem. Apenas procuramos demarcar a diferença em atestar que ela de pouco

pode ajudar, na medida em que, o que pretendemos discutir, há muito a ultrapassa. Em tal

ultrapassagem o ser perpassa radicalmente toda a essência da gramática, já que ele se encontra

fundamentalmente resguardado enquanto verdade na sua anterioridade a ela. Então, de todo

modo reafirmamos que nossa pretensão é de nos encontrarmos na dinâmica de uma discussão

ontológica e não gramatical. No entanto, nos momentos em que forem realizadas abordagens

onde relações com a gramática estejam presentes, esta última estará figurando na discussão

com um propósito de auxílio quando assim se fizer necessária, e nunca como o foco da

mesma.

Recolocada e vislumbrada a questão no âmbito de sua grandeza, interpõe-se uma

pergunta: o que pode se colocar de modo mais abrangente que o ser? Inicialmente não

conseguimos vislumbrar algo que satisfaça a esta indagação. Em termos de ontologia tudo o

que pode ser dito como real está na senda do ser. Trazendo exemplos da vida cotidiana

podemos dizer que a caneta é algo que é e, sendo, pertence ao ser; do mesmo modo também o

sonho, de maneira que ele é dito como algo que é; assim também acontece com o ódio, o

amor, a paixão, todos são o que são e, por serem necessariamente sendo, pertencem ao ser; da

mesma forma o pensamento, o sono, a terra, o fogo. Assim, podem ser delineadas e referidas

as coisas palpáveis e impalpáveis. A respeito das coisas palpáveis pouco precisamos dizer no

momento posto sua obviedade. Contudo, no âmbito da impalbabilidade se encontram também

as obras musicais que rendem à música a sua unidade. Como obras que são sua aparente

inapreensão marcada por tal impalpabilidade rende a elas uma aparência de não concretude.

No entanto, sua concretude permanece resguardada de modo radical pelo ser na sua

amplitude, de modo a permitir às obras musicais obrarem na unidade da música.

Permanecendo na questão que se refere a amplitude do ser na permissão dos

desdobramentos, podemos dizer que todas as coisas que podem ser ditas a ele pertencem. Em

tal pertença se encontram as coisas que ainda não podem ser ditas, estando estas últimas na

latência de um aparecimento posto que permanecem encobertas. Assim encobertas, são

sempre no encobrimento ou ainda na possibilidade de nunca serem lançadas ao ser no modo

de um aparecimento no plano ôntico. Ou seja, podem jamais chegar ao plano dos entes que

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são sendo ao seu modo no abrigo e na permissão do ser. Devemos também levar em

consideração dentro desta mesma perspectiva todas as possibilidades e impossibilidades de

acontecimento do que quer que seja. Estas também pertencem ao ser, pois, para serem o que

são, seja como possibilidade ou impossibilidade, sendo, já são o que são pertencendo a ele de

modo próprio. Dessa maneira, o ser em sua amplitude se mostra na medida em que reúne

radicalmente fazendo tudo convergir para si. Assim reunindo em sua amplitude, ele traz na

medida dessa reunião a permissão daquilo que é, em tal permissão o que é pode desdobrar-se

radicalmente. Podemos dizer nessa perspectiva que no caso específico das obras musicais e da

música como reunião, o aparecimento, o não aparecimento, bem como o desaparecimento já

se encontram abrigados no fundo da fundura do ser como questão, na medida em que ele

assim as resguarda em sua própria unidade. Com isso, tudo o que se dá encontra-se na sua

dinâmica, de modo a questão do ser se apresentar como a mais profunda em sua fundura.

Cabe-nos então perscrutar tal profundidade. Esta pode ser vislumbrada a partir de sua

inesgotabilidade, de modo que possa permitir nos mantermos suspensos a partir do ser no

resguardo de sua verdade.

Por compreendermos que há muito a questão do ser desafia essencialmente o homem

ao confronto de sua verdade, e por percebê-la como algo que sempre escapa ao alcance de

uma objetivação, podemos dizer que essa fundura se dá de modo todo próprio. Tal fundura se

encontra de modo que não se possa perceber e muito menos precisar sua dimensão. Assim,

podemos dizer que ela mesma enquanto questão se encontra em uma ambigüidade, nos

lançando em um abismo onde nos encontramos suspensos perante a errância de todo erro. Tal

errância é a que nos permite caminharmos errantes em tal ambigüidade. Podemos dizer que a

fundura na qual se encontra a questão se remete à ambigüidade do fundo sem-fundo, tamanha

sua envergadura. De todo modo, o ser perpassa toda a constituição do real, da realidade, das

realizações, do irrealizável, das possibilidades e das impossibilidades em todos os tempos.

Assim, ele se mostra como a referência para tudo o que se dá bem como também o que não se

dá. Dizemos assim, por que é ele o que leva e manifesta tudo o que se põe misteriosamente

em seu resguardo. O ser, desse modo, se mostra em sua grandeza como o que a tudo conduz,

por isso ele é a referência de tudo, mas a nada se refere. A nada se referindo ele se abre na

perspectiva abismal de permissão a todos os desdobramentos como caminhos que nele se

desvelam. A tudo conduzindo ele é o sumo e a plenitude a qual não se pode chegar no simples

entendimento de uma objetividade. Assim, em todos os entendimentos o ser se encontra na

presença de sua ausência. Como condução que a tudo conduz ele chama a música em sua

unidade, bem como o homem à plenitude de sua essência, de modo que estes já se encontram

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abrigados na ambigüidade radical. Tal condução reúne também a linguagem em sua verdade

de modo a mostrar homem e música implicados nos desdobramentos que se dão.

Não devemos entender o sumo e a plenitude mencionados na perspectiva da essência e

do fundamento ao modo como estes são evocados normalmente pela tradição filosófica. Sumo

e plenitude devem ser compreendidos, na perspectiva do ambíguo, do dissimulado, do

encoberto. Aqui, essência é origem na medida do originário que se furta a qualquer cronologia

e linearidade. A plenitude se compreende como a comemoração do entendimento do amplo

em sua amplitude que, dentro de sua envergadura, a nada e nem a ninguém fica a dever.

Como abismo, como nada em sua concretude, o ser enquanto questão emerge na emergência

que mede o próprio confronto em que dispõe na disposição o homem. Assim, o ser pode dar-

se em sua verdade de modo que resguarda e norteia na dissimulação a discussão em que nos

encontramos empenhados.

Devemos ter livre de dúvida que tais desenvolvimentos aqui em curso não pretendem

responder à questão. O ser como questão tem como prerrogativa o preceder de milênios de

tentativas ao longo da tradição da cultura do Ocidente. Vários pensadores a partir dela se

debruçaram com afinco no intuito de contentar o que nos encontramos no empenho de

questionar. Estamos dispostos na clareza de que ele não é um problema que possua uma

resolução. No presente trabalho, pretendemos ser, de modo próprio, tomados pela questão a

fim de nela caminharmos em busca dos caminhos que nos conduzam à verdade. Desse modo,

nos vemos postados na disposição de um chamado pela própria questão em si. Ser tomado diz

de um ser seduzido de tal maneira que a ela não encontramos outra possibilidade a não ser a

rendição ao seu vigor. Tal rendição se dá na tentativa de seguir os passos que por ela são

delineados, seus indícios, suas pistas. A maior dificuldade é perceber esse delineamento na

medida de encontrarmos a possibilidade de dizer, no dito que radica de modo próprio na

questão mesma, sua verdade resguardada.

Portanto, intentamos seguir em busca da questão em sua plenitude. Mesmo que

saibamos que tal plenitude nunca será alcançada, ao mesmo tempo em que nela já nos vemos

lançados e jogados, na medida em que nela todos os caminhos assim podem vir a ser e

efetivamente são já sendo ao seu modo. Esse é nosso privilégio, nossa dádiva e ao mesmo

tempo nossa própria limitação: estarmos na disposição da referência ao ser de modo

completamente distinto dos outros entes que são sendo o que são – e mesmo assim nunca nos

encontramos em condições de alcançá-lo em seu resguardo. Toda e qualquer objetividade cai

na sua própria impossibilidade diante da expectativa de nos encontrarmos na disposição da

questão do ser de modo radical. Destarte, no presente trabalho pretendemos discutir a partir da

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escuta e da visão atentas. Estas se mostram já pelo que se retrai. Deste modo, com atenção

cuidadosa, podemos estar nos caminhos que nos conduzem ao diálogo como reunião da

música em sua verdade. Este é o caminho próprio permitido pelo ser. Desta feita, a questão do

ser pode ser vista como um farol que possibilite guiar nossos passos. De modo errante, nossos

passos vagueiam pelos seus domínios na tentativa de um alento. Pretendemos fundamentar

nossa caminhada na tentativa de escutar com seriedade seu chamado e de caminharmos

errantes sobre as inúmeras possibilidades que se insinuam e se anunciam ao longo do vale que

permeia a questão.

O caminho de nossa caminhada é tortuoso, é furtivo. É um caminho que se dá na clara

noite onde tudo é passível de questão. A noite clara traz consigo muitos modos de ver bem

como de não ver. Ela esconde, vela e dissimula revelando nas penumbras da sua luz noturna o

ser que se insinua retraído. Nos caminhos e descaminhos da noite clara pretendemos nos

aventurar. O cuidado na ventura tem de ser todo especial por tratar-se da questão mais

importante que se sabe poder anunciar. Esta deve ser guardada cuidadosamente a fim de,

nesse cuidado, podermos nos encontrar na disposição de um aceno de seu vislumbre. Para

diante de tal, caminharmos para o diálogo que nos retém e com ele os caminhos que assim se

anunciam. Ao caminharmos errantes na luz que dissimula, devemos cuidar, acolhendo o que

pode apresentar retraidamente a possibilidade de ser entrevisto. Portanto, estarmos abertos à

questão é de fundamental importância para que a atenção possa se encontrar na guarda da

insinuação própria do que se insinua. Em suma, o que estamos tentando dizer é que na busca

pela questão o mais importante é o caminhar o caminho, é caminhar na consistência de toda

errância na busca pelos próprios caminhos em si mesmos. Pretendemos assim caminhar

errantes, a esmo, à procura de que a essência originária de toda possibilidade de erro possa

fazer possível nos defrontarmos com o que fundamenta toda a possibilidade de caminho. Isso,

se é que estamos falando de essências diferentes, já que todo caminho resguardado no ser

somente se dá como caminho onde a essência de todo erro assim se mostra como diferença

radical de todo caminho. Na verdade, o caminho se dá na possibilidade de que aquilo que

fundamenta a errância do errante permita que possa haver veios na fundura profunda de seu

fundo sem fundo. Tais realizações, sendo o que são, rasgam a negritude de sua noite trazendo

clarões que podem surgir como vagos alentos que encobrem, revelando possibilidades. Assim,

os caminhos que podem nos conduzir ao diálogo homem-música-ser, reunidos no âmbito da

linguagem, se encontram de todo modo resguardados na clara noite, que aqui dissimula como

aquela que possibilita toda errância do errante. Desse modo, ela possibilita os desdobramentos

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que se revelam resguardados em sua verdade brilhando já dissimulados em si mesmos nas

vagas do próprio abismo.

De qualquer maneira é importante ressaltarmos que a errância não é aqui o erro. O erro

em sua insuficiência se articula em dualidade com o acerto. Essa relação, apesar de posta de

um modo ou de outro em todo trabalho de qualquer natureza, não é aqui evocada como

fundante do trabalho que se apresenta. A errância é o que permite o caminhar do errante

vagando pelo caminho de modo incerto, buscando na incerteza um aceno de sentido. Assim,

vagando a esmo de modo errante nos tortuosos caminhos da questão nos pretendemos lançar

na ventura que se anuncia. De todo modo, a bem aventurança não pode ser dita aqui, o

sucesso pretendido caminhando em trânsito não pode medir a contenda. No combater de um

combate como este não há perdedores nem ganhadores, temos caminho e caminhar, trabalho e

trabalhar. Assim, estamos postados e suspensos diante da imensidão inexplicável do que

furtivamente envia-se como emergência confrontante na ambigüidade sem fundo que norteia

toda busca. Tal envio assim resguardado traz, na clara noite, possibilidades incontáveis de

realização. Por isso é que os âmbitos tanto do pensamento quanto da poética se mostram

inesgotáveis. Pois que se sustentam na ambigüidade do abismo que assim permite o

desdobramento de todos os caminhos em sua verdade. Música e pensamento se dão como

unidades inesgotáveis frente ao abismo que se insinua. O pensamento e a poética se

encontram de modo privilegiado em tal inesgotabilidade por se medirem diretamente com ela.

No entanto, não sabemos se aqui todo o cuidado e atenção pretendidos serão postos em obra.

Sabemos, porém, que haverá a tentativa de que todo cuidado possa ainda mostrar-se pouco.

De qualquer maneira, nem isso podemos precisar, posto que nos encontramos lançados em

nossas próprias limitações. Aliás, se faz oportuna a pergunta: o que é que nestas alturas se

pode precisar? O que podemos tornar a dizer é que somos tomados pelas questões. Elas nos

ultrapassam porque já estamos nelas jogados e suspensos. O diálogo em que elas nos tomam

em referência nos possibilita um importante alento para prosseguirmos.

Na imprecisão caminhamos e buscamos, ou melhor, pretendemos buscar escutando

atentamente a vocação própria do ser. Nos caminhos do ser, de modo impreciso pretendemos

disputar o combate de lançar-se à sua procura na tentativa de chegar a um lugar que em si não

se localiza, ou seja, na tentativa de chegarmos a lugar nenhum. O “lugar nenhum” em sua

concretude é onde reside a verdade abismal que permite o diálogo radical. Que permite o

desdobramento do romper-se em obra das obras de arte e das obras musicais, dos caminhos e

descaminhos pelos quais ao homem é permitido transitar. Pode ser que a imprecisão bem

como a incerteza não sejam os melhores nomes. O que importa não é propriamente a precisão

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ou imprecisão, a certeza ou incerteza. Mas sim nos encontrarmos fora desse eixo determinado,

de maneira a buscarmos o que pode ser o alento e a direção na intenção pelo que

pretendemos. Talvez até a possibilidade própria do homem de ter como mirada o fixar-se em

uma direção pode ser, na verdade, uma impossibilidade radical, porquanto se trata aqui dos

caminhos do ser. Em relação a isso, fixar-se em uma direção é ter uma direção própria,

quando tanto um pensador bem como um artista encontram a sua mirada, a sua direção

fundamental, de modo que sua obra alcança assim a unidade de si mesma frente às diferenças.

Melhor do que caminhos do ser, seria dizer o ser na instituição de todos os caminhos. Assim,

talvez o homem radicalmente se perca na busca desse um que é múltiplo na multiplicidade de

seus tortuosos caminhos. É por isso que nós, como homens, somente podemos partir do que

nos é mais próximo. Quanto a isso, talvez possamos nos apropriar das palavras de Heidegger

quando ele diz na conferência A caminho da linguagem: “devemos caminhar para chegar onde

já estamos2”. Se pudermos, talvez, realizar uma aproximação de onde já estamos - ainda que

há muito nos encontremos de lá afastados - a intenção já se encontra em sentido próprio

enquanto acontecimento. Se a chegada onde já estamos for o ponto de partida para se pensar

podemos, talvez, preparar a possibilidade de discussão própria com o ser na medida em que

os caminhos que por ele se desdobram possam nos falar em sua verdade. Nos caminhos da

noite clara do ser a inconsistência se mostra de modo furtivo, pois que também é ambígua.

Anuncia-se a ambigüidade de estar no a caminho. Assim, a caminho é que pretendemos

cuidar da questão que se dá ao confronto, ao combate primordial se dizendo de modo

escorregadio, de modo furtivo, de modo arredio.

Sem dúvida que há todo um precedente que não pode e não deve ser negligenciado. De

alguma forma tal precedente dá a quem quer que se aventure por esses tortuosos caminhos um

aceno inequívoco. O aceno é dado por toda tradição que se pretendeu aventurar pela senda do

ser. No caso aqui posto, ele se mostra pelo caminho da tradição do Ocidente na empreitada de

se enviar, lançando-se em busca do ser em seu mistério. Temos por claro que o norte dessa

tradição não pode ser levado sem consideração. Ele norteia delimitando algumas

possibilidades de caminho na errância do errante. Assim, tais possibilidades se mostram

próprias quando se caminha acolhido na noite clara do ser. Sem dúvida que somos, como

homens, já ultrapassados por toda essa tradição. Ela nos perpassa e nos forma naquilo que

somos de modo que não deixa dúvidas. Por isso estamos aqui ressaltando a dificuldade radical

de nos despirmos totalmente para deixar que a questão que se insinua fale por si mesma. De

2 Heidegger, M. 2008, p. 156.

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modo que, livres, possamos lhes dar ouvidos em uma escuta cuidadosa, uma escuta toda

especial ao dizer que por si próprio se anuncia e insinua. No entanto, mesmo assim, o cuidado

e escuta, de modo todo especial, devem estar presentes para que haja um perquirir rigoroso

diante da luta a se travar. Mesmo diante de toda essa tradição, e do perigo que isso nos

apresente na contenda que pretendemos, o caminho deve seguir na permissão que assim o

resguarda do mesmo modo que também nos resguarda. Na verdade, é bom termos isso em

conta na medida em que maior atenção e cuidado possam ser reservados ao nos lançarmos à

questão. A verdade da tradição faz com que o caminhante possa se manter em vigília. Tal

vigília se encontra na tentativa de ele não seja surpreendido nas armadilhas e equívocos que o

formam enquanto homem, perpassado pela cultura que essencialmente o ultrapassa.

Seguindo nesta mesma atenção devemos ter em conta que a tradição nos é precedente

pelo simples fato de o presente trabalho se apresentar na sua própria configuração. Os

trabalhos acadêmicos se encontram na possibilidade de articulação pelo modo como a escrita

se dá no Ocidente. Assim, de todo modo, nos encontramos em uma dificuldade radical, qual

seja: a de procurar dar conta da complexidade do real a partir da escrita. A música como

unidade reunindo as obras que nela se instituem mostra radicalmente tal dificuldade. Aqui a

dificuldade se aclara e ainda se acentua na medida em que se mostra a questão: como falar de

música na escrita enquanto caminho na medida em que reúne obras musicais como

acontecimento? As obras musicais se mostram como densidade trazendo-se como

acontecimentos na medida de uma reunião simultânea. Elas são uma reunião que congregam

um sem fim de possibilidades sonoras, além de outras, que somente se dá em uma

simultaneidade. Do contrário, elas se mostram desarticuladas de sua própria verdade. Assim,

se torna mais claro que falar de música, ou melhor, procurar trazer a música em sua unidade à

fala na sua verdade é uma tarefa por si árdua. Tal dificuldade não deve ser levada sem a

devida consideração tanto na especificidade do caminho musical, como na reunião da

linguagem. Também se mostra na complexidade do homem, na questão do ser, do abismo e

da permissão a todo este diálogo. Por isso os paradoxos devem se apresentar de modo a

tentarmos corresponder à complexidade e densidade próprias do que se põe em discussão.

Essa é uma dificuldade que há muito se mostra àqueles que se aventuram nas venturas e

desventuras do real. Tal dificuldade deve ser sempre tomada como presente também na

intenção de nos mantermos em atenção ao acolhimento da questão em si. Podemos nos

paradoxos tentar possibilidades polifônicas de entrelaçamento das linhas, ou pelo menos

assim esperamos que tal se possa suceder, de modo que a densidade exigida possa se

manifestar. Nas relações da musicalidade em que a escrita em suas possibilidades possa no

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esclarecer, talvez possamos estabelecer uma referência em que a música como unidade e

caminho, que se dá acontecendo a seu modo, possa se mostrar velada em sua verdade

abrigada na verdade na escrita.

Ainda na esteira da delimitação e delineamento das condições que se apresentam

podemos compreender que tradicionalmente os trabalhos no Ocidente se articulam nas

possibilidades conceituais de discussão. Tais conceitos se mostram articulados de acordo com

o desdobramento próprio da tradição que nos acolhe. Muito temos falado a respeito de

discutir e questionar. Contudo, também devemos tomar como relevante o esclarecimento da

possibilidade conceitual. Portanto, devemos fazer um pequeno esclarecimento a respeito do

conceito enquanto possibilidade de discussão dentro da tradição acolhedora e precedente.

Desse modo, podemos nos livrar de objeções ao mesmo tempo em que reafirmamos a

dificuldade e o terreno árduo no qual nos encontramos diante da tarefa a nós exigida pela

convocação radical.

O conceito é o que tradicionalmente é visto sob o jugo do homem entendido enquanto

o centro e detentor dos entes e do ser. Eles se dão articulando-se a partir desse pressuposto

ratificando a posição do homem enquanto centro. Portanto, na tradição filosófica, os conceitos

se mostram sob alguns aspectos a seguir: representação mental de um objeto abstrato ou

concreto, como um instrumento para o pensamento em sua tarefa de identificar, descrever e

classificar os diferentes elementos e aspectos da realidade; a manifestação da essência ou

substância do mundo real, que é a própria realidade da coisa em si; uma relação que não pode

ser confundida com a coisa mesma; entre outros. Não pretendemos aqui catalogar ou ainda

discutir cada um dos aspectos em que o conceito se apresenta. Importa antes é que de

qualquer forma, em todos esses modos de compreensão o conceito nos aparece a partir de um

prisma que tende a encobrir ainda mais aquilo que pretendemos descobrir. Seja a partir do

aspecto da idéia e da razão, seja sob o jugo do humanismo. Dessa maneira, ele se mostra

como modelo numa relação de abstração do real onde, ao mesmo tempo, o homem se

encontra diante da dinâmica que o desloca de si mesmo para o centro do real.

No entanto, buscando esclarecer o que é o conceito, tentaremos nos manter afastados

de tais possibilidades já consagradas no que se refere ao entendimento da palavra de modo a

tentarmos outros caminhos. Prestando atenção ao que diz a palavra, o conceito pode ser

entendido a partir do seu aspecto etimológico. Dá-se como oriundo do latim conceptus que

diz: ação de conter, ato de receber, germinação, fruto, feto, pensamento3. Em sua formação e

3 Houaiss, A., 2001. Ver etimologia do verbete conceito.

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desdobramento o conceito tomou o caminho a partir do latim capere que se diz como o tomar,

agarrar, apoderar-se, mas também conceber4. Se o conceito for compreendido na primeira

acepção como ação de conter, então ele já se encontra na impossibilidade radical. Já dissemos

que no que se refere ao real em sua complexidade qualquer contenção está fora da sua

verdade, podendo no máximo ser possível conter a realidade como fato. Mesmo assim, o fato

abrigado pelo ser se encontra resguardado enquanto ambigüidade. A contenção, como o

próprio nome denuncia, mostra sua ação limitadora como uma prisão. Desse modo, acaba por

separar o que pretenderia conter na perspectiva da objetivação, exercendo o controle na

imposição de jugo. No entanto, de maneira um tanto distinta, a ação de conter pode ser

compreendida enquanto o delimitar, o impor limites a partir da limitação própria do que se

mostra. Assim, podemos ter em consideração essas duas possibilidades de compreensão a

respeito da primeira acepção. Tal limitação é dita a partir do ser na medida em que ele

ambiguamente se mostra limite e não limite. O problema se dá quando não se considera a

ambigüidade, aí se perde o real em sua densidade. O segundo sentido apresenta o conceito

como o ato de receber. Podemos dizer que ele se encontra em concordância com o que se

lança, mostrando-se na disposição do confronto. O conceito, desse modo, é o ato de receber

aquilo que de modo próprio se dá. No entanto, mesmo em concordância com a coisa que

assim se insinua, tal modo de compreensão não se dá como suficiente, pois que não

desenvolve especificamente o que no recebimento se dá como realização, portanto,

necessitando de complementação. No entendimento que mostra o conceito como germinação,

fruto e feto, se encontra uma reunião de unidade nas três acepções onde todas se referem ao

aspecto da criação; assim, o conceito seria o que é criado. No entanto, devemos entender esse

o que é criado na ação de conceber. Não pode se referir a qualquer coisa criada, como no caso

das criações da natureza. A partir da derivação da palavra como hoje a entendemos, ela pode

ser dita na medida em que a germinação não se dê como a ação de germinar, mas sim o que se

dá enquanto germinado, onde esta é o fruto já posto. Desse modo, o conceito pela derivação é

uma criação do homem. No entanto, se ele for entendido, como na acepção anterior, também

enquanto um ato de receber, ele é um recebimento que recebe algo que não parte do homem,

mas sim da manifestação do que se manifesta no seu envio próprio. Assim, o conceito pode

ser entendido como o que é criado a partir de um recebimento, de uma oferta. Por ela, ele se

articula como a criação de algo pela recepção do que recebe. Portanto, se encontra delimitado

a partir dos limites próprios dessa colheita na contenção de sua criação em si. Neste último

4 Idem. Conferir verbete ¹cap-.

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sentido, o conceito se encontra bem anterior, ontologicamente falando, ao que se revela

apenas na ação de conter da primeira acepção.

Podemos perceber que, desse modo, os conceitos podem se articular analogamente ao

operar das obras. Como algo criado, eles também se encontram na dinâmica e perspectiva de

se darem operando. De não se bastarem apenas no âmbito do dito que com eles se faz

presente. Portanto, queremos frisar que, ainda que haja conceitos ao longo dos

questionamentos propostos, estes devem ser compreendidos na perspectiva da criação. Aquela

que se mostra a partir da oferta do que se manifesta enquanto fenômeno, enquanto o brilho

misterioso de si mesmo. Agora, de modo que nos encontramos na disposição da tradição

escrita do Ocidente, os conceitos devem ser encarados como criações que se dão na

possibilidade do recebimento. Assim, eles estarão na dinâmica de operar em sua mobilidade a

partir da própria dinâmica de mobilidade permitida pela escrita onde nos encontramos.

Mesmo assim, ressaltamos que todo e qualquer conceito deve ser compreendido e encarado,

aqui, na possibilidade de estar constantemente em questão, ou seja, criado e articulado em

busca do que pretendemos questionar na convocação que nos exige.

Posto que procuramos um pequeno esclarecimento acerca do conceito e seu lugar,

vemos que a questão que se encontra, como palavra, tão mencionada até o presente momento

também necessita de um pequeno aceno. A palavra “questão” é oriunda do latim quaestio que

diz da busca, da procura, sendo este proveniente de quaero que diz do procurar, buscar, tentar

encontrar, tentar obter e procurar saber. Quaero dá origem a palavra portuguesa querer.

Assim, a questão se articula como o estar em busca e procura constante na medida em que se

quer saber, onde nos encontramos em uma disposição que nos abriga e sustenta. No entanto,

devemos ponderar que do mesmo modo que o conceito, ela é uma possibilidade de

acontecimento a partir de um receber. Para nos encontrarmos na disposição de querer

procurar, devemos receber a indicação da oferta do que se dá. Portanto, no presente trabalho,

a questão se apresenta para ser buscada e procurada, ou seja, questionada. Tal questionamento

não se encontra na aparente solidez do término, ele permanece na solidez da constância de

realização. Na verdade, na solidez do estar em realização realizando, transitando no caminho

em que nos encontramos tomados pelo que se dá a questionar. O que se dá em questão de

todo modo não é em si o fato feito, mas a ambigüidade do real. Devemos então dizer, que nos

questionamentos que virão a se suceder, acabarão por ser criados conceitos que pretendemos

que sejam articulados na perspectiva do recebimento e do conceber no operar que a eles

permite a escrita. Ao mesmo tempo, esperamos que estes sejam encarados não na medida de

uma estaticidade, mas como parte da solidez da constância da busca interrogante. Assim, a

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referência onde se encontram a linguagem como reunião, o homem, a música e o ser, este

último na permissão de toda reunião dialogante, aqui se mostra em questão na perspectiva do

questionar e conceituar nas dificuldades que tal referência suscita. Mais uma vez nos volta a

questão: como pôr em questão a música, a linguagem, o homem, o ser? Como estar na

disposição de conceituar e questionar tal unidade dialogante na medida em que tais

desdobramentos se mostrem obrando na permissão própria do ser? Tais dificuldades

perpassarão todo o trabalho de modo que com elas temos de conviver aceitando a própria

ambigüidade em que nos encontramos.

Após o pequeno desvio empreendido no intuito de esclarecer as dificuldades impostas,

devemos continuar na tentativa de empreender os questionamentos que urgem como imensas

colunas na constituição de tudo o que é. Assim, seguindo do que já se pensou com o ser,

podemos ter em atenção o que a partir dele foi dito. Sem dúvida sabemos que os gregos

antigos são os responsáveis pela base da tradição cultural do Ocidente, essa que hoje nos

abriga. Muitos de seus fundamentos culturais permanecem vivos atualmente de modo

dissimulado, mas constantes essencialmente. A filosofia e a arte gregas reverberam na

Contemporaneidade com toda a força e vigor. Na filosofia, o pensamento de autores como

Platão e Aristóteles, na Modernidade e Pós-Modernidade, se encontra em plena robustez

desde seu aparecimento. Como aqui intentamos um perquirir vigoroso, devemos buscar no

seio da discussão que fundamenta o Ocidente, aquilo que venha a ser o ser. Tal proceder não

se dará no intuito em que possamos estar apenas de posse do que foi ali pensado. Ou seja,

para que nos encontremos na disposição de compreender o que era o ser para os gregos e,

estando com isso já esclarecido, nos satisfazermos em saber que o ser para os gregos era “tal

coisa”. Se é que podemos dizer factível tal possibilidade de objetivação. O mais importante

não vem a ser o que para os gregos dizia o ser, e sim o que podemos pensar a partir do dizer

do ser para os gregos no intuito de uma aproximação do próprio ser.

A partir da experiência que temos como vivência, ou seja, do contato com o que

historicamente se apresenta, podemos dizer que o homem, de alguma forma, se encontra na

proximidade do ser. Sem dúvida que tal proximidade ao mesmo tempo guarda uma distância.

O distanciamento de tal distância reside no caminho óbvio que nos mostra que o homem não é

o ser. Nesse sentido, como distância dentro da proximidade ela não se encontra na

possibilidade de ser ultrapassada se aproximando mais do que lhe é próprio estar próximo.

Assim dizemos, pois sempre que o homem procurou uma aproximação maior do ser, este lhe

escapou sem que, com isso, o homem viesse a se deparar apenas com o absolutamente vazio.

Em tal aproximação da proximidade com o ser, o homem pôde perceber a ambigüidade que

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cerca o ser em seu mistério. Sendo-lhe permitido inclusive perceber o vazio do abismo em

que o próprio ser como ambigüidade radical se encontra resguardado.

Podemos também dizer desta proximidade do homem para com o ser, na perspectiva

de que ele é o único ente do ser que se encontra na possibilidade de dizê-lo. De modo a se

encontrar, assim, disposto a saber que tal dizer se revela na relação com o que escapa a ser

dito. Dessa maneira, o homem se mostra radicalmente disposto na possibilidade de tentar

realizar uma aproximação de sua proximidade com o ser. Com isso, lhe é permitido tentar se

aproximar de sua própria condição. É desse modo que o homem sempre se mostrou, desde

que ele é sendo aquilo que ele é a sua maneira: posto já como disposição na permissão própria

do ser que lhe abriga e sustenta. Assim o homem pode fazer a tentativa de dizer o ser na

disposição da linguagem, esta que lhe reúne na possibilidade de encaminhar os caminhos que

se desdobram. Em tal tentativa, por já se encontrar disposto pelo próprio ser naquilo em que

ele, sendo como homem, é, ele se depara com o vazio abismal no qual o ser mesmo se

resguarda em sua verdade na permissão de todos os caminhos.

Desse modo os gregos também procuraram dizer o ser e o disseram a partir de uma

experiência muito própria onde ele se dava entendido pelo nome fÚsij. A esse dito vamos

procurar nos entregar na tentativa de uma aproximação de seu sentido.

A fÚsij

Com a palavra fÚsij os gregos procuraram de maneira muito peculiar nomear a sua

referência com o ser. Em todos os aspectos a fÚsij se apresentou para eles em seus dizeres e

fazeres de modo fundamental. Tal nome impulsionava diariamente a dinâmica cultural grega.

Ele evocava uma experiência de tratamento com o mundo abrigado e em tensão com a terra

que era seu sustento. Em todos os âmbitos ela se apresentava ao revelar para o homem grego

as próprias coisas, de modo que tudo se dava no seu abrigo e guarda originária. Com a

dinâmica da própria cultura, e no desdobramento do pensamento que impulsionou, de modo

determinante, a possibilidade do nascimento da filosofia compreendida aos modos de hoje,

esta experiência fundamental foi se perdendo em sentido e cedendo lugar a um modo de ver

em particular: o e‹doj. Este último nomeia o aspecto figurativo, a perspectiva, um modo de

ver, o viso, o visível. Assim, por determinações radicais da verdade do ser se doando ao

pensamento, se dá promovida uma inversão determinante onde o e‹doj acaba exaltado

enquanto ideal de perfeição modelar tomando o lugar da fÚsij. Não há dúvida de que o e‹doj

é derivado da fÚsij se revelando como a possibilidade da presença. No entanto, tal inversão

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intensificou a possibilidade do encobrimento da riqueza própria desta última. Tal

distanciamento ocorreu de modo que a troca da fÚsij pelo e‹doj e pela „dša não se deu de

uma hora para outra. Mas, tal mudança trouxe desdobramentos decisivos nas concepções

posteriores do ser no âmbito do pensamento, se mostrando determinante na formação do

Ocidente. Tal caminho já foi muito bem apontado por diversos pensadores como a marcha

metafísica ocidental. Podemos perceber o desenvolvimento de tal “marcha” com um

esclarecimento peculiar e notável na obra de Heidegger. Portanto, não cabe no presente

trabalho retomarmos de modo detalhado esse desdobramento, mas antes trazer o que ele dá a

pensar a partir de si mesmo.

Muito da experiência grega com a fÚsij já não mais se encontra na presença dos

hodiernos. Essa experiência especificamente já se perdeu, mas não aquilo que ela nomeia. O

que se encontra perdido de modo talvez irreversível é a experiência radical que o povo grego

tinha com o que era por esse nome evocado. De qualquer modo, o nomeado no alto de seu

vigor permanece. Por mais que possa ser dito com razão que nesse sentido a experiência

cultural se mostra fundamental, ela não ataca a permanência da fÚsij, até porque provém -

enquanto experiência, enquanto desdobramento da constituição e instituição de um mundo –

propriamente da fÚsij como aquela que resguarda sustentando qualquer possibilidade dos

desdobramentos e mundanizações. No entanto, isso também não quer dizer que a experiência

em particular não venha a ter importância. Porém, cumpre lembrar que essa experiência

originária se deu em um tempo onde a verdade se encontrava na força de seu velamento, onde

o mito demonstrava sua força de verdade e reunião na poética de consagração do povo, da

terra, dos deuses. Deu-se no tempo de pensadores como Heráclito, Parmênides, Anaximandro,

os pensadores originários5. Assim, é prudente ressaltar que o vigor de tal verdade enquanto

experiência deve ser evocado naquilo que se dá como possibilidade de acontecimento. No

intuito de entrever a originariedade deste acontecer e, com ele, poder pensar, fazendo uma

tentativa de aproximação do ser, resguardado em sua verdade como velamento originário.

Importa para nós antes saber que, num processo de tentativa de compreensão da

experiência dos gregos, a fÚsij foi traduzida pelos gramáticos latinos por natura. De modo

que esta trouxe para nós hoje, em português, o nome e a experiência travestida como natureza.

Em tal nome e experiência percebemos sem grandes esforços que radica uma determinação

clara, nos dias atuais, da natureza com uma função determinada e delineada a partir dos

caminhos do conhecimento científico. Este faz com que diversas pessoas formadas no

5 Como diz o título do livro Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Trad. Emmanuel

Carneiro Leão e Sérgio Wrublewsky. Vozes: Petrópolis, 1999.

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Ocidente somente possam percebê-la a partir de uma determinada função ou razão. Equívoco

comum que mostra a confusão que se costuma fazer entre sentido e função, ou ainda razão de

ser. Toma-se por sentido uma função ou finalidade qualquer fazendo com que tudo na própria

natureza somente se mostre a partir de uma função incutida pela tradição do conhecimento e

da verdade vigentes hoje. Não é incomum, aliás, raro é justamente o oposto, nos depararmos

com situações em que são impostos a pássaros, plantas, e outros entes - que são o que são

dinamicamente sendo e, assim, se apresentam em seu ser – a utilidade de prover ou alimentar

isso ou aquilo, fazendo sua razão de ser a partir de outro que não ele mesmo. Fato que

também é muito comum na interpretação das obras de arte quando, por exemplo, se procura

incutir a uma obra musical que o seu sentido, enquanto acontecimento, se encontra alijado da

própria obra. Que, como tal, em sua singularidade se encontra reunida na música como

unidade frente à multiplicidade. Isso fica patente quando se procura tratar as obras musicais

no âmbito das representações. Que fique claro aqui, que a comparação que se procedeu não se

mostra a partir de uma equiparação dos âmbitos entre o que é unicamente fÚsij, e o que se dá

como obra de arte - revelada em uma reunião que traz o homem em colaboração com a fÚsij.

As diferenças são inequívocas. A comparação se deu apenas na medida de um esclarecimento.

Isso porque as obras de arte e, no caso, as obras musicais apresentam radicalmente sua

verdade resguardada como acontecimento. Tal se dá de modo análogo à produção da fÚsij,

só que já resguardado por esta última. Outra possibilidade fortemente presente na atualidade

consiste em compreender a natureza na perspectiva de uma reserva a ser utilizada em fins

comerciais, ou ainda quaisquer outros que as conformações sócio-político-econômicas

vigentes venham a determinar. Tal acontece em prol da manutenção de sua própria

sobrevivência enquanto sistema dominante. Por esse motivo é que esta tradução,

acompanhada de uma série de fatores conformados epocalmente, acabou por afastar radical e

terminantemente a experiência própria da fÚsij vivenciada de modo peculiar pelo povo

grego.

Tal impossibilidade apontada pelos caminhos conformadores do Ocidente enquanto

cultura não deve, de todo modo, fazer o pensamento poetante negligenciar a tentativa de

diálogo com a fÚsij. Nessa tentativa devemos ter a intenção de pensar a partir do que pode

se dar à escuta atenta, partindo do que a fÚsij mostra em sua verdade. Como tal, é

importante que se façam soar as palavras daqueles que trouxeram contribuições inequívocas

ao pensamento pela importância e consistência de sua obra. Tal é o caso de Aristóteles que

tem na sua Metafísica uma importante referência para que possamos iniciar o que se põe em

questão. No entanto, antes de prosseguirmos cabe salientar que, a partir das traduções e

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entendimentos usuais do trabalho do estagirita, vários equívocos de interpretação se deram em

função da própria tradição metafísica encontrar-se no âmbito do platonismo. Este último se

estabelecera a partir do momento em que a „dša transferiu-se para o âmbito do ser, tal como

pensado pelos gregos. Ou seja, a „dša toma o lugar da fÚsij. Importa ainda para nós ressaltar

que iremos recolher do pensamento aristotélico apenas aquilo que possa nos interessar, como

auxílio para o que, de todo modo, estamos no empenho de questionar. No entanto, torna-se

prudente que possamos pelo menos reunir os pontos de interpretações equivocadas, na medida

em que estes possam se encontrar de fora da seleção em que iremos proceder de modo que tal

reunião nos possa auxiliar como exclusão.

Os equívocos mais comuns são: 1) possibilitar que a ausência de movimento do

modelo venha a se estabelecer enquanto fundamento das coisas. Pois, daí decorre que a fÚsij

seja representada como se o fundamento fosse o primeiro fundo, o fundo para além do qual

não é permitido ir, pelo simples fato de não poder haver sequer um adiante. Em virtude disso

a cronologia da linearidade se torna a única possibilidade de compreender a fÚsij enquanto

fundamento na perspectiva aventada; 2) a separação do ser e da fÚsij, equívoco radical posto

que a mesma era o nome do ser para os gregos; 3) a compreensão do movimento próprio à

fÚsij a partir da dinâmica acima citada, ou seja, um movimento comprometido com os

equívocos do desenvolvimento a partir da verdade epocal do Ocidente enquanto constituição

própria. Um movimento em si mesmo desprovido de verdade.

Livres de tais equívocos podemos talvez discutir o que recolhemos de Aristóteles a

partir de outro prisma. Na sua Metafísica várias são as possibilidades apresentadas pelo

pensador ao se referir a fÚsij ela mesma6.

No entanto, como já dissemos anteriormente não nos interessa no momento elencar

cada possibilidade apresentada pelo estagirita na medida em que este põe a fÚsij em questão.

Mas sim, acolhermos apenas o que interessa para o nosso caminho. Importante é percebermos

que a fÚsij é uma questão e que Aristóteles assim a percebe de modo a questioná-la ao seu

modo. Portanto, apenas selecionamos duas passagens do texto aristotélico em questão. O

primeiro se diz somente em duas palavras: fuomšnwn gšnesij7. A primeira palavra se mostra

derivada de fÚomai que é, de modo próprio, o fazer nascer, produzir. De mesmo radical que a

própria fÚsij. Por sua vez a palavra grega gšnesij, como “geração”, traz um modo de

dinâmica que revela no próprio crescimento o movimento que, de si mesmo, desencadeia o vir

6 Aristóteles. Metafísica D4,1014b 16 – 1015a 19. Encontra-se uma cópia do original do autor em Aristóteles.

Metafísica. Edição Bilíngüe. Tradução Marcelo Perine. Ed. Loyola, São Paulo, Brasil, 2002. Nas p. 198-201. 7 Aristóteles. Metafísica. Edição Bilíngüe. Tradução Marcelo Perine. Ed. Loyola, São Paulo, Brasil, 2002, p.

198. D4,1014b 16 –17.

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a ser daquilo que é. O crescer enquanto vir para um aparecimento provindo da geração, não é

sem o movimento próprio ao crescimento. Há neste sentido uma interação, ou melhor, um

acontecer ao mesmo tempo, onde crescer é movimento e o movimento somente é enquanto

crescer na medida em que, assim, aparece, mostra-se. A geração na medida da gšnesij se

mostra diretamente derivada do verbo grego g…gnomai que é o nascer, gerar, produzir. Assim

a geração é uma produção. Sendo um produzir, é o nascer em si, em sua força. Portanto o

primeiro modo de questionar a fÚsij diz-se como: a geração do que se faz nascer, a geração

do que produz já, por si mesmo, mostrando-se. Essa experiência revela que Aristóteles se

encontrava comprometido com o que se compreendia por ser entre os gregos. Como questão,

portanto, para ele a fÚsij se encontrava no seu vigor próprio enquanto por si mesma já

produzia, fazendo nascer aquilo que trazia consigo a sua força própria de geração. Assim tal

produzir é já um movimento que gera, onde para que se gere qualquer coisa que seja tem de

haver uma força que congregue o impulso como geração. Na medida de uma geração do que,

por si mesmo, se faz como produção, a fÚsij revela força e movimento em uma reunião. Ela

é uma força geratriz, ou melhor, um vigor que movimenta produzindo, assim traz o que por

ela é para um aparecer.

O segundo trecho diz o que para Aristóteles se dá como fundamental a respeito do que

se põe em questão. Ele diz que a fÚsij “em seu sentido originário e fundamental, é a

substância das coisas que possuem o princípio do movimento em si mesmas e por sua

essência8”. Na tradução falam palavras como substância e essência. Fica patente que tais

palavras no original não podem ser trazidas ao modo de uma compreensão imbuída de séculos

de tradição. Os nomes em questão mostram uma experiência não grega e, portanto, não

condizente com a integridade do pensamento deixado pelo estagirita. Como já foi colocado de

modo claro em diversos trabalhos da obra heideggeriana, tais traduções apresentam problemas

de entendimento bem como de acesso ao que a palavra grega diz originariamente. Portanto,

obnubilam o que o pensamento dos pensadores gregos diz de modo próprio. Faz-se necessário

não apenas procurar fazer o texto dizer de modo originário, mas com isso, e a partir de tal,

poder pensar a questão aristotélica da fÚsij, a fim de nos aproximarmos de uma concepção e

experiência gregas da mesma. Com isto teremos a possibilidade de, na permissão do ser, nos

suspendermos de modo próprio a fim de questionar o que nos impulsiona já numa

convocação. Assim, do original em grego, destacamos para a discussão as palavras ¢rc» e

c…nhsij, a fim de que tenhamos a possibilidade de maiores esclarecimentos.

8 Op. cit. p. 200-201.

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A palavra ¢rc» se mostra no sentido de começar, ser o princípio, ser fundamental,

existir9. Ao modo como ela se encontra posta se dizendo princípio, tal mostrar não revela a

relação de um “porto seguro” com a qual estamos acostumados tradicionalmente, muito pelo

contrário. Todo princípio, toda origem é cercada pela dificuldade de ser justamente origem, de

ser justamente principial. Tal dificuldade fala na medida em que se mostra já cercada pelo

mistério próprio que a envolve como origem. Para que possamos compreender assim a

origem, ela deve se encontrar despida de toda concepção que implica seu sentido como um

ponto fixo. Enquanto uma aparente firmeza que se mostre de modo a poder abrigar uma

certeza. A origem como princípio estará mais na sua propriedade na medida em que

possamos, abertos a sua verdade, percebê-la misteriosamente velada em si mesma. A origem

já é mistério por si mesma, ela se mostra abrigada no mistério justamente por ser origem. Para

esclarecer o que procuramos dizer, podemos usar como exemplo – por mais que a questão da

fÚsij mesma não tenha uma implicação necessária com o homem – o fato de que todas as

vezes que experimentamos algo que se inicia, algo novo, este é perpassado de mistérios a

serem desvendados. Toda atividade que se inicia nos dispõe diretamente com o mistério que

abriga tal fazer. Assim é, de maneira que ele se apresenta resguardado ao modo de suster-se

no âmbito misterioso velado no abismo que o resguarda. Tomemos por imagem alguém que

inicia seu aprendizado em um instrumento musical. O contato inicial, o princípio, a origem do

aprendizado é envolto pelo mistério em que a atividade que se inicia demonstra de modo

radical. O iniciante, na medida em que se mostra já na dinâmica do iniciado, aos poucos vai

percebendo que o desvendar da própria atividade sempre permanecerá perpassado pela

ambigüidade radical, ambigüidade esta que é a de permanecer abrigada radicalmente no

mistério. Na medida em que ele entra em maior contato com a dinâmica da atividade, mais se

sabe longe de uma apreensão, mais se percebe envolto em um mistério a ser desvendado

inesgotávelmente. Por isso é que tal mistério nunca deixará de se encontrar mesmo quando o

músico-instrumentista possua vasta experiência. Assim se dá, por ele mesmo enquanto

mistério, como princípio, já se encontrar radicalmente permitindo toda origem e todo

princípio. O fato de princípio e origem estarem relacionados ao início na medida de uma

atividade em que está disposto o homem, como no caso a musical, não exime de qualquer

modo a referência própria dita na fÚsij enquanto ¢rc». Na verdade, a ¢rc» pode mostrar o

início como princípio nas atividades do homem de modo que o próprio homem, já lançado e

disposto em tais atividades, se encontra abrigado radicalmente no mistério originário da

9 Chantraine. 1968, p. 119-120.

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fÚsij dita também como ¢rc». Assim, abrigadas pelo mistério próprio da fÚsij, na medida

em que se diz como origem, como ¢rc», é que as atividades em que está implicado o homem

se resguardam no abismo de mistério.

Claro está que níveis diferentes de princípio e origem se mostraram retratados. No

entanto, são maneiras distintas do mesmo se manifestar. São modos distintos abrigados pelo

princípio e pela origem na medida do abismo misterioso que os permite. Por isso, pela

proximidade que temos com o fazer e, necessariamente, com o início de qualquer fazer é que

podemos afirmar todo princípio como já sendo perpassado enquanto origem pelo mistério:

somente por ser o que é como princípio a partir do mistério que assim o permite.

No primeiro trecho retirado de Aristóteles o pensador nos mostra a fÚsij como

geração. Assim se dá na medida em que a geração, por si mesma, traz um movimento próprio

revelando um aparecer de modo inequívoco. Reafirma então o pensador, a relação própria

com o movimento, na medida em que ele nos apresenta, no segundo trecho recolhido de sua

obra, a palavra c…nhsij. Tal palavra vindo a corroborar com o movimento da fÚsij se dá,

aqui, na medida em que a fÚsij se mostre radicalmente também como movimento, como

c…nhsij. Aqui não nos importa discutir o movimento ao modo em que este foi posto enquanto

questão pela História da Filosofia Ocidental. Importa antes que a fÚsij se dá também

movimento. Como tal, nos importa em que medida podemos nos encontrar na disposição de

sua verdade, de modo que ela possa nos permitir prosseguir no chamado que nos convoca.

Portanto, não procederemos aqui um desvio que procure questionar exaustivamente o

movimento, que por si é questão de grande envergadura, mas sim apenas proceder na medida

do chamado próprio da questão que nos guia.

De modo que a fÚsij resguarda a experiência do ser para os gregos, e que o ser é a

questão de todas as questões, para as questões da arte e da música ela se mostra de maneira

inequívoca. A questão da música tem a possibilidade de mostrar a fÚsij em sua verdade na

medida em que, sustentada por ela, reúne uma multiplicidade. Música é também movimento

enquanto reúne, na sua convocação, também as obras musicais que por ela se mostram em

unidade. Assim, o movimento como c…nhsij se mostra na dança, na música e nas artes em

toda a sua multiplicidade. Dizemos sem medo de equívocos que as artes são também

movimento. Até o momento, nos disse o estagirita que a fÚsij se mostra como mistério

enquanto origem, como geração enquanto produção e movimento. Na música e em todas as

artes nos deparamos com geração na medida da produção, bem como movimento na própria

dinamicidade em que se apresentam como tal. Nas obras musicais a relação de presença e

ausência, em sua materialidade sonora, está sempre na latência de um acontecimento. O

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mesmo ocorre na dança na medida em que apresenta o corpo em movimento já pela

estaticidade. Analogamente, cada uma a seu modo, se apresentam todas as artes. Assim

repousa a solidez de toda arte, no movimento constantemente em tensão que ela apresenta. Na

medida em que podemos falar de uma firmeza, de uma solidez, de nenhum modo esta pode

estar isenta do movimento enquanto propriedade. O movimento se mostra já como algo em si

mesmo fugidio. O movimento é um constante fugir de si mesmo que se resguarda na sua

própria dinâmica. Sem deixar de ser o que ele é, o movimento é sendo o que é em fuga, em

fuga de uma apreensão objetiva, em fuga de uma apreensão que lhe cerceie em sua

propriedade. Assim podemos perceber claramente nas obras musicais, estas que fugidiamente

apresentam seus movimentos sonoros abrigados, enquanto unidade, na possibilidade que o

homem tem de estar à disposição da memória e do memorável. No movimento fugidio da

dança do corpo, no movimento fugidio das cores na pintura e em todas as outras artes em sua

dinâmica, ao modo de pertencerem propriamente à solidez em que a fÚsij se resguarda.

Assim, todo movimento em que a fÚsij se resguarda já se mostra reafirmado em sua solidez

como fugidio. Este se revela na medida em que a música e a arte dessa maneira se encontram

desdobradas em sua permissão.

Aristóteles, como pensador do porte que é, percebeu a relação própria de movimento

na fÚsij. O movimento que produz, que traz à presença, que mostra enquanto princípio e

origem. Onde ele tem, de modo implícito, o mistério próprio de ser origem, de ser princípio.

Assim podemos falar da fÚsij. No entanto, ainda se pode interpor a objeção de que as

palavras do pensador não trazem a relação de mistério, por nós explorada, explicitamente.

Elas o trazem apenas na medida em que ele diz da origem e do movimento, bem como da

produção. De modo que estes sendo o que são, por si mesmos se mostram em sua solidez

como movimento. Assim podemos depreender o que nos é concedido do dito aristotélico na

tentativa de dialogar com o próprio texto.

Algo do pensamento de Aristóteles a respeito da fÚsij procurou ser trabalhado, talvez

não como mereça o pensador. Para tal, um trabalho detido e minucioso para por em questão

exclusivamente as palavras do estagirita deveria ser empreendido. Aqui, apenas procuramos

estar na disposição do que nos convoca como questão. Por isso devemos seguir no intento

pretendido. No entanto, a partir das discussões que se procederam, percebemos a questão da

origem em seu mistério, do movimento na fuga de qualquer apreensão na reverberação de si

mesmo, da produção, bem como do aparecimento de um mostrar-se. Tal discussão por si já se

mostrou em sua riqueza. Entretanto, devemos prosseguir questionando de modo que a fÚsij

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como questão não se esgota seja em quaisquer trabalhos de qualquer ordem, e a convocação

nos pede que assim procedamos.

A fÚsij em sua originariedade

A partir de pensadores muito especiais que deixaram seu legado em fragmentos

também podemo tentar questionar a fÚsij. Em um de seus famosos fragmentos, o de número

123, Heráclito de Éfeso, “o obscuro”, assim nos diz: fÚsij krÚptesqai file‹; que, na

transliteração para os caracteres latinos, se lê: “physis kripthéstai phylei”. Tal fragmento

apresenta várias traduções ao longo da história da filosofia, o que não vem a desautorizar

qualquer tentativa distinta de procurarmos nos render ao seu mistério. O mistério dessas três

palavras, aparentemente inocentes, revela encobrindo em seu sentido originário, a força de um

pensamento que congrega a experiência grega fundamental com o ser. Uma tradução bem

cuidadosa diz o seguinte: “descobrimento já tende ao encobrimento10

”. Ou, ainda outra:

“descobrimento ama encobrimento”. De modo que também temos: “O que se mostra ama

ocultar-se”.

Tender ou ainda amar são maneiras de compreender uma das palavras do fragmento:

f…loj. Tal palavra nos permite ainda outra tradução, na medida em que seu sentido pode ser

entendido como o que é próprio11

, como propriedade. Propriedade e próprio são sentidos que

mostram distinção de tender ou ainda de amar. A partir do próprio, enquanto propriedade,

podemos perceber o desencobrimento e o velamento como possibilidades inerentes uma à

outra. Talvez, inerente se apresente como um termo equivocado a respeito da questão. O

próprio, aqui, é algo forte, originário, de modo que revela a posse do que é seu. Segundo

Chantraine, o f…loj se dá não como uma relação sentimental em si, e sim muito mais como o

pertencimento a um determinado grupo social12

. Temos agora propriedade e pertencimento,

duas palavras que se dizem de modo distinto. No entanto, são próximas a respeito do

entendimento do f…loj. A propriedade denota um vigor de coesão. Nela o ser próprio a se

apresenta de modo tal, que revela a impossibilidade do acontecimento de um sem o outro. Por

outro lado, o pertencer também traz uma relação próxima com o que é próprio, pois pertencer

é fazer parte, é estar sob o domínio, é o se encontrar na dinâmica de estar na posse de outrem.

Portanto, pertencer um ao outro mostra, de qualquer maneira, propriedade. Pode-se interpor a

10

Tradução de Emmanuel Carneiro Leão in Os pensadores pré-socráticos, p. 11

Para ver o entendimento de f…loj como próprio e propriedade ver em Benveniste, 1995 a, Vol I. p.331-348. 12

Chantraine. Op. cit., p. 1204.

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objeção de que o pertencimento, aventado nas relações humanas, mostra certa hierarquia a

determinadas normas de conduta, costumes etc.. No entanto, respondemos que em referência

à fÚsij não se está tratando especificamente do homem. Compreender a relação do f…loj

como pertencer a respeito da fÚsij e do krÚptesqai dispostos no fragmento, não revela

hierarquia, revela pertencimento de um ao outro. O pertencer é de todo modo propriedade.

Ambos no âmbito aventado se encontram completamente alijados, originariamente, de

qualquer relação humana, portanto, de qualquer hierarquia. No dizer do fragmento não se fala

de importância diferenciada entre o mostrar-se e o encobrir-se. Desse modo, diante do que se

pôs em discussão, podemos compreender a tradução do dito de Heráclito como:

“desencobrimento é próprio ao velamento, na medida de um pertencer ao outro em

reciprocidade como o mesmo”.

A respeito do entendimento do f…loj a partir da relação sentimental dita como amar,

esta, de qualquer maneira, se encontra dada a partir do âmbito de compreensão do homem.

Talvez, ao ser dito que “o mostrar-se da fÚsij ama encobrir-se e velar-se”, se queira trazer a

relação forte de coesão que o homem experimenta em um sentimento desta monta. O

sentimento do amor traz para o homem uma experiência vigorosa e cheia de contradições

próprias aos relacionamentos humanos. Tal experiência se mostra em diversos aspectos da sua

vivência, seja com familiares, com o trabalho, com o sagrado, etc. Todavia, tal sentimento é

dito e experienciado como algo de grande importância para o homem, para a sua vida e o

mundo que ele habita. Por tal importância sabemos da densidade e da concretude do amor

enquanto experiência. Cada um, ao seu modo, experimenta e vivencia a concretude e a

densidade do amor. Pode ser que o f…loj entendido como amor e amar, se encontre na

possibilidade de dizer de maneira distinta a propriedade de um pertencimento. Ou melhor,

podemos dizer que tal dito procura na importância dos sentimentos do homem, uma maneira

poética de proferir a verdade do encobrimento e desencobrimento originários. Isso ocorre de

tal modo, que somente podemos percebê-lo proferido no não pronunciado de suas

possibilidades de compreensão. O não dito, assim, pode trazer para o dito o que o pensamento

lhe reserva. O pensamento abriga o não dito perscrutando-o naquilo que ele não diz em um

dizer.

Desta feita, fica entendido que, não importando qual tradução seja mais precisa ou

correta, o que vale é a relação segundo a qual o que se desencobre como fÚsij - o que se

mostra, o que se ex-põe de modo inequívoco por si mesmo - traz consigo na sua ex-posição

(movimento próprio que lhe pertence na pertença) a condição radical de se velar a qualquer

objetividade e a qualquer obviedade. Isto quer dizer: traz consigo o mistério de ser aquilo que

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ela é. Não há manifestação do manifesto que pertence à fÚsij que não esteja abrigada pelo

encobrimento que a dissimula e vela. Entendemos então que ambos, manifestação e

encobrimento, se dão como unidade originária. Portanto, dizer a fÚsij em seu mostrar-se de

manifestação, é já dizê-la no seu encobrimento próprio. Assim, ela é também radicalmente

encobrimento. Ela se encobre de tal modo, que somente mostra-se porque é, simultaneamente,

já encobrimento. O mistério, antes aventado, radica de modo explícito permanecendo, em si

mesmo, mistério na medida do encobrimento, do velamento próprio.

O fragmento nos concede o dizer que revela o que se dá mostrando-se a si mesmo,

paradoxalmente, nesse mostrar, ao mesmo tempo se fechando. Esse fechamento é permanecer

resguardado no mistério. Tal resguardo não se dá a partir de outro. Mas sim, o estar guardado

e resguardado em si mesmo somente por já se mostrar e brilhar concedendo-se de maneira

inequívoca. Esse encobrimento não deve ser apenas compreendido na perspectiva do mostrar-

se daquilo que é sendo no ser, ou seja, na medida dos entes que são. Estes que se dão na

dinâmica de um revelar que se mostra já velado no seu aparecimento. O encobrimento deve

estar compreendido também na perspectiva de todo velamento e encobrimento originário.

Diante de tal afirmação, cabe perguntar: o que são encobrimento e velamento originários? O

mostrar-se do que efetivamente se mostra podemos perceber de modo mais claro. No entanto,

o encobrimento e o velamento carecem de maior desenvolvimento.

A impressão que temos é a de que desencobrimento e encobrimento são palavras que

estão necessariamente dominadas. Da fÚsij enquanto discutida pelo texto de Aristóteles, a

percebemos como a origem enquanto mistério de todas as coisas. A partir de uma das

traduções apresentadas do fragmento heraclítico ela se revela desencobrimento. Podemos

perceber a fÚsij a partir de tudo o que se mostra a um desencobrimento pelo movimento

próprio de gerar-se. Portanto, ela se dá em todas as manifestações do que conhecemos como

Terra, como planeta, como universo. Ela resguarda a nossa morada, abriga e sustenta a

possibilidade de sermos quem e o que somos, cada um de nós enquanto grupo e enquanto

indivíduos. Toda manifestação do que quer que seja pertence ao que é dito como

desencobrimento. Tudo o que é, sendo, cai na possibilidade do desencobrimento na medida

em que se desvela e, assim, pode dar-se como descoberto. A questão trazida por Heráclito é

que o desencobrimento nunca pode ser compreendido separadamente. Ele não se dá isolado

apenas como o mostrar-se. A partir da discussão com Aristóteles iniciamos pondo em questão

tal separação e isolamento. Um dos grandes equívocos que desencadearam a metafísica foi a

separação do ocultar-se próprio a todo desencobrimento. Assim, o próprio movimento é

misterioso na medida em que, na produção, permanece encobrindo a apreensão do que se dá.

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A Terra e o universo são misteriosos. Porque entendemos que a ciência aparentemente

desvendou algo que profere como verdade, nos deparamos com a aparência de que tal

mistério pode ser dominado. No entanto, a fÚsij permanece o que ela é sempre resguardada

em tal mistério. O mistério ali permanece. A questão é justamente compreender que

desencobrimento e encobrimento pertencem um ao outro, são próprios um ao outro. Em tal

ambigüidade paradoxal devemos permanecer em atenção.

O brilho do estar à mostra traz o velamento do que se mostra. Isso porque nesse brilho

há também, e ao mesmo tempo, o ofuscamento proveniente do próprio brilho. Assim,

podemos dizer que ele é fundamentalmente um brilho de mistério, um brilho misterioso que

se encontra resguardado e revelado, em si mesmo, na medida em que permanece já mistério.

O que estamos dizendo a partir das discussões é um paradoxo, uma desrazão. Sem dúvida

para a razão da lógica linear se apresenta um contra-senso. No entanto, é paradoxalmente que

a densidade de tudo o que está no âmbito do ser pode se dar. Não temos como estar dispostos

diante da questão de máxima envergadura procurando caminhar por seus tortuosos e densos

caminhos pela dinâmica da linearidade. A linha não consegue dar conta da densidade do real,

da realidade e das realizações. Assim, na verdade, não estamos diante apenas de um paradoxo,

mas sim de paradoxos com toda a sua gama de complexidades. Estes que tem fundo na

simplicidade sem-fundo que permite todo o desdobramento em diversas dobras.

Inequivocamente isso deve ser destacado, devido à imensa força tradicional da linearidade na

constituição do Ocidente. Quando falamos de um mostrar-se que se oculta no brilho de seu

aparecimento, está posta - para aquele que inicialmente se depara com tal dizer - uma

dificuldade considerável para o entendimento. Isso porque na Contemporaneidade somos

formados levados a pensar sempre linearmente. Por mais que atualmente as tendências do

pensamento e da ciência se encontrem na possibilidade de confrontar o paradoxo e a

complexidade do real, no cerne da sociedade do Ocidente a linearidade da lógica reverbera

como a possibilidade hegemônica de constituição do entendimento do mundo, de suas

venturas e desventuras. Isso se mostra, mesmo que a realidade e as realizações assim não se

concedam. O vivenciar permitido ao homem pela experiência do real, da realidade, das

realizações e desrealizações, em toda a sua complexidade, é sempre paradoxal e ambíguo pelo

consentimento que lhe é ofertado. Essa complexidade é exposta como linha pela tradição de

modo que, assim, ela disfarça o real em seu acontecer próprio. Por conseguinte, o homem se

encontra ludibriado em tal dissimulação acreditando na linha como possibilidade radical e

instituição de mundo.

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Diante da dificuldade em aceitarmos os paradoxos na dinâmica do entendimento,

devemos persistir em buscar o sentido do que se mostra encobrindo-se. Tal persistência se

justifica pelo simples fato de que os paradoxos se encontram aí a “dar com pau”. Portanto,

reafirmamos que é preciso nos dispormos na disposição de receber e perceber o que se

desdobra em sua complexidade, em sua densidade própria. Um exemplo muito feliz, a

respeito da dificuldade em que nos encontramos imersos, se dá na imagem de um cientista em

sua busca pelo fundamento de uma pedra. A partir de suas incisões metodológicas ele

empreende análises procurando por moléculas e compostos. Com tal procedimento acaba se

defrontando sempre com a partícula formadora da partícula, que ainda é formada por outra

partícula... De modo algum queremos com tais observações dizer que tal realização deixe de

ter utilidade e lugar no mundo. O que com isso queremos dizer é que, assim, o modo de ser da

pedra, o seu puro e livre ser pedra, se mostra encoberto. O seu fundamento mais profundo

permanece resguardado em si mesmo. Em deixá-la ser o que ela é, sendo o que ela é ao seu

modo, reside o mistério de sua verdade. A pedra sendo o que ela é se recolhe no seu brilho de

mistério. Em seu brilho ela se manifesta ofuscando e se retraindo a toda objetividade. Em tal

retração, ela foge se encobrindo no fundamento mais profundo de sua fundura. O que, de

modo efetivo, deixa a pedra ser pedra na sua radicalidade, na medida em que, em sua reunião

dialogante como colaboração radical, assim se dá, é o vigor da poética pensante. Nele a pedra

é pedra livre em si mesma. Também são livres a cor e o som, bem como o corpo e o

movimento, todos na liberdade de serem o que são misteriosamente.

Assim, podemos dizer que o que mostra-se, se traz no fundamento mais profundo em

sua fundura sendo encoberto como mistério. Dessa maneira se apresentam as questões: o que

é esse mistério? Porque a fÚsij se dando à experiência é misteriosa? Onde ela se funda em

sua fundura mais profunda para resguardar-se de tal modo?

No intuito de perceber uma conjuntura que possa nos esclarecer, mais uma vez,

devemos procurar nos dizeres de Heráclito algo em nosso auxílio. Em outro de seus

fragmentos, o de número 84, o pensador diz apenas duas palavras: metab£llon

¢napaÚetai13

traduzido por Carneiro Leão como “Transformando-se repousa”. Tomando-se

este fragmento frente ao fragmento de número 123, especificamente não encontramos

nenhuma relação etimológica, nem qualquer outra ligação aparente, a não ser a possibilidade

de interpretar os fragmentos heraclíticos em uma unidade. Na medida em que nos colocamos

na disposição de perceber a obra de Heráclito como unidade, se abre a possibilidade de que

13

Op. cit. Vozes: Petrópolis, p.80-81.

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suas palavras, na simplicidade que lhes é própria, possam dizer muito a respeito do paradoxo

anterior, na relação do desencobrimento e do encobrimento.

Transformar-se é já movimento em si, é um acontecer que traz a relação com o

movimento de modo inequívoco. As duas palavras que formam o fragmento 84, apesar de

dispostas pelos modos como se dão a escrita e a leitura - articulando-se linearmente da

esquerda para a direita - no Ocidente, não nos dizem, necessariamente, que primeiro uma

aconteça para depois a outra. Se assim fosse, poderíamos entender que primeiro há o

transformar-se para depois vir o repouso. No entanto, a tradução de Carneiro Leão é bem

cuidadosa e clara, na medida em que explora, de modo eficaz, a riqueza própria da escrita:

“Transformando-se, repousa”. O repouso enquanto solidez se dá na transformação. Este é

outro paradoxo que a linearidade não pode suportar. Outro paradoxo que vem de encontro às

compreensões comuns a respeito do real, do ser, das coisas. Para exemplificarmos tal

paradoxo não é preciso grandes esforços. Uma obra musical é o que é sempre sendo ao seu

modo. Em cada apresentação de si mesma ela se dá na sutileza da diferença sem perder,

contudo, sua identidade. Isso podemos perceber desde que a apresentação aconteça com o

mínimo de aceitabilidade para o reconhecimento da obra como aquela obra e não outra. Nas

diversas possibilidades de aparecimento da obra, nas diversas transformações pelas quais a

obra permite passar sem perder a si mesma, reside sua solidez repousando como a obra que é

na latência de um novo aparecimento. Tal latência se revela encoberta na simplicidade que

permite todas as dobras e complexidades possíveis de seu aparecimento como obra. Desse

modo, a obra tem como limite apenas o mínimo estabelecido para que não se configure a

perda de sua identidade. De modo distinto, no entanto análogo, podemos perceber um

homem. Ele sempre se transforma, seja pelas novas experiências, seja pela sua condição física

que, a cada dia, caminha para o inevitável confronto com a morte onde ele é revelado

enquanto mortal no seu percurso pela sua vida-morte. Transformando-se a cada dia, a cada

momento, não perde sua identidade. Transformando-se a cada dia, ele repousa em si mesmo,

permanece sendo o que é na dinâmica do ser que desencobre ocultando. O mesmo se dá com

uma árvore, uma pedra, um sapato, um amor, um ódio, uma mágoa, uma paixão, uma

obcecação, uma decepção, uma tristeza. Tudo o que se concede à experiência é em si

movimento e, enquanto movimento, repousa em si mesmo na transformação. Do mesmo se dá

com uma aula, um curso, uma turma, por mais que se tematizem as mesmas questões em

vários encontros, cada encontro, cada curso é único, de modo que não perde seu tema, bem

como não retira a identidade da turma que discute. “Transformando-se repousa”.

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Tal movimento de transformação se revela já misterioso. Enquanto transformação e

movimento ao mesmo tempo ele se encontra no mistério do encobrimento. Repousando no

desencobrimento, o desencoberto se esconde na transformação de si mesmo, no movimento

constante de ser, sendo sempre temporalmente aquilo que é. O desencobrimento e o

encobrimento são pertencentes e próprios amando um ao outro porque desencobrir-se é já um

mostrar-se em transformação. Em transformação, o que se mostra, repousa sendo o que é.

Pela dinâmica do acontecimento das coisas que são, o mistério as rodeia porque nada é fora

do movimento. Este revela temporalmente a transformação do que repousa e que, repousando

em transformação, permanece em sua identidade. Tal transformação que marca a identidade é

uma das possibilidades de compreender o mistério da inapreensibilidade ambígua daquilo que

é sendo. Não se submetendo a qualquer objetividade ou a qualquer sujeição, a identidade do

que é se resguarda no seu mistério, se transformando no seu desencobrimento próprio. Assim,

misteriosamente a fÚsij se mostra repousando na sua própria transformação, resguardada no

seu retraimento. Tal abordagem ainda é dita por Heráclito em outro de seus fragmentos, o de

número 106, quando diz: fÚsij ¹mšraj ¡p£shj m…a. Traduzido por Carneiro Leão como:

“o vigor de cada dia é um14

”. Neste fragmento o vigor da fÚsij é um, na medida em que cada

um dos dias que virão, cada um dos que passaram, e também cada um que está passando,

estão todos retraídos no mistério próprio de si mesmos. Transformam-se a cada dia sem

deixar de ser dia ou noite. Desse modo, mostram diferentes possibilidades ao longo do seu

acontecer sendo o que são na medida do ser. Assim retraída, a fÚsij assinala no seu

desencobrimento vigoroso o mistério que lhe é próprio, o mistério que é enquanto

constituição uma unidade tensional. Tal mistério marca um mostrar-se retraído e vigoroso

abrigado em si mesmo e concedido para a guarda cuidadosa do homem. Retrair é também o

que fica encoberto, seja no vigor de cada dia que é um, seja no movimento de transformação

que abriga o mostrar-se. Seja ainda o retraimento do ocultar-se que se mostra confrontando a

qualquer um que se encontre na permissão de enfrentar tal confronto. É assim que a fÚsij é

produção: ela produz mostrando, desse modo assinala seu próprio retraimento. O movimento

que gera, que faz eclodir o mostrar-se próprio de tudo aquilo que a ela pertence (como o

desabrochar de uma flor, ou a explosão de um raio, ou o nascimento de um animal, ou o raiar

do dia e o cair da noite, a fúria ou a calmaria do mar e o rebentar das tempestades) é já e

sempre em transformação para ser o que é. Todos que pela fÚsij são, repousam já na

transformação de si mesmos. Em tal transformação, enquanto movimento, se dão em fuga

14

Idem, p. 87.

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fugidiamente permanecendo encobertos a qualquer apreensão que não seja a própria

possibilidade da memória. Assim, eles se revelam memoráveis confiando-se à memória à qual

é permitido ao homem estar na disposição. A simplicidade permite todas as dobras da

complexidade, desse modo, ela concede o romper em manifestação misteriosa na

transformação. A manifestação se dá como movimento fugidio que foge se abrigando no mar

de simplicidade que, de modo próprio, permite que tal rompimento aconteça. Dessa maneira,

assumimos que o real se dá na complexidade abrigada na simplicidade, e que a vida é cheia de

dobras e mais dobras possíveis.

Podem ocorrer algumas objeções interpostas no caminho que atuam impelindo

possibilidades de continuar a caminhada. Pode-se questionar que objetos como, por exemplo,

um copo de vidro, continuam ali parados enquanto tal, enquanto objetos ao alcance da mão.

Dessa forma ele se dá disponível e, portanto, alheio à dinâmica da fÚsij como discutida a

partir do fragmento “transformando-se repousa”. Mas será que é colocado com autoridade o

dizer que profere o copo fora de uma relação de movimento e repouso?

Já Aristóteles mostrou com suas famosas causas a inter-relação onde um objeto do uso

cotidiano, no caso, um copo de vidro, depende de uma comunhão de fatores. Sem dúvidas

podemos tomar como exemplo um copo recém retirado da embalagem, ou ainda uma partitura

musical - que, na verdade, pouco e somente indiretamente tem a ver com música - nova em

folha. Suas condições irão se alterando inequivocamente ao passar do tempo, seja ela usada e

conservada ou deixada ao léu. Em ambos os casos muitas possibilidades podem ocorrer até a

aniquilação da própria partitura. Enquanto disponível ao uso ela congrega e reúne todo um

mundo instituído para que ela funcione como tal, de modo que por boa ou má conservação

pode estar disponível para o uso de diversas formas. Tais formas congregam a possibilidade

desta servir de suporte a uma execução musical. Desse modo, fica patente que, a cada dia, ela

transforma-se repousando na sua própria identidade. Tais possibilidades, regidas pelos casos e

acasos, podem definir seu estado bem como sua durabilidade sem deixar que ela perca sua

identidade. No passar do tempo a partitura permanece o que é, no entanto, já de modo

diferente de quando foi adquirida nova em folha. Citando outro exemplo, o copo ao se

mostrar na possibilidade de conter um líquido qualquer, nessa disponibilidade se revela que

ele, enquanto copo, se dá sempre dinamicamente. O fato dele se mostrar disponível ao alcance

da mão não quer dizer que nele mesmo perdure uma estaticidade. A aparente estaticidade

tanto da partitura quanto do copo é perpassada por uma potente dinâmica, por um movimento

que traz os próprios na transformação de si mesmos a cada momento, a cada dia, de modo que

“transformando-se repousa”. A cada dia as possibilidades são distintas. Não estamos na

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disposição de prever o que pode vir a acontecer com o passar do tempo. Tais possibilidades

mostram que estar ao alcance das mãos é mera aparência de estaticidade e de determinado

controle do homem em relação às coisas.

Transformando-se, repousam as relações dialogantes que são reunidas na música.

Mostram o homem na sua singularidade já reunido como unidade na medida em que se vê

lançado no mistério musical, a cada dia, e a cada momento, de modos distintos. Dessa

maneira, não perdem nem homem, nem obras musicais, muito menos a música, a sua própria

identidade. Ali, no mistério ambíguo do inapreensível mais uma vez se dá o abismo na

permissão dos caminhos por onde podem ser encaminhados, seja o homem, seja a obra

musical, seja a música reunindo ao seu modo. Somente na simplicidade é que os

desdobramentos podem se dar como solidez que, transformando-se, repousa. Mostrando-se,

eles já se dão misteriosamente velados e resguardados em sua verdade na permissão da fÚsij

como um modo de dizer o ser que a tudo guarda e resguarda.

Real

Não há dúvidas de que na medida em que se encontram em questão os caminhos do

ser e, nessa perspectiva, a reunião dialogante entre música e homem, não pode deixar de

figurar nas discussões o real em que tais desdobramentos de modo efetivo acontecem. Somos

reais, porquanto a música como unidade também o é. Assim também as obras musicais, os

músicos, a linguagem como reunião, todos em suas diferenças são ditos reais. Portanto

questionar o real é preciso, visto que ele se mostra como um dos modos em que o ser mesmo

se diz.

Tal palavra configura para nós tudo com o que nos deparamos e podemos nos deparar.

No entanto, o que é real? O que é simulacro? O que é verdade? O que é virtualidade? Quando

nos deparamos com a possibilidade de dizermos o que é real, várias são as possibilidades de

vislumbrar a questão. Tal palavra é uma questão na medida em que congrega uma diversidade

de possibilidades de caminhos para tentarmos com ela dialogar. Verdade, simulacros, virtual,

todas estas palavras são possibilidades que se articulam com o que chamamos de mundo. Um

mundo que radicalmente é abrigado pelo vigor daquilo que, no movimento de si mesmo,

surge misteriosamente, com o nome e pela experiência da fÚsij. Todas as relações que se

dão e se estabelecem em um mundo, em tensão própria com a fÚsij, são trazidas dentro do

que chamamos de real. Ele congrega e abriga as possibilidades de acontecimento enquanto

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verdade e não verdade, enquanto mundo e desenvolvimento. O acontecimento histórico se dá

como real na verdade do ser que se mostra epocalmente.

Não é nenhuma novidade que a palavra real provém do latim res que traz o sentido de

negócio, ação, empresa, e que também veio a dizer coisa num amplo sentido. Donde podemos

perceber que a relação do que é real acaba por se mostrar em amplo espectro. Real, a partir

disso, pode-se mostrar na possibilidade de dizer do que é o concreto. Concreto denota apenas

uma idéia de materialidade, o que revela alguns equívocos. O concreto sendo investigado em

suas origens revela outras possibilidades de discussão e compreensão. A palavra concreto é

formada oriunda do latim cum adicionado de crescere. A preposição cum traduz idéias de

união, de estar junto a; e crescere traz basicamente a idéia de crescer, crescimento. Desse

modo, podemos compreender concreto como o estar junto ao que cresce, ao que

necessariamente mostra e traz o crescimento como possibilidade de realização. Assim,

podemos perceber que a própria fÚsij se coloca na relação com o concreto, e não apenas a

materialidade como se pode precipitadamente julgar. Concreto, assim, é estar junto, é o

encontrar-se juntamente ao que cresce, é o estar em conjunto, em conjunção ao crescer e ao

crescimento em si.

A partir de tal maneira de entender o que é concreto, percebemos que, independente de

qualquer palpabilidade ou ainda materialidade, sua questão engloba um âmbito maior de

apreensão. De posse de tal sentido dizemos que o amor é concreto, pois que se encontra junto

ao que cresce. O amor se encontra em uma relação que efetivamente se dá em uma densidade

inegável. O amor mesmo é algo que se revela em um crescimento e igualmente em um

desaparecimento. Quem pode vir a negar a densidade e a concretude dos sentimentos

humanos? Um acesso de cólera, um mar de tranqüilidade, uma paixão. Todos são sentimentos

e, como tais, não materiais, mas completamente concretos. O concreto dá determinada medida

ao que diz o real. É uma das maneiras, uma das perspectivas em que se pode tentar adentrar o

que, de modo próprio, pode dizer o real. Importante se torna dizer que, de qualquer maneira, o

real é amplo, é um termo que se refere a uma gama sem-fim de possibilidades e

impossibilidades.

A reboque do que diz real temos ainda a realidade, o realizável e o realizado, bem

como seus opostos. A realidade se encontra dentro do real. Realidade é o que se dá como fato,

é o factual. O que já pode se dar como feito. Devemos levar em conta que, a partir das

discussões precedentes, a aparente imobilidade do fato já se desvela na sua própria solidez em

transformação. As realizações se mostram sendo efetivamente o que pode se dar como

realidade. O real, de qualquer maneira, envolve e engloba tanto realidade quanto realizações.

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Ele envolve os fatos e os acontecimentos e sem dúvida que os supera. O real se revela muito

maior do que a realidade e as realizações, até porque na medida das palavras estas últimas se

mostram já uma derivação da primeira. De qualquer modo, podemos prosseguir dizendo que o

realizável e o irrealizável também podem ser ditos enquanto possibilidades que pertencem ao

real. Portanto, estamos falando de possibilidades e impossibilidades, realizações e realidade,

bem como do irrealizável, de modo que todos pertencem ao real. Toda a gama em que nos

encontramos lançados e suspensos - de modo em que já nos encontramos tratando e ao

mesmo tempo sendo tratados - pertence ao real.

Ao real pertencem todas as relações e possibilidades de relações mundanas e extra-

mundanas. Nele todo o âmbito do que se pode falar bem como do que não se pode falar está

presente ou até ausente. Toda verdade se abriga nesta possibilidade de entendimento. Alguns

podem ter idéias equivocadas a respeito do real de modo a se poder afirmar que o real

depende daquele que o vê. Portanto, mais uma vez os aspectos da subjetividade se encontram

na influência que pode determinar o que se questiona e o modo como se questiona o que se

põe em questão. O real não depende da subjetividade do sujeito, por mais que a idéia de

sujeito pertença ao real e sua verdade. A idéia e o conceito de sujeito e objeto pertencem ao

real e são, ao mesmo tempo, um modo de relacionamento com o mesmo. Assim, o real não é

para o homem em sua individualidade bem como em sua subjetividade. O real é para o

homem sim, na medida em que este se encontra aberto ao que, como real, se manifesta ou se

retrai. Mas o homem não é o dono do real. Antes, se encontra nele de modo a poder

influenciá-lo, isso sem dúvidas. Contudo, influencia como participante de uma dinâmica que é

maior do que o ele próprio - o homem - seja como indivíduo ou como essência. Tal dinâmica

perpassa por relações que mostram a fÚsij em sua magnitude. O real transcende o que a

fÚsij oferece, porque para se dar como tal mostra efetivamente uma colaboração com ela.

Assim, o real se sustenta na fÚsij transcendendo-a.

A fÚsij é muito mais do que ela apresenta enquanto suas produções. Sem dúvida

também o real como o concreto, o verdadeiro, o que é e o que não é. O real se diz em um

amplo âmbito, de modo que tornamos a dizer que tal palavra é um dos modos de dizer o ser.

Tudo o que é pertence ao ser, de modo que sendo, é real. Quando falamos que do real fazem

parte o irrealizável e as impossibilidades, queremos mostrar qual o âmbito que se encontra em

seu domínio. O que é o irrealizável? O que nunca pode se tornar realidade? O que nunca pode

se dar a uma realização? Não se dar como realidade a uma realização não quer dizer o mesmo

que não ser real, que não faz parte do real. Até porque, podemos dizer que as impossibilidades

e o irrealizável mostram o âmbito do realizável e das possibilidades como diferença. O

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irrealizável e as impossibilidades fazem parte do real porque o impossível pode não vir a

acontecer, mas o real não é totalizado pelas realizações e pela realidade apenas como o que

acontece. Estas apenas fazem parte do que conhecemos e que se torna fato na dinâmica

própria do mistério em que se encontram resguardas. Dinamicamente tudo o que se torna fato

e que vem a presença somente se dá por radicalmente se revelar a partir do impossível e do

irrealizável. Impossível para o âmbito das possibilidades e irrealizável para o âmbito das

realizações e, conseqüentemente, da realidade são a medida um do outro. O possível se mede

no impossível e o realizável e a realidade medem-se no irrealizável. Tal maneira de

encaminhar a questão se situa fora dos modos habituais de discorrer a respeito do real. Tais

questões entram diretamente no âmbito da verdade, porque necessariamente irá ser

questionado: qual vem a ser a relação com a verdade que pode ser dita a partir do impossível e

do irrealizável? No entanto, ainda não temos de modo mais aprofundado a própria questão da

verdade. Pois o que efetivamente pode ser chamado “verdade”? O que é de modo próprio a

verdade, para que a validade dos questionamentos empreendidos possam, assim, “ser postos

sobre a mesa”?

Mais uma vez perguntamos: o que é o irrealizável? Sobre ele algo pode ser dito? Se é

possível dizer algo a respeito do irrealizável, é porque pensar e dizer a respeito deste

encontram nele a própria medida. Medida aqui é se articular estabelecendo os limites para que

algo possa vir a ser o que é. O irrealizável, assim, é a medida das realizações e da realidade

por mostrar, lhes revelar os limites. Sendo a realidade mutável a todo o momento, pois que

“transformando-se repousa”, o irrealizável como seu limite sempre se movimenta na mesma

medida em que a realidade e as realizações também se movimentam. O âmbito do real se

articula em uma dinâmica inimaginável e, por tal, se mostra como uma radical dificuldade

para nós. A imaginação nunca se encontrou de posse do âmbito próprio do real. Contudo,

reafirmamos que a medida da realidade e das realizações, como o irrealizável, se move e

transforma-se tanto quanto os primeiros também e constantemente se movem. Portanto, tal

limite, enquanto limitação, a todo o momento está posto à prova na medida em que não é um

limite fixo e sim, se articula em uma mobilidade. Enquanto mobilidade o irrealizável sempre

em movimento se esconde das realizações e da realidade. Dessa maneira escondendo-se, o

irrealizável mais se revela como a medida da realidade e das realizações. O irrealizável

também pode ser questionado, por extensão, em referência ao que dissemos a partir do

concreto. Se o concreto é real porque se encontra na perspectiva de estar junto ao crescimento

enquanto produção. O irrealizável seria justamente a medida do concreto lhe mostrando os

limites. Devemos atentar para que irreal e irrealizável são coisas distintas. Irreal é aquilo que

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se encontra fora da realidade. No entanto fora da realidade não quer dizer que se encontra fora

do real, mas simplesmente que se dá fora do contexto do que é fato, do que é factual, do que

se encontra realizado no âmbito das realizações. Dessa maneira não podemos dizer que o

irreal está fora do real, até porque o próprio real nomeia o irreal.

O irrealizável, como medida para o concreto, encontrar-se-ia em outra perspectiva, já

que se mostra em uma dinâmica de impossibilidade de acontecimento e, portanto, num âmbito

de movimento. O irreal por sua vez, se mostra quase que de modo estático fora do âmbito da

realidade. Por outro lado, o irrealizável apresenta outra perspectiva que demanda um não

poder, um não estar na disposição de um acontecimento de modo a efetivamente se dar como

concreto e, portanto, real. Tal não poder revela ausência, um não poder, assim, talvez mais

possa como medida do que o próprio poder. A medida do poder, sendo o não poder enquanto

o irrealizável dinamicamente em movimento, repousa na sua própria dinâmica sendo não

poder. Irrealizável é o não poder se dar enquanto acontecimento. É o não se encontrar, de

modo próprio, na disposição efetiva de crescer para um mostrar-se que ao mesmo tempo já se

dá no velamento de si mesmo. Tal não-disposição silencia até o mais profundo silêncio. Na

verdade todo silêncio só é possível diante daquilo que mede todo e qualquer crescimento

como não poder. Tal não poder se articula na perspectiva de permitir, sendo a medida de todo

poder e de todo acontecimento. Talvez este possa ser dito até como o abismo, como um nada.

Um não poder, um não acontecimento radical se dá como um nada, um abismo que se perde

até de si mesmo enquanto abismo por não ter absolutamente nada, nem a si mesmo. Ao

mesmo tempo, tal não poder na sua simplicidade abismal, na sua simplicidade sem fundo,

norteia todas as dobras das complexidades dos acontecimentos do real enquanto realizações

da realidade, e enquanto possibilidades como movimentos de poder ser. Todo desdobramento

da complexidade de um mundo então é permitido pela simplicidade de tal abismo que permite

o silêncio, o som, as obras de arte, as venturas, desventuras e aventuras nas quais o homem se

encontra posto em disposição na sua vida-morte.

A impossibilidade ocorre de modo análogo, talvez até em uma proximidade maior do

que imaginamos. As impossibilidades são de qualquer maneira medidas pelas possibilidades e

o contrário do mesmo modo. No entanto, as possibilidades já são ao modo de uma dinâmica

imensurável onde se podem confundir possibilidades e impossibilidades. Possível e

impossível encontram uma limitação mais tênue do que as realizações e a realidade.

Possibilidades se encontram no âmbito de um acontecer e do não acontecer. Tal

acontecimento ou não se mostra como realização no âmbito da realidade. Todas as

possibilidades de acontecimento que ficaram apenas latentes em si mesmas, se conjuntam

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com a impossibilidade de podermos precisar a diferença do que é possibilidade e do que é

impossibilidade. Dessa forma, impossibilidades e possibilidades se conjuntam em uma

reunião. Tal reunião impossibilita a restrição de delimitar que algo possa ser dito no âmbito de

uma ou de outra. Portanto, limitar impossibilidades de possibilidades se torna impraticável.

Não há a possibilidade de determinação de um limite entre possibilidades e impossibilidades

desse modo. A partir de um não limite entre elas se mostra de modo muito mais dinâmico as

relações de movimento do próprio limite entre um e outro. Possibilidades e impossibilidades

se conjuntam em um não limite de mobilidade onde ambas se reúnem enquanto latência

própria no real.

O ser, como questão, engloba todas as variantes de que algo necessariamente venha a

ser na medida em que é sendo ao seu modo. Assim, as possibilidades e impossibilidades em

conjunto, se juntando ainda ao irrealizável, se mostram no movimento que se retrai dos

acontecimentos próprios da realidade e das realizações. O real, desse modo, como uma das

maneiras de encaminhar a questão do ser engloba tais referências. Há uma referência entre

possibilidades, impossibilidades e irrealizável enquanto medida dos acontecimentos como

realidade e realizações. O real envolve tais limites bem como a fuga enquanto movimento do

que confronta a realidade e as realizações. A profundidade abismal mais uma vez aqui se

mostra de modo inequívoco na insinuação de seu próprio retraimento.

Na medida em que tomamos por discussão as questões da possibilidade e do possível,

tais mostram estreita ligação com posse e poder. O poder é sempre uma força que se encontra

latente na possibilidade de se dar como tal, na possibilidade de exercer sua força para que,

como poder, possa assim se manifestar. O poder não é necessariamente o exercício do poder,

mas sim estar na dinâmica de, a qualquer momento, fazer com que o poder se exerça. As

possibilidades e impossibilidades se encontram nesta latência de acontecimento. É essa força

presente que impulsiona se revelando como o limite das realizações no âmbito da realidade. O

poder e a posse não se encontram aqui tratados na perspectiva do homem apenas. Na verdade,

o homem somente pode ser dito enquanto dotado de algum poder ou posse, por já lhe ser

permitido estar lançado e suspenso na dinâmica das possibilidades e impossibilidades. Tal

dinâmica é que mostra ao homem, de modo próprio, a posse e o poder. Estando ele em tal

disponibilidade, lançado nessa latência, é que podemos dizer que o homem, algum dia, pode

vir possuir ou já ter possuído algum poder.

“Real”: tal palavra tem o poder e a posse de uma ampla gama de articulações. Mas

aqui, quando nos referimos à palavra, estamos buscando a própria experiência que esta vem a

suscitar, na medida em que como nome ela assim já convoca como palavra. Desse modo,

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podemos dizer que real é todo o âmbito dos acontecimentos, das possibilidades e

impossibilidades, da realidade, das realizações, do irrealizável. Enfim, do que é fato e de

todos os limites do factual. De toda a dinâmica que permite as referências do ser a todas as

coisas que são e que pertencem ao ser. O ser permanece em questão e permanece uma questão

que se articula de modo inesgotável. Reafirmamos que o real é uma maneira de dizer o ser.

Ele é movimento incessante que se modifica no transcorrer do tempo. Tal movimento, de

qualquer modo, se encontra no âmbito de velamento e desvelamento da fÚsij posto que o

real nasce dela. Ou melhor, o real é necessariamente com ela e por ela abrigado. Não podemos

dizer ou pensar o real fora da fÚsij, isso sem dúvida. Talvez o real seja uma maneira distinta

de dizer da experiência própria com ela, ou não seja de outro modo. Isso não se vê decidido se

é que algum dia se terá sobre tal alguma decisão.

A mobilidade ao mesmo tempo traz o repouso sendo o que ela é já, e sempre, no

movimento. Tal mobilidade marca de modo inequívoco o real quando mais uma vez ecoam as

palavras de Heráclito: “transformando-se, repousa”. O real é dinâmico na medida de lhe ser

próprio tal dinâmica onde ele se mostra resguardado em seu mistério. No momento em que

procuramos com seriedade e atenção questionar, a sabedoria reside em escutar atentamente as

palavras do pensador e a partir dela dialogarmos com as próprias coisas do real, com o

próprio real e com o ser. O importante é dizermos que o real se mostra na medida da verdade.

Esta somente pode ser verdade na dinâmica e no movimento em questão. Assim,

necessariamente, ela se encontra de fora de toda certeza, precisão e adequação reveladas a

partir da certitudo. A respeito da verdade como questão, iremos procurar mais adiante tratá-la

de modo breve, no entanto, com respeito, pois uma questão como esse exige a seriedade e a

atenção de uma escuta atenta.

De toda forma o real, na medida das possibilidades e impossibilidades bem como do

irrealizável, nos concede um panorama rico a respeito do caminho em que nos encontramos

transitando já em trânsito. Uma profundidade incomensurável se abre para que os caminhos

do ser possam assim ser medidos e desdobrarem-se. No âmbito da unidade musical, em

qualquer situação: no aparecimento de uma obra como performance, na criação de uma obra,

no homem reunido e suspenso em tal chamado; as impossibilidades e as possibilidades, bem

como o irrealizável, são a medida inequívoca e radical para que a música como caminho se dê

reunindo ao seu modo o que por ela se dá. Na criação de uma obra musical tudo isso reside

impondo-se sem que o homem mesmo possa se dar conta de tal dinâmica em sua radicalidade.

Tal dinâmica já suspende o homem na sua própria medida de modo que, assim, ele pode se

ver medido, e ouvir atentamente a medida da própria obra.

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Matéria e forma

Anteriormente procuramos falar de todo o âmbito que envolve o real em sua dinâmica

de acontecimento enquanto o poder e o não poder das realizações da realidade. Este se deu na

medida das possibilidades e impossibilidades bem como do irrealizável. É um âmbito de

imensa magnitude, que sem dúvida se refere a um dos modos de tentar dizer o ser. No

entanto, fazendo um pequeno recorte, podemos adentrar a possibilidade de discutir algo que,

pertencendo a tal âmbito, traz uma relação importante dentro da constituição do real em si.

Sob o nome de matéria e forma temos um par conceitual constante na filosofia do Ocidente.

Aqui tentaremos questionar tais conceitos de modo que eles se mostrem na mobilidade

própria que nos interessa. Assim, matéria e forma podem se revelar enquanto questão na

medida em que busquemos atentamente ouvi-los. Sem dúvida que nos retiramos de um

âmbito maior de discussão para um mais restrito. No entanto, tal empreendimento pretende

assim questionar e retornar ao âmbito de maior abrangência para prosseguir as investigações.

Podemos com uma simples pergunta justificar o próprio figurar de matéria e forma aqui:

como este trabalho que, em sua singularidade, pretende estar na disposição de questionar a

música no empenho da convocação em que assim já nos encontramos, poderia deixar sem

questão matéria e forma na medida de buscar atentamente ouvir sua verdade? Assim, no

decurso do trabalho e na maneira como ele assim se faz, o que aparentemente se mostra como

um desvio é, na verdade, parte da própria investigação e da questão que nos convoca, pois

como já disse sabiamente Aristóteles: TÕ ×n lšgetai pollacîj15

(lendo-se, em caracteres

latinos, como “to on legetai polahos”, e sendo uma das traduções possíveis: “o sendo-ser diz-

se de múltiplas maneiras”). De alguma maneira, isto nos dá um referencial teórico forte para

podermos, no âmbito do ser, promover diversas discussões em busca da sua verdade. Desse

modo, se encontra claro que o ser dá conta dos caminhos que por ele são permitidos enquanto

desdobramentos a partir da simplicidade radical. Tal compreensão direciona todo o rumo das

investigações em que nos propomos até o presente momento, na disposição que nos exige em

caminho.

O par em questão (matéria e forma) refere-se especificamente às coisas que podem ser

ditas no âmbito do acontecimento das concretizações da realidade. Tal par pode ser

encontrado tanto naquilo que é fruto da constituição do mundo, como, por exemplo, o que se

dá enquanto imaginação do homem, bem como no que independe completamente deste pra

15

Aristóteles. Metafísica. Livro Z. 1028a 1ª linha.

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ser o que é. Sem duvida, este par aqui figura pela importância daquilo que pretende dar conta,

e não vai buscar a promoção de discussões a partir do que já foi extensa e largamente tentado

pelo pensamento. Portanto, o que pretendemos é ouvir a verdade do ser que epocalmente se

manifesta na medida do tempo.

Não é novidade que o par matéria e forma, desde longa data, se encontra no caminho

de constituição do Ocidente enquanto cultura. O que se desenvolveu como a palavra

portuguesa “matéria” se dá hoje semanticamente com fundamentos há muito cunhados. Tal

palavra mantém, de alguma forma, suas raízes ligadas nestes com alguma dinâmica de

desenvolvimento. Em qualquer dicionário semântico se entende a matéria em sentido mais

usual como qualquer substância que se encontra em um dos estados físicos ditos pela ciência

como líquido, sólido e gasoso, e assim ocupa lugar no espaço. Somente neste sentido temos

quatro questões fundamentais para o desenvolvimento do Ocidente: o espaço, a forma e a

matéria, bem como o tempo, o qual nos espreita desde o início do trabalho. Trataremos do

tempo mais adiante com o devido cuidado.

Torna-se prudente um olhar mais cauteloso a partir desses termos na medida de um

complemento da própria investigação inicial que nos impele em uma convocação. Assim,

seguimos em questionar a matéria enquanto aquilo que ela é. “Material” é dito hoje como

presente no âmbito que mostra o parente da fÚsij sob o nome e conceito empobrecedor

daquilo que é físico. Material como o que é físico se encontra enquanto o que se dispõe a

sensibilidade e, nessa disposição, pode ser dito como algo que é. Assim, o material se mostra

restrito a um determinado domínio: o domínio do que é especificamente denominado

enquanto o aspecto factual na medida de sua materialidade. No entanto, etimologicamente,

“matéria” é proveniente do termo em latim com mesma grafia, matéria. Tal palavra traz seu

étimo do próprio latim mater, matriz que tem origem na raiz indo-européia *matr- que diz,

sobretudo, mãe. Portanto, a matéria é a mãe, aquilo que efetivamente origina, que dá origem.

Mas dá origem a que? Ao que dela é feito? Será que com tal pergunta já não está promovida

uma separação radical? Se a matéria é a mãe, enquanto origem, não há separação entre ela e

as coisas da qual ela pode ser dita mãe. Pode-se retrucar que a mãe que origina seus filhos,

deles se separa no intuito de que ganhem sua própria autonomia. Mas, no caso, a objeção se

articula na possibilidade da maternidade em sentido distinto. Aqui a matéria é mãe não

somente porque dá origem, mas também, e necessariamente, porque é parte constituinte

daquilo que com ela e por ela é originado. Na verdade, se pudermos perceber com clareza, há

certa dificuldade de que possa haver qualquer possibilidade de separação entre aquilo que se

dá sendo o que é, e aquilo que lhe origina enquanto matéria. Isso porque, sem dúvida, o que se

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dá na perspectiva da matéria é o que é sempre materialmente. Em hipótese alguma se poderia

retirar a matéria do que efetivamente é ao modo da matéria, ou seja, materialmente. O que se

diz é de tamanha limpidez e transparência que quase não apresenta a necessidade de ser dito

por sua obviedade. No entanto, o óbvio pode causar determinada cegueira, bem como surdez,

quando não mais nos colocamos na possibilidade de perceber o simples. Quando nos

entendemos já sabedores, acabamos por esquecer a sabedoria de ouvir, de perceber com

clareza, o que está gritando para nos dizer a respeito de si mesmo. A matéria é mãe sem

separar-se daquilo que ela origina. Quando a palavra “mãe” vem a corroborar alguma

possibilidade de separação de seus filhos, isto é proveniente de uma experiência muito

particular que temos com o sentido de tal palavra. Para nós há uma alta relevância na palavra

e no que ela nos traz. Contudo, devemos voltar a afirmar que tudo que é materialmente,

somente assim permanece sendo o que é.

No entendimento de “matéria-mãe” a partir de “origem” – sendo uma origem que não

se separa do que dela é originado, porque ambos somente existem juntos – a matéria, como

tal, permite a imposição de limites. Na verdade ela sendo o que é, como matéria é sempre na

disposição da imposição de limites. Os limites daquilo que com ela se vê em questão são

permitidos por ela. Sendo o que ela é, a ela é permitido ser ao modo de que limites lhe sejam

impostos. Ela assim já aparece na disposição de sua limitação. A matéria, sendo o que é, já

aparece na disposição de seus limites. Ao mesmo tempo, ela se encontra na disposição de que

tal limitação possa ser modificada no passar do tempo e dentro do que o mesmo permitir. Os

limites do que é material são próprios ao que se apresenta materialmente, do mesmo modo

como é próprio ser material pertencendo à matéria. Os limites da matéria dão ao que é

material sua própria identidade. Limites, aqui, delimitam o que efetivamente é ao modo

material. O limite aproxima as diferenças, ao mesmo tempo em que as afasta como diferença,

na sua afirmação de identidade. Afirmando-se mais como ele mesmo em sua identidade, o que

é material, em sua limitação, habita a proximidade de todas as diferenças. A identidade

aproxima as diferenças na sua própria afirmação. A matéria se dá disponível, tal

disponibilidade se mostra na possibilidade que ela permite de que seus limites possam ser

modificados. Tais limites, que dão forma à matéria, se mostram dispostos numa

disponibilidade, de maneira que possam colaborar para uma modificação. Essa disposição se

apresenta para que assim uma imposição de limites possa se dar na colaboração com a própria

matéria. O importante é percebermos que matéria e limites se dão como unidade. Um

exemplo de tal disponibilidade na imposição de outros limites ao que é material se dá quando

o homem trabalha em conjunto com o que é trabalhado para mudar os limites de algo. Tal

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realização se faz quando uma mesa de madeira é trazida a presença. A madeira, enquanto

material, se concede como disponibilidade para que lhe sejam impostos outros limites fazendo

aparecer uma mesa.

Tudo o que é material se mostra já misteriosamente nos limites de sua forma. Não há a

possibilidade de separação entre matéria e forma, na medida em que a forma define os limites

próprios nos quais algo se manifesta materialmente enquanto acontecimento. Assim, o que é

material não se dá a um aparecimento separado de seus limites, os quais delimitam a sua

forma. Tais limites revelam tal aparecimento de modo formal, isso sempre e de toda maneira.

Portanto, toda vez que algo materialmente se dá ao modo de um aparecimento misterioso, tal

aparecimento é sempre nos limites próprios que demarcam sua forma. Matéria e seus limites,

matéria e forma, aparecem sempre em sua conjunção. Ou melhor, aparecem enquanto

propriedade um do outro. Eles não se separam, tal possibilidade é terminantemente

inverossímil. Perceber o limite fronteiriço, o que separa aquilo que é em seus limites, do

outro, é de extrema importância para o que pretendemos questionar. A partir de algo limitado

aos próprios limites diante da diferença, percebemos a reafirmação da proximidade de

identidade e diferença. No entanto, o limite de tudo aquilo que é limitado, se dá medido no

que se revela sem limite. Desse modo, podemos buscar no sem limite a medida de todo limite,

e de tudo o que se dá no âmbito de seus próprios limites. O importante é que identidade e

diferença se mostraram na vizinhança da discussão enquanto proximidade uma da outra. A

questão do limite e do não-limite deve retornar em outro momento.

O momento se mostra oportuno para que, a respeito da discussão que nos concede

matéria e forma, o espaço entre em questão. Talvez possamos dizer que espaço é o que se

encontra presente e junto a tudo o que é dito como físico, como material. Em outras palavras,

é comum o dito de que para que algo exista materialmente, é preciso estar à disposição do

espaço como condição fundamental, ocupando o lugar que lhe é permitido. Percebemos em

tal entendimento um distanciamento inequívoco: de um lado o espaço, do outro o que é real

materialmente. Assim, tal disparidade se junta na medida em que o que é material se apresenta

na possibilidade espacial ocupando assim um lugar. Esse entendimento afirma que as coisas

físicas em si não têm lugar, mas ocupam um lugar vago, que acaba por ser também como um

vazio que contém aquilo que se encontra em seu domínio. De todo modo a questão do espaço

trouxe e continua trazendo grandes dificuldades a quem por ela se aventura. Do modo como

está sendo tratado ele é visto como o vazio no qual aquilo que é material se manifesta. Assim,

ele é aquilo que se mostra enquanto medida para termos como extensão, comprimento e

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largura. Mas a precisão desta tridimensionalidade não nos interessa. O que nos interessa antes

é discutir o espaço propriamente dito.

Será que podemos dizer que espaço é uma conquista? Talvez ele possa ser uma

conquista do que se mostra na fúria muda de seu velamento. Sem dúvida, espaço não é

medida na perspectiva da tridimensionalidade antes aventada. Muito pelo contrário, o espaço

em si, é não medida na perspectiva de qualquer precisão. Se ele for considerado uma

conquista, ao mesmo tempo se mostra quando é conquistado. Portanto, ele é mais espaço

quando o que se mostra misteriosamente em seu velamento conquista seu espaço revelando-o

como conquista. O que num aparecimento conquista seu espaço revela esse mesmo espaço

enquanto uma abertura conquistada. Em tal abertura o que se mostra pode se revelar

misteriosamente em si mesmo. Por exemplo, qual o espaço de uma obra musical? Como

poderíamos dizer do espaço de uma obra assim como as que pertencem à música? Talvez esta

dimensão possa revelar possibilidades completamente distintas do entendimento que temos de

espaço. No entanto, podemos afirmar de forma categórica: uma obra musical conquista o seu

espaço. Uma obra musical como, por exemplo, a 5ª Sinfonia de Beethoven se dá também

enquanto espaço na medida em que conquista agarrando-se ao seu próprio espaço. Como

assim? Não se pode negar que como qualquer outra obra de arte, a musical é também uma

manifestação. Manifestando-se ela se dá como aquela que é na possibilidade que se apresenta

em questão a um aparecimento. Tal aparecimento se revela quando ela efetivamente sai do

silêncio primordial que a guarda para soar como obra. Na medida em que sai do silêncio ela

conquista, rompendo o soar de si mesma, seu espaço que temporalmente se apresenta. Mesmo

após a sua retração de volta ao abrigo do seu silêncio que a guarda, a partir da manifestação

velada que fez dela um aparecimento, seu espaço foi e permanece conquistado. O fato aqui é

que estamos falando do espaço conquistado da obra a que nos referimos, e não outra. Assim,

permanecemos na perplexidade de não trazer o espaço de um modo amplo, mas restrito. No

entanto, a restrição que aqui se intitula, ao mesmo tempo abre caminho para que o espaço

possa ser entendido mais amplamente. Tal caminho se mostra livre de resquícios que possam

obnubilar a visão e os questionamentos equivocadamente. Espaço é conquista, mas é também

possibilidade. Na verdade, é uma possibilidade que se conquista. O espaço como

possibilidade a ser conquistada não depende de qualquer precisão como extensão,

comprimento e largura. Ele também não depende de qualquer vontade do homem, porque se

encontram em questão tanto coisas que não dependem do homem, bem como de outras que

dependem da sua colaboração. Portanto, a vontade não pode aqui figurar na medida em que

pertence a um aspecto subjetivo. Desse modo, também o amor conquista seu espaço sem

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nenhum controle. Também a paixão, a injustiça, a justiça, a flor, a pedra, o livro, o romance,

bem como o homem enquanto indivíduo e enquanto grupo. Na medida de seu próprio

aparecimento, o espaço é uma conquista. Tal conquista se dá de maneira que ele abandona o

âmbito das possibilidades para se dar conquistado. O que conquista seu espaço se mostra

como aparecimento misterioso que se vela no passar do tempo. Desse modo, as coisas têm o

seu espaço. Todos os entes que sendo, são ao seu modo, têm o seu espaço na conquista de si

mesmos. As coisas não ocupam espaço, elas conquistam espaço porque aparecem manifestas

já no velamento e no mistério. Conquistar é ter e possuir. No entanto, a individualidade que se

dá como realização na realidade conquistando seu espaço, se mostra regida pelo espaço

enquanto possibilidade de ser conquistado. Ele assim congrega, na possibilidade de ser

conquistado, ser também possibilidade no próprio abismo de simplicidade. O espaço é uma

possibilidade que se permite ser conquistado no acontecimento de um aparecer que, em si, já

é mistério. Assim, o espaço primordialmente se mostra a partir da simplicidade abismal que

permite todos os desdobramentos.

No entanto, ainda permanecemos no mistério. Por mais que algum desenvolvimento

das questões pudesse ser alcançado, continuamos com dificuldade em nos referir à dualidade

conjunta matéria e forma. Esta, necessariamente, é já na conquista do espaço enquanto

possibilidade na simplicidade abismal que se abre às realizações da realidade. Matéria e forma

implicitamente trazem a conquista do espaço alheio da mensuração entendida nos aspectos da

precisão. O real comporta o material na sua limitação a partir da simplicidade abismal que

abriga o espaço como possibilidade para toda conquista. A matéria é mãe porque é - não na

estaticidade de um entendimento, mas na dinâmica própria que a envolve - de um modo ou de

outro fÚsij. Assim, ela mostra e conquista espaço em sua própria dinâmica e com seu

próprio vigor. Independente de seu estado, atestado nas possibilidades do sólido, líquido e

gasoso, a mãe, enquanto fÚsij, permanece até em outros âmbitos.

Assim, a música na medida em que apresenta as obras musicais, mostra que essas se

revelam em sua materialidade e na sua forma. Assim se dá, na medida em que, se

apresentando já resguardadas, elas conquistam seu próprio espaço se desdobrando no abismo

de simplicidade. Este que faz com que o espaço enquanto possibilidade se dê a ser

conquistado. Assim, o espaço é conquistado enquanto as obras se mostram na sua identidade

frente a todas as diferenças se dando materialmente na sua limitação como forma concedida

na disponibilidade sonora. Formal e materialmente as obras se mostram nos seus próprios

limites e na conquista própria e radical de seu espaço. Este que já se revela a partir da

simplicidade do abismo mostrando-as reunidas na própria música.

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Walter Otto nos concede um dito memorável a respeito da forma que devemos

apresentar para encerrar o subitem em questão:

A forma é limitada pelo seu contorno e esse limite parece excluir o outro, o que de

fato não ocorre. A limitação tem, nesse caso, a prodigiosa propriedade de incluir o

outro que ela parece excluir. É um todo e também o todo16

. Por isso, cada Forma

genuína está sempre apta a manifestar o ser no mais profundo de sua profundeza, no

mais vasto de sua amplitude. Ela só advém ao contemplador na e pela graça do

momento. No plano mais elevado, sucede que ela faz ver tudo em tudo, numa

indescritível supremacia. Torna-se assim manifesto que é o divino17

o ser que na

Forma se franqueia18

.

O nada

Aqui, devemos de modo verdadeiro nos lançar já suspensos nos caminhos do pensar

poetante. Dessa maneira, nos encontramos na disposição de uma aproximação ao que se dá

em um aparecimento misterioso de modo radical e inequívoco. Os caminhos que se

apresentam são a possibilidade de transitarmos na tentativa de um dizer a partir do ser. Nesse

empenho, pretendemos nos encontrar dispostos a chegar ao dizer da arte e do artístico,

enquanto música, naquilo que lhes é próprio. No esforço em que nos encontramos, se pode ter

a sensação de que em toda investigação empreendida no âmbito ontológico, ou seja, no

resguardo e atenção ao ser, chegamos a um determinado momento em que parecemos estar

diante do vazio. Posto que, como já disse Nietsche, “o ser é um vapor19

”. Na desconsideração

se o dizer foi realizado de modo demeritório ou não, importa antes que este venha atestar a

impossibilidade de uma apreensão do ser por si mesmo. Essa inapreensibilidade que se

mostra ambígua, nos direciona a repensar o porquê de tal constatação, e como ela se dá de

modo profundo, essencial. Aqui está claro que também o termo essencial se apresenta

complicado na medida em que se refere ao inobjetal do ser. A essência como palavra

menciona o cerne, o fundamento. Mas como dizer da essência do ser? Se há alguma essência

das coisas essa somente pode ser dita pelo nome “ser”. Posto que: há algo mais essencial do

que o próprio ser, se é que assim podemos dele falar? Não há novidade em dizer que tudo o

que é somente pode ser no resguardo do ser, ou seja, todos os entes, que são dinamicamente

sendo, se encontram em tal âmbito. Torna-se claro também que não há ente que não seja, isso

porque ele é o que é sempre como ente, sendo. Nesse sentido, o que é sendo como ente não

16

Grifo do autor. 17

Grifo do autor. 18

Otto, W. F. apud Epílogo de Bernard Wyss (1974) p. 178, in Otto, 2006. 19

Nietsche apud Heidegger, M. 1999, p. 63.

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pode ser outro, portanto permanece sendo sempre o mesmo, ou seja, permanece como o

mesmo na guarda do ser.

Retornando à questão inicial (“Mas como dizer da essência do ser?”), na medida em

que se questiona o ser a partir de um desmembramento em busca do que ele tem de mais

essencial, se incorre no mesmo equívoco sobre o qual toda a tradição metafísica se sustenta.

Tal tradição tem como suporte a procura pelo fundamento do fundamento. Este caminho

segue por um sentido equivocado, pois que focaliza algo que se dá enquanto instância ôntica,

na medida em que elege como ser um ente, promovendo assim uma inversão radical. De

modo análogo, é como se colocássemos dois espelhos semelhantes um defronte ao outro,

paralelamente, de modo a produzir imagens se refletindo infinitamente e, diante disto, alguém

procurasse a menor imagem.

Como nós, homens, estamos acostumados, principalmente na tradição ocidental, a

lidar com os entes, com o que efetivamente se dá na disposição do ser enquanto se configura

como unidade posta, se torna importante ressaltar que nos caminhos do ser muitas são as

possibilidades de equívoco. Estes se promovem também por um esquecimento de questionar a

partir do próprio do ser. Assim, as possibilidades de equívoco são tantas que podemos dizer

que o ser é o fundamento de todo erro e de toda errância por onde todos os caminhos podem

se encaminhar. Com isso procuramos dizer que a inapreensibilidade ambígua do ser é algo

próprio. Tal ambigüidade é algo que, de todo modo, é indicado pelo ser a quem, de modo

efetivo, se encontra na disposição de investigá-lo profundamente. Ou seja, a quem se encontre

na disposição de atentamente pertencer ao modo da abertura de maneira a que o ser mesmo

possa se indicar resguardado em sua verdade.

Também não devemos incorrer no equívoco de promover qualquer desmembramento

do ser para que procuremos falar dele. Isto porque, ao pensarmos em tal possibilidade,

poderia se mostrar possível a promoção de um dizer das propriedades do ser. Se assim

procedermos, todos os modos de lidar com o ser acabariam por ser oriundos da sua

planificação no âmbito ôntico, a que antes já nos referimos. Assim, podemos dizer que o ser

se dá na medida em que é inapreensível por si mesmo, sem que essa inapreensibilidade o

totalize. Se a inapreensibilidade totalizasse o ser, do mesmo modo estaríamos incorrendo na

objetivação de um conceito entendido na perspectiva de uma contenção, de um pegar entre as

mãos de modo análogo ao que diz o latim capere. Na perspectiva do conceito como capere, se

poderia dizer: “o ser é o inapreensível”. Assim, está proferido um conceito do ser, no entanto,

este se mostra na medida de apresentar a inapreensibilidade objetivamente. Sem dúvida, tal

dizer é um contra-senso. O inapreensível como ambigüidade, na medida do inobjetal, não

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pode se dar objetivamente. A perspectiva em que tal conceito se formula revela-se numa

possibilidade de apreensão na medida em que capa, reduzindo, a inapreensibilidade. Assim,

ela apenas se encobre no resguardo de si mesma. Desse modo, ela se dá restrita e retirada de

si, renegando a possibilidade de que se possa a partir dela pensar.

Toda objetividade dita a respeito do ser deve ser tomada com desconfiança, na medida

em que se encontra diretamente em sentido oposto a sua inapreensibilidade ambígua. No

entanto, se torna árdua a tarefa de tratar a questão de um modo diferente. Isso pelo simples

fato de que tudo o que dizemos se encontrar amparado na tradição que nos acolhe. Assim, a

escrita na medida da filosofia, dentro da tradição do Ocidente, possui a dinâmica que se fazer

por conceitos, se articulando a partir de proposições. Livre de tal procedimento somente se dá

o pensamento-poetante e a poética-pensante. A arte, na medida em que mostra a escrita e a

língua na riqueza de sua verdade enquanto poesia e literatura, se apresenta diferentemente.

Portanto, o dizer da poesia não se dá na perspectiva proposicional, por se encontrar

radicalmente resguardado na verdade do ser. Desse modo, é um proferir da verdade

originariamente distante da instância da representação. Entretanto, aqui encontramos uma

dificuldade. Assim, é premente a dificuldade do dizer por nossa parte, primeiro pelo simples

fato de não nos encontrarmos ao modo da realização na dinâmica da poesia e da literatura, e

segundo pela própria complexidade do real que se dispõe fugidiamente ao dizer mais comum.

Portanto, assumimos a dificuldade do dizer na medida em que, necessariamente, temos de

fazê-lo. Contudo, diante de todas as dificuldades que se mostram, essas não se encontram

suficientes para deter a tentativa do caminho em curso. Destarte, é prudente levarmos em

consideração que tais dificuldades estão presentes a todo o momento. O que, de todo modo,

nos dispõe sempre na vigília de tais limitações.

Assim, retornando àquilo que se encontra no despertar da investigação, nos

defrontamos com a inapreensibilidade ambígua do ser, de modo que este seja entrevisto como

“um vapor”. Não devemos compreender o “vapor” na perspectiva literal, pois, do contrário,

na impossibilidade de pegá-lo com um movimento da mão, poderíamos fazê-lo com um

recipiente cujas características tornassem isto possível. A questão maior se encontra

especificamente na imagem onde temos apenas as mãos enquanto possibilidade de apreensão,

a qual se mostra completamente impotente na tarefa de apreender um vapor. Diante disto, há

margem suficiente para pensarmos no vapor sob outra perspectiva, sendo possível pensar nele

como um nada; pois pegar um vapor seria o mesmo que pegar absolutamente nada. De modo

análogo, esta é também a impossibilidade de todos os aparatos da ciência em apreender o

absolutamente nada, de modo que forçam a afirmação de que tal efetivamente não exista. No

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entanto, como não pretendemos rigores científicos, deixemos o devaneio do pensar e da

poética dizerem que, assim, o nada pode ser convocado na medida em que procuramos a

inapreensibilidade ambígua do ser.

Há muito que se procura pensar no nada apenas como negação e negatividade. A

tradição filosófica procurou deixá-lo de lado, nomeando-o como niilismo, reduzindo-o a um

nada adjetivo e conseqüentemente superficial, algo que se encontra fora da densidade do real,

apenas na perspectiva da realidade e das realizações. Pouco se procurou dizer do nada, por ser

propriamente um atentado contra a lógica tradicional em sua linearidade. De acordo com tal

lógica, ex nihilo nihil fit, ou “do nada, nada vem”. Com isso, põe-se como encerrada a

questão, de modo que nada pode ser dito a respeito do nada, pelo fato de ele ser

absolutamente nada e nada mais. Isto porque a linearidade da lógica não pode se embrenhar

pela complexidade e simplicidade do nada, pelas suas dobras e dobraduras, sem deixar de ser

fundamentalmente ela mesma. A partir do momento em que a lógica tradicional se puser a

investigar o nada em sua complexidade, ela passará a se revelar como outra coisa, algo que

ataca a sua essência como lógica da linearidade. Desse modo, não é à toa que a tradição

filosófica fundamentada na razão não poderia se aventurar pelas desventuras do nada, pelos

caminhos que a partir dele talvez seja possível investigá-lo. Mesmo na tradição que diz que ex

nihilo fit ens creatum, o nada é apenas negação na medida em que o homem (ente criado – ens

creatum) é criado por Deus. Assim, o nada é a oposição do ente, o seu oposto, a sua negação

de acordo com a tradição. De todo modo, podemos depreender que, para a tradição da

filosofia, o nada apenas demanda a possibilidade de negar o ente em particular.

Procurando estar em atenção profunda, arraigada e imbuída de uma escuta atenta,

perguntamos: o que é isto, o nada?

Em sentido semântico o nada se manifesta como coisa nenhuma, a negação da

existência, a não-existência; o que não existe; o vazio. Nos sentidos filosóficos ele se dá como

aquilo que se opõe, contradiz, transcende ou se afasta do ser, em sentido absoluto, relativo, ou

como mera construção lingüística; não ser; ou ainda como ausência absoluta de realidade,

abolição de qualquer ser ou existência, que se configura como uma construção lingüística

absurda, incoerente e autodestrutiva, e por isso descartável da especulação filosófica.

Independente de todos os sentidos anteriormente aventados o nada não deixa de ser

uma experiência ou, talvez, a total impossibilidade desta. Aqui não procuramos um

questionamento a partir do nada apenas na superficialidade de certas possibilidades como, por

exemplo, o que se dá partir da negação. Procuramos colocar em questão o absolutamente

nada. Heidegger diz, na tradução de Ernildo Stein em “Que é metafísica”, que apenas a partir

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de uma disposição de humor, a partir de um sentimento muito determinado que ele chama de

angústia, pode o homem defrontar-se de modo radical com o nada, chamado-o de afastamento

radical da totalidade do ente20

. De modo efetivo, para a experiência do homem se torna

completamente impossível defrontar-se com o nada. Isso porque o homem acaba sempre por

se encontrar diante de algo no aparecimento retraído de si mesmo, sendo ele próprio retraído

para si de modo radical. Tal constatação, fez Heidegger trazer a possibilidade de confrontar o

nada pelo radical retraimento do ente, na dinâmica em que ele é o que é sendo, a partir do

sentimento da angústia. Esta angústia não é dita pelo pensador como o sentimento angustiante

que temos ao nos encontrarmos diante de algo que nos pressiona. Diz ele que é justamente a

angustia calma por se confrontar o total afastamento do ente, de modo a perceber o

absolutamente não-ente.21

Vimos anteriormente que a fÚsij se mostra ambiguamente como a manifestação

vigorosa que, por si mesma, vem à presença resguardada no retraimento. Assim, o que por ela

mostra-se, já se vela, enquanto unidade, a qualquer tentativa de intromissão. Dá-se reafirmado

que por sua própria força ela manifesta velando-se. Diante de tal vigor manifestativo/velante

podemos buscar alguns aspectos que podem entreabrir condições de discutir o nada de modo

próprio. As criações que como fÚsij se dão, a ela respondem sendo o que são, de modo que

segundo sua própria medida, ela cria-se a si mesma. Em tal criação podemos dizer que a

fÚsij se mede apenas consigo mesma, enquanto força, e nada mais. Assim se dá, de modo

que sua manifestação própria se dê a partir do nada. Isso porque ante seu vigor apenas ele,

enquanto nada radical, pode se encontrar na disposição de confrontá-la no seu todo, pois que

consigo mesma ela dá-se criando e, além dela mesma, nada. Dessa maneira, podemos dizer

que o confrontar-se com ela em sua totalidade pode ser efetivo apenas ante o nada. Talvez,

possamos dizer que a fÚsij cria a si mesma a partir do nada. Seria um absurdo promover tal

afirmação? A partir do absolutamente nada, ela se cria consigo mesma e para si mesma no

recolhimento próprio que retrai o seu aparecimento. Não dialogando com nada além de si

mesma, permanecendo em si mesma fechada na criação e produção própria daquilo que ela é,

somente podemos dizer que ela se dá a partir do nada. Ou será que assim haveria um

“diálogo” com o nada que lhe acossa, persegue? Nessa perspectiva, então, o que pode ser o

nada?

Talvez estejamos aventando a possibilidade de dizer o nada enquanto o que dá a fÚsij

a condição própria de ser o que ela é, na medida em que ele se abre para que ela se dê como

20

Heidegger, M. 2000 a, p. 56-57. 21

Idem.

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manifestação própria em seu retraimento, no vigor de sua produção. Assim, estamos dizendo

que ela, enquanto fÚsij, se mede unicamente com o nada para ser o que ela é. Medir-se com

ele é o mesmo que dizer: ela, como fÚsij, vem a encontrar nele a radical diferença, a

diferença originária. Como ela é manifestação/ocultamento por si mesma, enquanto produção,

ela somente pode medir-se com o que lhe é diferente, de modo que somente o nada lhe é

diferença de modo radical. Sendo radicalmente diferença em relação à fÚsij, ele se mostra

como o velamento próprio onde tudo pode se manifestar, inclusive o retraimento do que se

manifesta. Enquanto a fÚsij é o retraimento na manifestação própria, o nada é toda a

possibilidade de manifestação do que quer que seja. Radicalmente como diferença, ele é o

fundo sem fundo de modo a toda fÚsij poder se dar como o que ela é. O nada, assim, é o

abismo enquanto é o que é. Dando-se o nada como a própria possibilidade de manifestação do

que quer que seja sendo, enquanto ente do ser e do não ser, ele se concede como o que se abre

para que todos os caminhos possam se dar. Assim, ele reúne congregando todos os caminhos.

Talvez, o nada seja a possibilidade enquanto possibilidade de modo radical, na medida em

que tudo o que pode se dar, efetivamente só o possa abrigado no abismo de simplicidade sem

fundo do nada. Do modo como as discussões se encaminham, estamos dizendo que há uma

pertença originária entre nada e fÚsij. Isto porque ela é o que efetivamente se dá em

manifestação, e neste dar-se, ao mesmo tempo se retrai. A partir da fÚsij o próprio nada se

mede, posto que ela é a radical diferença dele mesmo. Na sua produção própria ela põe a

descoberto a essência do nada como o sem fundo, como o abismo que permite e reúne todos

os caminhos enquanto desdobramentos. Talvez, aqui esteja em jogo a decisão originária entre

Caos e Cosmos, entendido um na relação direta com o outro. Pois, sendo o nada em referência

ao Caos, seria o absolutamente ausente, ausente inclusive da própria ausência, onde não se

poderia falar em qualquer espécie de forma e necessariamente de uma forma que une todas as

formas. O Cosmos, na perspectiva da fÚsij, traz, enquanto vigor próprio, toda possibilidade

de ordenação e de formação, já que ela é a brotação, a força própria que, de si, extrai as

formas, estas que, abrigadas no abismo, se dão à manifestação oculta e misteriosa. De todo

modo, se faz prudente relembrarmos que o caminho que aqui se apresenta, se dá apenas na

perspectiva de um caminho diante da multiplicidade abrigada na senda do questionar.

Nesse caminho, o nada é a medida de toda fÚsij sendo um com ela onde, em tal

unidade, ambos tensionalmente se resguardam no abrigo de si mesmos enquanto identidade.

Não há dúvida de que tal nada nós não podemos experienciar de qualquer modo. Fica em

aberto se é possível com ele alguma experiência, posto que sempre nos deparamos com o que,

de algum modo, é, na perspectiva ôntica do ser e do não ser. A questão de uma experiência

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66

com o nada deixamos em aberto, pois, como exemplo, se tomarmos em consideração o

sentimento da angústia apontado por Heidegger, incorremos no mesmo risco que o pensador

ao tomar o caminho da subjetividade para se referir ao nada como questão. Posto que apenas

este caminho se revela como a possibilidade de tal experiência, se é que ela se dá como

possível. No entanto, ao mesmo tempo dizemos que se deve ter claro que em todo

pensamento se encontram sentimentos, até porque não há a possibilidade de deles nos

desvencilharmos na realização plena do que diz pensar. Não há quem se encontre na

disposição do pensar sem sentir e do contrário o mesmo. Os dois se dão na senda da unidade.

No entanto, achamos que o caminho da subjetividade, enquanto um modo específico de

encaminhar o que se dá em questão, deve ser afastado.

De qualquer forma, a questão do nada se dá como algo de extrema elevação na medida

da sua profundidade. Heidegger nos diz: “O nada enquanto o outro do ente, é o véu do ser.

No ser já todo destino do ente chegou originariamente a sua plenitude.22

” Assim, percebemos

que o pensador mostra, em referência direta, o nada com o ser, de modo análogo ao que

procuramos aqui encaminhar na relação nada/fÚsij. O ser é velado no abismo do nada. Em

tal abismo se recolhe o ser em sua verdade. A verdade encoberta no nada já mostra o ente,

manifestamente em sua presença como ente, na permissão do ser, isso, ao mesmo tempo em

que revela o ser na ausência em que ele se afasta recoberto em seu véu, encoberto no nada. Se

o nada é o véu do ser, o nada está a todo o momento na presença de sua ausência. Antes

dissemos o Caos como ausência da própria ausência, no entanto, a questão da ausência por si

mesma deve ser recolocada. Assim dizemos: o ser é o inacessível em sua ambigüidade por

estar recoberto pelo nada.

Em alguns momentos, talvez se possa chegar a pensar que o nada é o próprio ser,

posto que este nos é colocado como o outro do ente, de modo que se pode compreendê-lo

nessa perspectiva propriamente como o ser. No entanto, compreendemos que o outro do ente

não é o ser entendido enquanto nada. Contudo, o nada é uma possibilidade fundamental de

estar aberto ao ser originariamente. O que estamos a princípio tentando superficialmente

delinear é que o nada, enquanto véu do ser, o vela de tal maneira que também o desvela. Pois

o nada, como o outro do ente, traz consigo o próprio ente. Com isso percebemos o favor

originário que é concedido ao homem, enquanto se essencializa lhe sendo permitido habitar a

abertura para o ser. Habitando tal abertura lhe é concedido perceber que o ente é, que o ente

pertence originariamente ao ser, que ser e ente se encontram em uma unidade originária.

22

Idem, p. 72.

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67

Como “véu do ser”, o nada guarda ainda inexpugnável o acesso ao ser de modo que

este se encontra velado pelo outro do ente. Nos caminhos poético-pensantes cabem várias

possibilidades de questionar, desde que tais questões não se articulem apenas como

formulações baratas a partir de exercícios de uma lógica medíocre. Assim, nos cabe formular

a questão: Mas se o nada é o outro do ente, o nada é também o outro do ser? Pois dizemos que

não há ente sem ser. Isso, sabendo que o ser não se dá e nem se encontre ao lado do ente,

tampouco se mostra junto a este, mas sim na tensão que se articula originariamente enquanto

co-pertencimento. Então o nada como o outro do ente também deveria ser o outro do ser? Ou

estaríamos com isso, mais uma vez, incorrendo no equívoco da metafísica, que entifica o ser,

de modo que, então, perceberíamos e investigaríamos apenas no âmbito ôntico acreditando

pensar a dimensão ontológica? Tudo são questões e estas são questões de grande magnitude

para serem tratadas de maneira superficial. Do contrário, elas necessitam de investigação

árdua, desde que saibamos o que isso significa e como devemos caminhar para que a

investigação seja paciente: uma paciência que procura e caminha devagar. No entanto, assim

deve ser desde que, neste vagar calmo, procuremos chegar ao menos uma vez onde já estamos

e, com isso, podermos vislumbrar uma possibilidade de debater o ser, o ente, o nada, o tempo,

a memória, a linguagem, o homem, a música, todos a partir de si mesmos.

Permanecemos questionando: “O nada, enquanto o outro do ente, é o véu do ser”. Se o

nada vela o ser, este que o vela não pode ser o “ser”. No entanto, tal questão não pode ser

encarada dentro da lógica rasteira, posto que esta não nos serve como referência de rigor e de

verdade. No entanto a afirmação ainda permanece: “O nada, enquanto o outro do ente, é o véu

do ser”. Nesta afirmação nós temos implicados o nada, o ente e o ser. Todos são aqui

nomeados e com isso convocados para a tensão do velamento e desvelamento, todos são

chamados enquanto este chamado nomeador se mostra como um acontecimento da verdade.

Neste sentido, podemos partir de uma diferença que se mostra na proximidade mais próxima

da vizinhança que se avizinha entre eles.

O nada, num primeiro momento, é a real condição de possibilidade de compreensão,

ou melhor, de se estar no favor do ser, de perceber que o ente é. Somente nesta diferença

originária que o nada tem em relação ao ente, como propriamente o outro do ente, é que o

homem pode se apropriar do que lhe é próprio, ou seja, saber e poder dizer que o ente é, que o

ente vige e vigora no ser. Como o completamente outro do ente o nada não se encontra no

âmbito ôntico. Como o afastamento do ente em sua totalidade o nada pode ser compreendido

como uma espécie de ausência radical, mas uma ausência presente já no real. Como

afastamento que é ao modo de uma ausência esta já é, de alguma forma, também um modo de

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se fazer manifesta. Enquanto ausência, o nada já traz consigo em tensão radical o ente em sua

totalidade. Isto implica: traz consigo toda a possibilidade de constituição do ente como o que

é, no abrigo e na guarda do ser. O nada, segundo Heidegger, está presente a todo o

momento23

, no entanto, esta é uma presença oculta. Ele é o outro do ente trazendo-o

radicalmente consigo. Podemos chamar de presença o nada enquanto o completamente outro

do ente? Podemos ainda dizer que o nada é? Mas, também, se dissermos que ele não pode ser

dito como algo que é, por necessariamente ser o outro do ente – uma vez que apenas ao ente é

dado pertencer ao ser – então, como é possível dizer e referir-se ao nada? Não há dúvidas de

que ele, aqui, se encontra nomeado e, como tal, convocado à conclamação que o chama a fim

de que algo a seu respeito possa ser manifesto, se é que assim podemos nos expressar. Esta é

uma questão que também devemos procurar desenvolver procurando nos isentar dos

equívocos fundamentais da entificação do ontológico.

Sem dúvida que para se poder nomear o nada somente o fazemos na linguagem.

Heidegger quanto a isso nos dá uma pista quando diz que diante do absolutamente nada, do

completamente outro do ente, algo nos corta a palavra24

. Isso porque diante do nada nos

deparamos com tudo aquilo que não mais faz sentido, por nos encontrarmos perante a fuga

completa da totalidade do ente. Tomando tal configuração como real, devemos relembrar que

esta somente se dá, no âmbito das possibilidades enquanto possível, ao homem como ente que

é dinamicamente pelo favor do ser. Diante disso estamos aqui interessados na possibilidade de

estarmos diante do nada, do completamente outro do ente, daquele que se dá como “o véu do

ser”.

Na medida em que do nada poderia ser dito que é, mas ao mesmo tempo, como o

completamente outro do ente, dito que não é, se revela a ambigüidade radical na sua própria

constituição. Isso porque na medida de algo alheio ao âmbito ôntico ele não é, no entanto,

enquanto pode ser conclamado a que algo de si mesmo possa se dizer também podemos dizer

que é. Tal ambigüidade se acentua porque, enquanto nada próprio, nem enquanto identidade

podemos dele dizer. Se fizermos o questionamento de sua identidade, sendo nada como total

afastamento do ente, tal questionamento já ficaria por si só no equívoco. Assim, o nada não

pode vir a ter qualquer identidade, pois do contrário já se encontraria no âmbito ôntico. Por

isso não dizemos que o nada é e nem que não é, preferimos dizer que ele se dá, pois assim

assumimos de vez a ambigüidade radical em que o nada mesmo se mostra. A possibilidade de

dizer o nada na nomeação do nome pode ainda ser a única possibilidade de nos postarmos,

23

Idem. 24

Idem

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69

enquanto homens, diante dele na medida em que, chamando-o, ele talvez possa dar conta de si

mesmo. O nada, assim, é na medida em que se encontra como o que ele é na conclamação do

nome, e ao mesmo tempo não é na medida em que, como afastamento do ente, não se

encontra como um ente. Assim, o nada é e não é na medida em que se dá, ele radicalmente

mostra-se na ambigüidade. Como já foi dito: pode ser até que pela linguagem apenas se possa

dizer do nada isto: que ele é ao mesmo tempo em que não é. Essa é a dificuldade apontada

anteriormente. De um modo ou de outro, ela perpassa todo o trabalho. Aqui, especificamente,

o que tentamos é dizer o essencialmente não dito.

Retornamos a seguir em questionar. O outro do ente é o véu do ser. Podemos

compreender esta afirmação de duas maneiras: 1) Primeiro como o nada não fazendo parte da

essência própria do ser, posto que este último se mostre velado de tal maneira que não se

possa com ele estar, já que o ser se mostra sempre com o seu véu dificultando radicalmente o

seu encontro. Assim é, pois o nada como seu véu o dissimula originariamente. 2) Ou que o

nada faça parte da essência própria do ser, que é o que parece indicar o próprio texto de

Heidegger em uma de suas respostas às objeções de sua preleção25

. Nesse sentido seria

próprio ao ser ter como véu o nada, de modo que o nada constitui, mas não totaliza o ser.

Compreendemos que o ser é dissimulado pelo abismo do nada, mas também pelo ente

enquanto presença e manifestação. Carneiro Leão em “Metafísica e pensamento” nos diz que

a metafísica se fundamenta no nada, diz o autor: “A metafísica é como a planta de raízes

aéreas. Arrancada da solidez de qualquer solo e plantando suas raízes no Nada(...)26

”. Assim,

o nada se mostra, apesar de esquecido pela metafísica se encontrando fora da sua discussão,

como seu fundamento e sustento. Com suas raízes no nada a metafísica pôde, em épocas

distintas, trazer palavras para dizer o ente e o ser em diversos aspectos. O nada, a partir do

dito de Carneiro Leão, é a possibilidade que a metafísica tem de tentar perceber o ser e o ente

em sua verdade. Pelas palavras do pensador, podemos dizer que o nada então é colocado

enquanto parte do ser, ou pelo menos como o que recobre o ser na medida em que permitiu à

metafísica ter seguido seu caminho na tentativa de criar possibilidades de dizer o ser.

Aqui nos encontramos em águas muito traiçoeiras, na verdade, toda e qualquer

tentativa aqui, somente pode se manifestar porque têm como o horizonte o véu do ser. Se nos

encontramos em busca de nomear o ser, esbarramos naquilo que o vela originariamente e nos

deparamos com o abismo do nada. A dissimulação originária do ser nos põe todos à prova em

cada instante, pois o erro aí se encontra de maneira radical. Assim ele se encontra, posto que

25

Idem. 26

Leão, C. 2000, Vol.II, p.129.

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faz parte da essência do homem - na medida em que ele procura apropriar-se do que lhe é

próprio - saber que o ente é, que o ente está em tensão originária com o ser, este que é velado

pelo abismo do completamente outro do ente, velado pelo abismo do nada.

O momento se mostra oportuno para que retornemos à discussão, a respeito do nada,

anteriormente abordada no aspecto da fÚsij: criar a partir do nada. Será que o homem

somente pode criar a partir do nada? Será o nada e o ente as únicas maneiras de estarmos

abertos ao ser?

De uma coisa não temos dúvida: de que o erro assalta o homem de maneira originária,

pois nos encontramos rodeados pelo abismo do nada nadificante, e este nada, como também o

ser e o ente, permanecem um mistério. No entanto, com isso não devemos nos entregar a tal

constatação ao modo de uma imobilidade investigativa. Antes devemos buscar assumindo o

risco do erro fundamental com o qual se mede todo trabalho. Devemos lembrar que o erro é

constitutivo de muitos trabalhos, principalmente quando se está diante da criação. As criações

artísticas, por exemplo, as criações musicais são perpassadas de erros. Muitas vezes o erro no

caminho indica outros mais interessantes que o rigor técnico não tem a condição de prever, de

modo que o músico, na permissão de perceber tal possibilidade, direciona a obra por onde o

erro indica. Assim, o acaso acontece mostrando possibilidades que se desvelam de modo a

constituírem radicalmente as criações. Desse modo, podemos dizer que a possibilidade de

todo erro se encontra onde o ser se vela em sua verdade.

“O véu do ser”. “O completamente outro do ente”. “Criar a partir do nada”. Estamos

colocando em questão a criação dos criadores. Não nos importam agora as referências com e

nas quais todo homem, na medida em que se encontra na disposição de criar, se encontra. Isso

porque podem ser realizadas uma série de objeções de que as criações somente acontecem

porque aquele que cria já se encontra em uma teia intrincada de relações. Quanto a isso, não

temos dúvida. No entanto, novamente voltamos a dizer que o nada se dá em sua ambigüidade,

necessariamente, enquanto abismo. A partir do abismo do nada, enquanto simplicidade

radical, se rompem a sonoridade da obra musical, e o dizer do poeta que, diante “do que corta

a palavra e inibe toda a dicção do é”, pode se atrever a caminhar errante na busca de um

alento criando caminhos e pondo em obra a verdade. Na ausência de toda cor o pintor se vê

confrontado com o abismo da pintura e da visão. Em tal confronto ele assim labora. Toda a

música caminha no abismo do nada que repõe o verdadeiro no resguardo da simplicidade.

Isso, na medida em que, a partir da simplicidade abismal do nada, ela mostra a sonoridade das

obras já resguardada em toda a possibilidade de seu aparecimento. Todas as artes neste

sentido são já resguardadas no abismo de si mesmas. As artes medem o abismo de modo que

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se mostram como o que radicalmente põem e repõem o nada na medida em que são postas

nele a partir dele. Isso pela arte ser radicalmente sentido e, desse modo, estar livre do que se

encontra fora dela enquanto unidade própria. Assim, ela se mede diretamente no abismo ao

mesmo tempo em que radicalmente é também sua medida. A arte põe e repõe o nada já sendo

posta e disposta nele e a partir dele.

A criação a partir do nada se mostra já na tensão que mede a fÚsij a partir do nada.

Como medida da fÚsij na sua criação própria por si mesma diante do nada, o homem assim

também se defronta com ele. Tal confronto se dá na medida em que cria co-laborando com a

fÚsij também partindo do absolutamente nada. O erro, abrigado no que fundamenta todo

caminho enquanto a errância do abismo, dá às criações autonomia de identidade frente ao

absolutamente outro como nada. Talvez, aqui, nada e não ser sejam efetivamente

equivalentes. As criações, então, estão perpassadas radicalmente pelo não-ser. O nada - como

ausência ou afastamento de tudo aquilo que é, como ausência de tudo o que é sendo

dinamicamente na disposição do tempo - é assim o não-ser. Ele se dá cortando a possibilidade

do dizer, da linguagem se dar como reunião em si. Tal afastamento como abismo constitui

toda criação enquanto a possibilidade de todo erro, bem como de todo acerto, bem como de

qualquer constituição. Na verdade, o erro supera em muito qualquer acerto, isso porque ele

permite que qualquer acerto venha se dar de modo próprio. Assim, todo acerto tem fundo no

sem-fundo de todo erro e de toda errância, tem seu fundo no sem-fundo do nada e do não-ser.

Sem dúvida, o que dissemos se deu a partir de uma possibilidade de estar já na

disposição da verdade de modo próprio. No entanto, gostaríamos de estabelecer a distinção de

que há dois momentos que nos põem em relação com o ser: o nada enquanto véu do ser e o

completamente outro do ente, e o ente. Mas será essa uma distinção que se dê de maneira

vigorosa, será que isso corresponde ao verdadeiro na verdade do ser? Isso devemos

questionar.

É a partir do nada que podemos vislumbrar a totalidade do ente na medida de um

afastamento do mesmo, assim podemos ver que o ente é, que pertence ao ser por ser um “não-

nada”. Podemos dizer o nada como um favor do ser ao homem. Este que se mostra retraído

como o que vela o ser, nos dá a possibilidade de criar a partir dele. Pois, assim, podemos ver o

que é sendo de modo que, sendo, pertence ao ser ao seu modo e não de outro. Tal

possibilidade somente se dá no abismo do nada. Esse favor do ser é que permite ao homem se

apropriar daquilo que lhe é próprio, saber que o ente pertence ao ser, saber que o ente é. É

somente por estar diante do véu do ser, que o homem pode ver que o ente é em sua totalidade.

É somente a partir do nada, o completamente outro do ente, que o homem, se apropriando do

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seu favor concedido pelo ser, pode ser o ente que ele mesmo é. Criando a partir do nada, o

homem pode chegar ao seu lugar sendo o que ele é, na medida de lhe ser concedido estar

aberto, pelo abismo do nada, ao privilégio do ser, este que se destina retraidamente ao

homem. Na medida em que corresponde ao favor do ser velado pelo nada, e nesse abismo se

vê na completa estranheza de si mesmo, pode o homem estar aberto ao ser, pode o homem se

encontrar na dissimulação originária do ser em tensão radical com o ente que é sendo ao seu

modo. Somente no completamente outro do ente o homem pode ver propriamente quem ele

mesmo é, pode ver seu próprio caminhar em direção ao ser pelo abismo insondável de seu

véu. O abismo do nada, enquanto favor do ser, é o que se dá na possibilidade de que a música

como arte venha se manifestar ao mesmo tempo em que a música já revele o próprio nada em

sua verdade. Não apenas a música, mas toda arte e em seguida todo o fazer do homem.

Apenas enfatizamos aqui a arte e a música porque é nelas que se pode perceber - livre de

quaisquer outras interferências - o ente em sua verdade. É nelas que o ser, se mostrando de

modo radicalmente retraído, dá a ver que – velado no abismo - destina-se como sonoridade na

música, como cor na pintura, como movimento na dança.

Ainda cabe a questão: seria o nada o radicalmente não ser, ou este também rende ao

ser sua própria nadificação? No dizer de Heidegger a partir do “véu do ser”, parece este o

nada enquanto véu, algo que necessariamente se encontra arraigado no ser para que lhe possa

ser o véu, de modo a ter apenas ele como referência. Assim, o nada é o único que poderia lhe

velar de modo efetivo, um velar tal onde não há o que. Podemos pensar que o véu seria um

velar tão radicalmente posto, que não desencobriria por si mesmo, não se medindo

diretamente com o descobrir e desvelar. Sendo apenas o velamento próprio enquanto

radicalidade. No entanto, esse nada como véu, no dizer do pensador, é véu do ser, mas não

enquanto algo no âmbito de um adjetivo na perspectiva de um substantivo que o ateste

enquanto sua propriedade. “O véu do ser” se encontra ligado ao ser radicalmente, porém, não

ao modo de uma propriedade. Como o que necessariamente vela o ser de modo radical e

originário, o nada se mede com ele compreendido na perspectiva da fÚsij. O nada é então o

abismo sem fundo em que, radicalmente, o ser e o não ser se resguardam. O abismo do ser e

do não ser então pode ser dito na perspectiva de ser abismal, sem-fundo. De modo que

dizemos abismo do ser e do não-ser, este mostra, de algum modo, que há unidade de co-

pertença entre ser e nada. No que diz respeito ao nada enquanto o próprio não-ser talvez ainda

possamos minimamente questionar. Com isso, não estamos querendo dizer que é o nada que

confere ser as coisas na medida de um não-ser, como se o ser mesmo fosse não-ser. O que

queremos dizer é que, diante do nada, o ente em sua totalidade se manifesta vigorosamente de

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maneira inequívoca. Assim, neste vigor, ele se desvela e se vela no jogo originário de sua

essência.

Heidegger em “Sobre o Humanismo” diz: “Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser27

”. No

entanto, em outro ensaio, em “A tese de Kant sobre o ser” nos diz que o “Ser não pode ser, se

fosse (ser), não mais permaneceria ser, mas seria um ente28

”. O confronto de ambos os dizeres

se dá a partir de uma ambigüidade, pois que se mostram enfaticamente como afirmações. Sem

dúvida que no âmbito em que estamos imersos, percebemos que tais afirmações se

apresentam mais na possibilidade questionadora do pensamento do que como formalidade

afirmativa e fechada a partir do âmbito conceitual entendido pela tradição. Mostra-se uma

ambigüidade no ser porque este é, de todo modo, ambíguo ao seu modo. Quando, aqui,

nomeamos o abismo do ser e do não ser, nos encontramos na referência a tal ambigüidade. O

próprio abismo é ambíguo. A afirmação de Heidegger em “A tese de Kant sobre o ser” nos

apresenta uma situação onde diz que, se do “ser” puder ser dito que “é”, então ele se encontra

no âmbito ôntico, ao lado dos entes que são sempre sendo dinamicamente. Entretanto, o

importante se faz em percebermos que o ser é o permanente. Na sua permanência há

dinâmica, pois permanecendo “ser” ele se dá como tal. O momento é ainda oportuno para

citar outra passagem de Heidegger constante em “Tempo e ser”, onde o autor diz que: “Não

dizemos: ser é, tempo é: mas dá-se ser e dá-se tempo29

”. O “dá-se” do ser, demonstra que o

autor não o coloca na medida em que esteja afastado de si mesmo enquanto ser, mas apenas

que o ser não deve ser encarado a partir de uma perspectiva ôntica, para evitar o mesmo

equívoco da tradição metafísica. Todavia, a questão maior, aqui se refere ao discutirmos a

permanência do ser. O ser enquanto “o permanente” já se encontra numa dinâmica toda

própria. Portanto, não queremos dizer que o ser não seja, dando a ele o aspecto de não-ser,

mas sim de que o ser mesmo se dá, ao seu modo, como retração. Tal modo de se dar, se

mostra radicalmente diferente do ente que se revela no seu resguardo como um favor e uma

doação do ser. Este que resguarda o ente em sua verdade, na medida em que se mantém

retraído na manifestação própria do ente. Sob o véu que vela-o, o ser se dá velado no nada.

Dando-se, o ser, retraidamente, se dá recoberto.

A segunda parte da citação de Heidegger sobre o nada, agora se faz presente: “No ser

já todo destino do ente chegou originariamente a sua plenitude”. O destino do ente se revela

como o ente em sua manifestação de presença que, enquanto presença, já se encontra no

27

Heidegger, M. 1967, p. 24. 28

Heidegger, M. 2000d, p. 248. 29

Heidegger, M. 2000e, p. 254.

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encobrimento. Aqui, o ser não mais se apresenta sem a nomeação do nada na medida do “véu

do ser”. Então, no dito do pensador, se diz que no ser, velado pelo abismo do nada, todo

destinar-se do ente já chegou à plenitude, todo destinar já se mostra pleno de si mesmo sendo

o que ele é. O ente é no ser velado no abismo do nada. Os entes que se dão abrigados pelo

vigor da fÚsij se mostram já, enquanto entes, sendo ao modo de criações e produções

próprias a partir do abismo que mede a fÚsij em si mesma. Na verdade, a plenitude da fÚsij

se dá em recobrir-se no abismo do nada. Destinando-se a partir do ser, todo ente se mantém

encoberto na retração de si mesmo, na retração daquilo que ele é. Tal retração é o favor do ser

que, recobrindo o ente, se mantém velado no abismo do nada.

Na medida de trazer mais uma referência para auxiliar as discussões, a formação da

palavra “nada” pode nos ajudar a compreender o nada como questão. Diz o dicionário de

Antônio Houaiss que “nada” é um vocábulo oriundo do latim tardio res nata30

que quer dizer

coisa nascida. Tal sentido é no mínimo estranho de acordo com a semântica, no entanto, a

partir do que tentamos pôr em discussão, tal estranheza perde sua razão. A discussão em que

nos encontramos, há muito supera o aparecimento das línguas e discursos, no entanto,

podemos pensar o que se diz como nada em “coisa nascida”. Isso assim se dá, na medida em

que nascer mostra relação direta com a produção inaugural da fÚsij. Todo nascer é abrigado

radicalmente pela fÚsij enquanto se dá em manifestação e retraimento próprio. O nascer

somente se dá enquanto produção própria a partir do que lhe abriga como fÚsij que, como

tal, se mede com o nada ao mesmo tempo em que é unidade com ele. Apesar de “coisa

nascida” não dizer especificamente o nada pelo caminho que tomamos, abrigados pelo que

reúne todos os caminhos na unidade própria e originária, a expressão mostra trazendo para

discussão a relação entre criação e nada. Segundo Houaiss, o caminho de nata é dito por

Corominas a partir do sentido de negação dado por nati, usado no termo homines nati

constante de formulações negativas. No entanto, o que nos importa é a relação entre nascer,

enquanto criar da produção, e nada. Assim, voltamos à questão do criar a partir do nada, só

que por outra via. Esta é uma experiência com a qual os criadores constantemente lidam.

Constantemente os criadores se vêem diante do abismo para que, o que alcança plenamente o

sumo na criação, se dê e se mostre retraído como manifestação de si mesmo.

Na busca que empreendemos pelo que silenciosamente se dá, os caminhos são

escorregadios. Contudo, é assim que o ser em sua dissimulação pode ser vislumbrado mesmo

que de longe e mesmo que de maneira bem rápida. Em determinados momentos podemos ter

30

Op. cit. Conferir etimologia do verbete nada.

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um pequeno lampejo dentro do véu que, por um breve momento, apenas por um instante,

pode se descobrir e deixar aparecer todo o vigor do ser. É a estes pequenos momentos que

devemos estar atentos sendo “todo ouvidos” para ouvir a silenciosa voz do ser que, a todo

instante nos convocando, se mantém sempre velada e encoberta. Ela é como que um chamado

rouco que está sempre ali e ao mesmo tempo não está. Tal condição se torna quase impossível

de remediar, porque essa voz se acha encoberta no meio da correria e pressa na paranóia da

Contemporaneidade. Essa paranóia colabora para mostrar a diversidade da totalidade do ente

sempre de maneira secionada, num recorte abstrato. Procurando nos manter alheios a essa

pressa apressada, talvez possamos perceber o chamado que, dissimulado pelo abismo do ser e

do não ser, pode ser vislumbrado por apenas um estante, mostrando sua grandeza, seu vigor.

É nesse vigor que o ser faz brilhar o real e a realidade. Tal brilho se dá quando o chamado do

ser, se concedendo pelo envio destinal, alcança, como favor originário, aquele a quem envia.

Sendo-lhe permitido habitar a abertura a este envio, o homem apropria-se do que lhe é

próprio. Assim, o nada, como questão, se mostra ontologicamente na medida em que o ser

dizendo-se de múltiplas maneiras se diz também velado como nada.

O um e a multiplicidade

A respeito do ser, várias são as possibilidades de caminho. Para nos recordarmos, “o

sendo-ser diz-se de muitos modos”, portanto, a dinâmica em que nos encontramos é árdua.

Sem dúvida, abrigado na simplicidade abismal do nada muito permanece misteriosamente

posto. O ser, na medida em que abriga na multiplicidade as coisas que são pertencendo a ele,

suscita a dificuldade de compreender mais uma ambigüidade radical. Tal ambigüidade

consiste em perceber a unidade que congrega a multiplicidade. Como já diz o fragmento

número 50 de Heráclito (...) Ÿn p£nta eŒnai “(...) tudo é um”.

Por exemplo, a arte congrega todas as formas de arte sem deixar de ser unidade. A arte

é um. Ela é um congregando as diversas formas de arte que se dão no mundo, este que se dá

instituído e constituído abrigado e sustentado pela fÚsij. Na mesma esteira de exemplos

podemos citar a música. Ela é um que congrega a muitos. Na sua unidade uma diversidade de

obras musicais, nas suas mais diversas maneiras de apresentação, bem como músicos e

ouvintes em sua diversidade são reunidos. Temos as mais diversas obras musicais se

apresentando das mais diversas maneiras em ambientes distintos, com instrumentos e

tecnologias instrumentais diferentes, com técnicas de realização as mais diversas. No entanto,

diante da diversidade infindável a música é um. Quando nos encontramos diante de unidades

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que congregam diversidades, como é o caso da arte e da música, sempre nos deparamos com

tamanha dificuldade a qualquer possibilidade de conceituação. Tal dificuldade se manifesta

mais claramente porque nos encontramos no empenho do questionar. Assim, os conceitos,

como possibilidade de conceber, sempre deixarão margem a acompanhar a dinâmica do que

de modo próprio se dá.

Assim, se com a arte e a música, que de um âmbito menor do que o ser, se revelam

dificuldades, até o momento intransponíveis, na tentativa de unificar uma discussão, quiçá

com o ser que a tudo abriga e que, sabiamente dito por Aristóteles, se diz de múltiplas

maneiras. Nessa perspectiva, a arte e a música são um dos modos de dizer o ser e o que é ao

seu modo, ou seja, são modos do ser se dizer artística e musicalmente.

De todo modo, o ser é um que abriga e resguarda a multiplicidade de tudo o que é na

medida do tempo, ou seja, de tudo aquilo que é sendo o que é enquanto repousa ao mesmo

tempo se transformando. O “tudo é um” heraclítico nos permite estar na disposição de

perceber o que é e se dá de modo próprio. Mais uma vez nos deparamos com a relação radical

da identidade e da diferença. A diferença de cada um se mostra abrigada na identidade de

todos. O um que é múltiplo apresenta a identidade de tudo o que é. No entanto, tal identidade

mostra e revela a possibilidade de abrigar em seu seio todo o âmbito das diferenças em si

mesmas e suas limitações. Ela é o sem limite radical que congrega todo limite, é o nada de

todas as manifestações como a simplicidade que permite toda a dobra complexa da teia de

relações, inter-relações e referências. O nada, o sem limite, a simplicidade radical, faz do

abismo do ser e do não ser a medida para tudo aquilo que é. Assim, enquanto unidade, o

abismo pode abrigar todo o âmbito dos entes que são sendo no resguardo do ser. A unidade

abismal abriga todo o vigor da fÚsij que se mede diante do nada no transformar-se de si

mesma sendo um com ele.

Por hora, os questionamentos a respeito da multiplicidade do um vão se restringir ao

que se põe para retornarem em momento oportuno, na medida de, assim, serem questionados

de modo devido. Tal procedimento não se mostra como uma fuga da discussão, mas antes de

recolocá-la no lugar que lhe é próprio na intenção de outras possibilidades de esclarecimento

posterior.

Tempo

Em todos os percursos em que procuramos discutir se torna imprescindível tratar do

tempo, isso, porque ele é questão de grande relevância para qualquer investigação que se

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disponha pelas vias da originariedade ontológica. Assim, a poética pensante se defronta com

ele na medida de uma convocação radical. Encontra-se livre de dúvida que todo o acontecer

histórico do homem se desdobra no tempo, pois que não há história, na medida de sua

originariedade, sem tempo. Portanto, na disposição em que nos encontramos convocados em

uma exigência, o tempo, enquanto questão, não poderia deixar de figurar na busca pela

música no âmbito do ser. A música, enquanto unidade, é um acontecimento histórico que,

assim, revela e é revelada no tempo e pelo tempo. Portanto, tempo aqui é questão ontológica

que figura radicalmente no seio do chamado que nos implica numa convocação própria.

Dando prosseguimento as discussões, sabemos que a partir da experiência do homem

como vivência própria, o tempo fala mais do que mera possibilidade de medição. Para dizê-lo

em sua unidade própria nós devemos estar atentos a ouvi-lo em seu dizer originário, afim de

que possamos ir além da superficialidade em que ele comumente nos é apresentado.

Exemplos claríssimos a esse respeito se encontram nas coisas mais banais bem como nas mais

elevadas. Um deles se dá, quando o homem se depara com a manifestação de uma obra

musical no desvelo próprio de sua verdade enquanto a realização desta. A obra, independente

se dita a partir do juízo de valor como grande ou pequena, revela a possibilidade de

experiências temporais completamente distintas para aqueles que se dão à condição de

expectadores. Alguns podem se mostrar atentos à sua presentificação de tal modo que, com

bastante propriedade podemos dizer, sua experiência com o tempo se mostra alheia à

cronologia. Deste modo, eles adentram, na medida em que estão à disposição de uma escuta

atenta, no âmbito aberto pela obra enquanto a verdade de si mesma. Outros podem, ao

contrário, contar os minutos e segundos para que a mesma obra acabe por não identificarem-

se com ela. Isso sem levar em consideração as incontáveis possibilidades de variações de tais

acontecimentos resguardadas na simplicidade do abismo. Tais possibilidades são tantas

quantos expectadores estiverem na disposição da obra em seu aparecimento. Na verdade a

questão se estende para além dos expectadores. As possibilidades em referência se encontram

na dinâmica própria do real. Essas circunstâncias ocorrem em qualquer situação onde se

encontram obras de arte na apreciação dos expectadores. Principalmente quando nos

referimos às obras ditas performáticas31

como é o caso das obras musicais, cênicas, obras de

dança, etc.

O importante é percebermos que a experiência temporal que o homem vivencia se

revela distinta da experiência do tempo apenas enquanto possibilidade de medição. De

31

Refere-se a obras artísticas que se presentificam com uma interpretação ao vivo, dando-se em aparecimento no

mesmo momento em que se dá a atuação direta do artista.

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qualquer forma, em tal experiência, podemos destacar três momentos distintos no que se

refere à vivência do homem, estes são chamados de presente, passado e futuro. No entanto,

cabem as perguntas: será o tempo restrito à relação que o homem vivencia? O que é

efetivamente tempo?

Enquanto questão, o tempo já se mostra na dificuldade de tratamento no âmbito do

incerto, do impreciso. No entanto, tal dificuldade não traz qualquer imobilidade ao

pensamento poético na medida de sua disposição na postura em que se encontra. Torna-se

importante percebermos que em se tratando do ser já se revela tempo. Tratar do ser é cuidar

para que ele possa, na radicalidade de seu aparecimento/ocultamento, se dar como a si

mesmo. Desse modo, no seu ocultamento/aparecimento já se mostra tempo. Dessa maneira,

cabe a nós perguntar se o ser seria um ser do tempo, ou um ser no tempo? Ou ainda se o

tempo seria necessariamente uma faceta do próprio ser de modo radical e ontológico? De

qualquer forma, a partir destas questões se põe: será o tempo que mostra o ser velando-o?

Aqui nos encontramos diante de questões que se apresentam e precisam de

esclarecimento. De qualquer modo, o mais importante para nós é que na própria formulação

das questões podemos perceber uma inequívoca ligação entre ambos: ser e tempo. Sabemos

que a arte e o pensamento inauguram tempo, revelam a inauguração de experiências

temporais únicas. São instâncias que fazem referência direta ao tempo em sua originariedade.

Tais instâncias se medem com ele para ser o que são. No entanto, cabe a pergunta: o que há

fora do tempo? Inicialmente não conseguimos dizer o que é, se mostrando no seu ocultamento

mistérios, fora de tal referência. Talvez somente o nada possa se trazer como algo que, de

alguma maneira, transcenda o tempo. A esse respeito podemos, talvez, dizer que o nada traz o

tempo do mesmo modo que traz o ser, ou seja, no velamento próprio de sua condição. No

momento, tal referência entre nada, ser e tempo não será tratada, e sim adiante mais

oportunamente. Importa agora é nos depararmos com o dito de que apenas temporalmente

tudo aquilo que é se encontra na dinâmica do ser, ou seja, somente é sendo. Os entes, que são

sempre sendo, são, sem exceção, temporalmente. Ou seja, a constatação é simples: os entes

são temporais. No âmbito do ente, o tempo já se mostra pelo simples fato de todo ente

somente ser o que é, na dinâmica de ser, sempre sendo. Tal se dá na independência de se

tratarem de entes materiais ou imateriais, palpáveis ou impalpáveis. De todas as maneiras,

quando se trata dos entes eles somente são o que são na temporalidade do sendo, porque

assim são temporais na medida em que pertencem ao ser. Mas e quanto ao ser? O que une a

multiplicidade enquanto unidade radical, como a referência para todo o múltiplo em sua

singularidade já ambiguamente, ele também se encontra em tal disposição?

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Está claro para nós que o ente somente é o que é por estar na disposição do ser.

Estando na disposição do ser o ente é sempre sendo. Assim, percebemos a relação do ente

com o tempo e com o ser. O fato de também poder se nomear o ente como sendo já traz no

próprio nome essa dinâmica. O sendo para a gramática é o gerúndio do verbo ser, se

assemelha ao dizer como cantando, dançando. Em tal disposição podemos perceber que

naquele momento próprio o acontecimento se faz presente no aparecimento de si mesmo. A

construção frasal composta como: ele está cantando; apresenta para nós que ele, aquele que

está na possibilidade da disposição do canto, se encontra disposto, já no momento próprio do

presente, assim cantando, exatamente agora. Nesse sentido o gerúndio é o que tenta dar conta

da dinâmica própria dos verbos. No entanto, a questão aqui não é gramatical, a gramática

apenas aparece no intuito de fortalecer e respaldar determinados aspectos. Importa-nos

perceber que o ente nunca é o que é de modo estático, e sempre que dizemos que “o ente se

encontra na dinâmica do ser”, estamos procurando dizer: o ente é sendo o que ele é, de modo

a estar sempre no movimento próprio das coisas que são; o ente é temporalmente sendo o que

ele é ao seu modo. Talvez, este seja um modo de tratar ser e tempo na medida em que podem

ser ditos em uma unidade originária. O ente estando na dinâmica do ser já se encontra

implicado na dinâmica do tempo, não há separação. Com isso, não estamos querendo dizer

que a não separação venha a igualar tanto ser quanto tempo, ela apenas mostra, na unidade, a

permanência de ambos em si mesmos.

Anteriormente vimos o nada como o abismo de simplicidade que permite o desdobrar-

se em caminhos daquilo que efetivamente é. Nesta perspectiva podemos perguntar: seria o

nada, como afastamento da totalidade do ente, também o próprio tempo? Ou ainda: o nada

pode também ser dito na dualidade própria entre ser e não ser, de modo que ambos são e não

são no tempo? Entendemos que o tempo se encontra, de modo radical, no tempo ele mesmo,

de modo que ser e tempo conformam uma unidade originária de constituição. Assim, achamos

equivocado proferir o nada como tempo, até porque o nada, enquanto radicalidade própria,

corta a palavra, “corta toda a dicção do é”, portanto, se revela como afastamento do ente, do

que é sendo temporalmente. Dessa maneira, prosseguimos dizendo que o tempo é revelado

pelo ser e o ser é revelado pelo tempo. Ao mesmo tempo, tal revelação nunca se encontra fora

do próprio velamento e, como tais, se dizem revelações sempre veladas. O que é na dinâmica

do ser é desvelado pelo tempo. Os entes se revelam temporais na medida em que são, em que

pertencem ao ser. A situação é radicalmente ambígua, radicalmente paradoxal. Sabemos que

ser e ente, que os âmbitos ôntico e ontológico se mostram radicados, em sua diferença, na

unidade de si mesmos. Tal diferença é o que mostra o ente sendo sempre temporalmente,

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posto que a palavra “sendo” já se diz, de tal modo, na dinâmica própria da fala resguardada na

linguagem. Mesmo assim permanece a questão: como o ente é o que ele é na sua dinâmica

própria? Respondemos inicialmente que sendo o que ele é enquanto unidade de si mesmo,

onde, tal unidade, é já no resguardo próprio do ser. Assim, implicado está o tempo na medida

em que, abertos ao homem, todos os entes são temporalmente.

De todo modo continua o tempo nebuloso. Não adianta perceber o ente como algo

temporal e continuarmos perplexos perante o tempo mesmo. Torna-se necessário tomar para

si com propriedade a questão: o que se dá com o tempo? A questão pretende se mostrar na

medida em que nos encontramos na perspectiva e no intuito de um caminhar na direção do

que mostra o tempo em si mesmo, na sua verdade. Assim, é de todo modo mais prudente que

a questão possa ser vislumbrada em tal perspectiva, na medida em que o tempo possa dar

conta de si mesmo. Sem sombra de dúvida, o tempo se mostra nomeado enquanto tal. Em

todos os aspectos em que o homem está inserido se encontra tempo e também ser. Tempo é

tudo o que se mostra enquanto permite a articulação do que é. Os entes sendo sempre na

guarda própria do ser, somente podem ser o que são na perspectiva do tempo. No entanto, se

afigura a questão: será perspectiva a palavra que deve se encontrar com propriedade no lugar

em que se pretende?

Os entes são temporalmente, isso já dissemos de modo exaustivo. Importante para nós

se torna perceber a relação em que ser e tempo se mostram co-pertinentes um ao outro. Na

relação ôntica ambos se mostram implicados radicalmente. Podemos dizer, sem quaisquer

restrições, de que não há possibilidades dos entes fora do tempo e, do mesmo modo, não os há

fora do ser. O mesmo, aqui, é apenas o registro que demarca a diferença nos modos tanto de

ser quanto de tempo. Necessariamente pelo mesmo, os entes congregam, na manifestação

própria de si mesmos, tempo e ser sem que ambos se confundam como um só na inexistência

de diferenças. Tal inexistência não pode aqui ter lugar. No entanto, perante o que tentamos

dizer no decurso da investigação cabe ainda a questão: como pode haver a possibilidade de

encontrar, ou melhor, de pensarmos tempo e ser fora da relação com aquele que é sendo, ou

seja, fora da relação com os entes que são sempre temporalmente?

Mostra-se sem sombra de dúvidas que tais relações somente podem ser debatidas na

medida em que se concedem ao homem. Tal consentimento, necessariamente repõe o homem

no seu lugar devido, qual seja: o de se encontrar na permissão de radicar enquanto aquele que

recebe o que de modo próprio se envia. O que se envia se encontra manifesto na sua retração

própria. Ser e tempo manifestam o ente. Na manifestação em que o ente se dá, ambos, ser e

tempo, se revelam postos no encobrimento de si mesmos. O tempo, assim, se desvela já

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velado para o homem, este que se dá enquanto o destinatário do que, como destino, se envia a

si mesmo. Na medida em que o tempo já vela o homem, é por isso que ele é sempre num estar

a caminho. O homem já se percebe como temporal na medida em que se vê na iminência da

morte. Tendo a morte como limite para o seu aparecimento enquanto homem ele se encontra

diretamente implicado no tempo.

A respeito da questão que trata da referência entre ser e tempo, procura Heidegger no

ensaio “Tempo e ser32

” mostrar tal referência de modo em que traz o ser na presença como

presentar-se. Assim, como presença o pensador já vê implicados ser e tempo na co-pertinência

de suas diferenças. Do mesmo, procuramos até o momento proceder enquanto apresentamos a

questão do ente na medida em que é o que é somente sendo o que ele é. A presença aqui é a

manifestação do fenômeno. Manifestando-se, o que se dá enquanto fenômeno já é uma doação

do tempo. O pensador no ensaio assume o ente como algo que pertence ao tempo e ao ser e

procura pensar tanto ser quanto tempo fora do âmbito ôntico, ou seja, sem o ente33

. O

problema que colocamos é que sem o ente podemos pressupor a não experiência. A não

experiência retira do homem, que necessariamente participa do pensar e do poetar como

colaborador, tudo o que de modo próprio lhe revela, como homem, enquanto o ente que é

sendo o que ele é. No entanto, talvez possamos, a partir de outro modo de interpretação, dizer

questionando que: será que aquilo que o pensador procura com tal perspectiva é na radical

retração de tempo e ser a possibilidade da experiência com ambos? Talvez seja mais esse o

caso. No entanto, surge ainda o questionamento: como podemos experienciar o que

radicalmente se dá enquanto a retração de si mesmo? Podemos responder inicialmente que

apenas diante da não verdade do verdadeiro. A verdade, aqui, se dá, enquanto não verdade, na

constituição e guarda do que seja já no tempo de si mesmo, abrigado no tempo enquanto

doação. Este, como tempo, dá a possibilidade de que aquilo que é, de modo pleno, venha a ser

e continue sendo. A verdade é radicalmente fundamental de modo que ela, radicada no

abismo de simplicidade, é a verdade de modo próprio. Tempo e ser residem enquanto unidade

na verdade como encobrimento, ou seja, na não verdade. Talvez assim proceda, pelos três se

articularem já velados na simplicidade que permite toda dobra de complexidades e, assim,

abriga todas as realizações da realidade, todas as possibilidades e impossibilidades como

poder e não poder, bem como todo irrealizável. Tempo e ser, no âmbito do abismo de

simplicidade, revelam que coabitam no abismo juntamente com a verdade que se mede como

32

Op. cit., p. 249-269. 33

Idem, p.253.

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não-verdade de todo acontecer, de todo acontecimento, de toda possibilidade epocal e

histórica do ser.

Continuando nossa investigação a partir do que, a princípio, foi iniciado, podemos

voltar à questão do tempo na medida em que já o experienciamos manifesto, ao mesmo tempo

em que retraído, no ente. Por isso voltamos a dizer que sendo o ente na dinâmica que lhe é

própria, a mesma já é sempre temporal como doação do tempo retraído em si mesmo. No

ensaio de Heidegger ele afirma: “O tempo dá-se”. O tempo se mostra enquanto dinâmica. O

tempo nunca se mostra como algo que possa ser dito na medida do temporal, temporal é o

ente, não o tempo. O tempo como tempo “dá-se”.

O ente, sendo temporalmente, dura se mostrando na durabilidade própria de si mesmo.

Durando o ente demora em si mesmo. Tal duração somente demora no durar que

temporalmente se dá. Em sua demora o ente é sendo dinamicamente. A dinâmica aventada já

nos traz o rememorar do dizer de Heráclito: “Transformando-se, repousa”. O ente, assim,

repousa no seu demorar consigo mesmo durando dinamicamente.

Somente demora o que é. O tempo mesmo então não pode demorar. O tempo mostra o

demorar em si, mas ele mesmo não demora e não dura. O tempo não dura e não demora

porque o tempo se encontra fora da relação temporal. Temporalmente se encontra o ente na

medida em que é sendo, mas o tempo não é um ente. O questionamento inicial que se dá a

partir do tempo se coloca como: o que se dá com o tempo? A questão pergunta pelo tempo na

medida em que procura se postar na dinâmica própria do que acontece como tempo. Pode

ainda parecer que a questão quer saber pelo que se dá juntamente com o tempo. No intuito de

dirimir as objeções que se apresentam podemos fazer uma pequena modificação na questão: o

que se dá como tempo? No entanto, talvez esta ainda não seja a melhor maneira de questionar

a respeito do tempo no que lhe é próprio. Portanto, voltamos ao modo de questionar inicial no

próprio trabalho que se dá oriundo da experiência antiga dos gregos: o que é isto, tempo?

Dessa maneira, retornamos ao dizer heideggeriano: “Dá-se o tempo”. Como podemos

nós perceber e dizer que o tempo se dá? Se nós dizemos que a árvore sofre as ações do tempo,

já estão implicadas algumas questões que se referem ao tempo enquanto tal. Sofrer as ações

do tempo pressupõe que a árvore dura e perdura naquilo que ela é, enquanto sofrendo na

própria dinâmica, ela permanece como árvore. A árvore está posta e manifesta na medida em

que se mostra. A manifestação da árvore como a si mesma - na individualidade que a revela

enquanto ente que é, resguardada pela reunião do ser como unidade - a diz enquanto

manifesta, presente. Na presença do presente Heidegger trabalha diretamente a relação entre

tempo e ser de modo que, como presença que se “presenta”, já traz as experiências do que é o

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inacessível como o não mais presente e o ainda não presente, todos como forma de presentar-

se como presença já no ausentar34

.

Demorando em si mesmo é que algo pode se manifestar como o que é. O que é dura e

perdura sempre se articulando na sua manifestação. De modo que ao homem é permitido se

encontrar aberto às coisas, ele se encontra aberto ao perdurar próprio das coisas em si

mesmas. Aberto às próprias coisas ele pode vislumbrar sua temporalidade e, assim, se

encontrar na disposição da questão do tempo.

Dessa maneira, devemos retomar que, para o homem, a experiência do tempo se dá na

tridimensionalidade de futuro, presente e passado. O tempo nos coloca na posição de nos

mostrar, ao permitir às coisas o durar que perdura, a unidade de passado, futuro e presente. Na

permissão do tempo as coisas se manifestam e, assim se manifestando, elas se resguardam

consigo mesmas durando. O próprio demorar somente é na relação tridimensional em que o

tempo revela a manifestação das coisas. Em “Tempo e Ser” Heidegger chama de retido e

retraído o que no tempo se esconde na inacessibilidade de si mesmo. O passado é o que se

encontra inacessível por já ter sido e permanecer sendo, como tal, retraído na inacessibilidade

de uma ausência que se mostra ao que já é. O futuro, por outro lado, é o que se encontra

inacessível por reter o que ainda não é, de modo a estabelecer na iminência do ainda não

trazer para o que já é tal retenção de si mesmo. Completando a conjuntura temporal em sua

tridimensionalidade, o presente é o que se mostra na manifestação própria como o que é sendo

no momento em si mesmo. Entretanto, será que podemos questionar o presente como o mais

inacessível de todos? Será que o presente, o presente do que se presenta, se encontra também

retido e subtraído, só que nunca do mesmo modo? Pensando no presente ele é o momento que

sempre escapa e, escapando, nunca pode ser apreendido. O presente na medida do tempo é o

inapreensível por si. Não se pode parar o tempo, disso todos já sabemos por experiência

própria. Podemos nos suspender no tempo como acontece nas experiências do sagrado e da

arte, ambos na medida da poeticidade, mas não parar o tempo. Cazuza, ícone do rock da

década de 80 no Brasil, não foi o primeiro e nem o único a dizer o entendimento travestido

pelo dito: “o tempo não para”. Não parando, o presente, como parte da unidade temporal, é

sempre o a caminho. Na presença do presente aquilo que se dá no tempo é na

inapreensibilidade ambígua por si mesmo. Assim, o presente, ele mesmo, é também

inapreensível na medida em que dinamicamente sempre permanece sendo o que é.

“Transformando-se, repousa”, retornamos às sábias palavras questionantes. Sábio pensador

34

Idem. Ao longo do ensaio.

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aquele que assim percebeu e pôde nos apresentar seu legado. O presente, desse modo, está

retido e subtraído no passado e no futuro. Ele é a linha tênue que separa ambos. Ao mesmo

tempo, ele se repõe em si mesmo na medida em que permanece inacessível por si mesmo no

aparecimento de um e de outro. A tridimensionalidade do tempo é de tal modo, que todos os

três retraídos e subtraídos se implicam uns aos outros, de modo que, o que se apresenta

enquanto presente na manifestação de si mesmo, se encontra ambiguamente jamais

apreendido. Por recusarmos escutar tal dinâmica, é que podemos incorrer no equívoco de

tentar apreender o que não pode ser apreendido. Como as coisas, na medida do ente, são

sempre na dinâmica temporal que as permite ser o que são, nunca podemos apreendê-las por

elas mesmas naquilo que são em uma totalidade. Por isso as coisas já se mostram ambíguas.

Não nos é permitido uma apreensão, ao modo de uma objetividade, porque tempo e ser

permitem as coisas serem. Na co-laboração de ambos é que as coisas, de modo radical, se

escondem retraídas e subtraídas. Assim, quando se dispõem postas na manifestação já o são

na inapreensibilidade ambígua, já o são na retração de si mesmas. As coisas, abrigadas na

tensão radical de ser e tempo, são sempre doação tanto de um quanto de outro, no entanto, são

como doação trazendo sempre a marca inconfundível de ambos. A marca de ambos é a

própria verdade velada e desvelada no aparecimento presente, retido e subtraído, como

doação de unidade. Na não verdade do verdadeiro a inapreensão ambígua da unidade do que,

sendo ao seu modo, se apresenta já revela velados ser e tempo na unidade de co-pertinência

própria em que se encontram. Pertinentes um ao outro, medem-se um ao outro.

Quando temos um estalo, ou seja, um breve momento em que algo aparece de tal

maneira e com tal força na conjuntura como sentido, apenas podemos nos render a essa

manifestação em sua duração momentânea no presente. Este, como tal, somente é no abrigo

de sua própria inapreensibilidade ambígua A inapreensibilidade do que se dá já inapreensível

por si como presença, retido e subtraído, em si mesmo, na tridimensionalidade do tempo.

Com os tais “estalos”, que na verdade são sempre na brevidade de uma total a-medição, é que

trabalham poetas e pensadores. Estes “estalos” brilham revelando sentido. Quando poetas e

pensadores se põem a caminho, na senda da não verdade do verdadeiro, o momento que pode

desencadear tudo o que eles procuram - seja o pensamento, seja uma composição musical,

seja uma nova técnica de criação qualquer – se revela não medido, como um momento que, já

por assim se dar, necessariamente, se encontra na inacessibilidade ambígua por si mesmo.

Assim, tal momento se encontra resguardado temporalmente nas sendas do passado e do

futuro. Esse momento quando se dá como presente é um presente que se mostra na ausência

de si mesmo. O presente, em si, já é e está na ausência. Mostra-se sempre na retração e na

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subtração, pertence tanto ao futuro quanto ao passado na co-pertinência de sua unidade

revelando o presente. Assim, não estamos dizendo que o presente não é real, muito pelo

contrário, a sua ausência como ambigüidade marca, de modo radical, sua própria conretude. O

presente se mostra, na sua inapreensibilidade ambígua, pura concretude. Pois, quem poderia

negá-lo enquanto algo irreal? Tal negação seria uma total insanidade, revelaria perda do

sentido radicalmente, bem como completa surdez frente a não verdade do verdadeiro. Isso

porque é na presença ambígua do presente que as coisas podem durar e perdurar, mas é na

presença do presente que o próprio presente ambiguamente já é inapreensível na medida do

momento, do instante. A justa medida, o ponto justo que chega, que toca o objetivo, o puro

instante, o momento decisivo que marca um limite, já era dito pelos gregos antigos na

experiência do nome trazido como kairÒj. Esse puro instante é concreto e inapreensível por

si mesmo e em si mesmo como ambigüidade. Ele, assim, é o que é como o próprio presente

na ausência de sua retração. A justa medida mostra o ponto exato, o momento exato em que

convenientemente se dá o que é procurado e, assim, ambiguamente, tal procurado já se revela

na retração ausente do presente na unidade tridimensional do tempo em co-pertença originária

com o ser em sua concretude.

Ao homem somente é concedida a permanência por lhe ser permitido habitar na

disposição do memorável, do que se dá consentido-se à memória. Assim ele pode, nessa

disposição, fazer uma tentativa, ter uma entrevisão do que se revela como fenômeno na

manifestação e perceber que, no fenômeno, o ente dura e perdura permanecendo em si

mesmo. Na verdade, a história do homem ocidental é toda marcada pelo esforço de apreender

objetivamente a ambigüidade do inapreensível. Ela é marcada pela tentativa de congelar as

coisas e o tempo e, assim, apreender a verdade, se apoderar do que, em verdade, não se

encontra radicalmente aí à disposição como disponibilidade em nenhum momento. Até

porque qualquer momento já é sempre por si inacessível, retido e retraído, enquanto presente,

no futuro e no passado. Presente, passado e futuro são sempre resguardados na memória, sem

memória não há passado, muito menos futuro e quiçá presente. Na medida em que o homem

se encontra à disposição da memória - onde todas as coisas, enquanto constituição de mundo

sustentado pela fÚsij, ganham sentido - o tempo se desvela na temporalidade do que é sendo,

do que se encontra na guarda de ser e tempo.

Somente lhe sendo permitido habitar a memória é que o homem se encontra na

disposição da permanência do que é sempre em transformação. A memória, então, é aquela

que é o que é a partir do tempo, de modo que o tempo, na sua complexidade, se desenrola no

enviar-se confiadamente à guarda da memória para poder, assim, permitir o que se dá como

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memorável durando e perdurando. Memorável, nesse sentido, são as artes, o sagrado, o

pensamento. Eles se dão memoráveis na medida em que, como tais, revelam o tempo se

desvendando enquanto pura dinâmica de retração e retenção, de exclusão, de inacessibilidade

ambígua como ausência, na própria conjunção dos modos de vivência temporal como

tridimensionalidade dada, retraída e encoberta na sua unidade. As artes mostram o tempo na

medida em que o habitam originariamente, na medida em que inauguram tempo, em que

fazem o tempo acontecer enquanto acontecimento. Acontecendo ele se desvela no abismo de

simplicidade da música que se rompe em riqueza de sonoridades, da poesia na convocação da

fala como presença ausente enquanto sentido, no movimento da dança que revela o tempo e o

ser originários do corpo. O sagrado se mostra enquanto tempo na imortalidade dos imortais

que dão aos mortais sua experiência enquanto resguardados na sua própria imortalidade,

como inacessíveis, de modo que mostram, de modo radical, a iminência da morte no mistério

insondável enquanto permanece misterioso em si mesmo. O pensamento se dá na medida em

que sempre traz ao pensamento o mesmo na vigorosidade de sua complexidade abrigada na

simplicidade que o permite desdobrar-se, como tal, postando o homem já na sua disposição.

Assim, o tempo se dá enviando-se ao memorável na medida em que o memorável possa

restituir ao próprio tempo e ao ser aquilo que a eles é próprio. O memorável responde ao ser e

ao tempo, na medida de sua unidade, durando e perdurando em si mesmo no resguardo de

tempo e ser.

Ser e tempo estão na conjuntura da co-pertinência de suas diferenças. Ser e tempo

sobressaem-se um do outro radicalmente unidos na sua diferença. Eles se resguardam um no

outro. Ser e tempo revelam todo o acontecimento. Dando-se, eles marcam e delimitam todas

as possibilidades de acontecimento no abismo. Ser e tempo assim também são abismo, pois

que, na sua inapreensibilidade ambígua, possam, talvez, nos mostrar um modo de vislumbrar,

mesmo como um mero lance de olhos, um relance, o abismo em sua essência radical como

ausência de si mesmo enquanto ausência de toda possibilidade de ausência.

Prosseguindo a caminho se revela a questão: seriam delimitações e determinações

tanto de ser quanto de tempo os entes que são sendo? Talvez, ao invés de determinações e

delimitações, possam eles nos dar a possibilidade de caminhar na errância e buscar, errantes,

algum alento na misteriosa saga de ser e tempo em sua verdade abismal. Os entes na medida

em que são pertencem ao ser. Na medida em que se mostram sendo se apresentam

temporalmente. Assim é que eles nos permitem investigar e discutir a respeito tanto de ser

quanto de tempo, bem como da não verdade do verdadeiro que se revela resguardada no

abismo do nada. “O nada é o véu do ser” de modo que o próprio tempo também é o véu do

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ser. Nada e tempo velam o ser de modo que se resguardam ambiguamente na retração e

inapreensibilidade radical de velarem o ser de tudo o que a ele pertence.

Presente, passado e futuro estão resguardados de modo próprio no abismo de retração

que é o tempo. O tempo mostra o nada em que se resguarda o verdadeiro. O tempo mostra o

nada em sua simplicidade em que ele concede às coisas a possibilidade de serem sendo o que

são temporalmente. Ser e tempo na conjunção de si mesmos resguardam-se no abismo da

subtração e retidão, no durar e demorar das coisas em manifestação própria como doação de

ser e tempo. Assim, as coisas duram conquistando a si mesmas no resguardo que mostra sua

inapreensibilidade ambígua na sua própria unidade enquanto memorável.

O fato das coisas durarem demorando em si mesmas já é em si um apegar-se da coisa

na temporalidade do tempo e na entificação do ser, ambos velados no abismo do ser e do não

ser. Demorando em si mesmas elas já se manifestam como fenômeno. Em tal manifestação,

na duração delas mesmas, já se encontram presentes, já se apresentam. Ao mesmo tempo tal

duração, do que se demora apegando-se a si mesmo na esteira do tempo e na permissão do

ser, já se encontra na relação dinâmica de si mesmo. Nessa dinâmica o que demora é sempre o

que é, sendo, na medida em que, transformando-se no decurso do tempo, permanece sendo o

que é. Tal transformação já se dá na relação tridimensional onde futuro, passado e presente se

interpõem como unidade na diferença de si mesmos. Estes conjuntam a unidade que,

concretamente, a temporalidade do tempo concede às coisas que demoram sendo o que são.

O instante, por si, já se encontra retido e subtraído, como nos diz Heidegger, no futuro

e no passado, ele, já na sua presentificação enquanto presente, se mostra na retração do retido

e subtraído. Na tridimensionalidade do tempo o próprio tempo se resguarda em si mesmo. O

alcançar de todos os três como experiências do tempo mostra, também e ao mesmo tempo, a

inapreensibilidade ambígua do abismo que, propriamente, abriga tudo o que é e se dá.

O tempo enquanto mostra-se, de modo próprio, como tempo, se abriga no abismo. O

abismo do nada ao mesmo tempo em que é o “véu do ser”, também é véu do tempo na medida

em que tempo e ser co-pertencem na co-pertinência de sua unidade. Por tal é que o tempo é,

do mesmo modo, abismo na medida em que é ambiguamente inapreensível, já velado pelo

nada. A tridimensionalidade do tempo não se apreende, pois que se dá sempre em fuga.

Mostra-se decisivamente na fuga de si mesma. O tempo se mostra em fuga e a fuga se dá pelo

abismo velante em que o tempo se revela em sua verdade diante da não verdade. Tal fuga

nunca é sem o permanecer, por isso é ambígua. O tempo em fuga permanece como tempo, sua

inapreensibilidade por si lhe mostra se dando ao modo próprio e radical como tempo mesmo.

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As coisas são o que são na fuga do tempo como presença subtraída e retida no envio

destinal do ser. Tal envio das coisas se dá manifesto na retração encoberta velado e revelado

no abismo de simplicidade. O tempo passa permanecendo em si mesmo, os momentos passam

e unicamente se resguardam na memória enquanto unidade. Na verdade, a experiência do

tempo somente é o que é e se dá, de tal modo, porque o tempo se revela na memória. Os

momentos permanecem na memória que, enquanto possibilidade de identidade, suporta a

inapreensibilidade ambígua do que é temporalmente sendo. Em todos os empenhos para

superar a morte o homem se depara com a ambigüidade da ausência suportando-a. Assim, os

criadores são solitários porque se percebem sozinhos diante da fuga, da retração ambígua do

todo, inclusive de si mesmos. Antes da criação dos suportes - escritos, impressos,

fonográficos etc. - os artistas, enquanto criadores, se encontravam sempre no afã de criar, e a

partir de cada criação já se encontravam na dinâmica de realização e empenho de continuar

criando. Podemos dizer quase que esta era como que uma prática diária, como um lançar-se

diretamente na simplicidade do abismo. Assim, lançado de modo radical, o “que corta a

palavra” torna possível a inauguração de toda palavra, de toda música, de toda escultura e

pintura, bem como de todo pensamento. É por isso que é conhecido o fato de alguns monges

orientais criarem diversas imagens com areia colorida e, ao fim da criação, contemplarem sua

obra ao mesmo tempo em que promovem o seu desmanchar ao vento. Após o desmanche, em

seguida se postam na disposição da criação de outras obras.

Após a criação os criadores contemplam suas obras, no entanto, já sabem, que

enquanto criadores, devem permanecer no empenho de criar. Se não fossem hoje no Ocidente

a possibilidade dos suportes, as obras permaneceriam encobertas após sua criação de modo

completamente distinto. Atualmente na cultura do Ocidente muito percebemos da influência

direta dos suportes. Alguns artistas criam suas obras e acabam encantados pela própria

possibilidade que o suporte suscita. Assim, em tal encantamento, podem se encontrar

ludibriados na falsa impressão oferecida pelo suporte de passar, ele mesmo, pela obra em si.

Portanto, por diversas vezes hoje em dia percebemos a possibilidade de o suporte, em si, se

assumir mais importante do que a própria obra. Diante dessa dinâmica, aquele que se põe

como criador percebe no suporte uma marca que lhe favoreça, talvez, algum reconhecimento.

A conseqüência mais óbvia e devastadora se mostra no fato de acabarem estáticos diante da

realização que se apresenta e, assim, permanecerem distantes da prática diária da criação

como medição própria diante do abismo. Mas o suporte sendo o que é se dá como aparência,

como virtualidade na medida em que aparentemente congela a dinâmica em que as coisas são.

No entanto, ele não se encontra fora do tempo, pois que o tempo permanece na medida em

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que passa e, passando, sua retenção e subtração está sempre em fuga. O suporte de uma obra

musical, por exemplo, na medida da fonografia, se dá sempre na medida do tempo, a ele não

escapa e, com isso, também mostra a retração ambígua da permanência de uma performance.

A performance, assim suportada, permanece podendo ser repetida inúmeras vezes, no entanto,

sempre na inapreensibilidade ambígua que a resguarda, de modo próprio, em sua permanência

no tempo e no ser pelo caminho que rasga o abismo radicalmente. Suportando a ausência do

que se mostra encoberto pelos nomes tempo e ser, os criadores permanecem como criadores,

criando, de modo a estarem sempre nesse empenho. Eles apreciam o momento da obra criada,

tal momento dura perdurando em sua própria temporalidade. No entanto, seguem partindo em

busca de mais realizações. Com as obras algo do tempo e do ser se põem à mostra de modo

distinto do que comumente se pode perceber. Na atenção cuidadosa a como o real se

apresenta os criadores se aproximam do abismo onde já se encontram para criar. Assim, lhes é

concedido colaborar na criação a partir do que não se apreende, mas que, contudo se mostra

ambiguamente inapreensível na concretude própria de sua permanência.

O tempo se dá ambiguamente inapreensível e, contudo, nada há fora do tempo. Todas

as coisas se mostram naquilo que são, sendo sempre na retração própria do tempo. A memória

pode trazer a possibilidade de que algo do tempo possa se deter. A fuga do tempo é em parte

detida em uma tentativa de detenção. No entanto, a memória é o que é sempre temporalmente

e, necessariamente, a própria detenção do tempo, enquanto tentativa promovida pela memória,

já se dá, necessariamente, também em fuga. Fugindo como ausência ambígua posto que se dá

já na unidade do tempo.

O tempo na simplicidade de sua ambigüidade se desenrola dando-se ao seu modo. O

nada, como total afastamento do que é, não se dá no tempo, como abismo, abriga-o em um

velamento. O tempo, assim, é também abismo. Abismo aqui é ambigüidade, pois que

congrega os contrários na sua unidade. Abriga diferenças, rompe barreiras, pois que na

simplicidade abriga as dobras do possível e do impossível. É lá que reside a verdade enquanto

não-verdade de si mesma, oculta já no mostrar-se que é temporalmente sendo em sua

ambigüidade ausente e radical.

Heidegger diz sobre uma determinação tanto do tempo quanto do ser no que ele chama

de Ereignis35

: o acontecimento-apropriação. Onde tal acontecimento apropriação não pode ser

dito nem que é e que também não se dá, mas apenas acontece apropria, acontecendo-

apropriando. Acontecendo apropriando a unidade de ser e tempo para o pensador se manifesta

35

Cf. Heidegger, 2000e, p.264-265.

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de modo quase que indiscutível, na medida de ser o texto e a palavra uma dificuldade assaz de

compreender o próprio acontecer apropriante. Tal acontecer apropriante é o que suspende o

homem e o faz se apropriar do que lhe é próprio e, assim, é também uma questão. Tal questão

não com o mesmo nome, mas na medida da questão, deixaremos para o momento em que o

homem será tratado na seriedade que, enquanto questão, merece. Aqui, permanecemos

dizendo que o tempo se concede na sua tridimensionalidade como fuga ambígua em

copertinência radical com o ser, ambos velados no abismo ambíguo do nada.

Uma maneira distinta de tratar o tempo não foi por nós tematizada e posta em

discussão do modo devido. O tempo desvelado e percebido na medida das estações, na

medida das épocas. Assim, podemos percebê-lo a partir da relação medida pelas estações do

ano, pela duração de dias e noites. Tal temporalidade é compreendida de modo cíclico a partir

da dinâmica do próprio planeta. Tal ciclo que, de qualquer modo, sempre se dá de maneira

diferente sem deixar que aquilo que se dá no ciclo perca sua identidade, está sempre presente

no desvelar-se de si mesmo. As épocas que se dão ciclicamente aparecem temporalmente

como épocas. Epocalmente se revelam encobertas na unidade de si mesmas. As épocas trazem

sempre possibilidades onde o ser pode se dar enquanto palavra de si mesmo. O acontecer do

homem é epocal porque se desvela no tempo. As épocas, como aquilo que se dá sempre na

relação tridimensional do tempo, congregam uma determinada duração que demora

temporalmente de modo distinto ao de um ente demorar. A época apresenta um demorar-se

que se dá enquanto um tempo de revelação do próprio ser. As épocas são historicamente o

tempo de revelação da verdade do ser a partir de sua própria multiplicidade em dizer-se. A

época se dá na medida de tal apreensibilidade inapreensível como um modo de falar do ser já

sempre manifesto no tempo. Por isso, a verdade do ser congrega épocas onde tais são regidas

por ele mesmo. O ser se apresentou epocalmente enquanto verdade na medida da metafísica

para o Ocidente perdurando por mais de dois milênios. Essa é uma época marcada por uma

maneira do ser convocar o homem à sua verdade. Assim, as épocas se mostram ciclicamente

ao modo da própria manifestação do ser em sua verdade, uma manifestação revelada ao modo

de seu conceder-se em confiança ao homem. A época é um modo de referência da co-

pertinência entre tempo e ser. O ser epocalmente mostra sua verdade epocal revelada e já

velada no resguardo e abrigo do tempo a partir do abismo de simplicidade que, assim, desvela

o ser na não verdade de si mesmo. As épocas são a própria possibilidade da terra, em seu

vigor próprio como fÚsij, trazer ciclicamente a verdade do tempo de maneira epocal. As

estações do ano são, de modo próprio, a manifestação temporal onde se resguarda o conceder-

se da terra na sua temporalidade enquanto unidade já na permanência de sua transformação.

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Tal possibilidade cíclica mostra ao homem a possibilidade da unidade resguardada na

diferença enquanto transformação de modo que os ciclos dos dias e noites, das estações, da

menstruação do corpo da mulher como disposição à dádiva da vida, nunca se dão de modo

igual, nunca se repetem. Cada ciclo apresenta, no seu aparecimento, a diferença sem deixar de

ser epocal, sem deixar de ser unidade. As épocas se apresentam em sua verdade na poética das

poesias que dizem a primavera, o outono, o verão etc. e assim mostram-se como memoráveis

ao abrigo da memória mostrando ao homem o ciclo de permanência na transformação em sua

unidade. Cultuando e cultivando a terra a época apresenta seu vigor que “transformando-se,

repousa”.

O ser e a verdade

A verdade é uma questão. Há muito que o homem se depara com ela no mundo que

irrompe sustentado e abrigado pela terra em seu vigor como fÚsij. No decurso da

convocação que nos toma se torna inevitável uma tentativa de escuta atenta e cuidadosa a

respeito da verdade. No Ocidente, são diversas as discussões a respeito da verdade, da

inverdade e da não-verdade. A partir das dualidades constantes no mundo ocidental o mais

comum é compreender a verdade por oposição ao que é falso. Atualmente a humanidade se

encontra numa esteira de caminho onde a verdade se diz de modo determinado. As dualidades

falam como verdadeiro e falso ou verdade e mentira. Por essa via, um longo caminho se dá a

partir do juízo que valora determinando o que é um e outro baseado nas adequações que

tomam por parâmetros de comparação os modelos eleitos. Não há dúvida que tais dualidades

são o que são na permissão do ser no decurso do tempo que, se dando enquanto ser, permite

que elas se mostrem como tal. No entanto, devemos atentar para o fato de que as relações

estabelecidas tradicionalmente para o par verdadeiro/falso e outros, são por demais

superficiais para se encontrarem, de modo devido, no âmbito de discussão do ser a um nível

ontológico. Portanto, tal possibilidade não se mostra suficiente para a poética e o pensamento,

estes que pretendem estar na disposição de questionar a verdade no abrigo do ser na busca das

questões que irrompem inequivocamente. Assim, nos lançamos em busca da verdade

iniciando com a questão: o que é que pode ser chamado de verdade, e o que esta pode ter em

relação com o ser na medida em que esteja implicada ontologicamente?

Ontologicamente a verdade deve ser encarada em sua fundura. O ser como questão de

máxima envergadura delimita a verdade naquilo que ela é. Tal posição se justifica pela

simples observação de que a verdade se encontra no ser na medida da guarda do verdadeiro.

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Ao dizermos que a verdade se encontra no ser, não pretendemos entificar a verdade, mas sim

recolocá-la na dimensão do ser. A verdade não é um ente. Ela pertence à unidade originária,

mas não ao modo ôntico, de modo que os entes se encontram na dimensão da verdade e do

verdadeiro bem como da não verdade. A verdade, sem dúvida é profunda em sua fundura,

pois que se encontra, de todo modo, na guarda própria da unidade originária. O ser pode ser

dito na medida da guarda do verdadeiro por, em sua envergadura, abrigar o todo, no entanto,

não ao modo de uma contenção. Assim, o todo se encontra, em si mesmo resguardado no ser,

em sua verdade. A questão permanece na medida em que nos encontramos na disposição de

dizer que a verdade é profunda em sua fundura e, portanto, cuidadosamente devemos a ela nos

render.Onde pode ser dito que nos deparamos com a verdade? O que é para nós o verdadeiro?

Como dissemos anteriormente o homem se depara com a verdade na medida em que

ela resguarda o verdadeiro. O real, que abriga o homem, já lhe mostra em tal disposição. O

real, na sua concretude, abriga um sem-fim que, como ente, é sendo no âmbito do ser e

disposto na unidade do tempo. Assim, os entes se dão lançados e jogados como

desdobramentos a partir do abismo de simplicidade. Os entes são, a princípio, o modo mais

imediato de o homem poder se defrontar com a verdade e o verdadeiro. Portanto, devemos

levar em consideração não a entificação da verdade, mas sim tomar o ente na medida de sua

verdade e buscar a verdade e o verdadeiro.

Para tal escolhemos, no âmbito ôntico, tomar um ente que é sendo o que ele é ao modo

de uma obra musical. Sem dúvida, sem grandes dificuldades, podemos dizer que uma obra

musical é como ela mesma, sendo o que ela é, de modo que, em tal dinâmica, se encontra no

abrigo da verdade. No entanto, com tal observação permanecemos no mesmo lugar, de modo

que ela carece de maiores esclarecimentos. Assim, nos colocamos a pergunta: qual a verdade

de uma obra musical, como, por exemplo, a 5ª Sinfonia de Beethoven? Inicialmente nos

adiantamos em dizer que sua verdade não se encontra em livros, manuais, tratados sobre

música ou ainda em trabalhos críticos e analíticos realizados a partir da obra em si mesma. Tal

obra, na sua complexidade, é uma das obras mais conhecidas e apresentadas no mundo do

Ocidente, seja em performances ao vivo, ou em performances registradas por meio de

suportes fonográficos. Todos os trabalhos e estudos realizados a partir da 5ª Sinfonia, bem

como suas diversas performances, apenas corroboram com o fato de se buscar, a partir da

provocação própria da obra, a sua verdade. Mesmo na grande quantidade de páginas que hoje

existem como estudos a respeito de tal obra, nenhuma delas, seja individualmente ou

reunidas, guardam consigo a verdade da mesma. Sua verdade somente se encontra na própria

obra. Encontra-se nela na medida de seu próprio aparecimento enquanto ela é o que é na

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dinâmica de ser. Nesse sentido, todas as obras musicais e artísticas se encontram, de modo

próprio, resguardadas no seu mistério. Como recurso, não adianta - no intuito de apreender

sua verdade e ainda tentar recriar outra obra à sua maneira - recorrer à compreensão e análise

do sistema de composição de Beethoven, porque a 5ª Sinfonia, enquanto obra, é simplesmente

única na sua diversidade enquanto aparecimento e enquanto possibilidades sem-fim de se dar

a um aparecimento. Assim, misteriosamente dada em seu aparecimento, ela se encerra nela

mesma enquanto unidade própria. Sendo a obra o que ela é, sua verdade somente se dá na

medida em que ela, como tal, aparece, na medida em que ela se dá enquanto aparecimento

rompendo em sonoridade. Tal aparecimento, de modo próprio, já se coloca como questão,

pois que suscita uma série de especificidades próprias ao que a obra é, de modo que ela se

mostra resguardada na unidade musical que a sustenta no âmbito próprio da arte.

No entanto, aqui nos encontramos buscando a verdade no âmbito ôntico. Naquilo que

uma obra é, sendo o que ela é, na dinâmica de um aparecer que, necessariamente, traz o

desaparecer enquanto aparente término de seu aparecimento. Desse modo, podemos dizer que

a obra, como tal, é delimitada. Sendo o que ela é, ela se encontra no seu limite enquanto é,

sendo, ao seu modo e não de outro. A obra, nesse caso, se delimita em si mesma, na sua

unidade. Portanto, podemos dizer que tal aparecer da obra já traz, ao mesmo tempo, seu

próprio desaparecer. Cada aparecer, na medida de suas várias performances, é já um

desaparecer ao modo de um silenciar-se como obra. Assim, se torna redundante dizer que

nunca saberemos o que é uma obra musical ou a música em si mesma a partir de qualquer

texto, de qualquer escrita. Aqui trazemos mesmo a escrita literária, pois, por mais que a obra

literária se dê na musicalidade de sua sonoridade enquanto palavra, sua beleza é enquanto

musicalidade literária, porque, na sua delimitação própria, é enquanto literatura e não música.

Assim, a literatura, na sua riqueza, se encerra como literatura na delimitação de sua própria

amplitude. De qualquer modo, colocamos com propriedade que, sem sombra de dúvida, as

artes mantêm grande inter-relacionamento dialogando entre si, de modo inequívoco, em uma

referência. Isto claramente percebemos, pois que, antes de qualquer coisa, rendem à unidade

da arte o fato de se darem enquanto música, literatura, pintura, dança etc. Assim, a arte as

reúne, e as reúne já numa referência de unidade onde se resguardam as diferenças.

Nesse sentido, dizer algo a partir de qualquer obra ou ainda da arte se torna tarefa por

demais complexa na sua constituição. Das obras de arte somente sabemos, de modo efetivo, a

partir de seu aparecimento e desaparecimento. Tal desaparecimento é o silêncio próprio da

obra na sua manifestação. É esse silêncio que resguarda a obra em sua verdade, um silêncio

como desaparecimento permitido e desvelado a partir abismo do nada enquanto ausência da

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própria ausência. Assim, o próprio nada guarda o verdadeiro como verdade da obra a partir da

não verdade em que ela mesma não é. A obra, dessa maneira, parte do não aparecimento para

ser o que ela é. Sendo, a obra congrega o aparecer enquanto dinâmica e o desaparecer

enquanto delimitação. Mas tal delimitação, como desaparecer permitido pelo abismo, já é, em

si, parte da própria obra. Na verdade, parte de todas as obras na medida em que ele se

encontra delimitando todas elas. Talvez silêncio aqui seja um termo equivocado. O silêncio

em si mesmo já encontra-se em uma disposição trazendo consigo o que ele mesmo é em seu

silenciar. O abismo, que se apresenta em questão nos confrontando com sua ambigüidade, não

admite o silêncio como um dizer próprio. Ele não admite qualquer coisa que seja, portanto, o

silêncio principalmente na relação com as obras musicais em sua verdade se mostra já, de

todo modo, impróprio para dar conta da radicalidade do abismo em si. No entanto, no que se

refere ao desaparecimento de uma obra musical resguardada em sua verdade, se mostra

totalmente viável o silêncio na qual ela permanece velada como unidade enquanto

memorável. Assim, este silêncio não se revela como abismo, mas sim em uma constituição de

mundo que irrompe abrigado pela própria fÚsij em seu vigor. Desse modo, o

desaparecimento como silenciar da obra perante o seu aparecimento performático se mostram

em uma unidade numa concepção mundana, e assim se apresentam na disposição da

memorabilidade do memorável. Contudo, não podemos levar sem consideração que tanto o

aparecer quanto o desaparecer próprios à obra se mostram, como unidade, resguardados no

abismo. Dessa maneira, o abismo resguarda, como “véu do ser”, como nada nadificante, toda

a dinâmica enquanto aparecer manifesto e desaparecer velado em si mesmo. O abismo de

simplicidade permite, em si mesmo, tal unidade e dinâmica no irromper de um mundo no

vigor da fÚsij. A obra permanece resguardada em sua verdade de modo que, a dinâmica na

qual se articula, se depara de modo próprio com o resguardo do ser. Tal se dá na medida em

que, sendo o que ela é, o “véu do ser”, enquanto abismo, a mantém velada de modo a repô-la

em sua verdade aparecendo e desaparecendo como unidade e, assim, nesse movimento, ela

permanece sendo o que ela mesma é.

A partir de tal conjuntura, não podemos mais dizer que nos encontramos na disposição

apenas da 5ª Sinfonia, já que percebemos que o abismo permeia toda e qualquer obra de arte.

No entanto, a verdade da 5ª Sinfonia permanece na medida de seu aparecimento e

desaparecimento, com sua sonoridade própria, ambos permitidos pelo abismo de simplicidade

do ser e do não ser. Como o aparecimento da obra se dá na unidade do tempo, dessa maneira,

sua ambigüidade lhe revela no aparecimento que, como memorável, perdura na memória ante

seu desaparecimento. Toda a radicalidade e a riqueza de seu aparecimento, enquanto obra

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musical, nas nuances e dinâmica próprias em que ela se encontra já delimitada, a fazem única

na imponência ambiguamente inapreensível e permanente na sua própria verdade. Assim

aparecendo como o que ela é, enquanto unidade, a obra articula identidade e diferença, no seu

âmbito, revelando a sonoridade na sua verdade própria resguardada no abismo de

simplicidade. Este que permite o velar-se de seu aparecimento e desaparecimento

ambiguamente sendo o que ela é, ao seu modo, na co-pertinência de ser e tempo. Desse modo,

enquanto obra, ela pode se desdobrar na medida de seu desenvolvimento enquanto se

apresenta já na unidade do tempo, onde, de modo único, radica concedendo sua sonoridade

enquanto ela é o que é. Defrontar-se com a verdade da 5ª Sinfonia é se defrontar, de modo

próprio, com o seu aparecimento e desaparecimento de maneira radical. Por ser a própria obra

inapreensívelmente ambígua por si, na medida em que, em tal ambigüidade, permanece como

obra, sua verdade também reside inapreensível e ambígua ao mesmo tempo em que é, assim,

permanente. Sua verdade permanece com ela, em seu aparecimento e desaparecimento, velada

nela mesma. A obra, portanto, para ser o que ela é enquanto desdobramento próprio, se dá no

âmbito do abismo de simplicidade que, assim velando-a em sua dinâmica na co-pertinência de

ser e tempo, a revela resguardada de modo originário na não verdade de toda verdade.

Quando aqui nos propomos partir de uma obra musical no intuito de questionar a

verdade, o fizemos justamente pelo fato das obras de arte, de um modo muito especial, se

manterem na disposição da unidade originária. Desse modo, de maneira mais profunda nós

podemos questionar a questão da verdade em si mesma. No entanto, ainda devemos

permanecer neste empenho por termos ainda muito a debater. No ensaio “A origem da obra

de arte” Heidegger conduziu seu pensamento de modo a mostrar que a verdade dos entes

enquanto coisas, na medida do que é material e inanimado, não reside na relação de

ØpÒkeimenon e sumbebhkÒtwj. Tal entendimento desencadeou uma série de traduções que

posteriormente levou à relação sujeito/objeto. A verdade dos entes, ainda segundo Heidegger,

também não seria apreensível pela unidade dos sentidos da percepção, tampouco pelo par

matéria e forma, ao modo dos entes como matérias enformadas no sentido da estética. Tais

modos de questionar são consolidados na tradição do Ocidente na busca pela verdade. Eles

determinam, de modo radical, a própria maneira de o homem ocidental se deparar ante os

entes. Fazendo com que os entes se mostrem estaticamente parados ao alcance das mãos.

Voltando à 5ª Sinfonia: ela, como já demonstrou Heidegger, não é algo que reside no

fato apenas de sua materialidade, de sua forma, no modo como se dá aos sentidos, mas

também como o que dinamicamente ela é o que é na medida das inter-relações que a perfazem

já num mundo constituído e instituído. A 5ª Sinfonia não é o que ela é fora de tal abrigo.

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Assim, ela é em sua verdade na medida em que um mundo, abrigando-a, já lhe revela no

âmbito de suas possibilidades e impossibilidades como real. Desse modo, temos a obra em tal

referência e disposição na diferença com tudo o que é não ela. A obra, a partir de todas as

relações estabelecidas, é o que é, sendo no seu tempo, no seu lugar, no seu espaço

conquistado na medida em que, como aparecimento já velado, ela permanece o que ela é.

Dessa maneira, nenhuma outra coisa na disposição do ser pode ocupar o que somente a ela

compete. As obras de arte residem nelas mesmas a partir do abismo do nada que resguarda

sua verdade enquanto velamento próprio. O nada é, nesse caso, o que demarca, de modo

radical, a diferença da obra como ente que é, sendo dinamicamente, para com o não-ente,

enquanto a simplicidade do abismo. O abismo do nada, como o total afastamento do ente, é o

resguardo de toda possibilidade dos entes se darem ao seu modo sempre dinamicamente

sendo. Estando o abismo nesta diferença radical é ele que, enquanto abismo, concede ao que

é, todo o âmbito para ser o que é. Podemos dizer - a partir da perspectiva da obra musical em

questão, na medida em que ela, de modo radical, nos permite discutir ontologicamente - que

todos os entes se encontram resguardados, sendo o que são, na sua própria verdade. Desse

modo, sendo o que são, como verdade - resguardados pelo abismo do nada, enquanto

diferença radical que, na dinâmica da não-verdade, guarda todo o verdadeiro – os entes se

trazem velados como não verdade. Assim, tudo o que é se mostra sempre sendo na dinâmica

do verdadeiro resguardado no abismo do nada enquanto a não verdade radical. O nada, assim,

abriga a verdade. O “véu do ser” resguarda toda possibilidade de que os entes enquanto são o

que são se mostrem em verdade como verdadeiro. Todas as relações e inter-relações do que

quer que seja na pertença originária ao ser se resguardam, em verdade, no abismo do nada. A

verdade se dá na não verdade de si mesma na medida em que esta, enquanto diferença

ontológica, delimita a identidade do que quer que seja e pertença ao ser. Assim, ser, tempo e

verdade, bem como nada e não-verdade, se encontram enquanto unidade originária. A

ambigüidade perfaz e perpassa tudo o que é por residir, de modo próprio, no ser velado no

abismo como verdade da não-verdade. O abismo do nada é enquanto diferença radical, a

impossibilidade de que algo seja. Ele é a amplitude de resguardo de toda a verdade do que é

sendo ao modo ôntico em sua verdade velada. Como “véu do ser” ele vela a verdade do ente.

A verdade e o verdadeiro se encontram radical e ambiguamente inapreensíveis por si, na

medida em que o próprio nada lhes toma consigo, sendo véu que é, de modo que na

impossibilidade da própria dicção do é se resguarda, ambiguamente, a verdade na não-

verdade radical.

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Não é a toa que os gregos nomearam a verdade sob o dizer da ¢lhqe…a que ao mesmo

se nomeava enquanto deusa, a deusa Alhqe…a, a deusa Verdade. Podemos encontrar esta

relação no trabalho de Heidegger intitulado “Parmênides”, onde ele mostra a verdade, de

modo próprio, como deusa a partir do pensador grego36

. No entanto, a partir das diversas

discussões que Heidegger travou em ensaios famosos - como “Sobre a essência da verdade” e

“Da essência da verdade” e outros textos nos quais o filósofo trabalha com a questão da

verdade – tomamos a verdade grega a partir do que diz o desencobrimento e desvelamento.

Tal possibilidade de entrever e discutir a questão lhe apresenta como o desvelar-se próprio

daquilo que se dá na medida de um aparecimento. Do que se dá enquanto fenômeno num

mostrar-se que, ao mesmo tempo, se manifesta no velamento como verdade que se

desencobre. Nesse sentido, a verdade é o próprio aparecimento de maneira que este nunca se

revela apenas sobre o prisma da presença do presente, mas sempre na medida em que tal

aparecimento se dá enquanto um descobrir-se na retirada do véu do encobrimento. Como um

descobrir-se que, se descortinando do abismo que recobre o ser em sua verdade, se manifesta

na senda de um aparecimento. Um aparecimento sempre posto no encobrimento do véu que

recobre tudo aquilo que é, na retração ausente e ambígua do sendo. Assim, ambiguamente se

mostra a verdade como o que se resguarda enquanto aparecimento velado em si mesmo. O

desencobrimento oferecido na palavra grega como experiência, também na medida da deusa é

o não omitido, o verdadeiro em tensão com o próprio esquecimento, com o esquecer. A deusa

grega L»qh é o esquecimento, este se mostra em tensão com o não omitido na medida do

desencobrimento como verdade. Portanto, o encobrimento na medida do esquecimento

enquanto já oculto e, como tal, oculto até de si mesmo, mantém o homem numa disposição

em que ele se encobre de si mesmo na medida em que esquece e, assim, permanece oculto. O

desencobrimento e o encobrimento na tensão do esquecimento mostram uma possibilidade de

compreender a verdade no âmbito dos gregos antigos. Eles nos dão algumas indicações para

pensarmos a verdade de modo próprio. Esquecer é já uma maneira de ocultar, no

esquecimento permanecemos ocultos para aquilo que esquecemos. Deste modo, o que se dá

no esquecimento ao mesmo tempo permanece oculto para nós. No entanto, o esquecimento

resguarda o que assim permanece oculto e, com isso, em tal resguardo, dá a possibilidade do

que permanece encoberto vir a desvelar-se. Com isso, o encoberto deixa o ocultamento na

medida em que se desencobre – e isto quer dizer: na medida em que deixa o véu do

esquecimento. Esta é uma possibilidade de entrever a verdade. Na medida em que

36

Heidegger, M. 2008. A relação encontra-se logo na introdução na discussão do primeiro parágrafo e prossegue

no trabalho do autor.

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conduzimos a questão do esquecimento e da verdade como o deixar o ocultamento posto no

esquecimento, talvez possamos ter a impressão de que esquecimento e desocultamento

estejam lançados na medida do homem como detentor de tal dinâmica. A tal objeção podemos

dizer que o fato de os gregos mostrarem as deusas Verdade e Esquecimento nomeadas naquilo

em que são concretamente, já retira do âmbito humano tal referência. No entanto, retira não

de modo que o homem se encontre excluído, retira apresentando o homem na dinâmica em

questão sem lhe ser o centro. Não podemos impor ao homem a relação do esquecimento

propriamente, antes o esquecimento toma o homem em uma disposição. O homem para

esquecer tem de estar, de modo próprio, já na disposição do esquecimento para poder

esquecer. Do mesmo modo, ele tem de estar na disposição do dês-esquecimento como

desencobrimento da verdade para, assim disposto, poder articular-se já na retirada do véu do

encobrimento. Destarte, tal aparência se encontra desfeita já que o homem é exigido e

disposto na permissão de poder se dar, como tal, em si mesmo. No entanto, achamos que essa

dinâmica ainda é abrigada por outra.

O aparecimento como manifestação do fenômeno está abrigado sempre no véu do ser,

no encobrimento do ser enquanto abismo do nada. Dessa maneira, o aparecimento sempre se

dá em uma unidade com o desaparecer do estar encoberto no véu. Tanto o esquecimento

como o dês-esquecimento já se mostram em referência ao abismo que, como tal, concede a

eles poderem ser enquanto verdade e não verdade. Verdade, desse modo, se mostra como o

sair do encobrimento para um aparecimento que, a seu modo, já está sempre no abismo. Todo

aparecer do manifesto se movimenta no véu do ser enquanto não verdade, enquanto abismo

do nada. O esquecimento, desse modo, não é a não verdade, é apenas o encobrir-se da

verdade. Mas o véu que recobre mantém encoberto, na radicalidade primordial do abismo,

toda possibilidade de esquecimento e dês-esquecimento e, assim, toda a manifestação do é. O

nada do abismo da não-verdade, este que traz a verdade, corta a palavra, corta a palavra

porque, nele, não há o que seja. A verdade se dá na medida de uma dinamicidade do

encoberto para o desencoberto que mantém íntima relação com o encobrimento na medida de

residir, de modo próprio, em tal encobrimento. O abismo vela, de modo radical, por afastar

toda a dicção do é e, ao mesmo tempo, resguardar toda possibilidade de desdobramento do

que quer que seja. O desdobramento se resguarda na unidade radical do abismo que, em si, é

ambíguo como não-verdade originária da própria verdade. Dessa forma, dizemos que verdade

e não-verdade residem no abismo do nada como véu do ser já na unidade do tempo.

A verdade de cada ente individual permanece com ele na medida do seu próprio

aparecimento que sai do véu, no entanto, nele permanece resguardado no ser e na unidade do

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tempo. No caso da 5ª Sinfonia ela, enquanto obra obrando ao seu modo, promove, traz a sua

verdade no seu próprio aparecimento/desaparecimento enquanto identidade frente a todas as

diferenças. Lá onde resguarda sua unidade, reside, na retração radical de si mesma, a sua

verdade enquanto não verdade lançada no abismo de simplicidade que permite toda dobra.

A verdade é o resguardo do ser. É a manifestação própria do que é sendo na medida de

seu aparecimento encoberto e recoberto sob o véu do abismo de simplicidade. Resguardando

aquilo que é na permissão própria do ser, a verdade é abrigada ambiguamente como não-

verdade no abismo do nada. Portanto, o nada revela a verdade de modo radical. Nele, o que se

dá enquanto verdade se mostra já na diferença radical abrigada e apropriada consigo mesma

naquilo que lhe é próprio. Assim, o que se dá mostrando-se aparece enquanto fenômeno,

aparece como fenômeno abrigado na ambigüidade de verdade e não verdade no abismo de

simplicidade do nada. Destarte, se pode dizer que ser, verdade e não verdade co-pertencem

velados no “véu do ser” como abismo do nada. Tal co-pertença, necessariamente, não se dá

fora da unidade do tempo. Portanto, temos co-pertencimento de ser, tempo e verdade já

velados pelo véu enquanto abismo de simplicidade.

Ser e Música

As discussões com o ser demandaram longas incursões e questionamentos na medida

de tentarmos buscar de modo próprio estar na convocação que nos impõe a sua presença. Tal

convocação nos atesta a sua força, na exigência em que já nos encontramos tomados em um

pertencer. O ser na medida de toda a sua riqueza como questão é de todo modo a medida para

que possamos buscar a questão musical em si mesma. Ele na multiplicidade de seus modos de

dizer-se permite a música ser o que ela é enquanto unidade radical de reunião. O ser a permite

se dar na articulação em que ela é em toda a sua riqueza abrigada no âmbito da arte. A música

como unidade de reunião é na medida em que reúne em si uma multiplicidade já abrigada e

em referência radicalmente à multiplicidade do ser desvelando-se como fÚsij, tempo, real,

nada. A fÚsij mesma mostra-se no sustento radical em que toda reunião como diálogo possa

se dar. Na medida da fÚsij como sustento a música revela tudo o que por ela pode ser: obras

musicais como sonoridade; bem como homens na medida de músicos e ouvintes. As obras

resguardam-se como anúncio da fÚsij de modo que a unidade som-silêncio pode vir a

alcançar sua plenitude como puro sentido, como sentido genuíno longe de qualquer

interferência que não seja sua verdade. Assim, as obras conquistam seu espaço como

aparecimento e desaparecimento porque a unidade som-silêncio permite. Aparecendo e

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desaparecendo seu espaço permanece conquistado e obrando sustentado no vigor enquanto

fÚsij. A sonoridade das obras em sua verdade permanece obrando perfazendo a teia formada

pela unidade musical. Os homens na medida de músicos e ouvintes no sustento da fÚsij que

os forma também completam a teia. Eles, assim, se encontram na disposição de modo todo

próprio. Músicos e ouvintes são abrigados pela unidade musical porque a fÚsij, assim,

concede. Dispostos por ela o saber musical desdobra-se mostrando músicos e ouvintes de

modo bem determinado. A fÚsij os concede de modo a poderem permanecer no saber e dele

participar. Toda a teia de inter-relações tem na fÚsij o sustento radical. A verdade das obras,

dos músicos, dos ouvintes e da música que os reúne é assim disposta no retraimento. Esse

retraimento é a condição em que a fÚsij como verdade se desvele na medida da arte como

música e assim permaneça como sentido.

O tempo na sua tridimensionalidade em que repousam passado, presente e futuro

mostra sua inapreensibilidade de modo que a reunião musical se dê. Essa ambigüidade como

inapreensibilidade é o que faz a música reunida apresentar-se como solidez. As obras

musicais são concretas na medida em que se mostram temporalmente como unidades

abrigadas na música. Temporalmente a sonoridade das obras se sustenta na ambigüidade que

passa repousando. Cada obra como sonoridade é revelada ao mesmo tempo em que revela o

tempo de modo distinto. Assim, cada uma como identidade traz o tempo de si mesma de

modo que assume sua temporalidade na inapreensão do tempo. No entanto, tal inapreensão se

dá apreendida de modo distinto em cada obra que se concede como verdade. As obras

adquirem tempo e espaço na medida de uma conquista. O tempo delas é conquistado na

diferença em que cada uma se dá temporalizando como obra. Assim, elas se dão na condição

do tempo como temporais e ao mesmo tempo revelam o tempo na solidez de sua inapreensão

na medida em que ele por elas fala. Os homens na medida de músicos e ouvintes

temporalmente se dão. A temporalidade em que se mostram é habitada na diferença de todos

reunidos na unidade musical e no tempo. Cada um a seu modo vivencia o tempo que lhes é

concedido distintamente. Enquanto músicos e ouvintes são temporais na conquista de seu

tempo. Tal tempo conquistado tridimensionalmente mostra-se mais verdade como

inapreensão na medida em que cada um encontra-se abrigado na experiência musical. Na

experiência musical músicos e ouvintes suspendem-se na inauguração temporal de cada

experiência estando na disposição do tempo em sua verdade velada no abismo.

Transcendendo a vivência temporal usual eles habitam temporalmente de modo todo próprio,

assim, a ambigüidade da inapreensão assume no memorável o resguardo de sua solidez. A

música como reunião revela tempo e desvela-se no tempo. A verdade musical enquanto

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poética na tridimensionalidade do tempo abriga sua dinâmica, passando e durando sempre em

transformação. O tempo, assim, envia-se poeticamente na música adquirindo o âmbito de sua

verdade nas conquistas das obras e nas distintas vivências musicais, permanecendo velado e

retraído na poética do aparecer como música.

A música como real é concreta. A teia de relações e inter-relações que a perfazem

como reunião se mostra concretamente assumindo sua identidade de modo radical no âmbito

poético. Na medida do poético são reais as obras musicais no âmbito de sua sonoridade. No

entanto, tal apenas não as refere no âmbito da realidade como realizáveis. As obras se

assumem na sua conretude de modo a habitarem todo um âmbito de possibilidades e

impossibilidades na permissão do irrealizável. Tal âmbito resguarda as obras musicais num

sem fim de modos de aparecimento sem perda de identidade. Cada obra em si mesma se traz

como unidade abrigando uma multiplicidade. Essa unidade radical permite à teia sua própria

mobilidade. A teia musical encontra assim as condições de sua incessante transformação e

movimento. A sonoridade das obras revelando-se permanecem obrando na concretude de

modo a serem dispostas no real e assim o revelarem ao modo deste assumir-se para além da

realidade e das realizações. Os homens no âmbito da poética musical habitam nesta dinâmica

um sem fim como acontecimento. Aos ouvintes é concedido no âmbito de seu momento ouvir

em uma infinidade de modos. Aos músicos é concedida a dinâmica sem fim de criações em

todos os âmbitos no discurso musical. Cada ouvinte bem como cada músico se encontra

aberto, pela poética musical, a se descobrir lançado na multiplicidade de se darem como tais,

músicos e ouvintes, sem deixarem sua identidade. Obras musicais, músicos e ouvintes são

reunidos como multiplicidades na música como unidade, ao mesmo tempo em que são

múltiplos cada um em sua unidade. Assim, a música revela o real como unidade que abriga a

multiplicidade de modo que, ao mesmo tempo, o habita inquívocamente resguardada por ele.

O nada traz a música como unidade na medida de uma diferença radical. O nada como

a radical nadificação, como “véu do ser” e do tempo em nossa escuta ao chamado foi dito

como abismo de simplicidade. O abismo, aqui, na simplicidade radical é o que permite toda

dobra, é a diferença ontológica que revela todos os desdobramentos em sua complexidade.

Pois, o simples é o que radicalmente não se dobra, o que não apresenta dobras. Portanto, a não

dobra radical como abismo de simplicidade é a diferença ontológica onde toda dobra pode vir

a ser de modo que ele vela a unidade de ser e tempo. A música inegávelmente como unidade

revela-se também nos desdobramentos das obras musicais, dos músicos e dos ouvintes e de

todo o âmbito que o saber musical em sua poética assim suscita. No entanto, a poética musical

como unidade co-habita o abismo de simplicidade ontologicamente. Enquanto unidade o

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abismo perpassa a constituição da música. Na medida de sua unidade a música resguarda

obras musicais, músicos e ouvintes de música, bem como toda a dinâmica do saber musical,

suspensos como desdobramentos no abismo de simplicidade que permite toda dobra. Música

e abismo co-habitam a unidade musical. Melhor dizendo, a unidade musical se dá na medida

em que o abismo de simplicidade encontra-se de modo radical permitido e permitindo a

unidade da música em si mesma. A música como unidade traz-se também como abismo do ser

e do não ser na simplicidade em que este a perfaz na permissão e velamento dos seus

desdobramentos. Música como unidade conforma-se trazendo o abismo na medida em que a

teia de relações e inter-relações onde se sustenta a poética musical mostra-se na dinâmica

própria de si mesma enquanto infindável tecer que repousa no pouso de si mesma. Música é

concedida pelo abismo em sua unidade, mas ao mesmo tempo concede ao abismo abrigar-se

na unidade que música é. A poética musical não é sem o abismo que a permite como

desdobramento e, do mesmo modo, o abismo de simplicidade está na música ontologicamente

posto no repouso de si mesmo. Poeticamente o abismo revela-se como parte da unidade

musical em si. Música e abismo conformam uma unidade radical em que os desdobramentos e

toda a possibilidade e impossibilidade na medida do irrealizável se dão musicalmente como

música em sua unidade.

A verdade musical é revelada em sua radicalidade na diferença do abismo de

simplicidade, ao mesmo tempo o abismo mostra-se poeticamente na medida em que resguarda

a verdade. Música e abismo mostram-se na unidade de seu velamento. Em sua unidade

música e abismo dão a justa medida da ambigüidade radical em que a música se encontra.

Velada radicalmente no abismo de simplicidade que perfaz a unidade de sua poética, a música

ambiguamente, como reunião, é inapreensível por si mesma. A unidade musical é assim

radicalmente ambígua. O músico, o ouvinte e as obras musicais, bem como todo o saber

poético da música são ambíguos posto que já o são ontologicamente velados na unidade

música-abismo. Desse modo, eles podem se desdobrar infinitamente posto que a música em si

já é abismal na medida de sua unidade. O abismo de simplicidade pode assim poeticamente

ser revelado no âmbito da própria música. Música e verdade, assim, mostram-se na

ambigüidade própria em que ser e tempo a concedem. A unidade de ser e tempo radicalmente

se encontra velada pela simplicidade abismal do nada enquanto afastamento radical de tudo o

que é. A música, como unidade de co-pertencimento com o abismo de simplicidade enquanto

nada, traz tudo o que é reunido na sua dinâmica ambiguamente sendo o que é. As obras

musicais, os músicos, ouvintes e todo saber musical são trazidos na ambigüidade em que

sendo são concedidos pelo ser e pelo tempo e ao mesmo tempo velados pela simplicidade do

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abismo. Toda a unidade poética musical se dá já velada concedida pelo ser e pelo tempo, de

modo que ambiguamente, em sua verdade, concedem-se como não verdade. Música e verdade

como unidade revelam o abismo de simplicidade ontologicamente. Toda a dinâmica musical

em si se suspende no abismo de modo a incessantemente permanecer movimento.

Permanentemente movimento suspensa na simplicidade do abismo as obras resguardam sua

verdade em tal simplicidade de modo que o abismo se mostra. De modos distintos, mas

lançados no mesmo, o saber musical, os músicos e os ouvintes também. Sendo o que são na

reunião da música, se revelam ambíguos na medida em que sua verdade é sempre a não

verdade do âmbito de todas as possibilidades e impossibilidades no âmbito do irrealizável.

Assim, abrigados pelo co-pertencimento de música e abismo, poeticamente o abismo se revela

no abrigo em que a música como unidade de reunião é já ambígua em sua verdade. A verdade

musical se encontra, desse modo, resguardada na simplicidade, no abismo do ser e do não ser.

Lá velada todos os que se encontram na sua disposição permanecem também velados ao

mesmo tempo em que revelados na medida em que ambiguamente a poética musical se dá na

teia de relações e inter-relações em que se apresenta resguardada. O abismo se mostra em toda

a ambigüidade em que ser e tempo enquanto unidade são velados, na retração e fechamento

radicais da fÚsij em si mesma, no real que congrega a realidade as realizações, bem como as

possibilidades e impossibilidades de acontecimento na medida do irrealizável.

“Transformando-se, repousa”. Música e abismo. Ser e tempo em que a música mostra-se

como unidade é na ambigüidade radical do abismo de simplicidade como velamento

originário.

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CAPÍTULO 2 – CONSIDERAÇÕES COM A LINGUAGEM

A Linguagem

As questões que nos convocam no caminho em que nos encontramos implicados se

apresentam de modo todo próprio. Pela sua envergadura, elas nos tomam de assalto: diante

delas não podemos fazer algo outro do que nos rendermos procurando auscultar a fala de sua

verdade. Apropriando-nos por empréstimo de um dito heideggeriano elas podem ser

proferidas enquanto o que “é digno de se pensar” e, nesse sentido, pela sua peculiaridade,

trazem imensuráveis dificuldades no que se refere a sua investigação. Tais dificuldades

perpassam radicalmente a sua constituição, isso, mesmo sendo tais questões desde há muito

conhecidas da humanidade. Pretenso conhecimento não significa que as mesmas se encontrem

esgotadas, de modo que permanecem, enquanto questões, confrontando de modo sempre novo

o homem, no sentido de reconduzi-lo sempre a seu lugar. Assim, nos defrontamos de modo

sempre novo com o que, poeticamente, nos concede a permissão de pertencermos ao seu

chamado. Dessa maneira, podemos corresponder dispostos na colaboração do pensamento

poetante. A música é uma questão radical que nos concede, em seu chamado, a permissão de

que nos encontremos na disposição de sua verdade. Na medida da verdade musical a

percebemos enquanto unidade. No âmbito em que a unidade como música emerge, notamos

que, assim, ela se dá trazendo a linguagem. Na esfera de tal convocação, a linguagem urge de

maneira inequívoca ao questionamento de modo que a ela devemos nos render. Não há dúvida

de que a linguagem nos encontra desde que somos ao nosso modo. Ela é radicalmente uma

das “questões dignas de se pensar”. Portanto, confrontados por sua profundidade, devemos

estar empenhados em seguir com atenção rigorosa, na intenção de ouvir seus passos em busca

de sua verdade. No desvelamento da linguagem, enquanto questão, nos deparamos com a

possibilidade de que esta nos permita maior facilidade em vislumbrar a música no abrigo de

sua verdade.

Perante tal perspectiva, o presente capítulo é uma tentativa de caminho para pensar o

que já foi exaustivamente pensado, mas que sempre permite, a cada vez, um novo

experimento de pensar, na medida em que podemos vislumbrar pensamento e poética na

unidade de suas diferenças. Achamos que o caminho se sustenta mesmo diante do risco

eminente de falta de originalidade e de erro, isso, porque todo caminho que se desdobra já se

encontra suspenso no sem fundo abismal que os permite a partir da simplicidade. Destarte, é

dentro dessa tensão que a poética pensante se encontra na ambigüidade sem fundo de si

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mesma. Ela se encontra inserida no abismo do ser e do não-ser. O presente esforço é, assim,

um exercício e uma tentativa. Somente como tal, na medida em que se suspende num

lançamento a partir das questões tentando uma escuta atenta, acreditamos que ele possa se

justificar.

De modo que nos encontramos no empenho de investigar a linguagem, devemos estar

atentos a que em toda investigação estão dispostas implicações: primeiro, o que se dispõe a

ser investigado em seu mistério; segundo, aquele que se pretende estar na disposição de um

investigar; terceiro, a referência em que ambos se encontram, o que se concede a uma

investigação e aquele que, suspenso, se percebe na disposição de investigar o que se impõe

misteriosamente. Deve ficar claro que o que nós entendemos por “aquele que investiga” não

pode ser compreendido somente no sentido de individualidade, mas sim na medida de sua

essência, onde toda singularidade e multiplicidade se mostram na unidade de reunião

ambigüamente. Assim, entendemos aquele que se encontra na disposição de investigar como a

essência do homem lançado e suspenso na dissimulação clara do abismo na intenção de

contentar o incontentável. Perante tais implicações, já podemos ter claro que investigar não é

uma propriedade do homem, mas sempre uma possibilidade de co-laboração do ser - como a

reunião do que se impõe em seu brilho de mistério - com a essência do homem. De modo que

o ser é o que assim permite qualquer investigação de modo próprio.

Portanto, a linguagem há muito nos confronta em sua provocação. Podemos perceber

tal fato sem grande dificuldade ao longo do percurso histórico da cultura ocidental. Existem

muitas teorias e correntes de pensamento que pretendem tratar da linguagem. Essa, na

verdade, é questão sempre presente em seu convite, de modo que muito se diz e se disse sobre

ela ao longo do tempo. Assim, o homem cuidou da linguagem na medida de ser acolhido por

ela em suas mais variadas possibilidades de apresentação.

O entendimento hoje dominante a respeito dos modos de investigação se revela

radicado na relação de sujeito e objeto. Tal relação é algo que não pretendemos no presente

trabalho. De modo que se faz prudente relembrar que, em tal maneira de proceder, o que é

questionado ao modo do objeto nunca é interrogado em si mesmo. Em tal procedimento, ele

sempre é discutido a partir de um intermediário que se coloca na posição de origem do que se

pergunta. Assim sendo, permanece o mostrar-se próprio do que, na investigação, se procura ir

ao encontro encoberto. Tal encobrimento se dá ao modo de uma impossibilidade de que o que

se dispõe na investigação, possa nos conceder sua verdade.

A pretensão do presente capítulo se faz em pensar a partir da linguagem. Nessa

perspectiva, ao invés de nos postarmos sobre a linguagem, o que talvez possamos é fazer uma

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tentativa de iniciar uma discussão com a linguagem. Se pelo menos um vislumbre dessa

pretensão for alcançado, a discussão pode se encontrar bem sucedida. Dessa maneira, se

afigura a pergunta: o que pretendemos na tentativa de empreender uma discussão com a

linguagem? A própria indagação nos fornece algumas pistas a respeito. Ela, enquanto questão

se pretende a uma discussão. Essa questão tem um destino, mas não um que se mostra de

maneira usual. Tal se dá na possibilidade de discussão com a linguagem na esperança de que

ela própria, linguagem, possa dar conta de si mesma. Com a atenção e o zelo devidos,

entendemos, assim, podermos estar suspensos na disposição da linguagem de modo radical,

na pretensão de que ela própria nos forneça as possibilidades de empreendimento de

discussão a seu respeito. Dessa maneira, não pretendemos isentar o homem - seja como

indivíduo ou como grupo, na medida de sua essência - da própria investigação. Mas também

investigar se, e como, ele pode estar, de modo próprio, convocado, provocado, invocado,

implicado e disposto no que tange ao próprio questionamento. Nesse sentido, pretendemos

investigar tanto ele (homem), como a linguagem, bem como a referência em que ambos se

encontram, linguagem e homem.

Na medida em que a discussão se dê com a linguagem, ela própria deve se mostrar a si

mesma. Este parece ser o ponto pelo qual devemos partir. No entanto, por que insistimos em

dizer que a linguagem deve mostrar a si mesma? Onde será que há respaldo para dizermos

questionando que a linguagem deve mostrar-se a si mesma? Talvez um pequeno exercício de

escuta possa nos indicar uma orientação. Esta orientação se dá na medida em que buscamos o

sentido originário de algo que se encontra muito próximo da linguagem e, deste modo,

podemos nos aproximar do seu vigor: o dizer.

O dizer se encontra no nosso cotidiano. É algo tão corriqueiro e próximo que nos traz

a possibilidade de ser tratado sem a atenção devida. Possuímos relação com ele por que, como

homens, nos é permitido dizer as línguas e os discursos, estes que já se encontram, em sua

verdade, radicalmente lançados na poesia e na literatura. Assim, estamos imersos no dizer de

tal modo que a construção da sociedade humana se encontra no dito e no não dito, de maneira

que o dizer perfaz o homem enquanto aquele que pode proferir o dito e o não dito inserido no

mundo que o abriga.

A partir da Modernidade, o dito é comumente entendido pela relação cartesiana de

significante-significado. No entanto, tal relação já desgastada não suporta mais as

possibilidades de caminhos que procuram emergir a partir do abismo do ser e do não ser. Não

há dúvida que este desgaste de maneira nenhuma pode deixar a falsa impressão de que a

relação significante-significado, assim posta, não tenha nenhuma relação com a verdade. O

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que estamos dizendo é que este não será o foco de investigação, muito menos o embasamento

do empreendimento que se segue. Sendo assim, outra possibilidade de buscar o dizer deve se

mostrar.

Na busca pela sua verdade, trazemos o dizer como proveniente do latim dicere que nos

apresenta, dentre outros, os sentidos de falar, declarar, nomear, chamar, enviar, mostrar, fazer

conhecer pela palavra; mas também indicar, apontar. Há um parentesco da palavra latina em

questão com o grego de…knumi que nos diz: fazer ver, fazer conhecer; trazendo ainda os

sentidos de trazer para a luz, mostrar em destaque e oferecer. Ambas as palavras (dicere e

de…knumi) descendem das raízes indo-européias *deik-/dik- que, de acordo com o

“Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch” de Pokorny bem como outros autores,

querem dizer mostrar. Portanto, sem grandes problemas podemos perceber o parentesco do

dizer com o mostrar, com o trazer para a luz. Mas, como podemos compreender o dizer que se

apresenta enquanto um mostrar, um trazer para a luz? O dizer mostra? Sem dúvida, para os

ouvidos atuais este é um sentido, no mínimo, estranho. Para nós que fomos criados e

formados na concepção ocidental de mundo há uma dificuldade implícita, uma dificuldade

que traz o peso de uma tradição de dois mil e quinhentos anos em sua verdade e imponência.

A verdade da tradição trabalha com o dizer enquanto representação na medida em que este é

compreendido como o que faz tornar a presença, enquanto imagem, algo que não está

presente.

No entanto, acima está dito: o dizer mostra, traz para a luz, é um oferecer. Podemos

falar isso também de outra maneira: o dizer, em se dizendo, no dito, mostra, oferece, traz para

a luz como manifestação; o dizer, fundamentalmente, antes de qualquer coisa, mostra,

oferece, manifesta. Isto diz ao mesmo tempo: dizer é mostrar, é manifestar num trazer para a

luz, é oferecer. Portanto, o dizer como mostrar, manifestar e oferecer, não representa, mas sim

apresenta em seu mistério. Ele, como dito, apresenta diante de nós porque ele é a própria

presença em que o presente encontra guarida e morada. Assim, de maneira sucinta,

entendemos que este é o sentido mais originário do dizer, aquele que, dizendo em sua

dinâmica, mostra, manifesta, oferece. Desse modo, nos parece ser franqueada uma

aproximação maior do dizer originário. Este que atualmente permanece encoberto e estranho,

contudo, não deixando de guardar a morada de sua verdade no sem fundo abismal do nada.

Pela aproximação que a linguagem tem com o dizer - tomando-se em conta ainda o

sentido de uma simples frase que é fundamental no trabalho de Heidegger intitulado “a

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linguagem”, onde é dito de modo recorrente: “A linguagem fala37

” - podemos dizer

questionando que a linguagem vai se mostrar a si mesma. Este mostrar-se da linguagem, é um

dizer ao modo do mostrar, manifestar e oferecer. Ele, como dizer, antes de tudo, mostra,

oferece e manifesta. Assim, mostrando-se a linguagem diz algo de si mesma. Na tentativa de

percebê-la, de modo próprio, em seu dizer que manifesta e mostra oferecendo, se encontra o

propósito de seguirmos com atenção e cautela. Sem dúvida por estarmos investigando já

suspensos e lançados no abismo do ser e do não ser, devemos compreender que ambos, o

mostrar, manifestar e oferecer do dizer, e o mostrar e manifestar como oferecimento da

linguagem, se mostram dissimuladamente em seu mistério. Assim se dá, posto que a presença

do presente sempre se encontra, enquanto presença, na dissimulação e como dissimulação

clara do abismo do ser e do não ser.

Algumas questões necessitam de esclarecimento a partir de um novo vislumbre: de

acordo com o esclarecido pela discussão a partir do dizer, pretendemos isentar o homem de

qualquer interferência para com a investigação empregada, posto que ele não pode, de modo

algum, perpassar qualquer possibilidade de intromissão? Será possível uma isenção total, em

um questionamento dessa natureza, que discute a partir do que se mostra e se oferece ao

confronto como linguagem? A resposta a essas objeções já está dada anteriormente, quando

dizemos que devem ser investigados em quaisquer questões sempre: o que se impõe

misteriosamente; o homem, na singularidade e multiplicidade, repousando na disposição de

questionar a partir daquilo que se coloca como questão; bem como a referência misteriosa que

os une. Devemos relembrar que no âmbito do questionar não podemos afirmar que algo assim

figure de maneira inequívoca. Há pouco dissemos que seria investigado se, e como, o homem

se encontra em referência à linguagem. A isto devemos ainda acrescentar qual seria o lugar de

tal referência e, ainda, se há qualquer referência.

Não há dúvida de que se encontram em questão pontos delicados acerca do

entendimento e conhecimento empreendidos com a linguagem e sua verdade. É um fato

corriqueiro, dentro da cultura do Ocidente, a opinião de que o homem detém a linguagem.

Demorando brevemente sobre esta fala, podemos entendê-la como: a linguagem como

linguagem se dá a partir do homem, e sobre ele se fundamenta, sustenta, e funda todo o seu

vigor.

Portanto, no entendimento dominante sobre a linguagem, esta é compreendida na

medida de ser uma das faculdades do homem, aquela que permite o manifestar-se em vigor

37

Heidegger, M. 2003, p. 10.

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próprio de todas as outras. Não restam dúvidas de que, assim, a linguagem é tomada como

objeto, mesmo se mostrando como de extrema importância para o homem. Torna-se óbvio

que isto apenas demonstra a grandeza e a profundidade do vigor da própria. Portanto, tais

objeções fazem parte do trajeto da verdade da linguagem ao longo da Cultura do Ocidente. De

modo que, como verdade no desenvolvimento dessa cultura, se torna mais difícil a

formulação de possibilidades de pensar e dizer a linguagem com a linguagem fora da tradição

desta mesma verdade. Assim, as objeções se encontram, na verdade, colocadas enquanto

questão. Em seu conjunto, de todo modo, tais objeções somente podem ser desveladas na

permissão e guarda da verdade da própria linguagem. Essas questões-objeções fazem parte da

linguagem como questão, e dizem respeito ao homem e a linguagem bem como a referência

que estes trazem, ou possam vir a trazer entre si. Talvez seja o momento propício de

esclarecermos a realidade de tal referência.

A princípio, parece claro percebermos que entre homem e linguagem há uma

referência. Isso porque sempre que nos deparamos com a linguagem nos deparamos também

com o homem. Assim, podemos dizer que onde se encontra linguagem lá está o homem e

vice-versa. A partir do entendimento dominante a respeito da linguagem há uma verdade que

se revela ao mostrar-se uma relação linguagem-homem, uma relação que antes se encontra

calcada em uma referência inequívoca. Se buscados com cuidado e cautela tudo o que aqui já

foi questionado traz algo do profundo em sua verdade. Por isso, não devemos deixar sem

consideração a tradição que caminhou na direção de uma verdade que se desvelou encoberta

sempre a partir do ser e do não ser. Lá onde o homem caminha errante a partir da essência de

toda errância.

No entanto, permanece em questão: como, então, podemos pensar, questionar e

discutir com a linguagem? Como podemos tentar nos aproximar da linguagem com a

linguagem procurando trilhar um caminho que siga os passos desta enquanto aquela que se

diz a si mesma?

Como a linguagem nos é próxima, de modo que concerne a toda a humanidade,

geralmente acabamos por deixar de lado o mais evidente. Todo pensar, discutir e questionar

somente se dá enquanto linguagem, eles já se encontram como linguagem na dinâmica da

linguagem. Assim, toda discussão é empreendida na linguagem como linguagem.

Independente de qual ela venha a ser, se acha imersa na linguagem se desvelando e se

constituindo enquanto linguagem. Portanto, inicialmente fazendo uma simples dedução,

talvez um tanto apressada, podemos dizer: não há a possibilidade de isolarmos a linguagem a

fim de perguntar a partir dela própria de modo que o homem, disposto na dinâmica do

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questionamento, esteja isento de todo modo. Essa simples dedução já demonstra a

objetividade da linguagem como algo sem sentido, de modo que ainda podemos trazer a

pergunta: como pode, em tal conjuntura, o homem se isentar se toda a experiência que ele

possui com a linguagem traz como pressuposição mais óbvia que ele esteja implicado com ela

de maneira contundente?

O fato de dizermos que somente na linguagem e com a linguagem é que qualquer

discussão, pensamento ou questionamento possam se revelar, ainda nos permite conjecturar: é

de modo próprio que a linguagem, como tal, permite a realização de qualquer

empreendimento, pois se assim não fosse seria impossível haver quaisquer discussões em

todas as instâncias. A partir disso afirmamos que é na grandeza de sua verdade que toda

relação, implicação, referência e questionamento podem se dar. Desse modo, é a linguagem

que permite ao homem o poder repousar na disposição de um questionamento que procure

questionar tanto a linguagem, bem como o que quer que seja. Ou seja, na linguagem os

questionamentos se mostram e se sustentam como tal. Mas, baseados em que podemos dizer

que é a linguagem que permite as discussões, os pensamentos e tudo aquilo que é cultivado na

linguagem, como linguagem e pela linguagem?

De um modo um tanto dedutivo, diante apenas de observações que podem ser feitas na

tentativa de vislumbrar o que acontece com a linguagem, podemos perceber que somos o que

somos sempre na linguagem. O homem enquanto individualidade não se encontra na tradição

e na dinâmica da linguagem como ela hoje é conhecida e desconhecida nas vicissitudes de seu

trajeto histórico. Não podemos pensar hoje o homem a partir de uma individualidade patente

desde o seu nascimento até sua morte. Por isso, dentro de um contexto cultural, em nosso caso

específico, na cultura ocidental, o homem não pode ser visto unicamente enquanto

individualidade, mas apenas dentro de uma tradição que o ultrapassa e, de alguma forma, o

delimita. Tal tradição mostra, nessa delimitação, algo de si sem com isso dar por definidas as

possibilidades e limites do homem enquanto individualidade e enquanto grupo. No que se

refere à música de modo específico, ela assim se mostra já como unidade na linguagem ao

modo dialogante de sua reunião. Desse modo, assim ela foi dita no primeiro capítulo na

permissão do ser. Destarte, devemos prosseguir a investigação na tentativa de buscar

estabelecer um diálogo na linguagem com a linguagem. Um diálogo que intente sempre

caminhar tendo como perspectiva o sem fundo abismal do nada, do ser e do não ser. O

diálogo aqui emerge na medida em que sabemos que música é enquanto reunião também

diálogo. No entanto, não questionamos de maneira apropriada o diálogo em si. Apenas dele

nos aproximamos na medida em que, como unidade de reunião, a música é dialogante e que a

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linguagem mesma traz como propriedade o diálogo em si. Posto que o diálogo somente se dá

na linguagem. O que nos faz perceber, de modo claro, a referência de há muito explícita

linguagem-música. Admitindo essa propriedade da linguagem e na busca pela verdade da

convocação que nos toma perguntamos: como se dá e o que é propriamente o diálogo?

Diálogo

Dialogar traz o pressuposto entre falar e escutar. Ambos se mostram não na exclusão

entre aqueles que perfazem o conjunto, mas sim em uma união harmônica onde eles se

encontram na relação do mesmo enquanto um e outro. Quando se profere o diálogo

percebemos uma interação de composição onde o diálogo somente se dá, enquanto sentido, na

reunião de um e do outro, na reunião de fala e escuta. Nessa reunião de identidade e

alteridade, o diálogo se dá reunindo pressupondo fala e escuta de tal maneira, que a

proximidade de ambas reside na sua radical diferença. Essa é diferença que na vizinhança

mostra, como reunião harmônica, o pÒlemoj (o combate) de fala e escuta. Assim, diálogo

para ser, como tal, é reunião e nessa reunião se consuma revelando-se em sua plenitude.

Nesse momento, não nos devemos contentar com os sentidos que comumente são

encontrados tanto para fala como para escuta, devemos partir em busca de maiores

esclarecimentos na tentativa de que a aproximação da linguagem possa mostrar-se na medida

da convocação que nos exige. Portanto, procuramos partir de que na medida da linguagem

temos diálogo, e no diálogo há a reunião de fala e escuta. Assim, pretendemos investigar o

diálogo de modo que a fala e a escuta possam nos indicar um caminho, na amplitude do

abismo de simplicidade, em busca da linguagem em sua verdade.

Escuta

A escuta na medida do diálogo também nos é muito próxima. Escutamos diversas

coisas todos os dias, escutamos as pessoas próximas, escutamos as notícias, o burburinho da

cidade ou a calmaria característica de uma região mais campestre. Escutamos isto ou aquilo e,

na escuta, nos mostramos e nos colocamos confortavelmente. Porém de que escuta estamos

falando? A escuta nos é tão presente que, na verdade, escutar para nós se mostra de tal

maneira corriqueiro que não prestamos atenção nem ao que escutamos, muito menos àquilo

que venha a ser escuta. Esta simples constatação por si já nos fornece margens para vários

questionamentos acerca da escuta, da sua relação com a linguagem, e de qual papel tem essa

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escuta frente à essência do homem. As coisas que assumem o aspecto do óbvio passam

despercebidas não sendo, assim, postas em questão. Diante dessa aparente obviedade,

acabamos tendendo a uma confortável acomodação frente ao vigor que se dispõe e se

apresenta. Assim, negligenciamos o questionar por não mais nos encontrarmos tomados pela

imposição do que se apresenta em seu mistério. Portanto, diante do que furtivamente se

encobre ao contato direto, devemos ver e rever e ver ainda, novamente, tomados sempre pelo

augir do que se manifesta. Dessa maneira, a despeito do óbvio iremos procurar mergulhar

naquilo que propriamente o caracteriza, naquilo que, de tal maneira, impõe sua presença e

magnitude de modo que a ela não possamos nos furtar. Deste modo, pondo o óbvio, no que

apresenta enquanto banalidade, ao lado intentamos questionar a imposição da escuta em si, da

sua implicação com a linguagem, e de seu papel frente à essência do homem.

Devemos levar em consideração e entrever alguns aspectos: 1) o entendimento mais

comum, mais aparente, é o de que a escuta é uma possibilidade fisiológica que constitui um

dos cinco sentidos (visão, audição, tato, etc.), portanto, ela estaria ligada à audição (dessa

maneira, todos os seres vivos estariam numa predisposição de escuta); 2) outra possibilidade

seria a de que a escuta ultrapassa a audição, sendo composta também por ela na medida em

que é uma capacidade do homem; 3) de modo menos usual se apresenta a possibilidade de

que a escuta se encontra resguardada na própria linguagem sendo, portanto, um aspecto da

linguagem a despeito do homem.

Devemos relembrar que o papel da poética e do pensamento, em sua reunião, é

questionar e, questionando, instituir possibilidades de caminho. Ou seja, produzir e criar

caminhos, enquanto desdobramentos, na clara noite da simplicidade do abismo. Com isso,

tudo são questões, inclusive as afirmações que possam estar colocadas ao longo do texto.

Estas devem ser entendidas muito mais a partir do pressuposto questionador enquanto algo

misterioso a ser pensado do que assertivas fechadas em si. Assim, devemos ser cuidadosos na

medida em que estejamos na predisposição de pensar questionando, sempre abertos a novas

possibilidades de caminho, procurando instaurar caminhos. O questionamento, em si, não

figura apenas a partir de perguntas, mas sim tanto de indagações quanto respostas, tanto

assertivas quanto negações. As investigações somente podem se configurar na senda de um

questionar vigoroso, que perscruta com cuidado e sem pressa a partir do que se lhe apresenta.

Portanto, não devemos nos enganar com subterfúgios gramaticais como as pontuações e

regras da língua escrita. Devemos nos livrar desta armadilha e perceber as possibilidades que

se abrem na medida em que questionamos já buscando e caminhando sem nunca estar em solo

firme. A firmeza aqui é comemorar, de modo próprio, a simplicidade do abismo onde toda a

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incerteza bem como toda certeza se resguardam, na medida do descontentamento frente ao

inominável, frente ao abismo que dimensiona tudo que nos cerca. Nessa medida, aqui

pretendemos exercitar o questionar de modo que este interrogue o que se impõe de maneira

monumental e vigorosa. O que se impõe como convocação inequívoca na sua verdade

enquanto velada e abrigada como não verdade no abismo de simplicidade.

A audição tem seu lugar delimitado. Ela se encontra naquilo que a biologia caracteriza

como os sentidos dos seres vivos, como os sentidos do organismo. No seu significado mais

comum ela é o sentido por meio do qual se percebem os sons. Aqui claramente percebemos

um processo mediador em que ela é sempre meio para um fim. Contudo, é na nomeação dos

seres vivos como organismos que reside o equívoco que permite tais desdobramentos.

Organismo é um termo proveniente do latim organum com o sentido de instrumento,

dispositivo mecânico ou ainda instrumento musical (especificamente o órgão). Esta palavra,

por sua vez, é oriunda do grego Ôrganon que diz, basicamente, instrumento, ferramenta,

utensílio para a fabricação ou ação de fazer coisas38

. E Ôrganon vem de œrgon que é trabalho,

obra, ação39

.

Percebemos claramente que a nomeação dos seres vivos como organismos não é

inocente. Ela traz a perspectiva do organismo como um instrumento funcional para o trabalho.

Um trabalho que se determina como mediação, como máquina. Esse entendimento funcional é

determinante para o desenvolvimento de toda a rede conceitual por onde a audição se

apresenta na perspectiva da funcionalidade a partir dos organismos. Na medida em que os

seres se dão nomeados como organismo, como instrumento, a conseqüência inevitável é o

entendimento do organismo enquanto ele funciona, na sua função, mecanicamente. Portanto,

a comparação dos seres enquanto máquinas, em seus organismos, é inevitável, o que mostra

por si só a grandeza do equívoco em que tal concepção se encontra.

Uma alternativa para prosseguirmos é procurar entender as formas de vida buscando

um desvio da concepção de organismo. Outro nome que nos aparece é corpo. Todo o vivo

vive no seu corpo. Sem dúvida, nós que somos corpo nos encontramos na sua proximidade.

No entanto, a arte se encontra ainda mais próxima do corpo porque o revela em sua verdade.

Nesse sentido, a dança sabe muito mais o corpo porque originariamente o revela, como o ente

que é, na tensão de velamento e desvelamento. Ela, assim, nomeia o corpo convocando-o em

seu mistério de modo a apresentá-lo já velado na dinâmica de sua realização. Como não

possuímos a experiência da dança enquanto possibilidade vivencial, mas apenas como meros

38

Lidddell & Scott, 1996, p. 1245. 39

Houaiss, Op. cit. ver etimologia do verbete energia.

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expectadores, nos dispomos a perguntar recorrendo ao que nos encontra próximo como

possibilidade: o que é corpo?

Normalmente compreendemos o corpo como a matéria dos seres vivos. Falando

especificamente dos humanos o corpo é a matéria por oposição à alma. Assim, a palavra

corpo se deu a partir da tradução do latim corpus que quer dizer, dentre uma série de

acepções, o corpo de um homem ou animal, qualquer substância sensível, cadáver, corpo

morto, alma, etc. Corpus é derivado da raíz indo-européia *krep/krp – que diz corpo40

, donde

também deriva o sânscrito krp- com o sentido de forma, beleza (perfeição)41

. Corpo, então,

pode ser entendido além disso como forma, mas não enquanto possibilidade de compreensão

entre a dualidade tradicional matéria/forma. Podemos perceber que corpo é forma na medida

em que congrega matéria/forma não como exclusão, mas sim como unidade de tensão

harmônica e polêmica na medida em que, como a si mesmo já na sua constituição, é aquele

que é enquanto unidade conquistando o seu espaço. Nesse sentido, pode nos esclarecer Walter

Otto quando se refere à forma dizendo que é “o essencial na plenitude de sua manifestação, a

totalidade e a unidade patente de um ser que em si mesmo repousa42

”. Assim, não há

dualidade, há unidade que congrega “o essencial na plenitude de sua manifestação”. A forma,

em unidade, é a própria manifestação que se concede.

Devemos dizer também que a separação radical entre corpo e alma não é originária,

ela se deu em um momento histórico já dominado pela metafísica. Assim, procurando

entender corpo originariamente compreendemos que ele se mostra como unidade em sua

forma essencial onde corpo e alma são um. No entanto, sem dúvida ele é tido como algo vivo

que se encontra na possibilidade da morte. Por isso os gregos opunham sîma – corpo do

morto, à dšmaj – corpo vivo. Contudo, o corpo, em si, está na possibilidade de vida e de

morte. Por essa causa é que uma das acepções do latim corpus também é cadáver, onde

corpus diz tanto o corpo vivo como o morto. O corpo congrega em sua unidade a própria

animação. O estar animado, é em si o estar vivo que, como vida, traz consigo a possibilidade

radical da morte. Portanto, corpo é muito mais do que o instrumento à disposição na

disponibilidade para o uso qualquer. Ele é anteriormente fundamentado como radical relação

de unidade de vida e morte que se manifesta como fenômeno nessa unidade na medida em

que assim conquista e agarra seu próprio espaço como corpo congregando já vida e morte.

Então podemos perguntar: o corpo então seria o lugar da escuta?

40

Pokorny, Indogermanisches Etymologisches Wösterbuch. Ver raíz *krep-1/krp-. 41

Idem. Ibidem. 42

Otto, W. Die Gestalt und das Sein. p. 81, apud Otto, W. 2006, p. 177 – Epílogo de Bernard Weiss.

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Na medida do corpo em detrimento do organismo, propomos a mudança da discussão

de audição para o ouvir do corpo. Não há dúvida de que o ouvir está ligado diretamente à

realidade do corpo. Ouvir provém do grego oâj, çtÒj que quer dizer orelha, ouvido,

provindo, por sua vez, do indo-europeu *aus- com o sentido de orelha. Ou seja, ouvir está

diretamente relacionado ao corpo, à sua realidade, ao seu ser como possibilidade de vida e

morte. No entanto, a partir de seu significado semântico, ouvir é percepção, percepção como

sentir, como um receber. Sentido é particípio do verbo sentir, portanto, o ouvir como um dos

sentidos é em si um sentir, um perceber, um receber como sentido. O que no ouvir se recebe

como sentido de um sentir não é nenhum segredo para nós homens, já que esse é um receber

diretamente ligado ao som como realidade que se desdobra no mistério do real. O som é

entendido na concepção científica como um fenômeno acústico que consiste na propagação de

ondas sonoras. No entanto, a partir de discussões que uniram etimologia, poética e

pensamento, já foi dito por nós, em outra possibilidade, que som é “aquilo que vem de si

mesmo, aquilo que é próprio de si mesmo” e, portanto, é presente na presença-ausência da

fÚsij. Sendo assim, som é, antes de tudo, presença e ausência da relação tensional do vigor

da fÚsij em seu mistério43

. Isso apenas vem corroborar com o desvelamento do ouvir como

um sentir recebendo, como um sentir que recebe o próprio mistério da presença-ausência que

é a relação de unidade tensional som-silêncio44

. Entendemos o sentir recebendo como a

possibilidade do revelar-se da verdade do ouvir do corpo, de modo que ele está intimamente

relacionado à unidade som-silêncio. É importante compreendermos que não é todo sentir que

está totalizado nessa possibilidade, mas apenas este entendido como um dos cinco sentidos,

como o sentir a unidade som-silêncio enquanto ouvir. Talvez, esta seja a verdade do ouvir

revelada em seu mistério, sem que este mistério deixe, de modo próprio, seu velamento

encoberto.

No entanto, considerando que a escuta é de fundamental importância na medida do

diálogo na busca pela linguagem, bem como na convocação própria em que a música nos

dispõe, ela não pode ser compreendida apenas como o ouvir do corpo. Pois se assim fosse,

somente aqueles que se encontram na possibilidade de ouvir estariam passíveis de uma

experiência com a linguagem (isso na pressuposição de que a escuta está na linguagem). De

modo inverso, todos os que não estivessem dispostos nessa condição estariam impedidos de

um encontro com ela. Então, podemos entender que a realidade do ouvir a partir dessa

perspectiva não é fundamental para buscarmos um encontro profundo com a linguagem. Tal

43

Gatto, E. 2004, p.153. 44

Idem, p.154.

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entendimento se justifica até porque há quem não possa ouvir, em se tratando de homens, mas

não os há fora da linguagem. Assim, a linguagem não se mostra como diálogo na medida da

audição e do ouvir. Pois que há homens na condição de surdos e estes se encontram na

disposição da linguagem, até pela relação gestual em que essa pode vir a mostrar-se. Na

medida em que pensemos na possibilidade de existir um ser humano completamente alheio à

linguagem, então nos deparamos com um ente que não pode mais ser compreendido como

humano - pelo menos da maneira que compreendemos e vivenciamos a realidade humana do

homem. Estaríamos diante de outro, que não o homem, se apresentando e se realizando a

partir de uma perspectiva diversa. Portanto, não podemos entender o ouvir do corpo como

suficiente para dar conta da totalidade da escuta enquanto constante do diálogo.

Há um limite apresentado pela própria linguagem. Todos os outros seres vivos, que

não o homem, possuem uma realidade bem diversa em relação ao sentir. Tal se dá, porque,

em sua realidade, eles sentem na recepção de modo que esse sentir recebendo se fecha em si

mesmo, se fecha em sua realidade distinta. Já o homem, em seu modo de ser, traz uma

realidade completamente diversa em seu sentir que recebe, nele há a possibilidade de uma

resposta. Tal modo de sentir, diferente do animal, ao invés de se fechar tem, essencialmente, a

possibilidade de sair de si mesmo. Portanto, esta não é uma resposta que se entenda como

uma reação, mas é um sair de modo que pode, a partir e juntamente com o que recebe,

instaurar conjuntamente outra realidade. O homem apresenta, essencialmente, a capacidade de

lançar-se pro-jetando-se para diante do que se impõe como fenômeno. Nesse projetar-se, ele

carrega a possibilidade de voltar para si mesmo intro-jetando. Ou seja, lançando-se de volta

na condição de apreender e compreender a imposição misteriosa que se mostra. A partir dessa

apreensão e compreensão, que nunca se dá totalmente, ele pode corresponder ao apelo

imposto co-laborando com o que se impõe.

Devemos, então, buscar a escuta na medida em que ela venha transcender as

possibilidades tanto da audição quanto do ouvir do corpo. Posto que ela, em si mesma, na

reunião do diálogo, pode mais. Portanto, devemos procurá-la em sua originariedade.

A tentativa de entrever a escuta originária

Em um texto de Heidegger sobre o lÒgoj heraclítico se insinua a seguinte passagem:

“Nós só escutamos quando pertencemos ao apelo que nos traz a fala45

”. Este é um dizer que

45

Heidegger, M. 2001 d, p. 190.

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para nossos ouvidos, acostumados ao desdobramento do discurso metafísico, parece um tanto

estranho. Tal estranheza deve marcar a possibilidade de trazer o cuidado na medida de

investigar tal dito nele mesmo. Portanto, a intenção é de que cuidadosamente possamos nos

mover a partir do pensador em questão buscando possibilidades de aproximação de sua fala e,

com isso, da escuta e da linguagem. A aproximação, em si, deve se dar a partir de um deixar

falar, ou seja, devemos deixar tal dizer livre para anunciar o que nele está dito. Desse modo, o

dito deve falar por si só. Assim, mais uma vez repetimos: “Nós só escutamos quando

pertencemos ao apelo que nos traz a fala”.

Podemos perceber que há uma condição radical logo no seu início: “Nós só46

escutamos”. O só, enquanto condição, pode ser compreendida também como: nós somente

nos encontramos na possibilidade real de escutar, de estarmos na disposição de uma escuta

realmente profunda. Este só marcado no texto profere uma delimitação que radicalmente

procura demonstrar e enfatizar a importância da escuta em sua profundidade. De toda forma,

está claro que essa delimitação se refere especificamente aos mortais, aos homens enquanto

aqueles que se encontram na disposição e na possibilidade de escutar profundamente.

Podemos ainda dizer, que este só demarca a escuta em questão num mostrar-se de modo não

corriqueiro, de uma maneira toda especial. Logo a seguir, aparece o quando na medida em

que ele manifesta a abertura de uma condição fundamental para a possibilidade de realização

dessa escuta profunda: “pertencer ao apelo que nos traz a fala”.

A passagem no original em alemão diz: “Wir haben gehört, wenn wir dem

Zugesprochenen gehören47

”48

. Na tradução de Carneiro Leão gehören se transpõe no verbo

português pertencer. A partir da semântica, o verbo pertencer se apresenta enquanto o que é

propriedade (como próprio) de algo para além de si mesmo; se mostra ainda como o que faz

parte, na medida em que é referente a algo ou alguma coisa. Procurando além do que a

semântica nos oferece, percebemos o verbo pertencer proveniente do latim pertenescere,

vindo de pertenere que apresenta, segundo o dicionário de Houaiss, sentido idêntico ao seu

originado. Tal sentido se mostra como ser propriedade de outrem. No latim a palavra é

formada pela preposição per adicionada do verbo teneo. Teneo encerra várias acepções, mas

as principais são: ter, possuir, segurar, agarrar; e também durar, subsistir; ou seja, é o ter com

duração de tempo49

. A preposição per-, por sua vez, também apresenta vários sentidos que se

46

Grifo nosso. 47

Grifo do autor. 48

Heidegger, M. Logos (Heraklit, Fragment 50), in Vorträge und Aufsätze. Vittorio Klostermann – Frankfurt. p.

220. 49

Cf. Saraiva, 1993 p.1188-1189.

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dão, entre outros, como: através de, por, entre, em, durante, com auxílio, favor, ajuda de, em

nome de, etc.. A partir da investigação empreendida, o sentido para o verbo pertencer se

apresenta partindo de teneo como o durar, o subsistir, sendo diretamente relacionado ao

tempo. Teneo, então, mostra que o que tem a si mesmo somente subsiste durando

temporalmente. Onde, assim, durar é colhido inevitavelmente pelo tempo como condição

fundamental de sua constituição. Quando tomamos a preposição per- no sentido de “como o

em nome de, em favor de”. Podemos compreender o pertencer como aquilo que subsiste, que

dura e por isso perdura em nome, em atendimento ao chamado. Nesse chamado, se encontra o

próprio evocar do “em nome” - como se faz também quando convocamos o próprio deus

dizendo: “Em nome de Deus”, ou ainda, “em nome do Pai” (a exemplo do Cristianismo).

Assim, pertencer se dá na medida de um durar e um subsistir como pertencer de modo que,

somente no chamado como convocação, se possa ter a relação com o tempo e o ser. Essa

relação somente se dá na medida em que algo, em tal convocação, dura e subsiste apenas no

convocar em nome de. Destarte, o pertencer é o subsistir, é o durar que dura e subsiste de

modo próprio no chamado e nele se resguarda sendo no tempo. O pertencer assim pode ser

dito enquanto posse no sentido de durar somente no chamado, na convocação que se dá

inequivocamente de modo firme e próprio.

Podemos continuar a investigação procurando dizer o dito heideggeriano do seguinte

modo: “Nós só escutamos quando, na convocação, no chamado, duramos e subsistimos sendo

no tempo pelo apelo que traz a fala. De modo que esse apelo é que nos tem, e nesse apelo

podemos subsistir e durar. Subsistindo e durando no apelo da fala, subsistimos e duramos no

próprio chamado”. Ao mesmo tempo, dizemos também: “Nós só escutamos quando em nome

do apelo da fala, no seu chamado, subsistimos e duramos. De modo a nesse chamado

encontrarmos guarida e morada, porque é nele que somos enquanto propriedade, ou seja, ele

nos tem”. No chamado do apelo da fala duramos e subsistimos e, somente assim, quando tal

efetivamente se dá, acontece a escuta em seu vigor de fundamento. Acontece a escuta

profunda com seus alicerces assentados no ambíguo, no sem fundo do nada.

A princípio, deixamos de fora da discussão precedente uma palavra fundamental. O

dito que é proferido pelo pensador mostra um quando como condição. De maneira que este se

apresenta de modo delimitador: “Nós só escutamos quando50

”. Esse quando se apresenta

dizendo o mesmo que: fora dessa condição, fora desse limite, a possibilidade seria sempre a

do não acontecimento próprio da escuta. Ao mesmo tempo, o quando se revela como uma

50

Grifo nosso.

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condição implicada temporalmente, ou seja, é uma condição perpassada de temporalidade

para acontecer de maneira própria. Assim, podemos com ele dizer: nós só escutamos, como

condição fundamental, no tempo em que aquilo que é e se articula, enquanto condição, se dá.

Contudo, do dito concedido por Heidegger resta ainda discutirmos o que se diz como:

o “apelo que nos traz a fala”.

Apelo é o chamamento, a convocação, a invocação. Apelo é chamado, pois apelar é

chamar para. Buscando alguma possibilidade de caminho e aprofundamento pela verdade do

termo, percebemos apelar como proveniente do latim pellere que, por sua vez, provém da raiz

indo-européia *pel-, de modo que esta diz: agitar51

, tendo representação nas línguas latina e

grega. No Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch de Pokorny a raiz *pel-(2a) se

encontra representada em latim pelo verbo pello que traz uma idéia de movimento, pois é o

empurrar, bater, exercer força contrária, tanger, ferir, tocar, excitar, repelir, sempre trazendo o

movimento como mola fundamental da sua concepção. Ainda segundo Pokorny, temos a raiz

*pel-(1) apresentada no sentido de cheio, encher, derramar; com palavras para balançar,

agitar, tremer (tremura). Desta raiz provém o grego p£llw com extensão da matriz pelen- no

grego pelem…zw, que é movimento (balanço), brandir (mexer de um lado para o outro). Esta

matriz dará também origem às palavras gregas pÒlemoj e ptÒlemoj que dizem: batalha,

guerra, luta, combate. Podemos perceber e, neste âmbito, dizer que apelo se encontra

fortemente ligado a movimento. Ele se apresenta ligado ao movimento enquanto possibilidade

de se dar, o movimento que se desdobra como combate, ou melhor, o movimento que

fundamenta o combate. Normalmente compreendemos o combate na medida em que há um

embate físico, no entanto, existe a possibilidade de compreendê-lo como um combate onde a

violência se mostra, em seu vigor, na copertinência das diferenças dos próprios combatentes.

Dessa maneira, o combate é essa diferença, disposta enquanto unidade fundamental de

constituição, juntamente com a identidade própria daquele que, diante da diferença, se afirma

a si mesmo. Assim, o combate não se dará de modo físico, mas sim como a violência da

afirmação de si mesmo enquanto identidade frente à diferença, no confronto em que um se

posta perante o outro.

Devemos ressaltar, como um adendo da pesquisa empreendida, que no dicionário de

Liddel & Scott-Jones não foram encontradas as relações que se mostram nas outras obras

consultadas. Assim, achamos melhor seguir as orientações postas em autores outros que não

51

Houaiss, 2001, cf. verbete -pel-1.

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Lidell & Scott-Jones, na medida em que o caminho, por eles apontado, se mostra mais

condizente com o que buscamos discutir.

De acordo com Houaiss o a- de apelo provém da preposição latina ad- que diz “em

direção a”, com sentido de aproximação. Nos dicionários de latim, para a mesma preposição

existem várias acepções, no entanto, é relatado que, para verbos que exprimem movimento

como é o caso de pello, esta apresenta o sentido de “para, em direção a, junto”. Assim,

podemos entender que apelo é o estar junto ao movimento da diferença como combate, mas o

estar junto de modo a ir em direção a esse movimento. Ou seja, um estar junto do combate,

estar junto da direção travada na batalha da afirmação própria da identidade e diferença de

cada combatente.

“O apelo que traz a fala”.

Vislumbramos então a possibilidade de dizer este dito como: “o estar junto, como

aproximação do movimento próprio que, enquanto movimento de afirmação de identidade

frente às diferenças, é o movimento que mostra o combate. É o movimento que se dá como

batalha onde, na batalha, os combatentes se afirmam perante o outro ao mesmo tempo em que

se resguardam. De modo que eles se Afirmam na diferença e se resguardam na identidade. E

esse movimento, este estar, de modo próprio, junto ao movimento polêmico e originário, nos

traz a fala”. Assim, mais uma vez dizemos: “Nós só escutamos quando pertencemos ao apelo

que nos traz a fala”.

De acordo com nossa investigação, da passagem toda podemos até agora dizer: “Nós,

aqueles que se encontram na disposição como disponíveis, somente nos colocamos na

possibilidade de escutar de maneira diferenciada, de maneira profunda, quando estamos

apropriadamente abandonados nessa disponibilidade. Isso se dá à condição e ao tempo de, na

convocação, no chamado que convoca e invoca “em nome de” (que é o apelo), nos

encontrarmos enquanto a possibilidade de, somente nele, subsistirmos e durarmos (nesse

chamado e nessa convocação). Assim se dá, de modo que somos o que somos temporalmente

nessa subsistência e duração. De maneira que somos, de modo próprio, ao nos encontrarmos

em sua propriedade. Somos, ao estarmos juntos, na proximidade. Ao estarmos no movimento,

enquanto acontecimento, que se dá como combate, como batalha dos combatentes se

afirmando um perante o outro, ao mesmo tempo em que mais se diferenciam. Onde, nesse

embate, os combatentes se demonstram se fazendo enquanto acontecimento, enquanto

unidade originária. Isso ainda, de maneira que tal combate originário, essa unidade tensional,

se mostre como a referência que possibilita todo o movimento enquanto um gerar, um

movimento de combate originário, no trazer próprio do movimento em que se manifesta a

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fala”. Após essa possibilidade de interpretar o dito de Heidegger resta a pergunta: mas e a

fala, o que é? Resta ainda discutirmos é se o apelo, como movimento pleno de combate,

originariamente como o grego pÒlemoj, traz consigo a fala, ou a possibilidade de falar, ou,

ainda, o fundamento de toda fala e de toda possibilidade de falar. Para discutirmos a fala de

maneira eficaz é preciso que façamos uma delimitação da escuta enquanto parte fundamental

do diálogo. De modo que, assim, se crie a abertura para a discussão do falar com a seriedade

devida em momento oportuno. Quando também, em momento posterior, pretendemos discutir

o posicionamento da passagem em questão onde a fala toma o lugar de objeto. Diante de tal

fato, no momento devemos prosseguir na investigação pela escuta na tentativa de esclarecer,

diante da obscuridade do abismo do ser e do não ser, aquilo que permanece encoberto.

Destarte, se faz necessário investigar não apenas a partir da tradução realizada por

Carneiro leão. Devemos também buscar esclarecimentos a partir do próprio dizer do pensador

em sua língua nativa, assim, tentaremos compreender do dito a partir de outra perspectiva.

Sem dúvida que se deve atestar aqui (não que o referido tradutor precise de que, no presente

trabalho, se lhe ateste algo. A sua trajetória enquanto pensador, pesquisador e professor, ao

longo dos anos, lhe diz atestando-o por si só) a altíssima capacidade e competência, bem

como o domínio do tema tratado e traduzido pelo professor Carneiro Leão. No entanto,

achamos que, talvez, outro aceno possa se posicionar no intuito de colaborar e aprofundar a

investigação de modo complementar. Nesse sentido, retornamos ao dito em alemão: “Wir

haben gehört, wenn wir dem Zugesprochenen gehören”. Isso pode também ser traduzido

como: “Nós temos escutado (escutamos) quando pertencemos à Zugesprochenen.” A palavra

alemã Zugesprochenen é traduzida por Carneiro Leão como a expressão: “o apelo que nos

traz a fala”. Tal palavra é formada pela preposição Zu-, com sentido de movimento enquanto

significa a preposição para; adicionada de Ge- como um prefixo verbal, uma partícula que, na

língua alemã, tem a intenção de uma intensificação de presença; tendo ainda o verbo

substantivado sprechen como sprochenen onde o primeiro, significando falar, apresenta o

segundo como fala. A intensificação de presença nos sugere uma presença que se manifesta

de um modo diferente do usual, de um modo extra-ordinário, um modo todo especial de

manifestação que retira a fala, em questão, do âmbito comum. O Zu- se mostrando na

possibilidade de movimento, da preposição para entendida como o que “se posta em direção

a”, é o trazer, o conduzir em uma direção. Sendo o Zugesprochenen o movimento próprio de

condução, um conduzir-se a si mesma da fala presentificada de modo todo especial. Tal

condução eleva a presença a uma condição extra-ordinária, ou melhor, é a manifestação extra-

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ordinária da fala em sua condução própria. Assim, não podemos confundir tal fala extra-

ordinária com a fala com que lidamos costumeiramente.

Pensando melhor a respeito da palavra em questão, podemos ainda dizer que o

movimento de condução que traz, se dá pela intensificação da presença de modo extra-

ordinário. Assim, extra-ordinariamente a fala é conduzida no seu trazer-se próprio que a faz

manifestar-se enquanto origem de si mesma. No entanto, podemos apresentar outros

referenciais no intuito de que estes venham nos fornecer mais sentidos que, por extensão,

possam nos trazer a possibilidade de compreender o que pode dizer tal palavra. Assim, de

acordo com o Das Deutsches Wörterbuch, de Jacob Grimm e Wilhelm Grimm52

, encontramos

um termo que não apresenta ligação etimológica direta e tão pouco evidente com Zu- e com

Ge-. Contudo, no âmbito da grafia, revela a união dos dois prefixos que formam

Zugesprochenen. Dessa maneira, Zuge, de modo homográfico, quer dizer fonte corrente, de

onde se extrai água. Em determinado sentido, podemos tentar uma aproximação do que agora

se apresenta com Zugesprochenen. Se Zu- e Ge- apresentam o movimento, onde este pode ser

entendido como um conduzir-se trazendo a presença de modo extra-ordinário, podemos

aproximá-lo à fonte. Isso, na medida em que a fonte é também origem, de modo a ser o que,

efetivamente, dá a possibilidade do aparecimento do que se mostra e manifesta. Corroborando

com o sentido de movimento, no campo semântico, o alemão dispõe ainda de Zug que diz do

puxar, atrair, trazer; bem como Züge que diz do trem, movimento, marcha, cortejo. Todos os

termos se mostram próximos na grafia, de modo que também não se apresentam distantes no

campo semântico. De modo que temos a questão do movimento de condução que se mostra

pertinente. Junto a estes, também temos a fonte corrente que, como tal, traz implicitamente o

movimento de modo a permitir uma presença que antes não se encontrava manifesta. Tal

presença se conduz na brotação própria de si mesma. Na língua portuguesa, fonte e origem

estão aproximadas semanticamente. Desse modo, nos permitimos compreender

Zugesprochenen, por extensão e aproximação de sentidos, como fonte originária e inaugural

que brota como fala. Não há dúvida de que a expressão a fonte da fala é, em si, um apelo que

traz consigo a fala. Aqui, a fonte da fala se dá, na medida em que fonte se encontra na mesma

perspectiva da fonte que concede água, da fonte de onde a água brota. Por isso é que podemos

nos referir à Zugesprochenen como: fonte originária e inaugural que brota como fala.

No entanto, o verbo sprechen (falar) acabou por não ser questionado mais

profundamente. Ele se apresenta proveniente do médio alto alemão sprechen e do antigo alto

52

Disponível on line no endereço eletrônico: http://germazope.uni-trier.de/Projects/DWB acessado em

06/08/2008.

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alemão sprahhan e tem origem inexplicada, surgindo, talvez, de uma relação onomatopaica53

.

Não revelando este muito que nos possa ajudar, podemos buscar auxílio, por extensão

semântica, em outra palavra com significado próximo a sprechen. A língua alemã dispõe do

verbo sagen que tem o sentido de dizer54

. Sagen provém do médio alto alemão sagen e do

antigo alto alemão sagèn que dizem o mesmo que: deixar ver, mostrar-se, exibir, expor, fazer

ver55

. Podemos, assim, compreender o falar enquanto o deixar ver, o mostrar-se. Portanto, a

fala e o dizer se aproximam posto que ambos se apresentam, na perspectiva aqui aventada,

como mostrar, fazer ver, brilhar56

. Devido ao encaminhamento posto, não achamos um

equívoco a opção por traduzir Zugesprochenen como “fonte da fala”, “a fonte de onde a fala

brota e surge e, nesse surgir, faz ver, mostra, mostrando-se”. Fonte está aqui posta no sentido

inaugural daquilo que essencialmente se traz. Dessa maneira, podemos dizer, sem problemas,

que esta seja a origem, a proveniência de algo. Assim, a fonte da fala é a proveniência, a

origem da fala, que na verdade é a origem de si mesma na presença extra-ordinária, aquilo

que traz-se como fala de modo próprio, a essência da fala que mostra, mostrando-se e faz ver.

Talvez se afigure o momento de relembrar um trecho do famoso fragmento de

Heráclito, o de número 50 onde este diz: “Auscultando não a mim mas o Logos...57

”. No

fragmento percebemos claramente que o pensador se coloca na possibilidade radical de

apenas apontar. Ele aponta para onde se deve ter a atenção de uma ausculta no sentido de uma

originariedade, onde quem fala, originariamente como origem, é o lÒgoj. Na atenção ao

lÒgoj deve estar o homem na disposição de ouvir de modo todo especial como ausculta.

Assim percebemos, na medida em que o pensador aponta indicando o lÒgoj como a

verdadeira origem do que se deve ter em atenção cuidadosa. É nessa mesma perspectiva que

devemos compreender o Zugesprochenen, tanto na tradução do prof. Carneiro Leão enquanto

“o apelo que nos traz a fala”, quanto na proposta por nós como “fonte inaugural e originária

que brota como fala”. Assim, a fala apenas apresenta determinada aparência de objeto. Não

devemos compreendê-la na relação gramatical, mas sim, a exemplo do fragmento heraclítico,

onde o lÒgoj é a origem. Corroborando com tal modo de proceder, Zugesprochenen se

mostra em si uma unidade enquanto palavra e, como tal, não pode trazer o aspecto de

separações por classes gramaticais a partir das expressões usadas no vernáculo para traduzi-la.

53

Duden, 2007, p. 1586-1587. 54

Idem, ibidem. Por extensão, esta palavra aparece no verbete sprechen como um de seus significados. 55

Idem, p. 1426. 56

Conferir discussão a respeito do dizer na p.96 do presente trabalho. 57

Heráclito in op. cit., 1999, p. 71.

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Assim, a passagem pode se apresentar na relação de entendimento que se dá como:

“nós escutamos quando pertencemos à fonte da fala, a fonte inaugural que brota como dizer

originário, este que mostra e faz ver, este que, como um dizer inaugural, é, em si, como um

mostrar-se.” Nas palavras de Heidegger não percebemos a conjuntura do só - como a

condição limitadora que impõe uma posição, onde, somente, assim aquele que se encontra na

dinâmica da escuta pode postar para a possibilidade de sua realização de modo efetivo - de

maneira mais explícita, isso aparece como uma ênfase de tradução do professor Carneiro

Leão. No entanto, o quando marca a condição fundamental: pertencer como um escutar à

fonte da fala, à fala inaugural de um dizer que mostra e faz ver. Em alemão, o pertencer dito

como gehören encontra-se diretamente ligado ao escutar, hören. Portanto, pertencer em

alemão é derivado direto da escuta e, por isso, é também escutar. Pertencemos porque

escutamos. Pertencer à fonte da fala é, especificamente, escutar a fonte da fala. Por isso, nesse

escutar, pertencemos a ela, pertencemos enquanto escuta. Então, é nesse sentido que Carneiro

Leão interpõe um só. Porque, somente quando pertencemos/escutamos à fonte da fala, este

que se traz como fala inaugural e originária, é que escutamos com propriedade. É que

escutamos como um acontecimento todo especial, como um cuidado todo especial por aquilo

que se dá e se mostra a uma escuta com propriedade. A proveniência, a fonte, a essência da

fala, se dá pelo modo como algo se apresenta. Assim, é uma fala extra-ordinária como fonte

de toda fala, a fonte de toda possibilidade de falar, a fonte originária de uma falar inaugural

que possibilita, sobremaneira, o romper e soar em palavras dos mortais. A fonte que brota

como fala é a condição fundamental de toda a realização da fala dos mortais que rompe

soando em palavras.

A fonte da fala é, enquanto apelo, também um movimento originário. Um movimento

de combate como anúncio inaugural, como o combate primordial da unidade. A proveniência,

a origem que brota como fala, o apelo, enquanto movimento do combate originário - que

sendo combate da unidade tensional se mostra originariamente enquanto fala inaugural - nos

têm de tal maneira que pertencemos a ele. Pertencemos porque, nesse pertencer, e para ele se

dar como acontecimento escutamos. Nesse pertencer/escutar, somos por ele abrigados e nele

subsistimos e duramos sendo, propriamente, o que somos, na sua guarda e cuidado. Mas,

diante de tais argumentos não podemos compreender que está dito que o homem é a escuta?

Mas, de onde vem esse apelo que - como movimento próprio do combate, da batalha das

diferenças enquanto afirmação de suas identidades, enquanto fonte que brota como fala - se

pronuncia de maneira inequívoca no proferir do pensador?

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Sem dúvida, ao prestarmos a devida atenção ao trabalho de Heidegger percebemos,

com clareza, que este apelo, que se mostra enquanto fonte da fala, é o apelo do real. É o apelo

como fundamento da insinuação de tudo o que se manifesta retraindo-se. É o apelo do que

está posto diante à disposição e, nessa disposição, se encontra já confrontando.

Pertencer/escutar ao apelo do real, este que nos traz a fala trazendo-a em sua propriedade,

enquanto unidade, é para o pensador aquilo que profere a própria escuta. No entanto, esta é

uma escuta que se dá com todo o cuidado, uma escuta toda especial. Ou seja, durar e subsistir

na fonte da fala, no apelo, enquanto convocação do combate originário, é escutar de modo

cuidadoso e todo especial. É escutar na propriedade do fundamento que se insinua na

obscuridade do sem fundo abismal. É um escutar pertencendo, um escutar que já pertence e,

somente assim, pode escutar. Esse apelo em sua insinuação é irresistível. Não há – da parte

dos que se encontram na disposição de recebê-lo estando sempre à disposição do mesmo -

possibilidade de se opor a tal magnitude. Na verdade, talvez oposição e resistência não sejam

os melhores termos. O que podemos dizer é que há, diante de tal apelo, dessa imposição da

fonte do mostrar-se que fala, uma busca pelo seu mistério de presença-ausência. É justamente

por tal imponência ofuscada pelo mistério, que o homem pode, paradoxalmente, procurar se

esquivar dele. É por isso que o homem pode não se encontrar diante enquanto disposto a uma

escuta profunda e originária, se colocando apenas na perspectiva de um ouvinte mais

superficial. De qualquer modo, devemos compreender que tal superficialidade também se

encontra resguardada e fundada no profundo da escuta originária, esta que habita o abismo de

mistério. Pois é próprio ao que se impõe por si, no vigor que lhe é peculiar, ofuscar e

dissimular a si mesmo na não verdade de seu aparecimento. De toda maneira, podemos dizer

que no escutar/pertencer à fonte do mostrar-se que fala, reside a guarda do homem.

De modo a corroborar com o afirmado acima trazemos, em auxílio, o fragmento de

Heráclito de número 119 que diz: Ãqoj ¢nqrèopou da…mwn. Na tradução de Carneiro Leão:

“A morada do homem, o extraordinário.58

” A partir de outra tradução proposta por Alexandre

Costa o fragmento se dá como: “A morada do homem, a escuta.59

” No momento iremos

considerar a segunda proposta de modo mais evidente, não que haja a desconsideração da

primeira. No entanto, ocorre que ambas serão tratadas com o devido cuidado no próximo

capítulo. Ao percebermos, a partir da tradução de Costa, a escuta na perspectiva própria de

morada do homem, então vemos reafirmado o dito que anteriormente empreendemos sobre o

escutar/pertencer onde reside a sua guarda. Entendida como morada, necessariamente, a

58

Op. cit., p. 90-91. 59

Costa, 2002, p. 230.

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escuta se mostra fora do domínio do homem. Tal percepção já se encontrava posta nas

discussões precedentes, e a proposta de tradução do fragmento heraclítico realizada por Costa

vem atestar-lhe de modo radical. Não há dúvida de que o termo morada não pode ser

compreendido no sentido apenas de moradia. Isso, até porque a tradução do grego Ãqoj é o

que se refere ao homem na maneira de ser habitual, na perspectiva do comportamento. O

habitual, neste caso, deve ser compreendido no sentido de ser próprio, do que, efetivamente,

diz respeito ao homem. Onde tal referência se mostra como um mundo em tensão com a

fÚsij que sustenta já abrigando este mundo em uma disputa originária. O Ãqoj é morada

nesta perspectiva, de modo a ser não apenas a moradia nem a habitação, nem os costumes ou

usos, mas de ser o que efetivamente diz respeito ao homem, o que lhe diz respeito. Assim,

engloba também os hábitos, habitações, costumes, comportamento etc. A respeito do

fragmento, em si, haverá tratamento mais demorado no próximo capítulo, como já dissemos.

O importante agora é compreendermos que a morada do homem, enquanto escuta, faz com

que o ele more demorando na escuta onde esta, primordialmente, se apresente como

referência para ele.

A percepção que se afigura para nós até o momento é a de que escutar, a partir da

investigação empreendida pelo dito de Heidegger, se mostra como reunir, ou ainda, estar na

disposição da reunião. Pertencer a esta disposição. Em suma, acontecer enquanto escuta nessa

reunião. Tal argumentação nos leva inequivocamente a questionar: o que é essa reunião? O

que se reuniria como escuta?

A reunião traz a possibilidade de escutar como um reunir, no seio do homem, o real

que se estende inequivocamente. O real que se encontra posto e, nessa postura, assim disposto

ao confronto radical na magnitude de sua imposição misteriosa. Escutar enquanto reunir é

trazer na escuta a insinuação própria da complexidade do mistério do real enquanto sua

manifestação-ocultamento. Sem dúvida, não podemos deixar sem consideração que uma das

possibilidades de tradução da palavra grega lÒgoj, em sua proveniência essencial, venha a ser

reunião. No entanto, sobre tal pretendemos discorrer com a devida profundidade em momento

oportuno mais adiante. A reunião se dá quando a escuta se insinua pelo pertencer/escutar que

dura, subsiste e perdura, na fonte que se mostra e faz ver como falar, na fonte que

efetivamente é origem enquanto fala inaugural e originária. Assim, o homem se encontra em

determinado privilégio por ser permitido nele brilhar, como acontecimento, a possibilidade de

tal reunião. Com isso, não estamos dizendo que tal possibilidade possa ser compreendida e

abarcada por ele. O que podemos dizer com mais clareza é que, enquanto reunião, somos e

não somos escuta na medida em que esta é também morada. Não devemos aqui cair no

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equívoco de trilhar o caminho que mostra o homem como dono da escuta e de toda reunião.

Desse modo, se procederia o deslocamento de todo o desenvolvimento das investigações até o

presente momento. Acontecer enquanto escuta, enquanto reunião fundada no seio da

complexidade ofuscante do real, é se encontrar, sobremaneira, de modo distinto em relação

aos demais entes do ser. Entretanto, acontecer como escuta enquanto pertencimento/escuta da

fonte que brota como fala, não é abarcá-la. É, antes de tudo, se dar na dinâmica desta escuta

de modo que ela demonstra o homem - como aquele que é aquilo que ele é em todas as suas

possibilidades e impossibilidades - de maneira profunda. É por isso que Heidegger diz que

para nos encontrarmos na dinâmica da escuta profunda temos que pertencer/escutar à fonte,

ao apelo da fala originária e inaugural. Pois somente escutamos porque escutando

pertencemos a algo que já se encontra além de nós, ao mesmo tempo em que se encontra

também em nós na medida em que nos é concedido receber o brilho misterioso de sua

verdade. Essa é a dificuldade paradoxal que o homem, como ente que é sendo ao seu modo, se

depara radicalmente. Ao mesmo tempo em que se mostra pertencente à fonte inaugural para

escutar originariamente, ele é também o lugar do acontecimento da reunião que traz o vigor

do apelo. É onde o anúncio inaugural da fonte da fala encontra o destino de seu envio, o

destino de seu brilho que se mostra resguardado no ofuscamento do seu mistério. O homem,

assim, acontece, em suma, como parte da reunião da escuta que reúne consigo o paradoxo do

apelo do real em seu mistério. O paradoxo que no brilho manifesto de si mesmo se mostra

encoberto e misterioso. Desse modo, o próprio homem é nessa dinâmica misterioso para si.

Ele é misterioso por pertencer a essa fonte, por pertencer ao apelo de tal anúncio inaugural na

medida em que se encontra na disposição e na disponibilidade da escuta. Assim, a escuta não

é e não pode ser o homem de modo totalizado, da mesma maneira que este não pode abarcar e

congregar a possibilidade de acontecimento da escuta. Ela realmente se dá como e quando se

revela o pertencer escutando ao apelo do anúncio inaugural, que no homem encontra o destino

para brilhar e manifestar o seu mistério. Ao homem é consentido congregar tal possibilidade

paradoxal e ambígua, de modo que ele se dá sendo e não sendo essa reunião, que ao mesmo

tempo ele compreende sem compreender posto que ela sempre lhe ultrapassa. Desse modo, a

princípio, dizemos que escutar é um reunir ou, pelo menos, estar na disposição da reunião

enquanto acontecimento originário. É um estar na disposição do reunir que escutando

pertence e faz pertencer à fonte que, mostrando-se, brota como fala enquanto anúncio

inaugural que apela na violência do combate originário.

Na intenção de complementar a investigação proposta, devemos levar em

consideração que em outra passagem do mesmo trabalho, Heidegger nos diz ainda: dizer o

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Zugesprochenen; a fonte, o anúncio inaugural, o impulso primordial, o apelo que nos traz a

fala (o que diz o mesmo que o grego lšgein) é “deixar o real disponível no seu conjunto60

”.

Procurando uma tentativa de tradução no intuito de em conjunto com a presente buscarmos

outra possibilidade de compreensão, a passagem em alemão diz: “Das Sprechen des

Zugesprochenen ist lšgein, beisammen-vor-liegen-lassen61

”. Que pode também ser lido

como: “O falar da fonte primeira, do impulso primordial, do anúncio inaugural que, como

apelo, se mostra fala inaugural e originária é lšgein, este é de maneira própria o dito que é e

está no grego lšgein, deixar o que se põe diante reunido.”

Aquilo que se põe diante é o que se dispõe, é o que se põe na sua própria ordem, o que

se põe com o seu próprio arranjo. O alemão liegen é o estar deitado, o se encontrar. Este

provém do antigo e médio alto alemão ligen62

. Ligen se mostra no trabalho de Pokorny como:

jazer, estar deitado, estar colocado, conservar-se. O termo se mostra derivado da raiz indo-

européia *leght que diz: pôr, colocar embaixo, jazer no chão63

. Nesse sentido, o professor

Carneiro leão traduzindo vor-liegen pelo dispor do disponível abarca tal dinâmica. Isso

porque o que se mostra posto em seu próprio arranjo, em sua própria ordem, é o que se põe

diante e se impõe em seu conjunto, em sua integridade, em seu total. O real que o professor

interpõe na tradução já vem nos adiantar como uma explicação e um desdobramento do que se

dispõe a si mesmo em seu conjunto. Porque, assim, está dito que o que se põe diante em seu

arranjo, em sua ordem, desse modo se dá, porque consigo já traz a sua unidade própria

reunida em si mesmo. Ora! O que pode trazer a sua unidade reunida em si mesmo não é senão

o real, na medida do ser que se põe diante na imposição de sua presença de mistério e que,

assim, nos convoca ao confronto de sua verdade.

Escutamos quando pertencemos/escutando a fonte inaugural, ao impulso que, em seu

apelo fundamental, nos traz a fala se concedendo em sua dádiva de mistério. Tal fonte

inaugural, o apelo que traz a fala, também é em si um falar. Este pode ser dito, do mesmo

modo, enquanto o apelo da fala. Assim se dá, porque se a fonte, a proveniência inaugural, o

apelo traz a fala, de todo modo traz-se brotando como fala, assim podemos dizer que este

apelo é da mesma forma um falar como fonte. De modo que tal possa ser dito sem com isso

incorrer em inversões de âmbito e profundidade. Assim, fazendo-se referência a outro texto de

Heidegger, intitulado no original Die Sprache64

dizendo na tradução para o português “A

60

Heidegger, 2001 d, p. 190. 61

Op. cit. p. 220. 62

Duden, 2007, p. 1079-80. 63

Pokorny, 1994, ver raíz legh. 64

Heidegger, M. UNTERWEGS ZUR SPRACHE. Band 12. Vittorio Klostermann. Frankfurt.

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linguagem”, podemos dizer que a fonte inaugural, a proveniência do anúncio como apelo da

fala, o seja da fala da linguagem. Desse modo, podemos dizer porque em tal trabalho o autor

profere de modo recorrente para marcar a fundura e a profundidade do seu dizer: “Die

Sprache spricht65

” “a linguagem fala66

”. Pertencer a essa proveniência inaugural, à fonte que

apela brotando como fala da linguagem, pode ser dito com as próprias palavras do autor no

trabalho sobre o fragmento 50 de Heráclito como: o “deixar o real, que se de-põe e pro-põe

em conjunto, dispor-se, como um todo em sua disponibilidade67

”. A passagem na íntegra em

seu texto original diz: “Dem Sprechen gehören - dies ist nichts anderes als: jeweils das, was

ein vor-liegen-Lassen beisammen vorlegt, beisammen liegen lassen in seinen Gesamt68

”.

Mais uma vez fazendo a tentativa de tradução do dito, ele diz: “Pertencer/escutando a esse

falar (ao falar do Zugesprochenen, o falar da fonte, da proveniência essencial, do anúncio

inaugural que brota como fala) não é outro senão: a cada vez, deixar o que se encontra posto

diante (disposto) reunido, deixar o posto reunido em seu total.” Encontra-se claro que o posto

diante, o disposto diz o mesmo que anteriormente foi tratado com o auxílio da tradução do

prof. Carneiro Leão, “o real que se dispõe, que se depõe e propõe reunido em si mesmo”, em

sua unidade de reunião posta de si para consigo mesmo. Este que se dispõe, se mostra em sua

unidade de reunião de maneira íntegra, em sua totalidade. Uma totalidade que se basta a si

mesma, uma totalidade que se dá sendo aquilo que ela é misteriosamente.

Pertencer/escutando ao falar inaugural dessa fonte, desse apelo, é deixar o que se

dispõe, o que se põe diante, reunido em sua unidade. Ou seja, deixar o real ser aquilo que ele

é sem qualquer outra interferência. Deixá-lo ser, em suma, diz: escutar com atenção e cuidado

a manifestação de seu brilho misterioso na intenção de encontrar-se na disposição da sua

verdade posta e encoberta. Os verbos de-por e pro-por insinuados na tradução de Carneiro

Leão dizem: 1) deixar de fora, como aquilo que se dá e se oferece à apreciação, ao confronto;

2) o oferecer, o anunciar, como a dádiva do que misteriosamente se retrai ao mesmo tempo

em que se insinua.

Portanto, como pertença a tal anúncio, enquanto fonte primeira, é que o homem

escuta, ou melhor, é que ele pertence escutando e, assim, é também escuta não podendo detê-

la em si mesmo. Mas, ao mesmo tempo sendo onde esta se manifesta. Por isso, pode ser dito

que escutamos enquanto pertencemos por escutar ao chamado das coisas, à vocação que é o

apelo da proveniência essencial. O apelo da fonte inaugural que se mostra no seu falar

65

Idem, p.10. 66

Heidegger, M. 2003, p. 9. 67

Op. cit. p. 190. 68

Op. cit. p.220.

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primigênio e originário. Essa é a doação do real como ser, assim é uma doação como lÒgoj,

como o se dar enquanto o posto diante, como o disposto disponível em sua disponibilidade

posta, que se encontra reunido enquanto real em si mesmo. Portanto, podemos dizer que o

apelo da fonte da fala inaugural e originária é o apelo da fonte da fala da linguagem. No

entanto, o que venha a ser tal fala da linguagem e, ainda, como esta se dá enquanto fonte,

devemos investigar. Tal investigação deve proceder a partir do que, de modo próprio, venha a

ser a fala.

A partir de algumas observações podemos dizer que a escuta nesse

pertencimento/escuta se mostra em conjunto. Devemos reafirmar que ao mesmo tempo em

que falamos de um pertencimento/escuta se referindo à escuta do homem - onde diz o

pensador: “Nós escutamos”- não se deve achar que esta se encontre restrita ao homem ao

modo de uma propriedade. Aqui, não estamos tratando de uma escuta específica dos mortais e

de outra escuta enquanto algo mais originário. O que pretendemos é tratar da escuta cuidadosa

que, como já dissemos, é e não é dos mortais posto que sempre nos ultrapassa. Escutar está

além apenas de nós. Esperamos que, com o caminho até agora posto, possamos estar livre de

dúvidas quanto à objeção que apresenta o homem como o detentor da escuta. Quanto a esse

posicionamento reiteramos que à fonte inaugural, ao apelo da fala da linguagem pertence a

escuta. Portanto, a fala da linguagem traz - em uma unidade harmônica que tem o combate

originário enquanto a tensão que o move pela copertinência das diferenças frente às

identidades - aquilo que lhe pertence. Nessa pertença e por essa pertença, ela se consuma

como fala. Pois a fonte da fala da linguagem se dá enquanto aquilo que lhe pertence -

formando uma unidade, a unidade do mesmo - consuma o seu postar-ser diante, a sua

disponibilidade pro-posta e de-posta enquanto o mesmo de si mesmo e o outro. Falar e escutar

se mostram reunidos.

A escuta e a fala

A escuta se dá como a possibilidade de estar na disposição da reunião. Tal reunião da

escuta, enquanto algo que é e não é dos mortais, sem dúvida é uma reunião originária. É

originária porque se refere à fonte inaugural, ao apelo como proveniência essencial da fonte

da fala da linguagem. Assim, a fonte da fala da linguagem pode enviar-se destinadamente

enquanto o que se põe diante, como disponibilidade de-posta e pro-posta no desvelamento

misterioso do seu mostrar-se retraidamente que assim se dá verdade já como não verdade.

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Será que diante de tal argumentação não nos encontramos em face de um

posicionamento que elege o homem como centro, ou seja, um humanismo? Será que ao

dizermos que a fonte da fala da linguagem se envia destinadamente para a escuta, que é e não

é dos mortais, não estamos conferindo a estes últimos uma importância demasiada?

Devemos, na tentativa de responder as objeções precedentes, num primeiro momento

argumentar questionando que: não é a partir deste enviar-se destinado, nesse envio sábio69

que

o lÒgoj, enquanto reunião, se doa e se prontifica para uma escuta? Na verdade, não é ele que

a possibilita na perspectiva de ser o que ela é, já que esta lhe pertence enquanto pertença

originária? Que esta, a escuta, se dá como destino de tal envio, o envio do lÒgoj, o envio

sábio que destina a si mesmo porque permite tal destinação e nela se consuma enquanto fonte

inaugural? Assim, não percebemos que a escuta está entrevista na perspectiva de uma

referência, em uma reunião?

Com as questões anteriores que, na verdade, se revelam como uma tentativa de

retornar ao que já foi dito até o presente momento, percebemos que aos mortais não estamos

imprimindo importância demasiada. Isso porque o fato da escuta ser e, ao mesmo tempo, não

ser dos mortais acaba por lhes demonstrar em seu posicionamento próprio. Eles são parte

deste destino, parte do destino enviado sabiamente enquanto reunião originária. Porém,

podemos ainda interpor uma objeção com as seguintes questões: será ainda que esta fonte

inaugural está sempre presente se destinando a qualquer ente que pertença ao ser? Na verdade,

enquanto fonte originária que brota como fala, de modo inaugural e misterioso, está sempre

disponível na medida em que, na disponibilidade de-posta e pro-posta, se encontra posta em

conjunto em sua unidade? Ou seja, será que o envio que se destina, o envio sábio, é sempre

enviado a espera de um destino que o consuma na pertença da escuta, destino este regido por

uma indeterminação essencial?

Todas as questões que se apresentam são demasiadamente profundas e podem deixar

sem rumo os que a elas se procuram render na intenção de buscar um norte. Isso porque nos

encontramos embrenhados na fundura que se encontra resguardada no abismo de

simplicidade. No entanto, achamos que o risco não se apresenta como uma paralisia nas

investigações. Nosso propósito é investigar o que se dispõe ao questionamento e mergulhar na

fundura do abismo do ser e do não ser na busca por um alento de sua verdade e não verdade.

Na medida em que tomamos como verdade que a escuta pertence à fonte originária -

ao apelo que, enquanto combate originário, traz consigo o mostrar-se como fala da linguagem

69

Expressão empregada por Heidegger recorrente em trabalhos que investigam o lÒgoj para dizer do envio

próprio do que envia-se a si mesmo enquanto o lÒgoj acolhedor.

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resguardada em seu mistério – se justifica o questionamento da destinação de tal fala como

está manifesto nas objeções anteriores. A princípio, não há a possibilidade de saber se a

destinação em questão se dá de modo irrestrito. Isso porque, até onde podemos perceber,

temos por verdade que o homem é o único ente que se encontra na dinâmica e na disposição

da linguagem. Assim, estamos dizendo que o homem é o único ente que se manifesta na

disposição de corresponder ao que lhe é enviado. A ele é concedido corresponder ao brilho

misterioso da manifestação do encoberto. Isso somente se dá porque ele se mostra como

aquele que é o que ele é por pertencer à fonte inaugural que brota como fala, a esse apelo

combatente originário. Desse modo, pertencendo a tal apelo é que lhe pode ser destinado o

envio sábio. Pois, escutar enquanto auscultar, enquanto escuta cuidadosa e de modo todo

especial, é a escuta do que, como reunião originária, se dá já no lÒgoj. Assim, reiteramos o

que já foi dito anteriormente: a escuta não pertence ao homem, mas sim ao lÒgoj e a

linguagem. Mas, sem dúvida, esse não pertencer é também e ao mesmo tempo um pertencer,

já que dela ele participa inequivocamente. Vigora, então, o paradoxo de uma pertença sem

posse, de uma pertença como pura referência.

Resta ainda discutirmos se a integridade do que se põe diante (do que se dispõe) em

sua própria unidade se encontra preservada em sua referência com a escuta cuidadosa. Pois, se

for na escuta, como ausculta, que vigora a disposição da unidade do que misteriosamente se

põe diante, deposto e proposto, então a referência com os mortais se mostrará de maneira

inseparável. Assim dizemos, porque a ausculta não se faz sem a correspondência ao que se

insinua posto diante na sua manifestação misteriosa. Sendo assim, a escuta como a guarda da

unidade do deposto e proposto em sua disposição, se revela pertencente ao que se insinua. No

entanto, ao mesmo tempo, para se realizar como aquilo que é, se mostra enquanto o destino da

guarda da unidade do que se dispõe. Portanto, a escuta se encontra em um limiar. Ela se

revela na liminaridade de fazer parte de ambos. Isso, até porque o homem, em si, pertence ao

ser, este lhe é o fundamento resguardando-o enquanto aquilo que ele é em si mesmo. A escuta

então pertence ao ser. Pertencendo ao ser ela perdura. Perdurando sendo o que ela é, a escuta

brilha no homem nele se consumando como parte de sua constituição. Ou seja, a escuta assim

se consuma, porque o homem é parte da constituição da escuta na medida em que esta o

revela como tal. Em contrapartida, o homem, de forma igual, a mostra em conjunto com o que

se dá misteriosamente, já que a escuta lhe convoca para sua unidade.

Dessa maneira, não há a possibilidade da argumentação presente se sustentar a partir

de bases humanistas. Não há homem fora da escuta, pois esta, pertencendo ao lÒgoj e a

linguagem, se manifesta nele como um pertencer escutando que dura e subsiste neste durar. É

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neste escutar, ao mesmo tempo, onde o homem encontra guarida e morada justamente à fonte

inaugural, à proveniência essencial que, como apelo combatente da unidade, brota como fala

da linguagem. Este pertencer/escutar tem que se dar em uma relação de proximidade e de

intimidade. Pertencer escutando propriamente à fonte inaugural, ao apelo que se traz como

fala da linguagem é estar no pressuposto de unidade e relação íntima com o que se mostra

retraído. Isso, de modo que esta unidade originária se traz como fala nos trazendo também a

possibilidade de dizer o que se mostra ocultando-se. O que se mostra ao mesmo tempo em

que se oculta já diz a si mesmo como fala da linguagem, e esta última é a que

inequivocamente fundamenta a fala de todo mortal. Fundamentando a fala de todo mortal, a

fonte da fala se envia no resguardo de sua unidade tensionalmente posta, se destinando

cuidadosamente à escuta que lhe pertence. Neste enviar-se que se dá de modo misterioso a

fala dos mortais se sustenta. Assim, podemos dizer que a fala dos mortais também encontra

suporte na escuta originária, bem como na fala essencial. Devemos ter claro que o dito acima

não pretende proferir que a guarda da unidade do que se põe diante se encontra com os

mortais. Mas sim, que a postura radical confia a sua unidade tensional à escuta como ausculta

primordial, esta que lhe pertence e que, de algum modo, pertence e não pertence aos mortais

se manifestando neles.

Os movimentos aqui acontecem em círculos e tal circularidade tem a aparência de que

não saímos do lugar. Possui a aparência de que, com ela, não chegamos a lugar algum. Por

conseguinte, podemos dizer que toda investigação vem a se revelar sem objetividade. No

entanto, mais uma vez reiteramos que a objetividade aqui é dispensada. Questões como as

apresentadas até o momento não pedem a pressa apressada que vigora na relação cronológica

imperante, onde o tempo originariamente já foi esquecido. O círculo acontece porque

entendemos a fonte inaugural que se traz como fala da linguagem - a qual pertence uma

escuta enquanto ausculta, já numa conjuntura – se dá somente onde o diá-logo se mostra

sempre presente. O círculo se manifesta no diá-logo que se revela de maneira misteriosa. Em

seu mistério o diálogo traz, como circularidade, a possibilidade do um e do outro ao mesmo

tempo se mostrarem na retração própria. Assim, podemos compreender com maior clareza as

palavras de Heidegger quando este diz que o pertencer escutando à fonte da fala, ou seja, o

escutar como ausculta cuidadosa e de modo todo especial, é: “um deixar o real disponível em

seu conjunto70

”.

70

Op. cit. p.190 (trad. Carneiro Leão) e p. 220 (no original) traduzido por nós como: “deixar o posto (disposto)

reunido em seu todo, em seu total”.

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Agora a escuta como ausculta nos revela outra possibilidade de pensar que, na

verdade, se fundamenta no mesmo. Um novo horizonte se apresenta nas palavras de

Heidegger, um horizonte que, antes de esclarecer, vela ainda mais o que buscamos. Interpõe-

se a questão: a escuta, que se encontra em questão, além de ser o que na investigação se

mostrou é também um deixar? É claro que ela não é um deixar de modo independente, mas

um deixar condicionado pelo que ela em si deixa. Todavia, o que podemos entender por esse

deixar? O que nos diz deixar no original em alemão lassen?

O verbo alemão lassen, que tem sentido próximo do verbo português deixar, deriva do

antigo alto alemão lazzan e do médio alto alemão lazen. Ambos possuem sentido original

primitivo de: fraco, débil, ser frouxo, brando71

. Não contentes com este esclarecimento, nos

resta procurar pelo sentido da palavra portuguesa “deixar”, de modo que ela venha nos trazer

algum aceno. A princípio, parece que o verbo português diz, no sentido semântico, abandono,

separação, permissão, significando dar permissão. Contudo, pode ainda aparecer ligado à

posse e, com isso dizer: pôr, colocar; ou ainda, levar, conduzir. No entanto, a semântica acaba

por não nos apresentar um esclarecimento satisfatório de modo que optamos ainda por buscar

de modo mais aprofundado.

Morfologicamente a palavra deixar se encontra na família de deixa (laxação) que diz

“ato ou efeito de deixar; separar-se; permitir; lassidão; o que se refere a frouxo, desimpedido e

purgativo72

”; Tal, de algum modo, corrobora com o que, etimologicamente, o verbo alemão

lassen diz. Podemos notar sem grandes dificuldades a proximidade entre a palavra portuguesa

lassidão, que diz do o estar fatigado, esgotado, frouxo, entre outros, e o verbo alemão em

questão. Entretanto, há controvérsias sobre a origem do termo português. Segundo a mesma

fonte, lassidão deve se originar do latim langueo, languere que diz do que é fraco, débil, ser

indisposto para ação, ser fisicamente lento, sem energia73

. No entanto, investigando a partir

do dicionário de Antônio Houaiss este nos diz algo diferente. Pois o verbo português se

apresenta derivado do latim laxo que vem de laxus que diz do que é amplo, vasto, extenso,

largo, aberto74

.

Na medida em que tomamos deixar neste último sentido (enquanto vasto, amplo,

aberto) entendemos não haver no dizer de Heidegger nenhuma debilidade ou fraqueza no que

se refere à escuta. Na verdade, podemos dizer que o próprio alemão lassen não é a melhor

palavra para expor o que o pensador pretende, pois que corrobora com a fraqueza e a

71

Duden, Op. Cit. p. 1050. 72

Back, Massing e Heckler. 1984, p. 1475. 73

Saraiva, 1993, p.659. 74

Idem, p.667.

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debilidade. Nesse sentido, o verbo português deixar pode corresponder de forma mais efetiva

enquanto o estar aberto por ser amplo, largo, vasto. “Deixar o que se põe diante (o real que se

dispõe, se depõe e propõe) reunido (em seu conjunto)”, não é uma debilidade da escuta, na

verdade, é antes uma força. A força, de modo próprio, é estar na disposição de deixar o real

disponível na sua unidade de reunião, no seu conjunto que se põe arranjado. Deixá-lo no seu

próprio arranjo, que se põe na sua própria ordem. Percebemos que há uma relação íntima com

o que se põe diante (dispõe), ou seja, o real, e a própria escuta que assim lhe pertence. Por

isso, optamos por tomar o caminho apontado por Antônio Houaiss, na medida em que permite

a compreensão de deixar como uma atitude de estar aberto, por ser amplo, largo, vasto.

Podendo ousar um pouco mais, podemos entender o deixar da escuta se revelando enquanto

uma abertura para receber aquilo que se destina à um envio, enquanto o enviar-se próprio do

anúncio inaugural, da fonte essencial, da proveniência da fala da linguagem que se envia

sabiamente na espera de sua guarda cuidadosa.

No entanto, talvez o sentido mais correto para o termo em discussão, o próprio

Heidegger responda no texto “A essência da linguagem”, quando diz sobre o fazer uma

experiência com algo. A passagem diz o seguinte:

Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com um

deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos

avassala e transforma. “Fazer” não diz aqui de maneira nenhuma que nós mesmos

produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido de

atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos com ele. É

esse algo que se faz, que se envia, que se articula.75

O termo lassen nos dicionários semânticos de alemão também traz o sentido de fazer,

realizar, ao modo como o próprio autor os esclarece. No entanto, a opção se dá aqui na

permanência do sentido de abertura para ele, pois entendemos que, como abertura, mais é dito

sobre a originariedade do termo esclarecendo de modo contundente à própria escuta. De

alguma maneira, o receber exposto no dito de Heidegger revela essa abertura, pois, para

receber algo devemos estar abertos, ou melhor, nos oferecermos como abertura para que esse

algo possa se manifestar na proximidade, para que esse algo possa ser recebido. Então, não se

afigura arbitrário o entendimento de deixar enquanto o estar aberto por ser amplo, vasto,

largo, na compreensão do alemão lassen. Este pode, por uma impossibilidade da língua, não

condizer propriamente ao que se encontra em questão, pelo menos no que se refere a

perspectiva aqui aventada.

75

Heidegger, 2003, p. 121.

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Deixar, assim, é um estar aberto na vastidão e liberdade enquanto abertura. Abertura

enquanto escuta onde o que se põe diante (dispõe), em suma, o real, se põe disponível no seu

conjunto, no seu todo, já misteriosamente. Entendemos que a destinação do homem é poder

habitar nessa abertura. É viver nessa abertura de modo que, também, e propriamente, ele se dê

em tal abertura como escuta a qual se destina o envio sábio. É essa escuta que, de maneira

própria, pertence àquilo a que é destinada. Tal pertença se dá de modo que a fala da

linguagem e a escuta dessa mesma fala não se mostram separadamente na manifestação

própria de seu mistério, na verdade já como não verdade.

Portanto, se afigura o momento de dizermos que a linguagem se con-suma na

referência fala-escuta. Aqui o anúncio inaugural, a fonte essencial da fala da linguagem

encontra seu destino. Tal destino é a escuta enquanto ausculta originária, cuidadosa, de modo

todo especial. A escuta pertence, de modo próprio, ao que se põe diante, deposto e proposto

na disposição de sua unidade se enviando para a guarda cuidadosa dessa ausculta. De tal

ausculta também fazem parte os mortais. Estes, lhes sendo concedido participar dela, podem

receber o que se envia para a abertura. Devemos enfaticamente dizer, mais uma vez, que à

ausculta também pertencem os mortais, onde a escuta, que é ao mesmo tempo em que não é

destes últimos, pertence ao que se de-põe e pro-põe como real disposto em seu conjunto, em

sua unidade. Portanto, os homens são também essa escuta, vivem tal escuta porque, de alguma

forma, pertencem ao apelo combatente do real enquanto estão abertos como participantes da

abertura para o que se põe diante deposto e proposto. Ser todo ouvidos é propriamente o que

faz do homem ser mortal porque sabe a morte que se posta de modo íntegro para a ausculta e,

assim, deposta e proposta em seu mistério. Somente por tal escuta é que o homem é mortal

como aquele que sabe e vive a morte. Essa escuta, que é e não é dos mortais, é um reunir

como estar aberto. Ela consiste em reunir sendo ao modo da abertura que, enquanto abertura e

enquanto mortais, não se vê, de modo algum, separada do que se dá como a complexidade de

um mundo instituído e constituído, abrigado e sustentado pela fÚsij em seu vigor,.

Na unidade, que se revela fonte da fala da linguagem e escuta de modo essencial como

ausculta, a linguagem se mostra em sua plenitude. Ou seja, a linguagem é revelada na

referência essencial de sua constituição. Isso, na medida em que, abrigada na profundidade do

abismo do nada, ela se dá na verdade e não verdade de si mesma na guarda própria do ser e do

não ser. Pode haver talvez a possibilidade de dizê-la a partir da plenitude da sua essência, do

seu ser fundamentada no sem fundo de modo próprio na tensão lÒgoj/fÚsij. Como unidade

tensional ela se revela misteriosamente na plenitude de si mesma. A unidade da linguagem se

diz como: a fonte da fala da linguagem em seu apelo de movimento, em seu combate

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originário; e a escuta como ausculta essencial e originária pertencente ao real que se dispõe

em sua unidade de reunião, posta e confiada à escuta originária para ser guardado com todo o

cuidado. Nesta última é que se fundam os mortais e o mundo que os abriga. Nesse sentido, a

linguagem é sempre diá-logo. No entanto, não restam dúvidas de que estas afirmações são

exposições preliminares. A respeito da linguagem muito falta que ser investigado. Portanto,

na esteira do diálogo, que até o momento se apresenta como um caminho para discutir,

devemos ainda auscultar a fala, de modo mais evidente, na tentativa de que ela possa nos

mostrar algo.

Fala

O que vem a ser fala e falar? De alguma maneira, já antecipamos na discussão

precedente o que se deu pronunciado como “fala da linguagem”. No entanto, aqui devemos

procurar aprofundar a investigação. Dissemos que a linguagem em um de seus aspectos é uma

referência de unidade tensional de fala-escuta. Devemos ter o cuidado em compreender a

referência dentro dos pressupostos ora trabalhados. Assim, cuidadosamente devemos verificar

a verdade dessa referência e da própria linguagem. Ou seja, devemos questionar, de modo

próprio, se tal unidade é verdadeira para dizer a linguagem na sua plenitude originária.

Sem maiores impedimentos a referência em questão é mostrada no diálogo. Tal

evidência é notada com maior facilidade nas relações e nas conversas dos homens. Assim,

percebemos claramente que falar é algo que faz parte do homem, ou melhor, se manifesta com

o homem enquanto aquele que é o que ele é. Incluímos nesse aspecto todo o âmbito de

profundidade do ser que fundamenta o homem na delimitação radical de sua identidade frente

às diferenças. O ser, assim, mostra as relações do que ele é, do que não é, e de todas as suas

possibilidades de poder e não poder ser o que é e o que não é, sempre resguardado na

simplicidade do abismo. Isto, porque a fala aparentemente mais próxima do homem – a que

ele fala em seus discursos - não é uma coisa que já venha com ele. Ela se forma por um

aprendizado. Na verdade, leva um bom tempo para se aprender a falar, seja no Ocidente ou

Oriente, em cultura letrada ou iletrada, resguardadas as especificidades de cada uma. Há

dificuldades diversas ao aprendizado da fala, sejam as dificuldades da coordenação dos

movimentos da boca e da língua, seja a própria associação de idéias e fatos etc. Tais

dificuldades vão lentamente cedendo lugar à habilidade em corresponder as expectativas do

falar. Assim, o dito que profere corriqueiramente que é natural ao homem falar cai por terra.

Posto que apenas a partir de um contexto de mundo instituído e constituído é que tais

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habilidades dispostas enquanto fala podem se dar. Esse mundo, enquanto complexidade,

ultrapassa o homem, posto que ele somente o é formado numa tradição que o acolhe.

Mas a fala, percebida apenas a partir da relação de maior aparência de proximidade

com o homem, não condiz com o que vem sendo tratado ao longo do trabalho de um modo ou

de outro, qual seja: o de que as coisas dizem a si mesmas; de que no mostrar-se das coisas o

próprio mostrar já é a fala que se insinua dizendo. No entanto, nos cabe questionar: como se

pode saber desta fala, a fala primordial, originária e inaugural, se nem a fala, enquanto se

manifesta mais próxima dos mortais foi devidamente investigada? Esta fala que os mortais

falam por ela assim emanar neles, a fala que soa e se rompe em palavras sonoramente? Nesse

aspecto, a fala precisa ser investigada de modo que possamos trazê-la em sua originariedade

no seu mistério próprio. Tal mistério vem a ser a correspondência do homem ao poder falar a

fala que se rompe sonoramente e assim se mostra. Bem como o que transcende apenas a

sonoridade na referência do gesto, posto que o corpo, que se mostra à disposição na fala, não

se dá apenas enquanto boca. De qualquer modo, assim, devemos ter claro que o falar que se

manifesta no homem não se encontra restrito apenas enquanto palavra de modo usual. Assim,

nossa procura deve se pautar em uma compreensão do todo, no que se refere ao homem, na

medida em que é também corpo. Como corpo, o homem se encontra na disposição de falar a

fala que se mostra nas línguas e discursos com todo seu corpo. Portanto, a fala não se

encontra destituída da possibilidade gestual que é já parte dela mesma. Assim, tudo o que for

aqui buscado na medida de um esclarecimento da fala, enquanto próxima do homem, já, em

si, deve se dar na medida em que ela se mostra no âmbito do corpo. Assim, ela se mostra

acompanhada da sonoridade, bem como de todas as possibilidades que o corpo nos traz. Em

tal perspectiva, bem nos esclarece Carlos Varela na letra da canção “Una palabra”, onde diz

nos dois primeiros versos da segunda estrofe: “Una mirada no dice nada / y al mismo tiempo

lo dice todo76

”. Assim, a fala se encontra na compreensão de que com o corpo, enquanto

unidade, dizemos tudo na medida de um único olhar, este que ao mesmo tempo em que

esconde assim também revela. Portanto, toda a investigação pela própria fala na perspectiva

do homem assim o deve levar em conta. Mesmo porque, enquanto palavra ao modo mais

usual, o que é que a música diz? Absolutamente nada, pelo fato de se articular alijada da

palavra ao modo como a pronunciamos usualmente. Portanto, na referência do homem com a

música, na medida das obras musicais, tal se dá num diálogo. Este misteriosamente se

apresenta revelando o homem por inteiro quando de seu diálogo com a obra que, assim, já o

76

Varela, C. Una palabra. Disponível no endereço eletrônico:

HTTP://www.carlosvarela.com/lirica/48_palabra.asp acessado em 20 de janeiro de 2009.

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exige convocando. Por inteiro, na medida em que um intérprete assim se dá a interpretação de

uma obra de corpo inteiro. Ele se dá na gestualidade e na entrega, bem como ainda o ouvinte,

também de corpo inteiro se mostra na recusa ou aceitação da convocação que o conclama.

Portanto, a fala, na perspectiva mais próxima do homem, se dará como o soar e romper

sonoramente. Ela, em si, já é também gesto na medida de que o corpo inteiro do homem se dá

convocado e disposto por tal dinâmica.

Na tentativa de buscar algum êxito nessa empreitada selecionamos algumas palavras

que mantêm relação com a fala e o falar. No seu sentido semântico a palavra fala apresenta,

dentre outros, os sentidos de: exprimir por meio de palavras, conversar, dizer, declarar,

demonstrar, revelar, dialogar, anunciar. A primeira acepção, por se tratar especificamente de

representação, não encontra amparo no curso que segue a investigação. Desse modo, a seleção

acontece quando pretendemos o esclarecimento dos termos: demonstrar, declarar, palavra. O

dialogar não figura em tal lista por aparecer como tema específico na investigação maior.

Posto que estamos em busca de um esclarecimento da escuta e da fala de modo a estas terem

sua acolhida no diálogo. Na medida em que tal investigação possa nos aproximar da

linguagem foram ainda colhidos os termos: voz, verbo e falar. A intenção é que, pelo fato de

investigarmos tais termos, haja a possibilidade de encontrarmos alentos que sirvam de guia

frente ao abismo do ser e do não ser. Por onde o que nos guia permita ser possível a posse de

alguma referência frente à profusão de possibilidades que este traz no resguardo da verdade.

Assim, na medida da convocação que nos toma, continuamos a questionar. As investigações

que se seguem pretendem se articular na medida de um aprofundamento do sentido de cada

termo. Portanto, vamos dispor dos recursos que se fizerem necessários para que tal possa se

dar ao modo do que nos exige o chamado.

A) Demonstrar

No sentido semântico demonstrar quer dizer: tornar evidente através de provas,

expressar, manifestar, expor, apresentar, mostrar, entre outros. Como a primeira acepção já

nos traz a mediação, dela nos afastamos. Nas acepções subseqüentes podemos perceber que a

palavra se relaciona intimamente com o mostrar na medida de um movimento de expor, de

pôr para fora. No entanto, como tal movimento e postura se articulam é que nos carece a

investigação. Procurando maior aprofundamento por outra via podemos constatar que a

referida palavra provém do latim demonstro com os sentidos de: fazer ver, dar a conhecer,

indicar por palavras ou gesto, comprovar, oferecer, recomendar. Tal palavra latina é formada

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pela preposição de- adicionada de monstro. O latim monstro apresenta sentido próximo a

demonstro e diz, dentre outros: mostrar, indicar, designar, dizer, dar a saber, dar a conhecer,

expor, revelar. Monstro se mostra oriunda de monstrum que é tudo o que foge da natureza, o

que é estranho, extraordinário, o prodígio que anuncia a vontade dos deuses, coisa espantosa,

maravilha. Segundo Emile Benveniste monstrum

deve ser compreendido como um conselho, um advertência feita pelos deuses. (...)

Uma advertência divina tomará o aspecto de um objeto ou de um ser sobrenatural,

como diz Festo 'chama-se de monstra o que foge do mundo natural, uma serpente

que tem pés, um pássaro com quatro asas, um homem com duas cabeças' 77

.

Os termos latinos anteriores são provenientes de moneo que provém já de memini, tendo este

último o sentido de: reter na mente, na memória, relembrar um fato, relembrar pela

experiência, relembrar vendo, ouvindo, ser atento (cuidadoso) prestar atenção. Memini pode

ser comparado ao grego mšmona que se revela como: ser furiosamente, ou muito impaciente,

muito ardente. Segundo Bailly, mšmona vem de mšnw, que diz: ter um desejo, desejar,

almejar, querer; bem como ficar, permanecer, esperar. Nos dicionários de Lidell & Scott-

Jones, bem como em Chantraine, mšmona provém de mšnoj que diz: poderoso, forte,

coragem, fúria, raiva, espírito, paixão. Tal se dá comparado ao sanscrito mánas (espírito,

paixão), e é ligado também ao grego ma…nomai. Este diz do enfurecer-se, ficar furioso. Na

explicação etimológica de Chantraine a raiz das duas palavras gregas mšmona e mšnoj

exprime os movimentos do espírito, e forma em latim os termos relativos à inteligência, como

é o caso de memini. No entanto, em grego elas se especializaram com o sentido de ardor,

vontade de combater. Segundo Pokorny a raiz indo-européia *men- é a que dá origem aos

últimos termos em questão, ela diz: pensar, prestar atenção, atividade espiritual. Podemos

perceber que há um longo caminho por onde essas palavras se movimentaram de modo que

seus sentidos foram se diversificando e se especializando. No entanto, de alguma forma,

mantiveram algo de sua relação com o pensar, com a fúria, com o anúncio de modo especial

enquanto a fala dos deuses, com o movimento de expor e mostrar, com o indicar.

Voltando ao latim em demonstro, a preposição de- possui diversas acepções e usos e,

segundo o dicionário de Houaiss, ela traz sete sentidos fundamentais para o português. Destes

destacamos o de intensidade para tentar retomar a originariedade de demonstrar no intuito em

que pretendemos. No entanto, por ora este será guardado na medida em que faremos um

pequeno desvio na medida de uma complementação dos questionamentos de demonstrar em

77

Benveniste, E. 1995 a, Vol II. p. 259

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seu sentido originário. Assim, partimos do que diz a raiz em indo-europeu na atenção ao seu

dizer.

A origem da raiz *men- no indo-europeu diz basicamente pensar. Portanto, pensar

pode ser investigado como uma extensão de sentido, posto que não se mostra derivada da raiz

indo-européia em questão. No entanto, os caminhos para a investigação de demonstrar,

apontados a partir da raiz *men-, bem como toda a investigação precedente, não serão

descartados. Todavia, podemos, por extensão, fazer uma tentativa de aproximação de sentidos

entre elas (pensar e demonstrar) onde pretendemos investigar se há um relacionamento, e

como ele pode se encontrar em favorecimento ao que se encontra em questão.

No sentido semântico e moderno, pensar se mostra enquanto uma atividade da razão,

do raciocínio, da lógica, do consciente, da reflexão. Desse modo, se encontra articulado com o

pesar, a medida, o cálculo. Com pouco uso, traz ainda os sentidos de cuidar e tratar de

alguém. Atualmente seus caminhos se encontram encobertos pela hegemonia da técnica e da

medida. Dessa maneira, pretendemos investigá-lo na tentativa descobri-lo da imposição em

que hoje se apresenta.

A palavra “pensar” provém do latim tardio penso que diz pensar, cogitar. Este, por sua

vez, vem de pendo adicionado do sufixo –to. Tal sufixo apresenta o sentido de intensidade, de

aumento, engrandecimento. Pendo, por conseguinte, é o pesar, examinar, pagar uma dívida,

um tributo. Assim, ele nos apresenta apenas o sentido de exame, cálculo, peso. Mas, segundo

Houaiss, pensare parece ser “um desaguadouro das acepções do latim cogitare (...) e do latim

putare (...) da convivência entre cogitare e pensare terá surgido a expansão semântica de

pensare para as acepções cuidar de, tratar de (...)78

”. Claramente não há ligações etimológicas

entre pensare e putare, cogitare. No entanto, o fato é que, segundo Houaiss, há uma ligação

de uso, uma ligação de sentido, onde a dinâmica da língua e das palavras acabou por edificar a

ponte entre elas. Na medida de um esclarecimento de puto e putare é Benveniste que nos

esclarece

Um outro verbo latino é empregado para 'julgar, considerar, estimar', e um de seus

compostos se refere ao cálculo: é puto. Esse verbo apresenta uma particularidade

singular. Ainda não se sabe se existe apenas um ou se são dois verbos puto. Um tem

sentido material, 'cortar'. O outro é um verbo de julgamento, de cálculo, de crença,

que admite vários prévérbios, particularmente com- em computo. Putare no sentido

de 'cortar' está bem documentado: é um termo rural. O verbo é empregado pelos

autores agrícolas (...). Não só puto, mas também, com o mesmo regime, de-puto, re-

puto (isto é, repetir a operação), inter-puto (...), e, mais conhecido por ter

sobrevivido, amputare, 'cortar em volta' (...).

78

Houaiss, op. cit. Cf. etimologia do verbete pensar.

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Isso não explica o outro verbo? Devemos partir de um uso metafórico: rationem

putare e interpretá-lo literalmente segundo o sentido técnico de puto: 'seguindo (de

baixo para cima) a conta, eliminar sucessivamente todos os itens que foram

conferidos'. Daí 'verificar, apurar uma conta'. Uma vez conferido e suprimido cada

item, chega-se ao final da operação. Daí rationem putare para 'verificar uma conta',

onde putare realmente parte de seu sentido material: 'conferir de maneira que, item

por item, a conta seja reconhecida como válida'.79

A partir do que nos proporciona Benveniste, vemos o pensar, a partir de puto e putare,

desenvolvido intimamente a partir do cálculo e o exame (no sentido de pesar e medir)

detalhado. O exame, como método, pretende cobrir o referido problema de modo a que não

haja a possibilidade de falhas. Por conseguinte, é um dos caminhos por onde o aspecto

matemático se encontra hoje dominante a respeito do pensar. No entanto, puto e putare não

totalizam a investigação. Falta ainda aprofundarmos o sentido de cogitare.

Ainda segundo Houaiss, cogitare é cultismo e sua forma vulgar é cuidar 'tratar de;

pensar'80

. O termo, em si, é formado pela união da preposição cum- adicionado de agitare.

Cum- tem o sentido, dentre outros, de com, conjuntamente. Agitare é levar diante de si,

conduzir empurrando, fazer volver à força, agitar, sacudir etc. É formado da união de ago

mais ito, onde o último é um interativo de força, e ago é, basicamente, empurrar, levar,

conduzir. O latim ago provém do grego ¥go que é o guiar, levar, conduzir, buscar, trazer,

liderar; e é oriundo da raíz indo-européia *ag- que diz, segundo Pokorny, basicamente o

mesmo sentido. Assim, podemos tomar para coagitare o sentido de estar junto daquilo que

conduz e arrasta forte e violentamente. Estar conjuntamente ao que conduz com vigor, ao que

impele violentamente a sua força puxando e conduzindo. A partir desta conjuntura, o pensar

não pode ser apenas o ato de pesar, de calcular. Por extensão, o pensar é o estar junto,

proceder de modo conjunto, estar acolhido ao que violenta e vigorosamente impõe a sua

força, arrastando e puxando consigo o que estiver na sua frente. De acordo com os caminhos

aqui apontados, em uma referência simples podemos dizer que o que impele o seu vigor, de

maneira inequívoca, é o real. É o ser e o não ser abrigados pelo sem fundo ambíguo do

abismo. De maneira que o pensar a eles se rende, na medida própria de se mostrar junto como

proveniente de tal vigor.

Perante nossa investigação a partir do pensar, podemos perceber o demonstrar em uma

perspectiva diferente. Mesmo no que se refere a sua origem a partir da raiz indo-européia

*men-. Demonstrar é o movimento de expor, de colocar à disposição, de colocar à disponível,

na indicação dos limites. Assim, demonstrar é o fazer ver de modo diferenciado, posto que é

79

Benveniste, E. 1995 a, Vol. I p. 153-154. 80

Op. cit. Cf. etimologia de pensar

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um fazer ver como anúncio da palavra dos deuses, é o anunciar como um sinal divino que se

põe à mostra. Demonstrar, enquanto fala de um sinal dos deuses, se encontra fora do homem

como seu executor. No entanto, também dentro do homem enquanto aquele que participa da

dinâmica da escuta. Isso já pode ser encarado como um indício de que o pensar como

atividade mental, espiritual, ou seja, enquanto atividade específica do homem, não se dispõe

como verdade originária. O desenvolvimento diferenciado da raíz *men- em grego e latim,

nos dá a pensar a possibilidade que, no próprio latim, a palavra cogitare como origem para o

português pensar não se encontra desamparada. Isto porque a força, a fúria, o vigor se

mostram em grego, originadas de *men-, como mšmona, mšnoj e ma…nomai. No entanto, cabe

a questão: qual a relação entre demonstrar e pensar? Inequivocamente o demonstrar pressupõe

que haja pensamento, pois demonstrar, de alguma forma, se encontra ligado à fúria. Não há

dúvida de que demonstrar não pode ser dito como algo que totalize o pensar, antes deve ficar

claro que este apenas se mostra como um de seus aspectos. Na verdade, pensar possibilita o

demonstrar, é a origem e a fonte de onde demonstrar encontra seu fundo abrigado no sem-

fundo do abismo. Tal ambigüidade é própria do real que possibilita o pensamento. O real

possibilita o pensamento, de modo que este último é o estar na conjuntura do vigor que se

manifesta e se retrai abrigado e acolhido no abismo do ser e do não ser. Outro indício que

pode nos servir de auxílio, no intuito de referendar o real como o que se dá vigorosamente, na

questão do pensar se encontra na palavra grega mšnw. Esta, possuindo o mesmo radical, mas

sentido diferente, de mšmona, mšnoj e ma…nomai, nos diz do ficar, permanecer. O

radicalmente permanente é a unidade do ser e do não ser, na sua ambigüidade radical como

vigor. Ambiguamente tal vigor se mostra recolhido na permanência inabalável resguardada no

sem-fundo abismal. Hölderlin já disse que “tudo o que permanece fundam-nos os poetas81

”. A

permanência do que é fundado pelos poetas não se encontra em nenhuma estaticidade, muito

pelo contrário. As artes, bem como a poesia, trazem consagradamente o movimento. Na

verdade, elas fundam e aprofundam no abismo tal movimento, portanto, elas se dão como o

que permanece em movimento constante. “Transformando-se, repousa”. Portanto, de-

monstrar é o estar de acordo com o que vigorosamente se dá de modo a poder participar da

dinâmica do anúncio que se manifesta como recomendação, como oferecimento dos deuses.

No entanto, de modo anterior, se manifesta como recomendação do real em seu vigor na

ambigüidade originária resguardada no sem-fundo abismal. Podemos entender que o

oferecimento dos deuses é uma extensão de sentido da própria força da fÚsij ao manifestar o

81

Hölderlin, apud Jardim, A. in Castro (org.) 2004, p.108.

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seu vigor. Isso porque o vigor da força divina se dá na conjunção direta com esta última.

Assim, o demonstrar, que inicialmente parece ser de posse do homem, se dando como o pôr

para fora, ganha outra perspectiva. Ele se apresenta ligado à força de vigor específica do

próprio real, este que arrasta e puxa conduzindo consigo no impelir de sua força. Nesse

arrastar, se promove o expor como o mostrar, se colocando como o anúncio dos deuses em

sua força vigorosa. Demonstrar como uma atividade unicamente mental é apenas uma

derivação do vigor do próprio real. Deriva do real em sua manifestação, que se dá ao

confronto encoberto e dissimulado na sua verdade.

B) Declarar

Iniciando pela semântica declarar diz do tornar público, anunciar, revelar, manifestar,

tornar claro, desvendar, esclarecer. O sentido semântico, por si só, traz muitas possibilidades

de discussão. No entanto, vindo do latim declaro, declarar apresenta de modo mais explícito

relação com a visão, com o ver. Declaro, por sua vez, é formado pela preposição de-

adicionada do termo clarus. Clarus, de outro modo, se encontra também articulado com o

som; diz do sonoro, em tom alto, brilhante, reluzente, ver claramente, claro, distinto, e

também celebridade, famoso. Segundo Ernaut e Meillet

aparentado a clamo e calo, clarus deve ter-se aplicado a voz e aos sons, clara vox

etc (...) estendeu-se depois às sensações visuais clara lux, clarum caelum, claro,

brilhante, depois às coisas do espírito (...), e mesmo aos indivíduos e às coisas.82

Clarus pode ser comparado, sendo cognato, com o verbo latino arcaico calo que diz

anunciar, proclamar, convocar, chamar. Este também é cognato com o grego kalšw com o

mesmo sentido de chamar, convocar, mas também chamar pelo nome, nomear, proveniente da

raiz dissilábica k£le-/ klh- chamar. Podemos, assim, dizer que originariamente declarar

está mais relacionado ao dizer como proclamação, nomeação do que com a visão ou audição

especificamente. Dessa maneira, a semântica como manifestar, revelar, anunciar acaba por

resguardar o sentido originário ligado ao chamar, anunciar, nomear. Declarar é, em si,

chamar, anunciar, nomear. É um dizer ao qual, como proclamação, não se pode ficar alheio. É

um dizer bradado solenemente. Esse chamado, como proclamação e anúncio do nomear,

resguarda o vigor e a força do dito. O declarar é um chamado e, dessa maneira, traz a força

desse chamado porque o chamar é, em si, força. O chamar é a força do convocar, do invocar,

82

Apud in Houaiss, op. cit. cf. verbete clar-.

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do evocar, todos são formas distintas de chamado, mas que revelam como o chamado traz seu

vigor para a manifestação de si mesmo.

Nomear é pronunciar o nome. A partir disso, declarar pode ser dito como pronunciar o

nome convocando diretamente nesse pronunciamento. O chamado é o nomear, o pronunciar o

nome, de modo que, como chamado, ele é forte porque tem a força do nome. Posto ser o

nome o que mostra porque chama aquele que por ele é nomeado. O nome é a individualidade

característica que distingue os homens e as coisas. O nome é, assim, pronunciar o nome na

medida em que nomear é chamar de modo próprio, é chamar de modo inequívoco. Destarte, o

nome é um chamado posto que ele, por si, traz chamando e, com isso, carregando aquele que

se encontra nomeado, aquele que se encontra resguardado no nome. Assim, declarar é

manifestar, é o anúncio de manifestação que nomeia e, nesse nome, chama e traz aquilo que

se resguarda na nomeação do nome. Revelar o nome é revelar aquele pelo qual o nome

nomeia. O latim nomem dá origem à palavra portuguesa nome, e diz do nome pessoal, o que

caracteriza um homem, ou ainda do nome que se refere às coisas e se mostra. Assim, nomem

se mostra relacionado ao grego Ônoma com o mesmo sentido. Esse é também o nome próprio.

Mas podemos argumentar: qual nome não é próprio? Todo nome é próprio de modo que é no

nome que o nomeado se dá. O nomeado pelo nome é, assim, convocado para aparecer em si

mesmo resguardado em seu mistério.

C) Voz

O momento é oportuno para investigar a palavra voz. Esta semanticamente se traz

como o canto, a possibilidade de falar, manifestação de quem suplica ou protesta (sendo este

no atestado de um uso impessoal, que se manifesta quando se levantam vozes de clamor). A

palavra é derivada do latim vox, vocis que diz o som da voz, voz; e origina o português sem

mudança de sentido. No entanto, vox vem de uoco que diz chamar, invocar, chamar um nome

(chamar como uma obrigação de atender), convidar, intimar. Desse modo, a voz também

apresenta o chamado. Com ela, vários termos se encontram relacionados com esse mesmo

sentido, como vocação, vocábulo, evocar, convocar, etc. Todas elas são modos de chamar,

todas apresentam o chamar em sua origem. Assim, a voz é, de um modo ou de outro, um

chamado. A voz é uma extensão do chamado, se origina dele e se dá como tal. No entanto, ela

participa inequivocamente da sua própria constituição enquanto chamado. Chamado e voz

formam a unidade que mostra, na sua constituição, a manifestação do chamado. Os modos de

chamar são importantes na constituição do que pretendemos ao investigar a fala e o falar. O

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chamado é uma manifestação à qual não se permite a possibilidade de recusa. O nome é um

chamado que traz consigo, na nomeação, aquele por quem se chama. Portanto, a voz como

pronunciar o nome é e se funda no chamado como possibilidade de ser o que ela é. A voz é,

desse modo, o canto como já diz a própria semântica. O canto já é convocado na medida em

que Cecília Meireles assim nos concede o primeiro verso do poema Motivo: “Eu canto porque

o instante existe”. O canto se apresenta no tempo já nos apresentando o próprio tempo. Desse

modo, o dizer poético nos concede o canto na medida em que ele, em si mesmo, é uma

convocação, como apresentação de si mesmo, enquanto densidade própria. O nome chama de

modo que, como canto, convoca para o sentido de si mesmo. A voz que canta é a voz que se

apresenta, em si mesma, na nomeação do chamado. A voz é, portanto, na medida em que

canta e cantando se mostra em sua verdade. Ela não pode ser entendida na medida apenas do

homem, mas de algo que, assim, como reunião, já o ultrapassa individualmente bem como em

sua essência.

D) Verbo

O verbo nos apresenta os sentidos de palavra e discurso. Gramaticalmente é a parte

das palavras que contém as noções de ação, processo, estado; para a Igreja é a palavra de

Deus. O latim verbum diz palavra, vocábulo, oposto à res, coisa, realidade. Verbum é

aparentado do gótico waurd (palavra) e do alemão Wort. Este último, provém do médio e

antigo alto alemão Wort que diz da fala solene83

. Cognato com o sânscrito Vrátan que diz

ordem, decreto, declaração solene; e ao inglês word palavra, entre outros. Todos os termos

são provenientes da raiz indo-européia *ver- que é o dizer solene, falar. O verbo é também um

nome, que se mostra como um dizer solene, um dizer extraordinário que não se dá em

qualquer circunstância. Este dizer extraordinário se dá como celebração e consagração. A

celebração acontece quando há um acontecimento especial como, por exemplo, a chegada de

um filho, de um ente querido. Ela se dá também quando celebramos a colheita, ou o dia dos

santos e os dias santos. Ou seja, a celebração se revela quando se dá um acontecimento de

suma importância para aqueles que, assim, celebram. Dessa maneira, aquele que é

considerado uma celebridade não se mostra originariamente no sentido atual. A palavra se fez

por extensão própria do celebrar. Originariamente, é uma celebridade uma pessoa que, por sua

importância para a comunidade em que vive, se mostra digna de ser celebrada por todos.

83

Duden, 2007, p. 1497, cf. instruções etimológicas de Wort.

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Assim, ela tem fama. Tem fama por seu valor e mérito para aqueles que, com ela, fazem parte

de um todo. Sendo celebrada, tal pessoa se encontra enquanto celebridade na medida em que é

digna de ser celebrada. Assim sendo, celebrar é a reunião para que se festeje algo muito

importante. Celebrar provém do latim celebro com os sentidos de acelerar, apressar; ir em

grande número; honrar, celebrar; entre outros. Celebro se mostra proveniente do latim

celeber, dizendo este do numeroso, apertado; populoso; famoso. Celeber se mostra oriundo da

raiz indo-européia *kel(5)- que diz: guiar, força para mover-se rapidamente; tendo ainda os

sentidos de chamar e gritar84

. Dessa maneira, o celebrar é o que guia a muitos e que, nesse

guiar, tem força suficiente para fazê-lo rapidamente. Tal força se dá na medida em que chama

e convoca a todos na possibilidade de festejar o que, em suma, é extremamente importante a

ponto de ser honrado, festejado, celebrado. O verbo como nomear é um dizer extraordinário

que, como celebração, é aquele que guia a muitos com a força de sua imposição. Sua

imposição se dá rapidamente de modo que os que se encontram guiados por ele, o fazem

reunidos para festejar e comemorar o que se dá de modo extraordinário.

O outro sentido que aventamos para verbo, a consagração, se apresenta na

possibilidade de se sagrar o que para aqueles que sagram é sagrado. Consagrado é aquele que

pelo seu devotamento se encontra junto do que é sagrado e digno de se sagrar, de se mostrar

no sagrado. O verbo como um nomear pode ser encarado, além do sentido extraordinário

posto na celebração, como consagração por se dar na importância de algo sagrado. De algo

que revela, sobremaneira, sua importância para o homem de modo a ser consagrado e

festejado. Assim, o verbo guia a muitos na força de se mostrar em suma importância, sendo o

que é de modo extraordinário. Como guiar movimentando rapidamente, ele se dá pelos que,

assim convocados, se movimentam no nomear da fala solene. Tal fala mostra o reunir na

causa de algo que vai muito além dos que se reúnem.

E) Falar

Falar em sentido moderno se apresenta como o exprimir por meio de palavras, mas

também: conversar, dizer, declarar, demonstrar, dialogar, anunciar, entre outros. Podemos,

sem dúvida, trazer os sentidos das palavras já investigadas para o âmbito de entendimento do

sentido semântico aqui presente o que de, algum modo, já os enriquece. No entanto,

aprofundando a investigação falar provém do latim fabulo, vindo este de fabula, que é oriunda

de fari que é: falar, falar articuladamente como um orador, falar profeticamente, pronunciar (a

84

Pokorny, op. cit., cf. as raizes *kel(5)- e *kel(6).

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pronúncia dos oráculos), dizer, explicar, confessar, declarar etc. Segundo o dicionário de

Saraiva, fari provém do grego f£w que diz brilho. Mas, segundo o dicionário de latim

Oxford, ela provém do grego fhm„ que é: o dizer, afirmar, reclamar, dizer sua opinião,

comandar, reclamar, afirmar, entre outros. Benveniste faz uma investigação acerca dos

sentidos de fhm„, juntando também o latim fama, mostrando a relação entre eles. Assim, nos

esclarece o autor:

Em fama 'reputação, rumor', percebemos um novo traço: o ato de fala não

individualizado, impessoal. Já quando a criança 'fala', iamfatur, considera-se não o

que ela diz, mas a manifestação de uma faculdade impessoal, comum a todos os

seres humanos, o fato de serem capazes de palavra. Analogamente, fama é a palavra

como manifestação humana, impessoal, coletiva, o rumor, o renome: 'corre o rumor

de que...', é um 'rumor' feito de vozes, a palavra como pura manifestação sonora,

pois é despersonalizada. É isso o que significa também o grego phátis 'renome,

rumor', não discurso nem palavras alinhavadas.

O mesmo sentido surge também em phemis. Na Ilíada (10, 207), um personagem vai

até os troianos para ver se consegue saber de algum phemis; são os 'diz-que-diz-que',

impessoais, e não comentários de fulano ou beltrano. Bastante freqüente na Odisséia

é a menção da demou phemis 'o rumor popular, a voz do povo'.(...)

Vejamos agora pheme. Eis um exemplo muito significativo: Ulisses pede a Zeus que

confirme que quis reconduzi-lo ao lar depois de tê-lo feito sofrer muito. (...). Ulisses

espera a pheme como uma palavra de caráter divino, como manifestação da vontade

de Zeus, equivalente a um sinal, e de fato uma mulher, a primeira, emite uma

palavra (pheme), enquanto soa o trovão, e essa mulher é um sema, um presságio

para Ulisses (versos 100 e 111). (...)

Tudo isso se vincula: a pheme é uma emanação de palavras, como,de fato, é um

rumor de vozes, uma reputação, um renome, como o é também uma palavra

oracular. Vemos, enfim, porque essa raiz de phemi, ou de *for em latim, indica a

manifestação de uma palavra divina; sempre por ser impessoal, por exprimir algo

confuso,misterioso, como é misteriosa na boca de uma criança a chegada de suas

primeiras palavras.(...)

Não se considera o suficiente o forte valor de phasi 'dizem, corre o boato de que';

pháto deve ser entendido literalmente como 'esta palavra emanou dele' (...).85

Essa impessoalidade da palavra, o fato de que a “palavra emanou dele”, de pronto nos

dá uma indicação preciosa. Esta se faz retirando o sujeito Moderno, enquanto aquele que

detém as palavras e a linguagem, da referência da linguagem. Isso, mesmo que o referido

autor coloque como um fato comum a todos os seres humanos “serem capazes86

de palavra”.

De todo modo, podemos perceber que a impessoalidade do rumor e a força da palavra divina

são suficientes para uma recolocação da palavra e da fala em uma instância distinta em

relação a como estas são tratadas na Contemporaneidade. No entanto, Benveniste, enquanto

lingüista, não deixa de perceber a palavra e o dizer como expressão, posto que, quando a

85

Benveniste, E. 1995 a. Vol II. p.139-141. 86

Grifo nosso.

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respeito da raiz *bha- (que dá origem aos termos precedentes investigados: fhm„ e fama) nos

diz, partindo do latim fas:

Ela já está difundida no conjunto das formas desta raiz *bha-, que já no vocabulário

indo-europeu exprimia o poder extranho, extra-humano, da palavra, a partir de seu

primeiro despertar na criança até as manifestações coletivas, não humanas à força de

ser despersonalizadas, em que se exprime uma voz divina.87

Facilmente poderíamos empreender a mudança do exprimir na passagem “em que se exprime

uma voz divina”, por manifestar. Sem grandes problemas tal mudança pode ocorrer, pois que,

na citação anterior, o autor nos concede belamente que “a palavra emanou dele”. Tal acontece

não no sentido em que ele (um homem) pessoalmente detenha a palavra, mas ela se dá como

algo que, em si, tem força própria. Temos ainda a impressão nesse dizer de que ela, a palavra,

se utilizou dele, homem, para se fazer manifesta. No entanto, esta impressão que se mostra

como inversão de sentido pode demandar de uma reação à concepção de palavra, linguagem e

fala na Modernidade. Tal inversão não é mais do que um corroborar com o que é formulado

modernamente só que posto às avessas. Livres dessa possibilidade, podemos compreender

que ela, a palavra, emanou dele quando nele se manifesta e não a partir dele. Nele ela se

manifesta de tal modo, que com ele conforma uma unidade. Nessa unidade um não é o outro,

mas, por conseguinte, um não se dá sem o outro naquele momento único e particular.

Algumas discordâncias nas obras consultadas devem ser debatidas, de modo a nos

livrarmos de alguns equívocos. Já tínhamos dito anteriormente que, no dicionário de Saraiva,

o latim fari se dá provindo do grego f£w em discordância com outras obras consultadas. No

entanto, essa disparidade não é toda sem sentido. No dicionário de Lidell & Scott está dito

também que há uma relação entre fhm„ e fa„nw. O grego fa„nw - que pode ser comparado

com f£w por ambos terem a mesma base - é o trazer para a luz, a causa do aparecer, fazer

saber, revelar, descobrir, dar luz, brilho; é também na Mitologia Grega o nome de uma ninfa:

Fainè, a brilhante. Essa ambigüidade pode ser vista também na própria raiz *bha- de onde

vem fhm„. A princípio se tem por certo que *bha- diz falar. No entanto, Chantraine, quando

indica sua pesquisa sobre a etimologia de fhm„, diz que esta se constrói sobre a base

alternante *bhea- / *bha-. Diz o autor:

A raiz indo-européia *bh(e)a- significa por vezes <brilhar, iluminar> e <declarar,

expor, dizer> (...), para o laço semântico, comparar o paralelo do grego ¢podhloán

<tornar claro> e <explicar, declarar> (...). O fato é quase o mesmo para uma das

raízes *sekw- <mostrar> e <falar>. A ambivalência semântica de *bh(e)a- aparece

87

Idem, p. 141-142.

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em grego dentro de pifaÚskw <fazer luzir> e <explicar>, dentro de f£sij, etc.

(ver etimologia de fa„nw). O sentido de <brilhar>, *bhea- pode ser estendido em

*bh(e)a-w-, *bh(e)a-s- (ver etimologia de f£e) e provavelmente em *bh(e)a-n- (ver

etimologia de fa„nw).88

Percebemos que não é sem propósito que se encontram algumas informações conflitantes nas

obras consultadas. Tal conflito, na verdade, traz uma riqueza muito grande ao nosso

questionamento, posto que pode ser visto como proveniente do próprio mistério da palavra, da

fala e da linguagem. Qual a relação entre falar e brilhar? Pelo que podemos compreender, o

brilhar se encontra enquanto palavra para o dizer e falar desde tempos remotos. Na própria

palavra grega fa„nw o sentido de indicar e explicar se apresentam em momento posterior.

Brilhar é fazer manifestar na medida em que o brilho chega a ter tal intensidade que pode

também ofuscar. Assim, o brilho é misterioso de modo que já manifesta no retraimento

brilhando, ou seja, no retraimento próprio de sua manifestação. O mostrar da manifestação se

conduz como fala. Podemos dizer, então, que falar é fazer brilhar o brilho da manifestação

que mostra e faz ver, não como o indicar com a mão ou com o dedo, mas como a palavra e o

dizer que mostram em se fazendo o que são. Tal dizer é misterioso, não se dá de qualquer

modo. Posto que, aqui, estamos tratando de procurar na ambigüidade do abismo do ser e do

não ser a verdade do diálogo e, por conseguinte, da linguagem. Neste sentido, somente uma

investigação que procure se dispôr a uma empresa pela originariedade pode ter alguma

possibilidade de entrever mesmo que de longe o que pretendemos. Mesmo assim, as

possibilidades de entrevisão são remotas e difíceis de se reconhecer. Nos escorregadios

caminhos do abismo se esconde a originariedade da linguagem e do diálogo. Como alentos na

caminhada, percebemos que há uma relação entre o falar e a fala com o brilho e o brilhar.

Percebemos também que a escuta se dá quando pertence à fonte que brota como fala da

linguagem. Esta que, como anúncio inaugural, faz a escuta perdurar e durar naquilo que se dá

na disponibilidade do dispor-se e propor-se como um todo em sua unidade de reunião. Assim,

podemos dizer que a fala da linguagem é o brilho que manifesta e mostra. A linguagem, em

si, traz esse brilho que manifesta e mostra como sua fala, onde o que é como fonte se dispõe

na reunião de seu conjunto e ali se põe resguardada.

De qualquer modo, encontramos também respaldo no início do capítulo, quando

apresentamos a investigação pelo dizer na medida em que este se deu originariamente como

mostrar89

. Ainda hoje se diz, já encoberta pela mediação, a expressão “mostrar pela palavra”.

88

Tradução nossa do original em Chantraine, 1968. Cf. etimologia do verbete fhm„, p. 1196. 89

Consultar p. 96 do presente trabalho.

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No entanto, aqui o falar é, em si, mostrar, é mostrar de modo todo especial. É o mostrar da

manifestação e brilho que misteriosamente se resguardam no mistério do abismo. Tal mistério

brilha ofuscando de modo a implicar aqueles que procuram desvendar a sua verdade e não

verdade. Assim, dizemos que não há um mostrar pela palavra, quando Benveniste se refere à

relação do direito Romano quando o juiz mostra a sentença pela palavra, mas sim há um

mostrar como palavra. A palavra que mostra e manifesta o seu brilho enquanto fala da

linguagem na disposição como unidade de reunião de sua fonte inaugural e inaudita. Inaudita,

porque para dizê-la completamente se tem de estar de posse de sua verdade. Essa é uma

verdade que, por essência, é abrigada e resguardada no sem-fundo do abismo. Mostrar é dizer

e falar já na ambigüidade da simplicidade do abismo. O mesmo sem-fundo com o qual os

criadores acabam por ter uma centelha de vislumbre, na medida em que procuram criar a

partir do nada.

Torna-se assaz importante reafirmarmos que o brilho como manifestação sempre se dá

misteriosamente. O falar da fala da linguagem é brilhante e manifesto de modo a ofuscar em

seu brilho. A fala que é misteriosa, enquanto o falar da fonte da fala, porque é misteriosa a

unidade do que se mantém, a si mesmo, reunido na disposição que se dá a manifestação. Tal

unidade se manifesta resguardada no mostrar-se misterioso de sua fala. Então, o brilho que

brilha como fala, assim, mostrando é já um mostrar misterioso por ser ofuscante em si

mesmo. Mas com o brilhar podemos compreender a fala como algo que se manifesta

ontologicamente em seu brilho de mistério.

Ainda há uma carência que necessita ser sanada no intuito de complementar, ou

melhor, de permanecermos no firme propósito de questionar. Já que falamos tanto em palavra

da linguagem, a palavra do dito etc, se torna prudente que haja uma investigação pelo que é,

de modo próprio, palavra. Tal investigação deve se dar ao modo de uma escuta atenta ao que a

palavra pode nos trazer enquanto sentido de si mesma na medida em que possa se dizer.

F) Palavra

A semântica apenas nos apresenta como verdade em nosso caminho o fato de mostrar

a palavra como unidade. Ela pode ser entendida como unidade na medida em que revela o

uno. Assim, é uma unidade porque resguarda consigo o uno enquanto unidade de reunião. Tal

unidade se dá enquanto a fonte que brota como da fala da linguagem na sua disposição,

reunida em si mesma, enquanto deposta e proposta. Pela convocação que nos toma, devemos

buscar um aprofundamento da questão. Palavra vem do latim vulgar parábola, sendo esta

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tomada em empréstimo do grego parabal» que diz comparação, aproximação. O sentido de

comparação vem do grego par£ adicionado de b£llw. As acepções para par£ são

basicamente junto, ao lado de, por, em, durante, para, etc. Para o termo b£llw temos lançar,

lançar ao longe, deitar longe, jogar por terra, tombar. B£llw provém da raiz indo-européia

*gwel- que tem, basicamente, o mesmo sentido de lançar. A definição de comparação se dá

pelo uso da preposição grega como “figurar ao lado”. Portanto, para parabal» temos

literalmente o sentido de lançar ao lado. Assim, podemos compreender palavra, como

comparação, na medida em que ela lança ao lado. Em tal lançar fica patente uma referência. O

sentido mais correto para palavra, de acordo com os autores que a utilizaram ao longo da

tradição da Cultura Grega, seria essa comparação como relacionamento. Relacionamento

entre o que se lança ao lado com aquilo que é a exposição do lançado. No entanto, podemos

perceber que tal lançar ao lado não é em si uma exclusão. Lançar ao lado pode ser entendido

como a possibilidade de se mostrar aquilo que se dá lançado. A palavra essencialmente lança

ao lado de modo que, nesse lançar, ela traz a possibilidade de revelar e descobrir o que se

encontra encoberto. Na possibilidade de lançar ao lado, para que a comparação como

referência se dê, somente podemos perceber a palavra como aquela que mostra na

possibilidade de lançar ao lado para a manifestação. Não é de nenhum modo um equívoco

dizer o arremessar enquanto uma forma de condução. Nesse aspecto, a palavra é aquela que

conduz ao lado na perspectiva de manifestar o aparecimento. Aparece aquele que está à

disposição desse lançamento, desse envio como condução, que a palavra, por si mesma,

promove. A palavra lança, a palavra conduz e envia para o destino aquilo que por ela é

conduzido, lançado e enviado. Desse modo, ela resguarda o que se encontra conduzido por ela

em seu caminho. Assim, a palavra está essencialmente ligada à própria fonte da fala da

linguagem. A fonte da fala da linguagem é o enviar-se do que se envia enquanto a unidade de

reunião. Neste envio ela deixa o uno reunido consigo mesmo na disposição de modo a

colocar-se enquanto unidade posta e reunida. Dessa maneira, a palavra é a possibilidade desse

enviar-se se dar enquanto posto numa disponibilidade. Tal assim disposto é o que ela conduz,

é o que de todo modo se dá. A palavra o lança ao lado na condução da manifestação sem, em

nenhum momento, perturbar o seu descansar que se resguarda. Tal resguardo do que se dá, se

mostra no estar reunido consigo mesmo como ele mesmo. A preposição grega par£, também

pode ser entendida como conjuntamente. Dessa maneira, ela se encontra desviada da precisão

dos sentidos empreendidos comumente para parabal». No entanto, tal entendimento pode

vir a complementar o próprio sentido do lançar ao lado como o resguardo daquilo que se

envia nesse envio. A partir dessa perspectiva, a palavra pode ser entendida como o que se

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lança conjuntamente com o que é em si lançado. Lançar-se conjuntamente e lançar ao lado

são, de qualquer modo, o lançamento da palavra como aquela que carrega o envio do que se

envia originariamente. Escutar é pertencer a esse envio. Um pertencer escutando ao

lançamento ao lado e ao conjunto posto que a palavra manifesta e mostra no brilho ofuscante

da fala. Tal brilho de manifestação se dá, na medida em que o que se mostra posto e reunido

em seu conjunto se encontra posto e disposto à disposição do lançamento da palavra da fala

da linguagem. Esta encontra guarida na escuta que pertence escutando porque dura e perdura

no acontecimento da fonte que brota como fala. Assim, é na palavra que há o resguardo do

que nela se mostra e brilha na fala.

A fala enquanto origem

O momento que se apresenta é justamente o de trazer na diversidade uma relação de

unidade. Temos a respeito das palavras que foram investigadas, no sentido de uma

aproximação do que seja fala e falar, alguns pontos que precisam ser confrontados no intuito

de serem postos a falar por si mesmos nesta diferença.

Demonstrar é estar na disposição de acordo com o que vigorosamente se dá. Isso, na

medida em que, a partir dessa disposição se encontra na senda de poder indicar os limites. Tal

indicação acontece no mostrar que se anuncia como uma recomendação do vigor que se dá na

ambigüidade originária e inaugural.

Declarar é em si o chamado. O chamado se dá como o que chama de modo a não

podermos nos furtar a tal. Ele é um dizer que profere nomeando no anúncio, assim é um

chamado de modo especial.

Verbo é um nome. É o nomear como um dizer extraordinário que celebra na

consagração. Onde se encontra na força do que guia a muitos para que possam comemorar na

força do festejar o que precisa ser honrado.

O falar é o que mostra no brilho que, por si mesmo, fala brilhando. No brilhar do

brilho que fala, o falar resguarda o mistério de si mesmo.

A voz é na medida em que o canto se mostra como verdade revelando a voz na

sonoridade em que se dá de modo próprio. Como um chamado ela, assim, chama na sua

verdade de modo que como voz não depende do homem, enquanto indivíduo, mas o faz na

medida em que revela o canto na verdade de sua manifestação.

A fala então é reunião. Pode ser dita no sentido em que demonstra. Demonstra como o

estar na disposição do acordo com o que se dá na imposição de seu vigor, na medida em que

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mostra indicando os limites. Nesta indicação ela traz na reunião a identidade frente a todas as

diferenças. A fala é também, necessariamente chamado. É um chamado modo todo especial.

Como verbo, a fala é o dizer extraordinário que se encontra na força que a muitos reúne para

festejar e comemorar o que deve ser honrado. Que, de todo modo, já se encontra aquém e

além dos muitos que se reúnem, de modo que os pode reunir na medida em que mostra o que

deve ser honrado e celebrado na sagração posta. A fala é também o mostrar como

manifestação e brilho. No seu brilho de mistério, ela mostra já sempre velando na sua

manifestação como verdade. Tal verdade soa como sonoridade própria que, assim, já se dá

como chamado.

A fala também se diz como palavra. Esta se mostra no colocar ao lado conjuntamente

com aquilo que se lança. Ela é o estar de modo próprio na força do que se dispõe ao lançado.

Na questão da palavra procedemos uma inversão: o lançar é entendido como o que se lança,

mas nem por isso tal inversão deixa de ter legitimidade. No sentido mais correto, a palavra

carrega consigo na medida em que lança ao lado. Estar conjuntamente com aquilo que se

lança na palavra é uma mudança fundamental. Aqui não é especificamente o homem que

lança. Não há aqui um sujeito que realiza o lançamento. Há aqui o lançar-se de modo

conjunto. O lançar-se que se dá com o que se lançou a si mesmo. Assim, percebemos que nos

encontramos na disposição da própria fala da linguagem. Aquela que é o fundamento de toda

fala e de todo falar. Aquela que se dispõe no seu brilho tendo como destino a escuta

cuidadosa. Esta que é sempre um pertencer na ambigüidade de ser e não ser dos mortais, os

que se encontram já suspensos e lançados no abismo de simplicidade.

Devemos trazer ainda um questionamento que procure enriquecer as discussões

empreendidas até o presente momento. Há um texto de Heidegger constante do volume 12 de

suas obras completas, intitulado “Das Wort”. Este se dá traduzido para o vernáculo por “A

palavra”. O ensaio se dá a partir de um poema de Stefan George de mesmo título. No ensaio

o pensador trabalha para chegar a interpretação do último verso do poema traduzido como:

“Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar90

”. Vamos procurar nos encontrar na

disposição de dialogar com o pensador e o poeta na medida de suas obras.

Na tentativa de investigar o verso do poema em questão, percebemos que o dito

enquanto coisa, no original em alemão ding91

, na conjuntura abordada, se refere ao que

efetivamente se encontre na disposição do ser. Pois, já dissemos exaustivamente, no presente

90

No original: “Kein ding sei wo das wor gebricht.” Citado em Heidegger, M. Gesamtausgabe Band 12

UNTERWEGS ZUR SPRACHE. Vittorio Klostermann. p. 208. 91

Contrariando a regra de escrita alemã o substantivo é escrito no verso pelo poeta começando com letra

minúscula.

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trabalho, que para que algo seja somente o pode ser, sendo na tensão originária de ser e não

ser na unidade tridimensional do tempo, resguardado no abismo de simplicidade. Assim, se

encontra afirmado no verso que não há o que venha a ser, sendo fora da palavra. Devemos

relembrar que o contexto em que estamos trabalhando é a fala da linguagem que brota

brilhando como origem inaugural e primigênia. Nesse sentido, a palavra, em questão, se

mostra enquanto fala da linguagem de maneira originária. Destarte, todos os entes que são

dinamicamente sendo, se encontram resguardados na palavra que, como fala da linguagem, se

dá. Heidegger nos diz que entre coisa e palavra se encontra uma referência dizendo que a

própria palavra já é, ela mesma, a referência que sustenta palavra e coisa. Desse modo, a coisa

tem o seu ser coisa assegurado pela palavra92

.

Acreditamos que se afiguram possibilidades de questionamentos: como será e a que

coisa estamos nos referindo? Pelas obras em que o referido autor investiga pela coisa esta é

dita somente na possibilidade tensional que reúne o embate fundamental entre um mundo

instituído e constituído abrigado e sustentado pela terra como fÚsij. O pensador investiga a

coisa mesma na medida em que ser coisa está assegurado na reunião do embate radical entre

mundo e terra. Assim, a coisa se apresenta nessa reunião polêmica e harmônica, na violência

do combate onde ela emerge, em si mesma, disposta. Nessa disposição ela se dá reunindo

tensionalmente uma referência de mundo já sustentado e abrigado pela fÚsij em si mesma.

Se Stefan George diz em seu poema: “nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar”.

Podemos compreender coisa instaurada nessa tensão radical entre mundo e terra. Assim, ela

traz em sua postura, harmonicamente, os homens. Ela traz os homens, na medida em que estes

se encontram na ciranda onde o mundo somente é mundo mundificando. Ou seja, o mundo

somente é o que ele é, mundificando no embate fundamental e ontológico com a terra.

Quando o poeta nos concede o dito: “Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar”

entendemos coisa nessa unidade e não fora dela. Estamos nos colocando dessa maneira

porque tudo que se mostra na dinâmica ôntica se fundamenta na fÚsij. Ela abriga o mundo

de modo que ele não tem nenhuma possibilidade de se instaurar sem esta. No entanto, se

encontra claro para nós, pelas discussões a partir da fÚsij mesma, que o contrário pode se

dar. A fÚsij em seu próprio vigor de manifestação e ocultamento é o que ela é fechada em si

mesma, de modo que permanece à despeito do homem e do mundo. Por isso podemos dizer: a

fÚsij se dá originariamente sem mundo. No entanto, sem resguardar um mundo ela

92

Heidegger, M. 2003, p. 150-151.

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permanece fechada em si mesma para si mesma. Dando-se em seu retraimento próprio

permanece como tal.

A partir do pensador e do poema se encontra a interpretação de que a palavra,

enquanto fala da linguagem, dá e concede às coisas a possibilidade de serem o que são

dinamicamente. Desse modo, podemos ler a palavra poética de Stefan George do seguinte

modo: “Nenhuma coisa que seja onde faltar a fala da linguagem.” Ou ainda: “Onde faltar a

fonte que, enquanto fala inaugural e originária, a qual pertence a escuta cuidadosa, as coisas

não são coisas enquanto a reunião de mundo e terra.” Percebemos que a palavra do poema se

encontra em consonância com o que estamos chamando de fala da linguagem. Isso porque,

tanto no poema bem como na interpretação realizada por Heidegger, no empreendimento de

pensar a partir do poema, é dito que a palavra para dizer a palavra, a “jóia delicada e rica”,

escapou. A palavra para dizer a palavra não pode ser encontrada, se encontra na

impossibilidade ambígua e radical de qualquer apreensão. Desse modo, ela se mostra na

perspectiva ontológica porque é fala do ser. Porque ela é a fala da linguagem do ser e do não

ser na unidade do tempo, todos resguardados no abismo de simplicidade. A impossibilidade

que se revela no escapar da fonte inaugural e originária como fala, se resguarda analogamente

ao não poder ser apreendida. Isso porque o abismo detém resguardando a verdade e a não

verdade de seu aparecimento e velamento. Por isso a “jóia” como fonte da fala, enquanto “a

palavra para dizer a palavra” não se pode encontrar. Por estar, de modo radical, como fonte

originária, abrigada e resguardada no abismo de simplicidade.

O chamar a coisa à fala se mostra fundamental a respeito da interpretação do poema,

em função do que buscamos na medida da convocação que nos toma. A coisa, entendida

como o que reúne o embate fundamental entre mundo e terra, traz, em tal embate, o destino

do envio do ser e não ser na unidade do tempo. O mundo é o destino da fÚsij. Nele, ela se

abre ao mesmo tempo em que permanece fechada na cripta de sua verdade. Assim, sem

mundo a fÚsij não se destina. Ela apenas se fecha e permanece fechada, em si mesma, no

vigor de sua produção. Permanece fechada no resguardo que não encontra guarida em um

envio que, como tal, se mostra destinado a uma guarda cuidadosa que pertence ao vigor do

que, por si mesmo, se envia. Sem envio não há apelo, nem disposição posta, deposta e

proposta. Há apenas um círculo fechado em si mesmo, fechado na latência de uma

possibilidade de se abrir. No mundo, a terra se mostra em seu retraimento, de modo a nele

enviar-se em sua verdade velada no abismo. A terra pressupõe o mundo que ela abriga para

que ela possa vir a se revelar na verdade enquanto não verdade. Assim, podemos nos

encontrar em concordância com o filósofo e o poeta a partir do dizer do verso: “Nenhuma

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coisa que seja onde a palavra faltar”. Na medida em que entendemos “a palavra para dizer a

palavra” como sendo, de modo próprio, a palavra enquanto fala do ser, não há o que seja onde

falte esta palavra. Pois, como palavra, na medida da fonte primigênia do ser resguardado em

sua verdade no abismo, não há o que lhe possa escapar. Tudo a tal tensão ambígua e

originária se submete.

No que se refere à busca pela palavra da linguagem enquanto fonte inaugural e

originária Heidegger ainda nos diz: “A palavra para dizer a palavra não se deixa encontrar em

nenhum lugar em que o destino dá aos entes o presente da linguagem nomeadora e inaugural,

essa que nomeia que o ente é e como o ente brota e brilha93

”.

“O destino dá aos entes”. O destino, na fala do pensador, é entendido por nós como o

que, necessariamente, já reúne se enviando destinado àquele que pode suportar tal envio.

Assim, o destino dá aos entes enquanto um conceder a eles o presente da linguagem. Onde ela

se dá na medida de uma referência que, de todo modo, reúne. Até o presente momento,

percebemos que o que se envia a um destino encontra guarida na escuta que é e não é dos

mortais, posto que estes dela participam. Assim, ao homem é permitido ser o ente que é,

sendo como destinado. O fato da fala inaugural, da fonte originária, não ser encontrada “em

nenhum lugar em que o destino dá aos entes o presente da linguagem”, se dá porque não se

pode estar na disposição de apreender a ambigüidade do que por si é inapreensível. Lugar se

refere a uma localização, a um lugar que poderia ser alcançado. Refere-se a um espaço que é

conquistado pelos entes na medida em que são, ao seu modo, sendo no resguardo do ser. Não

podemos localizar ou perceber a locação do que, essencialmente, no abismo se encontra em

fuga. O destino concede aos entes o presente da linguagem como uma conjuntura. Tal

conjuntura se mostra no envio próprio do que se envia já aguardando o receber da escuta

cuidadosa. A escuta que, pertencendo ao que se envia, de modo próprio, é capaz de suportar

tal envio. Nessa conjuntura, o que se envia sempre se mostra no seu brilho que se dá

ofuscando a verdade de seu aparecimento, posto que sua verdade se encontra no abrigo do

sem-fundo abismal. Pois, na medida em que, como verdade do aparecimento, ela nomeia o

ente, tal nomeação se dá na destinação do envio. Assim, o ente pode vir ao brilho ofuscante de

seu aparecimento. Os entes são o que são, sendo ao modo de sempre brilharem no brilho

velado que se dá na verdade abismal do nada. Portanto, não há como apreender e localizar o

que é no radicalmente ambíguo e, de todo modo, sem lugar por se encontrar velado no

abismo. Destarte, brilham os entes em seu aparecimento por já se encontrarem abrigados no

93

Idem, p.150.

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chamado próprio da fala da linguagem onde, ao mesmo tempo, se resguardam abrigados na

escuta que é como pertencer radical aos próprios entes no envio de si mesmos. Eles se enviam

por serem o que são apropriados na unidade do ser e do tempo no abismo de simplicidade.

Nas discussões realizadas para procurar esclarecer tanto a fala quanto a escuta,

percebemos que para se reportar a uma, necessariamente, se mostra convocada a outra.

Ambas aparecem em conjunto na conjuntura de uma reunião. Elas estão reunidas de modo

que uma não se dá sem a outra. A compreensão da aparente obviedade é fundamental. De

modo claro que para compreendermos a fala, esta somente pode se dar na conjuntura própria

com a escuta. A escuta se articula enquanto aquela que guarda, no resguardo de si mesma,

aquilo que é falado, porque pertence ao falado. No entanto, o falado somente é o que é diante

da escuta que o resguarda. Assim ambas, fala e escuta, se mostram em uma referência mútua

de co-pertencimento.

A investigação pretende se articular no cuidado pelo que originariamente se mostra

resguardado no mistério. Desse modo, a investigação se promove em direção e busca da fala

da linguagem e da escuta cuidadosa que dura e perdura no cuidado e na guarda. As

investigações empreendidas anteriormente, juntamente com a fala própria tanto do poeta

quanto do pensador, podem nos auxiliar. Auxiliam-nos direcionando o entendimento próprio

da fala em tal conjuntura de co-pertencimento com a escuta.

Fala e escuta na unidade de sua conjuntura se mostram enquanto perduram no mistério

abismal da verdade de sua não verdade. Verdade e não verdade se dão ambiguamente onde o

nada é a possibilidade de revelar, no dizer e manifestar no brilho ofuscante, qualquer

possibilidade de aparecimento do que quer que seja, de modo que, assim, vela o ser.

Mais uma vez retornamos a citação que nos concede Heidegger – utilizando-se a

leitura empreendida até aqui - quando fala da escuta: “escutar é pertencer escutando,

perdurando e durando, nesse pertencimento, à fonte originária e inaugural enquanto apelo

combatente que brota como fala da linguagem”. A essa passagem, devemos adicionar a que

foi há pouco visto como: “nenhuma coisa, necessariamente, é sem a palavra da linguagem.

Pois, para estar no brilho próprio do que se dá enquanto linguagem, a coisa tem de estar na

referência própria entre mundo e terra. Ela tem de estar no embate primordial que, na

violência, guarda o mistério próprio da referência que identifica e diferencia cada um deles”.

A fala da linguagem é o brilho de manifestação resguardado no ofuscamento de

mistério do que se mostra no abrigo de seu brilho ofuscante e misterioso. Como tal fala, ela é

aquela que permite a indicação dos limites. Os limites do que é frente ao que não é. Assim,

ela reside na reunião da unidade que aproxima todas as diferenças na exclusão própria

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imposta pela limitação daquilo que não é. Isso se dá na disposição do acordo com o que se dá

vigorosamente no mostrar-se próprio posto na disposição de si mesmo. Indicando a unidade, a

fala da linguagem se mostra como referência própria. Dessa maneira, ela se envia já

resguardada na escuta cuidadosa que dura e perdura enquanto um pertencer próprio à fonte

inaugural. Essa fonte é que mostra a multiplicidade no resguardo do um. Na medida em que a

fala da linguagem se mostra como um dizer que reúne a muitos, ela se dá como reunião de

modo que esses muitos somente podem se reunir porque a fala mostra a própria reunião.

Assim, com os muitos reunidos se pode consagrar o que é sagrado na sagração do que

efetivamente se oculta. A fala da linguagem como verbo permite a celebração do mistério. Ela

concede ambiguamente o fundo no sem-fundo abismal para que muitos possam perceber o

sentido de si mesmos. Eles assim percebem, quando podem escutar na pertença ao apelo

combatente e inaugural do ser e do não ser na unidade do tempo. Como fala que brota, ela é o

chamado inaugural que recolhe, em si mesmo, a unidade do todo. Tal recolhimento se dá de

maneira que este todo sempre se mostra recolhido na fuga de si mesmo. O chamado da fala da

linguagem é referência enquanto unidade. Como chamado ele traz consigo a escuta cuidadosa

de si mesmo. Ele traz a escuta na medida em que se destina, como brilho misterioso da

unidade de todas as diferenças na reunião do um, para a guarda dos mortais. A estes últimos,

pertencendo ao chamado como fala, lhes é concedido poder participar da escuta da fala, de

modo que ela, como escuta, ambiguamente é ao mesmo tempo em que não é dos mortais. A

fala da linguagem é a palavra que concede às coisas aquilo que elas são na tensão própria de

ser coisa no embate entre mundo e terra. Nenhuma coisa é onde falta a palavra inaugural

enquanto fonte originária. Sem palavra não há mundo para se mostrar no embate com a terra.

Assim, a fonte que brota como fala traz consigo a possibilidade de um mundo se dar como

irromper próprio, permitido e sustentado pela terra enquanto fÚsij. O mundo brilha no abrigo

da terra que traz sua própria fala. A terra fala sempre no resguardo do abismo que recolhe a

verdade velada de seu aparecimento ao abrigar e revelar esse mundo no brilho ofuscante de

seu mistério.

Diante das discussões, a passagem de Heidegger em questão (“nós escutamos, de

modo próprio, quando pertencemos à fonte inaugural e originária que brota como fala”) pode

ser compreendida de duas maneiras que não são excludentes uma da outra. Essas distintas

maneiras se apresentam, na medida em que se referem ao soar em palavras a língua e os

discursos. A primeira maneira se dá na compreensão de que a fonte inaugural que brota como

fala, faz com que nós possamos romper e soar em palavras sonoras as línguas e os discursos

em que nos encontramos na disposição de falar. De modo que, na escuta - como

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pertencimento que dura e perdura cuidadosamente na guarda dessa fala, e da qual nos é

permitido habitar - podemos falar porque a fala inaugural nos concede, a partir de si mesma,

que falemos. Nós, assim, somente falamos correspondendo à fonte da fala na violência

inaugural e originária de si mesma. A segunda maneira de compreender, parte do

entendimento de que somente falamos porque o apelo da fonte se traz como a fala de si

mesmo. Sendo que, somente por trazer consigo a fala é que podemos, assim, numa referência

falar. O falar, como o apelo da fala da linguagem, é trazido para a guarda dos mortais e neles

brilha como uma resposta. Assim, aos mortais somente é concedido pronunciar algo que já se

encontra dito em sua unidade, na medida de um mostrar-se que brilha ofuscando.

Está claro aqui que há uma distinção fundamental em andamento. Primeiro, tratamos

da fala da linguagem que originariamente foi buscada na investigação que se encontra em

curso. Segundo, a fala que se encontra como a língua e os discursos, a fala que nós falamos.

Encontra-se em questão no capítulo presente a linguagem. Esta não se mostra restrita a

determinados aspectos e sim na amplitude de sua dimensão. Portanto, discussões superficiais

e incompletas não dão conta da sua dinâmica.

De qualquer maneira, no que se refere à fala mais próxima dos mortais, o mistério

permanece de como é que pode se romper em palavras sonoramente a partir da profundidade

da fala da linguagem. Assim, seja na compreensão de que a fonte inaugural como apelo nos

possibilite falar, ou de que esta se revele enquanto fala, a fala mais próxima dos mortais se

encontra possível sempre a partir do apelo combatente. A possibilidade de falarmos está

presente a partir do apelo do real que se põe diante disposto em sua disponibilidade. O real se

diz enquanto fala da linguagem onde os entes apenas podem brilhar na destinação do envio da

fonte.

Procurando prosseguir nas investigações trazemos outro trabalho de Heidegger, este

intitulado “A linguagem”. Neste trabalho, o autor nomeia a linguagem como uma fala do

silêncio, uma fala que soe silenciosamente enquanto “consonância do quieto94

”. Em tal

sonância de tranqüilidade, nessa sonância quieta, se encontra toda a possibilidade do ser

humano - lançado numa referência a esse apelo quieto - vir a falar. Como tal fato efetivamente

ocorre, ou seja, como o homem pode, a partir disso, romper e soar em palavras as línguas e os

discursos, o pensador deixa em aberto.

94

Em português na trad. de Marcia Schuback como: “A linguagem fala como consonância do quieto” p. 24 in

Heidegger, 2003, p.24. No original como: “Die Sprache spricht als das Geläut der Stille”. p. 27 in

UNTERWEGS ZUR SPRACHE – BAND 12 – Vittorio Klostermann, Franfurt.

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161

No entanto, se faz importante percebermos que a palavra da linguagem tem,

necessariamente, uma relação próxima da palavra que soa versando sonoramente como

palavra dos mortais. A palavra que é concedida aos mortais falarem se fundamenta e

essencializa na palavra quieta da linguagem. Podemos entender que esta quietude se dá velada

no abismo de simplicidade que vela o ser e o tempo. Então, já percebemos se conformar uma

unidade na referência fala–escuta enquanto diálogo. Este diálogo se dá no embate violento

entre mundo e terra, onde a terra brilha se enviando para o resguardo do mundo. Em tal

conjuntura podemos compreender a linguagem. Assim, estamos nos referindo a ela de um

modo amplo, porque não se compreende a fala sem uma escuta que lhe possa pertencer. Desse

modo, acreditamos ficar claro como compreendemos originariamente a referência fala–escuta

na sua radicalidade. A entendemos na medida em que o diálogo é uma reunião que, como

conversa, mostra a circularidade em que fala e escuta co-pertencem.

No entanto, permanece ainda a questão: como a linguagem pode se mostrar e dar em

sua originariedade? Estamos procurando investigar e discutir a partir da linguagem enquanto

ela se mostra como unidade. A partir da perspectiva do diálogo a linguagem se dá na reunião

de fala e escuta. Nele a própria escuta traz como pressuposição do seu acontecimento o

relacionamento direto com os mortais que dela participam. Aos mortais é concedido tal

participação enquanto perduram no chamado originário e inaugural do apelo combatente e

originário como fala. Na medida do diálogo procuramos esclarecer a fala e a escuta em sua

relação mútua de co-pertencimento, de modo que tal co-pertencimento traz o homem

enquanto participante da escuta. De maneira que, assim, ao homem é concedido poder

também falar. Nesse sentido, a linguagem é uma referência que reúne fala-escuta-homem.

Como referência ela mostra os três na radicalidade de seu mistério enquanto unidade em si

mesma. O mistério da linguagem se dá no ser e na unidade do tempo resguardados na verdade

abrigada no abismo do nada como mar de simplicidade. Na medida em que compreendemos a

linguagem enquanto referência dialogante, o caminho que se afigura no momento vem a ser o

questionamento do diálogo naquilo em que ele pode dizer a partir de si mesmo. Desse modo,

já que o diálogo deve ao lÒgoj a sua própria constituição, ao lÒgoj partimos em investigação

na medida de tentarmos adentrar errantes por seus caminhos.

O lÒgoj

Fazer uma incursão pelos escorregadios e difíceis caminhos do lÒgoj. A afirmação

parece simples, mas a sua aparente simplicidade revela grande dificuldade de realização. De

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162

diversos autores escutamos que o lÒgoj é discurso e dizer, fala e lição, ou ainda razão. Os

significados semânticos nos dicionários especializados também refletem a mesma opinião. No

entanto, Heidegger nos adverte em diversos momentos em seu “Heráclito” que estes

conceitos do lÒgoj são equivocados. Eles se encontram colocados a partir do entendimento

metafísico inaugurado pelo platonismo. Imersas no platonismo, todas as traduções e

interpretações do lÒgoj devem ser tomadas com certa desconfiança. Assim, devemos focar a

investigação de fora do contexto metafísico.

O filosofo nos apresenta três caminhos para nos encontrarmos na disposição do lÒgoj

tomados a partir do pensamento revelado nos fragmentos de Heráclito de Éfeso. Os caminhos

são: 1) o lÒgoj a partir do Ÿn p£nta eŒnai (tudo é um) do fragmento de número 50; 2) o

lÒgoj como legein no sentido de colher, coletar; e 3) pelo caminho do Ðmloge‹n da yuc» do

fragmento de número 45.

Tudo é um

O fragmento 50 de Heráclito retorna na medida em que se faz necessário a

investigação pelo lÒgoj ao modo como este se manifesta. O fragmento em questão diz na

íntegra: “Auscultando não a mim mas o Lógos, é sábio concordar que tudo é um.95

” Em

atenção ao que diz o fragmento, percebemos o pensador dizendo que a sabedoria se encontra

na escuta cuidadosa enquanto ausculta do lÒgoj. A sabedoria se revela no habitar a abertura

que suporta a manifestação do lÒgoj no dizer do Ðmloge‹n como “tudo é um”. Assim, a

sabedoria se encontra na ausculta que permite o dizer como Ðmloge‹n na medida em que o

lÒgoj é tudo e um. Nesse sentido, a sabedoria própria se dá em pertencer ao dito do tudo é

um. Devemos pertencer cuidadosamente ao dito no fragmento: “tudo é um”.

Assumindo o tudo na referência ao todo, este se manifesta na retração própria de si

mesmo abrigado no sem fundo abismal. O homem se encontra jogado nesta dinâmica, na

medida em que ela, de um modo ou de outro, possui o homem de modo próprio. Portanto, se

faz necessário nos encaminharmos para “chegar onde já estamos”. Onde já nos encontramos

possuídos e abrigados. Onde nos é concedido permanecer na disposição da abertura que

resguarda cuidadosamente o que lhe possui, para que o pertencimento enquanto escuta

cuidadosa possa dar indício de sua presença.

95

Op. cit., p. 71.

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Destarte, percebemos que o fragmento revela o lÒgoj como a referência primeira que

se dá como unidade que a tudo reúne. Assim, ele se dá mostrando a radicalidade de todas as

diferenças, ao mesmo tempo em que traz à tona a identidade de cada um. Tal identidade, se

revela na singularidade de cada um que se encontra reunido enquanto a unidade em si mesmo,

já abrigado pelo que a tudo reúne. Não podemos levar sem consideração o que foi debatido e

discutido anteriormente. O lÒgoj é a referência do um para todos os múltiplos, cada um em

sua singularidade.

O tudo do fragmento, aqui, é visto na amplitude do todo existente, na amplitude de

tudo o que pertence ao ser. Tudo o que pertence ao ser são os entes resguardados no ser,

sendo o que são na verdade e não verdade. O tudo se dá enquanto a totalidade do que

efetivamente se dá sendo aquilo que é e como é. Portanto, a unidade enquanto tudo revela a

diferença radical em sua possibilidade ontológica. Ela se mostra diferença na singularidade de

cada singular que é aquilo que é, sendo na dinâmica que lhe é permitida pelo ser e não ser na

unidade do tempo. O lÒgoj enquanto reúne consigo a diversidade, se mostra como a

identidade primeira. Ele, em momento nenhum nega qualquer das diversidades. As

diversidades, enquanto singularidades, são permitidas sendo o que são na tensão originária de

ser e tempo velados no abismo do nada. Isso quer dizer que todas as individualidades

encontram abrigo de identidade no um que a tudo reúne. Tudo o que é, sendo como ente,

encontra guarida no um que se mostra como referência a essa multiplicidade. Nesse sentido,

pelo saber das palavras de Heráclito, o pensador nos dá a possibilidade de pensar a partir do

mistério próprio do que se dá no resguardo de si mesmo. Assim, a questão para nós se

apresenta como: o que é esse um que a tudo reúne? Não há dúvida de que este não pode ser

visto na perspectiva de um conceito estático. Torna-se claro que estamos diante de questão da

mais alta magnitude. Devemos relembrar que o lÒgoj é também um dos múltiplos modos de

dizer o ser. Portanto, se dá em questão a concretude que se concede unidade abrigando a

diversidade do todo existente. O todo, em sua totalidade, se referencia neste que é o um

essencial, misteriosamente posto na disposição do sem-fundo abismal.

As diversidades são efetivamente com o que lidamos diariamente. Elas se encontram

na lida diária com a incompletude da vida do homem. As diversidades se mostram na pressa

do tempo medido, na massificação das informações, na escassez do pensamento, no ato de

deixar passar a vida diante dos olhos de modo que a virtualidade e a representação tomem o

lugar do viver, no controle velado imposto à maioria, etc. Elas se mostram também nos

utensílios, na verdade originária da arte e das obras de arte, nas vicissitudes da vida.

Encontramos a diversidade em sua radicalidade num mundo que irrompe abrigado e

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sustentado pela fÚsij em seu vigor. O que efetivamente as une? O que faz com que o todo se

dê reunido, de modo que possamos dizer que coisas amplamente distintas se mostrem

reunidas na unidade do um que, enquanto unidade, nunca pode se dar na solidão?

A unidade que a tudo reúne sempre se mostra na tensão fundamental da própria

reunião. Esta pressupõe a identidade fundamental que é e congrega, em si, a diferença. O

lÒgoj assim reúne. Mostramo-nos sábios em auscultar o próprio lÒgoj dizendo-se a si

mesmo na medida em que no Ðmloge‹n concordamos com ele: “tudo é um”. Todas as coisas

já se mostram em si mesmas, como elas mesmas, na medida em que são o que são. Elas são

sempre ao seu modo, sendo em sua unidade. Assim, se resguardam no ser e na unidade do

tempo, ambos velados na simplicidade do abismo. Todas as coisas aqui se encontram na

disposição fundamental como entes em sua referência própria ao ser. O ser se mostra

entendido na medida do dizer do lÒgoj como aquele que assim reúne enquanto unidade

originária. O lÒgoj se revela ontologicamente. A unidade na multiplicidade iniciada em

discussão anteriormente96

, mostra agora a oportunidade de se desvelar na investigação que se

segue. Portanto, se encontra claro que, aqui, o lÒgoj em si mesmo se encontra na senda do

ser. O ser é aquele que reúne enquanto unidade a multiplicidade do que se encontra

resguardado em sua verdade. Abrigar a tudo, reunir tudo na multiplicidade de suas diferenças,

nos dá a visão de uma amplitude que, por si mesma, escapa originariamente a qualquer

possibilidade de se conceder em palavras de modo efetivo. Reunir tudo, dizendo que tal

reunião se dá como um nos confronta com um paradoxo radical. A unidade de cada um de

nós, na medida em que somos e permanecemos sendo, se encontra em tal unidade de reunião

resguardada. A permanência aqui tem lugar como concretude. Tal permanência se dá na

transformação do tempo que se mostra em sua unidade tridimensional. Assim, a unidade de

cada um permanece em sua concretude transformando-se. Portanto, o um que a tudo reúne,

pode assim reunir suportando toda a dinâmica que se encontra implicada. Aqui, nos

encontramos diante da unidade, do tempo, do ser. Difícil para nós é podermos fazer uma idéia

do que venha a ser, de modo próprio, tal todo. O todo nos escapa por não nos encontrarmos na

condição de nos postarmos a ele numa escuta atenta. No entanto, tal impossibilidade de

abarcar o todo, na medida do homem, ao mesmo tempo já lhe dispõe numa referência a esse

mesmo todo, porque nele nos encontramos lançados. Desse modo, não precisamos possuir

uma idéia do todo. Pois que já somos, sendo numa disposição de unidade que nos dispõe

96

Conferir subitem O um e a multiplicidade, no Capítulo 1 do presente trabalho.

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reunindo de modo a revelar o próprio todo em si. Paradoxalmente nos encontramo em tal

encruzilhada.

Auscultando pacientemente pertencemos ao que escutamos. Em tal pertencimento nos

encontramos na possibilidade de vislumbrar a reunião da totalidade, daquilo que é sendo

sempre na unidade tridimensional do tempo. O abismo mais uma vez se manifesta em sua

concretude. Em sua simplicidade ele resguarda, como “véu do ser”, a verdade de tudo o que

pode ser dito como algo que é. Coisas tão distintas reunidas, como sapatos e sonhos e obras

musicais, somente se reúnem na unidade que radicalmente pode resguardar a multiplicidade

em si mesma. O ser é dito de múltiplas maneiras porque, assim, podemos dizer que ele

resguarda a unidade de tudo o que é sendo no seu abrigo. O ente, em sua totalidade, é dito de

múltiplas maneiras porque, em tal multiplicidade, já se encontra na sua unidade singular

reafirmado perante toda a diferença. A diferença radical se mostra na unidade tensional entre

ser, tempo e abismo. Na simplicidade se dá todo o desdobramento do que se desdobra. Um e

múltiplo. O lÒgoj, aqui, fala na medida em que nos concede a unidade como a tensão em que

todo o real já se vê jogado e assim emerge. O real pode se dar em sua emergência, na medida

em que a indicação do lÒgoj nos permite perceber a unidade originária que abriga o todo em

sua multiplicidade enquanto unidade radical.

No Ðmloge‹n percebemos a indicação de um envio. Este envio se destina na medida

de, assim, poder resguardado enviar a verdade. O envio mostra o saber que por ele é

resguardado. A unidade radical e tensional em si mesma é ampla em sua amplitude, ao

mesmo tempo em que paradoxalmente se resguarda em cada singularidade posta na

disposição de si mesma. Um e múltiplo: tudo é um. Mais uma vez a simplicidade do abismo,

como a permissão de todo desdobramento, se posta diante de nós na sua concretude. O

abismo do nada resguarda velando o ser na unidade do tempo abrigando-os em sua verdade. A

verdade se revela não verdade radical lançada e jogada de modo inacessível como um todo no

abismo. Apenas no lançamento próprio, abrigado no “véu do ser” enquanto a verdade de si

mesmo, pode o lÒgoj como tudo-um se conceder ao Ðmloge‹n. Concordar não é se encontrar

de modo estático em um receber que assim concorda. Tal concordância somente pode ser o

que é na dinâmica em que a unidade revelada e resguardada no envio radical já se encontra.

Assim, não há estaticidade ou passividade no concordar como Ðmloge‹n. Mas sim, participar

dinamicamente da permanência como solidez constantemente em transformação. Um e

múltiplo trazem harmonicamente a polêmica de sua unidade e assim persistem na

permanência. Desse modo, reunindo como unidade a multiplicidade, o lÒgoj se dá como ser.

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Lšgein

O segundo caminho apontado pelo pensador, vem a ser a busca pelo lÒgoj a partir da

compreensão da palavra grega lšlw. Lšlw nos traz os sentidos de agrupar, reunir, escolher,

selecionar. Pensando o lÒgoj heraclítico em tal perspectiva nos afiguram algumas

possibilidades de discussão. Estas, necessariamente partem do lÒgoj ao mesmo tempo em

que pretendem voltar a ele num movimento do retorno de um envio.

O que podemos pensar na perspectiva do que agrupa, do que reúne? A princípio, o que

podemos falar é que agrupar e reunir são modos de selecionar. No entanto, o que temos em

uma seleção? Uma obra artística reúne selecionando o que, em si mesma, se revelará na

perspectiva da unidade. Assim, uma obra musical se concedendo como unidade agrupa e

reúne. Ela assim faz, na medida de uma seleção. A obra se revela selecionando o que

sonoramente se mostra enquanto sonoridade. Desse modo, a obra se dá na sua verdade

enquanto se manifesta misteriosamente. Uma seleção de futebol, de modo distinto, também

reúne na escolha dos seus jogadores. A respeito do selecionar na seleção estamos

acostumados a eles. De todo modo nos é concedido estarmos postos na disposição de

escolher. No entanto, tal consentimento, em que somos postados em nós mesmos, nos dá a

medida para dizermos que a seleção do agrupamento, enquanto escolha, depende

necessariamente de partir de uma exclusão.

Excluir é uma forma de selecionar. Excluindo passamos a escolher o que não fará

parte do que pretendemos agrupado e reunido. A exclusão se dá na medida em que deixamos

ao lado o que permanece fora do agrupamento. No caso da obra musical, quando o homem-

músico se encontra na disposição da convocação que o chama para colaborar na criação, ele

seleciona o que se dará enquanto sonoridade já a partir da exclusão. Um imensurável mar de

sonoridade é deixado de fora. Ele se encontra excluído para que os eleitos possam vir a figurar

rompendo em obra. Percebemos assim, que um embate é travado de modo radical. Onde o

excluído de toda exclusão somente pode ser o que é na medida em que mostra demonstrando

o que é a reunião e o agrupamento. Deixar de lado, de maneira a permanecer no excluído de

toda exclusão, traz a medida própria que a reunião do agrupamento necessita para ser o que

ela é enquanto reunião. Enquanto a reunião é um agrupar a partir de determinados critérios.

Tais critérios são medidos diretamente pela excluído de toda exclusão. Em tal exclusão, o

excluído, como unidade, mostra, na diferença própria, o critério de agrupamento e reunião

naquilo em que ele radicalmente é. Assim, surge a questão: o que pode definir qualquer

critério? Não haveria então qualquer arbitrariedade na escolha dos critérios em si?

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O estabelecimento de qualquer critério que se dá na dinâmica da escolha depende do

arbítrio que é escolher. Escolher é deixar de lado. Portanto, sem dúvida que os próprios

critérios se encontram na medida do agrupamento e reunião. Talvez a palavra arbítrio não se

dê na colocação mais apropriada, pois que ela traz a vontade como julgamento. No entanto, o

próprio critério - na medida em que fala como derivado do grego kr…nw como separar,

distinguir, escolher - se encontra na dinâmica que aventamos. Assim, o critério aparece como

um só na multiplicidade do aparecimento. O excluído de toda exclusão concede, como a

medida radical, que o agrupamento e a seleção possam pousar no repouso de si mesmos. A

medida para qualquer critério e, nesse sentido, para qualquer caminho que se encaminha, se

encontra, de modo radical, abrigada no excluído de toda exclusão. Tal excluído aparece como

o mar do abismo de simplicidade. Isso, porque nele está a referência com que se limita e se

delimita o pequeno grupo selecionado. Tal grupo traz o encaminhamento do caminho

escolhido diante da imensidão do excluído que permite toda exclusão do que se exclui. No

imensurável âmbito do excluído, que abriga toda exclusão, temos toda a medição como

desdobramento reunido enquanto unidade na permissão do ser. A partir do que é sem medida,

na perspectiva do excluído da exclusão, se podem produzir critérios e assim encaminhar

caminhos que se desdobram como reunião, se dando na escolha e na seleção.

O excluído da exclusão é, na multiplicidade de aparecimento do mesmo, o abismo

radical que permite o encaminhamento de todos os caminhos como desdobramentos na

simplicidade. Não há dúvida de que agrupar e selecionar sejam necessariamente tomar partido

por um rumo, por um caminho em detrimento de outros. Assim, eles se fazem por serem, de

qualquer modo e originariamente, a produção posta na tomada de um caminho que, em si

mesmo, pode permitir sua escolha. Dessa maneira, nos encontramos diante de um abismo sem

fim. Em sua simplicidade, nos encontramos diante de possibilidades de encaminhamentos,

que são a medida de toda e qualquer unidade. O abismo, como o excluído de toda exclusão, é

a medida na realização da tomada de escolha pelo encaminhamento de qualquer caminho que

se dê enquanto agrupamento e reunião.

Podemos tentar perceber o que é a reunião e o agrupamento fora da experiência mais

imediata do homem. Isso se é que tal possibilidade se dá como possível. Como homens nos

encontramos exigidos na disposição que nos convoca em qualquer discussão. No entanto, fora

do homem nos deparamos com o que se mostra especificamente no âmbito da fÚsij. Assim,

ela já é a sua própria medida. Cabe-nos então perguntar: de modo que a fÚsij é a medida de

si mesma como então podemos perceber as relações específicas de agrupamento e reunião?

Ao homem - enquanto é sendo no abismo do ser e do não ser, na medida em que encaminha

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caminhos permitidos pelo ser e não-ser – é concedido poder agrupar e reunir na permissão do

excluído de toda exclusão como simplicidade do abismo. Isso na medida em que tal abismo

lhe mostre, de modo radical, a medida dos critérios para reunir. Torna-se prudente lembrar

que, todo o excluído e todo o agrupado e reunido na perspectiva do homem são abrigados na

fÚsij, como aquela que se oferece disposta no seu aparecimento misterioso sustentando e

permitindo tal seleção. Portanto, na postura em que o homem se encontra disposto quando

pode agrupar e reunir em seleção, ele somente pode já no abrigo, na permissão e no sustento

próprio da fÚsij.

Entretanto, o que procuramos dizer é que a fÚsij, fechada no seu mistério, também

traz seus limites abrigados nela mesma. Ela traz a medida de sua delimitação de modo que

cada manifestação de si mesma se mostre na diferença da multiplicidade abrigada na unidade

que ela é. Cada ente do ser, que se dá sendo no âmbito da fÚsij, traz a marca do mistério

próprio a ela mesma enquanto unidade. Cada ente do ser se dá, enquanto abrigado em sua

própria unidade, como identidade frente às diferenças de todos os outros entes que são em seu

velamento próprio. Desse modo, podemos perceber que cada um deles, em sua unidade de

reunião, se encontram já delimitados em um limite. Tal limite faz com que estes sejam o que

propriamente são e não outro. Vendo na perspectiva dos entes que são sempre sendo,

percebemos, na sua delimitação, um encaminhamento enquanto criação. Tal delimitação se

mostra nos seus méritos próprios, enquanto os critérios de encaminhar os caminhos,

resguardados no mistério insondável que pertence à fÚsij. Isso, porque ela se resguarda

sempre em seu mistério, fechada em si mesma. Desse modo, os mistérios de encaminhamento

para o agrupamento e reunião próprios à fÚsij pertencem somente a ela. Diante disso, o que

podemos tentar buscar é discutir a partir do seu aparecimento que ambiguamente se dá.

Podemos perceber que também há diversos caminhos na constituição do que se mostra

e dispõe no encobrimento da fÚsij. Tal percepção se dá pela delimitação a partir do que se

dispõe por si. Na medida em que podemos perceber que ela trava a sua delimitação na

produção de tudo aquilo que é sendo por ela, tais caminhos, no seu constituir-se próprio, se

dão na profunda radicalidade do nada. O nada se dá como abismo misterioso que ela própria

abriga na medida de si mesma. Esse nada abismal é a medida que a fÚsij traz no mistério de

si mesma. Sendo ela, ambiguamente, também o nada abismal, da tensão entre ser e não ser, a

fÚsij se mostra como toda a exclusão do que não se dá encaminhado de modo efetivo. Isso

na medida em que ela também é a latência própria de todos os seus caminhos. Assim,

ontologicamente ela detém, na simplicidade, a exclusão, e o agrupamento e reunião de si

mesma. Nesse sentido, ela é também lÒgoj de modo que agrupa e reúne a si mesma abrigada

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pela própria exclusão originaria que ela mesma é. Podemos dizer que, originariamente, a

fÚsij é exclusão como abismo que permite todos os caminhos. Dessa maneira, o reunir

somente pode ser lÒgoj, nessa perspectiva, por ser antes exclusão de modo a medir-se sempre

no sem medida de si mesmo. Assim, o lÒgoj é originariamente também fÚsij. Ela se mostra

como lÒgoj na medida em que traz consigo toda a exclusão de si mesma. Em tal exclusão, a

fÚsij pode encaminhar todos os caminhos que delimitam o seu aparecimento misterioso.

Destarte, o lÒgoj é exclusão originária quando permite o agrupamento e reunião que ele

também é enquanto fÚsij na sua delimitação própria. O lÒgoj é também fÚsij como nome

do ser. Ambos se abrigam no mesmo. O ser é múltiplo na sua unidade nos concedendo de

modo múltiplo e ambíguo seu mistério.

Contudo, talvez possamos trazer uma objeção: já que a fÚsij se guarda no seu

mistério insondável, como é que podemos dizer que ela venha a excluir na exclusão que ela

mesmo é? Como podemos dizer dela o que ela é ou não é? O que ela faz e o que deixa de

fazer? A questão se baseia na opinião de que aqui procuramos o processo de humanização da

fÚsij, de modo que ela venha a tomar atitudes. Está claro que, resguardada no seu próprio

mistério, nada podemos dizer. Não sabemos como e muito menos porque ela assim se

encaminha. No entanto, aqui não se trata de saber como e muito menos por que. Sabemos que

tal empreitada irá sempre esbarrar no mistério originário que a fÚsij em sua radicalidade é.

Tal mistério se revela como total impossibilidade de vislumbrar qualquer indício do mesmo

na medida de um como ou por que. Somente podemos partir do que ela mesma mostra

abrigada no seu encobrimento radical. Nessa tentativa, temos de perceber que a fÚsij dá

conta de si mesma. Ela se envia para a guarda da escuta cuidadosa que ela mesma possibilita

por partir dela a sua própria referência. O que então se afigura é que, de um modo ou de outro,

caminhos e descaminhos que à própria fÚsij pertencem permanecem postos na disposição,

de modo que ela assim pode abrigá-los. Não estamos procurando impor à fÚsij algo que não

esteja em consonância com ela mesma. O que procuramos é uma tentativa de caminho na

medida em que ela própria se permite, nos convocando e nos exigindo, a ser questionada em

sua verdade. Assim, os caminhos de produção da fÚsij a ela pertencem, bem como os

descaminhos da exclusão que dela partem. O importante é percebermos a consonância na

unidade da diferença tensional em que se encontra no mesmo fÚsij e lÒgoj radicalmente.

Ambos se mostram na co-pertinência de suas diferenças no dizer o mesmo resguardado no

âmbito do ser. Portanto, se implicam de modo inequívoco onde, ao se falar de fÚsij já a

partir da diferença do mesmo, estamos falando do lÒgoj.

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O lÒgoj do homem?

O terceiro caminho para buscar o lÒgoj apontado por Heidegger, se encontra na

perspectiva de questioná-lo na medida do homem. Tal se dá como se o homem possuísse um

lÒgoj que se mostra em referência ao lÒgoj propriamente. Assim, a partir do Ðmloge‹n, na

medida em que é dizer o mesmo que diz o lÒgoj, podemos nos permitir estar na possibilidade

de trazer novamente o fragmento número 45 de Heráclito. Np entanto, agora ele se dá de

modo completo dizendo: yucÁj pe…rata „ën oÙk ¨n ™xeÚroi Ó p©san ™piporeuÒmenoj

ÐdÒn oÛtw baqÝn logo nœcei.97

. Dito na tradução de Carneiro Leão como: “Não encontraria

a caminho os limites da vida mesmo quem percorresse todos os caminhos, tão profundo é o

Logos que possui”. Heidegger, a partir da interpretação deste fragmento, nos diz que o

homem possui um lÒgoj, e que este é profundo. De modo que a profundidade de tal lÒgoj se

dá na referência que este tem ao lÒgoj ontológico, na medida em que o primeiro se referencia

neste último. Assim, o autor aventa a possibilidade da manifestação de dois lÒgoj: primeiro o

lÒgoj enquanto a originariedade do ser, que se dá como referência enquanto um que congrega

a multiplicidade; o segundo, um lÒgoj que pertence à vida enquanto yuc» e, assim

compreendida esta, no aspecto da vida do homem. A yuc» é compreendida enquanto sopro,

sopro de vida na referência do saber-se vivo, enquanto um tomar e apanhar o ar. Ela é o sopro

que respira de modo que este apanhar e soprar, de alguma maneira, sejam enquanto apanhar e

soltar vistos como um agrupar e reunir. O pensador compreende este lÒgoj da yuc» - como

disposto a um lÒgoj profundo, entretanto posto já em referência ao lÒgoj originário98

.

O que se configura enquanto a vida do homem na medida da yuc» pode nos trazer

uma possibilidade distorcida de compreensão do dito heraclítico. Não há dúvida de que a

relação da yuc» com a vida do homem é algo mais do que atestado enquanto experiência

grega. No entanto, o que acaba procedendo a partir dela é uma subdivisão do lÒgoj. Quem

permite tal desdobramento é, de modo próprio, a perspectiva da multiplicidade do próprio

lÒgoj na medida em que este é um que reúne o múltiplo. Assim, o lÒgoj posto enquanto

referência do ser e do tempo no sem fundo abismal do nada, pode dar a perceber mais de um

lÒgoj. Devemos ressaltar que tal possibilidade de compreender a referência a mais de um

lÒgoj, se encontra na esteira da tensão originária entre lÒgoj e fÚsij. Nessa tensão, os dois

se dão na unidade de co-pertencimento radicado na diferença. No entanto, aqui

97

Heráclito. Op. cit., p. 70-71. 98

No trabalho de Heidegger intitulado Heráclito - com tradução para o português em edição da Ed. Relume

Dumará: Rio de Janeiro - o autor diferencia o lÒgoj ontológico começando-o por letra maiúscula e o do homem

começando por letra minúscula. Aqui optamos por não proceder tal diferença.

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questionaremos tal posicionamento como parte das investigações que procuram estar em uma

ciosa escuta pertencendo ao lÒgoj. Assim, estamos na disposição de que ele possa nos guiar

na medida de nos encontrarmos na questão que nos exige já dispostos.

A partir do fragmento heraclítico, nos encontramos no percurso de compreender a

yuc» como a vida do homem. Dizemos que, assim, o fragmento se apresenta no dizer que

resguarda a possibilidade de se referir a um lÒgoj do homem. Talvez, tal modo de

compreensão seja o mais acertado. Pode ser que ele se dê de modo a estar mais próximo do

que efetivamente o pensador põe a pensar. Sendo assim, é totalmente coerente o dizer que o

homem possui um lÒgoj, e que este é profundo na profundidade de sua referência ao lÒgoj

enquanto fÚsij. De qualquer forma, se mais ou menos acertado em relação a Heráclito,

devemos com todo o risco assumir a postura de uma contestação de tal compreensão. Aqui,

não compreendemos que o homem possua um lÒgoj, e que este se dá na referência à

profundidade de um lÒgoj mais profundo. Aqui, compreendemos que o homem é o único

ente, que é sendo ao seu modo, na disposição do mostrar-se próprio do que se dá. O que se dá

se revela permitido no abismo da exclusão, que é a medida de todo agrupar e reunir já na

unidade do tempo. Assim, procuramos dizer que o homem não possui um lÒgoj diferente do

lÒgoj mais originário. O homem não possui lÒgoj. O homem se encontra na disposição de

pertencer ao enviar-se próprio do que, agrupado e reunido, se dá na incomensurabilidade da

exclusão. Esta que é a medida para toda reunião reunida, em si mesma, que se dispõe

mostrando-se em seu mistério. Em tal pertença o homem se encontra na possibilidade de

guardar escutando cuidadosamente o enviado do envio que sabiamente se dá. Mas não porque

possua um lÒgoj, e sim, porque se encontra na disposição do lÒgoj. Este que, como fÚsij,

se abriga na sua delimitação a partir do aberto de toda exclusão como possibilidade de

encaminhar todos os caminhos.

Portanto, devemos retornar ao fragmento heraclítico em questão, mas agora a partir de

outro posicionamento. A yuc» enquanto a vida na perspectiva do homem deixará de ser a

única possibilidade de medida do fragmento. Carneiro Leão nos apresenta a tradução da yuc»

como vida. Na sua tradução não há referência direta à vida do homem de modo específico. A

tradução nos concede o fragmento quando fala a respeito dos “limites da vida”. Não há dúvida

de que outros tradutores o fazem como “limites da alma”, o que, de qualquer forma, traz a

possibilidade do animado, do sopro. No entanto, a questão é que a alma, enquanto yuc», se

encontra ligada diretamente a vida, ao vivo, ao que respira como manifestação de si mesmo

enquanto fenômeno, a inspiração e expiração. Assim, o próprio Heidegger nos diz a respeito

do tomar apanhando o ar e fazê-lo retornar. Na dimensão que revela o tomar apanhando o ar e

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fazendo-o retornar na expiração como reunião enquanto revelação do que é, se apresenta o

homem como o único ente que experimenta tal relação na proximidade. Ele é o único que se

encontra aberto a essa manifestação na medida da experiência. No entanto, como sopro de

vida, a yuc» acontece animando a vida do que é e se dá como vivo. O vivo não se restringe

ao âmbito humano. Assim, a vida revelada no fragmento heraclítico abrange o âmbito de tudo

o que é vivo. Nesse sentido, por extensão, podemos considerar a vida no âmbito da zw»

grega. Esta pertence radicalmente à fÚsij enquanto aquela que a sustenta e fundamenta

naquilo que ela é. Apesar da zw» não totalizar a fÚsij, ela somente é na fÚsij. A fÚsij traz

a zw» na sua referência máxima. Todo vivo enquanto é sendo o que é, se dá na zw» da fÚsij.

Nesse caso, os limites da vida são os limites da zw» que, em referência à fÚsij, mostra a

profundidade do lÒgoj. Esta mesma referência Heidegger também apresentou em seu

trabalho a respeito de Heráclito apesar de rumar por outra perspectiva. Portanto, não é sem

razão que o caminho escolhido por nós aqui se dá.

Outra questão de suma importância se apresenta no que diz limite. “Os limites da

vida” aparecem no fragmento como o que é buscado quando se está a caminho. Tais limites

não se dizem por estarem resguardados no lÒgoj. A impossibilidade de chegar aos limites da

vida dita no fragmento, nos impulsiona a investigar o que se dá como limite. Limite é

comumente compreendido na perspectiva de indicar o término e o início de algo. Então, ele se

encontra na tênue linha que separa o que é do que não é. Ao pensarmos nos limites de algo

que se mostra ao alcance das mãos de modo material como, por exemplo, um vaso de barro,

seu limite percorre toda sua constituição. Tal constituição, materialmente, se refere à

ocupação própria que o vaso demonstra na conquista do seu próprio espaço. Mas o limite não

se demora sendo o que é no que se refere apenas ao vaso de modo específico. Ao mesmo

tempo ele demonstra tudo o que não é o vaso em questão. Inclusive outro vaso semelhante em

forma, textura, cor, material etc., bem como todas as coisas que lhe confrontam enquanto

diferença. Enfim, tudo o que, de qualquer modo, é outro que não ele. Assim, o limite é o que

tanto limita o próprio como o que, em tal limitação, mostra o outro. O próprio limite se

encontra, a si mesmo, em um limiar. Talvez, enquanto ele é o que é seja o limiar de si mesmo

enquanto limite.

Voltando ao que já dissemos, o início e o término de algo é o que mostra o limite de

tal coisa. Ele é a divisão que divide tanto um quanto o outro, início e término. Torna-se claro

que o exemplo em questão, se dá na perspectiva do que é efetivamente material e inanimado,

do que se dá de modo objetivo ao alcance da mão. No entanto, o limite não é algo que esteja

nessa disposição como disponibilidade. Portanto, o limite se mede com algo que não se

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encontra no cálculo. O limite de algo se dá justamente no defrontar-se próprio com o que não

é esse algo. O que não é esse algo não se pode compreender na perspectiva de uma

objetividade, se deve compreender tal confronto com o que, radicalmente, não é esse algo em

todos os âmbitos. Os limites, bem como a identidade de algo, se medem tendo a sua própria

medida diante do sem medida que é referência para que o limite seja o que ele é. O que separa

início e término, como limite, se situa como o que torna possível a referência de um para o

outro na medida do abismo. O nada, o abismo de simplicidade que se dá sem limite,

confrontando-se com a limitação do que é sendo a partir da tensão limítrofe entre início e fim,

concede ao limite, como não limite, a sua própria liminaridade na ambigüidade radical. O sem

limite é a medida de todo limite. O abismo do nada, do ser e não ser na unidade do tempo,

mostra toda possibilidade de limitação do que quer que seja. A partir desta discussão inicial,

retornamos à questão dos “limites da vida” a qual se refere Heráclito.

Quais os limites da vida? Heráclito adiantando qualquer possibilidade de tentativa, já

nos diz que estes não se há de encontrar, mesmo “percorrendo-se todos99

os caminhos”. No

entanto, o pensador dá alguns indícios a respeito de tal busca: “tão profundo é o lÒgoj que

possui”. A vida possui lÒgoj e, por tal, não se dá a encontrar seus limites. Mas o que é a vida

para que possamos buscar seus limites? Se houver possibilidade de dizermos o que é a vida,

talvez estejamos na disposição de lhe encontrar os limites. De todo modo, sabemos que ela,

em si, já é mistério. No seu mistério se resguardando ela se revela. Como podemos dizer o

que a vida é? Como podemos dizer quando ela inicia bem como termina? Ao tomarmos como

exemplo um ser vivente, estaremos incorrendo no equívoco de trazer a experiência de apenas

um que, dentre muitos, cada um a seu modo, são ditos nos ditames da vida. Não podemos

medir o que é a vida apenas pela experiência de um vivente. Isso porque se poderia dizer que

seu término é a morte na perspectiva da ausência da animação daquele que deixou a condição

de viver. A vida é mais do que o vivente individual sem deixar de abarcá-lo em sua própria

condição. A vida engloba todo vivo, todo aquele que é sendo de modo vivente tomando e

retornando o sopro para si, no soprar de si mesmo. Mesmo que tal experiência somente esteja

aberta ao homem. A vida é a referência para todo o que se dá enquanto vivo. Ela é a unidade

que mostra, em si mesma, a multiplicidade que ela traz consigo. Assim, ela é pela

profundidade própria do lÒgoj que se encontra nela.

Pode-se ainda argumentar contra o dizer que profere que o lÒgoj se encontra na vida.

Na última parte do fragmento, está dito que o lÒgoj que a vida possui é profundo. Tal modo

99

Grifo nosso.

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de dizer pressupõe a existência de outro lÒgoj. O equívoco se mostra justamente na

compreensão da realidade própria de outro lÒgoj. Pois, no fato de pressupor que o fragmento

diga que há outro lÒgoj reside o maior problema. Retomamos a tradução: “... tão profundo é

o Logos que possui”. Podemos compreender a relação do lÒgoj com a vida de modo a que a

vida, em si, possui lÒgoj. A vida é unidade própria que, enquanto tal, se dá na multiplicidade

dos viventes que se desenrolam na unidade vida/morte. A vida se encontra num âmbito

originário de modo que é diretamente ligada à fÚsij. A fÚsij lhe é fundamento no sem-

fundo abismal do nada enquanto simplicidade, este que se mostra como medida da própria

fÚsij e se dá resguardado nela mesma. A vida compreendida enquanto zw», na perspectiva

da fÚsij, traz a profundidade do lÒgoj para a instância originária de si mesma. No âmbito do

excluído de toda exclusão que, de modo próprio, é a medida para todo ajuntar e reunir, o

lÒgoj profundo, enquanto fÚsij, é o lÒgoj da vida. Assim, a vida se traz lÒgoj porque antes

de qualquer coisa ela é necessariamente fÚsij. No excluído que se dá a exclusão de toda

limitação do que se encaminha enquanto produção própria, a fÚsij se traz lÒgoj como

agrupamento e reunião. O homem não possui um lÒgoj, bem como todo o vivente do mesmo

modo. Contudo, como entes que são, sendo no âmbito próprio da fÚsij em seu mistério, eles

se encontram à disposição do lÒgoj. Encontram-se nessa disposição, como o que é medido no

âmbito do excluído de toda exclusão que mede a reunião e o agrupamento do que se dá.

O fragmento de Heráclito diz que a vida possui lÒgoj na medida em que ela é

profunda. Assim, a vida é abrigada e resguardada na profundidade da fÚsij em seu

aparecimento misterioso. Resguardada em si mesma, a fÚsij mede os critérios de

agrupamento e reunião de seu próprio aparecimento. Ela mesma mede no excluído da

exclusão de todos os caminhos que se sustentam nela própria. Podemos dizer que o lÒgoj,

como fÚsij, se mostra não na própria reunião e agrupamento em si, mas no âmbito de

profundidade em que o excluído de toda exclusão dá a medida em que todo reunido e

agrupado se mede. Onde todos os critérios de reunião e agrupamento se sustentam. No

excluído de toda exclusão é que o lÒgoj, em tensão direta com a fÚsij, pode dizer o ser e o

não ser. É então que ele é um com ela. Aí reside a unidade originária da tensão entre ambos.

FÚsij e lÒgoj são o mesmo.

O homem como ente é abrigado pela fÚsij na disposição direta em que se mede

constantemente na dualidade vida/morte. Ele se encontra à disposição de pertença ao lÒgoj

que se dá no medir do excluído de toda exclusão. Não sendo o homem, o único ente em sua

dinâmica que se encontra na disposição da vida, ao mesmo tempo é o único que se mostra

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aberto à unidade vida/morte. É o único ente do ser a quem é concedido saber a morte. Isso

porque, na medida em que, aberto ao lÒgoj originário enquanto fÚsij, pode, habitando a

abertura, receber o envio que lhe é destinado. Desse modo, o homem se encontra na

possibilidade de chegar ao confronto do seu próprio mistério.

No entanto, permanece em questão o que é a vida, e de que modo podemos medir seus

limites, e, ainda, se há limites. A vida é o vigor permanentemente velado do aparecimento que

se dá por si, já que é originariamente fÚsij. O que foi dito a respeito da vida, no que se refere

à relação de unidade que congrega a multiplicidade de todo vivente, se confere também à

morte. A morte não pode ser considerada na perspectiva de um vivente que chegou a morrer.

A morte deve ser compreendida enquanto unidade que traz a multiplicidade dos que morrem e

dos que podem morrer. Viver já é um caminhar necessariamente para a morte, de modo que

vida e morte são, de qualquer modo, uma unidade. Tal compreensão não vem a ser nenhuma

novidade. No seu fragmento de número 88 Heráclito já diz: “O mesmo é vivo e morto...100

”.

Vida e morte são uma unidade. Somente na unidade do um, que traz a multiplicidade, é que

podemos questionar a vida posta no fragmento a partir da impossibilidade de encontrar seus

limites. Por se tratar da vida enquanto originariedade fica ainda mais patente a

impossibilidade apontada por Heráclito. Originariamente, a unidade vida e morte, enquanto

fÚsij, traz a sua limitação apenas na perspectiva do abismo. O abismo é, necessariamente, o

sem limite onde todo o limite se mede. Como sem limite originário enquanto o que é a medida

para vida e morte, não se pode encontrar os limites da vida em nenhum dos caminhos que se

dão sustentados e permitidos pelo próprio abismo. Ele vela a vida e a morte enquanto fÚsij

em sua verdade. O abismo se mostra no âmbito da fÚsij como nada, de modo que ela traz o

abismo. Podemos dizer do abismo, enquanto o sem limite de todo limite, que ele é a medida

da unidade vida e morte. Somente no abismo, que é, radicalmente, o sem limite por permitir

toda delimitação e o encaminhamento de todos os caminhos, percebemos a medida da unidade

vida e morte. O abismo enquanto se resguarda fundado na tensão originária lÒgoj- fÚsij é

essa medida. Sendo o encobrimento de modo próprio, o velamento de modo radical, o abismo

esconde o brilhar no brilho, o manifestar no manifesto.

Portanto, se torna claro o equívoco de que, no entendimento do fragmento heraclítico

de número 45, o homem possa vir a ter um lÒgoj que se dê em referência a um outro lÒgoj.

Podemos dizer, em uma conjectura, que há o lÒgoj e o homem como tal. Ou seja, o homem,

para se dar propriamente como homem, vige no lÒgoj. Isso é próprio ao homem. No entanto,

100

Op. cit , p. 83.

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vige não como detentor de um lÒgoj, e sim na permissão própria do lÒgoj. Assim é que é

permitido ao homem participar do diálogo. Desse modo, ele pode dialogar por residir, sendo o

que ele é, ao modo do diálogo.

O ser humano não possui um lÒgoj. O ser humano somente o é, como tal, por lhe ser

permitido habitar a abertura onde o lÒgoj se envia em seu brilho misterioso. Assim, o lÒgoj

revela o homem entendido na ciranda do mundo abrigado pela terra. Ao lhe ser concedido

poder dizer o que diz, em concordância com o que diz o lÒgoj, ou seja, poder proferir ser

tudo-um, o homem é revelado na possibilidade de dizer, a partir do lÒgoj. Assim, ele pode

dizer na sabedoria que habita a medida como o abismo que permite todo agrupar e reunir.

Na medida de dirimir quaisquer objeções, novamente recorremos a Heráclito em seu

fragmento de número 115: “A vida tem um Logos que se aumenta a si mesmo101

”. O dizer do

fragmento parece corroborar com uma visão de uma separação no âmbito do lÒgoj. No

entanto, mais uma vez tomamos a yuc» do fragmento em referência a zw» da fÚsij. Assim

se dá o se aumentar a si mesmo do lÒgoj. Ele aumenta-se a si mesmo justamente por se tratar

do que é abismo e manifestação velada no abismo da fÚsij em sua originariedade. Todavia,

porque diz Heráclito que o lÒgoj aumenta-se a si mesmo? A questão da vida possuir lÒgoj

acreditamos, de alguma forma, já ter sido tratado anteriormente. A questão maior se encontra

no aumentar-se a si mesmo do lÒgoj.

Aumentar, dito em grego pela palavra aÙx£nw, traz a idéia de intensificação no

sentido de aumentar, de aumentar-se, aumentar o poder, fortificar. O aumentar de tal modo

traz, antes de mais, o movimento. Assim também diz a palavra portuguesa que revela o

aumentar do que se aumenta. Encontramo-nos, dessa maneira, mais próximos do movimento

em si. Colocamos em questão se o aumentar-se no sentido de uma expansão é o que

efetivamente vale aqui, ou se o que se mostra venha ser o movimento próprio por si mesmo?

No sentido da vida, na compreensão da zw» da fÚsij, já percebemos a relação direta com o

fragmento heraclítico de número 84 discutido no capítulo anterior “Transformando-se,

repousa”102

. O fragmento diz da relação do movimento da unidade que se dá na

multiplicidade de si mesma permanecendo em sua solidez própria no transformar-se. O

próprio homem, na medida em que é ao seu modo, se encontra sempre na disposição de além

de ser misterioso para si mesmo, por esse mistério, ser sempre o outro de si mesmo. Assim ele

se dá, pois que, “transformando-se, repousa” em si mesmo. Enquanto indivíduo, sendo vários,

o homem não deixa de ser ele mesmo. Portanto, todas as coisas na medida em que são,

101

Op cit. p. 89. 102

Conferir subitem A fÚsij em sua originariedade , no Capítulo 1 do presente trabalho.

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sempre mostram, nessa perspectiva, tal tensão originária do movimento e do repouso. Assim,

a vida, enquanto fÚsij, se traz como lÒgoj originariamente, de modo que este é também

movimento transformando-se no repouso de sua unidade. A principal contribuição do

fragmento de número 115 se dá na relação própria do movimento que, por si mesmo, traz

transformação que já pousa repousando em si mesma, aumentando-se. Trazendo-se como

lÒgoj a fÚsij, ele traz todo o excluído na exclusão que permite o que se ajunta dando-se

reunido enquanto reunião de si mesmo. Mais uma vez nos encontramos na disposição de dizer

que o excluir somente é possível porque o próprio excluído da exclusão enquanto abismo sem

medida lhe é radicalmente a medida. Entretanto, se apresenta a questão: o abismo é a medida

de si mesmo? Ou será que a medida do abismo é o que é por ele próprio abrigado, ou seja,

tudo o que ele não é? Devemos nos lançar a sua verdade. Esta que, de modo radical, é

necessariamente verdade no próprio abismo que se questiona. O abismo concede aos errantes

toda possibilidade de erro. Assim, a unidade do ser e do não ser na unidade do tempo se dá

enquanto lÒgoj e fÚsij. Originariamente percebemos na transformação, enquanto

movimento próprio, o pouso que repousa em si mesmo. O próprio movimento já é, em si,

repouso, na medida em que cada individualidade que se dá, como ente do ser e do não ser na

unidade do tempo, já assim se dispõe enquanto disponibilidade posta. É nesse sentido que a

vida enquanto fÚsij é um lÒgoj que se aumenta a si mesmo. Ela é movimento na medida em

que se mostra na reunião originária no movimento da multiplicidade. Assim, a vida é o que é

no lÒgoj que, enquanto movimento próprio como fÚsij repousa em si mesma na sua

transformação própria. A fÚsij é um lÒgoj que se aumenta a si mesma porque

“transformando-se, repousa”.

Linguagem e lÒgoj

Ambos, linguagem e lÒgoj se dão aqui na perspectiva do que se dá misteriosamente

em questão. Percebemos a linguagem de modo próximo na perspectiva do diálogo, da reunião

de unidade de fala e escuta. Não há dúvida de que o diálogo traz a diferença tanto de fala

quanto de escuta na medida em que elas se medem como diferença. No diálogo, ambas são

originárias como lÒgoj dialogando entre si. A palavra diálogo, em si, se mostra no grego

di£logoj composta pela preposição di£- adicionada de lÒgoj. A preposição em questão tem

o sentido de: em divisão, através. Ela se dá na medida de um entre, na medida de um reunir no

seio da diferença. Desse modo, fala e escuta, como diálogo, se mostram reunidas na

linguagem radicadas na diferença que as reúne na reafirmação de cada uma como identidade.

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178

Assim, talvez possamos dizer que a linguagem é referência103

. Enquanto unidade, ela se

mostra originariamente como a reunião do que se envia no mostrar-se próprio de si mesmo.

Neste envio ele brilha misteriosamente ofuscando enquanto fonte originária e inaugural que

brota como fala. Tal brilho próprio é fÚsij como o mistério da unidade que, também lÒgoj,

agrupa e reúne se medindo no excluído de toda exclusão. Desse modo, partindo de si mesma,

a fala originária, em seu brilho ofuscante, se envia à guarda de uma escuta que somente é o

que é porque pertence radicalmente ao que se envia. A escuta se revela sendo-lhe a guarda

cuidadosa que acolhe na medida em que resguarda a unidade do que se dispõe a ser guardado

no pouso que repousa em si mesmo já disposto. Tal escuta enquanto é um pertencer ao brilho

da fonte originária traz consigo o homem. Ele se mostra, em verdade, na abertura podendo

habitar a escuta104

que pertence à fala. A linguagem, então, se dá referência dialogante na

medida em que reúne fÚsij / lÒgoj, ambos dispostos no envio como fala originária que

carrega a escuta radical que lhe pertence. Assim, como linguagem, ela reúne também o

homem enquanto o único ente que, pertencendo ao ser, se encontra na disposição da escuta

por lhe ser permitido dela participar. Tal escuta nos é revelada ambígua como algo que ao

mesmo tempo em que não é do homem o convoca, pois que pertence à linguagem como

diálogo. Convocado a participar da escuta, o homem se dá ao brilho ofuscante, de modo que

se encontra à disposição da unidade originária como tensão entre fÚsij e lÒgoj. Desse modo

a linguagem se resguarda no mistério de si mesma. Reunindo no diálogo, ela é reunião que

traz a referência do que mede um ao outro. Mas, para ser linguagem na perspectiva do

diálogo, tanto fala quanto escuta somente são por se darem na perspectiva do lÒgoj. Este se

mostra fÚsij, no retraimento de si mesmo, enquanto o excluído de toda exclusão que mede e

permite o agrupamento e a reunião. Tal reunião se revela no produzir-se radical como

encaminhar caminhos abrigados no velamento do abismo de simplicidade.

A linguagem na perspectiva do diálogo é lÒgoj por este mostrar-se em cada

possibilidade do diálogo em si. A fala, enquanto fonte inaugural e originária, é lÒgoj e

fÚsij. Dispondo-se enquanto unidade, que se encaminha como caminho permitido no abismo

do retraimento do excluído de toda exclusão, ela se mostra em si mesma. A fonte que brota

como fala se dá na medida em que se dispõe enquanto unidade reunida. Como fonte inaugural

e originária, ela se dá no seu envio próprio e destinado brilhando ofuscantemente no seu

103

Referência em todo o trabalho tem sido tomada na medida do levar a diante, do manifestar que promove o

confronto como unidade de reunião das diferenças. Vindo do verbo latino fero- levar, trazer, manifestar.

Adicionado da preposição re- que traz dentre outros o sentido de oposição. Desse modo, referência é o que se

posta unido em uma oposição radical. 104

De acordo com a discussão do Capítulo 3, subtítulo A morada do homem.

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retraimento. A escuta é também lÒgoj porque, enquanto um pertencer à fala, se dá a partir

desta. Estando posta a partir da fala que se envia, a escuta, pertencendo a tal envio, se dá

como abertura nesse pertencimento. Dessa maneira, a escuta, que é e não é dos mortais, se dá

como lÒgoj e fÚsij porque a tal unidade pertence. Por tal unidade é que se escuta já falando

como um pertencer à fala. A escuta originariamente já se dá na perspectiva da fala inaugural e

originária como fonte. O pertencer à fala da escuta reside já no escutar encontrar-se na

disposição da fala falando, respondendo à exigência da fala mesma. A linguagem é, em si, tal

referência que de todo modo é fÚsij-lÒgoj. Sendo a referência de reunião, ela reúne

também o homem que é o que é participando da escuta como um pertencer à fala. Escutar já é

também um responder como fala, já é um responder a partir da fala originária e inaugural que

envia-se a si mesma. O que se envia como fonte, já se envia destinadamente disposta na sua

unidade, abrigada no retraimento do excluído de toda exclusão. Este que resguarda todos os

caminhos como referência dialogante do todo que se dá em sua manifestação misteriosa.

Quando Heidegger diz que “o homem fala à medida que corresponde à linguagem105

”,

o dizer heideggeriano pode trazer a impressão de que o homem está alijado da linguagem.

Pode trazer a impressão que dela o homem se encontra afastado. E, que numa resposta a ela,

ele pode falar. De modo que parecem estar a linguagem de um lado e o homem de outro. No

entanto, tal posicionamento na esteira das investigações empreendidas, ou se deve a uma

incompreensão do pensamento do filósofo ou a um modo distinto de entendimento por parte

do mesmo. Quando dizemos que há uma referência, entendemos, de modo claro, que tal

referência é já um responder a uma exigência. É um estar na disposição do que se põe reunido

no pouso de si mesmo como um todo, que se põe em conjunto. Estar conjuntamente na

disposição do que se põe a si mesmo é se encontrar, de modo próprio, em uma referência

fundamental. Estar em uma referência é, em suma, participar. Porque participa da linguagem

de modo próprio é que o homem pode falar, bem como escutar. A fonte originária e inaugural

fala trazendo a escuta consigo que é e não é do homem, já que este participa dela. Podemos

compreender que ele somente pode falar na medida em que, participando da linguagem, com

ela se encontra em referência atendendo a exigência da tensão originária entre fÚsij e lÒgoj.

Assim, não dizemos que há a linguagem e o homem, para que ele lhe possa dar um aceno na

recepção de modo em separado. Estar em referência com a linguagem já é de todo modo dela

participar. A linguagem é na e como reunião, ela traz o homem consigo. O homem somente é

o que é por estar na linguagem. Destarte, a linguagem não está fora e tampouco dentro do

105

Heidegger, M. 2003, p. 26.

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homem. Ela não é sua propriedade, mas o toma apropriado de modo que ele é o que é na

linguagem enquanto referência. Torna-se importante ressaltarmos que ela, enquanto

referência, somente é trazendo dentro de sua constituição a fonte originária e inaugural como

fala que toma a escuta cuidadosa como pertença de si mesma. Pertencendo à fonte originária,

a escuta toma os mortais numa exigência provocativa de modo que dela lhes é concedido

participar. A escuta se mostra no limiar de ser e não ser dos mortais. Sendo-lhes concedido

habitar a abertura, recebem o envio destinal do que se envia de modo próprio. Assim, os

mortais se mostram pertencentes também a fonte que brota como fala. Portanto, somente há

linguagem enquanto tal reunião. Não há linguagem de um lado, fala de outro, escuta de outro

e ainda o homem. A linguagem é uma ciranda, dá-se enquanto dinâmica. Ela se mostra

quando o que se reúne agrupado, a partir do excluído de toda exclusão lhe é a medida. O que

se reúne agrupado se encontra brilhando misteriosamente na disposição de si mesmo enquanto

fonte inaugural e originaria que se manifesta como fala. Nessa dinâmica a fala inaugural já se

encontra resguardada na escuta cuidadosa que pertence à fala. Sendo a escuta a abertura para

que o disposto reunido, a partir do excluído de toda exclusão, enquanto abismo que lhe dá a

medida, possa brilhar misteriosamente. O homem, estando na disposição de tal escuta que

pertence a fala, pode, habitando em tal ciranda originária, dizer o ser resguardado em seu

mistério. Desse modo, é o homem já misterioso para si mesmo no resguardo do véu do ser.

Assim sendo, reafirmamos o lÒgoj como o excluído de toda exclusão que se dá

enquanto a medida de todo agrupamento e reunião da unidade. De todo modo, na

ambigüidade ele é tudo-um como referência de unidade na multiplicidade do que se dá sendo

no ser a partir do abismo do nada.

Linguagem e Música

Linguagem e música mantêm-se em uma referência. A música como linguagem fala.

Falando necessariamente ela traz em uma unidade de reunião a escuta. A música reúne

dialogalmente o que por ela é nomeado e pode assim sustentar-se na medida em que também

os sustenta. Os nomeados são as obras musicais, os músicos e ouvintes, bem como o saber

musical em sua dinâmica. Música e abismo como unidade radical de reunião se revelam no

âmbito da linguagem. Tal unidade permite a articulação de todos dialogando com todos, de

modo que os nomeados na unidade poética da música dialogam entre si, cada um em sua

propriedade, no âmbito da fala e da escuta.

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As obras musicais somente o são na medida do diálogo. Elas falam no mostrar-se

próprio em que se resguardam. As obras brotam como manifestação. Seu brotar sonoro fala

misteriosamente em seu aparecer e desaparecer. Na medida de sua fala misteriosa que

convoca ao apelo sonoro de sua sonoridade as obras musicais se trazem como envio onde

pertence uma escuta cuidadosa. À brotação enquanto fala pertence à escuta em que as obras

revelam-se sonoramente como verdade lançadas na não verdade de si mesmas. Reunidas na

música, como unidade ontológica, as obras se dão na medida do diálogo enquanto se

encontram também como referência na sua unidade de modo a sua multiplicidade mostrar-se

reunida como um. As obras somente falam como brotação porque a elas pertence uma escuta

cuidadosa onde elas podem pousar repousando na sua solidez e, desse modo, reafirmarem-se

resguardadas na unidade ontológica da poética musical. A ambigüidade do diálogo permanece

na tensão em que as obras musicais se revelam. O brotar das obras falando é sempre tensional.

Tensionalmente, a obra aparecendo e desaparecendo se dá reunindo em uma unidade que a

nomeia resguardada. A tensão radical da unidade de co-pertencimento música e abismo

confere à obra musical todas as inter-relações na teia em que se encontra lançada. Somente

assim a obra falando resguarda-se na escuta que a ela pertence. Falando em uma escuta que

lhe pertence, a obra brota em todo o seu vigor mostrando-se misteriosa no âmbito das suas

possibilidades e impossibilidades na desmedida do irrealizável. Tal âmbito dinamicamente

favorece a obra como unidade na multiplicidade de si mesma. Assim, a sonoridade da obra

resguarda-se como não verdade na poética musical da unidade ontológica música e abismo

podendo falar como envio originário e destinado.

Todo saber musical mantém-se disposto como multiplicidade, reunido enquanto

unidade. O saber musical fala resguardado na radicalidade da música. Falando ele se desdobra

na teia de relações e inter-relações que ambiguamente se mostra sempre dinamicamente em

construção. Sua fala envia-se para a escuta cuidadosa que lhe pertence ao modo em que tanto

uma quanto a outra radicam numa dinâmica que repousa transformando-se. Não sem motivos

constantemente o saber musical permanece na sua atualidade. Constantemente renovando-se

ele repousa em si mesmo resguardado na unidade que o nomeia. Assim, ele é um na sua

multiplicidade infinitamente disposta e reposta a cada vez no âmbito de unidade ontológica

entre música e abismo de simplicidade. A escuta que a ele pertence permanece na mesma

dinâmica e constantemente renova-se permanecendo em si mesma. Por isso, o saber musical

dialogante é inesgotável resguardado na unidade que o nomeia e sustenta, ao mesmo tempo

em que, junto com os outros nomeados, ambiguamente, também sustenta tal unidade.

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Músicos e ouvintes também se encontram na dinâmica dialogante. Ambos falam e

escutam ao seu modo. A ambos é permitido pertencer ao que a unidade musical, como música

e abismo, dá sentido nomeando radicalmente. Os músicos pertencem à música pertencendo às

obras, ao saber, aos músicos e aos ouvintes. A eles é permitido escutar pertencendo a todo o

âmbito de reunião em que a música poeticamente se perfaz de modo misterioso. Na permissão

em que se encontram estão na abertura em que toda a manifestação musical retraída vigora.

Em tal permissão mostram-se dispostos à música participando da sua dinâmica falando e

pertencendo. Somente podem falar enquanto músicos por pertencerem ao que os acolhe.

Falam na disposição das obras e do saber musicais. Falam correspondendo ao envio radical

em que lhes é permitido se encontrarem dispostos. A fala musical do músico dá-se no âmbito

do saber, das obras, dos ouvintes, e dos músicos, de modo a pertencer repousando na reunião

musical. Pode parecer estranho dizermos que o músico fala pertencendo também a si mesmo

na unidade musical. No entanto, de todo modo, ele se encontra acolhido no co-pertencimento

de música e abismo. Por tal acolhida ele pertence a si mesmo falando em tal reunião. O

músico se mostra nesse âmbito e ele é na singularidade de cada músico que responde à

unidade que o músico deve, acolhido na poética musical. Quando trazemos o músico

nomeado pela convocação exigente que se impõe, este é trazido como unidade na reunião de

sua multiplicidade. Assim, o músico singular é somente reunido, portanto, ele é o que é pelas

obras, pelo saber, pelos músicos, pelos ouvintes na medida da unidade música e abismo.

Todos acolhidos em tal unidade não se mostram desvinculados. Portanto, a fala do músico

somente é na medida em que corresponde à escuta em que ele pertencendo colabora, escuta

inclusive de si mesmo como músico na singularidade reunida na totalidade do um-múltiplo.

O ouvinte de modo distinto encontra-se no âmbito de referência da linguagem musical.

Normalmente tendemos a achar que o ouvinte se acha em uma passividade na disposição de,

pertencendo ao que se dá musicalmente, poder, desse modo, escutar. No entanto, o ouvinte

por pertencer à poética musical como unidade pode falar como ouvinte. Sua aparente

passividade é de importância impar na unidade poética musical. Tal importância é, de todo

modo, distinta da de todos os outros nomeados pela unidade música e abismo. Contudo,

voltamos a afirmar que no pertencer próprio do ouvinte, que se dá cuidadosamente na escuta

da fala das obras, do saber, dos músicos e dos próprios ouvintes, ele, como ouvinte, também

pode falar. Falam correspondendo à unidade em que são recolhidos. De todo modo, torna-se

importante falar que o músico é sempre e também ouvinte, não há músico fora de tal

possibilidade. Mesmo o caso de Beethoven em sua surdez o colocava em uma condição

especial, no entanto, como músico-ouvinte. A relação que o músico em questão manteve com

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a dinâmica poética musical durante sua possibilidade de ouvir se mostrou radicalmente

intensa como atestam suas obras e a própria historiografia da música. Desse modo, mesmo

após sua completa surdez ele pode manter-se, de modo distinto, músico e ouvinte na

disposição da memória pelo memorável. Não há dúvidas de que aqui não podemos nos ater a

aspectos subjetivos, de modo que a constatação anterior é um caso impar na história da

música, devido ao domínio do discurso musical em que se encontrava o referido músico à

disposição. O importante para nós é que o ouvinte fala e sua fala de todo modo provém de seu

pertencer à poética musical. O próprio contato deste com o discurso musical acontece em uma

escuta que pertence ao que se envia já falando. O ouvinte fala na medida em que se mostra de

modo radical ouvinte. Em vez de ouvinte poderíamos usar escutador de modo que tal palavra

poderia dar conta da escuta originária da linguagem. No entanto, por aspectos sonoros

permaneceremos com o nome ouvinte tendo claro que este se encontra na disposição de uma

escuta atenta pertencendo ao que fala como fonte. Importante se torna para nós dizer que o

ouvinte reunido no âmbito musical como unidade, assim, revela todos reunidos como

verdade. Dentro das possibilidades e impossibilidades na medida do irrealizável o ouvinte se

dá de modo próprio recolhido por música e abismo.

Linguagem e música se referem na medida em que a música é como unidade, reunião

de fala e escuta. Música e abismo mostram-se linguagem como unidade. Permitindo e

abrigando o diálogo em que a poética musical se resguarda, a teia de relações e inter-relações

do mundo musical mais se lança como acontecimento dinâmico em si mesmo. A dinâmica do

mundo musical em si é dialogante. A unidade de co-pertencimento de música e abismo de

simplicidade se mostra resguardando acolhido todo o diálogo que nela se desvela como

acontecimento na infinidade de desdobramentos que se velam verdade como não verdade. Na

fala-escuta da poética musical o abismo de simplicidade que corta a palavra se dá nomeado

falando destinadamente na unidade que ele também sustenta. Poeticamente ele mostra-se no

âmbito em que co-pertence com a música em uma referência. Música e abismo neste sentido

reúnem como linguagem. São linguagem radicalmente posta na medida do embate originário

entre fÚsij e lÒgoj como diálogo dialogante em si mesmo. Na radicalidade originária de ser

e tempo, música e abismo mostram-se unidade como reunião em que sua fala e escuta são

colhidas e acolhidas repousando na ambigüidade.

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CAPÍTULO 3 - HOMEM

Como não poderia deixar de constar, devido a sua importância na constituição do todo

e, propriamente do real, da maneira que ele está composto, o ser humano deve ser tratado

também com muito cuidado. Nos caminhos do ser encontramos o homem como um ente que é

sendo ao modo dos outros entes, no entanto, com uma especificidade muito peculiar. No

capítulo anterior que procurou minimamente questionar algo a partir da linguagem,

percebemos que ao homem é devido o respeito e a colocação no lugar que lhe é próprio.

Assim, não podemos negligenciar sua importância no âmbito de ser e tempo, bem como sua

participação na linguagem como reunião.

Então, com certo grau de segurança podemos inicialmente dizer do homem que ele

está aberto à linguagem. Como tal, na perspectiva por nós defendida pode ser dito que ele é o

único ente que sendo ao seu modo pode dizer a partir da linguagem na linguagem. Assim, não

há grandes problemas se nós dissermos que o homem é o ente que é destinado. Ele é o

destinado a se dar enquanto diá-logo da linguagem por, além de outras coisas, saber-se

mortal, por saber-se um ser para a morte. Por se dar na disposição do diá-logo é que ele pode

instaurar mundo em uma colaboração e saber-se mortal. Instaurar e constituir mundo não é

uma possibilidade que cabe somente a fÚsij. Instaurar mundo é algo que é o próprio destino

do ser humano na medida de uma colaboração. Como aquele que é o destinado ele se encontra

disposto em sua disponibilidade sendo quem e como ele é o que é radicalmente. Sobre a

instauração e constituição de mundo, podemos dizer que – reposto e concedido de modo

próprio na linguagem escutando ao modo de um pertencer à fala originária – pode o homem, a

partir da possibilidade da ausculta cuidadosa do lÒgoj/ fÚsij, mostrar-se na po…hsij na

medida da criação e produção em que ele colabora. Esse modo de criação se mostra de

maneira diferente de como a fÚsij, enquanto apenas fÚsij, manifesta e apresenta ocultando

como produção. Mesmo que o mundo como tal seja abrigado e sustentado por ela. De todo

modo, devemos questionar de modo cuidadoso, mais adiante, o que venha a ser essa

instituição e constituição de mundo ao modo de uma colaboração.

No âmbito da convocação que nos exige já suspensos, questionar o homem torna-se de

grande importância. Assim se dá na medida em que a unidade de co-pertencimento ontológico

entre música e abismo de simplicidade apresenta recolhido o homem reposto, de modo

próprio e distinto, em sua posição. Reunindo como unidade música e abismo reúnem o

homem, portanto a convocação exige que a ele nos devemos postar em questionamento.

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O homem se encontra na disposição de algumas possibilidades distintas dos outros

entes. Tais possibilidades lhe permitem se consentir a aparência de importância maior do que

a que realmente tem. Este fato ao longo da história do Ocidente pode ser notado pela

promoção e imposição de uma sujeição às coisas. No entanto, tal dificuldade aparece aqui

apenas como lembrança para que não estejamos na disposição de, mesmo atentos, cair nessa

armadilha. Contudo, não pode ser negado ao homem seu próprio lugar. Primeiro, ele se

encontra na disposição da linguagem. Por ela e com ela tem a possibilidade de estar à

disposição do pensar. Anterior à linguagem e ao pensar o homem se mostra sendo o que é a

partir de uma disposição radical à memória e ao memorável. Todas são questões de grande

amplitude e necessitam de discussão e desdobramento para podermos, de algum modo, tentar

uma aproximação maior do que propriamente somos. A relação com a linguagem foi debatida

anteriormente dentro das possibilidades do trabalho e não será focada no presente momento,

contudo, sempre que for necessário será solicitada para esclarecer qualquer ponto que assim

se manifeste. Os questionamentos que se procederão a partir do homem não seguem

necessariamente uma ordem de dependência, antes falam em uma reunião. Algo implícito em

todas as questões precedentes vem a ser a possibilidade de o homem experimentar, com isso

faz-se necessário que a experiência possa aqui ter a condição de ser recolocada em si mesma.

O homem e a experiência

O homem é aquele que traz consigo a possibilidade da experiência. Experimentar não

é para o homem apenas uma possibilidade, englobando todo poder, na verdade, acaba por

transcender a própria escolha. O homem não escolhe poder experimentar, tal possibilidade

independe de escolha, ele simplesmente experimenta por ser o que ele é ao seu modo. A todo

momento, experimentamos diversas coisas e tal ocorrência se dá mesmo quando não

percebemos, quando tal acontecimento passa despercebido. Isso porque a experiência faz

parte do nosso cotidiano revelando-se também na medida do óbvio. Portanto, é óbvio que

experimentamos e que isso ocorre a todo instante do nosso demorar enquanto vida-morte. No

entanto, a obviedade mais uma vez não pode ser barreira para que possamos fazer o exercício

e a tentativa de pensar poetando na medida da convocação que nos toma. Por isso surge a

questão: o que é, e como se dá a experiência? Talvez ela aconteça na medida de um receber.

Este faz com que o homem seja no modo de um lançar-se de maneira própria. Em tal lançar-

se o homem vai ao encontro do que efetivamente se dá enquanto aquilo que é. Nesse lançar-

se, o que se dá mostra-se na presença do presente sempre sendo inequivocamente ao modo de

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um encobrimento. Dito de outro modo, ao recebermos, ao habitarmos a dádiva que se entrega

à confiança e espera do destino próprio do homem, este último lança-se ao encontro do que se

põe em presença na ausência e inapreensibilidade de si mesmo. Ao sermos sendo quem

somos, o somos recebendo, e recebemos o que se mostra velado na verdade de si mesmo. Tal

verdade encoberta se dá como a retração que apresenta o ente ao modo da presença na medida

em que ele é sendo o que ele é. Dizemos aqui que a possibilidade de um recebimento deste

tipo pertence apenas ao homem enquanto é sendo na dinâmica do ser. Pois sendo o que é, ele

se encontra na disposição da experiência, mas não como uma escolha. No entanto, toda

escolha se mostra a partir da experiência como uma experiência. Assim, o homem pode

receber o que se dá aparecendo na disposição do confronto enquanto mostra-se aberto para

receber tal insinuação.

Importante ainda se torna dizer que este receber nunca é desprovido de um agir. O

homem age convocado pelo mistério do ser em sua retração que, no tempo, se mostra na

simplicidade do abismo. Na convocação do ser o homem age dirigindo-se ao que se dá ao seu

encontro no confronto das diferenças. É por isso que podemos dizer que o homem está na

disposição da experiência. Ele se encontra jogado nela de modo inequívoco. Ele, abrigado no

ser, tem por propriedade sair de si mesmo na direção do que se mostra na retração de seu

mistério. Tal mistério abrigado no sem-fundo abismal vela e revela toda ambigüidade da

verdade e não verdade. A experiência, enfim, pode ser dita como um sair de si mesmo, por

parte do homem, em direção ao outro que se destina no envio de si mesmo, pelas vias do ser e

do tempo como verdade, se dando como o que é sendo abrigado na imensidão do abismo. A

própria palavra experiência pode nos mostrar um corroborar com o caminho escolhido para

conduzir a discussão. Formada pelo prefixo latino ex- ela direciona um movimento de sair, de

um jogar-se lançando-se para fora. O radical da palavra pode ser comparado por proximidade

com o grego peŒrar que diz extremidade, fim. Comparado ainda à palavra grega pšraj que

diz, em suma, limite. Donde se pode compreender que experiência é o que se dá a partir da

possibilidade de sair dos próprios limites, de sair de suas próprias extremidades em direção ao

que está para além de si mesmo. Tal modo de compreensão nos dá certa segurança quando

dizemos da experiência do homem em si, ao mostrá-lo jogado na instância da experiência

como algo próprio ao que ele é na medida de ser o que ele é. Assim, como tal, o agir da

experiência não pode ser negligenciado de modo que o agir mesmo deve ser também posto

em questão.

Achamo-nos na perspectiva de uma experiência recebendo o que se envia, criando isto

ou aquilo, ou seja, sendo efetivamente quem somos, na medida em que ser tal como somos é

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necessariamente nos encontrarmos no mistério de nós mesmos. O homem sempre é misterioso

para ele mesmo. Seja na perspectiva subjetiva de cada um, seja em sua essência na unidade

que congrega todas as diferenças. Misterioso não poderia deixar de ser, posto que somente é o

que é na medida em que, sendo, pertence ao ser que se mostra radicalmente ambíguo. O que

efetivamente faz do homem o único ente que se mostra sendo em tal dinâmica? Sendo quem

ele é, de modo completamente distinto do animal, percebe também de modo distinto. Na

experiência que faz efetivamente o homem sair de seus próprios limites, ele pode entrever de

modo diferenciado. No entanto, antes devemos interpor a pergunta: quais os limites do

homem? O sentido aqui exposto demanda da possibilidade que homem tem de estar aberto ao

que se mostra como manifestação. Tal abertura nunca é passiva, sempre se dá na medida de

um inter-relacionamento entre o que se apresenta e o homem. Talvez um modo primeiro de

acenar tal questão se descubra na possibilidade de dizer que os limites do homem encontram-

se em tudo aquilo que é não homem. Pela interpretação que aqui foi realizada a partir do

fragmento heraclítico sobre os limites da yuc»106

percebemos que os limites em questão se

dão em referência ao lÒgoj no âmbito da fÚsij de modo a não ser possível encontrar seus

limites. Os limites do homem necessariamente são profundamente misteriosos justamente

pelo fato dele habitar a abertura de manifestação-ocultamento do ser. Este último se dá na

presença de modo próprio como retração e encobrimento de si mesmo lançado na

tridimensionalidade do tempo107

e velado na simplicidade do abismo que permite todos os

desdobramentos.

Quando dizemos que os limites do homem se encontram no que é não homem

podemos ainda esbarrar em dois pontos: falando do homem enquanto essência nos referimos a

todo e qualquer homem, ao que reúne toda a humanidade do homem enquanto diferença, o

um reunindo a multiplicidade; o segundo ponto se encontra a partir da individualidade do

homem, assim, seus limites se mostram radicalmente no outro seja ele o que for. No aspecto

da individualidade, o homem esbarra sempre na limitação do outro. Ao confrontar-se com o

que se dá como outro o homem se posta diante do mistério que resguarda o outro em seu ser,

na medida em que o outro é sendo o que ele é, inclusive outro ser humano enquanto

individualidade. Desse modo, já se mostra própria a possibilidade de o próprio homem

perceber-se como outro. Na verdade, o que se mostra mais estranho vem a ser justamente isso,

o perceber-se como o efetivamente outro de si mesmo. Assim, podemos dizer que na

estranheza misteriosa de si mesmo se encontra de modo radical a própria experiência da

106

Conferir Capítulo 2 do presente trabalho, subtítulo O lÒgoj do homem?. 107

Sobre esta discussão conferir Capítulo 1 do presente trabalho, subtítulo Tempo.

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estranheza em si. Ao olhar-se para si mesmo como outro que, de algum modo, é mistério, ele

é estranho. Assim, um homem é sempre o outro de si mesmo sem deixar sua identidade. De

alguma forma assim não ocorre com todos nós? Não somos sempre outro de nós mesmos?

Não é sem importância que Heráclito diz em seu fragmento de n° 101: “™dizhs£mhn

™mewutÒn.” Que diz na tradução de Carneiro Leão: “Eu me busco a mim mesmo.” Desde há

muito que a estranheza do homem é algo que se insinua. Ela é atestada por aqueles que se

encontram na disposição de atentamente perceber, de modo que não há como escapar da

verdade que diz a si mesma no seu próprio abrigo. Não há como negar para quem

minimamente se encontra aberto ao questionamento de que somos entes misteriosos. Somos

em tal estranheza para nós apesar de ao mesmo tempo estarmos próximos de nós mesmos.

Somos, enquanto homens, aqueles que são capazes de nos reconhecermos na identidade

própria e também vislumbrarmos o outro de nós mesmos. De tal modo é que podemos entrar

em marcha na busca própria de nós. Aqui os aspectos individual e essencial, no que se refere

ao homem, de um modo ou de outro se entremeiam, isso se torna inevitável.

Como essência o que é não homem isenta toda a individualidade e, por conseguinte,

toda subjetividade e todo sujeito. Assim, o homem limita-se já na coisa. Tudo o que é coisa,

de um modo ou de outro, demarca frente ao homem uma limitação que na diferença já

demonstra o que o homem não é. Sem dúvida que o homem enquanto essência radica como

complexidade na medida em que, habitando a abertura do mostrar-se retraído do ser, a si

mesmo percebe-se em tal abertura. Onde, ao mesmo tempo em que é jogado no aberto pelo

ser, posto que também pela sua própria essência, abrigado pelo ser ele se põe a caminho do

aberto. Então o homem, em tal dinâmica, pondo-se em aberto, pode perceber que se

mostrando encontra-se no retraimento próprio do ser. De modo que, no mistério de si mesmo

em essência, já se espanta consigo e pode, assim, ver sua própria estranheza. Tal acontece

justamente e apesar da proximidade que tem consigo mesmo. Essa é a estranheza que o

mostra como outro, por lhe ser permitido ver-se lançado enquanto ente que é temporalmente.

Desse modo, o homem repousa em si mesmo no que ele é, já transformando-se.

Constantemente em transformação não perde sua identidade. Assim, habita o mistério de si

mesmo abrigado de modo radical na simplicidade abismal que resguarda a verdade. Não se

pode negar que o homem é próximo dele mesmo. É também por tal proximidade que acaba

por ser turva sua visão e conturbada sua escuta. Tal confusão se dá na medida em que pode

não compreender que, para escutar sua própria verdade, deve antes pertencer a si mesmo.

Sendo que antes, ainda, pertencendo ao ser na medida do tempo e da verdade, todos velados

no abismo de simplicidade na permissão da totalidade dos desdobramentos.

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No primeiro coro de Antigona de Sófocles diz o poeta: “Muitas são as coisas

estranhas, nada, porém, há de mais estranho que o homem108

Assim, soam estranhas as afirmações que proferem na sabedoria do dizer, que nomeia

chamando e arrastando no nome, quando se proferem os ditos de que “eu me busco a mim

mesmo” onde em tal busca “devemos caminhar para chegar onde já estamos” e de onde nunca

saímos. No entanto, durante muito tempo se turvou nossa visão e ensurdecida ficou nossa

escuta. Desse modo, perdemos a possibilidade de ver nossa própria conquista, nosso próprio

lugar. Talvez o pensamento no âmbito do poético possa nos trazer de volta para nós mesmos e

para o real de modo eficaz. Na medida da poética e do pensamento é que o homem pode ser

recolocado na sua própria condição, na condição radical de chegar a ser quem ele

efetivamente é.

Perceber que nos encontramos na condição de buscar a nós mesmos é algo trazido pelo

ser em sua verdade abismal. O ser se dá em referência própria para com a essência do homem.

O ser mostra o homem em sua essência já o mostrando misterioso para si mesmo. Assim, o

mistério do homem já é abrigado pelo mistério do ser. O homem se vê em sua condição como

aquele que é mostrado pelo ser no mistério de si mesmo já velado pelo mistério do nada. A

ele é concedido se ver, a partir da tensão originária entre fÚsij e lÒgoj, como unidade. Tal

visão-escuta somente pode se dar temporalmente no abismo onde se resguarda a verdade

enquanto não verdade. O fato de o homem se perceber já mostra que ele se encontra na

unidade de si mesmo. Sem dúvida que para ser o que ele é esteve sempre na unidade em

questão. No entanto, sendo o que ele é, é que ele pode de modo próprio dizer tal unidade. Esse

dizer somente se dá no receber próprio de si como unidade enquanto abertura por habitar a

escuta como pertencer e, assim, toda a relação de linguagem como diálogo. A linguagem

dialogante se encontra na condição de pode dizer o ser a partir do próprio ser na ambigüidade

que o guarda e resguarda. Todos nós, homens, nos encontramos na possibilidade de dizer algo

a nosso respeito. Essa possibilidade apesar de difícil para alguns e fácil para outros dispõe o

homem de algum modo. O homem é o que é sendo como ente reunido no ser. Relembrando

mais uma vez o ser em sua ambigüidade, citamos Heidegger, em Sobre o humanismo: “o que

é antes de tudo é o ser”; e no dito de A tese de Kant sobre o ser: “o ser não pode ser, pois se

fosse permaneceria um ente”.

O homem, como único ente que sendo o que é se encontra na possibilidade de habitar

a abertura onde o ser mostra-se já retraído, assim se encontra na ambigüidade radical. O

108

Sófocles apud Heidegger, M. 1999, p. 170.

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190

homem é assim também ambíguo porque é um ente do ser de modo que o ser é por sua vez

ambíguo. Assim, dizemos que o homem é o que é, enquanto modo de ser humano, sempre a

partir do ser em sua ambigüidade no velamento resguardado no tempo e no abismo de

simplicidade na permissão de todas as complexidades como dobras que se desdobram.

O ser em sua constituição própria de mistério é ambíguo, é paradoxal. Como

encobrimento e descobrimento, na dinâmica do transformar que ao mesmo tempo repousa na

solidez, a unidade de ser e tempo, velada no abismo, mostra o homem recolhido em tal

ambigüidade radical por este ser abertura para o ser. No entanto, o homem é já ao modo da

abertura para o ser a partir do próprio ser. O homem radica na escuta cuidadosa, no receber

pertencendo ao que se envia destinadamente. Assim, o homem se mostra como o destino do

envio do que se envia de modo próprio, fazendo as vias de seu destinar-se a partir de si

mesmo.

Nessa condição de buscar-se a si mesmo, o homem procura experienciar a si próprio.

Experienciar, como já foi dito, é necessariamente um sair de si mesmo, um ir em busca do

outro, mesmo que este outro seja o próprio. O homem de modo efetivo pode buscar na

experiência o outro porque já busca a si mesmo como outro que é o mesmo. Ele já é unidade

em si mesmo de identidade e diferença. Ele, como homem, é abrigado pelo ser em uma

unidade que carrega a dualidade consigo, como um que é múltiplo na multiplicidade

misteriosa de si mesmo. Os outros entes que são sendo o que são, na disposição da zw»

enquanto instância da fÚsij/lÒgoj, não podem buscar a si mesmos por não estarem à

disposição enquanto abertura para o outro. Eles não se encontram na disposição de poder sair

de si mesmos na busca interrogante. Desse modo, se encontram confinados a partir apenas de

si mesmos resguardados pela fÚsij sem se abrirem para sua própria identidade. Os outros

entes não se encontram jogados e lançados na experiência como está o homem. Nesse sentido

só o homem se encontra na disposição de, a partir do ser e do não ser que resguardam de

modo próprio o mistério, buscar-se a si mesmo. Tal busca é o que é sempre a partir do que se

busca. Assim, sair de si mesmo, extrapolar seus próprios limites, medir-se a partir da visão

própria de sua delimitação, é nessa ambigüidade que reside o homem em seu mistério.

Podemos dizer ainda que sair dos seus limites é ao mesmo tempo uma limitação do

homem. É próprio a ele o sair de si em direção ao que se lança. Por sair de si mesmo é que

podemos dizer que ele se encontra também e ao mesmo tempo fechado para si mesmo na

abertura que ele mesmo é para si. Ele está fechado para ele mesmo porque ao sair de si, ao

extrapolar-se de modo próprio, já se vê no abrigo, na guarda e resguardo do ser em sua

verdade, onde, abrigado por tal verdade, se encontra essencialmente fechado para si mesmo.

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Esse fechamento permitido por habitar a abertura para o ser se mostra justamente por ele

residir na abertura da verdade do ser. Residindo na verdade o homem já reside na não verdade

como encobrimento e velamento do ser no retraimento do seu mostrar-se. O homem então

está fechado para si mesmo. Percebendo-se fechado para si mesmo percebe a sua própria

limitação. Ao sair dos seus limites o homem encontra sua limitação radical posto que se fecha

para si mesmo e percebe-se na condição radical do que está aberto e fechado ao mesmo tempo

à verdade e a não verdade do ser. Esse fardo o homem tem de carregar: o estar aberto

enquanto extrapolar a si mesmo e, em tal extrapolação, já estar fechado na não verdade de si

mesmo. Esse fardo é sua condição. Ao mesmo tempo em que tal fardo é uma dádiva e uma

graça é também, como fechamento e abertura de si mesmo, o próprio mistério que resguarda o

homem no ser e no não ser, na verdade e na não verdade, nos mistérios do tempo e na

simplicidade abismal do nada. Por estar fechado a si mesmo o homem vê-se jogado na

errância que possibilita todo erro. Assim, ele está sempre na busca vã por si mesmo. Tal

paradoxo é o que efetivamente mostra também em tal fechamento toda riqueza que sai do

embate e do confronto do homem. “Eu me busco a mim mesmo” e em tal busca já percebo

que ao abrir-me para o outro que eu mesmo sou, em tal abertura, já me encontro fechado para

mim mesmo. A condição de buscar a mim mesmo já demonstra toda a estranheza de mim

mesmo no habitar o verdadeiro como abismo. Assim se dá também no confronto com todo o

outro que é não ele mesmo. Já habitando a abertura vê-se fechado para o que é sendo. Assim,

o homem é jogado e lançado na experiência, assim vemos a sua referência frente a unidade de

ser e tempo.

Criação

De todo modo, no percurso em que caminhamos no momento, a criação agora nos vem

em auxílio a respeito do mistério do homem. Na medida em que este se desvele, a questão que

nos impulsiona ganha maior ímpeto. Assim, percebemos que toda criação e produção como

instituição e constituição de um mundo, que irrompe na permissão e no sustento da fÚsij-

lÒgoj, mostra-se no âmbito de convocação desta tensão originária. Sem dúvidas, estamos

acostumados a perceber radicalmente a criação na medida em que a unidade fÚsij-lÒgoj

produz. Esta se dá na escolha e seleção a partir da exclusão de todos os caminhos, onde o

excluído de toda exclusão se revela como a medida para toda produção em si. No entanto, esta

produção não é o que se encontra em foco no momento, apesar do vigor originário que a

permite sustentar toda criação e produção humana. Posto sabermos, na medida de um

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pertencimento como escuta, que não pode haver criação na perspectiva do homem sem que

haja uma colaboração com a tensão originária em seu vigor.

Anteriormente109

foi aventado que o agir do homem precisa de maior atenção e

cuidado, de modo que este, necessariamente, não pode passar despercebido quando

pretendemos tomar em discussão a questão da criação na perspectiva em que o homem se

encontra disposto. Para iniciar o que se põe em questão selecionamos uma passagem bem

conhecida de Heidegger que se encontra em Sobre o humanismo. O pensador diz na

cuidadosa tradução de Carneiro Leão:

De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a Essência do agir. Só se

conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua

utilidade. A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer:

conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência. Levá-la a essa plenitude,

producere.

Por isso, em sentido próprio, só pode ser consumado o que já é. Ora, o que é, antes

de tudo é o Ser. O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem.

Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que

lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o

Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o

homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a

manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na

linguagem.110

O pensamento se encontra na essência do agir quando efetivamente age, sendo o que é

pensando. Ao consumar, levando ao sumo e a plenitude, ele recebe a referência do ser ao

homem. Recebendo tal referência ele a devolve restituindo ao ser o que recebeu onde, por tal

referência, o ser vem à linguagem. Chega a ela partindo de si mesmo, pois ela é o que é como

reunião em tal referência. O pensamento parte do ser para ser o que é pensando. Agindo

enquanto ele mesmo. O pensamento traz, partindo do ser, o ser na referência à essência do

homem. No pensamento o ser vem à linguagem. Ele eclode ambiguamente se manifestando

velado como envio destinado, de modo a permitir a linguagem como reunião. Por isso o

homem mora demorando na linguagem. Vigiar e guardar com cuidado a manifestação do ser

o fazem pensadores e poetas, diz o pensador. Conservar a manifestação do ser que vem e

chega eclodindo é a guarda de pensadores e poetas. A convocação de poetas e pensadores

revelam-nos na dinâmica do poetar pensante e do pensamento poetante. Assim, os poetas

pensadores estão aqui na figura de todo aquele que se encontra no âmbito da arte ao modo de

uma convocação radical. Poeta é o que traz a dança enquanto manifestação do ser na reunião

da linguagem como manifestação do corpo, do movimento, da forma, do ritmo; é o que

109

No subitem anterior deste capítulo: O homem e a experiência. 110

Heidegger, M. 1967, p.23-25.

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poetiza no poema trazendo a linguagem na guarda da manifestação do ser enquanto palavra da

língua no seu puro florescer, no seu brotar que se mostra livre das amarras de uma ordenação

exterior que não a de si mesma; é o que radica na produção de personas outras a partir de si

mesmo, revelando-a na linguagem enquanto restituição ao ser do que recebe dele próprio nas

artes dramáticas; é o que pinta na manifestação da cor; é o que desbasta revelando a madeira e

a pedra de modo que estas abrigam na escultura a instituição de si mesmas como verdade; é o

que, na realização musical, revela a partir do que recebe do ser a unidade de som e silêncio

como verdade na obra musical. Nesses modos diversos, o ser se mostra na poeticidade de sua

presença manifestamente misteriosa. Não se pode medir tal manifestação por ela estar sempre

resguardada. Mas, em tal resguardo ela é o que é vindo à linguagem reunindo pensamento e

poesia. Poeticamente a linguagem, como aquela que abriga o ser em sua manifestação, reúne a

referência do ser à essência do homem no diálogo originário. É poeticamente também que a

essência do homem pode efetivamente se desvelar como o que ela é. Aqui o pensamento é um

com a poesia no resguardo de suas diferenças. Assim, percebemos que no dois de sua unidade

o homem se desvela no mistério de si mesmo. Dessa maneira, na manifestação do ser que vem

à linguagem mais uma vez dizemos que o pensamento é poético e a poética é pensante. De

modo originário um não se dá sem o outro. Na realização própria de ambos já se mostra a

unidade em qualquer grau, medida e proporção. Em verdade, tais palavras se encontram aqui

completamente desprovidas de sua tradição como medida a partir do cálculo. Dizemos ainda,

que os conceitos de linguagem no âmbito da superficialidade somente podem se dar a partir

da originariedade da linguagem enquanto manifestação poética e pensante do ser. O homem

somente habita a escuta porque já mora e demora de modo radical na manifestação pensante e

poética do ser que vem à linguagem. Assim, o ser se volta para si mesmo na restituição que

ele concede. Desse modo, ele Permanece no repouso que transforma, que muda enquanto

permanece na unidade própria do tempo. É justamente por isso que o homem pode de modo

efetivo buscar a si mesmo. Assim, somente, é que podem se derivar outros modos de

experiência que promovem a tentativa do encobrimento de pensamento e poesia. Pensamento

poetante e poesia pensante se mostram como a unidade que efetivamente vigia a guarda

cuidadosa do ser na sua verdade própria. Tal verdade é revelada no abismo do nada enquanto

se manifesta num chegar à reunião da linguagem como restituição. Tal restituição é a unidade

que move o homem naquilo que ele é de modo radical, é o que congrega seu mistério. Na

linguagem do poetar pensante e do pensar poetante o ser conserva-se na permanência do seu

mistério. Poeticamente o homem pode, de modo efetivo, medir-se com o abismo em que se

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dá suspenso. Assim, ele pode se confrontar com o nada abismal que permite toda exclusão,

que resguarda todo excluído no advento da produção enquanto unidade.

O ser, assim, se dá enquanto manifestação, enquanto fenômeno. O que é assim se

mostra no recolhimento de si mesmo sempre velado no abismo do ser e do não ser. Renegam-

se aqui outros modos de manifestação do ser? Sem dúvida que não, apenas pretendemos

ressaltar a originariedade do que é originário numa tentativa de recondução do que deve ser

conduzido ao seu lugar próprio. Desse modo, o homem deve ser reconduzido a si mesmo.

Nesse sentido, ele é sendo na medida do poético que o permite de modo originário buscar a si

mesmo em seu mistério.

Quando falamos da morada do homem a partir do fragmento 119 de Heráclito, esta é

entendida a partir do extraordinário como divindade, e a partir da escuta111

. No que se refere

ao aspecto da escuta, escutar é um receber como abertura para o que se envia. Ela sempre

parte como abertura na referência ao que se recebe de modo efetivo. Dado ao homem morar e

demorar na escuta ela se revela de modo radical no poetar pensante e no pensar poetante.

Desse modo, escutar é pertencer como um abrir-se para o que se dá num envio de modo a, no

confronto que tal envio promove, poder medir-se com ele. Escutar se mostra como um medir

pertencendo ao receber a poesia e o pensamento. Enquanto referência própria que restitui ao

ser a sua dádiva. A música se dá sendo o que ela é como reunião na manifestação de si mesma

em sua dinâmica. Dando-se a quem pertence a ela, na disposição da escuta, assim, é levada ao

sumo revelando o que por ela é nomeado. Escutar, portanto, é se defrontar recebendo e

medindo-se com a manifestação que se revela a partir do excluído de toda exclusão na

unidade de si mesmo como abismo de simplicidade. O som manifesto em seu mistério vem à

presença mostrando-se na radicalidade que a música permite às obras musicais sendo aquelas

que são abrigadas pela materialidade sonora. No entanto, a escuta é também por todas as

artes, é a escuta como pertencer da dança, da poesia, da pintura, do teatro etc. A escuta do

pensamento poético, do espanto diante do mistério do ser. O mistério que apresenta o ente

sendo o que é abrigado e reunido na unidade do ser e do tempo, velada no abismo do nada. O

nada como abismo é a medida radical do que quer que seja sendo na dinâmica do ser. Assim,

o nada também é a medida do homem. É a medida do homem em sua verdade.

Somente diante do nada o homem pode se dizer enquanto criador. O vazio do criador é

um vazio que se sustenta no nada nadificante, no absoltamente nada. Ao defrontar-se com a

necessidade de criar, esta assola o homem na medida em que a essência do criador é

111

Tal discussão se mostra detalhada no subitem A morada do homem do presente capítulo, mais

especificamente da p. 219 a 226.

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confrontar-se com o absolutamente nada a partir do que lhe conforma. Ao estar na disposição

da criação de qualquer obra de arte o artista mede-se com o nada que mostra a possibilidade

da criação. Um músico, por exemplo, mesmo a partir de sua formação, qualquer que ela seja,

se encontra sendo o que é na dinâmica de uma tradição que lhe sustenta e abriga. Mas, na

criação o músico é mais músico na medida em que se afasta das obras musicais e de si mesmo

se deparando com o nada. Assim, se vê só na solidão própria da realização que produz. Tal

afastamento é a única possibilidade de aproximação do que a música como reunião concede

de modo efetivo. O estar suspenso no abismo afastando-se de tudo o que é faz com que ele se

encontre na proximidade radical da poética musical quando toda a música some. Desse modo,

lhe é concedido a aproximação própria pelo abismo de simplicidade que permite com que os

desdobramentos possam se dar vindo a ser o que são como complexidades, em dobras.

Deparando-se consigo mesmo suspenso no nada, o músico pode deparar-se com o nada

radical que mostra a medida para qualquer realização. Assim, ele é mais músico quando se dá

na escuta que pertence à co-pertinência de música e abismo. A verdade do músico somente se

dá quando “emudece toda a dicção do é”. A busca de qualquer possibilidade de caminho é

sempre permitida pelo nada de todos os caminhos. Assim, o artista encontra-se no

afastamento quando afasta a si mesmo abrindo-se à escuta originária. Afastado, suspenso no

abismo, se aproxima da dinâmica que o convoca e perfaz sendo o que é como abertura.

Pertencendo ao nada pode escutar na audiência audiente a essência de toda manifestação

abrigada pela reunião que o nomeia. O nada mede o homem, o nada o mede porque dá ao

homem enquanto dádiva o jugo de ser criador confrontando o afastamento de tudo o que é. O

abismo em sua ambigüidade nos perpassa em cada criação e produção.

Vigias são pensadores e poetas porque a linguagem em que o ser se revela somente

pode ser guardada e resguardada em sua originariedade na unidade da poética pensante e do

pensamento poetante. Pensadores e poetas são os que se medem de modo originário na guarda

do verdadeiro. Encontram-se no conceder do ser dispostos ao verdadeiro que habita de modo

próprio o sem fundo do abismo. Pensar e poetar são modos radicais de resguardar a referência

do ser ao homem. Tal referência se dá de modo que, pertencendo a ela ao lhe ser concedido se

dar como abertura, o homem pode fundar a si mesmo. Podemos dizer que habitar tal abertura

para a revelação e manifestação do ser nunca se dá de modo estático e sempre na dinâmica de

uma co-laboração, de um trabalhar conjuntamente. Desse modo, o homem recebe a dádiva do

ser que ele mesmo é. Assim, pode, olhando, escutando e dispondo a atenção para si como o

outro de si mesmo bem como também para tudo o que não é ele, se dar na perspectiva de

contemplar a criação que brota pelo vigor da unidade tensional fÚsij- lÒgoj de modo a

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comparar medindo-se com tudo o que vige na unidade de ser e tempo. Assim, suspenso no

abismo que corta a possibilidade de dicção do é o homem habita a radical ambigüidade de ser

e não ser. Habita as raias do nada que medem tudo o que é. Podemos dizer que o nada reúne

tudo o que é sendo no ser por se dar como a possibilidade de manifestação de tudo o que é e

se dá ao modo da unidade do tempo. Ele, assim, vela originariamente ser e tempo.

Posto na condição de criador, como um co-laborador do ser, o homem habita a

ambigüidade do real em sua dinâmica. Tal ambigüidade já é em si a unidade entre o que é e o

que não pode ser. Entre o que é de modo próprio sendo e o que corta toda a possibilidade de

dicção do é. Assim, podemos dizer que o homem se encontra ambiguamente na disposição do

ente, concedido como o que é sendo pela unidade de ser e tempo, e do nada que vela tal

unidade. Dessa maneira, se abre a possibilidade de trazermos a pergunta fundamental de

Heidegger que abre a obra Introdução à Metafísica e também termina o ensaio Que é

Metafísica: “Porque há antes o ente e não antes o nada?”. A partir de tal questão perguntamos

também: porque o que efetivamente é sendo na dinâmica própria do ser se dá e o nada fica

negado ou então esquecido de modo absoluto?

Ser homem é se encontrar na ambigüidade radical entre o que é e o que corta a palavra

relembrando o verso de Stefan George que diz: “Nenhuma coisa que seja onde a palavra

faltar”. A partir do que corta a palavra todo é pode se dar, mas o que corta a palavra se mostra

radicalmente encoberto. Toda experiência que possibilita a criação e o pensamento deparam-

se com tal cortar a palavra. Quanto mais profundamente o homem consegue escutar,

pertencendo atentamente ao ser enquanto a tensão radical que se diz como fÚsij e lÒgoj, ele

pode criar e produzir. A criação é uma possibilidade aberta ao homem por lhe ser permitido

habitar a linguagem na guarda do verdadeiro que se envia misteriosamente resguardado na

ambigüidade do abismo.

Ainda a respeito da essência do agir que permite toda criação em que o homem

encontra-se disposto, algumas questões merecem maior atenção. Desse modo, podemos trazer

para a discussão o que se refere aos aspectos da necessidade e da liberdade. O agir, de algum

modo, pede ação. No entanto, a essência do agir é tratada pelo pensador que originou as

discussões de outro modo. O agir encontra sua essência no ser enquanto este se envia para a

guarda cuidadosa que consuma a referencia do ser à essência do homem a restituindo ao ser

como linguagem. De algum modo, procuramos encaminhar as discussões de maneira a

perceber o dito na medida em que a essência do agir se mostre enquanto não ação abrigada no

abismo que permite o desenvolver de toda ação. No entanto, as questões da necessidade e da

liberdade permanecem obscuras e necessitam de um desdobramento mais cuidado. São

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questões que, de algum modo, dizem respeito ao Ãqoj, à morada do homem. Entendemos que

estas sejam discutidas com atenção para que a criação seja discutida com seriedade. Tais

questões não devem estar na disposição de uma relação linear cronológica onde se pergunta o

que vem primeiro: liberdade ou necessidade? No entanto, podemos inicialmente dizer que

necessidade e liberdade somente são na medida em que se abrem ao mesmo tempo fechando-

se ao se mostrarem ao ser humano. Dessa maneira, ele se encontra de modo próprio aberto a

elas enquanto o destino de tal lançamento. Por isso, achamos que a necessidade e a liberdade

não se dão apenas no âmbito do vigor da fÚsij, deste modo, incluímos também a essência do

agir. Assim o fazemos por compreender essas instâncias como possibilidades que se articulam

a partir de um pressuposto de mundo e, somente nele, podem ser trazidas a luz e lançarem-se

para o destino a que se enviam. Entendemos que relações de necessidade e liberdade se dão

num contexto estabelecido de mundo, que necessitam de uma reunião do homem. Para a

fÚsij não há nem liberdade nem necessidade, há movimento pelo vigor próprio de si mesma.

Ela é movimento que se limita somente por si mesma em sua própria medida. Tal movimento

não pode ser considerado uma ação. A fÚsij não age, ela é puro vigor que se põe em

movimento por si mesma diante do abismo sem fundo que a vela resguardando-a. O abismo a

vela, mas a ela pertence. Não há dúvidas de que toda necessidade e toda liberdade, de modos

distintos, provenham da fÚsij. No entanto, ela, como tal, se encontra fechada a toda

necessidade e liberdade. Seus movimentos que se abrem na manifestação de si mesma se

encontram, em certa medida, ambiguamente fechados e guardados nela mesma em seu

mistério. Eles são por seu vigor próprio, abertos a ela de modo que somente a ela respondem.

Assim, somente ela pode dar conta de seus próprios movimentos. No entanto, independente

de tal fechamento devemos questionar a necessidade e a liberdade em si mesmas na medida

em que se dão ao homem.

Necessidade pode ser entendida aqui como o que, de modo próprio, se faz necessário

para que a unidade vida-morte, daquele que sabe-se um ser para a morte já em vida,

permaneça no acontecimento de si mesma. Necessidades todos os homens vivenciam, sejam

necessidades fisiológicas como se alimentar e descansar. Seja a necessidade de prazer como,

por exemplo, manter relações sexuais. Seja trabalhar, produzir e criar. São necessidades que

urgem como um chamado e exigem uma resposta, exigem uma ação. O chamado da

necessidade confronta o homem de modo que, independente da maneira de corresponder, algo

tem de ser feito. Seja para aliviar um tormento, seja para saciar um desejo. As necessidades

fazem parte da vida-morte, fazem parte de nosso cotidiano. Como dito anteriormente

entendemos que a necessidade parta primeiro como uma convocação própria da fÚsij. Esta

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exige algo do homem por dele fazer parte de modo inequívoco e inseparável. No entanto,

pode parecer um pouco estranho o fato da questão da necessidade figurar na discussão que se

dá a partir da criação. Ora, desde o momento que ela enquanto tal, como convocação e

conclamação, exige do homem um corresponder, um agir, tal ação se articula como

possibilidade de medidas a serem tomadas. Algo em exigência no confronto do que se impõe

requer do homem uma atitude. A princípio, se pode pensar que estamos incorrendo no

equívoco já apontado por Heidegger quando este fala da essência do agir somente medida a

partir da finalidade de um resultado que pretende uma utilidade. No entanto, o que exige do

homem em uma exigência o força enquanto abertura a uma ação, uma atitude. Toda ação e

atitude, ou seja, todo agir não parte do homem. Somente acontece quando no chamado algo

lhe é exigido. Assim, na exigência da convocação inevitável, ele pode agir. A necessidade se

dá por estar o homem na disposição de abertura a tal exigência. Ela se mostra em uma

referência. Toda ação, portanto, se mostra numa referência. Esta é, de modo próprio, a

referência do ser à essência homem, de modo que ele é o único ente que é sendo ao modo de

habitar a abertura para o ser no resguardo do abismo.

Enquanto referência, a necessidade envolve de modo próprio um diálogo que reúne o

homem e a referência do ser à essência do homem, resguardado pelo próprio ser. Diante da

referência que exige, que convoca, nós, mortais, podemos inicialmente nos encontrarmos na

disposição de um movimento que se mostra na perspectiva de uma ação. Aberto ao ser, na

referência deste à sua essência, pode o homem, a partir de tal exigência, se encontrar na

disposição da liberdade da ação. Não há o acontecimento de um para após vir o outro. O que

ocorre é a simultaneidade dos desdobramentos ao modo das obras de arte. Por exemplo, a

polifonia de uma obra musical, onde várias melodias acontecem simultaneamente. A

exigência como referência para a abertura que o homem habita. Bem como, o movimento do

homem por tal exigência na liberdade que lhe é permitida, por se encontrar aberto a esta

referência, acontecem conjuntamente em simultaneidade. Tais se mostram na diferença de si

mesmos. Ela se dá na implicação da própria referência que envolve um e outro juntos como

unidade. Assim, necessidade e liberdade somente se dão em tal referência do ser ao homem

enquanto este habita a abertura para o resguardo do ser. Que se dá enquanto aparecimento

misterioso na unidade do tempo velado no abismo.

Podemos dizer que criar, sem dúvidas, passa por uma relação de movimento. Toda

criação inclusive a que a própria fÚsij produz se dá na relação de movimento. Entendemos o

homem como aquele que é sendo ao modo de lhe ser concedido agir. Tal conceder se dá a

partir do momento em que pode instrospectar, saindo de si mesmo em direção ao que se

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impõe em presença-ausência, e retornar a si mesmo. Neste retorno, de alguma forma, ele

detém o que se envia para ele misteriosamente. A partir do envio destinal do que se destina, o

homem pode se movimentar num agir que se dá na medida da necessidade e da liberdade.

Assim, toda criação é já ambígua nos termos de necessidade e liberdade. Na perspectiva do

homem a criação é uma necessidade ao mesmo tempo em que também é liberdade. Cria-se, na

medida do homem, porque necessidade e liberdade como referência, assim, põem-no para tal.

Na abertura em que é disposto pela referência do ser, o homem pode necessitar da liberdade.

Assim, ele já necessita liberto na prisão que é o mistério de si mesmo. Tal mistério se dá

abrigado na simplicidade do sem fundo abismal na unidade do tempo e na ambigüidade do

ser. Toda criação na medida do homem, toda produção de que ele participa conforma

implicando tal unidade. O agir é, então, a reunião que mostra uma convocação e uma

exigência que, na referência do ser à essência do homem, fazem este último mover-se na

necessidade já liberto e preso ao mesmo tempo ao que ele mesmo é sendo no tempo.

Memória

Não há possibilidades de trazer qualquer discussão com a unidade da poética musical

que, necessariamente, implica o homem, negligenciando algo que se mostra fundamental: a

memória. Em todos os empenhos e desempenhos, em todo estar lançado e jogado na

experiência, o homem somente o pode fazê-lo na medida em que se encontra na disposição da

memória e, por conseguinte, do memorável. Memória é, assim, questão da mais alta

importância pelo simples fato de se encontrar em tudo que diz respeito ao homem. Quando

podemos pensar o homem sem memória? Sem se encontrar no confronto próprio com o que,

de memória, dá-se como memorável?

Várias são as possibilidades de questionar a memória. Como questão de grande

complexidade muitos são os conceitos, estudos e pesquisas empreendidos ao longo do

caminho do homem. Tal mobilização não é diferente do empenho que convoca o homem de

encontro a todas as grandes questões que, na unidade do tempo, reivindicam dele uma posição

e uma ação na direção de si mesmas.

Até o presente momento, nas pesquisas empreendidas sobre o tema, achamos que as

palavras de Antônio Jardim sejam as mais apropriadas para, minimamente, fazermos uma

colocação a respeito da memória. Diz o autor que memória é “aquilo que leva, dá ou conduz à

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200

unidade112

”. Difícil para nós se torna o trabalho de dizer a respeito algo novo. Algo que não

tenha sido abordado na discussão empreendida, pois o autor apresenta seu trabalho com

concisa seriedade. No entanto, nos permitimos aqui, a partir das palavras acima, algumas

tentativas.

Sem sombra de dúvidas que o modo de tratar a memória pelo dito acima soa, para a

tradição, estranhamente. Nenhuma das possibilidades de dizer a memória a que tivemos

acesso teve par com a que se encontra presente. Muito se diz da memória a partir dos aspectos

do lembrar. Mas, entendemos que o lembrar e a lembrança estejam contemplados no dito de

maneira a não deixá-los de fora da possibilidade da memória efetivamente.

Conduzir, levar e dar unidade, o que dizem? A princípio, se mostram de modo

misterioso. Mas, ao percebermos tratar-se de memória e do memorável, sendo o homem o

único ente que é sendo em tal disposição, possibilidades de caminho se abrem. A unidade do

dito em questão a compreendemos como a unidade das próprias coisas na medida em que são

o que são de modo próprio. No entanto, entendemos também por unidade ser a partir da

medida de reunião que a tudo reúne, onde a reunião de todas as diferenças vigora na unidade

do um. Portanto, aqui, unidade é mais unidade na medida em que traz do dito heraclítico ser

“tudo um”. Ela é na perspectiva da individualidade como identidade frente às diferenças

congregadas no um que a tudo reúne.

Desse modo, percebemos que está em jogo a amplitude do que foi discutido enquanto

a tensão originária do ser como fÚsij e lÒgoj. Assim, todo o âmbito do real se encontra em

jogo. Tudo o que percebemos como mundo e como terra, na medida em que esta sustenta e

abriga o irromper de um mundo, está implicado. De modo que, minimamente, foi discutida a

questão da unidade113

, podemos nos permitir seguir a partir dela.

Podemos seguir alguns exemplos que permitem esclarecer de que maneira a memória

e o memorável podem figurar como o dito em questão. À medida que o homem está a

disposição da memória, tudo pode se dar na perspectiva do memorável enquanto habita a

memória. Ela conduz à unidade, leva à unidade, pois tudo o que é e se dá somente adquire a

possibilidade de ser o que é sendo, na perspectiva em que se dá na unidade do um que a tudo

reúne. O que é um mundo que irrompe abrigado e sustentado pela terra como fÚsij? Nos dias

atuais lidamos com uma diversidade imensa em distintos aspectos. Tal diversidade faz parte

deste mundo que habitamos e experimentamos por sermos o que somos jogados na

112

Jardim, A., 2007. A noção de memória encontra-se amplamente trabalhada no capítulo 3 intitulado Os

caminhos da memória. 113

Conferir, no presente trabalho, Capítulo 1 subitem O um e a multiplicidade; bem como Capítulo 2 subitem

Tudo é um.

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experiência. Tudo o que percebemos e podemos perceber, inclusive nós mesmos e a

diversidade que somos para nós, somente assume a possibilidade de ser o que é na medida em

que estamos já na disposição da memória. Apenas pela memória as coisas que são assumem

sua própria identidade. A memória não é uma propriedade do homem. Ela parte do ser na

medida do abismo de simplicidade, onde este temporalmente mostra-se memorável, posto que

ele é quem dita a própria medida da memória.

Tudo que o homem é, tudo que ele conhece e desconhece, pensa ou deixa de pensar,

somente pode se dar a partir da memória resguardada no memorável. Toda teia de relações e

inter-relações que estabelecemos e habitamos encontra-se inter-ligada na unidade que reúne

tudo onde a memória “dá, leva ou conduz à unidade”. Caso não estivéssemos na disposição da

memória não haveria identidade, muito menos diferença. Não há unidade sem memória.

Lembrar faz parte da memória? Sem dúvida que sim. No entanto, como diz Jardim, a

memória não apenas é uma possibilidade retrospectiva, mas também prospectiva114

. Com ela

podemos nos lançar para adiante. Com ela o tempo pode se mostrar em sua

tridimensionalidade115

como unidade retida e subtraída. Com o tempo enquanto unidade, o

que dura e demora sendo, também é enquanto unidade na medida em que se dá à memória

como memorável. Imaginemos um homem sem memória. Este perde completamente sua

identidade e, necessariamente, deixa de ser homem enquanto humano na medida em que o

conhecemos. Um ser humano fora da condição da memória praticamente iguala-se a um

vegetal, ou, talvez, nem assim poderia ser dito. Importante para nós é que um homem alheio

ao consentimento da memória se encontra fora da disposição da linguagem, da experiência, da

possibilidade do pensamento. Portanto, encontra-se fechado para o envio destinal do ser

velado no abismo do nada.

Guardar e armazenar algo que se passou é uma das possibilidades da memória, mas

esta para se dar como tal não pode restringir-se a um armazenamento. Se assim fosse

aparelhos de computador seriam dotados de grande memória pela colossal capacidade que

atingiram, na atualidade, de armazenar informações. No entanto, tal não é verdadeiro porque

memória não é acessar um banco de dados. Memória é o que permite toda a relação que

mantém e sustenta tudo na unidade de si mesmo. O homem participa da memória, a ele é dada

a dádiva de, disposto à memória, abrir-se ao ser em seu mistério.

Produzir e criar somente são possíveis com memória. Estes não são memória, mas ela

dá condições para que tais se articulem juntamente com ela. Toda criação e produção se dão

114

Idem. p. 133-135. 115

Conferir, no presente trabalho, Capítulo 1 subitem Tempo.

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na medida em que participam da memória como memoráveis. As obras de arte são criações

memoráveis que se dão a partir da possibilidade da memória. Como poderíamos relacionar

como unidade uma obra de arte a partir de todas as suas nuances, de todos os seus

movimentos, de todos os seus caminhos enquanto configura a unidade de si mesma a partir da

permissão do abismo que a cerca, sem estarmos à disposição da memória? O que seria de uma

obra literária como Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa, ou Os sertões de Euclides da

Cunha? Onde estaria a genialidade de tais obras se não fossem diretamente produzidas e

criadas já na disposição da memória enquanto a unidade própria que são? Onde estaria a

identidade de suas personagens, onde estaria o mundo revelado em que se desenvolvem e

vivem tais personagens? O que seria das obras musicais? A resposta é simples e da mais pura

obviedade, talvez até inocente: nenhuma obra artística poderia se dar. Tal se mostra

impossível pelo fato das obras de arte apresentarem imensa riqueza na sua ritmicidade. Esta se

mostra no movimento do combate das diferenças que se medem uma à outra na manifestação

das obras como unidade. De todo modo, nenhuma criação humana e, portanto, nenhuma

articulação de mundo seria possível sem que o homem estivesse já aberto a possibilidade da

memória que é permitida pelo ser em sua unidade.

A partir do pouco que pôde ser dito acreditamos demonstrar a imensa importância da

memória para fazer do homem quem ele é. Na medida em que, por ela, se encontra aberto ao

ser, à experiência ao pensamento. Nestes o próprio ser se insinuando exige um agir do homem

em resposta, o mostra como aquele que habita o diálogo. Nesse diálogo, dialogando, ele pode

ser quem é. Encontra sua identidade abrigada na sua ambigüidade misteriosa. Onde, aberto a

si mesmo, já se percebe dissimulado e resguardado no abismo de simplicidade que permite

toda dobra de complexidade.

Pensar e saber

Da mesma maneira que as questões precedentes, o pensar e o saber se mostram como

de grande magnitude no que se refere a discussão que nos convoca e que, no momento, toma

por ímpeto o homem enquanto questão. No caminho em que nos encontramos, há sempre a

tentativa de que aconteça uma escuta atenta como um pertencer. Esta procura se dar a partir

do posto em questão. Portanto, buscamos como verdadeiro o dito de que pertencemos ao

pensamento e ao saber na medida de, assim e, somente assim, nos encontrarmos na disposição

de estar em comunhão sua verdade. Desse modo, eles, enquanto são o que são, alavancam a

própria possibilidade de serem questionados.

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203

Todos os homens ditos como tais se mostram além de outras coisas também pensando.

De todo modo, na implicação posta anteriormente, estamos trabalhando na perspectiva de que

sendo o que somos, somos também pertencendo ao pensar e ao saber. Isso nos coloca de

modo distinto do usual permitindo escutar e ver a partir de outras possibilidades de discussão

que, de modo estranho, confrontam a tradição do Ocidente.

Diante do caminho disposto no presente trabalho não se dá de nenhum modo duvidoso

o fato de retomarmos o dito de Heidegger em Sobre o humanismo anteriormente citado:

O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz

nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue

pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna

linguagem116

.

“O pensamento não produz nem efetua a referência do ser à essência do homem”, está

dito de modo claro e conciso. As discussões precedentes mostraram que há uma referência do

ser à essência do homem, ao modo de um envio. De modo que, ao mesmo tempo, se promove

a imposição de uma exigência e de uma convocação. O homem sendo o que é se encontra

habitando a abertura para o ser que se envia em tal conjuntura. Portanto, podemos dizer que

aquilo que se envia dá ao homem a possibilidade do pensamento de modo a permitir que o

pensar possa se dar. A referência mais uma vez mostra o diálogo de modo que, em tal

referência e restituição, o ser se concede como fala originária à linguagem. Pertencendo ao

pensamento sabemos que dele inequivocamente participamos. Pertencendo ao pensamento,

sem dúvida nenhuma, pode ser dito que pensamos. Estamos e nos encontramos na disposição

do pensamento. Pensamos porque habitando a abertura para o ser podemos percebê-lo em sua

verdade misteriosa. Assim, na experiência podemos sair de nossos limites em direção a ele em

seu envio. Todo pensamento parte deste envio como um mostrar-se misterioso que se dispõe a

ser posto a pensar. No entanto, quando dizemos que pensamos e nos encontramos na

disposição do pensamento pergunta-se: O que, como homens, pensamos?

Pensamos a respeito de nós mesmos e do mundo que nos rodeia sempre abrigado pela

terra que lhe dá sustento. Pensamos na terra que sustenta o mundo e nos sustenta por sermos

sempre sendo a partir da fÚsij. Em suma, pensamos por nos encontrarmos em tal disposição

e referência para com o ser, habitando a abertura para o próprio ser. Pensamos a partir do ser e

não de nós mesmos. Participamos do pensar porque a ele pertencemos e assim podemos

escutar de modo atento o próprio pensamento. Na medida em que o pensar brilha no homem

116

Idem. Op. cit.

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podemos ter a idéia de que pensamos a partir de nós. No entanto, tal se dá sempre na

perspectiva em que o homem não parte de si mesmo, mas somente na pertença ao ser na

unidade do tempo e suspenso no abismo. Assim, o ser, primeiro e antes de tudo, nos dá a

medida de sermos quem somos. No entanto, não pode ser dito que o ser venha a pensar. O

pertencimento do pensamento ao ser é de outra ordem. O ser mesmo não pensa, permite o

pensamento. O ser abriga o pensamento de modo a permitir a ele ser o que é. Mas, o

pensamento em si somente é e se dá como uma referência. Somente na referência do ser ao

homem pode se dar pensamento. Portanto, o pensar não pertence ao homem porque a ele

pertencemos. Ao mesmo tempo não podemos dizer que o ser pensa, no entanto, permite e

abriga o pensamento. Quem pensa é o homem, mas ele pensa porque pertence ao pensar. O

pensamento é na referência uma restituição. O ser não pensa, no entanto, é restituído do que

permite e resguarda abrigando a linguagem como reunião. Pensamento e linguagem o são na

referência como diálogo. Na conjuntura do diálogo se mostra o pertencimento do homem e a

restituição ao ser daquilo que ele mesmo permite e resguarda no abismo do nada. Tal como

nos diz Parmênides a partir do verso 34 em Acerca da Nascitividade que, na tradução de

Sérgio Wrublewsky, soa como: “O mesmo é pensar e graças ao que é o pensamento; pois sem

o ente, no qual o que é trazido à fala é, não encontrarás o pensar117

”. Pensando na referência

do ser ao homem e na restituição desta referência ao ser enquanto linguagem, percebemos que

o que é trazido à fala no dizer de Parmênides, o ente, traz implicada tal referência de modo

que sem ela “não encontrarás o pensamento”. Assim, corroboramos com Parmênides e

Heidegger na medida em que o pensamento somente se dá na conjuntura.

Na tentativa de enriquecer nossas discussões trazemos mais uma vez Heráclito em dois

de seus fragmentos, fazendo, assim, a tentativa de ouvi-los em consonância um com o outro.

São os fragmentos 112 e 50. O primeiro diz swfrone‹n ¢ret¾ meg…sth, kaˆ sof…h ¢lhqša

lšgein kaˆ poie‹n kat¦ fÚsin ™pa†ontaj. Na tradução de Carneiro Leão: “Pensar é a

maior coragem, e a sabedoria, acolher a verdade e fazer com que se ausculte ao longo do

vigor118

”. Pensar é a maior coragem, maior excelência, maior valor, o que é em si valoroso. É

o que mostra o estar na disposição do pensamento como algo de grande importância para o

homem. A primeira parte do fragmento somente traz para nós a possibilidade de seu valor de

sua qualidade como algo excelente, valoroso, do mesmo modo como em Homero eram

referidos os heróis na palavra ¢ret¾ a respeito de seu valor, sua coragem. Está dito que estar

na disposição do pensamento, que o aventurar-se de modo próprio nas venturas do

117

Parmênides in Pensadores Originários. Vozes: Petrópolis, p. 48-49. 118

Heráclito. Idem, p. 88-89.

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pensamento, é a maior coragem. Portanto, aventurar-se nas venturas do pensamento tem o

mesmo valor e grandiosidade dos heróis gregos em sua magnitude, em sua grandeza cheia de

feitos maravilhosos. Isso se diz porque estar na disposição do pensamento requer empenho. O

empenho de assumir e abrigar a referência do ser à essência do homem. Para estar na

disposição do pensamento o homem tem de assumir tomando para si o jugo de ter de suportar

tal referência na medida de abrigar o pensamento. Esse empenho, que é comparado por

Heráclito à coragem e grandiosidade dos heróis gregos, se mostra nas venturas e desventuras

como um aventurar-se na ambigüidade em que já nos encontramos. Assim, o homem se

mostra empenhado no desprendimento de si mesmo. Este se revela pela coragem de se

aventurar pelos caminhos errantes no abismo de mistério que o desnudam, colocando-o diante

do que ele é e do que não é sendo no âmbito do ser. Desse modo, percebemos na abertura que

somos fechados para nós mesmos diante do mistério insondável que guarda e resguarda tudo

que é na unidade do tempo. Por isso pensar é a maior coragem. Estar na disposição do

pensamento requer do homem o valor e a grandiosidade dos heróis. No entanto, não como

sobre-humano que se mostram além dos outros homens por habilidades maravilhosas. Tal

acontecimento tem de ter a simplicidade de se dar apenas na possibilidade de assumirmos a

coragem de chegarmos apenas uma vez “onde já estamos” e pertencemos. Com isso é de

direito de todo e qualquer homem, que assim se coloque na disposição de uma escuta atenta,

perceber que é um colaborador do ser.

No entanto, o fragmento não se refere apenas ao pensar. Mostra e nomeia também a

sabedoria na palavra sof…h. A sabedoria é dita como acolher a verdade, ¢lhqša lšgein. A

verdade se mostra no desvelamento do que se apresenta recolhido no mistério de si mesmo na

unidade do tempo. Assim, a verdade reside velada no abismo que, como simplicidade

abrigando a não verdade, permite todo o desvelar-se daquilo que se desvela na verdade de si

mesmo. Acolher a verdade é um dos modos de dizer o lÒgoj como lšgein. Este se dá como

ser na unidade tensional com a fÚsij. Ambos como unidade se referem ao ser nos seus

múltiplos modos de ser dito. O acolher aqui traz a possibilidade de dizer o lÒgoj já distinto

do sentido posto como o excluído de toda exclusão que permite a seleção como acolher. No

entanto, por falar na medida de um acolher, o excluído de toda exclusão como originariedade

do lÒgoj, mostra-se de modo radical. Ele se revela na medida em que permite todo

acolhimento enquanto escolha e seleção na escuta que é pertencendo. Acolher a verdade

mostra o homem numa disposição de confronto com a não verdade, ou seja, com a própria

verdade em seu encobrimento na medida em que mostra o ser em seu mistério abismal.

Acolher a verdade é estar em uma disposição de suportar tal ambigüidade, de receber a dádiva

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de si mesmo enquanto corajosamente se aventura pelas venturas dos caminhos do ser no

abismo que o vela. É confrontar-se com o excluído de toda exclusão na medida de toda

seleção e resguardo que acolhe.

A sabedoria é dita na medida de um vigor. Ao longo do vigor é que se acolhe a

verdade numa ausculta cuidadosa. A verdade no seu acolhimento é verdade como não verdade

já na medida do vigor. O vigor vigoroso nos é dito como fÚsij. Ela é o vigor em sua

vigorosidade resguardando a si mesma na verdade de seu mistério. Não é sem motivo que no

fragmento em questão, o dizer de ambos, fÚsij e lÒgoj, se encontram contemplados.

Auscultar ao longo do vigor mostra um pertencer ao vigor que se faz presente como ausência.

Tal presença-ausência se dá no mistério resguardado pelo tempo que mostra a concretude de

tudo que é na transformação que repousa. O vigor repousa como movimento e assim se dá ao

acolhimento da verdade como saber. O saber é também referência. Na conjuntura,

pensamento e saber se dão e mostram-se sendo o que são. Do mesmo modo que o ser não

pensa, dizemos que o ele não sabe, no entanto, permite todo saber. Acolhendo pensar e saber

o ser, em seus múltiplos modos de ser dito, permite todo desdobramento que se dá no

confronto à simplicidade do abismo. Lá toda dobra se permite nos limites próprios do ser na

unidade de sua multiplicidade.

O fragmento 50 de Heráclito antes já trabalhado em outros aspectos diz a sabedoria de

modo semelhante. No dito fragmento a sabedoria está no Ðmloge‹n, que segundo a

interpretação de Heidegger em Que é isto, a filosofia?119

, diz ser o “falar assim como o lÒgoj

fala”; quer dizer: corresponder ao lÒgoj. No entendimento de Heidegger o saber é o que é

dito pelo lÒgoj - um é tudo. Ou seja, “todo ente é recolhido no ser120

”. Isto é o sof…h no qual

o corresponder do homem enquanto Ðmloge‹n está de acordo.

O corresponder aqui se mostra na medida de uma referência. Corresponder é, em

suma, um referir-se como referência do ser enquanto lÒgoj. O que talvez possamos dizer é

que, a partir da interpretação do fragmento, a sabedoria se mostra como um estar aberto

enquanto escuta pertencendo ao dizer originário do lÒgoj. Este diz ser um-tudo. Esta

correspondência é o saber na referência do ser à essência do homem na abertura em que o ser

permite ao homem habitar. A sabedoria, desse modo, reside no lÒgoj, que mostra ser tudo

um. Ela se dá na conjuntura em que o homem que lhe corresponde sendo-lhe escuta audiente,

escuta atenta e cuidadosa como pertencer. Assim, se dá a conjuntura de um diálogo. Dessa

maneira, o Ðmloge‹n não estaria de acordo com o sof…h, mas seria propriamente o sof…h

119

Heidegger, M. 2000f, p. 32. 120

Idem.

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enquanto um corresponder na medida da referência ao lÒgoj. Então, está na disposição da

sabedoria o homem que se encontra atento em uma escuta que pertence ao que se escuta, uma

que pertence cuidadosamente ao dizer do lÒgoj que mostra ser tudo um. Que mostra que

“todo ente é recolhido no ser” sendo o que é, como ente, na unidade do tempo, como solidez

do que transforma-se já repousando.

A sabedoria é corresponder como referência. Desse modo, ela está no diálogo e na

colaboração do responder do homem ao dizer do lÒgoj. Esse dizer se envia para o destino a

que se destina como uma exigência e uma convocação. Tal envio é sempre no desvelamento

velado de sua verdade que brilha na abertura que o homem habita. Portanto, o homem é o

único ente que se encontra na disposição de dizer o ser na medida em que habita esta abertura.

Esse, para nós, é o envio destinal onde o ser se abre para o homem elegendo-o para suportar a

maravilha do seu brilho misterioso. Sabedoria, então, pode se mostrar como um estar atento à

referência do ser para nós mesmos, enquanto homens, que sendo o que somos já o somos

habitando a abertura em que o ser se dá mostrando-se em seu brilho ofuscante, em seu brilho

encoberto. Dessa maneira, a sabedoria se dá numa co-laboração do ser que, como lÒgoj se

envia, juntamente com o homem que é o escolhido para suportar o brilho ofuscante da

verdade do ser. O homem mostra-se como lugar próprio de manifestação do ser em seu se dar

velado no abismo.

Podemos pensar ainda as palavras que Heidegger usa a partir do fragmento heraclítico:

“todo ente é no ser” e “o ente é recolhido no ser”. Assim, o pensador nos diz que o ente é

colhido novamente no ser. O ser colhe enquanto reúne o ente. Enquanto unidade originária de

reunião o ser tudo colhe e é por isso que diz Heráclito: “Ÿn p£nta eŒnai”, tudo é um. O tudo,

a totalidade do ente, o ente em sua totalidade é colhido no um, na unidade originária de

reunião, no ser. O ser colhe o ente em sua totalidade e neste recolhimento o apresenta como

tal. Esse recolhimento é sempre a partir do excluído de toda exclusão que permite qualquer

colheita na unidade, de modo a, assim, reunir todas as diferenças.

A partir do dito: “o ente é recolhido no ser”, podemos ainda pensar: o ser mostra o seu

brilho misterioso ao homem, somente ele como ente que habita a abertura para o ser, se

encontra na disposição de ver e entrever esse brilho encoberto e “experimentar a maravilha

das maravilhas: a de que o ente é”. A maravilha de que o ente sendo o que é somente é por

pertencer ao ser. O “tudo é um” de Heráclito diz, a partir de Heidegger, que o ente é recolhido

no ser. Portanto, podemos dizer que esse re- de recolhido, esse novamente, esse colhido

conjuntamente já diz da co-participação do homem nesse recolhimento. Esse recolher diz o

ente e, nesse dizer, nesse colher conjunto, o homem pode, a partir da dádiva do ser, dizer que

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o ente é, ao corresponder como referência ao “Ÿn p£nta eŒnai” heraclítico na interpretação

heideggeriana. O ser ao se mostrar em seu brilho misterioso traz consigo para a abertura esse

colhimento que a tudo reúne, inclusive o homem, posto ente que é frente ao ser. Esse

colhimento é recolhido na abertura que o homem habita onde ele pode, então, na referência

que corresponde na audiência atenta como pertencer, dizer o ser dizendo que o ente é, de

modo a restituir ao ser a própria referência abrigado na linguagem. Então, o recolhimento do

ente no ser revela o ente no ser e a referência fundamental do ser para com a essência do

homem. Assim, o ente é colhido e recolhido no ser, aquele que a tudo reúne como unidade

originária de reunião frente ao excluído de toda exclusão. O lÒgoj é recolhimento e o

excluído de toda exclusão na permissão de todo colhimento e recolhimento como seleção na

unidade que a tudo reúne. Aqui, não estamos dizendo que o homem é o que recolhe, sem

dúvida, que fique claro que o colhimento e o recolhimento estão na unidade originária de

reunião. No entanto, o homem habitando a abertura para o ser participa do recolhimento.

Assim, o homem é, enquanto ente, um co-laborador do ser, pois que habita a sua casa e lá

funda a sua morada. Desse modo, se encontra suspenso no abismo do nada e se encontra na

disposição de poder dizer que o ente é, suportando o mistério do ser frente ao abismo.

Suportando o mistério de si mesmo que aberto para si mesmo já se vê ao mesmo tempo

fechado diante do abismo que o abriga, resguarda e sustenta permitindo a ele habitar a

abertura para o ser e para tudo o que é sendo na unidade do tempo.

Por tal desdobramento podemos tomar de empréstimo ainda o que diz Parmênides: “...

pois o mesmo é pensar e ser121

”. Em tais palavras misteriosas se mostra a força da sabedoria

grega em seu esforço para dar-se ao pensamento. Sem dúvidas, vários autores que se

dispuseram a pensar a partir do fragmento, já mostraram que o mesmo aqui não se refere à

mesma coisa, não se encontra na relação de semelhança, mas sim na diferença que reúne a

unidade. Pensar e ser no dito parmenídico se mostram na unidade até porque, como já foi dito,

o ser não se encontra na disposição do pensar. Ou seja, o ser não pensa, antes permite e acolhe

o pensamento e, desse modo, pode com ele se dar como unidade do mesmo. Pensar é

recolhido na unidade do ser. O ser resguarda o pensar abrigando-o na sua referência ao

homem. Habitando na abertura, na ambigüidade de si mesmo, o homem pode pensar porque o

ser, se insinuando, permite o pensamento que parte dele em tal insinuação. Tal acontecimento

resplandece por mais que o ser se encontre fechado à disposição do pensar permitindo que tal

disposição possa brilhar misteriosamente no homem. Isso, porque o ser mesmo não é a

121

Trad. de Sérgio Wrunblewsky. Op. cit., p. 44-45.

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abertura, mas guarda e resguarda essa mesma abertura na medida em que a concede ao

homem que lhe pertence. Portanto, a própria abertura do ser mesmo pertence ao ser, por mais

que ele, enquanto ser, permaneça fechado para si mesmo. Por tal fechamento do ser para si

mesmo é que podemos dizer que o homem, enquanto habita a abertura para o ser, se encontra

ao mesmo tempo na possibilidade de ver-se na radical condição de estar fechado para o que

ele mesmo é. Ao mesmo tempo em que se dá para o mistério insondável do ser no abismo

ambíguo de simplicidade. Nesta medida, Parmênides fala de pensar e ser enquanto unidade.

Pensar se resguarda no ser, e o ser mesmo brilha misteriosamente na medida em que permite

o pensar acolhendo-o e permanecendo já fechado à possibilidade de pensar. Tal fechamento já

marca de modo indelével a diferença radical de um e do outro, impossibilitando pensar o

fragmento de Parmênides a partir do mesmo, como verossimilhança, como identidade de um e

outro. No fragmento, ser não é ser humano. Mas, sim na disposição em que nos colocamos na

discussão a partir do ser como mistério em sua verdade. Tal aqui já se encontra na medida do

óbvio. No entanto, sempre se faz prudente a lembrança.

Dentro do âmbito em que se dispõem tanto o pensar quanto o saber, naquilo que lhes é

próprio, estes se mostram ao homem se revelando sempre a partir do âmbito do pensamento

poético e da poética pensante. Estes se põem a pensar a partir do que poeticamente dá a

pensar. Do que dá a pensar se constituem os âmbitos da arte, do pensamento, do sagrado, e da

técnica que se configurou enquanto ciência. Tirando, de modo específico, o saber a partir da

ciência - que aqui não se encontra em temática e apenas se mostra em questão quando as

discussões assim exigem - todos os outros saberes põem-se em questão. Assim se dá de modo

a permanecermos no esforço de nos aproximarmos do que é efetivamente o homem, para que

este seja revelado, de modo próprio, dentro da convocação que nos exige. Portanto, em

momento oportuno cada um dos saberes irão se encontrar em questão, de modo que

possamos, assim, nos aproximar do homem.

Sentir

Em toda e qualquer investigação em que o homem se encontre em questão não pode

passar despercebida a relação que este mantém com o sentir. Na medida de que ao ser um ente

ao modo do homem é verdade o dizer que profere que, ele sendo o que é, sente. Na reunião

que a música é em co-pertinência com o abismo de simplicidade, o homem mostra-se

convocado e nomeado de modo próprio, e não há dúvidas de que sente. Portanto, buscando o

homem em sua verdade podemos dizer que sentir é uma maneira de identidade do homem

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enquanto é o que é. Tal constatação é ao mesmo tempo um mistério que se mostra de modo a

podermos afirmar: o homem sente. No entanto, como se dá tal sentir? De modo que tomamos

por verdade que o homem sente, podemos dizer que sentindo ele se encontra na disposição e

na guarda do ser sendo o que ele é. Assim, tal disposição é algo determinante para mostrar a

essência do homem. Mostra-se como algo, que na reunião de todas as diferenças dos homens

em suas individualidades, marca de modo distinto do pensar e do saber o que o homem é na

permissão e no abrigo da unidade de ser e tempo.

Sentir já se dá porque o que se mostra como sentido permite o sentir como um nomear.

O homem sente por se encontrar sendo ao modo de lhe ser concedido habitar a abertura para o

ser. Ao receber a dádiva do ser podemos dizer que o homem se encontra decisivamente na

disposição de sentir, pensar e saber. Toda a discussão precedente a respeito do saber e do

pensar nos traz de modo inseparável a relação do sentir. De modo a ser lícito dizer que o

homem somente se encontra na disposição do pensar e do saber já, e sempre sentindo. Sentir o

perpassa na possibilidade de continuamente estar disposto como vivente implicado

diretamente na disposição do mundo que irrompe no sustento e abrigo da terra.

A tradição mostra a abstração do homem habitando um corpo que o sustenta. Portanto,

não são incomuns os dizeres que promovem a hegemonia do pensamento e do saber em

relação ao sentir e aos sentimentos. No entanto, tal hegemonia aqui perde seu lugar.

Compreendemos o homem como unidade no todo de si mesmo, onde ele se dá abrigado e

sustentado no âmbito do ser e velado no nada. Na discussão em que o corpo se pôs em

questão pudemos perceber que o homem é corpo na medida da fÚsij como uma unidade de

totalidade. Portanto, sentir e pensar se dão na unidade que o homem é.

Como totalidade, sem dúvidas, temos de dizer que sentimos, quanto a isso não há

possibilidades de fuga. Sentimos porque somos. Sentimos porque nos encontramos postos na

disposição à abertura para o que se dá como sentido para o sentir que o recebe. É comum

compreendermos que aquilo que se dá como sentido é a partir do sentir. Assim se procede,

como se o sentir concedesse ao sentido o eu lhe é próprio. Tal concepção é uma inversão, bem

como uma incoerência. Posto que, como o sentir pode dar sentido ao que se dá como sentido?

Não vem primeiro o sentido do que se dá para que o sentir possa ser o que é a partir deste? A

questão se mostra na profundidade mais profunda no sem-fundo do abismo de simplicidade.

Portanto, permanece a questão: como o homem sente? Dissemos que sentir é ao modo

de um receber o que se dá. Assim, podemos propor que, como um receber, é também uma

atitude. O receber enquanto um estar posto na disposição da abertura à manifestação do que se

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manifesta é uma atitude. Tal receber é um se promover no movimento de receber a dádiva.

Assim, estamos falando de uma colaboração, onde o receber é já uma atitude que recebe.

A proximidade que temos do sentir se mostra pelo que são chamados de sentidos, aos

quais o homem se encontra em uma disposição. A discussão promovida a partir da escuta122

nos dá pistas decisivas para que possamos ser convocados pelo sentir como questão. Ela é

vista como uma referência de pertencimento que é e não é do homem. A escuta se dá na

medida em que é um pertencer à fonte da fala brilhando no homem como abertura para o que,

por si mesmo, se manifesta como fonte, como origem. Assim, como um sentido, ela se

mostra, bem como o próprio homem, em uma referência. Se a escuta se encontra como um

dos sentidos aos quais nos encontramos em uma disposição, de modo que pertence ao sentir,

não há problemas em compreender que o próprio sentir é também referência. Assim, se dá

posto que o homem habita a referência do ser à essência do homem. Portanto, não há

problemas em compreender que o sentir habita o mesmo que o próprio pensar na radicalidade

de sua diferença para com este último.

Desse modo, na medida da escuta, podemos perceber como os sentidos podem, na

radicalidade de suas diferenças, se mostrarem ao modo de um pertencer. Os sentidos, dessa

maneira, mostram que a visão é um pertencer ao que se dá a ser visto, que o tato, o paladar e

todas as maneiras que podem ser nomeadas a partir dos sentidos se dão ao modo de um

pertencer e de um pertencimento. Como pertencer os sentidos são escuta originária que

pertence à fonte de todo mostrar-se. Assim, sentir é sempre e já uma possibilidade do abrir-se

do homem permitido pelo ser. Permitindo ao homem sentir o que sente na disposição em que

se encontra, o ser se envia resguardado misteriosamente.

Diante do que continua em discussão se abre a pergunta: o que é em si o sentido, na

disposição distinta dos sentidos aos quais os homens se mostram dispostos? Tal sentido em

questão é anterior ao que nomeamos como sentidos aos quais estamos em uma disposição.

Podemos dizer que as coisas são em si sentido. Elas se dão ao modo do sentido porque, sendo

sentido, são o que são. Na verdade, o sentido é o que se mostra de modo anterior ao que, de

todo modo, sempre é o que é porque pertence ao ser. Por exemplo, há coisas que são puro

sentido no resguardo do ser: uma árvore ou ainda uma flor, são o que são na medida de serem

como o puro estar livre sendo o que são. Assim, são sentido e sendo como tal se mostram na

sua radicalidade. O puro estar livre independe de qualquer interferência que possa manifestar-

se a partir de uma instituição e constituição de mundo que irrompe no abrigo da fÚsij. Desse

122

A respeito de tal discussão conferir, no presente trabalho, o Capítulo 2 subitem A escuta em sua

originariedade.

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modo, o que é se mostra livre de qualquer função ou finalidade. A flor é no florescer de si

mesma. A árvore de mesmo modo no arvorecer na medida em que é sendo o que ela é. Assim,

o que de todo modo mostra e dá a medida do que é ao modo do sentido, no puro estar livre em

si mesmo, é justamente a unidade de ser e tempo velados no abismo do nada. Portanto, o

sentido, aqui, é o que se dá ao modo do fenômeno que, enquanto tal, sendo o que é se

encontra manifesto e resguardado em tal manifestação no abismo de mistério que abriga toda

verdade.

Devemos ter de modo claro que aquilo que se mostra ao modo do sentido somente

brilha em si mesmo na medida de uma colaboração. O que se dá como sentido é somente na

abertura que recebe e sustenta o brilho do próprio ser. Assim dizemos, pois, o ser e os entes

outros que não o homem, se encontram fechados em si mesmos para si mesmos e, desse

modo, fechados, brilham como sentido. Portanto, podem brilhar como puro e livre sentido no

sentir próprio em que o homem se encontra posto em uma disposição. Tal fechamento marca

que o ser em si mesmo se dá ambiguamente fechado até para si mesmo. Por isso, os entes se

mostram enquanto fenômeno no mistério de si mesmos abrigados no ser e velados no nada.

Dessa maneira, se encontram no resguardo do ser sempre fechados para si mesmos. Pois que,

somente brilham no brilho ofuscante na medida de uma manifestação na abertura que revela a

referência do ser à essência do homem, na abertura em que o ser permite ao homem habitar.

De qualquer modo, no brilho misterioso da discussão, devemos dizer que o sentir, ao

qual o homem se encontra disposto, é o que dá origem ao que podemos pronunciar na medida

dos sentimentos. Os sentimentos então, no seu mistério, são necessariamente a partir do

próprio sentir que é em si mesmo uma relação de pertencimento a partir de uma referência.

Tal referência é a do ser à essência do homem, onde o ser recebe a restituição do que lhe é

próprio a partir de seu referir-se para a abertura que ele permite ao homem habitar. Os

sentimentos de qualquer modo são já uma relação de resposta a partir da colaboração. Os

sentimentos são sempre a partir da colaboração do homem com o próprio ser em si mesmo.

Os sentimentos como amor, ódio, paixão, e todos os outros bem como sua fusão em qualquer

medida se dão numa situação em que se dá o irromper de um mundo. Eles necessariamente se

dão na medida do mistério. Misteriosamente os sentimentos se revelam no sentir que, de todo

modo, já se dá ao pensar e ao pensamento. O sentir se encontra numa teia de inter-relações de

mundo. Cada um que vivencia esse mundo está na disposição do sentir de modo próprio.

Cada homem na medida da individualidade mostra-se historicamente como o homem que é

em seu acontecimento em vida diante da morte. Sem dúvidas, que tal vivência individual não

se dá apenas na medida do sentir e dos sentimentos. Ela se mostra a partir do acontecimento

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do viver do próprio homem enquanto acontece em vida diante da morte, na passagem pela

tensão originária entre mundo e terra na unidade do tempo. Assim, podemos dizer que a

vivência de cada um se dá como um modo de compreensão dos sentimentos. Posto que, tal

vivência inequivocamente se faz também com os sentimentos. Estes se encontram dispostos

ao sentir como um habitar a abertura na referência originária do ser ao homem. No entanto, o

importante é deixar claro que, aqui, a relação com o sentir e com os sentimentos não pode ser

tratada na medida da subjetividade. Individualidade não pode ser confundida com

subjetividade que é já um modo de se relacionar com o real de forma determinada, ao mesmo

tempo em que determinista.

Uma diversidade de sentimentos, na verdade, um turbilhão de sentimentos se mostra a

partir da postura do homem na disposição em que se posta como aquele que é. Tais

sentimentos, que irrompem abrigados no sentir como referência, não se mostram separados

muito menos em grau de importância inferior em relação ao pensar e ao saber, como já

aventado anteriormente. Não são poucos os autores que abordaram o tema de forma séria e

coesa. No entanto, o sentir e a própria relação com os sentimentos, que ecoam soando no

homem enquanto ele é, permanecem um mistério que em diversos momentos passam pela

ambigüidade do controle e do não controle. Muito se diz a respeito da não possibilidade de se

controlar os sentimentos. Sem dúvidas, se mostra praticamente imprevisível o que vamos

sentir a partir do que se dá como sentido. Não se controlar o que sentimos por nós mesmos,

muito menos pela alteridade. Tal referência, de maneira inequívoca, se revela no mistério

abismal, que pode em si receber todo o âmbito de possibilidades e impossibilidades de

desdobramentos a partir de sua simplicidade.

Muitos são os modos de dizer o mistério próprio que é o homem. Tal é devido

diretamente por ele se encontrar posto na disposição da referência do ser à essência do

homem. Dando-se o ser ambíguo em si mesmo, faz com que o homem habite tal ambigüidade

se mostrando profundo no mistério que o resguarda. Assim, o homem reside fechado para si

mesmo enquanto lhe é permitido habitar a abertura em que o ser brota e brilha na unidade do

tempo. Dessa maneira, o turbilhão de sentimentos que em todo momento experimentamos, se

dá também na medida de podermos, ao mesmo tempo, estar abertos e fechados ao outro que

somos. Desse modo, somos o único ente do ser que é sendo na medida de perceber a si

mesmo como outro, sem deixar sua identidade. De modo radical congregamos em nós uma

relação de identidade e diferença. Radicalmente abrigados no ser, congregamos a unidade que

nos dispõe como um e o mesmo. Assim, podemos experimentar a nós mesmos na medida do

mistério próprio que somos. Na medida da ambigüidade do controle e do sem controle dos

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sentimentos que em todo momento experienciamos em nosso cotidiano. Tais sentimentos em

sua diversidade são imensuráveis de modo radical. Não se dão à medida entendida de modo

usual. Isso se é que podemos dizer de uma medida para os sentimentos que experimentamos

diariamente. Não controlando a unidade do tempo, o homem resguarda-se na ambigüidade do

controle e não controle do que sente ao modo de uma atitude que, enquanto tal, para ser o que

é, tem de receber.

Por isso, não podemos controlar o que iremos sentir a partir do contato com uma obra

musical, que na unidade do tempo se apresenta. Imensuráveis são as possibilidades na

diferença de cada um. Enquanto escuta atenta, podemos estar diante de um sem número de

possibilidades, desde a análise estrutural, ao puro levar-se pela manifestação da obra.

Enquanto uma audição menos cuidada o mesmo sem número em distintas possibilidades se

dão de modo parelho. Assim ocorre também com todas as outras formas de manifestação

artística na medida de suas diferenças. O que se dá, sem sombra de dúvidas, é que alguma

coisa iremos sentir, pois não somos sem sentir, somos sempre sentindo. No entanto, como

seria o não sentir? Um recente filme intitulado “Equilibrium” apresenta um cenário em que os

homens ingerem diariamente uma substância que os isenta das emoções, de modo que

nenhum homem no uso de tal substância poderia sentir. Há em tal cenário tantos equívocos

que nos mostram claramente a unidade do homem a partir de tudo o que ele é, inclusive com

o próprio sentir. Como ficam as escolhas mais simples se não se sente? Como ficam as

ambições se não se sente? Qualquer relação de não sentir mostraria o homem na aparência de

uma máquina. O filme em questão reverencia apenas tal diferença por uma frágil lógica. No

entanto, como uma lógica pode se dar se não sentimos? Como valores podem ser eleitos, na

exclusão de todos os outros, se não se pode mais sentir na medida das emoções? Como pode

se dar uma hierarquia? Em suma, como pode o homem, enquanto acontecimento, sem sentir?

A resposta é simples e óbvia: não pode. No filme, vários acontecimentos, que envolvem

homens aparentemente sem emoções, somente podem de modo efetivo acontecer na

disposição das emoções. De qualquer forma, o sem numero de emoções possibilitadas pelo

sentir se encontram na ambigüidade do controle e do não controle.

Para continuar nossa investigação trazemos algumas palavras de Heidegger no que

tange aos sentimentos: “O sentimento de situação da disposição de humor não revela apenas,

sempre à sua maneira, o ente em sua totalidade. Mas este revelar é simultaneamente – longe

de ser um simples episódio – um acontecimento fundamental de nosso ser-aí123

”. Sem dúvida

123

Heidegger, M. 2000 a, p. 56.

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percebemos que sentir faz parte da essência do homem. Nenhum homem é sem eles - claro

que vivenciados na individualidade e diferença de cada um. No entanto, o irromper dos

sentimentos é um acontecimento fundamental da essência do homem. Acontecimento

essencial é aquele que se encontra essencialmente arraigado como propriedade, longe da

dualidade tradicional com existência. Essência diz do que é propriedade de modo inseparável.

Ser homem, portanto, é estar na disposição de sentir e pensar enquanto unidade. Ser homem é

habitar a abertura, suspenso no sem fundo do abismo, para o brilho misterioso do ser na clara

noite do nada. A essência do homem, assim, é: “estar suspenso dentro do nada124

”. É nessa

referência que podemos ter sentimentos na medida de um estar à disposição dos próprios

sentimentos. Tais sentimentos, a sua maneira, como um corresponder, são já uma resposta

enquanto escuta audiente à manifestação do ser em seu mistério como brilho ofuscante. Os

sentimentos, assim, são radicalmente próprios porque radicam na ambigüidade que é o

homem enquanto essência. Mostram-se enquanto resposta dialogante revelando a abertura que

é permitido ao homem habitar na referência do ser à essência do homem. Desse modo, o

homem se encontra à e na disposição dos sentimentos. Assim é porque, de modo próprio, não

os controla. Os sentimentos são na unidade do memorável que revela o tempo em sua

tridimensionalidade no abismo de simplicidade. Este último ambiguamente resguarda o ser

em sua verdade. Portanto, o homem não os controla porque os próprios sentimentos já o

tomam e, tomando o homem, lhe conformam como aquilo que ele é. Os sentimentos que,

ambiguamente, habitam e se manifestam no homem são também mistério para o próprio

homem. São misteriosos na medida em que, a partir do sentido que se dá como unidade, estão

resguardados no abismo que permite toda dobra e desdobramento.

Em relação ao sentir e aos sentimentos, várias são as surpresas, tantas que nem mais

nos surpreendemos com elas. Elas já fazem parte do entendimento e compreensão do

desenrolar-se da vida do homem. Dessa maneira, ele mesmo deixou de lhes prestar a devida

atenção parando, assim, de se surpreender. Parando de se colocar de modo atento ao que

misteriosamente se apresenta como sentido. Tal desatenção envolve inclusive a ele mesmo em

sua vivência diante da morte. Na Antiguidade os gregos nomeavam uma relação muito

especial de surpresa. Do ser surpreendido de modo a, assim, poder se encontrar em uma

disposição de escuta atenta como ausculta. Deixando a insinuação do que se apresenta em seu

mistério, mostrar-se no livre repousar em si mesma. Tal nome é o que pode se traduzido para

o português como o espanto, o espantar-se diante das coisas que se apresentam em seu

124

Idem. p. 58.

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216

mistério. O espantar-se diante da maravilha dos entes que são num pertencimento ao ser

enquanto unidade nos seus múltiplos modos de dizer-se. Tal espanto como admiração se dá na

palavra grega qaum£zomai. Assim, os filósofos se postavam espantados diante da maravilha

do que se apresentava já misteriosamente. Tal espantar-se é não se concentrar na obviedade

do cotidiano de modo que possa ser perdida a convocação e a exigência do ser. Como disse

Heráclito aos visitantes em uma das histórias contadas a seu respeito, também em um lugar

comum, como perto de um forno, vivem os deuses. É principalmente no que se encontra

diante de nós diariamente, que se dá a maravilha do brilho misterioso no abrigo do ser e na

unidade do tempo. Tal brilho é o que é na permanência que se dá na transformação de si

mesmo abrigado na simplicidade do abismo. Assim, os pensadores tinham a possibilidade do

espanto, do admirar-se diante do que é em si maravilhoso em sua grandiosidade. Heidegger

nos diz em “Que é isto - A filosofia?” algumas palavras a respeito do espanto:

No espanto detemo-nos. É como se retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e

de ser assim e não de outra maneira. O espanto também não se esgota nesse

retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em

suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que

recua. Assim o espanto é a dis-posição na qual e para a qual o ser do ente se abre. O

espanto é a disposição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a

correspondência ao ser do ente.125

Tal detenção e suspensão em que nos encontramos diante do espanto, mostram, de

modo radical, que pertencemos ao ser. É numa escuta atenta que assim nos encontramos.

Encontramo-nos na posse já disposta, ou seja, na posse já despossuída de nós mesmos

habitando na senda do ser. Sendo-nos permitido habitar na disposição própria da referência do

ser à essência do homem ao modo de uma colaboração. Ficamos suspensos na medida em que

suspendemo-nos diante do nada em que nos encontramo. Abertos ao nada, enquanto abismo

de simplicidade, podemos estar nele suspensos no espanto e na admiração de que o ente é ao

modo do ser. De modo que, sendo o que ele é, o ente é sempre na medida em que se mostra

livremente na sua identidade a despeito das diferenças que com ele congregam na unidade do

um-tudo. O espanto revela o fascínio que convoca e exige do homem ser o que ele é

confrontando o ser em seu mistério.

Espantados também nos encontramos apaixonados. No espanto percebemo-nos

suspensos e, em tal suspensão, a paixão nos assola na medida de um arrebatamento quase que

sem controle. Como os sentimentos se dão na medida de uma convocação, a paixão se

manifesta arrastando, trazendo à força já no estar maravilhados e completamente apaixonados

125

Op. cit. p. 38.

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na disposição da paixão. Apaixonados pelo que se mostra à paixão, de modo que, assim, ela

pode se revelar. Por isso, filósofos e pensadores se encontravam na disposição do p£qoj. A

paixão é em si uma convocação, uma vocação como chamado, à qual não podemos recusar. A

paixão e o espanto suspendem o homem em uma suspensão. Há paixão e espanto pelas artes

bem como por outros fazeres que se encontram no irromper de um mundo em seu sustento.

No entanto, sem nos desfazermos dos outros fazeres, encontramos perante a realização

artística forte relação com o espanto e a paixão de modo próprio. Principalmente na

atualidade, onde muito se pretende retirar e encobrir da arte e do artístico em si mesmos. A

paixão do poeta enquanto artista o faz na medida em que ele se mostra convocado por aquilo

que o arrasta num arrebatamento. Que irrompe com tamanha força e violência, de modo que a

ele não restam alternativas a não ser o render-se ao que dentro de si mesmo fala a partir da

convocação que o provoca. A provocação em questão não é uma provocação qualquer. Ela

suspende. Ela para a própria unidade do tempo ao mesmo tempo em que a confirma. No

perder a noção da própria unidade do tempo a convocação, enquanto provocação, em sua

violência arrasta. O poeta, assim, percebe que o tempo está em sua unidade. Tal permissão se

dá a partir do momento em que se encontra na própria febre que violentamente lhe dá a

medida para contê-lo na unidade do tempo em si. Desse modo, na medida em que o tempo se

dá passa e, passando, se mostra como tempo em sua unidade na tridimensionalidade de si

mesmo. Tal tridimensionalidade fica em suspenso na medida da violência da convocação na

qual o artista entra na paixão e no espanto pelo chamado em que lhe é exigido corresponder

na referência do ser a si mesmo. Tal referência se apresenta na medida do artístico que, de

modo próprio, reúne a disposição do sentir e do pensar. Estando na disposição de sentir e de

pensar como qualquer outro homem, o artista se sustenta na suspensão em que se encontra.

Apaixonado e espantado ele colabora correspondendo à exigência da referência do ser

misteriosamente posta na convocação da diferença que fala por seus múltiplos modos de

apresentar o ente. No caso da arte o ente, enquanto obra, se revela demorando na verdade

daquilo que a obra mesma manifesta. Atualmente, na conjuntura que se revela, para se dispor

enquanto artista, somente na paixão apaixonada e espantada que suspende concretamente toda

passagem do tempo mostrando-o como unidade. Ao entrar apaixonado e espantado na

convocação e exigência do ser para encontrar-se na disposição de colaboração para fazer

eclodir a obra de arte, todo artista tem de pensar e sentir. Tem de fazer escolhas diante de todo

excluído da exclusão em sua totalidade. Tem de medir-se a partir do abismo de simplicidade

para que as dobras da própria obra possam vir à presença como fenômeno. O homem

apaixona-se pelo mistério. O artista é totalmente tomado por sua paixão e pelo espanto na

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realização que o nomeia, que o fundamenta, que o joga no sem fundo. Esta que o mostra na

radicalidade de sua condição ambígua de controle e não controle. Sentindo e pensando, ao

mesmo tempo em que sabe sem saber, ele se dá lançado no lançamento de si mesmo diante do

excluído de toda exclusão. Este mostra a medida da verdade do que é selecionado em obra.

Assim lançado, jogado, entregue à paixão e ao espanto, o poeta se encontra perante seu

próprio descontentamento. Ele se vê na busca frenética e sem fim, louca e sã ao mesmo

tempo. Diante de tal verdade resguarda no abismo de mistério ele pertence de modo próprio e

radical ao que se entrega em realização. A colaboração que o dispõe como aquilo que ele é,

sendo ao seu modo enquanto artista, o toma de modo que atentamente ele lhe pertence. Ser

artista é, assim, pertencer à arte. Pertencendo à arte ele é artista. Pertencendo ele pode

colaborar lançando-se na realização que o toma e o mantém retido nessa tomada. Assim, ele

dá-se retido no que é diante do que ele não é. No lançamento que o mostra na permissão de

habitar a abertura enquanto referência ao ser, ele se vê ao mesmo tempo fechado para si

mesmo justamente por tal permissão. Ele se vê retido pertencendo a algo que, antes dele, faz

com que ele mesmo, naquilo que ele é, possa se manifestar. Fazer arte não é fazer arte, é

encontrar-se na disposição de ser retido pertencendo à arte e ao ser na verdade resguardada no

abismo de mistério. Fazer arte é ser feito pela arte. Nessa disposição já disposto pelo ser e

pela arte é que o artista pode colaborar participando da eclosão das obras de arte. Assim, ele

somente é pensando, sentindo, sabendo e não sabendo. Assim, ele pode se ver na fragilidade

que ao mesmo tempo é sua maior força. Pertencer ao ser ao modo de, nesse pertencimento,

estar jogado num lançamento que o dispõe na disposição de habitar a referência do ser a si

mesmo e, desse modo poder restituir tal referência ao próprio ser como linguagem na medida

da arte em si mesma.

Homem e nada

O nada é em si abismal e, como tal, ambíguo na medida em que se dá como total

ausência de fundo. Na verdade, podemos dizer que, em seu âmbito, não há ausência, pois que

ela se encontra ausente até de si mesma como radical impossibilidade. Assim, entendemos

que tudo aquilo que se dá a partir do entendimento tradicional que possibilita a negação de

algo, está de fora da esfera própria do nada radicalmente. Difícil, para nós, se torna dizer o

nada como algo próprio na medida de sua essência. Com o nada, que efetivamente nadifica

enquanto o total afastamento de tudo aquilo que é, se torna, ao mesmo tempo, árdua e

arriscada qualquer tentativa de discussão e discurso. Não podemos dizer: o nada é, de modo

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simples. Em relação ao nada todo dizer se faz em uma cautela especial porque ele

essencialmente corta a palavra e “emudece toda dicção do é”. Na medida de tal emudecimento

radical como poderíamos dizer que o nada é? Estaria dito, então, um contra censo! Um poder

lançado no âmbito do não poder, do impossível radicado de modo próprio no irrealizável. No

entanto, a partir do próprio emudecimento, se mostra patente a pertinência do nada com o

homem. Tal se afigura onde, no estar diante do nada, acontece o emudecimento em sua

propriedade, um emudecimento que reúne toda a possibilidade de mudez, um emudecimento

que congrega consigo a dificuldade radical por si mesma.

Duas palavras acima acarretam grande dificuldade para nós, foi dito: estar diante;

como um modo de se referir ao nada mesmo. Tal maneira de dizer pode trazer o equívoco de

que o próprio nada se dê ao modo de uma presença. Como se a radical impossibilidade de

ausência, bem como de presença, pudesse se dar como presente. No entanto, estas são

dificuldades que se apresentam à discussão por ela se abrigar recolhida em uma relação

tensional e ambígua de ser e não ser. Ela se traz também na ambigüidade do ser e do que, no

seu resguardo, é sendo pelo chamado e exigência próprias do ser mesmo. Por sabermos que

todo discurso se dá sempre dialogante na reunião da linguagem, encontra-se a dificuldade

radical de qualquer dizer a partir do nada como questão. No entanto, mais uma vez se torna

importante ressaltar que nada e homem estão em referência. De algum modo que não o da

presença, homem e nada se encontram na possibilidade de uma referência. Assim, podemos

dizer de um confronto completamente distinto de todo confronto com o qual estamos

acostumados a lidar. Referência é um dizer que aproxima reunindo na diferença. A referência

em questão traz na unidade da própria diferença a aproximação onde se sustenta a própria

referência entre nada e homem. Heidegger nos diz que “O estar suspenso do ser-aí126

no nada

(...) transforma o homem no lugar tenente do nada127

”. O homem é o que é, a partir do dizer

heideggeriano, na medida em que se encontra essencialmente suspenso no nada. Suspender-se

no nada se dá, propriamente, de modo análogo à suspensão dita no espanto, ou na paixão.

Análogo não quer dizer idêntico. É análogo na diferença que a analogia assim permite. O

espanto e a paixão permitem ao homem se colocar em suspenso de modo a poder questionar,

porque assim apresenta-se o ente que é sendo ao seu modo. Pondo, assim, o ente em questão o

homem suspende-se questionando o próprio ser mesmo. Desse modo suspende-se de si

mesmo e se encontra suspenso no nada. Por isso mais uma vez colocamos a questão de

126

Ser-aí é uma expressão que pretende traduzir o alemão Dasein. Tal palavra em alemão é um substantivo de

sentido bem particular dentro do pensamento de Heidegger. De modo sucinto, tal substantivo refere-se à essência

do homem, e de como este habita a abertura para o ser. 127

Heidegger, 2000 a, p. 60.

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Heidegger: “porque há antes o ente e não antes o nada?”. O espanto e a paixão colocam o

homem em suspenso e na possibilidade de deparar-se com a questão que se pronuncia.

Suspenso no nada se desloca o homem daquilo que ele mesmo é. Em tal deslocamento, sem

deixar a si mesmo, o homem se encontra em sua proximidade. Nesse deslocamento, que ao

mesmo tempo o aproxima de si propriamente, reside a condição radical dele achar a si mesmo

no próprio fechamento em que já se encontra. A postura disposta do homem é, assim,

amplamente ambígua.

Heidegger chama o homem em sua essência de “lugar tenente do nada”. Assim, o

deslocamento que apontamos é dito pelo pensador como um deslocar-se na medida em que,

dessa maneira, o homem encontra seu próprio lugar. Disposto na condição de afastar-se em

uma suspensão da totalidade daquilo que é sendo, na guarda e resguarda do ser, ou seja, da

totalidade do ente, o homem se confronta com a condição radical de entrever o excluído de

toda exclusão na seleção que reúne, de modo originário, tudo o que é enquanto unidade

própria. Tal reunião, na medida do lÒgoj em tensão radical com a fÚsij, é uma das faces

próprias do nada. O nada não se revela tal tensão, mas mostra-se como o abismo onde esta se

resguarda em sua verdade. “O lugar tenente do nada” não é entendido por nós como se o

homem tivesse a posse do nada. Estar suspenso no nada como “o lugar tenente do nada” é o

encontrar-se diante da condição radical de questionar o ser abrigado em sua verdade. Assim,

podemos reafirmar que a verdade do ser se encontra abrigada no sem-fundo abismal do nada,

este que permite os desdobramentos em si mesmos na unidade do tempo.

O nada se revela o sem tempo. Pois que o tempo em sua unidade não se dá ao nada.

Ele, como tal, não pode estar na disposição do tempo, pois que o nada não é temporal. De

modo distinto, o homem é temporal. Por ser o que é se mostra sendo na tridimensionalidade

una do tempo. Portanto, o homem não pode ser o lugar tenente do nada na medida de possuí-

lo. Isto, porque o homem é, na sua identidade, sendo no tempo, e de modo radical e

ontologicamente distinto, o nada não é temporal, porque não traz tempo. No entanto, o

próprio tempo em si mesmo não é nada de temporal. Não se dando o tempo como temporal, o

nada mostra-se resguardando a unidade do tempo em sua verdade. Tal verdade, assim

resguardada, se revela aberta ao homem na medida em que ele encontra-se na disposição da

memória e do memorável na medida do tempo. O homem é o lugar tenente do nada por poder

ser deslocado de si para si mesmo. Tal se dá na medida em que lhe é concedido, na referência

em que suspende-se no nada, confrontar-se em seu mistério resguardado no ser. Tal mistério

permanece, em sua verdade, velado no abismo do nada. Espantado diante do ente que é, ao

seu modo e não de outro, o homem se suspende deslocando-se para o lugar ao qual pertence

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em verdade. Assim, se revela habitando a ambigüidade de toda errância que mostra os entes

em si mesmos na sua radicalidade encoberta e velada. “O véu do ser” o encobre em sua

verdade e, ao mesmo tempo, resguarda a própria verdade. Ele encobre o tempo resguardando

o próprio tempo em si mesmo. Como abismo de ambigüidade o nada se dá ao homem no

espanto e na paixão. Na ambigüidade de tal referência pode o homem então se encontrar na

disposição de pensar, saber e sentir. Dessa maneira, confronta aquilo pelo qual se encontra

posto na disposição e que, originariamente, já o ultrapassa.

“Porque há antes o ente e não ante o nada?” Tal questão recoloca o homem em seu

devido lugar porque o desperta de modo radical para a maravilha do ente. Assim, se encontra

na permissão de perceber que este é sendo na unidade do tempo e no misterioso resguardo da

verdade do ser. Buscando respostas somente suspenso no nada - não como o “lugar tenente”,

mas sim, na permissão do ser que faz dele o que é, onde se percebendo ambíguo já habita a

ambigüidade – pode o homem, desse modo, entrever a diferença radical se encontrando na

permissão e no consentimento de estar na disposição da questão por excelência. Recolocado

no que ele é tal questão de há muito acossa o homem: porque o ente se manifesta, assim -

resguardado em sua unidade velada e revelada na verdade própria do ser que congrega todas

as diferenças - e o nada, o nada mesmo não advém com toda a sua força? O que faz com que o

ser resguardado, de tal maneira, em seu mistério faça de nós o que somos, na medida em que

a nos é concedido habitar a ambigüidade de podermos estar diante do mistério e, assim,

questioná-lo? Estar suspenso no nada, na condição de poder olhar a si mesmo, é a dádiva que

o ser, resguardado e abrigado no abismo, permite ao homem.

O nada como o totalmente outro do ente é a radical diferença, a diferença que reúne

como o excluído de toda exclusão. A radical diferença que, como “véu do ser”, resguarda toda

verdade velada e revelada na ambigüidade sem fundo do abismo. Aqui, muito falamos de

abismo, de sem fundo. Mas seria o nada mesmo um abismo, um sem fundo? Mais uma vez a

radical dificuldade do dizer se apresenta na medida em que está em questão o próprio nada em

si mesmo. Como próprio nada nadificante se torna claro que ele é total impossibilidade seja

de abismo, seja de fundo ou sem-fundo, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, é

radicalmente a possibilidade de todo desdobramento, de toda manifestação do que, sendo, é o

que é. Abismo e sem-fundo são palavras e, como, tem de suportar a dificuldade própria do

dizer a partir do nada. Isto porque ele, em si mesmo, “emudece toda dicção do é”. Portanto,

aqui usamos tais palavras conscientes da dificuldade da questão, pois colocar o nada em

discussão é, talvez, retirá-lo de si mesmo na medida em que dele se procura dizer algo. No

entanto, em questão, ao mesmo tempo, já se concede ao desdobramento de algum caminho

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que intencione a sua verdade. Neste momento surge a pergunta: como colocar em questão o

próprio nada, enquanto a simplicidade que permite todos os desdobramentos de

complexidade, já que ele que permite o desdobramento de todos os caminhos, estaria, desse

modo, negando a si mesmo disposto em questão? As dificuldades permanecem, no entanto,

concedido enquanto questão já se dispõe ao questionamento pelo próprio ser que, nele, se

encontra velado. Portanto, o fato de que o questionamento em si se dê na medida de retirar o

nada si mesmo, não nos pode fazer recuar em investigá-lo, bem como a referência em que este

se traz com o homem. Desse modo, há a aparência de que qualquer tipo de ação na medida de

investigar o nada já faz com que ele mesmo desapareça, pondo enquanto ilícita qualquer

investigação que seja. No entanto, na medida em que somos ambíguos por sermos o que

somos já na referência do ser à nossa essência. Na medida em que nos encontramos lançados

e jogados na experiência que nos permite olhar para nós como o outro. Na medida em que,

lançados na ambigüidade, nos é concedido questionar o ser e o tempo em sua verdade.

Podemos, então, questionar o nada, pois que o ser mesmo assim nos permite. Aqui, não

pretendemos assumir ou inovar um método capaz de poder suspender o nada em questão sem

que ele mesmo não seja retirado de si. Para nós, o importante é buscar a referência entre nada

e homem procurando a verdade de tal referência. Isso, de tal modo, que a reunião da

referência em si como unidade não falte na medida de sua verdade.

Posto que o nada permite os desdobramentos como simplicidade em si mesmo, ele

continuará permitindo tais desdobramentos sem deixar de mostra-se como tal. No entanto, tais

desdobramentos irão nos permitir que se poste o que permite todos os desdobramentos,

inclusive o que aqui se dão, em questão. Tal possibilidade não vem a retirar o nada de si

mesmo, mas sim reafirmá-lo em sua medida. De qualquer modo, o nada somente se abre ao

homem referindo-se a ele. Assim, é em referência para com o homem, de modo que o homem

se dá essencialmente podendo estar aberto à referência do nada mesmo, que o nada vem. Nada

e homem se confrontam não ao modo de uma presença, mas ao modo de uma suspensão como

já dissemos. O homem confronta o nada estando, como homem que é, suspenso e jogado no

nada, lançado nele que, de todo modo, abriga a verdade misteriosa do ser e do homem em si

mesmo. O homem, assim, não é o lugar do nada. No entanto, é ao homem que o nada se lança

de modo que, nele, o homem encontra-se suspenso. Paradoxalmente, o homem suspenso no

nada, apaixonado, espantado, pode ver a maravilha do ente em seu ser, pode ver que o ente é

sendo já na medida do tempo. Pode ver, assim, que o ente é sendo na concretude e na solidez

de sua transformação constante. Suspenso no nada, o homem pode medir-se consigo mesmo

perante toda errância a qual está legado. Esta é, ao mesmo tempo, sua maior dádiva e maior

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desgraça. Suspenso na ambigüidade do nada o homem se vê propriamente ambíguo. O

homem é um ser ambíguo porque é sendo sempre na ambigüidade que supera toda certeza,

que supera toda exatidão e toda medida. Por isso, a alma do homem é profunda, por lhe ser

concedido habitar a profundidade do abismo de ambigüidade. Assim, habita espantado e

apaixonado pela maravilha do ente que é sendo e da unidade própria do ser e do tempo no

mistério de sua verdade resguardada no sem-fundo abismal do nada em sua simplicidade. A

suspensão do lançamento, do estar jogado, mostra a referência entre nada e homem de modo

efetivo. Tal suspensão não é um abandono, tal suspensão é uma condição. O homem é o que é

nesta condição por assim se poder mostrar-se lançado e jogado no confronto com o ente como

tal. O nada não é lugar, não é espaço. É justamente o não lugar e o não espaço. Ele não se dá

ao modo de uma negação que reafirma, mas ao modo de uma negação que possibilita. O nada

é o que dá poder ao lugar e ao espaço para serem efetivamente o que são. Heidegger nos diz

que “ser e nada co-pertencem128

” e é por isso que tal poder é concedido ao nada. Dessa

maneira, ele é a simplicidade que permite o desdobramento de todos os caminhos. Nessa co-

pertença é que o homem se vê nele suspenso, jogado e lançado já sendo o que é, na permissão

do ser e na unidade do tempo, ambos em unidade resguardados em sua verdade. A referência

do ser à essência do homem, assim, se mostra também na referência entre nada e homem. Pois

que, em tal referência, é concedido ao homem poder questionar a maravilha de que o ente é, e

o modo como ele brilha em seu mistério próprio.

Há uma objeção que precisa de discussão. É-nos sempre possível de dizer que - na

medida em que não se apresenta um confronto, mas sim uma referência entre nada e homem,

posto que o homem é, de todo modo, não nada – perante tal conjuntura, não há a possibilidade

radical de um nada como nada nadificador. Pois que, dando-se como nada numa referência ao

homem, deixa de se revelar, em si, na medida em que o homem sempre se encontra em tal

referência sem deixar de ser o que ele é. Portanto, um nada nadificador de modo radical seria

impossível de se dar da maneira em que se encontra para nós em discussão. Tal objeção

perpassa toda a de discussão e investigação das questões que se colocaram para nós no

presente trabalho. Na verdade, não apenas aqui, mas em todas as discussões em que o homem

toma-se posto na disposição da dinâmica da questão em si, a objeção se apresenta. Em relação

ao nada ela até ganha mais força, posto que o nada nadificador é o afastamento radical de tudo

aquilo que é, de tudo o que pertence ao ser. Nesse sentido, o homem é sendo o que é no

pertencimento ao ser que o abriga e resguarda no mistério de sua verdade. Portanto se afigura

128

Heidegger, 2000 a, p. 61-62.

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a pergunta: como pode se dar para o homem o nada, de modo ao homem ser o que é suspenso

em tal nada nadificador como radical afastamento de tudo que é, na medida em que o homem

mesmo é sendo na unidade do tempo e, nesse sentido, é resguardado pela unidade de ser e

tempo?

Em uma tentativa de nos encontrarmos na dinâmica da questão que se apresenta,

podemos, primeiro, levantar que a mesma se encontra no aspecto lógico compreendido ao

modo usual. Mostra-se uma linearidade que faz aparecer o absurdo de tal possibilidade como

o nada nadificador. Na medida em que ele, assim, se dá em referência ao homem e este, em si,

já é não nada. Acontece que tal absurdo deixa de ter sentido porque a questão não se mostra

tendo o homem como centro. A questão não parte do homem, pois do contrário nos

encontramos novamente na relação da subjetividade como início para todas as coisas. Aqui,

se fala de uma referência e não de um confronto. A referência não é o que parte do homem,

ela, como tal, escolhe o homem. Ela dispõe o homem enquanto disposto para que ele se

mostre em tal referência. Portanto, a referência se mostra como algo que é próprio ao homem,

no entanto, na medida em que lhe é próprio porque, assim, ele é escolhido num recolhimento

para tal. Não é o homem quem emite a palavra como centro da mesma. Nas discussões

empreendidas a partir da linguagem, percebemos o homem disposto na reunião do diálogo.

Assim ele se mostra não por escolha própria, mas sim por já encontrar-se lançado no diálogo

a partir da referência do ser à sua essência.Portanto, devemos perseverar na direção e nos

caminhos que, numa convocação e exigência, nos são apontados pelas próprias questões que

nos acossam. Desse modo, podemos estar em atenção profunda de maneira a nos livrarmos

das bem construídas armadilhas usuais.

Numa patente dificuldade de discutir a questão que se posta, Heidegger usa o

sentimento da angústia para discorrer a respeito da referência entre nada e homem. Para o

pensador apenas a partir de tal sentimento bem determinado é que pode o homem se encontrar

radicalmente em tal referência. Para nós, a suspensão em que o homem radicalmente se

mostra no nada, não impede qualquer sentimento, não impede qualquer sentir. No entanto,

achamos que determinar um sentimento não vem a ser o que, para nós, aponta na direção em

que a questão se anuncia. Longe estamos de qualquer tentativa que venha a desautorizar o dito

do pensador, apenas vemos de modo distinto. Não percebemos especificamente um

determinado modo de sentir porque o homem, essencialmente falando, é em todas as

possibilidades de sentir enquanto unidade. Talvez a relação muito particular em que o

pensador procurou descrever o sentimento em questão venha a dar conta do que, para ele, veio

a insinuar-se como questão de modo a, assim, poder entrever sua verdade. No entanto, a

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verdade que percebemos, a partir das discussões empreendidas pelo pensador, se concentra no

aspecto da suspensão por ele dita. Ser homem, de modo radical, é estar suspenso no nada

nadificador. Assim, estamos falando a respeito do espanto, da paixão e de qualquer

possibilidade que, de modo próprio, possa mostrar o homem em sua real condição na

ambigüidade em que se encontra de modo decisivo. Assim, decisivamente podemos dizer que

há o ente e que o nada se dá como radical afastamento do ente em si mesmo, em sua

totalidade. O nada e o ser co-pertencem na medida em que o tempo e o ser também co-

pertencem. A referência aqui apontada não nos leva para uma igualdade entre tempo e nada,

mas sim nos leva a uma unidade onde, em sua diferença radical, se dão nada, tempo e ser.

Assim, há uma co-pertença entre nada, tempo e ser de modo que eles estejam resguardados na

verdade própria que permite, como encobrimento originário, toda a revelação do que é ao

modo da unidade do tempo como temporal onde, ao mesmo tempo, mede-se com o abismo na

medida de ser um desdobramento a partir da simplicidade. No meio de tal co-pertença o

homem é escolhido para abrigar o envio e suportar a referência de tal diferença em sua

verdade já sempre velada de modo decisivo. O homem se encontra suspenso no nada por já

poder a ele ser permitido, além de estar na disposição de perceber a dinâmica do ente em seu

brilho maravilhoso e misterioso, perceber que tal mistério é de modo insondável. Dessa

maneira, lhe é permitido encontrar-se suspenso na ambigüidade em que tal co-pertença se

insinua. Desse modo suspenso, ele assim é de modo inteiro, na sua integridade. Posto que

íntegro é que o homem é o que é na suspensão dita. Tal suspensão já se mostra na própria

unidade de co-pertença entre nada, tempo e ser. Nela há o acontecimento próprio do homem.

Ele, assim, é apropriado como acontecimento na medida em que se encontra suspenso na

unidade que congrega a diferença entre nada, ser e tempo. Na medida em que ele é o que é,

em tal suspensão, é que lhe é concedido, enquanto acontecimento, poder se dar apropriado.

Portanto, é na suspensão radical onde é permitido a ele apropriar-se daquilo que lhe é próprio.

O onde em questão nunca pode se referir a um lugar. O onde apenas nos ajuda na medida de

colocar de modo mais claro a suspensão como acontecimento. Assim, o homem acontece

suspenso como homem na permissão de tal apropriação. Apropriado como homem na

diferença da unidade da co-pertença dos três o homem pode vir a se apropriar do que dele é

próprio. Desse modo, pode brilhar suspenso já misterioso no âmbito do mistério em si

mesmo. A unidade de co-pertença dos três, nada, tempo e ser, já se encontra abrigada e

resguardada no mistério velado de sua verdade própria. Lá se vê o homem apropriado

enquanto se apropria de saber-se no acontecimento de tal verdade inalcançável em seu

resguardo. Talvez, desse modo, possamos entrever a suspensão própria do homem no nada, na

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medida em que tal nada não se encontre como algo só, mas somente se dando a discussão

como questão na medida em que radicalmente se revela posto na unidade de diferença dos três

na co-pertença originária.

A morada do homem

A convocação que nos dispõe em uma exigência permanece na medida em que o

homem continua a ser um mistério. Portanto, para que o âmbito do poético se mostre de modo

radical, se torna necessária a insistência em nos colocarmos na disposição do homem em sua

verdade. Nas várias possibilidades que ele tem de ser dito, de modo que pertence ao ser,

encontramos na morada do homem mais um. Não há dúvidas de que o homem, sendo o que é,

se encontra no abrigo e no resguardo da fÚsij, isso podemos ver com facilidade de modo que

ele é em um corpo enquanto unidade. Sendo assim, ele sempre é demorando ao seu modo

resguardado e abrigado pelo ser na unidade do tempo. No entanto, dizemos que para demorar

à sua maneira tem ele antes de morar. Assim, não restam dúvidas de que o homem mora, a

questão é saber como é e se dá tal morada.

Pelas vias de desenvolvimento do trabalho, morar não pode ser entendido apenas na

perspectiva onde o homem se encontra na possibilidade de construir para si uma moradia.

Morar aqui, se refere a todo um aspecto que faz com que ele possa, abrigado pelo vigor que

lhe concede ao seu modo, viver sua vida e, assim, demorar sobre a terra que o sustenta e

abriga. A partir disso, morar se encontra além do entendimento usual. O termo morar e

morada trazem, de todo modo, uma relação temporal onde determinada coisa é sempre na

unidade do tempo. A morada do homem se refere, enquanto expressão, a uma relação

específica onde morar é já, desde sempre, um agarrar-se temporalmente enquanto o homem é

o que é. O morar do homem, apresenta este sempre em uma relação temporal.

O fato de viver na referência que o sustenta, em suspensão na co-pertença originária,

nos dá a pensar nas possibilidades que o homem encontra para que sua vida possa se dar,

como acontecimento que é, no passar da unidade temporal que se insinua. Nos caminhos do

tempo a vida do homem na Contemporaneidade depende de muitos fatores, tais já o

ultrapassam na medida de uma tradição onde ele é tomado numa determinação. Nessa tomada

se encontra a possibilidade de hoje podermos viver ao nosso modo, com o que é próprio à

nossa época. Independente do que historicamente se mostra como verdade no morar

demorando do homem, devemos questioná-los em sua essência. Assim, não nos ateremos de

modo específico a uma época para que tal discussão se dê. Vamos procurar que, dentro da

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suspensão vigente que dispõe o homem, o demorar em que ele mora, possa ser posto em

questão com a seriedade que a questão exige.

Tal seriedade se revela na possibilidade de que, lhe sendo concedido habitar a

abertura para o ser, o homem se encontre na possibilidade de criar e produzir de modo distinto

da produção da fÚsij. Tais produções e criações dos quais ele participa, nos são dadas em

uma conjuntura chamada por nós de mundo. Esse mundo irrompe com violência. Surge em

uma disputa promovida e permitida pela fÚsij. Portanto, em tal irromper, ele se mostra

sempre abrigado e sustentado por ela em seu vigor. Em tal mundo, do qual participa, podemos

dizer que o homem funda o seu morar demorando. Assim, efetivamente ele mostra o

acontecimento da sua vida e do seu viver. Desse modo, um mundo, que assim se dá, é uma

teia de relações todas inter-relacionadas formando um conjunto na medida de uma conjuntura

que se mostra como unidade. Tal unidade, abrigada pela fÚsij, congrega as diferenças que se

sustentam por ela. Um mundo é, assim, uma unidade onde o todo na sua diferença se mostra

inter-relacionado e, desse modo, pode efetivamente ser o que é. Costuma-se chamar este inter-

relacionamento de cultura. Tal nome traz hoje vários equívocos a seu respeito. No entanto, em

O acontecer poético Manuel de Castro nos dá um panorama diferente a partir da palavra

cultura entendida também como habitar, colher e cultuar129

. Diante do que nos concede o

autor podemos vislumbrar cultura de modo distinto de acúmulo e transmissão de usos e

costumes, ou ainda as decorrências de tais conceituações. No entanto, o importante para nós

está em perceber que um mundo se desvela num inter-relacionamento que transcende

radicalmente qualquer homem enquanto individualidade. Dessa maneira, muito está

envolvido na trama de um mundo onde o homem mora e demora. Em um mundo, o homem se

dá disposto na medida de uma colaboração no acontecimento de seu viver abrigado e

sustentado pela fÚsij.

Um mundo se desvela e se revela na possibilidade de tudo o que conhecemos enquanto

cultura. Uma escola, uma universidade, um estabelecimento comercial, uma obra de arte, uma

profissão. Todos em suas diferenças culminam inter-relacionando-se de modo que, como

parte da teia ao mesmo tempo em que a formam no conjunto de sua conjuntura, nada tem

sentido fora do contexto próprio que os abriga. Nada tem sentido fora da unidade que dá

sentido a cada um individualmente, e que é sentido já, no todo de si mesma, enquanto unidade

conjuntural. Assim, em um mundo, o viver do homem mora demorando em si mesmo. No

entanto, tais constatações não são suficientes para dar conta da dinâmica que se apresenta.

129

Castro, M. 1982. Mais especificamente no Capítulo I, intitulado O fenômeno cultural.

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Diante de tal insuficiência, mais uma vez a Antiguidade nos revela possibilidades de

desdobramento a partir das relações que se encontram postas como questão. Novamente

Heráclito, o obscuro, vem nos valer para, a partir de seus ditos, engendrarmos possibilidades

de fazer o pensamento poético procurar pensar. Sobre o morar demorando do homem o

fragmento de n° 119 apresenta três palavras que se concedem como questão: Ãqoj

¢nqrèopou da…mwn. Tais palavras desafiam há muito o pensamento na medida em que seu

mistério resguarda, junto com outros, o homem em sua verdade. Várias são - como sempre

que se toma por questão as palavras de Heráclito - as possibilidades de tradução do

fragmento. Tentaremos reunir algumas que, não de modo excludente, mas na medida de uma

reunião, possam nos conceder uma conjuntura a respeito do homem em seu morar que demora

vivendo num mundo. Esse que irrompe como conjuntura abrigado e sustentado pela fÚsij. A

reunião pretende que, na unidade e na consonância dos entendimentos, se faça possível traçar

um caminho a fim de podermos pensar de modo conciso e sério a relação do homem em sua

morada. Por isso, o dizer das diferentes interpretações e traduções do fragmento não deve ser

compreendido na medida de suas diferenças, mas a partir de sua complementaridade, como

modos distintos e múltiplos de tentar dizer o mesmo.

Carneiro Leão nos concede uma tradução que diz: “A morada do homem, o

extraordinário130

”. Alexandre Costa nos traz outra como: “A morada do homem: a escuta131

”.

Já a partir de ambas podemos ter em atenção o pensamento, de modo que a diferença torne

possível pensar a morada do homem com a devida seriedade. Ao colocarmos em questão a

tradução de Carneiro Leão, nos é trazida a questão do extraordinário enquanto se dá a partir

do grego da…mwn. A tradução se mostra, de modo que a palavra grega se refere à divindade na

medida do sagrado, onde o homem habita o que dá-se na medida do deus. O da…mwn é já uma

questão de modo que pode suscitar diferentes traduções. Na verdade, devemos buscar

compreender o extraordinário enquanto está dito a partir dele uma experiência grega na

palavra em questão. Assim sendo, no que se refere à palavra, de modo específico, o da…mwn

mostra o poder, a potência divina, ou ainda o destino. Extraordinário é o poder, a potência

divina, o da…mwn na medida em que se dá como o próprio Ãqoj do homem. Assim, o Ãqoj do

homem é o extraordinário na medida do próprio poder divino, da própria divindade em si,

inclusive como destino. Focando nossa atenção no aspecto do destino, entendido não apenas

no que se refere à sorte e ao acaso, maiores esclarecimentos podem florescer a partir do

mesmo. Assim, encontramos em questão não o da…mwn em si, mas o que a partir do seu

130

Op. cit. p. 90-91. 131

Costa, Alexandre. Op. cit., p. 231.

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sentido como destino pode ser investigado e desdobrado. Tal palavra é derivada do verbo

latino destino, destinare que diz, entre vários outros sentidos, do estar fixo em posição,

prender, destinar, escolher, eleger. Este se mostra derivado diretamente do verbo latino sto,

stare com sentido de estar de pé, permanecer. A raiz indo-européia que dá origem ao latim é

*sta- e possui o mesmo sentido: estar de pé. Sendo o verbo latino formado ainda pela

preposição de- que apresenta diversos sentidos, inclusive o de saído de, descendente de,

podemos compreender o destino como o que descende saído diretamente daquilo que se

encontra firme em permanência. Destino, assim, como um dos sentidos do da…mwn, é o que

descende saindo de modo próprio do que permanece em si mesmo de pé. Desse modo, o

extraordinário assume uma relação distinta apenas do aspecto da divindade e ocupa uma

referência direta com o descender daquilo que permanece de pé. Não há dúvidas de que tal

permanência deve estar em consonância com o entendimento do fragmento de Heráclito já

discutido132

onde o repouso da permanência se dá em transformação, dá-se já se

transformando. Tal modo de lidar com o destino o mostra na relação com a ambigüidade

radical do ser, onde o destino se apresenta em uma referência ontológica. O da…mwn

compreendido a partir do destino revela o extraordinário na medida do ontológico, na medida

em que traz o ser para revelar-se como o que dá, de modo próprio, ao Ãqoj do homem o que

tem de extraordinário na medida e no âmbito próprio do ser. A morada do homem, assim, se

mostra como o da…mwn na medida do destino onde provém diretamente do ser. Desse modo, a

morada do homem é recolocada no âmbito do ser, na medida em que, habitando o

extraordinário, se mostra justamente como a maravilha de poder o homem se ver como

destinado do destino. Assim, podemos perceber onde mora o homem demorando no ser, de

modo que lhe é concedido habitar a abertura em que o destino, como extraordinário, se

encontra na maravilha de mostrar-se a partir do que permanece já se transformando e estando,

desse modo, de pé.

Tal maneira de compreender o destinado e a permanência do que se encontra de pé nos

faz relembrar outro fragmento de Heráclito que, no original, diz: to m¾ dànÒn pote pîj ¥n

tij l£qoi;. Traduzido por Emmanuel Carneiro Leão se apresenta como: “Como alguém

poderia manter-se encoberto face ao que nunca se deita?133

”. Assim, o extraordinário

descende diretamente do que nunca se deita ao modo da permanência que se dá na solidez de

sua transformação contínua. O que nunca se deita se dá como vigor de ambigüidade própria.

132

“Transformando-se, repousa”. Capítulo 1, subitem A fÚsij em sua originariedade. 133

Op. cit. p. 62-63. Outra tradução bem cuidada realizada por Alexandre Costa diz: “como alguém escaparia

diante do que nunca se põe?”. Op. cit. p. 67.

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Percebemos que, habitando o destino, não há como alguém manter-se encoberto, face à

solidez de permanência que se concede num envio ao destinado. Dessa maneira, o

extraordinário do fragmento se concede na medida em que é extraordinário descender, se dar

saído do próprio ser como o que permanece de pé, como o que nunca se deita. O que nunca se

deita demanda e concede que o destino seja a morada do homem. O destino é concedido como

o modo próprio de o homem se dar sendo o que ele é. Tal destino é o extraordinário no âmbito

ontológico na referência do ser à essência do homem, concedendo ao homem a possibilidade

de vislumbrar o brilho ofuscante do ente sendo na senda do ser e do tempo.

A investigação empreendida não se mostra suficiente para o que exigem tanto o

fragmento, bem como a questão da morada do homem. Isso, pela própria complexidade de

ambos. Devido a esse motivo, optamos por trazer outras possibilidades de entrever o mesmo.

Assim, destacamos uma passagem de Heidegger, quando este apresenta sua interpretação do

fragmento heraclítico em questão, como parte do texto de Sobre o humanismo:

Pois ethos significa estada, lugar de morada. Evoca o espaço aberto onde mora o

homem. É a abertura da estada que faz aparecer o que ad-vém, con-venientemente, à

Essência do homem e, assim ad-vindo, se mantém em sua proximidade. A estada do

homem retém o ad-vento daquilo, ao qual o homem, em sua Essência, pertence. Isso

é o que Heráclito chama de daímon, o Deus134

.

Destacamos das palavras de Heidegger: “o espaço aberto onde mora o homem”.

Retomando de um momento anterior a discussão do espaço135

, esta se deu de modo a ser o

espaço uma conquista, na medida em que, tal conquista, se dá a um conceder. O ser em seu

vigor concede espaço àquele que o conquista no seu mostrar-se próprio abrigado no mistério

do abismo de simplicidade, na unidade do tempo e na ambigüidade do ser. Desse modo,

dizemos a partir do pensador que na conquista de seu espaço, enquanto lhe é permitido habitar

a abertura, mora o homem, assim ele habita. Podemos dizer ainda que, na medida em que

conquista seu próprio espaço, o homem, na pertença ao ser, pode promover, em colaboração

com o vigor do ser, o irromper de um mundo de relações e inter-relações. Dessa maneira, o

homem se dá posto repousando onde lhe é permitido morar e demorar ao longo de seu viver.

Nomeia ainda o pensador o que “ad-vém, convenientemente, à Essência do homem”. O que

advém é o ser que se mostra no seu referir-se à essência do homem que, como tal, a restitui ao

ser como linguagem na medida do diálogo enquanto reunião. A concessão em que é permitido

ao homem habitar a abertura para o ser, o mantém naquilo que lhe é próprio, de modo que ele,

134

Op. cit. p. 85. 135

Conferir, no presente trabalho, Capitulo 1, subitem Matéria e forma.

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231

assim, pode apropriar-se de si mesmo. Pelo envio do que advém como advento na abertura,

pode o homem reter o que se envia, na medida e na disposição do memorável enquanto

unidade, por estar à disposição da memória. Dessa maneira, retido em tal unidade, aquilo que

é sendo no abrigo do ser se desvela abrigado em sua verdade dando-se em referência. Em tal

referência a essência do homem permanece pertencendo ao ser. Assim, o homem em essência

se dá na suspensão da unidade radical entre nada, tempo e ser. “O Deus”, a que se refere

Heidegger em relação ao fragmento de Heráclito, se mostra em uma relação ontológica. O

extraordinário se dá ao modo do ser na medida em que o extraordinário é o próprio ser. Dessa

maneira, mostra Heidegger seu entendimento do da…mwn heraclítico. O Deus é ao modo do

extraordinário como o próprio ser em si mesmo. Por isso o pensador diz que “A estada do

homem retém o ad-vento daquilo, ao qual o homem, em sua Essência, pertence.” A estada do

homem é nesse reter o que a si mesmo insinua-se advindo, de modo que o homem, em

essência, pertence a tal insinuação. Com esta compreensão ontológica da morada do homem,

corrobora também Antônio Jardim quando nos revela o da…mwn e a morada do homem

enquanto se referem ao memorável, na medida em que memória é dita como o que “dá, leva

ou conduz à unidade136

”. Assim, a morada do homem consiste em estar disposto à memória

na medida em que memória é entendida ontologicamente. Portanto, a morada do homem é

aquilo que leva ao ser como unidade, reunindo, na conjuntura de si mesma, todas as

diferenças como um-tudo. Sem dúvidas que, na medida do da…mwn enquanto Deus entendido

ontologicamente no dito heideggeriano, e no dizer, deslocado da divindade e posto

diretamente na ontologia, promovido por Jardim, reside uma unidade apesar das diferenças.

Um promove a referência ontológica na medida em que o Deus é entendido por Heráclito em

tal referência. O outro desloca a referência com o deus e promove o extraordinário

ontologicamente a partir da unidade que se resguarda na disposição da memória. Ambas as

possibilidades de compreensão - que na diferença dizem o mesmo - a partir da morada do

homem, não deixam de perceber que o homem é e reside na medida de ser a ele concedido

habitar a abertura para a referência do ser à sua essência. Desse modo, pode o homem habitar

um mundo ao modo da memória, da criação, da experiência. Por isso consonam na sonância

de si mesmas as concepções aventadas. Assim, podemos dizer que o ser, ambíguo em si

mesmo, permanece, se mostrando em sua permissão nos dizeres acima, resguardado em sua

verdade. A verdade, que se revela sempre no resguardo do próprio ser, misteriosamente faz

136

Jardim, A. Op. cit., p. 126-130 (sendo a última página referente ao da…mwn heraclítico posto no fragmento

119 do pensador).

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232

com que, na unidade de nada, tempo e ser, a suspensão do homem possa criar a partir do que

permite todo erro e fundamenta todo o caminhar errante na busca da verdade.

Consonam os entendimentos do da…mwn na medida do destino como extraordinário,

na disposição da memória, e como reter o advento do que se insinua ao modo de um pertencer

à referência própria do ser à essência do homem. Tal consonância não se encontra por acaso.

Ela mostra, de modo bem determinado, um perseverar na busca pela verdade insinuante que

se dá misteriosamente velada nas palavras em questão. Reafirmamos, mais uma vez, que tais

caminhos distintos, o são, nos modos de dizer o mesmo. Assim, seguimos em busca da outra

tradução que pretende também dizer o mesmo a partir de caminho diverso.

Na medida em que Costa nos traz uma concepção diferente do da…mwn heraclítico

como escuta, podemos com ela discutir e debater de modo a vislumbrar um dos múltiplos

modos de dizer o mesmo. A escuta anteriormente foi trabalhada enquanto um pertencer que

somente é o que é numa conjuntura que a ultrapassa137

. Tal ultrapassagem se dá na medida em

que a escuta é e não é dos mortais porque neles se revela como acontecimento. Por ela os

mortais pertencem, originariamente, àquilo a que, na disposição da escuta, se revela como

fonte da fala, como fonte que, enquanto origem, se mostra inaugural e originária. A escuta, na

medida de um pertencer, é um modo distinto de estarmos diante da referência do ser à

essência do homem. Assim, sendo permitido ao homem habitar na escuta, inequivocamente

tal referência já se mostra implicada. Isso, porque a escuta somente é na perspectiva do

diálogo como um pertencer à fonte originária da fala. O corresponder da escuta é referência

nesta medida. Podemos, desse modo, falar da morada do homem como escuta em consonância

com o Ðmloge‹n em referencia ao lÒgoj que diz “tudo é um”. A morada do homem é também

escuta que, como tal, dá conta da referência do lÒgoj ao homem, sendo o homem o destino

do envio próprio do lÒgoj. Mais uma vez, o extraordinário, na medida do destino, fala agora

como escuta e diz o homem em sua morada na referência própria do ser à sua essência. Sendo

permitido ao homem escutar, ele mora e demora habitando o mundo que, como conjuntura, se

dá no inter-relacionamento da teia de relações e referências. O Ãqoj, como morada, na medida

da escuta, faz do homem aquele que habita, de modo próprio, a escuta como escuta audiente,

que não apenas se mostra para além dos sentidos (compreendidos de modo usual, como visão,

tato, audição, etc.), mas como também dá a todo e qualquer sentido (na mesma perspectiva

usual) a medida de si mesmo. Ser permitido habitar a escuta, faz o homem estar na disposição

da memória e do que se dá como unidade memorável. A memória dispõe o homem a partir do

137

Conferir, neste trabalho, Capítulo 2 subitem A tentativa de entrever a escuta originária.

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memorável posto na unidade de si mesmo ao mostrar o homem suspenso, jogado e lançado.

Dessa maneira, ele não pode se furtar na dádiva que o dispõe fazendo com que ele possa se

apropriar do que lhe é próprio. Escutando destinado, pertencendo ao que se envia como

memorável, porque disposto à memória, o homem se dá suspenso e jogado no nada enquanto

abismo de simplicidade. Tal abismo o suspende no tempo, na medida em que temporalmente

dura demorando, e no ser. Assim, ser e tempo se dão na ambigüidade radical da solidez que

repousa em si mesma transformando-se. Então, um mundo se dá e pode se constituir

irrompendo a partir de todas as referências enquanto unidade na diferença do mesmo. Tal

mundo abriga o homem em sua morada que demora sempre sustentada na tensão originária

entre fÚsij e lÒgoj.

Diante da inesgotabilidade das questões, entendemos que o caminho até agora trilhado

possa nos dar indicações que venham a nos conduzir adiante. Desse modo, permanecemos na

tentativa de continuar perscrutando tenazmente tal habitar. A partir da poesia, pensa o poeta

alemão Hölderlin. Em um famoso verso, concedido no poema de título IN LIEBLICHER

BLÄUE..., traduzido para o português como “No azul sereno floresce...138

”, o poeta nos abre a

possibilidade de pensar a partir de seu dizer: “Cheio de méritos, mas poeticamente o homem

habita esta terra139

”. O habitar agora assume diferente postura, se pondo diante de nós na

medida de um dizer distinto. Até o momento o abordamos na relação ontológica na medida de

uma referência, a referência do ser à essência do homem em múltiplos modos desta ser dita.

No entanto, o poeta pensador profere algo a respeito do habitar do homem que, se dizendo

como tal, encontra-se “cheio de méritos”. O habitar do homem tem méritos, os tem na medida

em que um mundo se reafirma, irrompe e assim se dá. Os méritos do homem estão

diretamente relacionados com o que pode, com a sua colaboração, vir a aparecer como

produção, de modo distinto das produções da fÚsij, no abrigo e no resguardo da mesma. Tais

criações se encontram sempre na perspectiva do irromper de um mundo, elas se revelam na

medida em que é dada ao homem a possibilidade de se encontrar na disposição da

criatividade. Somente lhe é dado ser criativo, pois que se encontra na possibilidade da

experiência já suspenso na referência que o perpassa, desse modo, pode em tal referência

buscar a medida de toda criatividade a que se encontra à disposição. Muito se diz que para a

criatividade do homem não se encontram limites. Claro para nós está que se tal não-limite se

abrigar na verdade como resguardo do ser. Portanto, não se respalda pelo homem na medida

138

Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Apud Heidegger, M. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2001. p. 254-259. 139

Idem p. 257.

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234

de um sujeito, mas sim por ele estar suspenso na referência que lhe toma e o lança jogado

onde ele realmente é o que é. Assumindo a não-limitação ela é, portanto, uma possibilidade

ofertada ao homem por se encontrar na suspensão sendo o que ele é.

No aspecto da criatividade muitos méritos do habitar do homem se dão no âmbito da

técnica como tecnologia e ciência. O dizer do poeta reafirma tais méritos. No entanto, eles

não respondem pelo habitar do homem de modo essencial. O habitar do homem revelado

como cheio de méritos somente pode ser dito a partir da medida própria da poeticidade, pois

que “poeticamente140

o homem habita esta terra”. Assim, os méritos do homem se encontram

em uma relação posterior a poeticidade do habitar poético. A anterioridade do poético é

ontológica e não, necessariamente, se mostra à cronologia. Desse modo, podemos dizer que o

homem é e existe na medida em que está aberto e desvelado enquanto tal habitando a

linguagem. Nela, poeticamente ele pode perceber o que lhe é concedido: habitar a abertura

onde o ser revela o seu brilho misterioso e ofuscante. Habitar esta abertura é primordialmente

habitar poeticamente. Somente por habitar poeticamente e existir sendo o que é, ao seu modo,

pode o homem ser cheio de méritos participando do irromper de um mundo como uma

conjuntura de inter-relações.

Heidegger nos concedeu seu pensamento a partir das palavras de Hölderlin e a respeito

do habitar poético do homem dizendo: “A poesia não sobrevoa e nem se eleva sobre a terra a

fim de abandoná-la e pairar sobre ela. É a poesia que traz o homem para a terra, para ela, e

assim o traz para um habitar.141

” Podemos inicialmente pensar tal passagem como: “é a poesia

que, enquanto obra, enquanto um “por-se-em-obra da verdade142

”, revela fundamentalmente a

terra como terra em seu brilho ofuscante. Desse modo, traz o homem para a terra, trazendo-o

para um habitar.” Portanto, um habitar somente se dá na medida em que a terra se conduz

poeticamente revelando seu brilho. Assim, a existência humana tem sua mais profunda

referência quando poeticamente a terra, “sobre143

” a qual o homem funda o seu habitar, é

revelada, em seu brilho ofuscante, na poesia que deixa a terra ser terra concedendo-a ao

homem em sua verdade. É poeticamente que, posta em obra, a verdade da terra se manifesta

em seu brilho. Poeticamente é que o homem, sendo-lhe permitido habitar a abertura para o

ser, pode confrontar o seu misterioso brilho, de modo a recolocar sua existência no sem-fundo

140

Grifo nosso. 141

Heidegger, M. 2001f, p. 169. 142

Expressão usada por Heidegger na obra A origem da obra de arte. Tradução de Manuel A. de Castro e Idalina

Azevedo. Manuscrito. Disponível também em Heidegger, 1977. 143

Este sobre não quer dizer, de nenhum modo, que o homem domina a terra e sobre ela, assim, institui o que

tem de instituir. Tal sobre se encontra muito mais na perspectiva de que esta abrindo-se abriga suportando o

homem e um mundo.

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235

à qual pertence na suspensão própria que o abriga e revela. Somente poeticamente o homem

habita e pode confrontar a totalidade do ente na “clara noite do nada” como “véu do ser”. “...

poeticamente o homem habita esta terra...”, poeticamente a existência humana, enquanto

abertura para a verdade velada no abismo, para o ser em seu misterioso brilho que ofusca, se

diz mais existência e encontra o seu destino. Encontrando o seu destino como o destinado, o

homem é aquele que co-responde ao chamado do ser na unidade do tempo enquanto se

encontra suspenso no abismo. Somente por tal destino o ser se envia ao homem como o envio

sábio, de modo que o homem, habitando a abertura concedida, sendo um com ela ao modo da

unidade, pode co-responder ao ser. Tal correspondência enquanto colaboração é dito como

Ðmloge‹n. Assim, o homem pode co-responder essencialmente participando da co-laboração

onde o operar da obra, enquanto poeticidade poetante, revela a terra como terra em seu

mistério. A poesia traz o homem para a terra na medida em que a terra, em si, revela-se posta

em obra como postura da verdade de si mesma. Trazer o homem para um habitar é, de modo

fundamental, revelar o homem na suspensão em que se encontra. Somente poeticamente é que

toda a investigação a respeito do homem pode ganhar sentido na medida dele ser reconduzido

ao que ele é. É no dito, “... poeticamente o homem habita esta terra”, que se revela ele

poeticamente habitando esta terra e não outra. Não se dá outro real no dizer poético, ele

funda-se na medida em que traz, de modo radical, o homem para esta terra que o abriga e o

sustenta, esta que, no operar da poesia, se mostra mais terra para ele na plenitude de seu

velamento. Quando se diz de um mundo outro da poesia, do poético e do artístico, enganam-

se os que pretendem vislumbrar o poético fora do real. O que dizem Hölderlin e Heidegger a

partir do pensamento poetante hölderliniano é que justamente esta terra, a que sustenta o real

como o que ele é, é habitada poeticamente e esse habitar é radical. Somente assim o homem é

trazido de modo efetivo para a terra que o sustenta e o abriga. Somente assim é que ele pode

se encontrar na suspensão própria que o desvela na referência do ser à sua essência. É por isso

que pensadores e poetas são os vigias da restituição da linguagem ao ser. A obra poética opera

tal velamento se apresentando como verdade de modo radical. Ao mesmo tempo tal

velamento se dá desvelado, presente em sua verdade, mostrando-se como unidade de seleção

frente ao incontável e inominável do excluído de toda exclusão. Por hora procuraremos ser

sucintos a respeito do poético. Pretendemos tratá-lo com o devido cuidado em momento

posterior, onde a investigação irá se concentrar de modo específico no poético e na

poeticidade. No entanto, devemos prosseguir investigando o tema em andamento.

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236

A respeito da morada do homem devemos ainda explorar um ponto interessante

disposto por Heidegger a partir do pensamento poético de Hölderlin. A poesia em questão

apresenta versos como um modo de falar sobre o divino e o mortal:

(...) Deve um homem, no esforço mais sincero que é a vida,

levantar os olhos e dizer: assim

quero ser também? Sim. Enquanto perdurar junto ao coração

a amizade, Pura, o homem pode medir-se

sem infelicidade com o divino. É deus desconhecido?

Ele aparece como o céu? Acredito mais

que seja assim. É a medida dos homens. (...)144

Estes versos no poema precedem aquele que se encontrou em questão até o momento.

Percebemos que o poeta pensa em consonância com o dizer de Heráclito a respeito do Ãqoj

enquanto morada na medida do extraordinário como divino. O habitar do homem, que é

poético em si mesmo, se dá na medida em que ele habita o extraordinário enquanto mede-se

com o divino, enquanto o divino é “a medida dos homens”. O deus desconhecido é, enquanto

desconhecido, a medida dos homens. Assim, o homem “pode medir-se sem infelicidade” com

ele. Desse modo, podemos compreender que a existência humana se encontra também no sair

de si mesmo, habitando a abertura que lhe é concedida, para medir-se com o divino. O céu é

para onde o homem envia seu olhar de modo que, levantando os olhos para o céu, pode então

medir-se com o celestial que habita esse mesmo céu, que tem nele sua morada. Na medida em

que o deus permanece desconhecido no mistério próprio de si mesmo ele é a medida dos

homens habitando o céu e trazendo o homem para a terra. O medir-se com o divino é o medir-

se com o desconhecido que, enquanto revelação, se mantém desconhecido e encoberto. Esse

revelar-se se que mantém encoberto é a medida dos homens. O estranho é o homem medir-se

com tal medida estranha, uma medida como revelação encoberta sob o véu do encobrimento.

A esse respeito diz Heidegger que “a medida consiste no modo em que o deus que se mantém

desconhecido aparece como tal através do céu145

”. Desse modo, o deus é e permanece

desconhecido no desvelamento de si mesmo habitando o céu que o resguarda. O filósofo

procura ainda nomear o homem na multiplicidade de sua unidade a partir do pensamento

poetante de Hölderlin quando diz “o homem mede a dimensão em se medindo com o celestial.

O homem não realiza essa medida de maneira ocasional, mas é somente nesse medir-se que o

homem é homem146

”. Sem dúvidas que o somente apontado é um termo que não exclui,

144

Idem. Op. cit. p. 255 e 257. 145

Heidegger, 2001f, p. 174. 146

Idem.

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237

apesar da aparência, mas inclui na diversidade. O ser de modo a abrigar o ente mostrando-o

sendo o que ele é tem múltiplos modos de ser dito, se apresenta na multiplicidade. Podemos

desse mesmo modo compreender as palavras de Jesus Cristo quando o nazareno diz que “a

casa de meu Pai tem muitas moradas147

”. As múltiplas moradas se apresentam na diferença

em que resguardam a unidade própria da casa que abriga as distintas moradas. O dizer em

questão apresenta referência com o que se encontra em discussão na medida em que revela o

divino em tal multiplicidade. Onde o divino se mostra na perspectiva de trazer a unidade na

multiplicidade de si mesmo abrigando o múltiplo sem deixar de ser o mesmo. Dessa maneira,

o somente apontado pelo pensador se encontra muito mais como um também na medida em

que reúne. Quando dizemos também o homem é em tal medir-se com o divino na medida de

estar em suspensão na unidade de nada, tempo e ser. “Medir a dimensão em se medindo com

o celestial” mostra o homem na experiência de ser ele mesmo o que ele é, sendo ao seu modo.

Mostra-o na possibilidade de uma medida que, por si mesma, não traz nenhuma precisão ou

certeza. Em tal medida o céu para o homem, enquanto morada do divino, é mistério, bem

como também extraordinário, assim como o próprio divino com o qual se mede. Medir-se

com o divino está na relação com o sagrado. O homem é também em si mesmo no medir-se

com o celestial. Tal medir-se com o imortal revela para o homem a sua essência como mortal,

como aquele que sabe a morte. A morte se lhe abre ao longo do seu viver na possibilidade

fundamental de poetar. O homem efetivamente morre vivendo enquanto habita esta terra. O

deparar-se com a morte não é apenas o fim como fenecimento, mas é o entender-se enquanto

mortal frente ao imortal. O homem é mortal enquanto habita e ele radicalmente habita

poeticamente. A respeito da morte em si mesma, a teremos em atenção mais adiante com o

devido cuidado. No entanto, interessa que poeticamente o homem pode se dar à sua essência

medindo-se com o divino na tomada de medida do entre o céu e a terra. Descobrindo-se

mortal, nessa tomada de medida também repousa poeticamente o seu habitar. Mortal e

imortal, homem e deus se mostram na co-pertinência de sua união. Tal unidade se dá

justamente onde o homem, na possibilidade de medir-se com o divino, mede o entre o céu e

terra. Nesse medir, a conjuntura de um mundo irrompe se revelando no mistério que a abriga,

de modo que o ser repousa permitindo, resguardado no abismo do nada, todo desdobramento.

Aqui, “poeticamente o homem habita esta terra”. Na tomada de medida da poesia enquanto o

medir o entre o céu e a terra, diz Heidegger que o homem “recebe a medida para a vastidão de

147

Bíblia Sagrada. Evangelho de São João Cap. XIV.

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238

sua essência148

”. O homem recebe tal medida de modo que o desconhecido permanece, como

tal, na imensidão resguardada de seu próprio desconhecimento enquanto mistério.

Segundo Heidegger, para Hölderlin a essência do poético está na tomada de medida

enquanto o medir comedido do entre céu e terra, da qual o homem recebe a medida de sua

essência enquanto mortal. Nesta medida, o comedir é um confronto. Um confronto frente ao

que se mostra já enquanto desconhecido, pois, para o homem, o céu como morada do divino é

em si mistério. O mistério do céu permanece em si mesmo no aparecimento e no confronto

que mede comedindo. No entanto, tal mistério traz o homem para a terra que ele poeticamente

habita. Assim é que o filósofo diz que “o homem é como o que pertence à terra149

”.

Pertencendo à terra o homem mede o entre o céu e terra lhe sendo o céu familiar no mistério

de si mesmo. Assim, misteriosamente o céu enquanto morada do divino lhe é aberto. É-lhe

aberto na abertura que o revela encoberto onde o homem se vê mais lançado sobre a terra, esta

terra que ele poeticamente habita e que permite tal habitar como cheio de méritos.

Desse modo a morada do homem se revela ao modo das investigações empreendidas a

partir de diferentes modos de dizer o mesmo. Assim, se torna prudente lembrar que tais

modos não são excludentes uns em relação aos outros, mas procuram consonar em uma

unidade que abriga as diferenças de cada caminho apresentado. A título de lembrança e na

medida de procurar a unidade desejada, o entendimento da questão mostra alguns aspectos

fundamentais da morada enquanto habitar do homem: a escuta enquanto referência

fundamental no pertencimento do diálogo como reunião e abertura para o brilho e a

manifestação misteriosa do ser enquanto tensão originária entre fÚsij e lÒgoj; o ser que

lança jogando o homem na suspensão onde lhe é concedido estar na disposição de entrever a

unidade. Tal suspensão lhe é essencial como sem-fundo, já que o homem é fÚsij na medida

em que brota, e é lÒgoj na medida em que se encontra na referência fundamental. Assim, ele

pode estar na dinâmica de atenção como escuta a este lÒgoj que, como tal, brilha

misteriosamente a ponto de mostrar o homem na abertura que lhe é concedida como dádiva, e

onde assim ele reside. Por último, temos a morada entendida na medida em que o homem

habita o extraordinário enquanto se encontra na disposição da memória que lhe permite

confrontar o memorável enquanto guarda e resguarda o memorável na unidade de si mesmo.

O divino aqui como extraordinário também é morada ao modo como diz Hölderlin é a

“medida dos homens”. Portanto, o extraordinário é o imortal como aquele diante do qual, na

sacralização do sagrado, o homem é mortal. É aquele que se dá na “fisionomia do céu”. Não

148

Op. cit. p. 173. 149

Idem. p. 175.

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há dúvidas de que céu e terra se encontram na unidade de sua co-pertinência como fÚsij.

Isso porque o sagrado para o homem em sua multiplicidade encontra-se na “fisionomia” do

céu perante a terra na medida em que confronta ambos no comedimento. Assim, a morada do

homem se diz, abrigada na multiplicidade do ser, de múltiplas maneiras, reunindo no mesmo

formas distintas de se dizer.

Morte

Em todas as discussões que participamos até o momento foi o homem nomeado

enquanto mortal. Não há dúvidas de que todos os seres viventes somente são na disposição

inequívoca da morte. Dessa maneira, não é sem propósito a pronúncia de um ditado popular

que diz: “a morte é a única certeza que todos temos”. Diante da imprecisão e da ambigüidade,

do controle e não controle do acontecimento da vida do homem, tomamos como certo, na

medida de uma certeza, a presença da morte perante todos nós. De há muito que a arte e o

pensamento se deparam com a questão da morte proferindo o homem como mortal. Ele é dito

como um ser para a morte porque se encontra na possibilidade de morrer vivendo sua vida.

Tal se dá, sempre, suspenso na co-pertença originária na guarda do ser e na unidade do tempo.

Vários poetas pensantes e pensadores poetas trataram da questão pela sua

complexidade. Na verdade, na certeza da morte o homem se encontra reunido em uma

unidade. Na disposição da vida e do viver se encontra a morte como aquela que, confrontando

diretamente a vida, a mostra na radicalidade da diferença própria. Diante da morte a vida se

afirma como vida e a recíproca apresenta-se na verdade daquilo que é.

Não sem propósito a Grécia Antiga opunha a unidade œrwj e q£natoj como

referência de um para com o outro. O primeiro, como o amor ardente, como fogo que arde

levando à vida, como força ardente de paixão. O segundo como a morte em sua radicalidade.

A proximidade de ambos se mostra justamente onde na força de vida, na força que move a

vida, se encontra na vizinhança mais próxima, a morte. Muito sobre essa experiência radical

dos gregos tem sido discutido ao longo dos séculos. As discussões a esse respeito se

apresentam na seriedade e propriedade de sua referência. Uma referência se posta aqui, na

medida em que, assim, se reafirma a proximidade entre vida e morte. Desse modo, buscamos

o desenvolvimento de um caminho de discussão a partir da questão da morte para o homem.

A morte pode ser dita como fim, como término da própria situação de vivente, para

todos os seres que se encontram vivos. No entanto, pela via em que as discussões se

encaminham, o homem se revela em diferença radical com relação a outros seres ditos

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viventes. Ele é ao modo de lhe ser concedido habitar a abertura para o ser. Nesse sentido, o

homem se encontra aberto para a morte. Todos os outros entes que se dão como viventes se

encontram, já em vida, fechados, tanto para a vida como para a morte. Ao homem, no entanto,

é permitido pertencer estando aberto à morte e, por isso, perceber-se como mortal na unidade

própria do tempo. A morte é, ao seu modo, a própria medida que dá ao homem o tempo de

que dispõe na medida da unidade. Assim pode ser, posto que, disposto o homem à memória,

esta lhe garante o resguardo de ser conduzido à unidade. Desse modo, na disposição da

memória e do memorável, a morte revela ao homem o tempo que o dispõe em vida diante da

morte. Assim disposto, perante a morte, o homem se vê na unidade do tempo, este que,

concomitantemente, está resguardado, retido e subtraído para ele. Ou seja, aberto à unidade do

tempo, o homem já se percebe radicalmente como um ente que temporalmente é o que é

sendo ao seu modo e, assim, já se vê fechado ao tempo. A unidade da morte é a medida que

faz com que o tempo, em sua unidade, se conceda ao homem. Tal conceder-se se mostra no

paradoxo em que o homem já se percebe fechado para o tempo na abertura que lhe é

permitido habitar, onde se mostra a referência do ser à sua essência.

Este é o grande dilema: aberto para a morte já se encontra fechado ao seu mistério. Ser

homem como um ser para a morte, como um ente que é sendo enquanto mortal, porque vive a

morte na abertura própria permitida pelo ser, é já estar radicalmente fechado para a ela em seu

mistério. Portanto, a morte é um mistério. É misteriosa enquanto acontecimento. Morrer faz

parte de ser homem. Morrer faz parte da sua vida como o único que é o que é vivendo a

morte, por estar aberto à ela no mistério de seu fechamento. O homem vive já vivendo a

morte.

Não se pode confundir aqui, morte e vida como idênticas. Não há dúvidas de que

morte e vida são distintas. No entanto, se encontram em proximidade. Tal proximidade se

mostra tão próxima que uma não é sem a outra, apesar de não serem uma a outra. Devemos

ter claro que o fenecer propriamente, o findar a vida de modo incondicional é morte, mas,

aqui, não apenas o findar a vida está em questão e sim muito mais. Findar a vida é apenas um

modo de manifestação da morte. Findar a vida como fenecimento se encontra na disposição

de todo vivo e não apenas do homem. No entanto, voltamos a reafirmar que buscamos a

discussão da morte perante o homem na medida em que ele é mortal.

Muitos são os modos de dizer e de experienciar a morte em seu mistério. As diferentes

culturas apresentam modos distintos de experiênciá-la em seu mistério. Tal constatação se

encontra apenas para dizer que a morte, abrigada pelo ser, pode ser dita de múltiplas maneiras

sem, contudo, deixar de ser o que é. A sua presença é inequívoca para o homem. Com ela

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convivemos ao longo dos séculos, dos milênios, de toda a existência do homem sustentado e

abrigado pela terra como fÚsij. Ela dá ao homem a condição de finitude mostrando-o diante

de sua própria impossibilidade radical. Assim, diante da finitude, pode o homem, aberto e

fechado ao tempo, equivocar-se diante deste iludindo-se na possibilidade de medir o tempo

como se pudesse apreendê-lo em sua totalidade. A finitude apresentada pela morte se dá como

impossibilidade. Portanto, o abismo do nada é o que de modo próprio a revela a morte

resguardando sua verdade velada. O abismo guarda e resguarda a verdade da própria morte.

Por estarmos na guarda do ser, suspensos no sem fundo abismal, nos encontramos na

disposição em que este, resguardando a verdade, abre para o homem todo erro, na medida em

que, assim, nos deparamos com a condição de errantes.

Errante diante de toda errância, que se dá resguardada no abismo de simplicidade, o

homem erra. Ao mesmo tempo ele se vê na condição de caminho como acerto. Tal acerto

como caminho se encontra sempre em movimento. Tais acertos são moventes. Em constante

transformação eles podem repousar sendo o que são: acertos errantes. Na verdade, o abismo

do nada, mostrando radicalmente toda condição e toda medida da criação, é o que resguarda

todo erro e toda errância permitindo ao homem caminhar encaminhando caminhos. Assim, o

homem é um errante. É um errante por se encontrar na possibilidade de medir-se

ambiguamente diante do abismo fechado para si mesmo e para o próprio abismo. Tal

fechamento é o que é somente diante do abismo do nada, onde a verdade de ser e tempo como

unidade se mostra resguardada misteriosamente.

Assim, o homem se encontra errante diante da morte, esta que, inequivocamente, para

ele se apresenta na magnitude de seu mistério. É certo que já nascendo o homem começa a

morrer. A finitude de si mesmo se manifesta na vida em que ele vive. Tal finitude no vigor da

sua vida se dá no resguardo próprio da tensão entre a fÚsij mesma enquanto lÒgoj na

presença do excluído de toda exclusão como medida para qualquer seleção. Essa tensão

originária traz para o homem a morte porque, assim, esta é o que é no seu vigor. O vigor que

se manifesta enquanto fÚsij e lÒgoj traz a morte na medida de sua força. A mesma força

que faz eclodir em vida traz a morte como manifestação própria. Tal vigor faz eclodir a morte

como fenômeno, resguardada já em seu mistério. Esse vigor esconde todo o mistério da vida e

da morte. Dessa maneira, tal mistério, resguardado no abismo de ambigüidade do nada, se

apresenta na criação da vida e da morte. Assim resguardada, a finitude mostra a unidade do

tempo na medida em que este se dá como infinito. O vigor originário, em condições as mais

adversas, faz eclodir a vida e a morte manifestando-as resguardadas no mistério de si mesmas.

Tal mistério a ele pertence, mas a pertença a ele não faz o homem permanecer contentado

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diante de tal pertencimento. Justamente por pertencer a tal vigor é que o homem pode

atentamente escutar e, no descontentamento próprio cedido pelo ser, buscar caminhar a partir

do mistério. Caminhando errante, a partir do mistério resguardado, é que o homem se vê

mortal e finito diante da morte. Por isso, é que descontente ele encaminha caminhos diante do

abismo.

Finito e mortal são propriedades do homem concedidas pela unidade enquanto co-

pertença originária de ser e tempo. À disposição da memória o homem se depara com a

unidade do um na radicalidade de todas as diferenças. Aberto ao mesmo tempo em que

fechado ao ser e a si mesmo, caminha errante na busca de alentos, buscando atentamente

pertencer de modo radical, em uma escuta atenta, a ponto de entrever sua própria origem. A

ponto de caminhar para chegar a si mesmo, onde encontra-se em busca. Buscar é já uma

propriedade do homem cedida e concedida pelo ser. A insinuação própria do ser em seu

mistério exige e convoca o homem à busca que, permanentemente, já se mostra errante na

errância que resguarda todo erro. É em tal errância que toda a seleção pode se dar permitida

pelo excluído de toda exclusão.

Desse modo, podemos dizer que a morte é uma força. Uma vigorosa força da qual o

homem não pode escapar, de modo que não escapa mesmo em vida. Isso, porque ela se

mostra em sua magnitude ao homem, quando ele se encontra no vigor da vida. Mostra-se a ele

no vigor que é já a unidade vida e morte. Por isso, vivemos já morrendo. Vivemos na finitude

porque a vida-morte nos dá nossa medida enquanto nos permite, como temporais, abertos e

fechados ao tempo em si mesmo e em sua unidade retida e subtraída.

A morte, a exemplo do ser e do tempo, se encontra fechada em si mesma para si

mesma. Ela somente encontra abertura na referência do ser à essência do homem. Na medida

em que o homem deixa o vigor da vida-morte, tal referência se fecha consigo mesma retida no

seu mistério. O abismo de simplicidade resguarda a verdade de tal mistério na medida em que

mantém velado tal vigor. A errância do abismo, em sua ambigüidade radical, na qual o

homem se encontra suspenso à disposição, se dá na medida em que permite que a referência

do ser à essência do homem se manifeste. De modo que ele assim, errante, procure

encaminhar pelos caminhos que o levem à morte em sua verdade. Tais caminhos levam o

homem a radicalidade de sua própria essência. A de perceber-se finito, descontente e mortal.

Perante a mortalidade do homem, sua vida busca incessantemente criar caminhos na

colaboração própria com aquilo que vigorosamente o sustenta na sua vida-morte. A morte,

como medida de sua finitude, como medida de sua vida e como unidade que reúne todos os

homens, é uma das faces do próprio ser resguardado em seu mistério. Assim, ela impulsiona o

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homem na magnitude de seu vigor à busca do contentamento que ele mesmo sabe

incontentável.

O que aqui está sendo dito não se encontra na senda do niilismo, da rejeição da vida

em seu vigor. Justamente o contrário se apresenta. Procuramos estar atentos para a morte na

medida em que ela impulsiona a vida. Na medida em que sua força mostra ao homem que ele

é finito e, assim, o impele a criar em colaboração com o vigor próprio que resguarda a vida e a

morte em si mesmas. Aqui, não pretendemos trazer o vigor da morte na medida de findar a

vida, ou de estimular o findar da vida do homem. Tal finitude já pertence à vida como algo

que é anterior ao homem. Tal finitude é ontológica e mostra o homem em sua própria

essência. Aqui, almejamos discutir a morte como força que alavanca a vida. Vida e morte se

encontram como forças que pertencem de modo distinto ao mesmo vigor. Questionar a morte

é um modo de compreender o homem no acontecimento de sua vida-morte. Questionar a

morte é questionar o que impulsiona o homem no transformar-se em que ele repousa sendo o

que ele mesmo é.

Quando um homem mata o outro, ou ainda a si mesmo, que é desde sempre outro de si

mesmo, ele quer tomar para si uma força e um vigor que não lhe pertencem e, na

possibilidade de matar, continuam não lhe pertencendo. Pois que, ao matar, ele pretensamente

pretende se apoderar de um poder que, como morte, já essencialmente pertence ao vigor da

tensão radical entre fÚsij e lÒgoj. Assim, os homens não têm essencialmente poder de

decisão sobre a vida-morte de outros. Mas assim se equivocam e apenas incorrem no erro que

é permitido pela errância que resguarda todo erro. Ao longo dos séculos percebemos tal erro

em sucessivos acontecimentos. No entanto, não percebe o homem que a morte, em si, é para

todos, mostrando-se já numa ultrapassagem a todos os homens porque é pertencente ao vigor

que manifesta a vida. Assim, o homem não tem poder sobre a vida de outro homem. A tensão

originária tem poder sobre a vida de todo homem, porque já vivendo ele se encontra na

disposição de finitude. Tal equívoco somente faz com que alguns homens permaneçam na

cegueira própria e radical do entendimento puramente egoísta e equivocado no erro de se

acharem poderosos em alguma coisa. Somente revela a fraqueza destes em enfrentar a própria

morte de modo atento. Em tal fraqueza se enganam como se pudessem ter algum poder sobre

sua própria vida-morte. Estes homens, em sua fraqueza, somente acreditam no próprio

equívoco e cegamente insistem em estarem completamente surdos a pertencerem à própria

morte, como mortais. Insistem em estarem completamente surdos e ausentes à verdade

resguardada no abismo de simplicidade. Diante de tal acontecimento, matar o outro, o homem

ataca a sua própria essência permanecendo surdo à verdade da tensão originária que o abriga

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radicalmente. Não a ataca simplesmente por participar do que, de um modo ou de outro, é

inevitável, mas a ataca por permanecer surdo ao próprio homem. Surdo a si mesmo já deixou

de se perceber enquanto homem de modo a caminhar para fora de sua humanidade. Perde sua

essência enquanto permanece velado na cegueira e surdez do não pertencer à verdade que se

insinua, na exigência e convocação próprias, conclamando o homem para que tome para si o

que é seu. Apropriando-se do que lhe é próprio, no consentimento de habitar a abertura onde

aberto ao mesmo tempo em que fechado à sua própria essência, se vendo descontente, pode se

revelar na colaboração que faz com que ele esteja à disposição de criar e viver a referência do

ser à sua vida-morte enquanto acontecimento. Assim, percebemos que matar o outro, como

ato em si, é radicalmente revelado na ignorância que ataca diretamente a essência do homem

por desconhecer na cegueira e na surdez sua própria condição. Por esquecer o ser em sua

verdade e por desconhecer a própria essência da vida e da morte. Tal ignorância é o maior

ataque à essência do homem e ao próprio ser de que podemos ter notícias. Tal ignorância é, de

modo próprio, caminhar para longe de nós mesmos enquanto homens que somos abrigados

pelo vigor que nos concede e nos exige em uma convocação. Esse ataque é a violência que

justamente é a mais perigosa, a violência contra o ser e sua verdade, a violência contra o

homem e sua verdade. Tal ataque é que promove todas as outras violências, físicas e psíquicas

contra o próprio homem e contra a própria terra que o sustenta e abriga. Tal desconhecimento

e ignorância fazem o homem cometer as maiores atrocidades contra si mesmo, faz o homem

ser totalmente ludibriado pelas suas próprias criações que acabam por suplantá-lo num sem

controle onde há muito ele se encontra controlado sem ao menos dar-se conta. Controlado na

própria ignorância, surdez, cegueira e desconhecimento, o homem aniquila sua própria

essência deixando de ser o que é. Aí sim se percebe o verdadeiro niilismo, o ataque de modo

próprio à essência do homem e à referência do ser à essência do homem.

Sagrado

Não temos dúvidas de que não encontramos cultura de modo a não possuir relação

com o sagrado e as coisas sagradas. Na verdade, contato ou relação chegam a ser blasfêmia no

âmbito em que procuramos nos referir. Isso porque tal conotação não pode, em nenhuma

hipótese, dar conta do que efetivamente se dá com a cultura no que se refere ao sagrado. Toda

e qualquer cultura, todo e qualquer estabelecimento de mundo abrigado pelo vigor da terra

como fÚsij apresenta o sagrado, apresenta as coisas sagradas. O sagrado mostra-se como

uma conjuntura de extrema importância a respeito do mundo e da terra como abrigo do

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mundo. O sagrado, de modo próprio, forma qualquer cultura. Podemos dizer que o sagrado é

um formador de culturas, ele é o que dá unidade na formação do que a partir da fÚsij se

manifesta. Ele mostra o homem e seu lugar perante a imensidão do céu, do todo, enquanto

materialmente se revela no âmbito da fÚsij. Isso pelo fato de todas as culturas apresentarem

o sagrado em sua constituição. Mais uma vez tornamos a ressaltar que, aqui, no todo da

discussão que se forma a partir do homem, o sagrado, tendo importância peculiar, não o

totaliza. Mas, se encontra na conjuntura onde o homem se vê lançado em suspensão. No

entanto, até o momento apenas constatamos algo que está posto a quem quiser perceber. De

modo que, apenas localizamos a importância do sagrado de modo superficial e grosseiro.

Dessa maneira, o que se refere ao sagrado e as coisas sagradas, permanece na obscuridade

velado e abrigado na verdade resguardada no sem fundo abismal em seu mistério.

Sem dúvida que o sagrado, e o que se pode dizer enquanto experiência sagrada, no

mistério permanece. Isso, até porque depende não apenas do âmbito cultural, mas também da

individualidade do homem na humanidade de si mesmo. A experiência com o sagrado,

mesmo quando se tratam de grupos, é radicalmente individual porque os caminhos são sempre

individuais neste aspecto. Os grupos que se reúnem em torno do que lhe é sagrado o fazem

por afinidade quando se encontram verdadeiramente implicados e comprometidos com o que

sacralizadamente se mostra. Normalmente se conhecem os grupos que assim se mostram, no

Ocidente ou não, a partir das religiões que são diversas na sua multiplicidade, todas reunidas

pela questão do sagrado. De qualquer maneira, mesmo a partir da relação com o que, em

termos de experiência, se apresenta individualmente, sem sombra de dúvidas percebemos o

sagrado como uma reunião. Não é à toa que no Brasil, bem como em outros países de cultura

européia, se percebem cidades constituídas no firme propósito de firmar sua marca, seus

costumes, seu modo de vida, a partir das construções mais suntuosas na época que eram as

igrejas da religião católica, de dissidências da mesma ou de religiões consideradas pagãs. No

processo de colonização brasileiro a primeira providência a ser tomada, com relação aos

povos indígenas, foi a conversão dos mesmos para a religião em vigor e domínio no Ocidente.

Claro que não podemos descartar as relações políticas implicadas em tal processo. No

entanto, não é aqui o caso de tornarmos específica tal abordagem do assunto. Aqui, nos

empenhamos em debater o sagrado. Apenas procuramos, com tais referências, a

contextualização do que se põe em discussão, de modo que o questionado mesmo possa

mostrar as possibilidades de dar conta de si mesmo.

Importa para nós que se pode dizer o sagrado como um acontecimento que reúne. Na

experiência do sagrado reúnem-se os homens. Na experiência do sagrado os homens

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percebem o sentido de sua convivência a partir do mistério que o próprio sagrado traz. O deus

ou os deuses que se mostram na sacralização do sagrado, dão ao homem a possibilidade de

reunião e de culto ao mistério próprio do céu, da terra, da fÚsij mesma enquanto todo o seu

aspecto. Poderíamos até dizer que a fÚsij mostra-se no sagrado a partir do mistério de si

mesma. No entanto, tal afirmação se mostra em uma precipitação que careça de maior

caminho em uma escuta atenta.

De fato, algo deve ser posto para que possamos evidenciar o sagrado longe daquilo

que possa nublar e ensurdecer nosso pertencimento na escuta. Tal constatação se dá pelo fato

de que, na atualidade, vivemos um processo de dessacralização das coisas sagradas. Este se dá

onde a ciência toma para si a verdade de todas as coisas, promovendo um vazio no que de

modo efetivo reúne o homem. Tal modo de manifestação evidente na Cultura Contemporânea

provoca uma tentativa de preenchimento de tal vazio no coração dos homens. Assim,

percebemos a efusão de obras de auto-ajuda, pululam as diversas reuniões religiosas em

várias instâncias, se abre a procura pelo mistério a partir do misticismo. Isso acontece pelo

simples fato da ciência não dar conta do mistério próprio do ser e do não ser, do mistério do

abismo sem fundo e ambíguo, nos desdobramentos que lhe são permitidos. Assim, tal vazio

procura se preencher ele mesmo, e procura como uma exigência do próprio mistério. Desse

modo, podemos dizer que o sagrado é uma exigência da verdade que, velada no encobrimento

de si mesma, mostra o mistério abismal e profundo da ambigüidade do que se dá enquanto

abismo. O próprio abismo de mistério exige que o vazio de si mesmo mostre o sagrado como

o que concede o caminho para o próprio mistério, para o que é desconhecido. Mostra-se como

uma possibilidade de fazer conhecido o desconhecido, o misterioso, assim, com ele podemos

entrever o desconhecido como desconhecido. Desse modo, vivemos em uma época de

exigência. Exigência esta que pela própria verdade epocal de manifestação do ser - dando-se

ao modo da veiculação desenfreada de informações postas como as mais diversas, permitidas

pelos vários meios disponíveis que se mostram sem o devido comprometimento e seriedade

com que devem ser tratadas as questões - faz com que tal exigência venha a dar-se de modo

desenfreado, desordenado e muitas vezes desconexo. Desse modo, o mistério enquanto

questão se perde na multiplicidade de opiniões e do senso comum que hoje é permitido se dar

de modo travestido de falsa seriedade.

Tal contextualização obnubila o sagrado encobrindo-o de modo que se torna percebê-

lo na seriedade. No entanto, devemos retomá-lo de modo que ele possa se mostrar enquanto

reunião dos homens na experiência individual de cada um. Assim podemos dizer, pois a

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experiência que se tem no sagrado é, ao mesmo tempo, particular e múltipla na reunião dos

que com ele comungam.

Ao longo dos séculos confrontando o homem de modo radical, o mistério é o que, de

um modo todo próprio, faz o homem ir a busca de si mesmo e de tudo o que o rodeia. O

mistério se dá encoberto pela verdade, guardado no resguardo próprio de modo a, assim,

permanecer mistério. O mistério exigiu do homem várias possibilidades de manter essa linha,

o contato entre conhecido e desconhecido. Os mitos ecoaram, enquanto verdade, ao longo dos

séculos, seja na cultura egípcia, seja na cultura grega, seja em qualquer outra cultura, se

fazendo presentes como uma exigência do próprio abismo de mistério velando ser e tempo na

verdade de si mesmos. Desde a verdade mítica, a relação com o que de modo misterioso se dá

foi sendo exigida de formas distintas marcadas pela verdade epocal do ser em si mesmo.

Desse modo, a ciência foi exigida no Ocidente a partir do vazio do mistério. A verdade do

desconhecido no âmbito do mito passou a se revelar na medida do fantasioso, do irreal, posto

que nunca poderia ser comprovado pelo paradigma de verdade vigente.

Em algum lugar já foi dito que o homem se encontra muito aquém de suas

capacidades, que o que podemos perceber enquanto aspectos ou perspectivas escondem mais

do que mostram. Portanto, na relação com o sagrado o homem reúne-se em si mesmo na

medida em que procura manter uma ponte, o estabelecimento de uma relação com o que para

ele é invisível, intocável, impensável. O que se encontra fora de toda a sua experiência com o

mundo abrigado pela terra. Em suma, o que é de todo modo fundado na ambigüidade abismal

de ser e não ser, de tempo enquanto unidade. Assim, o sagrado convoca o homem na

convocação e exigência própria da verdade epocal misteriosa do abismo de ambigüidade. Não

sem propósito, Hölderlin nomeia o deus e o céu como desconhecidos. Estar e permanecer

enquanto desconhecido é o modo de manifestação tanto do deus, quanto do céu como sua

morada. O sagrado pode ser compreendido como uma das maneiras de mostrar o homem em

sua radical condição de descontentamento frente ao mistério insondável da natureza, do ser,

do não ser, do tempo, do nada. O sagrado convoca o homem para produzir a partir do

absolutamente nada, este, que é a medida da fÚsij enquanto ela é o que é. Por isso o imortal

como o deus é “a medida dos homens”. Ele é a medida dos homens porque, com ele, o

homem pode medir-se diante do mistério que o próprio imortal é permanecendo como ao seu

modo. Olhar para o céu é um modo de medir-se contemplando o mistério e, assim, o

assumindo diante da própria finitude do homem. Contemplar o céu, na mirada onde mora o

celestial, revela a finitude do homem na medida em que, se medindo com o mistério do

imortal, ele é trazido para si mesmo em sua própria condição. Tal mistério ao mesmo tempo

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em que exige do homem numa exigência, o empurra para que ele continue buscando o

mistério naquilo que permanece misterioso.

Na medida em que se percebe o lance de olhos na mirada para o céu, o sagrado é o que

se dá de modo respeitoso. Um respeito que não se explica à razão. Portanto, a questão do céu

não é uma exclusividade do sagrado, apenas figura como uma das possibilidades de mostrar,

de modo próprio, a reverência que o homem tem pelas coisas sagradas no devido respeito.

Não é uma exclusividade do céu o sagrado. Este pode ser em qualquer coisa que se insinue na

medida do respeito próprio onde o que é sagrado revela-se. Importa ressaltar que vivenciamos

o sagrado a partir de uma experiência própria. Tal se dá como experienciar seja pela força da

fé, por uma crença qualquer, ou pela formação cultural que assim se constitua. A vivência do

sagrado reside, de modo radical, na ausência de qualquer racionalidade, habitando, de modo

próprio, no vivenciar da experiência, na não explicação de quaisquer motivos, no estar todo

fora da lógica, não por ser ilógico, mas por permanecer encoberto para qualquer lógica.

Fazer e manter uma experiência com o sagrado mostra uma seriedade e uma entrega.

Mostra uma experiência que percorre todo o ser daquele que é sendo o que é ao modo do

homem. Faz dele uma entrega de si mesmo de modo que, em tal experiência, se possa

efetivamente entrar no âmbito do sagrado enquanto misterioso. O faz entrar por inteiro, de

modo que o homem possa, por um momento, vislumbrar-se por inteiro diante do mistério e da

entrega da experiência própria do sagrado. A experiência com o sagrado, de algum modo, se

assemelha ao próprio p£qoj que, como espanto, suspende o homem na disposição da arte e do

pensamento. O p£qoj mesmo pode ser compreendido na medida do deixar-se levar por,

deixar-se convocar por. Tal paixão mostra o homem enquanto é convocado pelo mistério na

medida do que se dá como sagrado. Portanto, é apaixonado e entregue que podemos dizer que

o homem, de modo efetivo, se dispõe à experiência do sagrado. A paixão e o espanto aqui se

manifestam de modo distinto. De qualquer maneira a experiência do sagrado exige uma

entrega, exige um concentrar-se que entrega a si mesmo ao mistério vigente do próprio

sagrado.

Assim, como medida do homem a experiência sagrada o mostra de um modo todo

próprio. Tal experiência faz o homem olhar para além de si mesmo em direção ao mistério

desconhecido do todo, na procura de uma face de tal mistério, na busca por um alento que

mostre a fisionomia do que, de todo, é misterioso e misteriosamente se dá. A entrega ao

sagrado faz com que o homem procure completar sua incompletude, faz parte do próprio

questionamento enquanto questão. O sagrado é uma questão, isso incontestavelmente.

Abrigado no mistério abismal e ambíguo por si mesmo, o sagrado se esconde no recôndito do

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ser e do não ser, esconde-se nos recônditos do tempo na medida de sua unidade ambígua de

retração e subtração. O sagrado revela ao homem, em sua mortalidade enquanto mortal, a

experiência temporal do inefável, porque desconhecido. O tempo do sagrado é o tempo do

desconhecido e, necessariamente, o tempo como desconhecido. Na medida em que o sagrado

apresenta o imortal, tal imortalidade para o homem somente é conhecida na medida em que

permanece desconhecida em essência. Essencialmente desconhecida, a medida do tempo do

imortal, em sua imortalidade, assim permanece inacessível para o homem. Tal tempo somente

podendo ser revelado enquanto verdade no habitar poético como verdade. No entanto, na

sagração do sagrado, o mistério abriga o tempo enquanto ele é o tempo do imortal. Como tal,

é o tempo inacessível ao homem, porque para ele assim se encontra apenas como puro

retraimento. Nesse retraimento ao mesmo tempo se revela e reafirma-se a própria mortalidade

do homem como mortal. Assim, diante do mistério do sagrado o homem se percebe, medindo-

se com o celestial, mais homem habitando “esta terra”.

Como questão o sagrado se revela como possibilidade de questionamento frente às

coisas em sua verdade. Enquanto questão, e abrigado no mistério de si mesmo, ele mostra-se

inesgotável. Assim, se encontra na inesgotabilidade de si mesmo onde o homem busca por

responder ao seu descontentamento frente ao mistério abismal, inclusive o dele mesmo. Ali o

homem se sente completo na sua incompletude. Percebendo-se completo ao mesmo tempo em

que ambiguamente sabe-se descontente, o homem se vê radicado na ambigüidade por si

mesmo. A completude, então, não é ao modo de uma aparência, mas se mostra enquanto

completude que, ao mesmo tempo, é já incompleta, portanto, ambígua. Descontente, o homem

se entrega ao sagrado, entrega-se ao mistério, de modo que não há homem fora da referência

radical do sagrado em si.

A sagração do sagrado é o que dá sentido ao modo de reunião, na medida de uma

reverência, na medida do respeito ao que se mostra na importância radical de revelar o

homem na sua própria medida. Revela-o em seu descontentamento completo na

incompletude, no descontentamento que questiona e sabe-se questionador por pertencer ao

que se dá como questão permanecendo no mistério. O homem se entrega aceitando o que lhe

é entregue e concedido misteriosamente, inexplicavelmente. Tal conceder que se envia ao

homem, é assim recebido e aceito na medida de ser desconhecido e de permanecer como tal.

Assim, o sagrado se mostra como experiência para a experiência do homem. Vivenciando o

sagrado é que podemos compreender o poder próprio da sagração do sagrado. Somente na

vivência é que o sagrado pode se mostrar em seu vigor, e não nas explicações racionais da

verdade calcada na ciência. Lá já se perdeu o sagrado de modo radical, de modo essencial,

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porque deixou encoberto o mistério na tentativa do desencobrimento que se dá enquanto

equívoco. Na experiência é que a vivência do sagrado é individual, mas, ao mesmo tempo,

reúne na multiplicidade. Assim, o sagrado é um no todo que abriga. Isso porque ao homem

ele é concedido como uma exigência própria do mistério silencioso que resguarda o homem

na suspensão própria de si mesmo. Cada homem vivencia a seu modo o sagrado. Cada um na

individualidade tem a sua entrega. Tem o seu contato com o mistério próprio por si mesmo.

Assim, o mistério dá a cada um a sua medida. Com ele podemos nos medir e nos percebermos

na verdade que nos resguarda aceitando o mistério por si mesmo. Contudo, o sagrado, mesmo

abrigado no mistério próprio do abismo, é um uno que reúne a multiplicidade de

possibilidades de aparecimento, sem deixar que nenhum homem se encontre fora de tal

relação.

Quanto ao dito acima, podemos ainda dizer que há homens que se encontram alheios a

qualquer relação com o sagrado, na medida em que são nomeados como ateus. No entanto,

antes de tal afirmação devemos, antes de tudo, questionar o que vem, de modo efetivo, a ser

ateu. A palavra em si é simples e sua etimologia fácil de localizar, vinda do grego qeÒj que

diz, em suma, deus, antecedida pelo a- privativo, dizendo daquele que não crê em deus,

daquele que se dá em vivência na ausência do deus. Será que tal palavra encontra uma

incompatibilidade com o sagrado? “Acreditamos mais que não seja assim”. Aquele que se diz

enquanto ateu, perfaz um caminho que se encaminha sempre na relação do embate de um

medir-se entre mortal e imortal. Pensando em um inter-relacionamento de mundo onde não há

homem fora do sagrado, é somente na proximidade da diferença com qeÒj que o a-qeÒj se

fundamenta. Na verdade, com todas as suas forças o a-qeÒj necessita do pleno vigor do qeÒj

para, então, somente aí, poder negá-lo de modo radical. A negação em que o ateu mesmo se

encontra, de toda forma, para negar reafirma na diferença. Sendo assim, o a-qeÒj enquanto

negação do qeÒj se fundamenta propriamente nele e o contrário do mesmo se dá. No entanto,

na relação da diferença o a-qeÒj somente pode-se dizer como tal por habitar o caminho do

sagrado. O sagrado, em si mesmo, congrega a afirmação e a negação do deus. A dinâmica da

negação já se encontra enquanto, ao mesmo tempo, negando reafirma o deus em si mesmo na

medida de seu mistério. Aqui, a negação reafirma ao modo da unidade na co-pertinência das

diferenças. O sagrado, então, como caminho de con-sagração, abarca a relação harmônica e

polêmica entre qeÒj e a-qeÒj de modo que ambos habitam o sagrado. QeÒj e a-qeÒj se

mostram no embate e no caminho do sagrado, da sagração e da con-sagração. A con-sagração

do sagrado reside na reunião do mesmo, onde ambos permanecem mistério. Sendo assim,

qeÒj e a-qeÒj são o mesmo onde, mostrando-se na máxima radicalidade da diferença, um se

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fundamenta no outro. O ateu traz, na sua negação resguardada no mistério, a total radicaldade

do vigor do deus para, então, poder negá-lo. Assim, podemos dizer que o ateu vive do deus,

como tal, se fundamenta nele encontrando seu vigor. O ateu assim se manifesta porque, de

modo próprio, negando o deus como mistério, permanece também no mistério. Permanece no

mistério porque nega o deus no mistério de modo que, assim negando, assume o próprio

mistério. Em tal negação, o mistério permanece misterioso na medida própria de se resguardar

escondendo-se como mistério. Na plenitude da diferença conforma-se o sagrado e, na

plenitude vigorosa desta diferença, o sagrado se consuma enquanto mede as forças um do

outro: qeÒj e a-qeÒj. Ambos no mistério se reafirmam e se constituem. Desse modo são

abrigados pelo sagrado pelo fato do sagrado ser anterior a qualquer possibilidade de afirmação

ou negação. O sagrado se encontra para além da afirmação e da negação pelo simples fato de

permanecer mistério na sua própria manifestação. Enquanto manifestação que se dá, na

medida em que não pode o homem a ela furtar-se, não há medidas de afirmar ou negar e, sim,

assumir o mistério do sagrado na experiência. O sagrado resguardado como mistério permite a

vivência postando o homem na sua disposição. Assim disposto o homem pode confrontar,

suspenso, o mistério que constantemente põe à prova o seu descontentamento. Portanto, soa

inconsistente a objeção que interpõe o ateu ante a experiência do sagrado para o homem,

posto que o sagrado em si mesmo se mostra anterior à relação que a objeção traz para a

discussão. No entanto, a objeção dá condições para que a discussão possa reafirmar o sagrado

como mistério permanecendo abrigado em sua verdade.

Trazendo os deuses em sua radicalidade, Walter Otto nos concede seu dizer se

referindo aos deuses gregos: “Para o sublime espírito desta da raça humana não há nada mais

gratificante do que saber que os eternamente venturosos existem, que eles são150151

”. Assim, o

sagrado se referenda no assumir-se maior do que acreditar ou deixar de acreditar, mas sim que

o mistério é e permanece sendo. Os deuses são. A constatação é assim categórica. Na medida

em que o autor se refere ao vivenciar os deuses por parte dos gregos antigos, os deuses se

mostram sendo na unidade de reunião do próprio sagrado que, enquanto mistério, assim os

abarca. Portanto, dizemos que no sagrado que, de todo modo, é maior do que qualquer

individualidade, crença individual, o deus assim é, e lá permanece sendo. Permanece ainda

reafirmado por sua própria negação. Ele se mostra em vigor e força na medida em que se

renova enquanto mistério. Assim, é sendo ele mesmo já se transformando enquanto misterioso

e desconhecido. No desconhecido ele permanece assim conhecido e pode, então, ser dito na

150

Grifo do autor. 151

Otto, Walter 2006, p. 53-54.

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sua densidade e concretude. O deus é e permanece sendo. Concretamente ele se coloca na

medida de si mesmo lá permanecendo.

Parece estranho que até o momento da investigação o mito tenha sido deixado de lado.

Toda a investigação a respeito do sagrado que se preze tem de estar na disposição de, pelo

menos, enviar um olhar para a relação mítica e sua verdade. Os mitos de há muito se

encontram desprovidos de seu vigor nos discursos atuais. No mundo da ciência a verdade

mítica passa por estória e não como um acontecimento histórico. Passando, então, a valer,

pela força da oralidade, como fábula, estória, relato, lenda. No que se refere ao sagrado o mito

traz a força fundamental de constituição de mundo a partir de sua verdade, de maneira que

velado no seu acontecimento se encontra mistério sendo a partir do mistério. A verdade do

mito se encontra na vigência própria do sagrado. Ele remonta à época em que o sagrado não

havia sido encoberto pela verdade como certeza e precisão da racionalidade científica. Na

Grécia Antiga os mitos reuniam o povo perante a verdade dos deuses. A verdade mítica

trouxe obras de extrema importância como, por exemplo, a Teogonia de Hesíodo. Vários

estudos e trabalhos procuram se encontrar na disposição do vigor da obra de Hesíodo devido à

força de sua verdade. O sagrado mesmo permanece no vigor de sua força na medida do

mistério de si mesmo, permanecendo como tal misterioso. Os mitos reinaram em força na

exigência do mistério que, por si mesmo, convocou os homens, na referência em que estão

suspensos e abrigados, a participarem do vigor do mistério na verdade mítica. Não apenas na

Grécia, como também em diversas culturas os mitos, sejam cosmogônicos, sejam teogônicos,

aparecem se revelando a partir do mistério mesmo. Eles apresentam a saga de um povo no

âmbito da linguagem dialogante. Neles o povo se identifica reunindo como a si mesmo em

sua verdade própria. Sem dúvidas que o mito em seu vigor mereceria uma investigação à

parte pela riqueza de sua verdade. No entanto, aqui, apenas surge quase como que uma

indicação do poder e da verdade na medida de sua essência. Ainda mais uma vez Walter Otto

nos esclarece a respeito do mito quando diz:

Já a época dos grandes mitos, ela própria, há de ter pensado de um modo muito

diferente. Pois, deixando de lado tudo o mais, o termo mythos (cujo significado não

é outro senão palavra) originariamente não designa a palavra que fala do passado, e

sim a que fala do real.152

Assim, o mito se mostra enquanto palavra que traz consigo o real em seu vigor. O

autor mostra que a relação do mito como palavra se encontra diretamente ligado ao real na

152

Idem, p.39

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253

medida em que sua densidade ultrapassa qualquer concepção, hoje equivocada, que o entende

como estória fantástica que venha “encerrar um sentido mais profundo153

”. A profundidade do

mito se encontra na sua própria densidade como palavra do real. O real se torna palavra no

mito e, assim, o sagrado mais uma vez se manifesta no vigor de si mesmo. O autor ainda nos

concede mais na medida em que diz a respeito da unidade entre mito e rito

(...) o ato de deter-se respeitoso ou fascinado (em latim: superstitio), o ato de erguer

os braços e as mãos, ou, ao contrário, o de inclinar-se e ajoelhar-se, o juntar as mãos

etc. Na origem, essas atitudes não são uma mera expressão de fé: são uma revelação

do divino no ser humano, são o próprio mito a manifestar-se154

A revelação do divino no ser humano mostra o sagrado enquanto o mito em seu vigor

manifesta-se. Sagrado e mito se encontram estreitamente ligados, na medida em que

conformam uma unidade. O mito é já e sempre sagrado. Manifesta-se, revela-se mostrando

que o deus é e permanece sendo já misteriosamente em si mesmo. Ritualizar o mito é trazê-lo

como manifestação à realidade que ele mesmo, como mito e como sagrado, encerra. Não há

homem, na medida da sua essência, fora do sagrado. A experiência do mito em sua verdade

vem a nos mostrar que a pobreza de nossa época deixou de lado a verdade do sagrado em si,

no entanto, ao mesmo tempo paga o preço por tal negligência. Mito e rito são um só como

unidade na sua diferença. O sagrado manifesto na ritualização de si mesmo como real

congrega e reafirma-se na medida em que permanece misterioso para o homem e, assim,

conforma-se no vigor de sua verdade. O homem é o que é, lançado no sagrado misterioso e

concreto em sua densidade. Levantando as mãos para o céu em reverência ou em oração ele se

dá afirmado como homem, como mortal frente ao divino. Dá-se afirmando como aquele que,

sem compreender, se lança à paixão que o toma num arrebatamento de modo tal, que não há a

possibilidade de resistência. Assim, o sagrado é também uma convocação, um chamado, uma

exigência que lança o homem diante de si mesmo perante o deus que é, e que, sendo ao seu

modo, concede ao homem ver-se e deparar-se com a morte e com o desconhecido. Assim, na

medida em que torna conhecido o desconhecido o deus permanece, assim, desconhecido.

Desconhecido em seu mistério o sagrado sagra-se, como tal, diante da reunião de homem e

deus. Na reunião de homem e deus o homem se reafirma diante do deus e recebe a dádiva de

poder medir-se com o celestial. Medido no seu desconhecimento o celestial se dá manifesto

em sua densidade desconhecida. O sagrado retoma o mito na força de seu velamento, na força

de sua verdade, na medida em que a experiência mítica reafirma o sagrado em si mesmo na

153

Idem, ibidem. 154

Idem, p.43.

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reunião de deus e homem. Reunindo deus e homem, o sagrado dimensiona, de modo próprio,

o abismo que os mantém separados. Ambiguamente, o sagrado dá a medida dos homens

enquanto mostra o deus desconhecido em sua concretude, na medida em que, o deus mesmo é

em si mesmo. Reunindo mito e rito, o sagrado mostra a manifestação do divino. Manifesto já

no seu encobrimento, o deus é conhecido e desconhecido e, assim, permanece concreto. O

deus é assim real, pois que a palavra do mito, a palavra do sagrado é a palavra do real, é

palavra que manifesta o real na medida de seu vigor como palavra que dá e concede, que

chama e nomeia, que se lança trazendo o que nela se dá lançado.

Homem e Música

No âmbito do poético é inequívoca a referência entre homem e música. Tal referência,

abrigada pelo ser originariamente, ultrapassa o homem essencialmente. Dessa maneira, o

homem é ultrapassado porque no âmbito do poético a música lhe abriga. Abriga-o na medida

em que perante a unidade musical ele se vê revelado de maneira distinta. Desse modo, o

habitar do homem na medida de sua morada é poético originariamente. Nessa medida, a

poética enquanto música revela o homem em seu habitar no mundo onde ele se mostra em

conjuntura. Em tal conjuntura ele se dá sentido, se mostra puro sentido de maneira que se

encontra propriamente com sua essência. Diante de sua essência revelada musicalmente, a

poética musical conjunta o homem de modo que um mundo enquanto conjuntura se abre.

Assim, ele se encontra reunido em tal mundo ao mesmo tempo em que reúne ao modo desse

mesmo mundo aberto musicalmente. Toda a reunião como música se abre ao homem. Em tal

unidade é permitido a ele habitar poeticamente. Ao homem é consentido perceber que a

música no âmbito do poético se dá como a unidade de co-pertinência com o abismo ambíguo

de simplicidade. Em tal unidade o abismo se reafirma e a música se mostra ambígua por si

mesma. Dessa maneira, música e abismo mostram um sem fim de possibilidades e

impossibilidades frente ao irrealizável. No real, tal unidade se mostra por si mesma ambígua

e, como tal, inapreensível ao modo de qualquer compreensão objetiva. Portanto, é suspenso e

abrigado em tal unidade que o homem musicalmente pode sentir, pensar, experimentar,

comemorar e consagrar pelo consentimento que lhe é permitido.

Lançado na unidade musical o homem sente. No entanto, não sente algo que lhe vem

de modo externo, mas sim como algo que o envolve lhe abrigando na medida em que é

homem. Na unidade musical o homem se vê lançado como músico e escutador-ouvinte. Em

tal disposição lhe é concedido sentir de múltiplas maneiras. Na multiplicidade do sentir ele se

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percebe reunido no que originariamente lhe é anterior. Por isso, ele sente na medida em que

faz parte da unidade que o nomeia como músico, como ouvinte e expectador da unidade

musical. Tal unidade lhe dá a sentir onde ele pode sentir a si mesmo na condição em que se

encontra. No entanto, sentindo a si mesmo já sente o que lhe advém de modo próprio como tal

unidade. A poética musical reúne obras musicais, músicos, ouvintes, bem como todo o saber

musical envolvido. Na co-pertinência de unidade com o abismo de simplicidade, a todos os

que se mostram reunidos é concedido uma infinidade de desdobramentos. Sendo permitido ao

homem habitar a abertura para o ser, quando ele sente, reunido na poética musical, lhe é

concedido sentir ao modo da reunião. Portanto, lhe é concedido sentir no todo que se envia

como unidade. No desvelar das obras musicais, não apenas as obras se encontram em jogo,

mas o todo que reúne como unidade no qual a obra é nomeada e pode ser o que é. Sentindo ao

modo da experiência, lançado na poética musical, o homem se sustenta radicalmente como

tal. Apropriado pela co-pertinência radical de música e abismo o homem sente se apropriando

do que lhe é próprio. Lançado na experiência musical lhe é permitido sentir de modo radical.

O que a música concede ao homem, na medida de sua unidade, faz com que ele se veja

suspenso, apaixonado, espantado, diante do real que se abre como música e abismo. No

conceder da música como reunião das obras, do saber, do músico e do ouvinte, ou seja, da

conjuntura musical como um mundo de relações e inter-relações, ao homem é permitido sentir

reunindo o que se dá como unidade. Portanto, espantado, apaixonado e suspenso na co-

pertinência de nada, ser e tempo, ao homem é dada a condição de poder se ver reunido

musicalmente como músico e ouvinte. Encantado diante da conjuntura musical, ele é trazido

para a unidade de som e silêncio como sonoridade nas obras musicais, é chamado para si

mesmo lhe sendo concedido pertencer originariamente na escuta, é puxado mais para si

mesmo se vendo na suspensão própria do abismo que poeticamente se reafirma na unidade

musical. Encantado diante da sonoridade reunida em sua verdade ele sente e se desprende de

si mesmo assumindo-se como outro. No transe de tal encantamento viaja pela unidade que

assume com o acontecer da obra onde, em tal acontecimento, ele mesmo acontece seja como

músico, seja como ouvinte. Sabendo sem saber, pensa musicalmente no âmbito que o

resguarda. Desse modo, a música permite ao homem sentir de modo todo próprio, um sentir

poético que lhe reafirma como homem. Um sentir onde lhe é concedido apropriar-se do que

lhe é próprio pelo ser que se desvela poeticamente na unidade musical em co-pertinência

originária com o abismo enquanto ambigüidade, simplicidade, enquanto nada resguardando

ser e não ser. Suspenso em tal abismo o homem transita pelos caminhos da unidade musical

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errante e vacilante na solidez própria que o perpassa. Vacilante no erro lhe é concedido ser ele

mesmo.

Não há dúvida de que todo sentir se dá em unidade com o pensar. Assim, na

perspectiva da unidade musical, é dado ao homem saber, pensar e sentir. Sentindo

musicalmente na experiência o homem pensa e sabe. Pensar e saber são concedidos no

consentimento musical enquanto se revela unidade radical. Sendo ao homem permitido

habitar a unidade musical, lá ele se vê reunido no saber pensando o que, como unidade, se dá

a pensar. Tal reunião somente se mostra possível resguardada no abismo que mostra o saber

no âmbito das possibilidades e impossibilidades na medida do irrealizável. O abismo

resguardando tudo o que se dá musicalmente reunido, abriga tanto o pensar quanto o saber

musical na medida em que estes se revelam na dinâmica própria de transformação no repouso

de sua solidez. Ao homem é concedido pensar e saber nessa dinâmica. A ele é concedida a

solidez que sempre escapa e, encapando, permanece como tal. Assim, o saber musical dá a

pensar de modo que permanece em constante movimento, de modo que o homem, lançado em

tal saber, se movimenta por ele suspenso na co-pertinência entre musica e abismo. Por isso, o

pensar e o saber musicais se dão na multiplicidade sem-fim reunidos como um na unidade da

poética musical. Na dinâmica do acontecimento das obras musicais ao homem é dado pensar

e saber, seja como músico ou ouvinte, cada um deles resguardado em suas diferenças.

Na medida do que é concedido ao homem pensar e saber musicalmente ele pode

colaborar na criação. A criação musical se sustenta na própria conjuntura que a abriga. Tal

conjuntura perpassa essencialmente o homem abrigando-o na sua individualidade. As criações

no âmbito da poética musical não se restringem ao aparecimento das obras musicais, mas a

todo âmbito em que se cultua a música em si mesma. Criações musicais assim se dão na

medida de suas diferenças, onde o saber musical se dá criado articulando-se na permissão

infinita da co-pertinência entre música e abismo. Desse modo todo saber permanece em

constante movimento, permanece constantemente se encaminhando nas vias infinitas da

própria unidade. O saber se mostra diretamente ligado ao acontecimento das obras, dos

músicos e ouvintes. As obras musicais mais se dão operando como obras no acontecer de seu

acontecimento, encantando na medida da revelação de sua sonoridade própria como verdade.

Na criação das obras o homem se suspende radicalmente apropriado pertencendo à unidade

que se manifesta reunida. Habitando a abertura que lhe é concedida ele pertence à verdade da

sonoridade musical como som e silêncio no âmbito do profundo. Suspenso na solidão que

todo homem na condição de criador tem de suportar, ele se volta para si mesmo como músico.

Vendo-se pertencendo à música, ele escuta audiente e pacientemente a fim de colaborar

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reunido e apropriado na verdade musical resguardada no abismo de simplicidade. Voltado

para si ele tem de pertencer a si mesmo como músico. Somente assim pode o homem

participar da criação seja de obras musicais, de procedimentos técnicos, ou saberes

específicos no âmbito musical, como a interpretação, por exemplo. Não há dúvidas que cada

criação distinta põe em suspensão o homem de modos diferentes. No entanto, o importante se

dá em sabermos que em tal solidão é permitido ao homem se voltar para si como outro e,

desse modo, revelar-se apropriado na unidade que o sustenta e nomeia. Tal suspensão é

sempre apaixonada, cheia de espanto e entusiasmo. O espanto e a paixão radicais onde ao

homem é permitido perceber a dádiva da música como tal. A criação, no âmbito da poética

musical, se mostra de modo que ao homem é permitido inclusive participar da sua criação

como músico e ouvinte. Disposto em tal suspensão ele se reafirma na sua própria disposição.

A poética musical lhe dá a medida para que ele possa, colaborando, participar de sua própria

formação como tal. Desse modo, reunido na unidade que o nomeia, ele pode se revelar como

músico, como ouvinte, como crítico. Pode na medida de uma permissão, no âmbito de um

consentimento, a permissão e o consentimento em que ser e tempo, enquanto música e

abismo, se concedem, como unidade radical, revelados e abrigados como verdade.

Toda a unidade musical se mostra em si mesma na medida em que o homem se

encontra à disposição da memória. No âmbito da memória, a música como unidade se desvela

radicalmente abrigando a multiplicidade que ela sustenta. Na co-pertinência originária entre

música e abismo, o que é reunido em tal unidade se dá como memorável ao resguardo radical

da memória. Ao homem só é permitido habitar a abertura para o ser que se dá como música e

abismo na medida em que está à disposição da memória. Todo pertencer como escuta

originária, todas as criações, todo pensar e saber, todo homem enquanto músico e ouvinte,

enfim, toda a conjuntura dialogante que a co-pertinência originária reúne, se concede à

memória como memorável. Somente no âmbito da memória, estes são levados como unidade

frente à diferença que a todos mantém reunidos como unidade radical, unidade esta, que se

mostra na co-pertinência originária entre música e abismo. Somente desse modo, pode um

mundo musical, como teia de relações e inter-relações, se manifestar. Na co-pertinência

originária com o abismo de simplicidade resguardando todos os desdobramentos, a unidade

musical se concede como memorável ao resguardo originário da memória que abriga o

memorável na unidade de si mesmo. Somente em tal resguardo pode a unidade na medida do

memorável reunir ao seu modo, somente assim, a conjuntura da poética musical se aprofunda

no âmbito do profundo.

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A unidade poética musical se dá na sagração consagrada onde ela é comemorada de

modo radical. A comemoração se sagra na consagração sagrada em que a música se concede.

“Poeticamente o homem habita esta terra”. Na comemoração em que se sagra a sagração

musical o homem se mede com o mistério em que a poética musical se resguarda. A música é

sagrada na medida em que suspende o homem de si mesmo trazendo-o para a verdade da

sonoridade musical como som e silêncio, para a verdade de si mesmo como músico e ouvinte

que pertencem originariamente a tal unidade. Pertencendo na escuta, ele não escuta apenas a

sonoridade das obras, escuta a si mesmo, escuta o saber e o pensar, o sentir, a experiência.

Desse modo, ele pode comemorar e celebrar a música como unidade. Ela, assim, lhe é sagrada

no mistério que o perpassa de modo que ele é apropriado radicalmente sem saber por quê.

Disposto pelo não saber próprio de si mesmo e do que o abriga de modo ambíguo, a música é

mistério. Diante do mistério resguardado originariamente no abismo de ambigüidade, o

homem celebra e comemora aquilo que lhe sustenta na medida em que é músico e ouvinte.

Assim sustentado, ele se mede com a unidade que o resguarda. Dessa maneira, ele pode

comemorar diante da morte que se lhe afigura como derradeira e inevitável. A morte, então,

se revela na medida em que a ele é permitido pertencer à própria morte como mortal.

Portanto, na vida do homem músico e ouvinte, enquanto mortal, ele se mede com a unidade

imortal que o sustenta, que o ultrapassa não como divindade, mas como sagrado na medida do

mistério ambíguo do qual ele faz parte na conjuntura do mundo musical. Tal mistério na sua

ambigüidade impele o homem a mais aprofundar-se no profundo que o resguarda. Tal

mistério convoca ao modo de uma exigência que, de modo imperante, se manifesta

violentamente. Na violência emergente o arrebatamento é inevitável. Arrebatado o homem se

entrega e, em tal entrega, se vê completo diante de sua incompletude. A comemoração

sagrada da sagração musical se manifesta arrebatando violentamente emergindo na

emergência radical. Somente aí o homem comemora e celebra poeticamente no âmbito da

música. Em tal é que a suspensão no mistério se revela originária.

Tudo o que foi dito a respeito da referência homem e música se dá na medida de sua

originariedade. Como hoje vivemos em uma época em que a dessacralização se dá na

promoção da verdade científica, muito se pode contestar a respeito do que se mostra aqui na

medida dos músicos e ouvintes. Na atualidade se mostram encobertas as referências em que

nos encontramos na disposição de questionar. No entanto, reafirmamos que nossa intenção se

encontra em pertencer originariamente à fala própria do ser que se dá como música em sua

unidade de co-pertinência radical e originária. Dessa maneira, o que foi tratado aparentemente

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de modo separado, somente se dá na medida da reunião, na medida em que como conjunto

apresenta a sua conjuntura.

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CAPÍTULO 4 – MÚSICA E ABISMO

A Dimensão Poética

Na Contemporaneidade onde rege vigente a técnica moderna podemos ver com clareza

a tentativa de suplantar o vigor poético em sua originariedade. O virtual encontra-se há muito

disseminado na dinâmica de encobrir o real em sua densidade. Tal inversão faz com que em

parte a força poética se mostre velada no esquecimento e se dê resguardada em si mesma. No

entanto, de modo algum isso quer dizer que tal vigor esteja posto em jogo, ou seja, a vigência

dela mesma, poética, enquanto é o que ela é, assim permanece em sua solidez. Portanto, deve

estar claro que não há aqui nenhuma preocupação ou pretensão de recolocar a poética em seu

devido lugar, pois que lá sempre permaneceu e permanece. Ela, na sua própria dimensão, já se

encontra em uma instância outra que, de maneira anterior, se dá enquanto vigor originário não

se abatendo de nenhum modo em sua identidade como unidade que reúne a multiplicidade por

ela abrigada. Desse modo, ela permite apenas que o encobrir do velamento a resguarde na

ambigüidade originária da verdade e da não verdade no abismo de simplicidade. A

simplicidade do abismo se dá na medida do absolutamente nada que permite todos os

desdobramentos enquanto dobras complexas que se revelam. Tal simplicidade, ao mesmo

tempo, originariamente se encontra na unidade da própria dimensão poética. Assim, atentos a

tradição em que nos encontramos abrigados, podemos fazer uma pequena tentativa de pensar

a dimensão poética como questão na dinâmica de escutar pertencendo atentamente a ela na

medida de sua fala.

Buscando a verdade poética em sua radicalidade, nada melhor do que partir do próprio

dizer poético em sua instância. Para tal escolhemos de Cecília Meireles o poema Motivo.

Pode-se questionar que o poema por nós escolhido não totaliza a instância do poético em si.

Quanto a isso ninguém pode negar, pois que nenhuma fala enquanto obra poética totaliza a

poética em sua unidade. No entanto, a partir de determinada escolha nossa tentativa se dá na

esperança de auscultar a poeticidade como palavra poética na medida de pertencermos

atentamente a sua fala. Nessa ausculta iremos em busca da verdade poética em sua revelação

pela proximidade do dizer em si, mesmo que ele traga, já na seleção em que se apresenta, a

exclusão de outros. O importante aqui é prestar atenção ao que deste dizer podemos ter em

relação ao poetar em si, de modo que não é por acaso que ele é assim escolhido. Coloquemo-

nos atenta e cuidadosamente diante da palavra poética que nos é trazida por Cecília Meireles.

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Os versos encontram-se numerados no intuito de facilitar a discussão pelo poema a nós

concedida.

Motivo

1) Eu canto porque o instante existe

2) e a minha vida está completa

3) Não sou alegre nem sou triste:

4) sou poeta

5) Irmão das coisas fugidias,

6) não sinto gozo nem tormento.

7) Atravesso noites e dias

8) no vento

9) Se desmorono ou se edifico,

10) se permaneço ou me desfaço,

11) - não sei, não sei. Não sei se fico

12) ou passo.

13) Sei que canto. E a canção é tudo.

14) Tem sangue eterno e asa ritmada.

15) E um dia sei que estarei mudo:

16) mais nada.

O poema em seu título se mostra como uma aparente relação causal de motivação

subjetiva. Já de início dizemos que esta é uma falsa aparência. Motivo no âmbito do poema

não pode em nenhuma hipótese se articular na dualidade causa e efeito. Ao contrário, ele fala

se dando como uma tentativa de adentrar no mistério próprio da realização poética. Esta,

como mistério, mostra-se ao mesmo tempo na disponibilidade e na retração do resguardo de si

mesma estando, assim, posta repousando como confronto no chamado em que se mostra.

Assim, o empreendimento do fazer poético necessita de coragem, de força para aceitar as

condições próprias que a dimensão poética traz. Por ela percebemos radicalmente que não é

tarefa fácil seguir na solidão dos criadores. Não há dúvidas de que tal solidão é um estar

suspenso disposto no favor do ser a confrontar-se consigo mesmo, na disposição do pensar, do

produzir de modo todo próprio. Essa suspensão no abismo de simplicidade nos abriga de

modo a nós ser concedido habitar a tensão originária em que irrompe um mundo. Um mundo

assim se apresenta sempre a partir das inter-relações que, como teia, perfaz perpassando cada

um de nós. A solidão, portanto, nunca é a de um só, mas uma solidão que necessariamente

reúne o outro, sendo esse outro tudo o que, como mundo, nos perpassa. Desse modo, a solidão

dos criadores no âmbito do poético já é necessariamente paradoxal. Paradoxal também,

porque ela também é solitária frente a outras criações que se articulam determinadas por

âmbitos distintos como, por exemplo, o da funcionalidade. De tal modo, a poética em sua

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radical condição por vezes mostra-se encoberta, se revelando na solidão das criações que por

ela passam permitindo vislumbrar, de modo próprio, a sua manifestação-retraimento. Por tal

desdobramento é que podemos dizer que Motivo, aqui, se dá na perspectiva da solidão

paradoxal do criador suspenso e lançado no abismo, de modo que ele se encontre na

convocação radical que o toma. Motivo se sustenta na medida em que o chamado conclama

bradando vigorosamente de modo imperativo. Motivo, assim, se dá onde o chamado fala e,

portanto, pertencendo ao chamado, escutamos na disposição de, suspensos no abismo,

correspondermos ao apelo poético em si mesmo. Somente no chamado ao qual pertencemos

originariamente se revela a possibilidade da plenitude da realização poética enquanto obra.

Esse chamado nos reúne na unidade originária onde obras e poetas desde sempre se

encontram: na dimensão poética.

O primeiro verso se diz em sonoridade como: “Eu canto porque o instante existe”. O

canto aparece nomeado. Nomeia-se onde traz reunido aquele que pelo canto pode cantar. Por

isso é que poeticamente está dito “eu canto”. O canto é na perspectiva da linguagem. O canto

fala. Pertencendo ao canto uma escuta atenta se mostra. O eu somente canta porque pertence

ao canto como fala originária. O canto assim reunindo concede aquele que pode cantar na

medida de uma nomeação. O canto nomeia o cantor que por ele pode cantar, que por ele se

articula na possibilidade radical de corresponder ao canto como manifestação de sua

sonoridade. O canto na perspectiva da linguagem é voz, é verbo, é fala originária e radical.

Congrega como sonoridade de si mesmo o que se canta pelo canto. A fala do canto

sonoramente se manifesta já resguardada, onde misteriosamente convoca como brotação. O

canto brota. Brotando revela-se na medida de suas possibilidades já resguardadas no abismo

de simplicidade. As possibilidades aqui se mostram como todo o movimento em que no canto

se faz de seu aparecer. Melodicamente155

o canto concede os caminhos de sua sonoridade.

Melodicamente seus caminhos encantam no chamado imperativo. O eu apenas se revela na

medida em que se dá apelado pelo canto recebendo-o como dádiva e, em tal dádiva, se

sustentando no próprio mistério do canto como sonoridade em acontecimento. Canto, assim, é

enquanto unidade a medida de todo cantar como acontecimento. Nos caminhos de tal

aparecimento, o encantamento acontece como melodiosa voz que fala cantando nas nuances

imensuráveis de aparecimento permitidas pelo abismo do ser e do não ser. Lá o canto

resguarda-se em sua verdade.

155

Melodia aqui refere-se a um caminho sonoro onde os sons de altura determinada articulam-se de modo

sucessivo.

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263

O verso continua quando fala de um “porque”. A partir do que se desdobrou em

discussão até o momento, o “porque” dito no poema não é condição da subjetividade de quem

canta. O “porque” mostra antes uma ligação originária. Canto e instante mostram-se reunidos

em uma unidade. O instante é a condição primordial de todo canto ao mesmo tempo em que o

canto, cantando, apresenta o instante em sua verdade. Ou seja, todo canto somente pode se dar

na condição em que o instante, no âmbito do tempo, o concede. No entanto, concedido pelo

tempo, o canto revela o instante concedido em outro âmbito. O “porque” liga um ao outro na

medida de uma interação de unidade onde, na verdade do poema, o canto é apresentado pelo

instante ao mesmo tempo em que o apresenta. No momento em que o canto se mostra, ele

revela o instante em sua radicalidade de modo que no encantamento de seus caminhos, o

instante se suspende. Em tal suspensão o instante em si mesmo é revelado diferença. Ao

mesmo tempo, o instante concede ao canto a possibilidade de mostrar-se, de modo que, no

tempo, o canto encanta no instante em que se dá como acontecer. Reunidos em uma unidade

ambos trazem-se como conceder. Na suspensão que o canto promove o instante vem a um

aparecimento de modo extra-ordinário. Na reunião de ambos um envia-se para o outro se

revelando em diferença, isso, ao mesmo tempo em que mantém reafirmadas suas identidades.

O canto como acontecimento é concedido no instante que temporalmente o mostra na sua

própria identidade, na sua própria época na conquista de si mesmo, de seu espaço. Não

podemos compreender o instante como apenas instantâneo, mas sim na unidade que o abriga

como tempo na subtração e retração no passado e no futuro juntamente com a

inapreensibilidade do presente. Assim, se dá enquanto unidade o instante que concede o

canto, mas um instante como unidade onde o canto concedido vem ao brilho misterioso de si

mesmo na magnitude de sua presença disponível na retração e subtração de si mesmo. Por

outro lado, o canto extra-ordinariamente delimita o instante como aquele que

memoravelmente se dá, como aquele que, de todo modo, se traz enquanto a unidade de si

mesmo. O canto em si é o que pode guardar no cuidado a unidade epocal do instante

revelando-o na unidade que por eles se faz. Aqui, o extra-ordinário se dá porque para nós se

encontra claro que o instante, enquanto possibilidade temporal, está na constituição do todo

que se dá como aquilo que é sendo, de modo que todos os entes são sempre sendo na pertença

ao ser e ao tempo. No entanto, o que aqui dizemos é que o canto enquanto acontecimento dá

ao instante uma existência completamente outra. Esta é a que originariamente revela o tempo

e o instante em si mesmos em sua verdade. Somente assim o que é usual pode se dar, somente

assim podemos perceber instantes momentâneos na atualidade na correria do cotidiano, como

paranóia da Pós-Modernidade. No conceder do instante como canto o instante mesmo já é

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revelado na sua densidade, na sua radical condição temporal como unidade. No canto a

densidade do instante deixa a linearidade e a sucessão dos vários que não se sustentam, para

se sustentar na densidade enquanto unidade que reúne já abrigada no abismo de simplicidade.

O abismo abriga todas as dobras e dobraduras do canto como máxima diferença. “Eu canto

porque o instante existe” diz de forma magnânima o tempo em sua radicalidade, trazendo na

diferença a verdade do canto frente ao tempo abrigados ambos no abismo. O tempo está em

sua radicalidade dado, pois que o instante em suspensão é unidade temporal completamente

fora da métrica cronológica. A arte necessariamente – assentada no sem fundo abismal do

nada – mostra-se no tempo enquanto sentido em sua relação ontológica, na sua referência

direta ao ser e não ser da unidade-multiplicidade do todo. O tempo do instante concedido pelo

canto nesse sentido é único. É, assim, em tal conceder que, enquanto unidade, ele se mostra a

despeito de qualquer outro. De modo que traz, na exclusão própria de sua envergadura, todos

os outros tempos como a reunião e a própria justificativa e referência a todos os outros

tempos, instantes, momentos. Desse modo, o instante concedido pelo canto é a possibilidade

de confrontar radicalmente o tempo em sua temporalidade como reunião da unidade de si

mesmo que articula o memorável, que traz o memorável como aquele que pode suportar o

instante suspenso enquanto unidade que, assim, também concede o canto essencial, o canto

radicalmente assentado no ambíguo mistério de si mesmo. O canto então se apresenta como o

momento mágico do acontecer poético, da dimensão poética se dando enquanto poetar, esta

revela-o na magia em que, como encantamento, ele pode assim encantar.

O poema prossegue dizendo no segundo verso: “e a minha vida está completa”. A

completude se mostra no efetivo mergulho no poetar. De modo que o poetar como

acontecimento somente se mostra no mergulho próprio que a atividade poética suscita. Pela

perspectiva por nós perseguida, aqui não podemos dizer que a vida em questão esteja posta na

medida da subjetividade narrativa do narrador enquanto persona determinada. Temos de

modo claro que a vida no poema ultrapassa qualquer individualidade de modo a reuni-la num

âmbito maior. Longe da realização pessoal, seja do autor, do narrador ou de uma personagem,

a vida aqui se mostra na medida em que é a vida do poeta. Se é que tal possibilidade, por nós

aventada, possa vir a ter consistência ou não, aqui já não é importante. Importa sim, a verdade

da completude da vida na medida em que o poeta se mostra poetando no mergulho suspenso

no instante que concede e é revelado em sua radicalidade pelo canto como o momento mágico

de todo poetar. A completude em sua verdade mostra a plenitude em que todo poeta somente

atinge enquanto se dá no acontecer do poetar. Assim, o poeta está pleno de si mesmo quando

se vê lançado na exigência do acontecer que o resguarda. Assim, o poema nos mostra toda

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realização artística que encanta como mágica, que encanta como o canto da sereia. O poema

nos concede o canto como um transe, um canto hipnótico, que chama para si o sentido do que

é sendo na revelação do que se manifesta. Somente nessa perspectiva é que a vida do poeta

pode estar completa, porque é completude enquanto vida no poetar. A completude se dá

enquanto o poetar do poeta abandona-se no tempo que concede como instante a possibilidade

do canto se dar na unidade de si mesmo. Tal instante concedido pelo canto em sua mágica

adquire tempo, revela tempo, o revela na densidade de si mesmo enquanto unidade retraída no

mistério do seu próprio aparecimento. A vida do poeta está completa, porque ele somente

pode ser assim nomeado na medida de uma convocação própria. Está completa quando o

poetar o reúne na dimensão poética dando-se na manifestação retraída e misteriosa de si

mesmo. Quando o poeta não se encontra no acontecimento do poetar, sua vida está vazia. Está

vazia de poesia, está vazia da dimensão que o nomeia e o sustenta, está vazia enquanto vida

de poeta. A plenitude somente se dá na densidade própria que encanta no encantamento

mágico de seu aparecimento misteriosamente abrigado no abismo. O estar vazio de poesia, é o

momento em que lhe dá a medida de poder, assim, consagrar e celebrar o que para ele é

sagrado em sua plenitude a partir da diferença. Dessa maneira, vazio, ele pode vislumbrar a

verdade poética na medida em que se lança na suspensão do sagrado enquanto mágica em

acontecimento.

No terceiro verso o poema nos concede seu dizer como: “Não sou alegre nem sou

triste:”. Alegria e tristeza são sentimentos que toda e qualquer pessoa experimenta e

experiencia no viver, no habitar o mundo. Sem dúvidas como quaisquer sentimentos não se

dão afastados de qualquer vivência e, conseqüentemente, de qualquer realização. No entanto,

tais se mostram na perspectiva da individualidade. Cada um individualmente se encontra de

modo próprio na disposição de estar alegre ou triste. Contudo, o aparecimento aqui de uma

recusa de alegria ou tristeza se dá não na negação própria de uma vivência no poetar do poeta,

mas sim em efetivamente atestar a não subjetividade enquanto individualidade. O eu que

canta no poema não é individual como já vimos. A vida que se encontra completa é a vida

daquele que canta como poeta. Isto se encontra bem marcado no próprio poema na medida em

que no final do verso em questão se encontra uma pontuação específica que entreabre um

dizer. Esta prepara o dito que resguarda todo o entendimento do terceiro verso. O quarto verso

após o dois pontos do terceiro diz: “sou poeta”. O poeta no poema é revelado em sua verdade

para além de qualquer experiência individual. Ele mostra-se na medida em que reúne na

unidade como poeta todo poeta na sua individualidade como condição. O poeta no poema

refere-se diretamente à dimensão poética que abriga todo poeta na sua multiplicidade. Assim,

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no poema ele é um que abriga a muitos. Vem ainda a corroborar com nosso pertencer ao

poema, como escuta, o modo da recusa dos sentimentos de alegria e tristeza proferidos. Tais

se dão como o abster-se da representação, no poetar do poeta, resguardado na dimensão

poética. A dimensão poética é assim apresentada pelo poema de modo a encontrar-se para

além da representação na medida em que mostra o acontecimento das obras poéticas no

encantamento de seu canto. Ainda no que se refere a tais sentimentos nomeados, podemos

dizer que fundamentalmente o poeta sabe da relação de unidade como o mesmo de sentir e

pensar. Ele sabe que tais são condições de quem é vivente ao modo do humano. No entanto, a

não condição de alegre ou triste simplesmente mostra que no poetar e na poesia alegria e

tristeza, ou outras emoções, não estão postas como essência para qualquer realização poética.

O canto que magicamente encanta no transe que arrasta convocando para si mesmo não

pressupõe, necessariamente, alegria ou tristeza. Ele encanta encantando, se quem por ele é

encantado na suspensão de seu chamado dá-se alegre ou triste, isso não diz respeito ao canto,

ao poetar e a dimensão poética. A obra poética está radicalmente para além da vivência

individual porque conquista sua dinâmica própria desde seu acontecer como obra. Isso o poeta

sabe bem, pois que, para se dar como poeta no poetar, somente irrompendo no mergulho

radical em que é reunido como poeta na dimensão que o abriga. Tal mergulho o põe de modo

próprio na proximidade com a dimensão poética. Ser poeta demanda um abandonar-se. Um

abandonar-se de si mesmo que se dá na suspensão do lançamento, no mergulho radical na sua

própria condição. Esta é completa referenciada no fazer próprio permitido pelo instante do

tempo sem tempo do abismo, no tempo que no canto revela-se tridimensionalmente156

retido e

retraído em si mesmo. A completude é no mergulho, portanto, ser poeta é nesse mergulho que

mergulha na raiz, na radicalidade de toda condição do poetar em si. Ser poeta se encontra para

além dos sentimentos da individualidade residindo no consumar-se próprio do acontecimento

que o resguarda. Não dizemos que individualmente o homem na condição de poeta abandone

a sua relação com o sentir. O que estamos dizendo é que se inaugura uma relação diferente no

habitar o poetar pelo abandono e mergulho radicais que estes impõem. Tais promovem um

despir-se do véu da subjetividade enquanto o poeta poetiza no poetar. Entrar no transe que o

poetar necessita já está para além desse véu. O transe o arrasta no encantamento do qual ele

mesmo faz parte, e o revela consigo mesmo de outro modo. O revela de modo a ver-se em si

mesmo como que num abandono de si que não perde a consciência. Em tal abandono ele

156

Para a noção de tridimensionalidade do tempo ver, neste trabalho, Capítulo 1, subtítulo Tempo.

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efetivamente redescobre-se num desprendimento de si mesmo na atração irresistível do poetar

que faz do poeta o que ele é.

No início da segunda estrofe prossegue o poema dizendo o quinto verso: “Irmão das

coisas fugidias,”. Irmão é um nome que chama a possibilidade de parentesco enquanto

proximidade. Irmão demonstra laços com os quais teremos até o fim da vida, pois até o fim

desta se é filho dos mesmos pais. O poeta enquanto aquele que poetiza no poetar é irmão do

que foge. Assim, o que foge enquanto fugidio e o próprio poeta têm a mesma origem. Tal

proximidade do que foge é o que necessariamente mostra a radical impossibilidade de

qualquer apreensão do que, de modo efetivo, fundamenta o poetar. Inclusive o próprio poeta

em si mesmo como condição e constituição encontra-se nesta dinâmica como concretude. A

proximidade com o que foge mostra o poeta na disposição de saber-se habitando as

profundezas do que se esconde no véu do abismo do nada. Ali ele é o que é suspenso e

abrigado no mistério que o recobre. Ao tentar encontrar o que sempre foge percebe-se na sua

maior dádiva: estar posto na disposição de perceber a fuga como condição do que

efetivamente foge e, assim, nessa condição se sustenta. Estar aberto na proximidade do

fugidio é justamente o vigor onde se encontra todo poeta reunido na dimensão poética. Assim,

ele encontra-se propriamente habitando no favor da ambigüidade do abismo. Por tal é que ser

poeta, ser cantor, ser músico, em suma, ser artista, é sempre encontrar-se na solidão do que

ambiguamente foge e conviver com o nada de sua própria existência. Tal nada é que ao

mesmo tempo permite como diferença ontológica a densidade de tudo o que é. No abismo de

simplicidade, como nada na permissão radical enquanto diferença do que se desdobra, ao

mesmo tempo co-habita o que é sendo no tempo como memorável que se dá à memória como

unidade. Assim, o nada nunca pode ser compreendido enquanto niilismo, mas sim como

participante do todo. Desse modo, o nada se dá na medida em que o real o traz como condição

para que as possibilidades do que é possam vir a ser. Vindo a ser, elas deixam o véu como

nada de modo que são sendo, mas sempre co-habitando com ele para serem efetivamente

aquilo que são. Ser poeta, assim, é perceber na plenitude de seu “descontentamento157

” o

caminhar fundando caminhos no sem fundo do abismo como permissão de todos os caminhos.

É perceber em tal plenitude o criar a partir do nada enquanto simplicidade. É perceber-se

como mortal suspenso no abismo e deparar-se na solidão de si mesmo diante da diferença, da

diferença enquanto o outro que compõe a totalidade do todo. Radicalmente solitário, suspenso

no abismo que se mostra em sua magnitude, o poeta então é irmão das coisas fugidias. Assim,

157

O termo aqui encontra-se no sentido em que Carneiro Leão em – “Filosofia como pintura escultura e música”

in 2000, Vol I, p. 40-43. – o emprega ao referir-se ao homem.

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ele mesmo foge de si de modo que é também mistério para si mesmo. Na proximidade da

ambigüidade do fundo sem fundo o artista tece seu canto criando nos interstícios do nada a

possibilidade de caminhar e instituir caminhos na fundação própria de si mesmo. Isso se faz

na medida em que ele é concedido na concessão que lhe permitem o ser e o não ser co-

habitando no mesmo. Assim, encontra-se na radical situação de estar na proximidade do que

originariamente se dá enquanto fuga podendo, desse modo, buscar o que pretende também na

plenitude descontente de si mesmo - posto que também é referenciado pelo um de todas as

multiplicidades que subjaz enquanto abismo que a tudo reúne. Assim, lhe é permitido dizer,

falar, mostrar, tecer e criar na colaboração com o que lhe é ofertado e concedido na disposição

do que se põe disposto ao confronto. Diante da produção própria da fÚsij que, medindo-se

com o nada, oferta-se como confronto enquanto verdade velada e revelada em si mesma, o

poeta pode co-laborar com ela e somente então poetar. Por tal ele é “irmão das coisas

fugidias”, porque filho da fÚsij como é, se dá no retraimento e medida de si mesmo frente a

densidade do que é diante do sem fundo abismal que a tudo resguarda como o véu do ser

enquanto nada de simplicidade.

O sexto verso traz-se como: “não sinto gozo nem tormento”. Na condição de irmão

das coisas fugidias, na plenitude de seu descontentamento por já poetar enquanto irmão do

que foge, não há gozo nem tormento, apenas a convocação irresistível ao qual como poeta não

pode negar. Sendo irmão do que é fugidio, de tal convocação não pode fugir, pois que,

abrigado nela, encontra-se enredado de modo tal na complexidade própria dos

desdobramentos da dimensão poética frente ao abismo, de modo a não ter como deles se

desvencilhar. Até o fim de sua vida permanecerá irmão do que foge. Essa condição que lhe é

ofertada se dá como uma comunhão que não se dissolve. Uma vez apreendido na dimensão

que o dimensiona apenas reverbera a fala irresistível como chamado do poetar em si mesmo.

Diante de tal revelação não há volta. Na medida em que o poeta se vê abrigado no âmbito do

poético, este o acompanhará para o resto da vida no resguardo de sua verdade. Nem gozo,

nem tormento abalam a relação que assim encontra-se selada. A aliança na qual ele, como

poeta, se encontra independe de qualquer tormento ou gozo que individualmente possa vir a

vivenciar. O poeta enquanto reunido na unidade que o resguarda está para além do tormento,

para além do gozo, pois como poeta é irmão do que foge e lá se encontra pleno de si mesmo.

O sétimo verso diz: “Atravesso noites e dias”. Atravessar noites e dias é em si um

percorrer que perpassa noites e dias na medida de uma unidade. Não importa se dia ou se

noite, como poeta perpassa tal vivência sabendo que noite e dia encontram-se na unidade de si

mesmos. Atravessa-os em uma condição bem determinada, que nos é concedida pelo dizer do

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oitavo verso: “no vento”. Esse atravessar percebe a unidade de dia e noite na

inapreensibilidade de ambos. Tal inapreensibilidade se encontra radicalmente posta como

disponibilidade temporal abrigada na tridimensionalidade inapreensível do tempo em si

mesmo velado no abismo de simplicidade. No vento o poeta perpassa atravessando

verticalmente noites e dias que lhe escapam como unidade temporal frente ao inapreensível. O

vento aqui mais uma vez nomeia o que foge. Assim, noites e dias são fugidios de si mesmos

sem deixar sua densidade e concretude próprias. A densidade e a concretude mostram-se mais

uma vez na condição de fugidio ao qual até o fim da vida encontra-se o poeta ligado numa

proximidade. Assim, é em tal ambigüidade que se dá a comemoração própria de todo poetar

pensante ao qual o poeta se encontra posto numa disponibilidade. É na ambigüidade radical e

fundamental de proximidade do fugidio no fundo sem fundo - no ser retraído e no tempo que

se mostra retido e subtraído na unidade que se dá - que, de modo próprio, pode o poeta

comemorar seu poetar pensante e encontrar-se na disposição do pensamento pelo que dá a

pensar já poetando. Assim, ele não se encontra na disposição de conseguir tal apreensão ou

palpabilidade do que é e se dá. Desse modo, ele não se vê na astúcia de um gozo ou na

frustração de um tormento de modo determinado. Tal se dá por efetivamente se perceber

também fugidio, portanto, não busca a expectativa de conseguir algo ou a frustração de não

conseguir na perspectiva da objetividade. Simplesmente sabe-se diante da radical

impossibilidade de apreensão do que foge e assim assume sua condição de guardar no cuidado

esta fuga até na constituição própria de si mesmo. É guardando com bastante cuidado, longe

da superficialidade e perto da riqueza da constituição e criação onde o próprio poetar se

sustenta, que o poeta comemora e consagra no profundo do abismo o sagrado do próprio

poetar em si. Por isso diz Heidegger que a arte é uma sagração158

. Assim, é que os poetas e

pensadores são vigias da linguagem pertencendo, ao mesmo tempo em que guardando

cuidadosamente, ao que se retrai como fonte da fala. Guardando o que retraidamente mostra-

se na verdade de si mesmo oculto na ambigüidade de sua própria densidade, de seu próprio

sentido. Tal sentido o é da unidade de ser e de tempo. Dessa maneira, o poeta encontra-se

diante da não verdade da verdade do que se envia destinadamente na multiplicidade das

diferenças. Tal não verdade é resguardada na unidade que, como referência, habita na radical

impossibilidade de se dar totalmente. Nesse envio o poeta escuta pertencendo como aquele

que efetivamente cuida na guarda e cuidado tal unidade na tensão das diferenças. Guardando

com todo zelo e cuidado a unidade da multiplicidade resguardada na fuga do abismo radical,

158

Heidegger, 2001g, p. 39

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lhe é concedida a possibilidade de, colaborando com o ser na unidade do tempo, criar

caminhos e entrever como que de relance o que efetivamente foge na medida em que

mergulha no poetar. Poetar é então resguardar no cuidado e zelo o que efetivamente foge no

mostrar-se próprio da atividade poética. A poética em si traz a possibilidade de consagrar na

sagração cuidadosa e zelosa o que se envia para tal guarda onde, resguardado em seu mistério,

o que foge pode dizer e mostrar a si mesmo na radical impossibilidade de apreensão em sua

totalidade. Mas, de todo modo, o que foge mostra-se na densidade que encanta como o canto

da seria e, encantando hipnoticamente, diz-se mais verdade enquanto não-verdade.

Acompanhar e aceitar a condição radical da fuga na medida em que dela encontra-se vizinho,

por ser vizinho até de si mesmo, é que o poeta pode guardar cuidadosamente o que foge na

densidade de seu aparecimento. Na convivência dessa tensão originária ele equilibra-se nos

caminhos possibilitados pelo próprio abismo na medida em que tece - na colaboração e

permissão do que a si mesmo se dispõe como disponível ao confronto como fÚsij medido

pelo nada - as obras que eclodem pela necessidade do que efetivamente é fugidio mostrando-

se na radical possibilidade de manifestação no resguardo de seu mistério.

O próximo verso, o de número nove, nos diz: “Se desmorono ou se edifico,”.

Desmoronar e edificar são opostos. No entanto, tal oposição é marcada de modo decisivo

como verdade na dimensão em que o poeta se sustenta. No poetar do poético desmoronar e

edificar se fazem enquanto unidade que diametralmente se opõe confrontando-se no acontecer

poético em si. Tal unidade faz parte do cotidiano do poeta na medida em que ele encontra-se

em colaboração com o ser que se dá resguardado na criação das obras poéticas. Desmoronar e

edificar fazem parte da dinâmica de produção das obras poéticas em si. Seja no aspecto da

criação de interpretações das obras, ou da efetiva criação das obras em si mesmas. Edificar e

desmoronar se encontram opostos em uma tênue linha que os separa. Na verdade, tal oposição

resguarda, na verdade, grande proximidade. O limite entre edificar e desmoronar uma obra

perpassa todo o processo de produção próprio da obra. Tal limite é em si ambíguo na medida

em que produzir uma obra é um constante medir-se no não limite que o abismo de

simplicidade revela como o excluído de toda exclusão. O abismo abriga o excluído de toda

exclusão como medida de toda a seleção. A simplicidade do abismo é o nada onde tudo se

afasta, abrigando todo afastamento. Assim, o poeta edifica desmoronando e desmorona

edificando. Nas tomadas de decisão que a ele são concedidas pela convocação que o toma, os

critérios de seleção para a reunião como edificação da obra poética sempre se dão a partir do

desmoronar. Na verdade, tais critérios sempre se dão trazendo para a realização o desmoronar

como o desfazer ou o abandonar determinados caminhos. Os caminhos abandonados é que lhe

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dão a medida dos caminhos que se farão como o edificar da obra em seu acontecer como obra.

Desse modo, é que o verso seguinte, o de número dez, mostra-se complementando a discussão

iniciada pelo verso precedente: “se permaneço ou me desfaço,”. Permanecer ou desfazer, eis o

mesmo como questão do edificar ou desmoronar. Diante da dualidade que perpassa a criação

poética em si a ambigüidade do fugidio permanece no auge de seu vigor. A ambigüidade é,

assim, a medida de permanecer ou não em um determinado desdobramento frente à

simplicidade do abismo. De modo que o abismo mostra-se ainda de modo mais vigoroso

quando se diz o verso onze: “-não sei, não sei. Não sei se fico,”. Nesse verso o não saber é

nomeado. Todo poeta em si encontra-se posto na disposição do não saber. Não saber para o

poeta é essencial para o poetar em que ele encontra-se lançado e suspenso em uma exigência.

Diante do que efetivamente foge o poeta não sabe. Não sabendo ele pode defrontar-se com a

medida de todo saber que ambiguamente se posta na dimensão poética enquanto um sem fim

de possibilidades de caminhos. No êxito ou não de sua colaboração na instituição de novos

caminhos no abismo do ser e não ser ele não sabe. Não sabe se permanece, não sabe se desfaz

abandonando um caminho para tomar outro sentido. Simplesmente, assim, mostra-se poeta na

insapiência que se sustenta à busca de um alento que lhe dê uma direção perante o que se lhe

afigura. Não sabendo, na disposição do não saber ele confronta-se com o que de qualquer

modo lhe sobrevém anteriormente. Esta é o ser na sua retração/aparecimento. Ele e seu véu

como o próprio nada dão a ambigüidade para que o poeta em si possa já não saber a partir de

algo que lhe é anterior. Assim, o não saber é também, junto com o próprio saber, condição

para que qualquer criação se dê. O não saber é então condição radical para que qualquer

saber possa vir a se constituir. No final do verso é nomeado o ficar, este é complementado

pelo verso de número doze que diz: “ou passo”. Torna-se patente que ficar ou passar mostram

mais uma vez a ambigüidade que o caminho do poetar necessita. Ficar ou passar mostram a

indecisão, não ao modo de uma indecisão comum a partir de coisas corriqueiras, mas uma

radical indecisão por estar diante da radical ambigüidade que, desse modo, mostra a própria

condição humana. Na poesia ficar ou passar faz ver também caminhos aos quais se abandona

na seleção de encaminhar outras possibilidades. Ficar ou passar se dão a partir de todo

excluído da exclusão. Todo artista assim o sabe de modo que passa por momentos em que

indecisamente deve tomar decisões, para que os caminhos pelos quais as obras que se

encaminham possam efetivamente vir ao desvelamento de sua verdade própria. Tal decisão

indecisa é uma necessidade do próprio poeta em si. Na verdade, essa ambigüidade o é de

qualquer criação. A diferença é que no poetar as criações não se dão sob a tutela de

interferências outras que não o seu próprio aparecimento enquanto unidade. Não saber aqui

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enquanto possibilidade mostra também o próprio poeta, na medida em que se encontra

suspenso diante do que radicalmente se dá retraído. É por isso que o não saber aparece como a

verdadeira sabedoria. Na espera de, auscultando atentamente num pertencer, poder

corresponder ao que se dá como verdade ambiguamente como não saber, encontra-se toda a

medida da sabedoria do poeta. Assim, o não saber como condição se dá de dois modos, ou

melhor, a partir do mesmo se manifesta em diferentes âmbitos no próprio poetar. Permanecer,

edificar, desmoronar, desfazer, todos marcam de modo indelével a ambigüidade do poetar por

se deparar radicalmente com o que é ambíguo. O não saber aqui é a comemoração da própria

sabedoria do poetar em si enquanto atividade artística. É diante de tal que todas as obras se

manifestam e vem à presença no encantamento hipnótico que arrasta para si a ausculta dos

que se dão ao modo de ser “todo ouvidos”. Arrastando assim para si, o poetar ambiguamente

se dá na riqueza de si mesmo enquanto comemora a sabedoria que mais se dá diante do não

saber.

O próximo verso como de número treze diz-se: “Sei que canto. E a canção é tudo”.

Após a experiência radical do não saber da ambigüidade revela-se o saber do poeta. O que lhe

é assim permitido saber é o canto que canta, ele sabe que canta, no entanto, permanece no não

saber o que é em si cantar. Apenas sabe que canta por encontrar-se acolhido na dimensão que

o resguarda. Sabe que no canto ele se faz poetando e essa é sem dúvida a única direção e

sentido que lhe permite poder trilhar a solidão do abismo que co-habita o real. Portanto, canta

no chamado que para além dele o traz como ele é. Desse modo, ele sabe que a canção é tudo.

É tudo na medida em que é um arrastar reunindo que fala. É tudo no saber que não sabe do

poeta de modo que para ser poeta a canção tem de ser tudo. Tudo na medida em que o lança

de modo radical na sua condição de poeta na dimensão que o abriga. Ela é tudo porque arrasta

ambiguamente na verdade como não verdade o real que se manifesta retraído. O real reunido

em si mesmo na unidade de sua multiplicidade somente irrompe para o poeta a medida em

que a canção como tudo o lança lhe permitindo assumir-se como o que ele é frente ao real que

o abriga. A fala cantante da canção como tudo mostra a reunião que ela mesma é, mostrando-

se no conceder de todo excluído da exclusão. Assim, a fala cantante da canção permite ao

poeta o alento necessário para que ele não se veja completamente perdido, para que veja como

que os seus empenhos e desempenhos - perante sua incompletude, e diante da fuga radical da

sua vida-morte – habitando na ambigüidade do abismo, mostrem-se resguardados.

O próximo verso, de número quatorze, nos concede a verdade da canção: “Tem sangue

eterno e asa ritmada”. “Sangue eterno” traz-se como dizer na medida em que fala nomeando

tempo e vigor. Eternidade como tempo é o modo temporal em que habita o divino. No

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273

entanto, essa não pode ser compreendida aqui na medida de um eterno presente sem início

nem fim, como uma linha temporal distinta de qualquer possibilidade de experiência. A

eternidade da canção é de outra ordem. O eterno, assim, mostra-se na permanência própria do

vigor e da força do canto enquanto possibilidade de constituição radical de realidade que

permanece diante de tudo que passa. Desse modo, é assim que podemos entender como a

dimensão poética concede o canto como obra na medida de uma permanência ambígua, posto

que repousa propriamente no transformar-se próprio a cada vez que se dá obrando como tal, a

cada vez que se dá cantando no poetar. Como eterna a canção é dita em sua verdade na

medida em que assume uma condição divina abrigada na dimensão poética. Ela aqui revela-se

sagrada se consagrando como sagração. Por tal a eternidade aqui nomeia o memorável. A

canção é eterna como memorável que se concede à memória. Somente em tal dinâmica ela

mostra-se como vigor eterno na medida em que “é conduzida à unidade159

”. O Sangue é

marca própria de vida, mostra de modo próprio o vigor. É por isso que a expressão “tem

sangue correndo nas veias” marca a vigorosidade da vida, daquele que é vivo e assim mostra-

se. A canção é em si viva de modo que sua vida é eterna. Seu vigor eterno permanece em sua

solidez repousando no pouso de si mesma abrigada na dinâmica da dimensão poética que lhe

resguarda. O vigor eterno assim caminha pelos caminhos que o abismo de simplicidade

permite. Seus desdobramentos enquanto caminhos melódicos que arrastam hipnoticamente

levam todo poeta a transitar suspenso no abismo. O vigor eterno como canção é dito ainda na

medida em que tem “asa ritmada”. Asa normalmente dá a condição do vôo. No entanto, este

não pode ser compreendido aqui na medida do deslocamento. A canção que tem “asa ritmada”

mostra o verdadeiro vôo e a possibilidade de voar.

O canto que tem sangue eterno mostra-se também com a “asa ritmada”. Asas somente

têm aqueles que voam, asas são a possibilidade de alçar e alcançar o vôo. Voar se pode dizer

de pássaros que cruzam os ares e de modo distinto também se pode dizer das máquinas que

são capazes de vôo. Mas o canto na medida em que tem no dizer poetante “asa ritmada” não

se diz assim na mesma capacidade de vôo, porque tal apenas se dá como condição de

deslocamento. O “sangue eterno” e “asa ritmada” do canto enquanto poetar é muito mais do

que qualquer deslocamento pelos ares. Na verdade é o verdadeiro vôo e a possibilidade de

voar. Mostra a canção nos caminhos que por ela são encaminhados na medida de seu

movimento, na medida de sua dinâmica entregue à dimensão poética de modo que convoca

arrastando a todos para o seu brilho de encantamento que repousa no abismo de simplicidade.

159

Ver Capítulo 3 nota nº 97.

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274

Os vôos são rítmicos, se dão na ritmicidade própria em que a canção se nos concede. Na

dimensão poética o ritmo é condição fundamental para que qualquer acontecer na medida do

poético se dê. Nas poesias ele é nomeado, na dança, na música, na pintura, na escultura, nas

obras de literatura e dramaturgia, nas artes cênicas, todas revelam ritmo. Sem dúvidas que ele

é assim concedido na especificidade do mostrar-se próprio de cada forma de arte, de modo

que o dizer poetante do poema nos apresenta o ritmo no vôo de qualquer fazer e realização

poética. A dimensão poética nos entrega o ritmo em sua verdade. O poema em questão mostra

o ritmo do seu próprio acontecer. Todo ritmo compreendido na perspectiva usual e cotidiana

tem sua originariedade no poético. Ele está de modo próprio na profundidade que

ontologicamente encontra-se resguardada na ambigüidade fundamental do abismo do ser e do

não ser. Assim ele se apresenta como sentido. No âmbito do poético mostra-se tempo, bem

como inegavelmente memória. Portanto, o ritmo é revelado na unidade concedida como

tempo, memória e ritmo apresentado poeticamente. Tal unidade no poético demonstra uma

linha tênue entre os que são nela nomeados. Diante do poema em questão podemos nos

deparar com sua ritmicidade. Seu ritmo está no dizer do todo, onde em cada estrofe, em cada

verso revelando-se em sonoridade nos traz suas palavras na medida em que elas se revelam

conclamando e convocando o sentido próprio que é com elas. No todo do poema, cada estrofe

tem sua sonoridade própria, cada verso mostra-se em si mesmo no âmbito de seu ritmo. As

estrofes em sua unidade revelando os versos trazem na diferença o confronto próprio onde o

embate fundamental se apresenta. Cada palavra colocada no seu lugar confrontando todas

outras mostram na diferença a radicalidade de sua afirmação como identidade. Esse

movimento do combate originário promovido pela unidade como identidade e diferença,

revela-se como as nuances próprias de si mesmo. Tal combate abriga ao mesmo tempo em

que é abrigado na verdade do tempo, da memória e do ritmo na obra poética. Portanto, a

unidade que congrega ritmicamente o ritmo da obra é a própria obra no seu apresentar na

medida do combate originário que a forma como desdobramento resguardado no abismo de

simplicidade. Assim, as línguas e os discursos são revelados na medida de sua ritmicidade

próprias. Porque a obra poética abrigada na unidade da dimensão que a resguarda revela toda

a originariedade das línguas e dos discursos em seu ritmo. A obra é ritmo na medida de si

mesma como combate originário. Ela é ritmo no movimento próprio de seu acontecer como

manifestação retraída em si mesma. No âmbito do seu próprio desdobramento como diferença

frente a tudo o que é não ela a obra reafirma-se concedendo seu próprio ritmo como a marca

inequívoca de seu acontecimento. No seu acontecimento ela opera como a si mesma saindo a

cada vez do véu que a dissimula trazendo assim seu tempo e sua ritmicidade como

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memorável. Desse modo, ela, como obra, guarda-se na sua unidade resguardada na dimensão

poética frente ao abismo. Revelando-se memorável o poema traz o tempo de si mesmo

consigo medindo-se com a própria temporalidade do tempo que se dá na relação com tudo o

que é sendo sempre temporalmente. O ritmo posto como poema na obra é enquanto dito frente

a todos os outros ditos e inauditos, é ritmo frente ao que abriga toda possibilidade de que um

ritmo possa se dar. Portanto, ele é mais ritmo na medida de seu aparecimento, como obra,

resguardado no abismo enquanto diferença radical. Assim, o poetar da obra sagra-se na

comemoração de si mesmo acolhido na unidade da dimensão que o abriga poetizando a

verdade na permissão do abismo.

O verso quinze soa: “E um dia sei que estarei mudo:”. Ele aparentemente aqui nomeia

o inevitável emudecer do poeta na medida em que todo poeta se encontra no âmbito da morte.

A morte aparece como o que concerne em uma suspensão todo poeta na medida do vivo

resguardado em sua condição na dimensão poética. Ela, sem dúvidas, faz qualquer poeta

enquanto mortal que é calar-se. No entanto, a mudez do poema é mais profunda. O poeta,

posto na disposição do não saber, sabe que a despeito da morte o poetar permanece, posto que

é eterno em seu vigor, em seu “sangue”. Portanto, o emudecer enquanto poetar atravessa a

morte rompendo os limites impostos pela vida-morte na medida em que transpõe

temporalmente sendo na inconstância de si mesmo, de modo que o poetar enquanto repousa já

se encontra em transformação. Mais importante e que vem a demonstrar de modo inequívoco

tal requisito é que o verso traz uma condição fundamental que, a exemplo do terceiro verso na

primeira estrofe, também entreabre um dizer: “mais nada.” A mudez do poeta aqui revela-se

na profundidade própria. Ele somente encontra-se efetivamente mudo, na condição de poeta,

diante do que pode calar cortando a palavra, “emudecendo toda a dicção do é”. O poetar na

ambigüidade abismal de simplicidade emudece. No entanto, no emudecer próprio abrigado no

abismo se diz mais enquanto poetar. Na profundidade ambígua do abismo de simplicidade é

que qualquer palavra se emudece, pois ali é que a essência de qualquer palavra reside na

potência de medir-se. Ou melhor, é na imensidão posta do abismo que é a medida da própria

fÚsij, enquanto ela dá e concede aquilo que é e como é, que qualquer palavra emudece, não

porque ali as palavras se encontram mudas, mas porque essencialmente não há palavra que

seja, pois não há o que seja para que possa mostrar-se na profundidade da palavra enquanto

verdade própria de si mesma. A mudez então radica no próprio abismo. É uma mudez que

nem assim deveria ser chamada, pois somente é mudo aquele que se mede com a

possibilidade de fala. No entanto, o abismo ao mesmo tempo em que é radicalmente a

ausência total da fala por “cortar qualquer palavra” é também a possibilidade de que qualquer

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mostrar e, portanto, de que qualquer palavra possa dar-se como tal. Assim, podemos

referendar a própria mudez como mais muda diante da profundidade do profundo, diante do

radicalmente ambíguo que se dá como possibilidade das possibilidades, que dá-se como a

medida de todas as possibilidades e de todos os acontecimentos, de todo tempo e de toda

memória bem como de todo ritmo, e de tudo o que é sendo na guarda própria de sua verdade

enquanto vela originariamente ser e tempo. Qualquer mudez resguarda-se no abismo como

condição fundamental de sua própria constituição. No poema nomeia-se o nada. Ele enquanto

abismo de simplicidade resguarda permitindo todo dito e inaudito como diferença radical.

Assim, os últimos versos dão a condição para que todo poema se estabeleça e se constitua

como aquilo que é. São eles que mostram o vigor próprio em que a ambigüidade sustenta o

poetar em si mesmo lançado e jogado no abismo. Os últimos versos trazem a rítmica final

como forma para amarrar toda a teia entrelaçada que perfaz o poema enquanto aquilo que é o

que ele é sendo, operando enquanto verdade que dinamicamente se mostra no velamento de

sua presença. Um motivo aqui encontra-se resguardado no âmbito da ambigüidade radical

onde se velam ser e não ser. Poeticamente o abismo é trazido à fala como o que permite todos

os desdobramentos da dimensão poética em sua verdade. De modo que, ontologicamente, o

poético dimensiona-se no abismo, ao mesmo tempo em que o abismo pode vir assim a falar.

Poeticamente o que “corta toda a dicção do é” concede-se na verdade poética. Apenas

poeticamente o abismo, em que todo poeta se encontra já lançado e suspenso, pode dar conta

de si mesmo. A poesia pensante de Cecília Meireles nos revela o nada em sua própria medida,

qual seja: a de permitir, velando ser e tempo originariamente, todos os desdobramentos como

abismo de simplicidade. Tudo o que se dá aqui enquanto pensamento poético é sustentado

pela revelação que o poema nos concede. Assim, a poética pensante revigora-se, encontra a

renovação que a sustenta como eterna na ambigüidade em que pousa já repousando em sua

dinâmica. A canção, assim, convoca todo poeta a reafirmar-se na suspensão própria na

medida em que cantando revela-se como verdade. Poeticamente toda fala pode reafirmar-se,

pois que aquilo que resguarda toda fala como abismo de simplicidade pode falar. Na medida

em que faz falar o que corta toda dicção do é, a dimensão poética é originária e ontológica.

Pois que a unidade de ser e tempo mesmo pode transpor o véu em que se encontra fazendo-se

falar, fazendo-se soar em verdade como não verdade na ambigüidade em que a própria

dimensão se dimensiona.

A poética pensante de Cecília Meireles nos concede muito que pensar. Reúne em seu

dizer originário a unidade em que a dimensão poética se mostra na co-pertinência radical com

o abismo de simplicidade. No entanto, ainda nos concedemos algum questionamento onde a

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riqueza inesgotável da poética nos impulsiona a insistir, errantes na errância, em

possibilidades de poetar pensando. Nas discussões permitidas e concedidas pelo poema nos

referimos de forma repetitiva à dimensão poética. Sem, contudo, a questionarmos, de outra

maneira, em si mesma. Portanto, se afigura a questão: o que se mostra como dimensão

poética?

Devemos iniciar as investigações de modo a estarmos atentos as palavras como

florescer, na medida em que Hölderlin nos fornece “palavras como flores160

”. Nesse caso, nos

colocamos na disposição de questionar a dimensão de modo que ela possa nos conceder sua

verdade. Aqui não nos servem os sentidos restritos em que a medida, palavra que lhe dá

origem, usualmente se mostra161

. Buscando-a a partir de uma profundidade maior, outros

caminhos surgem para que possamos compreender a medida: uma dessas possibilidades se dá

a partir da raiz indo-européia *me- donde provém o grego métron que, segundo o dicionário

de Bailly162

, diz ser, entre outras coisas: medida no sentido de ser um bastão para medir, ou

instrumento de medida, ou ainda justa medida. De modo diferente, a obra de Liddell &

Scott163

diz que a proveniência de métron vêm da raiz indo-européia *med-. Esta, para Émile

Benveniste164

, tem o sentido de uma atitude a ser tomada para se restabelecer a ordem em uma

situação conturbada. No entanto, o “Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch” de

Pokorny diz que *méd- traz o sentido de medida também como cura, que dá origem ao latim

medeor com o sentido de cuidar, tratar, medicar, remediar. De maneira distinta, Benveniste

nos diz que medeor, a partir de *méd-, não é propriamente curar, mas “tratar uma doença

segundo as regras165

”. Desse modo, *med-, segundo Benveniste, é concernente ao “papel do

magistrado supremo”, que “é o de mostrar a „medida‟ que se impõe em tal ou qual litígio166

”.

Portanto, medida, para este último, é a aplicação da justa medida no intuito do

estabelecimento da ordem segundo as regras.

Por entendermos que os caminhos apontados não se mostram suficientes para o que

pretendemos, devemos optar por outra via. Por isso, solicitamos mais uma vez “o obscuro”

Heráclito na tentativa de algum auxílio. O fragmento em questão agora é o de número 30, de

modo que nele diz o pensador: “O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum

160

Hölderlin, apud Heidegger, 2003, p. 163. 161

Tais sentidos se apresentam como extensão mensurável, ou quaisquer outros relacionados à medida no âmbito

de uma comparação no estabelecimento de uma unidade de referência. 162

Bailly, A. p. 1270. 163

Liddell e Scott, p. 1123. 164

Benveniste, 1995, Vol. II cap. IV, mais especificamente na p.131. 165

Idem, p. 131. 166

Idem, p. 132.

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dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e

segundo a medida apagando167

”.

Aqui, o fragmento se apresenta nos concedendo, também, a medida como questão. O

kósmos, o mundo, no fragmento é dito como o “fogo sempre vivo”. Tal expressão se mostra

como a tradução da palavra grega aeízoon. Esse “fogo sempre vivo”, eterno, não foi

produzido (tradução da palavra grega epoíesen) nem por deuses e nem por homens. É o que é

como fogo eterno, fogo sempre vivo. Este se mostra acendendo e apagando, segundo a

medida. Temos, então, um paradoxo: como o fogo que é sempre vivo, eterno, pode acender e

apagar segundo a medida?

Inicialmente devemos ter em atenção é que o “fogo sempre vivo” não pode ser

compreendido, nesta instância, meramente como a chama usual. Esta última, necessariamente

sendo o que é, se mostra na possibilidade de acender e apagar. De modo distinto, podemos

entender o acender e apagar do “fogo sempre vivo” como uma possibilidade de sua

manifestação. O kósmos, o mundo, é “fogo sempre vivo”. Portanto, acender e apagar se

mostram como uma possibilidade própria do mundo vivo, de modo que ele é compreendido

como o que se manifesta por si. Tal manifestar-se por si como força do “fogo sempre vivo”,

do mundo vivo, guarda grande proximidade com a palavra que diz Heráclito no fragmento

123: fÚsij krÚptesqai file‹. A fÚsij anteriormente já se discutiu como o surgimento

misterioso por si mesmo, que não necessita de outro para se dar. É o surgir que se basta e que,

como surgimento, já tende ao encobrimento. Ou seja, é próprio ao surgimento o

encobrimento. É próprio na medida de algo que tão fortemente se encontra arraigado que, de

outro, não haveria a possibilidade de haver surgimento tão pouco encobrimento, tal a relação

de proximidade e, ao mesmo tempo, a copertinência da diferença de ambos.

Retomando o sentido de aeízoon, “o fogo sempre vivo”, percebemos facilmente que

este provém de zóon (vivo, todo ser vivo). Não nos traz grandes dificuldades a percepção de

que este último se origina de zw» (vida). De modo que, já discutimos a proximidade da zw»

com a fÚsij168

, se torna fácil compreendermos a zw» na medida da fÚsij com seu vigor de

brotar por si, nascer por si. Assim, a vida como zw» no âmbito da fÚsij é a manifestação

própria que brota por si surgindo ao mesmo tempo em que se encobre.

Sem problemas, podemos relacionar, por analogia, o surgimento e o encobrimento, do

fragmento 123, ao acender e apagar, do fragmento 30. Mesmo não havendo ligação

167

Dentre as várias traduções disponíveis optamos como acontece ao longo de todo o trabalho pela tradução do

Professor Emanuel Carneiro Leão in Col. Pensamento Humano, Os Pensadores Originários. Vozes, 1999, p. 67. 168

Discussão empreendida no Capítulo 2, subitem O lÒgoj do homem?

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etimológica entre fÚsij e krÚptesqai a apto (acender) e aposbénnimi (apagar). Assim, o

“fogo sempre vivo” - o fogo eterno que é o mundo, enquanto o conjunto de totalidade que

congrega todas as relações na reunião harmônica das tensões - acende e apaga, se descobre e

encobre segundo a medida. O que é então a medida para que o encobrimento e o

descobrimento da zw», em última instância da fÚsij se dêem segundo ela?

Outra palavra grega que congrega perfeitamente os sentidos de encobrimento e

descobrimento é ¢lhqe…a. Esta, na tradução mais apressada, diz verdade. No entanto, como

discutida anteriormente169

, o sentido da ¢lhqe…a está diretamente relacionada a manifestação

do que se apresenta ao mesmo tempo em que se retrai, ou seja, que se encontra e mostra

verdade enquanto não verdade. Ela é a verdade do que se revela já velado no abismo do ser e

do não ser. Portanto, é a verdade da fÚsij, da revelação auto-velante170

. O vigor da fÚsij se

traz em sua verdade nesse aparecimento-retraimento, nesse acender e apagar do “fogo sempre

vivo” segundo a medida. Ou melhor, tal vigor, enquanto manifestação que se oculta, é

verdade propriamente por si, como acontecimento. A medida, então, é revelada, no modo

como nos concede Heráclito, como a verdade de manifestação-ocultamento da fÚsij. A

medida nesse sentido é ¢lhqe…a.

Aqui caberia uma objeção, em termos etimológicos, ao modo como procuramos

relacionar medida à verdade. No fragmento de Heráclito, medida se encontra como métron e,

segundo a investigação etimológica empreendida, esta seria a ordem a ser estabelecida, no

sentido de uma regra a ser seguida. No entanto, retrucamos que se há uma ordem no

fragmento de Heráclito esta é a da própria fÚsij. Portanto, tal ordem não pode ser confundida

com uma regra instituída num âmbito humano. De todo modo, sabemos que toda

possibilidade de estabelecimento de mundo se abriga e se sustenta na fÚsij. No entanto,

sabemos também, ao mesmo tempo, que a mesma não é esse mundo de modo a totalizá-lo.

Portanto, a fÚsij como tal é a medida de si mesma e é verdade enquanto manifestação-

ocultamento de si mesma enquanto ¢lhqe…a. Assim, a ordem já é trazida a despeito de

qualquer interferência outra que não a da própria fÚsij em sua ¢lhqe…a. Desse modo, se

torna importante ressaltar que ordem, aqui, não pode ser compreendida no sentido usual.

A partir do encaminhamento proposto, outra perspectiva se abre para que a dimensão

poética possa ser dita. O que tem dimensão em termos de medida o tem como verdade no

sentido de ¢lhqe…a. A dimensão poética é dimensão na medida em que é verdade poética se

169

Discussão empreendida no Capítulo 1, subitem O ser e a verdade. 170

Expressão empregada pelo professor Ronaldes de Melo Souza em diversos cursos ministrados no Programa

de Pós-Graduação em Letras da UFRJ.

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instituindo e constituindo. Então a medida própria de seu aparecimento como dimensão

poética é sempre de modo que ela mesma, poética, se articula em sua manifestação enquanto

instituição da verdade que ela mesma é. A dimensão poética é medida como sua própria

verdade de manifestação-ocultamento. Aí reside a grandeza da poética que se traz velada na

simplicidade do abismo do ser e do não-ser numa co-pertença originária. Com isso, sempre se

mostra questão inesgotável confrontando a poética pensante de maneira inexorável.

Sendo assim, a dimensão poética é dada pela instituição própria da poética em seu

sentido mais amplo. A primeira não pode ser entendida como o âmbito onde se dá e se

manifesta a poética de maneira em separado. Não podemos compreender dimensão como o

lugar, o espaço onde a poética se encontra com mais propriedade. Assim posto, incorreríamos

em concordar que talvez exista algo estanque onde se manifeste o vigor da poética. No

entanto, a medida da poética, em sua força de manifestação, é dada em seu aparecimento

próprio que se vela e re-vela na verdade em unidade originária com o abismo de simplicidade.

Essa medida é verdade na medida em que institui e constitui sentido poético. Sendo tal

medida e lugar instituídos e constituídos na manifestação que ela mesma é. Na verdade,

medida e lugar o são na dimensão poética porque propriamente o são também a dimensão

poética. A dimensão enquanto medida nasce com, é o acontecer da própria poética. A

dimensão poética é trazida pelo vigor poético de tal forma, que não há dimensão poética sem

poética e o contrário da mesma maneira: elas são o mesmo.

Neste momento percebemos que a poética parece ter sido dada como algo já sabido,

livre de questionamento, posto que a investigação empreendida se concentrou em outro foco.

O que queremos dizer, então, quando pronunciamos o sentido mais amplo da poética? O

intuito agora é procurar nos entendermos com a poética a partir dela mesma, de modo a ser

prudente uma investigação que busque algum esclarecimento sobre essa questão inesgotável.

O sentido semântico moderno mostra apenas a sua relação com a poesia como forma

de arte específica. Os dicionários de filosofia exploram especificamente os aspectos

representativos no que se refere ao poético, seja como imitação, seja como funcionalidade.

Portanto, mais uma vez devemos buscar de modo mais profundo a palavra na esperança de

que algo possa ser revelado. Nossa intenção é nos aprofundarmos no sem fundo abismal do

nada à procura de um alento que indique uma possibilidade de caminho.

Poética provém da palavra grega po…hsij. Po…hsij é a ação de fazer, criação,

produção, sendo oriundo do verbo poiéo basicamente com o sentido de: fazer, fabricar,

produzir. Por sua vez, este é proveniente do indo-europeu *poi-#-Òj que diz do: construtor,

produtor. Tal verbo é também proveniente do sânscrito cinóti que nos fala como o: arranjar

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em ordem, pôr em ordem, construir. Sem dúvida percebemos que a palavra quer, em seu

sentido primevo, dizer da produção, da criação, do fabricar. Sendo assim, selecionamos

arranjar, produzir, pôr em ordem, bem como, construir, como os sentidos que devem ser

aprofundados para a compreensão da po…hsij.

Segundo o Dicionário Morfológico da Língua Portuguesa171

, arranjar é da mesma

família que a palavra portuguesa renga que diz: fileira, alinhamento. Esta vem do francês

hring (círculo), do alemão Ring (anel), bem como do antigo alto alemão hari (armada,

exército) e hringa (círculo, que dará em assembléia). Percebe-se um sentido claro de reunião,

seja na ordenação do alinhamento, ou na ordenação com o sentido de circularidade, ou, ainda,

na aspereza do grupo bélico. Arranjar, assim, pode ser dito na reunião que estabelece uma

forma a partir da diversidade.

Produzir, por sua vez, é proveniente do latim ducere que diz: levar, conduzir. Vindo,

este, do indo-europeu *deuk que diz: liderar (segundo Back, Massing e Heckler), e arrastar,

puxar (segundo Pokorny). A palavra é formada ainda pela preposição pro- que diz,

basicamente: diante, adiante de, em frente a. Nesse sentido, podemos dizer que produzir seja o

arrastar conduzindo para a frente de. Esse 'a frente de', entendemos como o se colocar

disponível para o confronto, a partir da unidade de presença-ausência em que algo se

manifesta sendo. Portanto, é a possibilidade de trazer aquilo que advém como produção para a

manifestação-ocultamento. Assim, produzir é fazer vir a presença-ausência na manifestação

pela condução que arrasta para vir. Produção, desse modo, pressupõe a ação de uma força,

que arrasta conduzindo para a manifestação-ocultamento, à qual não se pode furtar.

Tomando a expressão pôr em ordem, o primeiro passo se torna investigar o sentido de

ordem. Esta se mostra proveniente do latim ordo, ordiri que diz: fileira, alinhamento, ordem;

mas também, o tecer no sentido de colocar os fios em ordem, urdir, fazer uma trama. O latim

se mostra relacionado ainda com o gaulês urdd que é tecer os fios. Com certa clareza

percebemos que o sentido de ordem se encontra ligado ao organizar pelo entrelaçamento dos

fios. Pôr em ordem, então, é se colocar na realização do tecer, de fazer o tecer dos fios em um

entrelaçamento que reúne, na medida em que os fios se tocam nesse entrelaçamento

conformando um tecido. Tal tecido se mostra como uma unidade que se estabelece pela

diversidade dos vários fios que se entrelaçam. Assim, o tecer é sempre um estar realizando

que estrutura unidade na sua realização. Tal realização, enquanto produção do tecido, sempre

se dá a partir do sem-fundo abismal do ser e do não ser, do sem-fundo abismal do nada na

171

Heckler, Back e Massing, 1984, p.3544-3545.

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simplicidade que permite todos os desdobramentos. Cria-se a partir do nada172

, de maneira

que o tecer dos fios se dá ambiguamente constituído. Desse jeito, o tecido é sempre

constituído de modo a que pontos se encontrem, no entanto, estes se dão ao mesmo tempo em

que vários espaços vazios compõem o próprio tecido como possibilidade de sua realização.

No entanto, o pôr em ordem não se resume no realizado. O pôr em ordem é o estar na

disposição e na realização do tecer, é se colocar nessa disposição de modo que uma nova

realidade antes velada passe a ser revelada a partir do véu da manifestação.

Não há dúvidas de que outro sentido para ordem pode ser dado, como vimos

anteriormente. Segundo Benveniste o conceito de ordem é

(...) uma das noções cardeais do universo jurídico, e também religioso e moral dos

indo-europeus: é a ordem que governa tanto a disposição do universo, o movimento

dos astros, a periodicidade das estações e dos anos, quanto as relações dos homens e

dos deuses, e dos homens entre eles. Nada do que se refere ao homem, ao mundo,

escapa ao império da „Ordem173

.

A partir do dito acima, percebemos ordem como um conceito geral que se refere a

todas as relações da fÚsij e da constituição do mundo sustentado por esta. Benveniste

apresenta tal conceito como de estrema importância na constituição dos indo-europeus. Nesse

sentido, ordem se refere originariamente a fÚsij enquanto força constituidora que a tudo

abriga, inclusive o mundo que irrompe a partir dela. Assim, tal sentido é diferente do que o

mesmo autor nos trouxe enquanto ordem a partir de medeor. De modo que, este último, se

referia mais especificamente à regra enquanto um estabelecimento do âmbito humano.

A última das estruturas a ser trabalhada, para se procurar certo esclarecimento do que

venha a ser a po…hsij, vem a ser o construir. Este vem do latim constrùo que diz: amontoar,

acumular, empilhar, levantar, construir, edificar. Tal palavra provém do verbo latino strùo

dizendo este: dispor em pilhas, empilhar, reunir, ajuntar, amontoar, criar, construir, erguer.

Desse modo, não há duvidas que construir mantém seu sentido semântico praticamente

relacionado ao ato de reunir empilhando, amontoando, erguendo. Portanto, o construir se

refere ao reunir que amontoa, empilha, edifica. Assim, traz algo à realidade de maneira

distinta, de modo que antes não estava presente. Tal movimento de não presença a presença

mostra que, assim, se faz necessária a atuação do homem na medida de uma colaboração.

172

Sem dúvidas que tal nada não é e nem pode se considerar um niilismo como a não existência das coisas, mas

sim como algo que margeia a criação de modo a confrontar o que propriamente pode ser enquanto criado,

enquanto manifesta-se na presença-ausência de si mesmo. Conferir no Capítulo 1, subtítulo Nada; bem como no

Capítulo 3os subtítulos Criação e Homem e nada. 173

Op, cit. Vol. II p.102.

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283

A partir da pequena investigação realizada podemos dizer que a po…hsij se mostra

como uma força que conduz arrastando. Assim arrastando, reúne diversidades estabelecendo e

instituindo forma. Tal forma se mostra unidade que se dá no entrelaçamento do tecido

edificado e posto. Nessa postura, ele se encontra manifesto e retraído por ser permitido pela

simplicidade do sem-fundo abismal do ser e do não ser. Nesse sentido, a po…hsij é reunião, é

postura, é instituição e constituição que instaura e institui realidade e realizações como real.

Podemos apontar dois caminhos para a discussão da po…hsij: primeiro, como força da

fÚsij que, enquanto vigor, se manifesta por si mesma bastando-se e não recorrendo a nada

nem a ninguém que não ao seu próprio vigor. De modo que, assim, faz eclodir aquilo que por

ela se ergue e se mostra disponível ao confronto. A outra possibilidade se dá a partir de uma

interação de forças onde o homem, que é também fundamentalmente fÚsij, e a fÚsij, a

partir dela e com ela na sua permissão, fazem aparecer outra possibilidade de constituição da

realidade abrigada no real. A segunda possibilidade nos mostra a constituição e instituição de

mundo pelo habitar histórico do homem na terra que o abriga e sustenta constitutivamente.

Não há dúvidas de que a fÚsij, enquanto originariedade que é, se encontra nos dois

caminhos. No entanto, seria por demais ingênuo não atentar para a diferença entre ambos os

modos de compreensão. O segundo sentido se encontra muito mais próximo do que se

entende hoje por poética. O caminho que percorreu a po…hsij para estar mais próxima do

sentido da arte é apontado por Liddell e Scott174

dizendo este que, a partir de Homero, a

po…hsij passou a estar mais próxima do fazer artístico e da arte. Sendo assim, considerando a

história do Ocidente em sua verdade, podemos sem nenhum equívoco dizer que a arte está na

dimensão poética. Ela está na medida da verdade instituída pela poética, porque a arte é

essencialmente poética. Portanto, a arte se fundamenta originariamente no vigor da po…hsij.

Dessa maneira, devemos fazer um aprofundamento a partir do segundo sentido de

modo que algo sobre a poética possa ser esclarecido ao mesmo tempo em que ofuscado. A

investigação se concentra e se dá a partir da união de possibilidades e instâncias que

congregam o homem. Este se mostra como o único ente que se encontra na disposição da

linguagem. A linguagem se dá na perspectiva da reunião do envio daquilo que se lança

destinado para o pertencer da escuta atenta que é e não é do homem. Tal envio é o que se

mostra como o vigor da fÚsij enquanto verdade que se manifesta-ocultando dispondo-se ao

confronto, onde o homem é recolhido lhe sendo permitido habitar a abertura para o ser.

174

Op. cit. p. 1428-1429.

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284

A investigação se encontra diante da reunião que traz o ser e a posição disposta do

homem de poder criar a partir deste que o sustenta lançado e suspenso no abismo do nada.

Insistimos na questão do abismo porque já foi dito anteriormente que toda a criação qualquer

que seja - esteja no âmbito exclusivo da fÚsij, ou da colaboração do homem com esta - se dá

na permissão do abismo do nada em sua simplicidade. É no sem fundo que a verdade se

sustenta, se abriga, se vela e se revela. Na verdade, o sem fundo abismal do nada, do ser e do

não ser é a morada da verdade. Por mais que se apresente a objeção de que várias inter-

relações estejam presentes nas criações, o velamento radical de tudo é o sem fundo do ser e do

não ser, essa é a originariedade. O abismo de simplicidade, a partir do que nos concedeu a

poética pensante de Cecília Meireles, se mostra de maneira muito mais evidente abarcando as

criações poéticas. Assim, se mostra na co-pertença originária com o poético. Desse modo,

buscamos investigar a criação na medida do poético em co-pertença com o abismo de

simplicidade na permissão das dobraduras complexas que podem se encaminhar a partir dele.

As obras de arte como algo de produzido, postas enquanto postura, tecido, reunião que

congrega e institui sentido, não se rendem originariamente a utilidade. Ou seja, não se

encontram, originariamente, dispostas como disponibilidade para um uso determinado. Sem

dúvidas, não é descabido dizer que a utilidade pode vir a estar na dinâmica das obras de arte.

Como bem vivenciamos na atualidade, existem tanto obras concebidas previamente com

funções determinadas, por exemplo: obras musicais com fins específicos de entretenimento

(servir de fundo a determinadas situações, para dançar em boates e festas, para

desenvolvimento do aprendizado de crianças e adolescentes); bem como obras já existentes

usadas com finalidades terapêuticas como faz a musicoterapia. Tais possibilidades de servir à

utilidade não fazem com que as obras de arte venham perder sua essência que é anterior a

qualquer utilidade como já discutimos a partir do poema ceciliano.

Procurando uma aproximação do sentido da poética, podemos dizer que a arte é

enquanto reunião. Assim, ela traz o advento do mundo na verdade do ser. O advento do

mundo irrompe no embate mudo com a terra. Desse modo, para a emergência da arte temos o

homem nomeado e convocado como artista e como espectador. Temos a sagração que reúne a

comemoração dos deuses, dos homens, e da terra. Temos as obras de arte na medida em que

operam a verdade dos entes ditas como “pôr-se-em-obra da verdade175

”. Bem como todo o

saber artístico como a possibilidade de se continuar a consagrar a arte enquanto essa reunião

175

Termo trabalhado por Heidegger no ensaio “A origem da obra de arte” onde o autor fala sobre a obra de arte

como um operar da verdade que reúne o embate entre mundo e Terra (sendo Terra a fÚsij em seu vigor, e

mundo toda a realização instituída, constituída totalizando as relações que articulam e perfazem um mundo que é

abrigado e sustentado pela Terra).

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poética no velar por ela cuidando-a em sua continuidade. Toda essa reunião como arte se

mostra como unidade em co-pertinência originária com o abismo de simplicidade. Posto que

ele permite a infinita dinâmica em que todos os nomeados e reunidos em tal unidade possam

permanecer na solidez do que se transforma, de modo que, constantemente em transformação,

repousam de modo próprio.

Sendo assim, a arte não pode ser confundida com mera habilidade, ela a tudo reúne

enquanto linguagem como referência e reunião que se manifesta como verdade poética. Desse

modo, ela traz a irrupção e o advento de um mundo instituído e constituído poeticamente na

verdade. Nesta reunião é que a arte é verdade poética quando no operar das obras, que

somente é no todo da reunião, manifesta no ocultamento o som e o silêncio da música; o

silêncio da fala como a “consonância do quieto176

” e o evocar das palavras com seu vigor na

poesia; as cores, as texturas e as formas em sua verdade nas artes visuais; a estaticidade e o

movimento na dança. Por se sustentar na constituição e instituição do irromper de um mundo

é que a arte é poética e, assim, verdade. É nesse sentido que poeticamente a arte traz na

dimensão poética a verdade dos entes posta em obra no operar das obras de arte. É por isso

que novamente trazemos Hölderlin nos concedendo sua poética pensante: “...Cheio de

méritos, mas poeticamente o homem habita esta terra...177

”. Reafirmamos que o habitar

somente é quando poético. A instituição, a constituição, o irromper de um mundo em sua

verdade somente pode se dar poeticamente. Essa é a originariedade que configura o habitar

em si mesmo onde o habitar esta terra, somente é na dimensão poética enquanto verdade que

tem como morada o sem fundo abismal do nada. Em tal ambigüidade se institui toda

possibilidade de realização e constituição da realidade e do real. Poeticamente, a dimensão

poética configura o habitar e se dá como verdade na poesia, na música, na dança, na pintura.

No entrelaçar de um mundo se mostra e se oculta a verdade do ser e do não ser. A dimensão

poética é e não é no sem fundo da ambigüidade harmônica do nada. Poeticamente a verdade

mostra e vela o ente. Poeticamente se permite toda a instituição de uma disponibilidade e de

uma serventia, de representações e de imitações. Poeticamente, o vigor da poética permite ser

encoberto. Poeticamente, o homem caminha na errância da busca que se sustenta no sem

fundo abismal do ser e do não ser. Errando na errância é que lhe é concedido procurar, numa

colaboração com o a unidade do ser e do tempo, instituir o poetar no abismo.

176

Heidegger, M. 2003, p24. 177

Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback, in Heidegger, Ensaios e Conferências, Vozes, Petrópolis, 2002,

p.257.

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Música

O que é, em si, música? A pergunta insinuante se mostra na medida em que a questão

permanece em mistério. São as obras musicais? Os músicos? Os ouvintes? O saber musical?

Trabalhamos até o momento dizendo que música se dá na medida de uma unidade. Uma

unidade onde se abrigam todos os nomeados que se encontram nela reunidos na

multiplicidade de si mesmos. No entanto, tal concepção de unidade nos soa estranha de modo

que se apresenta distinta do que usualmente tendemos a compreender. Inicialmente

entendemos música quando tomamos contato com o aparecimento das obras musicais. Essas

efetivamente se mostram como o nome da música, de modo que todas as culturas em sua

diversidade apresentam manifestações musicais as mais distintas. Tal diferença já se mostra

marcada e calcada no aparecimento próprio que exige tal diferença. Essa exigência se torna

evidente posto que os homens são diferentes em terras distintas, de maneira que tais

condições exigem dele respostas na medida de uma convocação própria. Desse modo,

podemos dizer que as culturas são distintas, também e essencialmente, porque as exigências à

morada do homem se apresentam diversamente. Tais divergências se encontram no modo em

que a própria terra se manifesta na sua multiplicidade sem deixar de ser ela mesma na

vigência de sua unidade. Terra, mais uma vez devemos lembrar, se encontra dita no vigor da

fÚsij. Assim, ela se mostra na exigência que se dá confrontando o homem na emergência de

sua imposição. Portanto, é somente nesse sentido que há obras musicais em uma diversidade e

nas diversas culturas. Onde ficam evidentes as várias maneiras de corresponder à exigência

imposta na resposta de uma colaboração com a fÚsij em sua emergência. Assim, tais obras

são desde há muito uma determinada manifestação disposta de modo todo especial. No

entanto, ao longo das épocas da verdade do ser e do não ser, se articulam dinamicamente no

caminho de referência a tal verdade epocal. Sem dúvida de que há muito existem tradições

artísticas que mostram e revelam obras musicais na medida de um aparecer. O aparecer faz

parte do acontecimento das obras em si mesmas, assim aparecendo, tal acontecimento se dá

histórico e temporal.

Devemos levar em consideração que o mais evidente pode, em determinados

momentos, esconder o essencial. O aparecimento das obras musicais nunca é em si mesmo

solitário. As obras não se mostram desligadas e desvinculadas de um todo em que se mostram

abrigadas. Por isso, o entendimento que se faz em compreender as obras musicais como o

nome da música se torna equivocado. Somente não se encontra equivocado de todo porque o

próprio acontecimento das obras é em si reunião. Acontecendo as obras musicais se mostram

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reunindo toda uma conjuntura que as reafirmam na sua própria medida. Portanto, a unidade

que reúne as obras em seu acontecimento, bem como tudo o que se mostra nesse

acontecimento reunido permanece misterioso. Encontramo-nos na dinâmica ambígua de um

aparecimento misterioso. Tal dinâmica nos mostra uma referência com o abismo que concede

abrigando todo e qualquer aparecimento no velamento de sua verdade. É a partir de tal

ambigüidade que podemos estar na disposição de questionar a música como unidade. Assim,

e somente assim, podemos, talvez, nos encontrarmos na dinâmica de algum questionamento

que se disponha enquanto pertencimento radical na escuta cuidadosa e audiente a partir do

que se insinua veladamente.

Desse modo, devemos atentamente pertencer à unidade musical enquanto poeticidade.

Na medida de tal aparecimento não devemos ficar alheios de que a manifestação musical é um

acontecimento histórico. Abrigado no tempo, assim reúne como unidade. Reúne na disposição

de si mesmo como acontecimento as obras musicais, os homens, a terra, seu saber próprio, a

verdade encoberta de seu próprio aparecer na co-pertinência radical com o abismo em sua

ambigüidade. As diversas culturas colhem e cultivam o acontecimento musical de modo

distinto na medida da dádiva e da exigência que recebem. Assim, pertencendo ao

acontecimento musical o homem se dá suspenso e entregue a verdade do mistério em que ele

permanece. Portanto, é na medida da unidade que pretendemos buscar o que vem a ser

música. No entanto, assaz importante se faz compreendermos cada um dos que são reunidos

em tal unidade. As obras musicais são misteriosas. Os homens na medida dos músicos e dos

ouvintes de maneira distinta também são. Neste mesmo âmbito misterioso se encontra o saber

musical. Por isso, devemos questionar todos na medida de sua verdade na co-pertinência da

unidade musical.

Música e materialidade

Enquanto unidade a música se mostra na medida própria da fÚsij. Esta última dá a

medida radical para que todo o mundo musical no âmbito de sua poeticidade possa florescer.

Assim, devemos estar na disposição de buscar o que, como fÚsij, sustenta tal aparecimento

enquanto unidade. Na reunião poética musical o que se evidencia primeiramente são as obras

musicais na medida em que se apresentam sonoramente. Desse modo, em tal apresentação,

elas materialmente se mostram presentes em sua sonoridade. Não temos dúvida de que o

homem, na medida em que se dá reunido no âmbito da música, também se dá materialmente,

isto é inegável. No entanto, sua materialidade concerne a ele mesmo enquanto identidade, ela

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288

lhe é própria. Ou seja, não há dúvida de que o homem enquanto unidade se encontre reunido

de modo próprio no âmbito musical, mas a questão da materialidade para isto não lhe é

decisiva. É decisiva na medida do homem, como tal, em qualquer âmbito, e não de modo

específico na unidade musical por si mesma. Outro que se dá reunido na unidade musical é o

saber. Ele é o único que não se apresenta de modo material, no entanto, somente pode ser o

que é partindo e se sustentando em tal domínio.

Diante disso, o importante para nós inicialmente se encontra na questão da

materialidade das obras musicais enquanto se mostram sonoridade. Devemos lembrar que

material, aqui, deve ser considerado a partir da perspectiva apresentada na investigação

precedente178

. A palavra material provém do latim mater, enquanto mãe de um todo. Nesse

sentido ela, como fÚsij, é a mãe que abriga, na guarda de seu mistério, o que se dá frente a

profundidade do abismo. Assim, as obras revelam o som em sua magnitude. Trazem o som

em sua verdade na medida em que operam como obras. A unidade sonora nas obras opera de

um modo todo especial. Elas revelam o som de modo que estes se apresentam de maneira

inconfundível. No entanto, deve ficar claro que a dinâmica musical, revelando o aparecimento

das obras, não pode ser compreendida totalizada a partir do aspecto sonoro, bem como as

próprias obras, posto ser evidente a sua ultrapassagem. Contudo, que fique claro, do mesmo

jeito, que as obras dele partem resguardadas no abrigo próprio que a mãe, enquanto fÚsij na

medida da materialidade, lhe destina.

Sendo assim, o som deve a fÚsij todo o âmbito de seu aparecimento. Na verdade, ele

é em si fÚsij. Na terra, onde nos é concedido habitar, nada se dá fora da possibilidade

sonora. Diversos sons com qualidades distintas se apresentam em todos os momentos e

instantes em que o ser e o tempo nos concedem tal experienciação. Na experiência do homem,

entendido essencialmente, não se pode prescindir da presença sonora. Já dissemos

anteriormente que o som se mostra na perspectiva de um apresentar. O som é, de modo

próprio, a presença daquilo que é enquanto se dá sendo o que é179

. Nesse sentido, não há o

mar em sua completude fora da sua sonoridade, do mesmo modo acontece com uma floresta,

ou ainda uma cidade. Para que não haja o risco de dúvida, devemos ter claramente o que

estamos chamando de sonoridade. Esta não é algo que isoladamente possa ser retirado como,

por exemplo, gravar o som do mar em aparelhos que hoje permitem tal possibilidade. Estamos

dizendo que o mar, em seu esplendor, é propriamente na medida em que, sendo íntegro,

inteiro, se mostra também em sua presença sonora. Assim, o som próprio do mar lhe

178

Capitulo 1 do presente trabalho, subitem Matéria e forma. 179

Ver nota de nº 37 no presente trabalho.

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apresenta lhe sendo parte como unidade. Ou seja, a experiência do mar não se dá fora de sua

presença própria, que é também, além de outros, na sua sonoridade íntegra. Dessa maneira, o

som se mostra na presença daquilo que é, onde tal presença nunca é fora da sonoridade em si.

Nesta perspectiva é que podemos dizer o som como presença, na medida em que nada se

apresenta por inteiro fora de sua apresentação sonora. Assim, a fÚsij se apresenta

apresentando o som, porque tudo aquilo que por ela é sendo o que é, na guarda da verdade

abismal, se mostra no seu próprio velamento.

A experiência sonora convoca o homem, lhe traz para vigiar e resguardar no cuidado o

envio próprio da sua insinuação na ambigüidade do profundo. O homem é enquanto aquele a

quem é concedido habitar a abertura. Em tal abertura, suspenso na unidade de nada, ser e

tempo, estes se enviam em confiança como um presente ao homem. Enviam-se na retração,

subtração, e na retenção do que é sendo ao modo de ser e tempo enquanto unidade diante do

abismo de simplicidade. Dessa maneira, o homem é capaz de receber o brilho ofuscante da

sonoridade. Brilho ofuscante para se referir ao som pode nos soar como uma cena estranha.

De todo modo, o que se põe em questão é o fato de ao homem ser permitido receber e guardar

o som com cuidado na medida de um pertencer. Na medida de um pertencer como escuta

audiente, como ausculta cuidadosa. O som, assim, o convoca de modo radical para que ele

possa, suspenso, estar na disposição da referência do som mesmo em sua verdade.

A música se encontra em questão de modo que abriga como unidade uma diversidade

de possibilidades de manifestação. Assim, ela se revela na co-pertinência originária com o

abismo de simplicidade permitindo o aparecer de tudo o que por ela se dá reunido. A partir do

momento em que uma escuta cuidadosa se dá, revela-se a música como unidade que guarda e

resguarda a sagração e a consagração do que se apresenta sonoramente como obra musical

abrigada na sua verdade.

O abismo do nada, certamente enquanto a medida de toda fÚsij, se entende ao modo

de uma retração total de qualquer sonoridade e, conseqüentemente, de qualquer presença ou

ausência que se dê como o que foi, o que é ou o que será. Dessa maneira, o abismo esconde a

unidade de som e silêncio. Devemos reafirmar de modo a vermos com clareza que a

experiência com o silêncio é uma experiência de sonoridade. Som e silêncio conformam uma

unidade em sua apresentação. Nas obras musicais, que se mostram enquanto manifestação

própria da sonoridade se dá o acontecimento da materialidade sonora como som e silêncio de

modo próprio. Assim, no âmbito do profundo, do abismo enquanto “véu do ser”, som e

silêncio estão resguardados na verdade. Portanto, permanece o dito de que a sonoridade, na

medida em que se encontra revelada nas obras musicais reunidas no âmbito da poética

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musical, se apresenta resguardada no som e no silêncio. Diante de tal, cabe a pergunta: o que

são, então, o som e o silêncio de modo que se articulam enquanto unidade na sonoridade

desvelada na obra musical como fenômeno?

O som se dá como algo impalpável, sua impalpabilidade é óbvia e notória por si

mesma. No entanto, esta se revela na concretude de seu aparecimento como presença que a

fÚsij traz na sua manifestação misteriosa. Por sua vez, o silêncio é dito na medida em que se

mostra como o oposto do som. Oposto na medida de se dar como ausência. No entanto, a

ausência do silêncio se concede manifesta ao modo da presença. O silêncio se apresenta

ausente no âmbito da unidade enquanto sonoridade. Ao nomearmos som e silêncio como

opostos, o termo, aqui, se encontra não no âmbito de uma valoração, mas enquanto aquele

onde se posta um diante do outro marcando, na proximidade, a radicalidade de sua diferença.

Nesse sentido, som e silêncio são opostos na unidade que mostra a sonoridade em si mesma.

Não sem motivo as obras musicais se apresentam sonoridade explorando sons e silêncios.

Assim, na complexidade das dobras das obras, enquanto se desdobram em presença, sons e

silêncios se manifestam resguardados e revelados nas mesmas obras quando se postam em

obra. Obrando em obra, na obra musical, a verdade da sonoridade como som e silêncio se

revela onde cada um se resguarda na sua propriedade. Como já disse Hölderlin “poeticamente

o homem habita esta180

terra”. A poeticidade musical traz o homem para a terra na medida em

que mostra em verdade a materialidade sonora posta em obra como sonoridade na união de

som e silêncio. Opostos em sua unidade postam-se em obra e revelam-se em verdade já

exigindo do homem uma presença de concretude onde a terra como fÚsij afirma-se como a

si mesma na cripta de seu encobrimento. Poetando e desse modo fundando seu habitar na

exigência que o convoca o homem colabora para que a terra mesma apareça como a si mesma

nas obras musicais reunidas na música na verdade encoberta.

A obra musical se encontra resguardada em tal materialidade que conjunta a

conformação de unidade som-silêncio. Não há obra musical e, conseqüentemente, música,

enquanto unidade, alheias desta unidade. Som e silêncio conformam a possibilidade mãe das

obras em sua dinâmica de unidade frente à multiplicidade. Enquanto unidade, a possibilidade

sonora pode se articular, como acontecimento, revelada e abrigada pela música nas obras

musicais. Nas obras ela alcança efetivamente sua revelação isenta e livre de qualquer

interferência. Livre, a unidade da possibilidade sonora se mostra na música reunindo as obras

que põe em obra a verdade desta mesma unidade. Livres, o silêncio se articula como ausência

180

Grifo nosso.

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291

de som, e o som como ausência de silêncio na perspectiva de uma apresentação conformadora

de unidade. Dizemos livres na medida em que som e silêncio se revelam para além de

qualquer outra coisa que não seu próprio aparecimento. Tal liberdade somente é concedida no

âmbito de um mundo disposto na co-pertinência entre música e abismo. Lá a unidade sonora

encontra a permissão de seu desdobramento. O abismo ontologicamente resguarda qualquer

ausência ou presença. Na profundidade abismal do abismo do ser e do não ser, na retração e

subtração do tempo, ausência e presença encontram a radicalidade de suas diferenças. É em

tal abismo que qualquer ausência e presença estão para além de si mesmas. Assim, como

ambigüidade estão na permanência transformadora da fÚsij enquanto sustenta encoberta

tudo o que é sendo temporalmente. A co-pertinência originária da unidade de música e

abismo revela a unidade sonora enquanto materialidade que se apresenta transformando-se na

sua solidez. Por tal é que todas as vezes que as obras musicais se dão enquanto acontecimento

há uma impossibilidade de apreensão. No entanto, tal acontecimento é sempre permanente na

sua dinâmica própria. Assim ele se concede como memorável ao abrigo da memória. Não é

sem razão que relembramos as palavras de Antônio Jardim quando conceitua a memória

como “o que dá, leva ou conduz à unidade181

”. Enquanto memorável, a obra musical,

revelando sua materialidade resguardada e consagrada enquanto sagração que é, permanece

em transformação inclusive na própria dinâmica da memória. A obra musical como

memorável disposta à memória permanece transformando-se de modo que na própria

memória encontra-se dinamicamente. Ou seja, disposta à memória como unidade, a obra se

encontra movente, se encontra no âmbito das possibilidades e impossibilidades medidas pelo

irrealizável, se move no aparecimento de si como unidade na própria memória. Obrando na

sonoridade de si mesma, na sua apresentação, a obra musical apresenta a dança própria dos

sons na ritmicidade como movimento primordial. A unidade som-silêncio se apresenta

resguardada no aparecimento que se dá radicalmente movimento. Em tal apresentação própria

a obra se resguarda na memória de modo que a memória abrigada no abismo mostra um sem-

fim dinâmico para que a permanência em movimento da obra encontre sua solidez

radicalmente. Na unidade da memória a obra enquanto memorável se dá livre, mostrando livre

sua sonoridade no movimento radical da co-pertinência de som e silêncio no embate próprio

em que emergem. Som e silêncio se medem na medida de, enquanto presença em seu

aparecimento, se revelarem como verdade. A verdade sonora se concede na inapreensibilidade

própria que alcança a solidez de sua unidade movente na memória que pode resguardar o

181

Op. cit., p.130.

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memorável. Ao homem é permitido habitar a abertura para essa verdade enquanto ela se dá

resguardada em seu aparecimento radicalmente poético. Permitido e concedido ao homem

habitar esta abertura, a obra se revela unidade frente à multiplicidade onde se encontra

abrigada.

Reunidas na unidade musical, as obras arrebatam de modo apaixonante no combate

violento da sonoridade posta em obra. Tal combate mostra o material como mãe, que permite

à obra ser o que ela é ao seu modo, e o seu aparecimento distinto, que se dá no modo como os

sons e silêncios se reúnem enquanto sonoridade. O ser se concede como a unidade de música

e abismo reunindo as obras que mostram a dinâmica do combate. As obras, assim, se revelam

em um mundo que se dá convocando e exigindo do homem que ele se volte para a terra

originariamente. A materialidade sonora, como a conformação da unidade som-silêncio,

mostra o embate próprio de retenção e subtração do que se apresenta enquanto obra que se dá.

Nesse aparecimento se apresenta a unidade som-silêncio transformada da sua condição

primeira como fÚsij. Paradoxalmente, é em tal aparecimento, como obra, que a fÚsij, na

medida da unidade de som e silêncio, se mostrar em todo seu vigor. A transformação em que

as obras musicais essencialmente se manifestam é efetivamente a possibilidade da solidez de

todo seu vigor. Dessa maneira, permanecem sendo o que são na medida de seu aparecimento

enquanto unidade. Tal unidade é o que se mostra como memorável que se dispõe à memória

enquanto identidade própria. As obras musicais essencialmente apresentam esta condição por

não se darem, de modo algum, a algo que as possa resguardar na aparência de uma

estaticidade. Mesmo dispostas à memória, como condição radical em que as obras

permanecem na solidez de si mesmas, elas se dão dinamicamente, movendo-se no baile de

encantamento do combate de sua sonoridade. Por isso de modo radical elas mostram a

verdade do fragmento heraclítico, onde na sua apresentação que ao mesmo tempo se

transforma, repousam na solidez que lhes é própria. Repousam na medida em que recebem,

enquanto memoráveis que são, da memória o resguardo de sua unidade no diálogo que mostra

a pertença da escuta audiente. A memória radicalmente mostra a escuta audiente em si mesma

enquanto pertence ao diálogo primordial. Dessa maneira, as obras se encontram lançadas no

diálogo.

A música como reunião, é paradoxal e ambígua de modo que assim se sustenta.

Trazendo na consagração o que por ela se sagra sempre revela um combate primordial e

efetivo onde, combatendo, o que se retrai no velamento, reluta ao se mostrar no vigor de sua

verdade. Assim, na materialidade revelada como a unidade de som e silêncio na obra musical,

o combate se trava dando-se verdade e não-verdade. O combate é travado dando-se como um

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aparecimento que se recusa de modo determinante a revelar-se. No entanto, nesta recusa

alcança o vigor de seu aparecimento na verdade resguardada e abrigada na profundidade

abismal, no sem-fundo fundante como medida para todos os aparecimentos. De todo modo,

“transformando-se, repousa”. A cada apresentação em que se dá uma obra musical já

transformada em si mesma, esta repousa em sua solidez. Na copertinência de unidade entre

música e abismo as obras se apresentam na infinidade de possíveis aparecimentos. Assim

resguardada, todo aparecimento da obra é, em si, ambíguo. A ambigüidade se mostra na

medida em que o vigor se apresenta justamente na inapreensibilidade em que o memorável,

como obra, permite à memória o resguardo de sua unidade. Desse modo, até a memória, à

qual o homem se encontra à disposição, se mostra retida e subtraída na tridimensionalidade do

tempo em si mesmo. Assim, dizemos que a obra musical aparece enquanto fenômeno sempre

temporalmente na unidade do tempo. Dessa maneira, seu aparecimento se encontra na

disposição do tempo abrigado na unidade que o resguarda e, por isso, em constante

transformação. Na medida em que a obra como memorável se dispõe à memória, onde é

abrigada sua unidade, também permanece a ela fechada - na perspectiva em que ao homem é

concedido habitar a memória - a partir de sua própria inapreensibilidade. Tal fechamento é

ainda a medida e a possibilidade da própria abertura em si, isso porque a inapreensão

enquanto ambigüidade ao mesmo tempo se equilibra com a própria apreensão. Fechada por

um determinado aspecto e ao mesmo tempo aberta pelo mesmo aspecto, temos o paradoxo da

ambigüidade. Neste, onde o memorável - na medida da obra musical como fenômeno – se

concede à memória, temos a medida própria para que tal ambigüidade possa se manifestar

enquanto multiplicidade de aparecimento. Nessa ambigüidade radical a obra musical

apresenta a verdade da materialidade que por ela se diz verdade. Obrando na poética musical,

a obra dispõe som e silêncio na verdade de seu aparecimento enquanto revela o combate

originário entre ambos em unidade.

Devemos novamente ressaltar que a materialidade musical se mostra unidade no

acontecimento musical enquanto dinâmica. Tal dinâmica como um todo se concede a escuta

enquanto um pertencer ao que se manifesta musicalmente em um mundo aberto pela poética

musical. Assim, o homem como músico e ouvinte se encontra em tal unidade. Sua

materialidade o revela como corpo, e na sua totalidade enquanto corpo ele se dá à unidade

musical. Assim, lhe é permitido habitar a escuta e pertencer à unidade da poética musical.

Dessa maneira, ele, de corpo inteiro, se revela em si mesmo enquanto músico e ouvinte.

Pertencendo as obras musicais na escuta audiente ele é conformado pelo todo musical

concedendo a ele a si mesmo como doação. Assim, o homem é totalmente envolvido pelo

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todo que se apresenta em sua ambigüidade própria. Tal todo lhe toma por inteiro de maneira

que a ele não pode recusar. No entanto, como materialidade o que nos importa discutir vem a

ser a sonoridade posta em obra como unidade de som e silêncio, posto que o modo de ser do

homem procuramos, de alguma maneira, debater com certo cuidado.

A sonoridade da obra musical como materialidade se mede com o que mede toda a

fÚsij. Isso porque ela se mostra resguardada no abismo de simplicidade enquanto a

verdadeira possibilidade frente a todas as possibilidades de aparecimento. A materialidade

musical é enquanto unidade de conformação som-silêncio frente à sua própria medida, frente

à ambigüidade fÚsij-abismo. A sonoridade posta em obra enquanto acontecimento no

desdobramento das obras musicais mostra a riqueza de sua reunião frente ao abismo que

permite tal unidade. Dessa maneira, a unidade de copertinência entre música e abismo abriga

a verdade da sonoridade posta em obra no acontecimento musical enquanto ela se dá obrando

nos seus múltiplos modos de aparecimento. Na medida de seu aparecimento enquanto

fenômeno a obra musical conquista seu próprio espaço. Enquanto ela é o que é se mostra no

espaço de si mesma enquanto conquista. Um espaço que somente a ela pertence na co-

pertinência da unidade originária como música e abismo. Assim o ser se concede

musicalmente. A própria unidade música e abismo, enquanto reúne os que por ela são

nomeados, revela a conquista do espaço dela mesma. Tal espaço não é apenas espaço no

âmbito material onde este é fÚsij, mas sendo abrigado por ele também o transcende.

Com a discussão empreendida não se pode dar por resolvida a questão da

materialidade musical. Sabemos que muito pelo contrário as questões permanecem como tal

em sua inesgotabilidade. A unidade som-silêncio permanece misteriosa na medida do seu

resguardo. Encontrar-se na disposição de escutar tal unidade é que faz com que talvez

possamos nos aproximar da presença misteriosa. Assim, é no acontecer das obras musicais

que talvez possamos descobrir ou adentrar de vez no mistério. Este traz para nós a questão

enquanto permanece no terreno do inesgotável, enquanto abriga todo erro daquele que, de

modo errante, vaga por seus caminhos. Tal dizer apenas reforça que o caminho seguido se dá

diante do excluído de toda exclusão como apenas um caminho. Portanto, seguir adiante é o

que se apresenta na medida de nos impelir com violência na convocação que nos exige de

modo radical.

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Música e Linguagem

Não é ao longo de pouco tempo que ouvimos haver uma relação entre música e

linguagem. Nesse mote, até se diz que música é uma linguagem, ou ainda, que música é

linguagem. Diante de tal panorama e suspensos pela vocação que nos convoca, se mostra

inevitável que estejamos na disposição de buscar radicalmente a referência entre música e

linguagem para que a questão possa se revelar na sua própria medida. Tal busca se iniciou na

medida em que algumas tentativas foram encaminhadas182

. No entanto, a partir dos caminhos

alinhavados possibilidades se afiguram de modo inequívoco.

Anteriormente discutimos a linguagem onde esta se revelou em uma referência

enquanto conformação dialogante. Procuramos dizer a essência da linguagem a partir da

reunião que conforma o diálogo. Desse modo, mostramos a fonte da fala enquanto fonte

originária e o pertencer à tal fonte como escuta que é e não é dos mortais. Dessa maneira, a

linguagem reúne, a partir da insinuação originária da tensão entre lÒgoj e fÚsij, tudo o que a

conforma como tal. Assim, o homem se encontra reunido sendo o que ele é posto na

disposição que o sustenta. Ele se encontra na linguagem como uma restituição ao que lhe

mantém suspenso e jogado: a copertinência entre nada, tempo e ser. A linguagem se revela

referência enquanto reunião dialogante trazendo o homem como aquele a quem é concedido

habitar a abertura para o ser sendo capaz de suportar o seu brilho misterioso.

Desse modo, nos soam equivocadas tanto a afirmação, bem como as concepções que

mostram a música como uma linguagem. Muito menos uma linguagem universal. Ficam,

assim, à parte todas as concepções que compreendem o acontecimento musical a partir da

representação. A música enquanto reunião não representa, mas sim, a-presenta, põe diante em

uma disposição. Apresenta o que por ela é nomeado de modo que ela se apresenta como

unidade. Por isso, nos concentramos na referência música e linguagem para que, a partir dela,

possamos discuti-la em sua verdade.

A música se mostra enquanto unidade na co-pertinência com o abismo de simplicidade

na medida em que reúne músicos, ouvintes, saber musical e obras musicais. Enquanto reunião

ela acontece. Em tal acontecimento a música é sempre e também diálogo. Tal acontecimento

dialogante, podemos facilmente constatar a partir da poética musical em sua riqueza enquanto

abriga realizações musicais de qualquer ordem, bem como tudo o que por ela é nomeado e

182

Ver, no presente trabalho, Capítulo 2, subitem Linguagem e música.

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resguardado. O saber musical se dá no diálogo. O músico e o ouvinte também. Sem falar das

obras musicais que, de modo análogo, se encontram dispostas no mesmo.

Ao modo da reunião, encontramos as obras musicais na medida em que, partindo da

fÚsij, apresentam a sonoridade em sua riqueza no combate originário onde som e silêncio se

mostram verdade velados como manifestação. Tal dinâmica somente se revela dispondo o

homem a um pertencer enquanto ausculta audiente. Em tal pertencimento, a ele é concedido

habitar a abertura na disposição de receber o mistério que sonoramente se insinua por si.

Assim, ele essencialmente se encontra à disposição do diálogo onde se dá apropriado, sendo

ao seu modo. Pertencendo de maneira radical na escuta, o homem se suspende seja como

músico, seja como ouvinte. Na suspensão apaixonada pelo encantamento que se dá

sonoridade, ele se apropria do que lhe é próprio: pertencer à co-pertinência originária de nada,

ser e tempo, lhe sendo concedido habitar a abertura para tal unidade. No âmbito musical essa

suspensão se dá na medida em que ao homem é permitido medir-se com o todo que a unidade

musical abriga, inclusive consigo mesmo. Portanto, o diálogo se mostra fundamental e

decisivo na questão musical. Tal diálogo, sendo o que é ao modo musical, se revela no âmbito

do poético. Todo acontecimento poético por si mesmo é diálogo, não há poética sem ele. Toda

música, enquanto unidade, traz implicitamente o diálogo estando disposta no próprio. Quando

dizemos traz, tal trazer se refere ao modo em que poeticamente o diálogo é concedido. Todo

acontecimento poético é dialogante, porque revela o diálogo enquanto reunião de modo

originário. Assim, o diálogo somente pode ser o que é na medida em que poeticamente lhe é

concedido aparecer. O âmbito do poético traz o diálogo de um modo todo especial, lhe traz de

maneira completamente distinta. Poeticamente como reunião ele é trazido de modo destacado.

Tal destaque o eleva a sua condição própria. Portanto, é poeticamente que o diálogo, enquanto

reunião na medida da linguagem, chega à sua verdade. Poeticamente ele se consuma na sua

plenitude. Livre de qualquer amarra, pode a reunião do diálogo aparecer concedida pelo

âmbito do poético. A música, enquanto unidade poética, se mostra linguagem dialogante,

radicalmente. Alheio à língua e a palavra que podemos falar nos discursos, o diálogo musical

se dá como puro sentido em seu acontecimento. Em tal disposição cada uma das artes

abrigadas na dimensão poética se apresenta como reunião dialogante de modo próprio. Assim,

cada arte eleva o diálogo à sua plenitude radicalmente. Na multiplicidade de seu aparecimento

a co-pertinência originária se dá a falar enquanto fonte. Estando nesta disposição, a referência

musica-linguagem entra no âmbito que, de modo próprio, lhe pertence. Assim, podemos

pertencer atentamente ao chamado de sua verdade.

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A unidade de música e abismo reúne o acontecimento musical. Tal unidade abriga o

âmbito em que as obras musicais se dão a um aparecimento na radicalidade da multiplicidade

de suas diferenças. Portanto, podemos dizer que um primeiro diálogo se manifesta: o diálogo

entre a poética musical e a multiplicidade das obras musicais as mais diversas. Tal diálogo

dialoga de modo em que as obras, como multiplicidade, se reúnem no seio do que as nomeia.

Dessa maneira reunidas, elas recebem a medida de toda a sua manifestação na infinidade de

modos de aparecimento. Às obras, enquanto revelam sua verdade no encantamento de sua

sonoridade, é permitido a radicalidade de seu desvelamento na co-pertinência entre música e

abismo. Música e abismo são a fonte originária que concede às obras todo o aparecimento em

sua magnitude. Tal permissão, enquanto um sem-fim de desdobramentos, revela as mesmas

obras em um mundo que as ultrapassa, bem como a todos os que se dão no acontecimento

musical reunidos na dimensão poética da música. Não há dúvida de que no âmbito do diálogo

as obras musicais se revelam como fala na medida em que dizem a si mesmas abrigas na

unidade que as resguarda. Assim, no diálogo com o todo da unidade musical, às obras é

vedado pertencer como escuta a qualquer um dos nomeados no âmbito musical. Tal oclusão,

de modo próprio, as inclui. Dessa maneira, podemos dizer que a obra musical não pertence,

mas se concede a um pertencimento. A obra, abrigada na unidade da música, fala. Falando ela

se consente à escuta que lhe pertence. Permitida na multiplicidade de sua fala pela dimensão

que a nomeia, ela se apresenta radicalmente no diálogo em sua identidade. No âmbito do

diálogo percebemos que a fala pressupõe inequivocamente a escuta. Assim, falando a obra se

concede à escuta que lhe pertence. Tal escuta se dá como um pertencer. Na verdade de seu

aparecimento a obra se confia à escuta que lhe pertence na medida em que ao músico e ao

ouvinte é permitido habitar tal escuta enquanto abertura. Lá eles se suspendem de modo

próprio e radical. Pertencendo radicalmente ao que lhes é enviado, eles chegam, apropriados,

a ser o que são ao seu modo. De modo análogo, o saber musical fala partindo de toda a

dinâmica em que se encontra. A ele também uma escuta radical se dá como um pertencer. A

analogia se mostra na medida em que marca, de maneira própria, a diferença da fala de um e

de outro. No entanto, suas falas são apropriadas na dimensão que as abriga e por isso se dão

no mesmo. Apropriadas no mesmo radicam na diferença no confronto que mede ambos

lançados na unidade que lhes nomeia.

Como reunião o acontecimento musical não traz apenas as obras musicais em sua

diversidade. Dando-se ao seu modo ele se encontra na seleção de um sem número de

referências. Dessa maneira, temos as diversas técnicas e a educação específica enquanto

ensino e aprendizado abrigados no saber musical. Temos a referência dos músicos e ouvintes

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para com as obras, temos as referências de músicos para ouvintes bem como para outros

músicos, e ainda a de ouvinte para ouvinte. Todas essas referências são reunidas e sustentadas

no diálogo como fala e escuta na verdade própria do seu acontecimento, e se manifestam na

permissão radical da unidade musical. Músicos dialogam com outros músicos de modo que

eles já se encontram, como tal, abrigados na unidade musical como um todo. Os ouvintes

dialogam entre si abrigados na música. Eles somente podem dialogar na medida em que estão

suspensos no acontecimento musical como reunião. Músicos e ouvintes se dão em referência

às obras musicais de modo que abrigados na música todos se inter-relacionam. Todas as

referências se dão no mundo musical como um todo em si mesmo, como uma teia na sua

riqueza própria. Um mundo musical de relações e inter-relações se encontra abrigado na

poética musical dialogando como música. No diálogo musical, a música como unidade se

afirma cada vez mais na medida em que a diversidade mais se diversifica nas limitações

impostas pela própria unidade que a música é. Uma das grandes questões é justamente

encontrar tais limites. Os próprios limites em que a música encontra sua unidade se dão na

medida de um diálogo constante com a própria unidade em si mesma. Tais limites se dão na

co-pertinência entre música e abismo. A dificuldade radical se encontra na ambigüidade

radical que a simplicidade do abismo concede. A música enquanto unidade traz o abismo e

nele se mede na medida de seus próprios limites. No entanto, na poética musical tal limitação

é tênue. Todavia, é fácil determinar o que é não música a partir de outras coisas como, por

exemplo, sapatos, toalhas, o homem, um prédio, um drama, um romance, etc. Não que estes

estejam impedidos de adentrarem no âmbito musical, todos sem dúvida se encontram em tal

disposição, porém eles se sustentam a despeito da relação musical em si. No âmbito próprio

do acontecimento musical se torna difícil encontrar os limites que delimitam a música

enquanto unidade. Entretanto, importa que a unidade musical reunindo dialoga com os

músicos, com os ouvintes, com as obras, com o saber e o fazer musical. Esses distintos

diálogos, que são reunidos na unidade enquanto música, perfazem a riqueza e a grandeza da

música em si. Quanto mais diálogos, maior a riqueza musical. A infinidade dos múltiplos

diálogos se dá na copertinência radical entre música e abismo.

Ao modo do diálogo percebemos que a música se encontra numa disposição

dialogante enquanto linguagem. Sem dúvida não podemos dizer que a música totaliza a

linguagem. Mas podemos dizer que a linguagem se revela música de um modo todo especial.

Na verdade, na medida em que a música reúne ao seu modo radicalmente, a linguagem se

encontra poeticamente revelada em sua verdade. Tal verdade no âmbito do poético se dá na

multiplicidade em que a dimensão poética pode revelar a linguagem. Poeticamente a

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linguagem se revela de modo que lá se encontra resguardada como reunião. Assim,

percebemos mais claramente a ambigüidade onde música e linguagem se revelam. A música é

linguagem na medida em que esta se concede música. Desse modo, ela se dá no brilho que

ofusca ensurdecendo ao pertencer radical da escuta enquanto um conceder e uma exigência.

Concedendo-se ela exige sua reafirmação. Reafirmada ela sustenta tudo o que por ela se dá.

Dessa maneira, percebemos que a poeticidade é aquela que originariamente revela a

linguagem em si mesma, posto que, assim, ela se encontra livre para ser o que é. Livre das

amarras que a encobrem, a linguagem como música - reunida na dimensão poética que a

revela como pintura, poesia, dança, teatro etc. - é revelada em sua verdade. Assim, ela se

encontra livre para musicar no sem-fim do abismo de simplicidade apresentando todas as

dobras e dobraduras do diálogo musical. Os desdobramentos revelam todo o âmbito da

dimensão musical no encantamento e movimento próprios à música. A riqueza da dimensão

musical se reafirma na multiplicidade infindável dos diálogos por ela abrigados na unidade

dialogante como música. A linguagem como música é revelada no seu alvorecer, na sua

essência radical enquanto referência própria. Por isso diz Heidegger que “pensadores e

poetas” são os vigias da linguagem183

porque ela se dá originariamente onde o pensamento

poetante e a poética pensante se mostram como verdade. A música poeticamente revela a

linguagem na ambigüidade sendo linguagem de um modo todo especial, todavia, a música

como linguagem não totaliza a própria linguagem. Dessa maneira, temos uma referência

ambígua que se mostra misteriosa no próprio paradoxo. Sem totalizar a linguagem a música,

reunida na dimensão poética, a revela em seu alvorecer.

A música é dialogante reunindo ao modo de fala e escuta originárias. Dialogando na

temporalidade de sua unidade, a poética musical se concede à memória como memorável.

Assim, o acontecimento musical perdura e permanece em transformação de modo que a

música retorna à linguagem sua essência. A referência se consuma de modo que a música, na

dimensão poética, concede à linguagem aquilo que lhe é próprio: o diálogo em que o real se

manifesta como envio próprio a qual pertence, de modo radical, a escuta audiente, atenta e

cuidadosa para, assim, resguardar o que acontece em seu brilho de mistério na verdade. O real

se envia na medida em que a verdade das obras musicais, dos músicos e ouvintes, e do saber

musical, ali se consuma revelada em seu velamento resguarda na escuta que lhe pertence.

Aqui o diálogo primordial encontra guarida como acontecimento essencial e revela o âmbito

de seu aparecimento como música.

183

Heidegger, 1967, p. 26.

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Música e po…hsij

Já dissemos que a música enquanto unidade reúne no seu acontecimento toda uma

prática, todo um fazer e saber específicos. Reunindo desse modo, ela traz no fazer-saber de si

mesma aqueles que da sua dinâmica participam. Não há dificuldades em saber quem de tal

dinâmica participa, pois são: músicos, expectadores e as obras musicais. Como reunião, a

poética musical se encontra em uma dinâmica de constituição e instituição de um mundo que

se revela no irromper que lhe é permitido. Assim, ela se manifesta como um aparecimento

todo especial em sua especificidade, independente da cultura em que se mostre presença

reunindo a diversidade de sua multiplicidade.

No Ocidente tal aparecimento é bem determinado na sua delimitação. Aqui se

constituiu uma maneira de manifestação musical muito própria. Esta se deu a partir de várias

possibilidades de especialização de tal acontecimento. Na dimensão poética musical do

Ocidente, o homem nomeado como músico se encontra normalmente dividido a partir de três

modos de fazer-saber: a performance, a criação e a teoria. Além de tal modo de constituição,

há também a separação que se apresenta pelos títulos adjetivos do popular e do erudito,

separação esta, oriunda das relações de diferença entre o profano e o sagrado. Sob a égide de

tal desenvolvimento, o mundo musical do Ocidente se desenvolveu e constituiu de modo

muito peculiar. As relações profissionais ao longo do tempo se especializaram de modo muito

característico, mantendo presentes as relações de trabalho que foram pensadas por Marx.

Assim, podemos dizer que vários aspectos comerciais influenciam diretamente o modo de

apresentação da sua unidade musical. Tais aspectos são determinantes ditando a medida das

obras e das técnicas, bem como da tecnologia que se põe a serviço de todo o âmbito comercial

ao mesmo tempo em que dita e impõe novas maneiras de relacionamento com o âmbito

musical em si.

Hoje, a respeito de cultura se torna patente o título de “gestão de cultura” e “políticas

públicas para gestão de cultura”. Arte e cultura são negócios na medida do mercado

financeiro. Claramente tais observações se articulam de modo geral e, como tal, não podem

abarcar a totalidade das realizações musicais do Ocidente no seu âmago. Apenas dizemos que

no apelo da técnica a música ocidental se põe na disponibilidade de si mesma. Assim, ela se

manifesta disponibilizando músicos e obras para falarem a verdade própria da técnica

moderna na medida do que ela determina e delimita. Desse modo, toda a dinâmica que se

encontra em questão se mostra na disponibilidade do disponível. Em tal disponibilidade a

música como unidade se mostra desabrigada de si mesma, pois que sua gerência se articula a

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partir de questões não musicais. É claro que o vigor artístico e, nesse caso, musical, não se

contém facilmente de modo a sempre transcender as barreiras que lhe são impostas

externamente. Assim, mesmo em situações amplamente geridas pelo âmbito da técnica se

desvelam obras, músicos, bem como também ouvintes de grande qualidade. Estes

necessariamente não se encontram rendidos de qualquer maneira ao técnico. Desse modo, se

apresentam muito mais musicais do que técnicos na medida da técnica moderna, no entanto,

de qualquer maneira, se encontram enquadrados nos moldes da mesma. Então, mesmo

transcendendo a própria disponibilidade do disponível, de alguma forma, se encontram

abrigados em tal âmbito.

Todavia, a observação anterior se articula mais a partir de questões extra-musicais.

Dessa maneira, ela não é suficiente para responder ao que exige a música como questão em

toda sua dinâmica. Tal observação aqui, se encontra apenas para responder à exigência de

uma conjuntura onde a música no Ocidente se articula e desenvolve. Não há dúvida para nós

que o panorama conjuntural da música no Ocidente se encontre em referência à exigência do

ser em sua verdade epocal. O próprio ser, na medida da técnica, possibilita que ela determine

todo um mundo que é sustentado ele em tal referência. Porém, devemos restabelecer à música

o que lhe é devido investigando-a a partir do que ela, enquanto acontecimento próprio, diz de

si mesma.

Portanto, novamente retornamos a dizer que a música como unidade reúne, além de

outros, uma prática e um saber. Toda prática já é em si um saber. De toda prática nasce um

saber por que estes não podem se dar separadamente. Originariamente fazer e saber se

mostram no conjunto que os une na diferença. No âmbito musical, como pode alguém de

modo efetivo dizer que possui o saber de dominar na prática determinado instrumento musical

sem antes ter com ele algum contato? Nesse sentido somente fazemos o que sabemos. A nós

somente é concedido fazer na medida em que sabemos fazer. Do contrário, tal fazer não se

realiza ou então se realiza de outro modo que não o pretendido na liberdade de sua

delimitação. Ninguém toca ao piano uma obra de grande dificuldade técnica apenas lendo a

respeito da mesma e do instrumento sem com eles possuir alguma relação. Tal condição se dá

no âmbito do irrealizável.

Referindo-nos ao homem no âmbito do artístico ao fazer/saber se conjunta o sentir de

modo específico. Não que todo fazer-saber se abstenha do sentir, pelo contrário, se dão em

comunhão nas suas diferenças, mas no âmbito do poético este se mostra inequivocamente

próprio. Dizemos de um envolvimento a tal ponto que um desprendimento de si mesmo, por

parte do homem a quem é permitido habitar tal acontecimento, ocorra suspendendo ao modo

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da paixão, do espanto, do entusiasmo. Assim, os que se envolvem com o fazer artístico, seja

de modo comprometimento ou não por razões as mais diversas, o fazem sempre na medida de

um sentir. Tal sentir se dá radicalmente a partir do sentido próprio em que tal fazer/saber

recebe daquilo que o sustenta. O Ocidente - a partir da mudança radical do paradigma

educacional no Mundo Grego Antigo, com o advento da escrita por oposição à oralidade -

promoveu o estabelecimento da arte e do artista banidos ao falso, relegados àqueles que não

possuem comprometimento com a verdade na perspectiva da adequação, da certeza e da

correção. A partir da República de Platão vemos o poeta deslocado para fora da Pólis grega.

Interpretações bem determinadas do pensamento do filósofo grego tornaram marginais os

caminhos do artista na atualidade, tomando-se em conta os padrões estabelecidos para a

cultura ocidental. Assim, em um percurso característico, o Ocidente se desenvolveu a partir de

uma relação de exclusão da arte e do artista em sua verdade velada no abismo do nada. Às

artes e aos artistas ficaram os títulos de superficiais, de supérfluos em relação à constituição

do essencial e básico à manutenção da vida. Às artes e ao fazer artístico restaram os dizeres

usuais como: “coisa que se tiver tempo talvez se possa fazer um dia”. Portanto, nas

dificuldades impostas pelos ditames sociais no Ocidente, aqueles que se permitem responder

ao apelo das artes o fazem na verdadeira vocação, respondendo a um chamado violento e

radical. Em tal chamado, os que por ele caminham o fazem no prazer do caminho e da

caminhada de modo essencial. É por isso que Cecília Meireles “canta o instante” na poesia,

ela canta pelo chamado radical enquanto convocação da arte em si. “Cantar porque o instante

existe” somente é na convocação radicalmente essencial na medida do chamado, na medida

da exigência que exige uma resposta, uma ação, um não opor resistência, um não permanecer

estático e parado diante da imposição que exige. Aqueles que são chamados pelo acontecer da

arte, no caso mais específico da música, se dão a um acontecimento mágico. A magia do

momento poético se apresenta de modo todo respeitoso na medida de ser especial. Há em tal

magia uma entrega, uma doação que se mostra enquanto uma reverência. A quem é concedida

a dádiva de poder habitar tal acontecimento mágico, se revela na medida de um reverenciar

que ao mesmo tempo participa em uma entrega radical. Portanto, podemos dizer que há um

acontecimento sagrado. Para os que no acontecer musical, bem como em todo acontecer

artístico, se entregam em doação, consciente ao mesmo tempo em que inconsciente, na

própria realização, se encontra o estabelecimento da ritualização do que lhe é sagrado. O

momento da entrega é a consagração do que se mostra sagrado enquanto mistério. Este, assim

se anuncia, na convocação do que se dá enquanto desvelamento no encobrimento abismal do

nada na não verdade do verdadeiro enquanto música, enquanto arte. Tal mágica sagrada é,

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como tal, na comemoração do memorável enquanto sagração consagrada do que é em si

sagrado. Nesse sentido, aquele que de tal aparecimento participa não pode apenas acreditar

plenamente no acontecimento em si. Ele faz muito mais do que um mero acreditar, ele respira,

vive tal acontecer na intensidade da mais alta realização. Respira como um “respirar o

nome184

” de que clama Cecília Meireles. Respira o nome respirando o próprio acontecer,

vivendo assim o próprio acontecimento na suspensão onde lhe é permitido se apropriar do que

lhe é próprio. A intensidade deste acontecimento como a consagração do sagrado enquanto se

faz realidade é na medida de um viver, de uma plenitude que levada ao sumo pode então se

dar naquilo que lhe é própria.

Talvez se possa objetar chamando de subjetivo o que pretendemos dizer com o

exposto acima. No entanto, qual dizer, enquanto dizer verdadeiro, não está na senda que

atravessa a quem por ele sofre dizendo. A quem por ele pode vir a dizer chegando de modo

radical a ser, enquanto diz, o que é sendo. E que somente o pode sempre na dinâmica de um

dizer que apenas se mostra na atenção cuidadosa de uma escuta, esta que é, necessariamente,

a morada do homem. A morada de todo homem disposto na suspensão que o joga lançado de

modo que, assim, lhe permite apropriar-se daquilo que lhe é próprio. Dessa maneira, aqui

pretendemos estar livres de toda e qualquer possibilidade de incutir, em quem quer que seja, o

que deve ou não sentir, até porque, a despeito de qualquer coisa, nenhum homem pode deixar

de fazê-lo. O sentir como dinâmica que põe o homem em uma disposição, acompanha o

pensamento em unidade. Apenas é permitido ao homem se encontrar na disposição de pensar

sentindo e o contrário do mesmo modo. Dessa forma, podemos esperar que a partir do sentir

possamos inaugurar caminhos pensantes de modo que o sentir não pode ser negligenciado. É

respirando o nome enquanto o próprio acontecimento que o artista como músico se rende ao

chamado que, a cada vez, se dá enquanto a ritualização do mito como a arte na verdade de si

mesma. Na mágica do encanto os cantos se desvelam. Encantados como que pelo “canto da

sereia” os músicos são chamados na vocação que os convoca. Eles se encontram naquilo que

são na própria realização que se dá como acontecimento. O músico, assim, está radicalmente

comprometido, na verdade, comprometido é um termo insuficiente, melhor é dizer que ele é o

que é enquanto músico e enquanto homem que “poeticamente habita esta terra”.

Poeticamente, ele habita a si mesmo sendo o que ele é no encantamento mágico do canto que

encanta e que, encantando, se revela na consagração do sagrado. O importante é pensar na

medida em que procuramos falar pertencendo por uma escuta própria ao que diz a si mesmo.

184

Cecília Meireles, Canções . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 10-11.

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304

Mais importante ainda, é dizer que as relações que estão em jogo pretendem dar conta do

âmbito musical na perspectiva ontológica, na discussão que pretende questionar radicalmente

a música e a arte em si mesmas. O sagrado na sagração e na consagração aparece na medida

em que, diante do mistério inexplicável da convocação que exige, o homem, enquanto

músico, apenas assume seu próprio lugar na verdade de tal chamado. Na verdade própria que

o essencializa como ele é, na reunião que lhe perfaz em todo seu ser enquanto homem e

músico já suspenso na paixão, no espanto, no encantamento mágico que, encantando, o lança

jogado no nada, no tempo e no ser. Desse modo, faz com que, assim, na convocação que

exige, seja a ele permitido se apropriar do que lhe é próprio.

O músico como artista e homem que é, é aquele a quem, de modo radical, é permitido

habitar a abertura para que a unidade da música como obra, músico, ouvinte e saber musical,

possa acontecer como tal. Habitando a abertura, lhe é permitido apropriar-se, estando já

suspenso no consentimento que lhe é concedido, daquilo que o nomeia como músico. Mas tal

apropriar-se é sempre a partir da ambigüidade. Habitando a abertura exigida e concedida para

que se dê como fenômeno o âmbito musical, o músico pode se apropriar do seu nome na

ambigüidade da reunião música e abismo. Ele pode se apropriar na medida em que se põe à

disposição do que já o ultrapassa. Tal ultrapassagem acontece como a consagração do que se

sagra enquanto sagrado na mágica que toma retomando o homem-músico como a si mesmo.

Encontrando a sua medida na consagração e na comemoração do memorável, o homem

músico se encanta no encantamento que lhe toma lançado e possuído naquilo que lhe possui,

disposto na postura que lhe é entregue. Perante tal postura misteriosa, a ele é permitido

recolher cuidadosamente pertencendo ao que se entrega, assim, ele responde ao modo de uma

restituição no desdobramento que se põe em obra na dobra permitida pela simplicidade. De tal

modo, restituindo em uma resposta, a colaboração do homem-músico se vê na maravilha de

participar da unidade musical a ponto de sentir seu brilho misteriosamente posto no convite à

apaixonante experiência musical em si mesma. “Respirando o nome” ao mesmo tempo em

que o “nome mesmo, passa”, ele vivencia a experiência da dinâmica musical que permanece

já se transformando. Dessa maneira, podemos dizer que o homem-músico é somente, como

tal, na medida em que respira música, e o faz de modo que lhe é permitido respirar a dinâmica

musical a ponto de nela abandonar-se para chegar a ser quem ele mesmo é. Abandonando-se

na experiência do sagrado musical ele depara-se com o mistério da música e com o seu

mistério enquanto homem-músico. A experiência como paixão e espanto é, de modo próprio,

avassaladora e inevitável na medida em que a entrega se dá de maneira radical. Assim, a ele é

concedido apropriar-se da temporalidade que lhe é própria na conquista do seu espaço como

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músico que é o que é sendo ao seu modo na convocação e na exigência que o mostram

lançado e exigido em um abandono. Portanto, ele “só quer o abandono185

”, por ser

radicalmente abandonado de si ele vem a encontrar-se. A magia assim não se explica,

permanece misteriosa resguardada no abismo de simplicidade. Permanecendo como ela

mesma enquanto encantamento se dá a experiência, ao viver, ao sentir, saber e pensar. A

experiência, o pensamento, o sentir e o saber, todos se dão com propriedade diante do que

permanece em si mesmo misterioso, mas que, a cada vez, se revela de maneira diferente. A

magia assim se mostra na unidade de necessidade e liberdade. Ela é necessidade na exigência

e na convocação, e liberdade na possibilidade de colaboração que é permitida ao exigido no

abandonar-se suspenso.

Diante do que apresentamos na relação entre homem-músico e música no âmbito da

unidade podemos ainda perguntar: mas onde se encontra a poética na unidade musical

enquanto po…hsij? Mas, o que é a música mesmo que não po…hsij em si mesma na

manifestação própria que reúne a sua unidade? A música é essencialmente poética, não há um

dizer que possa, com seriedade, negar tal evidência. Ela ultrapassa o homem e, por

conseguinte, o músico de modo a lhe ser anterior. Contudo, tal anterioridade não se dá na

medida da cronologia, pois que o advento musical, de modo próprio, surge em colaboração

com o homem. Aliás, a cronologia muito perde em verdade quando está em discussão uma

questão como a que se apresenta. As questões estão para além de toda compreensão

cronológica pelo simples fato de sua linearidade não ser suficiente para a ambigüidade

radical. A ultrapassagem requer e requisita o homem para que, como ultrapassagem, possa se

dar. Na disposição que a revela anterior, a unidade da poética musical é também e sempre

produção, como tal, ela requisita o homem em colaboração de maneira a, assim, ultrapassá-lo

radicalmente. Requisitado a colaborar para que a dinâmica musical continue a se dar como

acontecimento, ele responde ao chamado e se põe em obra colaborando no advento das obras

e do saber musicais. Portanto, assim perguntamos por que permanecemos na suspensão

misteriosa: o que são as obras e o saber musicais de modo próprio? Na intenção de

correspondermos de modo suficiente à questão nos dispomos a investigar.

185

Braga, D. Cancioneiro. Rio de Janeiro: Litteris, 2009.

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306

A) Obra

No âmbito de uma tradição cultural onde a unidade musical se revela em um mundo

que irrompe constituído no sustento da terra, temos obras musicais as mais diversas. Tal

fenômeno que se manifesta não nos faz mais seguros em procurar desenvolver a questão que

se insinua a partir do mistério próprio das obras em si mesmas. O âmbito em que se mostram

as obras se apresenta como colaboração, como um trabalho conjunto onde o homem é reunido

com o que lhe é ofertado pela Mãe Terra. Enquanto mãe, a terra oferta o material. Diante de

tal oferta, sendo permitido ao homem habitar a abertura para a terra, ele pode, então, co-

laborar em uma produção. A materialidade sonora se desvelando em sonoridade nas obras

musicais foi debatida anteriormente na unidade de desdobramento de som e silêncio. Portanto,

as obras musicais, efetivamente, se apresentam como fenômeno, na sua sonoridade própria.

Tal apresentação acontece na performance musical que se dá temporalmente na unidade do

tempo, de modo que se encontra retida e retraída como presença. Nesta medida, ela dura e

demora na apresentação de si mesma, onde se apresentando, passa. Nesse sentido, a obra

nunca se dá ao modo de algo que se poderia entender a partir da perspectiva do objeto, como

algo disposto ao alcance das mãos. Radicalmente a obra musical foge ao alcance das mãos,

primeiro por sua impalpabilidade, segundo pelo seu modo próprio de apresentar a

temporalidade que lhe diz respeito. A partir da performance sua solidez flutua no

aparecimento itinerante de si mesma. Dizemos itinerante, pois que permanece sempre

transformando-se, itinerante, pois que na marcha de sua apresentação os limites se encontram

aparentemente no anteceder e no fim da própria marcha de seu itinerário. A aparência aqui

permanece um dito, pois que apresenta tais limites na ambigüidade paradoxal que os torna, de

todo modo, indeterminados. A disposição em que as obras musicais se encontram, enquanto

memoráveis, se abrigando na guarda da memória, faz com que seus limites se tornem

praticamente indeterminados. Na apresentação performática das obras musicais elas enquanto

memoráveis encontram resguardo na memória e, assim, permanecem obrando enquanto obra.

Tal obrar resguardado na memória, na medida em que esta “conduz à unidade”, permanece

obrando enquanto assume, então, outra dinâmica que não a da própria performance em seu

acontecimento. Assim, o obrar permanece em seu vigor de maneira que vigora distintamente

no que a memória, em sua dinâmica própria, pode dar conta o conduzindo à sua unidade

própria. Dessa maneira, os limites ultrapassam extrapolando a própria performance que

permanece resguardada enquanto memorável na memória, no entanto, de um modo distinto.

Esta distinção é marcada na medida em que se apresenta como parte das possibilidades do

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aparecimento mesmo do obrar como obra. Obra aqui é o canto ceciliano. O canto congrega

todo obrar das obras musicais em suas mais diversas possibilidades. Desse modo, o canto se

manifesta encantando na mágica de seu aparecimento em seus limites indeterminados onde,

antes de iniciar e depois de terminado, se resguarda obrando na memória como memorável. É

desse modo que a obra pode obrar permanecendo obra. Nesse itinerário constante, a obra

musical se revela mostrando velada a sonoridade mesma em sua verdade. Dessa forma, não é

a performance no âmbito de uma individualidade que lhe dá a medida de seus limites

somente. O aparecimento é radicalmente um modo de fazer aparecer a obra obrando, como

obra musical. No entanto, tal aparecimento obrando em performance, se encontra resguardado

nas possibilidades próprias de aparecimento que a obra enquanto unidade - resguardada na

copertinência entre música e abismo - guarda consigo na medida de permitir uma infinidade

de aparecimentos distintos enquanto multiplicidade que não perde sua identidade. A cada vez

que há a performance de uma obra musical, esta se encontra na individualidade resguardada

no mesmo, como única dentro da multiplicidade que a permite ser como tal, isto sem deixar

seus limites próprios como obra. Ao mesmo tempo, é a performance, na sua individualidade

enquanto aparecimento, que permite a manifestação do romper em obra da obra. Encontramo-

nos mais uma vez na ambigüidade que perpassa toda a referência disposta nas investigações

até o presente momento. Ao mesmo tempo em que cada performance é única, enquanto

aparecimento ela não dá conta da unidade da obra que, de todo modo, resguarda, na unidade

originária de música e abismo, um sem-fim de possibilidades de aparecimento sem perder os

limites de sua identidade. O paradoxo se apresenta porque a obra musical, enquanto unidade,

se encontra reunida na unidade da poética musical em sua dimensão própria. Esta, por sua

vez, responde ao chamado da arte como unidade que, de modo radical, revela o ser

poeticamente em seu mistério. Assim, cada unidade se dá resguardada mostrando a dobra de

identidade e diferença na unidade do mesmo. Cada uma, no seu âmbito próprio, responde

enquanto unidade a partir da unidade maior como ser que a tudo reúne na tridimensionalidade

do tempo, resguardados ambos em sua verdade no abismo de simplicidade.

De todo modo, para que a performance enquanto aparecimento revele a obra, é na

produção que as obras musicais se permitem mostrar radicalmente. Como produção elas se

dão na medida em que aos músicos é permitido habitarem a abertura para o som em sua

verdade abrigada no velamento primordial do abismo. Suspensos na simplicidade ambígua do

abismo, a verdade dos sons e silêncios é concedida aos músicos no confronto com a

radicalidade que possibilita toda nomeação do que seja. Tal modo de desdobramento fica

patente nas diferenças em que a unidade sonora pode se apresentar no âmbito da música. Sons

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diversos, nas incontáveis possibilidades de aparecimento, promovem uma verdadeira dança

no movimento constante do entrelaçamento que constitui uma obra musical. Tecendo as

linhas próprias de sua unidade sonora uma malha vai se desvelando em sonoridade na medida

em que, na seleção dos sons e silêncios frente à permissão do excluído de toda exclusão, a

obra se mostra movimento marcando uma dinâmica de identidade. Na dança própria do

entrelaçamento dos sons e silêncios em sua diversidade cada um deles encontra o resguardo

no outro enquanto diferença, seja som, seja silêncio, sejam diferentes durações ou alturas,

bem como timbres ou intensidades. A marcha dinâmica de tecer com a diversidade sonora se

mostra em festa e em comemoração no advento da obra musical. Tal festa se afirma na

medida em que a obra, como identidade, se encontra no próprio aparecimento fixado nos

limites indeterminados de sua marcha, de seu itinerário itinerante. A imagem como dança dos

sons em baile se dá na medida em que a obra no seu obrar é, em si, movimento. Enquanto

imagem, o movimento da dança, se mostra um modo inequívoco de apresentar o movimento

em si mesmo, aproximando-se do baile próprio em que os sons e silêncios, se revelando

sonoridade nas obras musicais, promovem na medida de seu aparecer que rompe em obra.

Assim, a obra musical é um verdadeiro baile onde são festejados, comemorados e

consagrados, os sons e silêncios em sua diversidade que se rompem em sonoridade na obra

enquanto verdade. Diante do que está exposto, se afigura a possibilidade de aparecer a

pergunta: em que medida os silêncios na obra musical podem dar-se em uma diferença?

Respondemos que no baile promovido enquanto obra, toda a diferença que, assim, lhe

é permitida. Cada silêncio em uma obra se encontra obrando reunido na própria obra de modo

que, dessa forma, se articula sempre de modo diferente. De modo análogo, resguardados em

suas diferenças, acontece também com os mais diversos silêncios que a compõem. Os

silêncios postos em obra na obra se encontram obrando no baile próprio das diferenças como

movimento. Cada silêncio em uma obra musical é diferente um do outro porque, de todo

modo, no momento em que aparecem e na maneira como se encontram no tecido composto da

obra, em si mesmos radicam efetivamente como diferença. Por mais que as durações sejam as

mesmas em termos métricos, e que o momento musical seja a repetição integral de um trecho,

cada silêncio é diferente na sua identidade. Seu aparecimento concedido e revelado em obra

na obra, se mostra verdade na sua própria distinção, onde ele é único, naquele instante em que

permanece em obra. Sendo assim, a obra musical obrando revela cada silêncio em si mesmo

na verdade que o resguarda. De modo distinto, mas resguardado no mesmo, ela o faz também

com os sons. Dessa maneira, a obra revela a sonoridade em sua verdade na medida em que é

sonoridade na união radical das diferenças entre os sons e silêncios. Estes a perfazem

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reunidos na unidade própria da sonoridade enquanto abriga a diversidade múltipla do que por

ela é abrigado. Sons e silêncios se encontram como sonoridade no mesmo. Assim, as obras

musicais apresentam seu baile enquanto itinerário itinerante a despeito de qualquer

interferência que não seja, de modo radical, o mostrar-se enquanto a celebração que por ela se

dá e rompe-se em obra. Rompendo em obra desse jeito, ela se dá obrando na limitação

indeterminada de seus limites abrigados enquanto memorável na própria memória. A obra

como baile é uma celebração. Ela celebra pondo em obra a diferença que se articula no âmbito

da sonoridade como reunião de som e silêncio em si mesmos. O canto assim celebra. Ele,

desse modo, encanta na medida de uma celebração que põe em festa o aparecimento itinerante

no itinerário que se rompe em obra. A obra musical é a celebração como consagração do

sagrado da sonoridade em sua verdade resguardada e permanentemente itinerante em sua

solidez. Assim, ela é verdade velada e misteriosa em si mesma. Tal verdade se resguarda

como unidade no memorável que se concede à memória e, lá, permanece em transformação.

Devido à tradição que nos precede devemos ressaltar uma diferença radical entre as

obras de arte, no caso obras musicais, como produção, das outras produções. Tanto a arte

quanto o pensamento em sua radicalidade não se articulam a partir do âmbito do útil e da

utilidade. Originariamente eles se encontram para além de tais relações. Tal constatação

simples não condiz com o que costumeiramente é dito quando algo se encontra para além do

âmbito do útil e da funcionalidade: que as coisas deixam de ter sentido. Justamente o oposto

se revela. O sentido de ambos mais se faz presente na medida em que se encontram

necessariamente distantes do que se diz como útil disposto na disponibilidade do disponível.

O fato de não se fazer com as obras musicais, o que se faz com sapatos, carros e bolsas, na

medida do uso comum, não desprovê de sentido a manifestação artística musical bem como a

do pensamento. Podemos dizer tal sentido na medida em que ele se mostra a partir de uma

relação de necessidade e liberdade. As artes são uma necessidade ao mesmo tempo em que

liberdade, mas não por utilidade, mas sim por uma questão própria de constituição do que é

próprio ao homem. Ao homem somente é permitido apropriar-se do que lhe é próprio na

medida em que o ser lhe concede produzir habitando poeticamente. O porquê de tal sentido,

não se apresenta pelo simples fato de se encontrar na senda da entificação do que se dá ao

modo do ser. Como o sentido, de qualquer modo, não se rende à objetivação, não se dá

enquanto algo objetivo. Ele é, então, o próprio aparecimento, a própria manifestação enquanto

se dá velada e encoberta no resguardo de sua verdade como não-verdade radical. Saber o

porquê de algum dia ao homem ter sido concedido se encontrar na disposição da arte e do

artístico é de qualquer maneira estranho. Contudo, é na necessidade e na liberdade que ele se

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encontra na disposição da arte. Na necessidade e na liberdade de uma exigência que ao

homem é posta e à qual não lhe é concedida a possibilidade de, enquanto essência, ficar

impassível ao confronto. Talvez este seja o mais próximo que, na limitação em que nos

encontramos, possamos chegar a tal por que. Portanto, diante do que é puro sentido já é tempo

de deixarmos livres de qualquer estranhamento, por nossa parte, o que não se dá na

disponibilidade do disponível na medida da utilidade. Já é tempo de escutarmos a verdade

tanto da poética pensante como do pensamento poetante em si mesmos, a despeito de

quaisquer outras relações posteriores que venham a surgir possibilitadas na permissão e a

partir do seu aparecimento misterioso enquanto verdade.

Livre de qualquer interferência posterior a obra musical é produção. As obras

musicais, como o baile de consagração e comemoração da sonoridade posta em obra, são

produções que trazem a escuta para dentro de sua referência de modo radical. Sem escuta

primordial, sem escuta própria, não há obra musical bem como também não há música

enquanto unidade. “Escutamos com propriedade, escutamos radicalmente, quando

pertencemos ao apelo186

” que, apelando, nos exige, nos convoca, na medida de um confronto

exigente de nós mesmos. Tal exigência nos exige ao modo de, assim, nos ser concedido

chegar a nos apropriarmos do que nos é próprio, chegando ao nosso próprio mistério.

Portanto, pertencemos à música em uma escuta para que possamos, a partir dela, escutá-la

como expectadores, como músicos, como homens. Participando de tal escuta nos é permitido

ser nomeados como somos. Pertencendo ao que se manifesta no encobrimento de si mesmo,

ela se revela. A escuta, como um pertencer, é também reunião e diz de outro modo a união de

toda a dinâmica musical em si. O difícil para nós se revela na questão que pergunta pelo

homem enquanto participa da dinâmica musical ao modo da produção em colaboração com a

Mãe Terra. Já dissemos que o músico se encontra reunido em uma unidade que o ultrapassa

nas raias de sua constituição como o chamado ao qual ele atende. Falamos também que as

criações se dão a partir do nada enquanto simplicidade que permite toda dobra como seleção

frente ao excluído de toda exclusão. Assim, diante do absolutamente nada toda e qualquer

produção pode se dar. Ele se mostra co-participando como medida radical de toda criação na

diferença originária, onde tudo que é sendo se encontra na plenitude de si mesmo. Dissemos

ainda que as obras se dão na perspectiva da oferta da Mãe Terra, enquanto materialidade

sonora, desse modo, na obra musical tal materialidade se revela em sua verdade misteriosa

como sonoridade. Sendo-nos consentido habitar a abertura para o ser poeticamente,

186

Conferir no presente trabalho, Capítulo 2, subitem A escuta em sua originariedade.

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recebemos tal material onde, abrigados no ser, como tensão originária entre fÚsij e lÒgoj,

podemos participar da escolha e seleção como recolhimento na medida em que a própria terra

fala originariamente em se mostrando. Dessa maneira, a produção não tem como deixar de

voltar a falar. A obra musical como produção, como colaboração, que aproxima, na

proximidade combatente e violenta, o irromper de um mundo com a terra, se desvela na

brotação em que esta mesma terra, de modo efetivo, vem a se revelar resguardada em sua

verdade misteriosa. A brotação irrompe na violência onde a materialidade como som e

silêncio se desvelam verdadeiramente como sonoridade posta em obra, no baile em que a ela

se dá manifesta na magia misteriosa que clama chamando para si. Em tal violência se revelam

tanto um quanto o outro, mundo e terra, de modo efetivo na verdade de si mesmos. Revelam-

se resguardados na unidade que, como mesmo, traz a multiplicidade no seu abrigo. A magia

do movimento que rompe em obra no baile sonoro congrega celebrando a comemoração em

que o memorável se resguarda na sua unidade própria. Assim, a obra musical abrigada na

música é uma sagração que permite a consagração do sagrado próprio de seu aparecimento. A

obra musical sagra permitindo a consagração do que por ela se dá como sagrado: a

comemoração do memorável que se rompe em obra reunindo ao modo da poética musical

como unidade. A comemoração do memorável é o que toma encantando enquanto canto

exigente em seu próprio aparecimento. Tal sagração convoca solenemente. De modo solene a

resposta à exigência se dá como acontecimento que, enquanto produção, reúne. O inter-

relacionamento como teia sonora de movimento dançante apresenta a mágica. Esta magia

misteriosa traz em suspensão aqueles que nela consagram em consagração o sagrado, de

modo que este se mostra reunindo enquanto acontecimento soando e ressoando na obra

musical. Assim, ela é o que é na apresentação mágica das diferenças. Dessa maneira, ela se

envia trazendo-se como memorável para a unidade de si mesma na celebração. Esta

celebração consagra na consagração do sagrado enquanto acontecimento musical resguardado

na unidade como música. A música enquanto unidade permite à obra musical se apresentar

como tal. Posto que apenas na reunião dialogante da música pode a obra se desvelar como

manifestação em sua verdade.

A respeito das obras musicais, se torna importante abordarmos com maior acuidade a

questão dos seus limites que ficaram em aberto. É inegável a qualquer um que, enquanto

unidade, toda obra musical se apresenta em uma delimitação. Esta delimitação mostra

radicalmente a unidade da obra frente à diversidade, de modo que, sua identidade permite à

obra o aparecimento formal frente a outras obras. Quando colocamos em questão a

materialidade das obras se revelando sonoridade, ficou patente que elas rompem em obra

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soando no seu aparecimento em uma forma. A forma é, assim, de todas as maneiras,

apresentação. Não há como ser apresentada uma obra musical sem a forma de sua própria

identidade. Na verdade, forma, como a teia da materialidade sonora, e obra são o mesmo, pois

é como forma que reside sua identidade como esta obra e não outra. Anteriormente tomamos

como exemplo a 5ª Sinfonia de Beethoven187

. Ela se apresenta em sua forma e diante dela,

nada mais. O nada mais que se encontra alheio do que é 5ª Sinfonia, ao mesmo tempo é a

reunião do todo que se encontra como não 5ª Sinfonia. Na sua unidade perante a unidade em

que a própria obra se encontra jogada, ela se revela na ambigüidade onde a unidade maior que

a reúne, nos apresenta duas possibilidades de compreendê-la: uma na apresentação da 5ª

Sinfonia perante tudo aquilo que é não ela; outra, onde tudo que é não ela ao mesmo tempo é

o que a abriga num mundo que irrompe no abrigo da fÚsij, onde somente lá, ela pode se

desvelar como a unidade de si mesma. A primeira nos dá a impressão de que haveria a

possibilidade de um isolamento da obra a despeito de toda a conjuntura em que ela está

lançada, no entanto, dizemos que tal impressão é apenas uma aparência. Assim, fora a sua

forma enquanto apresentação, enquanto a emergência de seu surgimento, mais nada, ao

mesmo tempo em que, diante desse mais nada, se encontra ambiguamente a totalidade onde

ela encontra morada e guarida. Os limites de sua delimitação enquanto obra então são

medidos por ela mesma reafirmando-se perante a diversidade. Tais limites transcendem o

aparecimento e o desaparecimento em que as obras se encontram postas e dispostas.

Inclusive, transcendem o próprio esquecimento na medida em que se mostram como

memoráveis na disposição da memória. No aparecimento e desaparecimento, na lembrança e

no esquecimento, elas permanecem obrando sendo o que são. Assim, seus limites apresentam

o movimento do baile próprio onde ritmicamente se dão formalmente em sua identidade no

seu próprio espaço.

Na questão musical o ritmo é também fundamental, de modo que ele encontra par na

questão da própria forma. Desse modo, podemos dizer que uma obra musical se apresenta no

seu ritmo e forma próprios. Não há instâncias distintas que abstraiam a forma e o ritmo da

obra, tais abstrações, quando possíveis, se dão permitidas pela própria obra em seu

aparecimento resguardado na unidade maior da dimensão poética musical. Quando se

apresentam desdobramentos do saber musical onde se mostram tais abstrações, estas, como o

próprio nome evoca188

, partem de uma divisão que necessariamente retira a obra de si mesma,

do seu livre florescer obrando como tal. O fato de poderem ser criadas analogias a partir de

187

Conferir no presente trabalho, Capítulo 1, subitem O ser e a verdade. 188

A palavra abstração é oriunda do latim abstrahere com sentido de separar, recortar, dividir.

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uma identidade rítmica189

, ou formal190

, estas não são abstrações em si mesmas, mas sim, a

possibilidade ambígua da unidade que resguarda a multiplicidade. Assim, essas unidades

rítmicas e formais são instituídas pelo acontecimento das obras musicais resguardadas na

dinâmica da música enquanto unidade. Tais analogias são, portanto, uma permissão da

unidade. Ao contrário, a abstração proveniente da analogia é um retirar a obra musical de si

mesma e de sua própria verdade enquanto florescer. Na obra, ritmo e forma estão em obra na

mesma. Não há obra fora de sua própria materialidade que formal e ritmicamente se mostra

obrando no baile dos sons e silêncios revelados rompendo como sonoridade.

Ritmo e forma se conjuntam enquanto aparecimento próprio da obra musical. Na

medida em que a obra aparece se revelando sonoridade, o baile sonoro que se põe em obra

revela o combate violento em que a sonoridade como unidade abriga. Conquistando o seu

espaço enquanto aparecimento, a obra musical revela a violência do combate entre distintos

sons e silêncios no movimento do medir próprio de suas identidades e diferenças. Medindo-se

uns aos outros, os sons e silêncios postos em obra se confrontam no combate. Cada som, cada

silêncio, cada articulação sonora das frases e motivos musicais191

, se afrontam resguardados e

reunidos na unidade própria da obra. Cada som-silêncio disposto nela se mede com cada uma

das unidades apresentadas na própria obra. Sendo tal unidade formada por apenas um som ou

silêncio, seja ela formada por grupos de sons, seja com a unidade da obra como um todo, em

seu aparecimento conjunto se mede vigorosamente. Tal medir é o confronto onde o ritmo

próprio do movimento deste combate vigoroso mede forças. Medindo forças, a obra se dá

formalmente conquistando seu espaço, revelando seu ritmo próprio, revelando-se esta e não

outra. O ritmo, portanto, se apresenta no combate violento da tomada de medida entre os

diferentes reunidos no mesmo. Os limites da obra se revelam nesta tomada de medida de um

frente ao outro, na referência de todos com todos, resguardados na unidade própria da obra.

Onde, a identidade da obra enquanto sonoridade rítmica e combatente se mede frente a outras

obras, todas reunidas na dimensão poética musical como um todo.

Diferentes ritmos e formas são marcados e conquistados por diferentes obras, por

diferentes bailes contínuos obrando-se em sonoridade. A obra musical se traz em seus limites

para vigorar como memorável no âmbito da memória, transcendendo de seu aparecimento,

desaparecimento, esquecimento e lembrança. Falar dos imites de uma obra permanece,

portanto um mistério em si mesmo, porque tais limites sempre se encontram na ambigüidade.

189

Na medida de ritmos que se consagraram como, por exemplo: samba, baião, bolero etc. 190

Formas musicais como a forma rondó, a forma binária, etc. 191

Conjuntos de sons recolhidos de maneira própria que se apresentam identidade frente às diferenças no todo da

obra musical.

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Não há obra fora de tal ambigüidade radical e, por isso, não podemos precisar muito menos

objetivar tais limites. Eles, ao mesmo tempo em que a delimitam, se encontram na

possibilidade de transformar-se dentro da liberdade delimitada pela sua própria identidade

como obra.

B) Saber

O saber se encontra em qualquer área que põe o homem no âmbito da poética e do

pensamento. Toda produção à qual ele se encontra na disposição de uma colaboração mostra e

revela um saber. O saber foi dito anteriormente a partir do Ðmloge‹n. Da referência do lÒgoj

ao homem na medida de uma escuta atenta, na escuta como um pertencer que escuta

audientemente192

. Concedido a nós habitarmos a escuta podemos nos postar a partir do

acontecimento musical na dinâmica própria de sua verdade enquanto saber, este que acontece

a partir do advento musical na medida de sua emergência.

Na unidade poética musical se reúnem a produção, a performance, a teoria, a escuta, e

os homens na medida dos músicos e dos ouvintes. Em toda a gama de possibilidades

aventadas o saber se mostra de modo determinado. Tais modos que congregam o

acontecimento musical na tradição ocidental se especializaram de forma muito peculiar

dividindo e aprofundando os diversos modos de acesso ao saber. Nesse caso, o saber, como

em todos os modos de realização aos quais o homem se encontra à disposição, se dá na sua

peculiaridade como vocação, no chamado próprio que conclama os que são dispostos em tal

chamado na exigência de uma ação perante o confronto presente. Tal chamado já recolhe

aquele que por ele responde, em uma disposição pré-disposta a se encontrar na dinâmica de

um aprendizado. Nesta pré-disposição, o homem, assim, já se encontra receptivamente na

ação de uma busca. A busca já se inicia no chamado. Conclamando o homem para dentro do

seu acontecimento a emergência da unidade musical delimita a busca na medida de uma

necessidade e liberdade ao mesmo tempo. A busca se inicia enquanto necessidade e liberdade

e, assim, delineia o caminho de um saber que na verdade é um como unidade na

multiplicidade permitida pela unidade da música.

Ultrapassando o homem na medida de sua individualidade, o acontecimento musical

se mostra na tradição precedente, ao mesmo tempo em que figura como possibilidade

imensurável enquanto o surgir retraído no porvir. Em todas as diferentes culturas se apresenta

192

Ver no presente trabalho, Capítulo 2 subitem O lÒgoj.

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uma relação de saber que engloba o ensinar e o aprender na unidade da educação. Na verdade,

ensinar e aprender somente são o que são na perspectiva da educação. Assim, ela se mostra

pertinente na discussão em que procuramos, de algum modo, nos encontrarmos na disposição

de escutar atentamente o saber que se desvela no acontecimento musical como unidade.

Entendemos educação como um caminho. Um caminho que se desvela na reunião

onde se apresenta uma troca constante, entre aqueles que se dispõem em caminhar tal

caminho. Na verdade um caminho talvez seja uma imagem incompleta, pois que ela pode ser

mais um modo de caminho que possibilita o caminhar e o instituir outros caminhos. O homem

indiscutivelmente se encontra diretamente implicado no âmbito da educação, portanto, ela traz

o relacionamento entre os homens de um modo determinado. Referindo-nos ao sentido mais

amplo, a educação se mostra desde o início da vida do homem lançado em um mundo que o

ultrapassa. A própria palavra nos traz a indicação necessária para que a simples constatação

possa ser respaldada. No latim educação encontra sua origem como educationis dizendo

primeiramente da ação de criar, de nutrir; de modo que apresenta também o sentido de cultura

e cultivo. A ação de criar e de nutrir se percebe primeiro no relacionamento parental entre pais

e filhos, onde a criação e a nutrição cabem aos pais na medida em que estes entregam o seu

legado aos filhos. Aqui a nutrição não se restringe apenas ao aspecto da alimentação, mas se

mostra em um âmbito maior nos diversos aspectos em que a palavra pode ser compreendida.

Na verdade, o nutrir como alimentação, é desvelado num sentido amplo como um nutrir que

cultiva, que prepara, que entrega e confia. Criar e nutrir se apresentam como sinônimos. A

criação é um nutrir acima de tudo cultural, enquanto um nutrir que cria a partir de um cultivar

o que no cultivo cresce. Tal cultivo encontra no cultivo vegetal um par, onde se resguardam as

diferenças, pois que cultivando a terra o homem se entrega e confia no que lhe é ofertado.

Assim, o cultivo se dá em unidade. O cultivar enquanto criar na nutrição reunindo pais e

filhos transforma ambos, tanto filhos como pais aprendem na troca estabelecida, assim, ambos

se cultivam e se nutrem mutuamente. O cuidado da nutrição e do cultivo é, ao mesmo tempo,

a entrega de um legado, bem como uma troca onde os que se mostram implicados interferem

radicalmente na vida um do outro. Escutando o que diz a palavra ela se mostra troca.

Trocando, os envolvidos se mostram reunidos em si. Uma troca é sempre uma via de mão

dupla, que modifica, no movimento de permanência da unidade, aqueles que por ela

transitam. A princípio educação se desvela como troca, no entanto, a troca não é suficiente

para trazê-la naquilo que ela é. Assim, mais uma vez nos permitimos recorrer à palavra

buscando sua formação. A palavra latina educationis provém do verbo educare que é

composto pela preposição ex- com sentido de para fora; adicionada do verbo duco, ducere que

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diz do levar, conduzir. Desse modo, educação diz do levar e conduzir para fora como um

caminho próprio que eclode. Este para fora se dá quando ao homem é permitido encontrar o

caminho de conduzir a si mesmo para fora permanecendo o mesmo. Por essa condução a ele é

concedido poder percorrer um caminho que ele mesmo colabora para que seja instituído

sempre na troca em que se encontra implicado. A educação é uma troca que conduz, assim,

ela é aquela que, como troca, faz com que possamos instituir caminhos próprios já em

movimento. Dessa maneira, um homem pode colaborar para que outro possa conduzir para

fora de si mesmo caminhos que se dão enquanto criação e saber. Como caminho abrigado

pelo que permite todos os caminhos, tal eclodir sempre se mostra em movimento na medida

do saber. Toda troca do homem como educação é permitida e abrigada no resguardo da escuta

atenta como Ðmloge‹n, escutar pertencendo a fonte originaria e inaugural da fala que nos diz

ser tudo-um. Assim, a troca que conduz por caminhos próprios se encontra abrigada e

permitida na medida em que ao homem é concedido estar suspenso na copertinência entre

nada, ser e tempo poeticamente e, nessa suspensão, lhe é consentido apropriar-se do que lhe é

próprio.

No âmbito musical o saber se mostra também nas relações educacionais da música. No

Ocidente são constantes escolas, teatros, museus, bem como um comércio onde a música e a

arte, de um modo geral, em todos os âmbitos de alcance, se encontram disseminadas ao

mesmo tempo em que concentradas como unidades em tal propagação. Escolas e teatros, bem

como salas de concerto demarcam a possibilidade de, no Ocidente, o saber musical se dar

enquanto movimento. Não há dúvida de que a questão não se restringe ao Ocidente, aqui ele

se encontra porque nele nos achamos lançados e formados. A tradição de há muito nos

ultrapassa. Isso não podemos esquecer no curso das investigações. No entanto, a relação

musical como dinâmica de acontecimento não se encontra restrita, mas ao mesmo tempo não

estamos à disposição de conhecimentos suficientes para de modo lícito e cioso questionar a

música em âmbito distinto. Na medida de estarmos sem vias de investigar, assim mesmo

procuraremos questionar a música em si mesma de modo a dela ouvir sua verdade.

No aspecto do saber a partir da educação como troca, percebemos que há no âmbito

musical, muito claramente, uma relação entre mestre e aprendiz que trocam experiências nos

caminhos percorridos. Nos dias atuais é comum vermos escolas tendo em suas salas de aula

em média de 20 a 50 alunos para aulas ministradas por apenas um professor. No âmbito

musical tal modo de relação educacional se mostra em aspectos distintos. Na medida em que

se separam da dinâmica as relações comerciais que, de todo modo, exigem uma série de

mudanças nos aspectos do ensino, percebemos no âmbito musical uma espécie de intimidade

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na busca do ensino. Nas instituições que são tratadas pela dinâmica musical de forma

acadêmica as turmas são reduzidas. A grande maioria das universidades brasileiras no que se

refere ao ensino instrumental, como violão, piano, clarineta, acordeom etc. mostram

atendimento individualizado aos iniciados nos mistérios musicais. No entanto, não se torna

difícil de imaginar que as difíceis técnicas empregadas por diferentes músicos em

instrumentos os mais diversos ao redor do mundo se dêem a partir de imensas turmas regidas

por questões econômicas como redução de custos e “otimização” da mão de obra. No que se

refere ao artístico e, no caso específico, ao âmbito musical, uma questão de qualidade e

seriedade muito peculiares se apresenta. Independente da instituição de ensino, o saber em

que se insere a dinâmica musical é, de todo modo, assaz especial e necessita de cuidado e

dedicação peculiares. Independente da prática, do lugar, de estar ou não abrigado em um

ensino formal, toda a seriedade do trabalho musical envolve um saber dispendioso em termos

de dedicação, atenção e cuidado. Por isso podemos inserir a pergunta: como se poderia ter a

celebração da consagração do sagrado, enquanto o baile de sonoridade que encanta dispondo

o homem na suspensão de si mesmo, se todo o cuidado com a dinâmica musical não fosse

ainda pouco?

Para a arte e a música enquanto âmbitos do poético todo o cuidado é pouco. Para

responder à exigência exigente que convoca o homem de modo efetivo, anos de dedicação são

necessários. Tal dedicação independe da prática a que, no âmbito musical, o músico se dedica.

O importante é que toda prática, como tal, demanda saber por ser o que ela é. Dessa maneira,

podemos imaginar um músico com todo o cuidado, pertencendo na escuta, selecionando,

dentro da riqueza do material sonoro, o que, como som e silêncio, irá soar enquanto

sonoridade rompendo em obra na criação à qual lhe é permitido tomar parte. Cuidadosamente

ele recolhe os sons e silêncios que lhe são confiados. Dessa maneira, busca o enlace que

venha a bailar como movimento próprio no aparecimento da obra enquanto emergência

lançada em sua unidade. Nesta seleção cuidadosa, uma imensurável gama de possibilidades é

excluída. Em tal seleção ele permanece absorto, suspenso, como que em uma febre ou transe

em busca do que melhor venha, a partir do que lhe fala, soar como verdade sonora. Para tal,

ele tem de estar à disposição de todo um saber que fala. A fala deste saber se encontra reunida

na unidade da poética musical. Assim, o músico tem de cuidadosamente estar na disposição

de pertencer a cada nuance, cada som e cada silêncio que repousam, de modo próprio,

abrigados na simplicidade do abismo. Um sem-fim de caminhos se lhe afiguram, assim, ele

deve estar radicalmente convocado a fim de que a unidade musical possa lhe conceder as

possibilidades de uma obra como unidade. Tal consentimento se revela no equilíbrio do

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movimento e das tensões do combate primordial em que se medem sons e silêncios. Esses

movimentos, tensões, e tomadas de medidas entre sons e silêncios, seja em grupos ou

individualmente, se encontram na disposição do todo como obra e de cada detalhe sonoro

reunido e medido pelo todo, ao mesmo tempo em que mede o todo abrigado pela poética

musical. Para pertencer radicalmente à essa referência, o músico tem de estar na disposição do

saber. Tem de ouvir atentamente de modo que todas as relações reunidas possam florescer em

obra naturalmente. Naturalmente aqui, diz de na própria produção todas essas relações se

mostrarem reunidas no âmbito da unidade musical. Uma naturalidade advém pela dedicação

de horas, dias, anos de pertencimento à convocação que clama na exigência. Na verdade, as

medidas cronológicas são totalmente imprecisas aqui, e se encontram apenas para reforçar a

imagem de seriedade e dedicação em que o músico tem de estar à disposição. Convocado na

unidade que lhe nomeia, ele tem de ouvir a si mesmo em referência com o todo. Ali, sua

identidade conta de modo radical ao modo de pertencer na escuta, para que a colaboração da

produção possa se dar no saber permitido e resguardado pelo ser que se apresenta

musicalmente na unidade música e abismo. O saber permitido e concedido pelo ser como

música e abismo se oferta de modo que, sendo ao músico consentido estar em consonância

com tal saber, pode ele colaborar na produção de modo radical e originário, posto que ele

mesmo também se encontre produzido em tal produção. A cada produção enquanto obra e

saber, mais o músico se mostra produzido como tal, pela unidade que o abriga e da qual ele

participa em colaboração. Estando ele, dessa maneira, disposto ao saber musical, podem as

obras florescer a um aparecimento na criação. Ao músico sendo permitido suspender-se de si

mesmo auscultando o saber e a unidade que o abriga e resguarda, a criação pode se mostrar.

Assim, ao músico é permitido, a cada vez, reafirmar-se como músico e ouvinte abrigado pela

unidade de música e abismo onde o ser se desvela musicalmente. Reafirmando-se a ele é

concedido transitar pelos caminhos de sua própria unidade abrigada no todo que o nomeia.

Transitando por si mesmo em criação ele se vê na eterna condição de estar sempre transitando

à caminho de si mesmo como músico na unidade pela permissão que lhe concede consentido-

o a ser o que é em tal trânsito.

Horas e horas de dedicação também são exigidas para que o homem se encontre na

possibilidade de colaborar no aparecimento próprio das obras pelos instrumentos musicais.

No Ocidente tal modo de saber é dito na performance. Para qualquer performance tem de

haver o cuidado cioso buscado paciente e demoradamente. A performance se dá na medida de

um responder à exigência da obra musical. A obra exige uma escolha detida e cuidadosa. Esta

escolha se dá onde o modo em que ela se dará ao aparecimento venha se articular em

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consonância com a sua verdade. Assim, o músico lançado na performance se encontra na

necessidade e liberdade próprias que as possibilidades de aparecimento da obra, resguardada

na unidade musical, se revelam como unidade na multiplicidade. O saber específico da

performance exige do músico o cuidado na escolha dos modos de fazer aparecer a sonoridade

posta em obra na obra musical. Diante dos múltiplos modos em que a obra mesma se permite

aparecer, resguardada enquanto verdade no abismo de simplicidade, o músico tem de

pertencer atentamente à ela. Somente pertencendo de modo atento, ele pode corresponder à

verdade da obra que se apresenta. Apenas na medida da correspondência ele se vê suspenso e

lançado na paixão que o toma, o revelando em sua própria verdade como músico e como

homem. No âmbito da possibilidade performática o músico se depara inevitavelmente com o

instrumento musical. Instrumento é uma palavra que nos traz uma perspectiva de mediação.

No entanto, o instrumento musical não media, é nele que a obra se faz aparecimento.

Instrumentos musicais são a voz, o piano, o violão, a kalimba, o birimbáu, etc. Neles as obras

se dão presença. Originariamente os músicos não se dedicam a um instrumento, mas a

possibilidade de trazer as obras musicais enquanto presença na medida de sua verdade. Dessa

forma, instrumento musical é um nome equivocado, o equívoco se dá devido a palavra

instrumento nos apresentar sempre essa relação mediadora. A dedicação em que os músicos

se põem a pertencer à unidade que os abriga, revela a performance na medida em que os

chamados instrumentos são, na verdade, parte das obras musicais na sua apresentação, posto

que elas se fazem neles, na sua condição e possibilidade sonora. O instrumento é parte da obra

na sua apresentação de modo que ele concede à obra sua sonoridade única resguardada no

âmbito infindável de possibilidades de seu aparecimento, assim, a obra se revela reunida na

unidade de música e abismo de simplicidade que a concedem na multiplicidade do um. O

músico dedicado ao instrumento recebe dele suas possibilidades sonoras. No âmbito musical

o instrumento não é objeto. Fora da dimensão poética musical sim, não deixa de ser objeto

para o que quer que seja, pois um sujeito pode simplesmente “sentar” um violão na cabeça de

outro devido as circunstâncias. No entanto, no âmbito da poética musical tal condição se eleva

a outra perspectiva. Não há performance sem que o instrumento, enquanto um apresentador de

possibilidades musicais, não se conceda a revelar a obra. Cada revelação é sempre única

abrigada no âmbito das possibilidades e impossibilidades na simplicidade do abismo em

unidade de copertinência com a música. Em diferentes instrumentos como apresentadores de

possibilidades, as obras se dão distintas em sua unidade. Percebemos isso claramente na

diferença de um concerto para violão e orquestra sendo executado em orquestra e violão ou,

de outro modo, sendo executado em redução para piano e violão. A obra, sem deixar de ser a

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mesma, é diferente em ambas as execuções. Ela se apresenta de modo distinto, pois que as

possibilidades de sua apresentação permitidas e concedidas pelos instrumentos, enquanto

apresentadores, são radicalmente diferentes. Dessa forma, o saber que envolve o músico no

âmbito da performance lhe faz pertencer atenta e cuidadosamente ao modo em que o

instrumento, enquanto apresentador de possibilidades de obras, lhe permite. Ele pertencer às

obras na medida em que elas se confiam na medida de tal apresentação concedida pelos

instrumentos-apresentadores. Assim, é permitido ao músico medir cada possibilidade, cada

nuance sonora, de modo a lhe ser consentido colaborar na produção e criação de

possibilidades de apresentação da obra em sua verdade, que se dão sempre resguardadas pelo

âmbito que reúne a poética musical enquanto unidade de música e abismo. Por isso, podemos

dizer que o saber da performance se dá na perspectiva radical da criação. Na performance

musical, é consentido ao músico colaborar criando distintas possibilidades de que as obras

musicais se façam presença na verdade de si mesmas.

Em ambas as possibilidades de criação, seja na produção das obras, seja na medida do

aparecimento da performance, o erro perpassa radicalmente toda a condição de tal

acontecimento. As medidas e tomadas de medidas que se dão no confronto originário entre as

diferenças como possibilidades sonoras, se abrigam na errância que permite todo erro.

Errando na errância é consentido ao músico colaborar na produção como criação. A errância

lhe concede toda a medida, todas as possibilidades em que o confronto radical da sonoridade

em sua verdade se dê em acontecimento rompendo em obra. Todo saber é perpassado

originariamente pelo erro que o conforma. A poética musical se dá na copertinência com a

errância do abismo de simplicidade. Consonando em suas diferenças música e abismo

apresentam a poética musical como unidade na medida em que todos os reunidos se

encontram lançados e jogados em tal unidade. Toda criação musical se faz na errância, assim

o erro é constante acompanhando a colaboração. Por isso o homem é um colaborador na

criação, porque lhe é permitido trabalhar no não controle de todo controle. A ambigüidade

perpassa toda criação musical originariamente de modo se o ser se confia na fala de sua

verdade como música e abismo reunindo todos os que são abrigados em tal unidade.

Devemos ter ainda em atenção o saber na medida em que se mostra na perspectiva da

escuta audiente. É fundamental na dinâmica musical o encontrar-se na disposição da escuta

atenta que possa, assim, recolocar cada som e cada silêncio em seu lugar próprio na medida

da sonoridade. O saber do músico como ouvinte, pertencendo originariamente ao

acontecimento musical, lhe dá a medida de poder conhecer e reconhecer os sons e silêncios na

seleção abrigada pela música. Apenas em tal disposição, pode o músico cuidar de maneira

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zelosa pelo que o convoca em vocação na seriedade que, assim, lhe é exigida, seja na criação

em seus diversos âmbitos, seja na performance de forma igual. Somente pertencendo ao que

se dá como memorável a uma escuta atenta, o músico pertence à música em sua dinâmica

própria. Em toda escuta audiente o ouvinte como parte da dinâmica musical é

fundamentalmente resguardado na unidade em questão. O ouvinte se encontra abrigado no

pertencimento radical ao acontecimento musical que o reúne. O ouvinte não apenas se

encontra na disposição de ouvir as obras, mas ouve também os músicos. Na performance se

encontram comprometidos radicalmente obras e músicos, reunidos na unidade que lhes

abriga, se confiando à pertença originária dos ouvintes enquanto a estes é permitido habitarem

a escuta. A multiplicidade dos ouvintes se dá na perspectiva da multiplicidade de

possibilidades que as obras, florescendo na performance, são reunidas na poética musical. A

tantos ouvintes aos quais uma obra em performance se confia, quantos distintos modos de

pertencer a sua verdade se encontram à disposição da mesma. Os ouvintes se encontram

abrigados na unidade musical radicados na simplicidade do abismo como aquele que reúne

todas as possibilidades e impossibilidades. Os ouvintes se suspendem em tal unidade de co-

pertencimento lhes sendo concedido um sem-fim de modos de pertencer no sem-fundo do

abismo. Cada ouvinte sabe, sente, pertence às obras de modo distinto. Cada ouvinte aqui se dá

na perspectiva em que o homem se encontra naquele momento próprio nesta condição, pois

que, a cada um de nós, é concedido ouvir de modo distinto em momentos distintos o mesmo.

Ou seja, se ouvirmos a mesma obra em situações distintas, em quantas performances a obra se

fizer presente - podendo ser pelos mesmos músicos, ou até por uma gravação - tantos modos

de pertencer originariamente na escuta irão se dar.

Diante de tal pressuposto, podemos dizer que o saber musical se mostra resguardado

na comemoração do memorável se confiando disponível à memória. O saber resguarda

consigo todo o cuidado pelas obras, músicos e ouvintes na dinâmica musical. Toda técnica

musical é um saber, toda prática musical é um saber. Todo fazer musical, todo fazer que se

encontra na dinâmica própria da música, é desde sempre um saber. Um saber específico, um

saber determinado, que se mostra na limitação da dinâmica musical, mas em sua limitação é

ao mesmo tempo amplo na constituição de si mesmo. Tal saber se reafirma na mágica do

encantamento do canto da seria, onde a música, como unidade, mostra todos os reunidos por

ela musicando. Todo musicar da dinâmica musical faz com que o saber, enquanto Ðmloge‹n,

possa se desvelar e, assim, postar o homem-músico-ouvinte disposto em tal possibilidade de

saber como sabedoria. O encantamento mágico que mostra o saber se dá na disposição tanto

do aparecer quanto do desaparecer. Desaparecendo mantém resguardado o vigor do

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aparecimento na medida em que se encontra, como memorável, no vigor e na disposição da

memória. Assim, o saber colabora para que o encantamento permaneça encantando no

encantar como obra. No vigor do desaparecer se mostra a dinâmica própria do âmbito da arte

e, no caso, da música. As obras musicais enquanto um operar que opera dinamicamente

revelando seu próprio tempo, rasgam o silêncio do desaparecimento e entram no esperado

momento de magicamente aparecer. Tal possibilidade assim resguardada encontra no saber a

continuidade de que o baile possa permanecer na medida de seu movimento. O baile perdura

em continuidade onde a dinâmica traz o saber para que possa perdurar permanecendo como

tal. O saber é uma exigência ao mesmo tempo em que se revela possibilidade. A possibilidade

de nos colocarmos na disposição do saber - como homem-músico-ouvinte na necessidade e na

liberdade que clamam nos fazendo chegar a ser quem somos - revela o próprio na escuta

atenta e cuidadosa onde a dinâmica musical como acontecimento se dá a conhecer. Assim, ela

se mostra já velada onde o saber se encontra na resposta à exigência imposta na ambigüidade

radical da poética musical.

O músico-ouvinte se encontra na disposição do saber na medida de um estar

descontente. A dinâmica do saber se articula no movimento da unidade da poética musical

onde o homem se encontra lançado na suspensão que lhe resguarda já “descontente por

natureza”. Tal descontentamento é o que lhe é concedido na suspensão do abismo. Estar na

disposição do saber musical suspende o homem no sem- fundo, na tridimensionalidade do

tempo, e na ambigüidade do ser. Assim resguardado, ele vê escoar por entre os dedos “noites

e dias” ao mesmo tempo em que pertence ao aparecer e desaparecer das obras musicais. Nessa

dinâmica, estando o homem na disposição do saber, percebe o revelar das obras no

aparecimento que já desaparece na permanência de sua unidade. Como memoráveis as obras

exigem do homem pertencer à sua dinâmica estando na disposição da memória. Se revelando

as obras no escoar temporal que se resguarda permanente, ao homem é permitido se ver diante

de si mesmo como ambiguamente misterioso. É assim que “a ampulheta milenar do sol193

escorrendo por entre os dedos, num escoar constante na medida do tempo, revela a suspensão

em que o homem se encontra resguardado misterioso para si mesmo na verdade da poética

musical. Concedido a ele estar na disposição do saber lhe traz para o próprio mistério na

medida em que o mistério permanece misterioso. A poética musical é misteriosa na co-

pertinência com o abismo de simplicidade. Então, estar na disposição do saber, mostra o

homem na luta e na busca radical para chegar a ser quem ele efetivamente é lhe mostrando no

193

Milano, Dante. In Música Surda “O livro das canções”(encarte) – Registro fonográfico, 2007.

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limiar da produção e da criação musicais. O saber musical congrega o homem na disposição

da sonoridade que se rompe em obra resguardada na celebração cuidadosa que faz com que a

dinâmica musical permaneça e continue prosseguindo se transformando em sua permanência

na reunião de obras, músicos, ouvintes e saber musical.

Sendo-lhe permitido estar na disposição do saber, o músico se encontra reunido no

âmbito musical. Nesse mesmo sentido, ele sabe no saber pertencendo ao que o reúne também

como ouvinte. Na reunião da poética musical, estando o saber musical em questão

encontramos também o músico-ouvinte na medida em que se dá em tal disposição disposto. A

obra musical somente obra, enquanto saber que reúne, brilhando no músico-ouvinte que

recebe seu envio já dele participando na escuta atenta que sabe pertencendo. Assim, o saber a

partir do acontecimento musical é um saber “reunidor”, é um saber que traz a reboque o

músico-ouvinte na medida em que eles permanecem perdurando como são na colaboração

para que a música abrigando o saber permaneça já na solidez constante de sua transformação.

A cada momento em que, em seu aparecimento ou desaparecimento, a obra se encontra

obrando, ela se dá sempre renovada. Com ela, o saber que permanece também acompanha tal

dinâmica se renovando em conjunto. Nesse mesmo aspecto, músicos e ouvintes, a cada vez,

permanecem em transformação na renovação de si mesmos. Na dinâmica da poética musical

ecoam vigorosamente as palavras de Heráclito: “transformando-se, repousa”. Repousando já

transformados e renovados obra, saber, músico e ouvinte marcam o ritmo em que o baile vai

se movimentando. Assim, músicos e ouvintes sabem radicalmente não sabendo lançados na

disposição do saber musical. O saber como resposta à exigência imposta os lança na medida

de um saber que se sabe originariamente não saber. Tal saber reúne em si a criação na

colaboração enquanto a emergência de um aparecimento em todas as formas. Saber é ao

mesmo tempo saber e não saber, a sabedoria musical se encontra, como toda sabedoria, no

saber que já se sabe ambíguo. Ao músico é concedido se revelar como criador em colaboração

em todos os âmbitos da criação musical, seja na produção de obras, seja na performance.

Como ouvinte lhe é permitido expectar a própria maneira de colaborar para o aparecimento

das obras musicais. Bem como também, na diferença, aprender a pertencer ao aparecimento

próprio das obras deixando-as livres para serem como são em si mesmas. Livres das amarras

das abstrações e prescrições que restringem a escuta originária a uma audição superficial ou

ainda especializada. Sem prescrições ou abstrações o ouvinte, pertencendo radicalmente ao

aparecimento do acontecimento musical como o puro estar em si mesmo, se mostra na

disposição do saber como parte do próprio reunido na poética do acontecimento musical

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enquanto unidade. Assim, tal unidade reúne a multiplicidade que por ela e nela se vê abrigada

e resguardada de modo radical e originário.

Música e Abismo

A música nos convoca radicalmente ao confronto de si mesma enquanto questão. Isso

acontece de tal forma que sua exigência se dá na violência de seu aparecimento. Assim,

procuramos empreender algumas investigações que a partir dela, como unidade, na liberdade

própria que a mesma exige, se desse em consonância com sua verdade. Tais investigações

caminharam sempre levando em consideração a tradição em que nos encontramos, na medida

de nos manter alertas para os equívocos que tradicionalmente já se solidificaram. Como

sempre, a empreitada em que nos encontramos é a mais difícil. Isso por que nos sabemos,

enquanto homens, caminhando errantes na medida de toda errância. Errantes nós podemos

tatear buscando nas investigações pela questão, algum indício de sua verdade.

A poética musical é ampla ao mesmo tempo em que delimitada em sua identidade e,

em sua vastidão, ela é resguardada na dimensão poética enquanto âmbito da arte em sua

magnitude. No entanto, a copertinência originária entre música e abismo como unidade nos dá

a medida para iniciarmos as discussões. Todo o acontecimento musical, na sua unidade de

reunião, mostra o desdobrar de sua dobra na copertinência da simplicidade radical do abismo

em unidade com a música. Música e abismo como reunião na sua simplicidade radical

resguardam todo o âmbito das possibilidades musicais em sua verdade e não verdade. Enfim,

na poética musical, música e abismo co-pertencem originariamente. Tal copertencimento se

revela seja na diversidade das obras enquanto desvelam a sonoridade enquanto unidade de

som e silêncio. Seja nas possibilidades concedidas aos homens como músicos e ouvintes na

medida em que podem, assim, celebrar e consagrar na suspensão apaixonada transitando no

transe de sua entrega à musicalidade. Seja no saber que reúne a criação e o aparecimento das

obras nas suas mais diversas possibilidades. Bem como reúne a criação e o aparecimento dos

músicos e ouvintes onde, lhes sendo permitido habitar a abertura para o acontecimento

musical como um todo, lhes é consentido colaborar para a sua própria formação como

músicos e ouvintes. Assim, jogados e lançados na suspensão que a poética musical lhes

concede, eles podem se apropriar do que lhes é próprio: habitar a abertura que ser e tempo

lhes concede, e onde ser e tempo se revelam musicalmente. A poética musical, assim, é a

medida da multiplicidade por ela abrigada em todas as instâncias como unidade em cada

múltiplo que nela se dá.

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Em tal unidade ser e tempo falam musicalmente velados na sua manifestação. A

copertinência originária da poética musical apresenta o abismo de simplicidade enquanto a

medida radical como toda diferença. Dessa maneira, todas as diferenças se abrigam e

resguardam na dimensão poética musical. Nela, o abismo se revela no velamento originário

em que ser e tempo se dão musicalmente nos caminhos que por eles se encaminham. Assim, a

poética musical é movente na ambigüidade em que se faz. Em sua ambigüidade ela é

inapreensível por si mesma na medida de sua reunião como copertinência originária, de modo

que tal copertinência mostra a própria poética musical resguardada na simplicidade do

abismo. Na sua ambigüidade a verdade da poética musical se encerra velada na simplicidade.

A simplicidade aqui, se encontra dita por não encontrarmos palavras frente à imensa

dificuldade no que se refere ao abismo do nada nadificante em si mesmo. A simplicidade se

dá na medida em que, enquanto nada de desdobramento ou complexidade, ela concede

permitindo toda dobra e toda complexidade. Assim, a poética musical revelando o abismo de

simplicidade reside no âmbito do profundo. A própria profundidade pode parecer uma

incoerência na medida em que acaba nomeando um fundo, e no abismo mesmo até o fundo

que não tem fundo carece ele mesmo de qualquer fundo. Por isso escolhemos abismo, mas

que se encontra como palavra na medida de uma referência ao nada como simplicidade, ao

nada como absolutamente nada e nada mais. Talvez pudéssemos dizer que no abismo até o

mais silencioso dos silêncios se encontraria retraído de si mesmo. No entanto, teria de ser

dito, na mesma medida, que o mais sonoros dos sons também assim permaneceria na sua

retração. Estes estão ausentes de si mesmos como a total impossibilidade. Estão ausentes

como a unidade revelada enquanto sonoridade de som e silêncio diante da radical diferença do

abismo que a permite desdobrar-se em obra perante a simplicidade. Estão ausentes como total

impossibilidade de ser o que são ao seu modo. De todo modo, a ausência é também

inapropriada na medida em que ela requer a presença do presente. A ausência é uma falta que

exige o que falta para que assim permaneça enquanto tal, desse modo ela traz o presente como

unidade na diferença. No entanto, a profundidade própria da poética musical nomeia o

profundo pela ambigüidade em que ela se dá. Na copertinência com o abismo ela é profunda e

ambígua, pois que diante da sua própria simplicidade enquanto poética, ela revela todos os

desdobramentos que são reunidos por ela falando originariamente como ser e tempo

musicalmente. Por isso sua profundidade já requer a presença, já permite os desdobramentos

por ela abrigados, de modo que ela permanece, em sua ambigüidade, inapreensível por si

mesma.

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326

A poética musical enquanto unidade reúne como comemoração a celebração do

memorável enquanto pensamento e sagrado revelando o deparar-se com o abismo de modo

radical. Tal deparar-se aqui aventado não se dá ao modo de um ficar diante do nada, não há

como um defrontar-se com o nada. O nada mesmo, como nada, não é e nem se dá,

simplesmente permite todos os desdobramentos como diferença radical. O deparar-se é a

possibilidade que o abismo resguarda na medida em que, de todo modo, já reúne velando a

guarda de todo verdadeiro. Ele resguarda o ser e o tempo em sua unidade, resguarda a verdade

de todos os aparecimentos sendo a medida radical destes. Na poética musical ele é revelado

em sua simplicidade na copertinência originária reunindo todas as possibilidades e

impossibilidades do que se desdobra no sem-fim e sem-fundo abismal. Assim, a dimensão

poética musical resguarda, enquanto ambigüidade, a verdade da música em sua própria não

verdade. A copertinência em que a música se encontra com o abismo vela a música, enquanto

reunião, de si mesma. Assim velada, ela se encontra, de todo modo em sua verdade,

inapreensível por si, pois que sempre fugidia e ambígua. A música como unidade com o

abismo permanece inacessível ao modo de um fechamento de sua própria verdade. Sua

verdade como não verdade no abismo se dá perante o excluído de toda exclusão que mostra a

fuga total de tudo o que é. Na copertinência da poética musical, o abismo resguarda tal fuga

onde ela encontra abrigo. Assim, ele mostra ambiguamente, enquanto diferença radical, a

verdade e a não verdade de todos os aparecimentos e desdobramentos musicais.

Dessa maneira, podemos dizer que a unidade da poética musical resguarda o seu

aparecimento e de todos os que são reunidos por ela, de modo que se encontra fechada em sua

verdade como não verdade no abismo de simplicidade. Revelado em tal unidade, o abismo

permite à unidade musical desdobrar-se abrigando a multiplicidade que por ela é o que é. É

dessa forma que música e abismo velam ser e tempo em sua verdade que se dá musicalmente.

A música em copertinência com o abismo revela o tempo em sua tridimensionalidade

enquanto unidade ao modo musical. O tempo se desvela musicalmente na medida em que

todos os desdobramentos musicais se dão temporais trazendo o tempo de modo distinto.

Trazendo o tempo de si mesmos de modo a revelar o tempo musicalmente. Do mesmo modo,

o tempo permite à música e abismo, enquanto unidade, se revelarem na sua temporalidade

como tal. De maneira análoga, o ser desvelado musicalmente em sua verdade em tal

copertinência originária, também permite que música e abismo se dêem como unidade de

reunião. Dessa forma, o ser se desvela musicalmente revelando tudo o que é reunido enquanto

poética musical. Assim, enquanto unidade em sua verdade própria a música permanece

ambígua em sua acessibilidade inacessível e, desse modo, permanece sendo o que é. Por tal

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resguardo e velamento próprios à música é que todos os trabalhos, onde ela se apresenta como

questão, acabam por esbarrar na sua inesgotabilidade própria. Assim, é na medida em que ela

se encontra ontologicamente resguardada na ambigüidade do ser e na unidade do tempo,

ambos velados no abismo de simplicidade se apresentando musicalmente, que a verdade

musical se encontra não verdade como não profundidade.

A simplicidade do abismo é mais inapreensível do que qualquer fundura do profundo

sem fundo. No abismo, não há fundo, nem fundura e profundo, não há nem abismo. Já foi dito

por diversas vezes que o nada mesmo não existe. Respondemos que tal afirmação tem toda

procedência. A resposta a tal posição é muito simples e dita pelo próprio nada de modo que já

foi dada desde há muito pelo pensamento e pela filosofia. Se o nada em si mesmo existisse já

deixaria de ser nada. No entanto, o desdobramento de tal resposta é que se encontrou no

equívoco errante da própria errância. Não existir o nada não quer dizer que ele não esteja

implicado no real. Como nada, como abismo, ele não é algo. No entanto, se mostra como

ambigüidade radical na medida em que se encontra na dinâmica do real. Assim, podemos

dizer que o abismo do nada se dá como um total retraimento de tudo, um não assinalar radical

que se mostra retraimento. Dessa maneira, se dá abismo como concretude na dinâmica do real

na medida em que, como nada, não existe. Portanto, reafirmamos que o nada não existe194

. No

entanto, a poética musical como reunião revela radicalmente o abismo de simplicidade. E o

revela na medida em que seus desdobramentos se dão no sem-fundo e sem-fim que o abismo,

em copertinência originária com a música, revela ao mesmo tempo em que é revelado. Na

dimensão poética o abismo se põe a falar. Na poética musical o abismo de simplicidade se

revela em sua originariedade e se dá real. Reunindo obras, músicos, ouvintes, saber musical, e

todos os seus desdobramentos no âmbito das possibilidades e impossibilidades frente ao

irrealizável, a poética musical se mostra plena. Dessa maneira, na dimensão poética musical

não há abismo sem música e nem música sem abismo, eles são o mesmo na sua diferença

radical e originária. Um revela o outro na radicalidade de suas diferenças.

Desse modo, toda obra musical se dá obrando em sua multiplicidade reunida na

unidade de música e abismo. Sua apresentação é sempre ambígua e revela infinitas

possibilidades de aparecimento por esta copertinência originária. Assim também, todo músico

se dá suspenso na poética musical ambiguamente, posto que se encontra à disposição do

mistério do que se apresenta no âmbito musical como um mundo que se desvela

musicalmente. Dessa mesma forma, ele ainda se encontra na multiplicidade sem-fim de seu

194

Conferir no presente trabalho, Capítulo 1, subitem Nada.

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próprio aparecimento, em tal unidade, resguardado. Todo ouvinte igualmente se encontra

suspenso no mesmo na radicalidade de sua diferença. A música se mostra enquanto unidade

de reunião na poética musical. Lá ela vela o abismo e o abismo a vela, ambos na sua radical

diferença resguardam a verdade e a não verdade um do outro. Na unidade poética musical a

música se reporta ao abismo e este a ela. Em tal ambigüidade se revelam a sonoridade das

obras e a verdade dos homens enquanto músicos e ouvintes no saber próprio que marca a

música como a densidade de sua poeticidade. Esse reportar-se ao abismo como ambigüidade

radical é a própria medida em que o abismo é desvelado como tal. Assim, ele se resguarda e

se confia à música sendo o que ele é. Emudecendo toda a dicção do é, na poética musical o

abismo de simplicidade, o abismo do nada, se desvela em sua verdade.

Reunida na dimensão poética musical, a música, reunindo, se encontra suspensa na

referência ao nada velada no ser e no tempo, onde ser e tempo se desvelam musicalmente. O

aparecimento da música enquanto unidade ontológica responde ao ser e ao tempo

respondendo também ao abismo enquanto unidade na copertinência originária da dimensão de

música e abismo do nada. O nada é medida como não confronto, não há diante e nem perante.

Simplesmente não há. A unidade de música e abismo, então, é um dos caminhos do ser para

responder à exigência da questão que posta por Heidegger diz: “Porque há antes o ente e não

antes o nada?” Tal unidade é um dos caminhos porque o ser em sua multiplicidade se diz de

múltiplas maneiras, se apresenta em múltiplos modos de apresentar o ente que é sendo em sua

totalidade na unidade tridimensional do tempo. Como um dos caminhos, ser e tempo se

desvelam musicalmente na unidade copertinente. Portanto, podemos dizer que não há antes

nem um nem outro, mas se dão na unidade que reúne ambos no mesmo. O nada se desvela

musicalmente na poética musical de modo radical assim apresentando a música enquanto

reunião de tudo o que por ela é nomeado.

De modo que nos encontramos na tentativa de um dizer que reúne o abismo, trazemos

a aparência de que o abismo seria uma impossibilidade de caminho. Justamente o oposto aqui

se encontra. Na verdade, o abismo enquanto nada, velando ser e tempo em sua unidade como

simplicidade não deixa de se dar como caminho do próprio ser. O abismo se dá caminho na

própria simplicidade de velamento em que “corta toda a dicção do é”. A música é um dos

caminhos do ser porque reúne a simplicidade do abismo que assim a resguarda como unidade

naquilo que ela é. Por sua vez, na poética musical a música apresenta concedendo o abismo

em sua verdade na simplicidade de si mesmo que permite todos os desdobramentos. Música e

abismo de modo completamente distinto estão em referência entre si, bem como com o ser e o

tempo. Velados no abismo da poética musical ser e tempo são concedidos ao mesmo tempo

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em que se concedem musicalmente. Este caminho se dá abrigado na multiplicidade própria da

unidade de ser e tempo. No entanto, tal unidade é revelada em sua originariedade livre de

qualquer outra interferência no âmbito da dimensão poética. Lá sua ambigüidade radical

permanece ela mesma.

De todo modo, dizemos que como um caminho do ser, música e abismo se reafirmam

trazendo velados e revelados ser e tempo musicalmente. O abismo reúne resguardando ser e

tempo permitindo a reafirmação daquilo que, como unidade, é o que é. Aqui tal unidade é a

música em sua dinâmica que congrega a multiplicidade que por ela responde. Sons e silêncios

somente se desvelam como sonoridade nas obras musicais suspensos no abismo do nada.

Assim, o abismo reafirma o próprio ser na medida em que na sua simplicidade o mantém

resguardado como verdade. Músicos e ouvintes se encontram igualmente suspensos no nada

na unidade musical e, assim, celebram e comemoram a sagração da música em si mesma

enquanto unidade. A música como reunião de toda a dinâmica que assim lhe pertence

ontologicamente revela ao mesmo tempo em que é revelada no abismo de simplicidade.

Música e abismo copertencem na dimensão poética musical originariamente, e somente lá

podem ser o que são nela abrigados. O tempo e o ser se doam musicalmente velados na

poética musical de modo que música e abismo se apresentam como um dos caminhos do ser

originariamente. Em tal caminho a revelação radicalmente velada é única, musicalmente ser e

tempo se concedem como em nenhum outro caminho e, a cada vez, de modo distinto.

Música e verdade

A verdade musical na medida da dimensão poética musical enquanto unidade

apresenta uma dificuldade radical para o homem. Ele sendo o que é se encontra lançado na

suspensão que o exige permitindo que, em tal lançamento, ele possa apropriar-se do que lhe é

próprio: estar posto na disposição de ser capaz de responder ao ser na unidade tridimensional

do tempo, chegando a si mesmo na concessão de poder habitar a abertura para ser e tempo

que se dão musicalmente resguardados em sua verdade no abismo de simplicidade. A música

enquanto unidade poética se mede em sua verdade resguardada na ambigüidade do abismo.

Assim, ele é ao modo da simplicidade onde se retrai no âmbito do excluído de toda exclusão

permitindo os desdobramentos. Desse modo, abriga a verdade musical velando a unidade de

ser e tempo que se dão musicalmente. Dessa maneira, a música enquanto unidade poética se

mostra como verdade na ambigüidade. Ambiguamente ela reside no ser que se dá e no tempo

em sua unidade. A verdade é ambígua como verdade e não verdade, como esquecimento até

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do próprio esquecer que, assim, permanece retraído para si mesmo. Todo o tecido das obras

em baile na celebração do sagrado enquanto comemoração do memorável se encontra

resguardado na ambigüidade da verdade como não verdade. No retraimento ao mesmo tempo

em que permissão do abismo que é revelado reunindo ser e tempo resguardados na sua

ambigüidade enquanto se dão ao seu modo permanecendo na unidade de si mesmos revelados

na poética musical. A verdade é ambigüidade pura, pois que se mostra no aparecimento e ao

mesmo tempo na retração como impossibilidade radical de todo aparecimento no abismo do

nada. Lá a verdade se resguarda até de si mesma, por isso não verdade e verdade conformam

uma unidade. A verdade no abismo se retrai de si mantendo-se encoberta, pois que caminha

nos caminhos do que mede toda criação, toda produção. Caminha nos caminhos onde o

homem se vê suspenso na concessão que lhe é dada de modo a poder apropriar-se de si

mesmo ao mesmo tempo em que fechado para tal apropriação. A música, assim, como

reunião se dá verdade e não verdade. Na poética musical, o abismo resguarda toda a criação

no excluído de todas as possibilidades. Tal excluído se encontra na verdade como não verdade

de toda obra e de toda dinâmica musical. O abismo do nada é ontológico, se refere

diretamente ao ser na medida do tempo, mas ele mesmo não é nada de temporal, muito menos

nada de ôntico. Não há temporalidade e nem o que é sendo ao modo do ente no abismo. No

âmbito da poética musical o abismo se revela de modo próprio de modo que nele se dá apenas

o resguardo do ser e do tempo em si mesmos musicalmente dispostos. Assim, ambos

permanecem na ambigüidade radical em que se dão como tempo e como ser se concedendo

música. A música baila caminhando em tal ambigüidade. Enquanto um dos caminhos do ser

ela se dá ontologicamente ambígua e fugidia por si mesma como inacessibilidade radical, que

se mostra velada, se concede passando. O que é de modo efetivo a música? Onde se encontra

ela em sua verdade? São questões que podem se desdobrar de modo que permaneceremos

sempre no erro que permite nosso caminhar errante de modo radical. Na ambigüidade

ontológica o abismo resguarda o ser, o tempo, a verdade a não verdade. Por isso, todo

caminho que procura se encaminhar depara-se com o que foge por, de modo efetivo, não estar

disponível em uma disponibilidade. Não há disponibilidade do ser, do tempo, da verdade. O

real mesmo é ambíguo resguardando-se em sua ambigüidade. A verdade da música, bem

como a verdade de ser e tempo se resguardam na ambigüidade. Ao mesmo tempo em que

podemos a partir deles questionar, não podemos chegar à sua verdade, pois que ela se dá

velada pelo véu do abismo de simplicidade. Este que permite todos os desdobramentos que se

rompem sendo o que são. Dessa maneira, não podemos satisfazer as questões anteriormente

citadas, somente podemos caminhar a partir delas, por onde elas se encaminham. Como tal,

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elas se mostram na dinâmica em que permanecem se encaminhando a si mesmas na medida

de um envio que exige, na medida de um envio que nos atropela. No envio ao qual, tomados

na sua convocação, nos lançamos concedidos na apropriação de nós mesmos enquanto

resposta dialogante ao que nos atravessa e ultrapassa. O que, de todo modo, revela quem

somos, na medida em que tal revelação ambiguamente nos mantém no mistério. Toda a

investigação que aqui se procedeu ou procurou se proceder tomou por partida a unidade entre

ser, tempo, nada e verdade, na ambigüidade radical que os resguarda como unidade própria

congregada na diferença. O ser e o não ser velados no abismo ambiguamente mostram a

errância onde todos os errantes se suspendem apropriados e convocados. Mais uma vez

repetimos as palavras de Jesus Cristo: “A casa de meu Pai tem muitas moradas”. As múltiplas

moradas se dão no âmbito de possibilidades de ver, entrever e encaminhar as questões. Assim,

os caminhos encaminhados sempre encontram abrigo na casa que permite todos os caminhos,

todas as moradas. Aqui, não trazemos o dito de modo nenhum em aspecto religioso. Muito

menos o Pai, no dito cristão, é comparado ao ser. Apenas mais uma vez o trazemos na medida

em que a multiplicidade encontra respaldo na unidade. A casa é em si unidade e congrega

muitas moradas sem deixar de ser ela mesma como é. A ambigüidade do ser e do não ser no

abismo que os vela, na verdade e na unidade do tempo, traz essa multiplicidade radicalmente.

Podem se mostrar os muitos caminhos para se buscar a verdade como não verdade. Os muitos

caminhos em sua multiplicidade já são o abismo mesmo e a verdade nele se dá velada ao

mesmo tempo em que revelada. A ambigüidade permanece, pois o real é ambíguo. O ser é

ambíguo assim como o nada, a verdade, o tempo, a linguagem, a música e o homem. A

ambigüidade da música em sua unidade permanece ambígua em sua verdade. Música e

verdade estão ontologicamente lançadas nas raias da errância por onde todo errante pode vir a

tentar encaminhar caminhos. Um dos caminhos do ser como música se desvela verdade na

medida em que, apropriado no abismo, se resguarda de modo próprio em sua ambigüidade

radical. Tal se dá ao mesmo tempo em que ambiguamente o próprio abismo em sua verdade

na copertinência originária da poética musical. Ela se revela na celebração que sagra na

consagração própria da música enquanto unidade movente e ambígua por si, movendo-se no

âmbito próprio do abismo que é por ela revelado. Consagrando na celebração é na

ambigüidade que, veladas, verdade como não verdade encontram a morada própria. A música

como unidade é um proferir ambíguo da verdade velada no abismo revelando ao mesmo

tempo o próprio. Mais uma vez Walter Otto nos concede em seu estudo sobre os deuses na

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Grécia Antiga a verdade das Musas: “O essencial e o grandioso querem195

ser cantados, tal

como, segundo o mito grego, o ser do mundo exigia o canto das Musas para consumar-se na

revelação da sua verdade.196

” O essencial aqui como real quer ser cantado, exige o canto

como música em sua unidade na copertinência da poética musical na medida de um medir-se

de modo próprio se revelando real musicalmente. A revelação da verdade consumada

permanece na ambigüidade de si mesma. Levar ao sumo a verdade revelada como

consumação é essencialmente velar na ambigüidade de seu aparecimento como verdade e não

verdade lançadas no abismo de simplicidade que vela e resguarda de modo próprio o tempo

em sua unidade tridimensional e o ser em sua ambigüidade radical que “querem ser cantados”

em uma exigência radical e originária. O essencial aqui é o ser na unidade do tempo em sua

verdade, tal unidade exige em um querer a música como canto. Eles exigem um aparecimento

musical, exigem se darem concedendo-se musicalmente. Assim, o canto como memorável se

mostra na disposição da memória revelando o real como ser e tempo musicalmente. Dessa

forma, a exigência da música se consuma na revelação ambígua da verdade. O próprio

revelar-se aqui é ambíguo, o próprio revelar-se em si como consumação é verdade e não

verdade reunindo e revelando o abismo de simplicidade em sua radicalidade. No entanto,

diante de tal velamento e na ambigüidade radical de uma suspensão, ser e tempo, em sua

verdade como unidade, exigem o canto, exigem porque ao mesmo tempo se concedem como a

dádiva própria do canto na reunião da música como unidade. A comemoração na celebração

do sagrado enquanto memorável na disposição da memória aqui fala em uma exigência que se

consuma na ambigüidade radical da verdade revelada e velada no abismo em si mesmo.

Música e verdade assim se encontram em uma referência ontológica na medida de sua

referência ao ser, ao tempo, ao abismo. A música é, como unidade, uma exigência da verdade.

A verdade musicalmente é exigida no advento próprio de ser e tempo que se concedem canto

exigindo originariamente tal conceder-se. Como exigência daquilo que exige ela se consuma

reunindo a comemoração onde ela mesma se consagra. Na emergência de tal exigência a

música é verdade enquanto ambigüidade radical e retraída no seu retraimento que assim se

concede num aparecer que mede, que opera, que dialoga, que se vela, que revela ser e tempo

no canto em que se exigem revelar. Assim, ela revela o homem como músico e ouvinte no

diálogo em que tal exigência convoca.

Nunca saberemos de fato, na medida de uma apreensão, o que é a música. No entanto,

importa muito mais que nela nos encontramos lançados e jogados no mistério que permanece

195

Grifo do autor. 196

Op. cit. p. 52.

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misterioso em sua convocação. O essencial exige numa exigência radical ser cantado, por isso

somos exigidos postos na disposição de nos encontrarmos de modo próprio apropriados na

unidade musical. Assim, convocados misteriosamente aceitamos o mistério de tal convocação

da unidade própria de tempo e ser em sua exigência pelo consumar-se ambíguo do verdadeiro.

Esse mistério que convoca de modo inexplicável nos consuma como participantes da verdade

em sua ambigüidade. Mais uma vez a experiência originária dos gregos nos fala na voz de

Walter Otto: “A Musa é a deusa da fala verídica, no sentido mais elevado. Os rapsodos e

poetas, os enunciadores da verdade, dizem-se seus ministros (prÒpoloi), servos

(qer£pontej) ou profetas (profÁtai) e lhe dedicam piedosa veneração, verdadeiro culto.197

Portanto, nós nos encontramos lançados em paixão, em veneração na medida em que, na

música enquanto unidade, estamos já suspensos, apaixonados e espantados na ambigüidade da

verdade radical disposta no velamento do abismo de simplicidade que se revela na poética

musical no resguardo de tempo e ser que se concedem no canto por eles exigido. Cultuamos a

música enquanto unidade e por ela somos cultivados apropriadamente como “enunciadores da

verdade” que se dá ambígua em si mesma. Aqui, o pleno do que é levado ao sumo como

música em sua verdade é o permanecer na solidez de sua transformação no conceder do real

que se dá como tempo e ser musicalmente velados e revelados pela unidade de música e

abismo.

197

Op. cit. p. 49.

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CONCLUSÃO

Como concluir o que permanece em questão? Apenas na medida em que qualquer

possibilidade de conclusão se dê ao modo de uma abertura. Uma abertura que possibilite o

permanecer questionando o que se dá em questão. A questão musical é ampla. Amparada

ontologicamente ela se desdobra de maneira infindável. O ser nos concede questionar a

música, o homem, a linguagem, o próprio ser em sua multiplicidade. Sempre se torna árdua a

tarefa de nos colocarmos na disposição de escutar atentamente o que se envia como questão.

Muitos são os caminhos bem como as possibilidades de equívoco. Contudo, alguma

possibilidade de concluir o trabalho se apresenta pela própria experiência que o trabalho

proporciona. O que agora nos dispomos a dizer se encontra no que o trabalho nos pode

transformar. Assim, em transformação e transformados permanecemos questionando na

conclusão que se apresenta. Isso de modo que o apresentado é apenas uma possibilidade de

caminho perante o mar de simplicidade.

O ser se dá ambíguo. Em sua ambigüidade ele se diz de múltiplas maneiras porque

abriga uma multiplicidade como unidade. Ele é questão de máxima envergadura. É o que nos

impulsiona radicalmente na medida de todos os âmbitos. Na medida do ser se encontra

implicado o tempo. Ambos, ser e tempo se confrontam e se medem no abismo de

simplicidade que os vela. Velados em sua verdade no abismo, ser e tempo se concedem

radicalmente ambíguos. O tempo se mostra na sua tridimensionalidade, retraído como

unidade. O ser brilha misteriosamente oferecendo o ente. O abismo como radicalmente o não

ente se dá na suspensão de ambos.

Neste âmbito, implicada se encontra a linguagem. Toda e qualquer investigação ou

discussão nela se resguarda como possibilidade. Ser, tempo e abismo se concedem como

questão, abrigados na linguagem. A linguagem reúne ao modo do diálogo. A tensão originária

entre ser, tempo e abismo se concedem enquanto fonte inaugural e originária que brota como

fala. Esta fala está reunida na linguagem na medida em que pressupõe uma escuta atenta e

cuidadosa que, escutando, pertence ao que se concede falando a si mesmo. No âmbito da

linguagem está o homem implicado e exigido em uma convocação radical. A ele é permitido

habitar a abertura para o ser, para o tempo e para o abismo que se revelam misteriosamente. A

linguagem como referência reúne homem, fala e escuta na medida em que todos se mostram

no confronto radical.

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Poetando nos caminhos do ser se revela a música. Tomando para si toda a

copertinência em que se revelam os que são reunidos na linguagem, a música poeta

musicando como a si mesma. Diante da desmedida do abismo a música se concede como

medida radical onde o abismo se mostra em si mesmo musicalmente. A música como unidade

revela o abismo e é por ele revelada. Musicalmente o abismo é concedido em sua verdade

como música. Na unidade musical, música e abismo se confrontam violentamente onde o mar

de simplicidade se dá musical. Permitindo todos os desdobramentos que se reúnem na música

o abismo é musical em seu velamento. Nesse sentido, ser e tempo se dão em sua verdade

musicalmente, velados no abismo em unidade com a música. A música é a “deusa da fala

verídica”, relembrando Walter Otto. Como deusa ela mostra a verdade misteriosamente. A

verdade musical é misteriosa musicalmente. Ser, tempo e abismo são musicais na unidade de

música e abismo. A linguagem é musical na unidade música e abismo. O homem é musical

reunido como músico e ouvinte. No mundo de inter-relações da música ela se concede

verdade como não verdade radical. Verdade porque é a medida dos aparecimentos e

desdobramentos que por ela são reunidos. Não verdade porque em unidade com o abismo de

simplicidade, qualquer dos desdobramentos, bem como a si mesma já como unidade, ela foge

de si mesma. Como unidade a música é fugidia. Resguardada no abismo e o apresentando

musicalmente, o abismo é fugidiamente musical. Por isso, o músico caminha para chegar a si

mesmo. O músico está sempre em fuga, ele foge fugidiamente de si mesmo abrigado na

unidade musical. Tal fuga se mostra fugidia musicalmente. Somente pode fugir musicalmente

de si esmo aquele que se encontra resguardado na unidade de música e abismo. A solidez da

unidade musical é fugidia. Todos os reunidos no seio da música são fugidios em sua solidez.

Permanecem em transformação no trânsito constante que música e abismo concedem.

O homem, músico e ouvinte, permanece na ambigüidade da música. A música é

ambígua por se dar em unidade de copertinência com o abismo. A simplicidade musical do

abismo concede ao homem habitar a abertura musical e perceber sua ambigüidade radical. Ser

e tempo se desvelam como verdade musicalmente, ambos revelados na violência do embate

em que o mundo musical se sustenta na terra. A terra que sustenta o mundo musical se mostra

também musical. Na copertinência originária em que música e abismo se encontram, o

abismo vela a terra musicalmente no seu aparecimento como música. Aparecendo como

música a terra se dá verdade como fala verídica se concedendo à escuta que lhe pertence. A

terra aqui, não se restringe às obras musicais. Ela se dá em todos os nomeados pela unidade

musical em si mesma. O saber musical se dá pela terra que se mostra musicalmente. As obras

musicais se dão pela terra que se mostra musicalmente. Do mesmo modo, os homens na

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medida dos músicos e ouvintes se dão sustentados na terra que se mostra musicalmente. Aqui

a terra se mostra no todo. A unidade de música e abismo se revela na reunião do que por tal

unidade é nomeado. Não podemos compreender por música as obras musicais. As obras são

parte do todo. Os músicos do mesmo modo. Bem como os ouvintes e o saber musical. Sem

contar com todas as possibilidades e impossibilidades medidas no irrealizável enquanto parte

do âmbito da unidade musical. A música é referência nesse sentido. É referência de unidade

como reunião. O real musical se dá no não poder que concede todo poder de desdobramento

musical qual ele seja. O desdobramento do músico, do ouvinte, da obra, do saber. Todos

podem se desdobrar a partir do não poder resguardado no abismo de simplicidade musical. O

abismo é musical porque se mostra em copertinência com a música formando, ambos, uma

unidade. É nessa unidade que o real musical concede as realizações musicais. O real é musical

porque se revela como música na unidade musical. Originariamente a música concede o que

se dá enquanto poeticamente ela brilha em sua radicalidade revelando a sonoridade das obras,

a escuta dos músicos e ouvintes, bem como suas falas como um corresponder.

Na medida da consagração os que são reunidos no âmbito musical celebram. A

celebração é a reafirmação do aparecimento misterioso em que música e abismo como

unidade se concedem. Misteriosamente a ritualização do acontecimento musical consagra e

celebra o mito da unidade da música. Os reunidos ritualizando revelam o sagrado

consagrando o que se sagra. Quem se sagra é, de modo próprio, música e abismo como

unidade reunindo todos os que ritualizam na consagração. Na consagração todos reafirmam a

si mesmos. As obras se reafirmam, bem como os músicos e ouvintes, ser e tempo se

reafirmam de modo que se concedem como terra musicalmente, o saber se reafirma. Nessa

reafirmação a própria unidade musical se dá mais unidade. Música e abismo permanecem em

si mesmos misteriosamente em cada acontecimento musical como consagração e celebração

do mistério sagrado que a música concede.

Assim, somos “irmãos das coisas fugidias”. Fugidiamente fugimos de nós mesmos na

poética da unidade musical. Música e abismo poeticamente reúnem ao seu modo toda a

unidade que por eles se dá como tal. Desse modo, música e abismo caminham como

caminhos do ser. Caminhando, encaminhando e desencaminhando os caminhos permanecem

à caminho de si mesmos. Assim sendo, estamos sempre em busca do mistério que nos

envolve convocando de modo misterioso. Somos irmãos de nós mesmos enquanto alteridade

própria. Fugimos de nossa própria condição em busca de nós mesmos. Ambiguamente a

música nos revela na poeticidade de sua dimensão. Música e abismo: Caminhos do ser.

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