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SUMÁRIO

EDITORIAL .............................................................................................9

PODER, GUERRA E VIOLÊNCIA NA ICONOGRAFIA ASSÍRIA .....12Katia Maria Paim Pozzer

QUANDO HOMERO IGNORA O TEMPO: A JUVENTUDE DE AQUILES................................................................26Alexandre Santos de Moraes

O GINÁSIO COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO DE CIDADÃOS: .....38AS PRÁTICAS ESPORTIVAS NA GRÉCIA ANTIGAFábio de Souza LessaVanessa Ferreira de Sá Codeço

EDUCAÇÃO FEMININA, PRAZER E PODER EM ATENAS(SÉCULOS VI-IV A.C.) ..........................................................................51Edson Moreira Guimarães Neto

TERMINALIA: FRONTEIRAS E ESPAÇO SAGRADO ......................82Cláudia Beltrão da Rosa

NATUREZA NILÓTICA: UMA REPRESENTAÇÃO MUSIVA AFRO-ROMANA ........................100Regina Maria da Cunha Bustamante

O “CLIENTELISMO PÚBLICO” DE PÉRICLES NA HISTORIOGRAFIA DO SÉCULO XX ..........................................117José Antonio Dabdab Trabulsi

RESEnhA

LESSA, F. S. Mulheres de Atenas. Mélissa – do Gineceo a Agorá. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. 122 p. ................................................135Maria Cecilia Colombani

PERFIL DA REvISTA ........................................................................141

nORMAS PARA PUbLIcAçãO .......................................................142

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SUMMARY

EDITORIAL ...........................................................................................9

POUVOIR, GUERRE ET VIOLENCE DANS L’ICONOGRAPHIE ASSYRIENNE ..........................................12Katia Maria Paim Pozzer

WHEM HOMER IGNORES TIME: ACHILLES TIME ........................26Alexandre Santos de Moraes

GYMNASIUM AS A PLACE OF FORMATION OF CITIZENS:SPORTS PRACTICES IN ANCIENT GREECE ....................................38Fábio de Souza LessaVanessa Ferreira de Sá Codeço

FEMALE EDUCATION, PLEASURE AND POWER IN ATHENS(SIXTH TO FOURTH CENTURY BC) ..................................................51Edson Moreira Guimarães Neto

TERMINALIA: BOUNDERIES AND SACRED SPACE ......................82Cláudia Beltrão da Rosa

NILOTIC NATURE: AN AFRO-ROMAN MOSAIC REPRESENTATION .............................100Regina Maria da Cunha Bustamante

THE « PUBLIC CLIENTS » OF PERICLES IN THE 20TH CENTURY HISTORIOGRAPHY ...................................117 José Antonio Dabdab Trabulsi

REvIEw

LESSA, F. S. Mulheres de Atenas. Mélissa – do Gineceo a Agorá. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. 122 p. ..................................................135Maria Cecilia Colombani

PROFILE MAGAZInE ........................................................................141

PUbLIcATIOn STAnDARDS.......................................................142

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9PHOÎNIX, RIO de JaNeIRO, 17-2: 9-11, 2011.

EDITORIAL

Categorias caras para a produção historiográfica são as de tempo e espa-ço; até mesmo porque a vida humana desenrola-se no quadro de coordenadas espaciais e temporais. Se não existe sociedade sem história, tampouco não há espaço sem marcas no tempo, que se cristalizam e condensam em espaciali-dade. Espacialidade e temporalidade são fatores importantes na constituição e no desenvolvimento das sociedades humanas. O espaço tem sido humanizado através do tempo, e do homem vem recebendo marcas indeléveis, o que o transforma em um espaço praticado; isto é, culturalmente construído.

Os antropólogos sociais têm debatido os processos de superabundância (tanto espacial quanto temporal) que caracterizam as sociedades contem-porâneas. A abundância de informações e de acontecimentos oferece ao mundo contemporâneo e/ou à supermodernidade uma noção de aceleração do tempo. Simultaneamente, as mudanças de escala e a multiplicidade de referências (terrestre, espacial e visual) dão ao espaço a mesma sensação de encolhimento. Tempo e espaço são categorias atualmente tidas como aceleradas e encurtadas.

Justamente, a reflexão interdisciplinar sobre essa intercessão entre tempo, espaço e sociedades humanas perpassa alguns dos textos que com-põem o presente número da Revista Phoînix. Os artigos propõem suscitar as diferentes abordagens e entrelaçamentos que os pesquisadores, em suas especialidades e interesses, possam trazer para o âmbito dos estudos antigos, assim como campos de visibilidade da vida social ainda inexplorados que permitam a compreensão das suas singularidades, constrangimentos, limites e referências móveis; e esta visibilidade nos propicia entender, através do diálogo com a Antiguidade, nossos próprios caminhos e opções.

O artigo de Alexandre Santos de Moraes pensa a categoria tempo a partir da reflexão dos critérios de definição de graus etários, considerando que as idades da vida são eventos biológicos socialmente construídos. O seu objeto de análise é a juventude do herói Aquiles, atentando para a comple-

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10 PHOÎNIX, RIO de JaNeIRO, 17-2: 9-11, 2011.

xidade do personagem homérico. A escolha da poesia épica de Homero não necessita de muitas explicações, mas o autor reforça que o poeta oferece um espaço privilegiado para a compreensão das expectativas dos helenos dos séculos X ao IX a.C. acerca das ações sociais atribuídas a cada grau etário e conclui que o tempo social, o tempo da narrativa e o próprio curso da vida encontram-se subordinados à glória em combate, questão inicial e arbitrária para o canto dos aedos.

Enquanto Alexandre Moraes privilegia a categoria tempo, Cláudia Bel-trão reflete em seu artigo sobre a construção espacial na sociedade romana. A sua proposta é pensar os rituais religiosos romanos como mecanismos que sacralizavam o ordenamento político e social da urbs, instituindo o papel e o lugar dos indivíduos na cidade, assim como suas relações com o “exterior”, num recorte cronológico que privilegia o início do Principado. Através dos rituais das Terminalia, que constituem um dos “ritos de fron-teira”, pois se vinculam aos marcos territoriais da cidade, a autora concebe “o discurso religioso romano como parte de uma ordem social dinâmica, distinguindo aspectos de sua prática como dispositivos que instituíam uma ordem simbólica, modificando, sustentando ou consolidando hierarquias, fronteiras, poderes e suas redes derivadas, que apresentavam e representavam o mundo – social e natural”.

Deslocando o foco da sociedade romana para a grega, o artigo de Fábio Lessa e Vanessa Codeço propõe entender o ginásio como um espaço público e indissociável da dinâmica da própria pólís, um lugar socialmente construído, onde os valores helênicos eram exaltados através das práticas esportivas e das interações sociais. No texto, fica evidente a concepção de espaço como lugar praticado, estando o conceito intimamente vinculado ao cultural, social e histórico. Os autores optam por analisar o seu objeto de estudo – o ginásio como espaço de formação dos cidadãos atenienses do Período Clássico (séculos V e IV a.C.) – a partir da documentação imagética. As imagens pintadas em suporte cerâmico foram interpretadas através do método de análise semiótico proposto por Claude Calame. Ao se direcionar para a documentação imagética e para o método semiótico, o artigo de Lessa e Codeço estabelece uma interlocução estreita com, pelo menos, outros três artigos desta edição da Phoînix.

Ainda no contexto da Grécia Clássica, o artigo de Edson Moreira analisa as esferas/espaços de convivência e os processos de educação das

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11PHOÎNIX, RIO de JaNeIRO, 17-2: 9-11, 2011.

cortesãs atenienses, estabelecendo comparações com as esposas legítimas e filhas dos cidadãos atenienses. As imagens pintadas nos vasos áticos se constituem em documentação para a defesa de suas hipóteses, optando o autor pela metodologia isotópica de Greimas e Courtés, além do método proposto por Claude Bérard, para analisá-las.

Outro artigo que se centra na documentação imagética numa pers-pectiva semiótica é o de Regina Bustamante. A sua proposta é interpretar as representações musivas com motivo egípcio produzidas nas províncias romanas da África do Norte. O texto defende que a imagem é uma linguagem composta de signos icônicos e, portanto, passível de interpretação. Para a compreensão do modo de produção de sentidos do discurso imagético mu-sivo, a autora aplica o método semiótico proposto por Pierce.

Mudando o foco de análise da Antiguidade Clássica para a Oriental e propondo compreender a relação entre religião e conflitos militares – a qual marcou a constituição do grande império neoassírio na Antiguidade – através da representação imagética dos simbolismos religiosos nas narrativas visuais da guerra, o artigo de Katia Pozzer defende que tais representações serviam como propaganda política, social, econômica e religiosa, com uma forte carga ideológica, que tinha como objetivo legitimar o poder dos governan-tes perante seus súditos, em uma tentativa de perpetuação de sua imagem e, assim, de seu poder. Reforçando que as possibilidades de interpretação semiótica do material visual são múltiplas, Pozzer aplica a proposta de E. Panofsky ao relevo sobre pedra que interpreta.

O artigo de José Antonio Dabdab Trabulsi encerra, com uma aborda-gem historiográfica, esta edição da Phoînix. Podemos dizer que o resgate de Péricles pelo século XX é o objeto de discussão do pesquisador, que propõe uma reflexão sobre o impacto do presente na reconstrução do passado, em relação ao tão citado “clientelismo público” do estratego ateniense.

Por fim, acreditamos que os artigos que compõem o presente número da Phoînix atuam no sentido de evidenciar o caráter isonômico da revista, bem como atentam para a originalidade e a singularidade das abordagens historiográficas brasileiras referentes às sociedades antigas.

Os Editores

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12 PHoÎniX, rio de Janeiro, 17-2: 12-25, 2011.

PODER, GUERRA E vIOLÊncIA nA IcOnOGRAFIA ASSÍRIA

Katia Maria Paim Pozzer*

Resumo:

O presente trabalho apresenta resultados parciais de um projeto de pesquisa que tem por objetivo compreender a relação entre a religião e os conflitos militares que marcaram a constituição do grande império neoassírio na Antiguidade, através da representação imagética dos simbolismos religiosos nas narrativas visuais da guerra. No mundo mesopotâmico, o relevo sobre pedra foi uma das mais importantes manifestações artísticas, e os mais usados foram os baixos-relevos sobre lajes de alabastro, repartidas em duas ou mais partes, recobrindo as paredes dos palácios. A prática cultural de criação desses relevos monumentais está associada ao momento político de construção de grandes impérios. A maioria das cenas representadas evocam a guerra e as campanhas militares empreendidas pelos assírios contra seus inimigos. Tais representações serviam como propaganda política, social, econômica, religiosa, com uma forte carga ideológica, que tinha como objetivo legitimar o poder dos governantes perante seus súditos, em uma tentativa de perpetuação de sua imagem e, assim, de seu poder.

Palavras-chave: Assíria; iconografia; violência; guerra; representação.

Este artigo apresenta conclusões preliminares do projeto de pesquisa “Guerra e religião – estudo de textos e imagens do mundo antigo oriental” em curso, que tem por objetivo compreender a relação entre a religião e os conflitos militares que marcaram a constituição do grande império neoassí-rio na Antiguidade. Tal projeto conta com apoio do Conselho Nacional de

* Professora do Curso de História da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Dou-tora em História pela Université de Paris I – Panthéon-Sorbonne e pós-doutora pela Université de Paris X – Nanterre. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa do Mun-do Antigo (Lapema), onde desenvolve o projeto de pesquisa “Guerra e religião - es-tudo de textos e imagens do mundo antigo oriental”, com o apoio do CNPq-Brasil, Fapergs e Ulbra. E-mail: [email protected].

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Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Ampa-ro à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), e suas atividades são desenvolvidas no Laboratório de Pesquisa do Mundo Antigo (Lapema), do Curso de História da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).

O I milênio a.C. no Oriente Próximo pode ser qualificado como a “Ida-de dos Impérios”, pois, do século IX ao século I a.C., vimos florescer cinco grandes potências: a neoassíria, a neobabilônica, a persa, a helenística e a parta. A Assíria estava localizada na região da planície entre o norte do rio Ti-gre e do rio Eufrates, conhecida como a Alta Mesopotâmia ou Djezireh (Fig. 1). Importantes cidades dessa região, como Nínive, Arbela e Aššur foram reunidas no II milênio a.C. para formar o estado assírio (JOANNÈS, 2000).

Fig. 1 – Mapa adaptado de Morris & Scheidel, 2009, p. xiii.

No mundo mesopotâmico, o relevo sobre pedra foi uma das mais im-portantes manifestações artísticas. Os mais usados foram os baixos-relevos sobre lajes de alabastro repartidas em duas ou mais partes, que recobriam as paredes dos palácios, podendo ultrapassar 2m de altura. Seis reis assí-rios deixaram esse tipo de relevo: na cidade de Nimrûd - Assurnazirpal II (883-859 a.C.), Salmanassar III (853-824 a.C.), Teglatphalassar III (745-727 a.C.) e Sargão II (722-705 a.C.) - ; e na cidade de Nínive - Senaqueribe (705-681 a.C.) e Assurbanipal (669-627 a.C.).

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A prática cultural de criação desses relevos monumentais está asso-ciada ao momento político de construção de grande impérios. A maioria das cenas representadas evocam a guerra e as campanhas militares empre-endidas pelos assírios contra seus inimigos.

O tratamento dado às imagens foi aquele preconizado pela iconologia baseada em Erwin Panofsky (1995). Ele divide o processo de análise visual em três momentos: realização da descrição pré-iconográfica, que é a enu-meração dos motivos artísticos para cada temática; realização da análise iconográfica, com a identificação de imagens, estórias e alegorias, e a rea-lização da interpretação iconológica, que é a descoberta e a interpretação dos valores simbólicos nas imagens.

Os relevos nos palácios assírios

O sítio arqueológico de Nínive, atualmente território do Iraque, conheceu várias campanhas de escavações entre os anos de 1852 e 1932. Tais escavações identificaram dois palácios: um localizado a sudoeste, construído por Sena-queribe e conhecido como Palácio sem rival, e outro, na parte norte do sítio, construído por Assurbanipal (RUSSEL, 1995, p.295). Na figura abaixo (Fig.2), identifica-se o “palácio norte” à esquerda e o “palácio sudoeste” à direita.

Fig. 2 – Plano de Nínive (BARNETT, 1976, p.24).

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Dentre as maiores produções artísticas assírias, encontram-se algu-mas das esculturas excepcionais que adornaram o “palácio sudoeste” de Senaqueribe, em Nínive. Uma delas é a Batalha de Til-Tuba, uma compo-sição artística elaborada sob o reinado de Assurbanipal

1 (668-631 a.C.),

na qual há muitos detalhes, e a tradicional aversão assíria aos espaços vazios é usada para expressar o caos da guerra, com um movimento in-cessante de um painel a outro (LAYARD, 1853; CURTIS, READE, 1995; READE, 2006).

O relevo da Batalha de Til-Tuba ou do Rio Ulai, que mostra os assí-rios vencendo os elamitas no Sul do Irã é, indiscutivelmente, a mais refina-da composição em larga escala da arte assíria. A parte inicial do relevo foi perdida, e a derrota do exército elamita é composta de três painéis, dentro de uma série de dez composições, que narram a história completa da cam-panha militar (WATANABE, 2008).

Localizavam-se nas paredes da sala XXXIII do “palácio sudoeste”. A data da guerra de Assurbanipal contra o império elamita é incerta - há hipóteses indicando que teria ocorrido entre 663 e 653 a.C. (COLLINS, 2008, p.25).

O crescente caos da batalha é graficamente refletido em todo o con-junto do relevo, no qual o rei elamita Tepti-Human-Insušnak, conhecido pelos assírios como Teumman, junto com seu filho Tammarītu são cap-turados e decapitados. Em um recente artigo, analiso detalhadamente as imagens referentes à batalha propriamente dita (POZZER, 2011).

Mais adiante na cena, um carro elamita, com um soldado assírio segurando a cabeça do rei triunfalmente, dirige-se para a Assíria, onde Assurbanipal aguardava o desfecho da batalha (Fig. 3). Acima desta cena, pode-se ler a epígrafe (BAHRANI, 2008, p.39): “The head of Teumman, king of Elam, which a follower of my army, a common soldier, had cut off in the midst of the battle, they are bringing in haste to Assyria, to an-nounce the news of victory”.

2

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Fig. 3 – Carro de guerra com a cabeça de Teumman. (Foto da autora, 2011)

Além da narrativa central descrita, esse conjunto de relevos apresen-ta outros momentos da batalha. Os anais históricos assírios relatam que Teummam foi decapitado e sua cabeça foi carregada em um carro de guerra triunfal para a cidade de Arbela, no Norte da Assíria, onde foi exibida para a população e, finalmente, para o palácio em Nínive, para compor a orna-mentação do banquete comemorativo da vitória.

A particularidade desta narrativa é que a segunda parte dela, a da comemoração da vitória, foi encontrada no “palácio norte” de Assur-banipal, em Nínive. O relevo fazia parte do andar superior da sala S e, atualmente, encontra-se no Museu Britânico, em Londres (Figs. 4 e 5). Segundo BARNETT (1976), a cena descrita no palácio de Nínive, de Assurbanipal, que o mostra reclinado em uma cama sob uma videira, em presença de sua rainha, Aššur-šarrati, é certamente uma das mais memoráveis, mas também uma das mais enigmáticas da arte do Antigo Oriente Próximo.

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O banquete comemorativo no jardim

Fig. 4 – Prancha completa (BARNETT, 1976, p.165)

Fig. 5 – Detalhe do Banquete da Vitória no Jardim. (BARNETT, 1976, p.167)

A cena é a apoteose da glorificação de vários aspectos da realeza no ciclo do relevo, e a mensagem de vitória e triunfo militar é revelada pela cabeça cortada do rei elamita Teumman. Além disso, os nobres elamitas são forçados a servir o banquete, enquanto os armamentos estão guardados, sobre uma mesa, ao lado do banco reclinado de Assurbanipal.

Veem-se o jardim real e uma fileira de mulheres e homens que tocam flautas e liras, e, ao fundo deles, árvores, palmeiras e pássaros. Veem-se servas que usam longas túnicas, faixas na cabeça, joias, e estão com os pés calçados: duas delas carregam nas mãos bandejas com alimentos, e outras carregam abanadores – todas elas estão caminhando na direção central, onde o rei e a rainha se encontram.

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Como figura central da cena, vê-se o rei assírio reclinado em uma cama, vestindo uma túnica adornada de símbolos: ele está coberto por uma capa um pouco abaixo da cintura; na cabeça, usa uma tiara, adereço da realeza; tem seu braço direito levantado e, na mão, um cálice, que leva à boca - seu outro braço está encostado sobre o móvel e, em sua mão esquer-da, segura uma flor de lótus, que é um símbolo da realeza. A frente do rei, está a rainha assíria, Aššur-šarrati, sentada em seu trono: na cabeça, usa uma coroa; está vestindo uma longa túnica ricamente adornada; em uma das mãos, tem um cálice e, na outra, segura uma flor; seus pés estão cal-çados. Eles bebem e escutam música, mas os olhos de Assurbanipal estão focados na cabeça de Teumman, que está pendurada em uma árvore. Essa cena mostra, claramente, o banquete real consagrado a uma vitória militar sobre o inimigo.

Quando observamos o comportamento de Assurbanipal com a cabeça de Teumman, de uma perspectiva antropológica surgem duas questões. A primeira se refere à natureza de caça a cabeças de Assurbanipal, pois a ca-beça de Teumman não é apenas um troféu de combate e a prova da morte do rei, possuindo outro significado. A decapitação pode ser definida como uma forma coerente e organizada de violência, na qual a cabeça assume o sentido ritualístico específico, assim como o ato de pegá-la, consagrá-la, e comemorar de várias formas.

De acordo com essa assertiva, podemos admitir que Assurbanipal imprimiu ao ritual de decapitação um sentido antropológico, pois esta sig-nificação é muito diferente da forma como os assírios praticavam a decapi-tação na guerra: para fins estatísticos, para contagem dos inimigos mortos. Aqui, ao contrário, a cabeça de Teumman retém o foco da atenção do ritual, que foi consagrado e comemorado tanto nos textos como nas imagens.

A segunda questão é sobre os fatores que fazem com que a exposição da cabeça de Teumman seja um ato ritual potente: o fator político, o reli-gioso e o da tradição. O fator político: assim como outras civilizações que praticavam a decapitação, a cabeça emerge como um símbolo político que possibilita a comemoração de um importante evento histórico, neste caso a derrota do Elam e a manutenção do controle ideológico sobre o passado. O fator religioso: a guerra de Assurbanipal contra o Elam, assim como outras campanhas militares assírias, eram vistas como uma missão divina, como indicam numerosos textos. E o fator da tradição: Assurbanipal coloca o ritual da decapitação dentro da tradição imemorial, quando cita o oráculo

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(BAHRANI, 2008, p.41): “I, Assurbanipal, king of Assyria, displayed pu-blicly the head of Teumman, king of Elam, in front of gate inside the city, where from of old it had been said by the oracle:’The head of thy foes shalt cut off’”.

3

O texto se refere ao cumprimento de uma profecia que destinava a vitória de Assurbanipal decretada pelos deuses,

4 e é, ao mesmo tempo, uma

justificativa para a guerra e para a vitória assíria, confirmadas pela exposi-ção pública da cabeça do rei do Elam. A cabeça é a parte do corpo que atua como símbolo da evidência da vitória em todo o tempo da narrativa, pois é o que confere a identidade da pessoa.

A comemoração triunfal de Assurbanipal em Nínive, a exibição da cabeça de Teumman e a libação com vinho estão na inscrição (BONATZ, 2005, p.96): “With the decapitated head of Teumman, king of Elam, I took the road to Arbela amid rejoicing”.

5 Não está clara a cronologia desses

fatos, em todo o caso a cabeça de Teumman deve ter sido preparada, talvez defumada, para ser conservada e servir a todos esses usos.

Identificamos uma grande similaridade entre a cena do banquete de Assurbanipal e imagens de selos-cilindros elamitas do período arcaico, com cenas de casais divinos bebendo vinho. Uma hipótese é que Assurba-nipal tenha escolhido essa cena para apropriar-se de uma fórmula de tra-dição elamita, de prosperidade e de bem-estar, como busca de legitimação religiosa/ideológica entre os elamitas recém-conquistados (NYLANDER, 1999, p.82).

A combinação particular da cena, com a figura do rei, da taça e da videira, evidencia uma associação de vários aspectos da realeza divina à vitória e ao triunfo sobre os inimigos, numa forte demonstração de poder, prosperidade e bem-estar. A videira era um símbolo da iconografia elamita – o que, precisamente, explicaria a sua mutilação por parte dos conquistadores de Nínive em 612 a.C., a coalização do exército babilônico e meda, este último composto com tropas elamitas.

A situação de iconoclasmo em Nínive, com o rosto e as mãos muti-ladas de Assurbanipal, da rainha e das taças de vinho, pode ser entendida como uma tentativa de destruição do gestual da comemoração (NYLAN-DER, 1999, p.75).

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20 PHoÎniX, rio de Janeiro, 17-2: 12-25, 2011.

A mutilação dos corpos

A mutilação dos corpos era uma prática atestada em várias civiliza-ções do mundo antigo, representada tanto na iconografia como na produ-ção textual. A identidade do inimigo morto e do grupo social ao qual ele pertencia era assim colocada em evidência (ZIERER, 2011; MINUNNO, 2008, p.249).

A decapitação dos inimigos era um elemento indispensável na guerra assíria. Após a batalha, as cabeças eram mostradas como troféus e eram testemunhas do prestígio e da qualidade do exército vitorioso. O acúmulo delas era um meio de mostrar o poder militar. Mas raras foram as vezes em que uma cabeça era nominada. Como afirma GLASSNER (2006, p.51):

Mais le geste de décapiter l’ennemi n’était pas propre à la seule Assyrie. Il est documenté à Ebla, dès le III

e millénaire, à Mari vers

1800 et dans la correpondance de Tell el-Amarna, au XIIIe siècle.

Une ultime chronique néo-babylonienne concernat le règne de Nabonide rapporte que Nabonide, le dernier roi de Babylone, fit à son tour couper les têtes de ses ennemis.

6

O ritual envolvendo a cabeça de Teumman confere a Assurbanipal o papel de detentor da tradição e de cumpridor dos desejos divinos. Mas, a ênfase dada à individualização da cabeça de Teumman foi um novo concei-to visual criado no reinado de Assurbanipal: como triunfo real. Isso impri-me à prática da decapitação um sentido antropológico específico, que suge-re que esse ritual era uma prática estabelecida no passado. A mutilação, em geral, e o ritual da decapitação, em particular, tornam-se, assim, um aspecto integrado desse sistema cultural.

Segundo a ideologia assíria, a guerra era concebida como uma luta contra as forças do mal, como um desafio ordálico que se tornou um ele-mento constitutivo da ordem cósmica. O rei assírio era o responsável pela elaboração de um ritual guerreiro, em que as cabeças cortadas dos inimi-gos adquiriram um poder de proteção: elas tornaram-se verdadeiros objetos apotropaicos (GLASSNER, 2006, p.50).

É interessante notar que Assurbanipal não participou pessoalmente da campanha contra o Elam, mas para ele, a decapitação de Teumman funcio-nou como evidência de seu papel ativo como rei da Assíria na campanha

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militar (BONATZ, 2005, p.94). Aqui, o papel de “caçador de cabeças” é dado a um soldado comum, e a morte de Teumman como um evento cor-riqueiro de guerra, sem o seu aspecto heroico. O fato de Teumman ter sido morto por um simples soldado se configura em certa punição adicionada à própria morte, pois o rei elamita não teve direito a uma execução cerimo-nial: Teumman foi reduzido à categoria de um soldado qualquer, perdendo sua condição de nobre real.

Conclusão

Entendemos que as imagens são representações de ideais, sonhos, medos e crenças de uma época, constituindo um poderoso meio de expres-são e comunicação, pois são transmissoras de uma mensagem (BURKE, 2005). E o conjunto de relevos analisado é um dos mais expressivos da arte neoassíria. O relato detalhado do desenvolvimento da batalha e da come-moração da vitória são ali retratados.

Podemos afirmar que a evolução estilística da escultura assíria refletiu o desenvolvimento ocorrido com a escrita. As cenas narrativas mais antigas resumiam uma longa história e simbolizavam os feitos reais numa composi-ção simples. Cada painel era tratado como uma unidade autoexplicativa. No final do século VII a.C., no entanto, as divisões físicas entre os painéis foram ignoradas, e as composições passaram a ocupar uma sala inteira. Essa prática permitiu incluir maior número de detalhes na imagem e conferiu maior dra-maticidade à ocupação do espaço. Cenas sucessivas criavam um efeito cine-matográfico: o espectador podia iniciar num ponto, prosseguir e acompanhar o avanço do exército assírio, o progresso da batalha, a tomada da cidade e o desfile dos deportados diante do rei até a comemoração da vitória, com um banquete na capital assíria (CURTIS; READE, 1995, p. 55).

A representação desses eventos históricos retrata certa concepção de tempo e de espaço dos assírios (POZZER, 2011, p. 129-30). A narrativa pictó-rica da batalha não é linear, nem há uma sequência cronológica ordenada: ali, o espectador pode ver o movimento das tropas e o caos da guerra, criado pela repetição das figuras e pela imensa quantidade de corpos dilacerados, em que a estética da violência prevalece. Já o relevo da comemoração da vitória da guerra apresenta uma atmosfera agradável, ainda que macabra. Nesse relevo, a exposição da cabeça do rei elamita, a videira, os alimentos e os músicos simbo-lizam um ritual repleto de júbilo, de prazer e de afirmação do poder.

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POUvOIR, GUERRE ET vIOLEncE DAnS ’IcOnOGRAPhIE ASSYRIEnnE

Résumée: Ce document présente les résultats partiels d’un projet de recherche qui vise à comprendre la relation entre la religion et les conflits militaires qui ont marqué la formation du grand empire neoassyrien de l’Antiquité, a travers la répresentation imagée des symboles religieux dans les récits visuels de la guerre. Dans le monde mésopotamien, le relief sur pierre a été l’une des plus importants manifestations artistiques et les plus utilisés étaient les bas-reliefs sur des dalles d’albâtre, décomposé en deux parties ou plus, couvrant les murs des palais. La pratique culturelle de la création de ces reliefs monumentaux était associée au moment politique de construction de grands empires. La plupart des scènes représentées évoquent la guerre et les campagnes militaires menées par les Assyriens contre ses ennemis. Ces représentations ont été utilisées comme propagande politique, sociale, économique, religieuse, avec une forte charge idéologique, qui visait à légitimer le pouvoir des gouvernants envers leurs sujets, dans une tentative de perpétuer son image et ainsi leur pouvoir.

Mots-clés: Assyrie; iconographie; violence; guerre; répresentation.

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notas

1 Assurbanipal ocupou o palácio de Senaqueribe de seu avô e empreendeu uma

grande reforma no local.2 A cabeça de Teumman, rei do Elam, que um servo de meu exército, um soldado

comum, cortou no meio da batalha, eles estão trazendo depressa para a Assíria para anunciar a vitória.3 Eu, Assurbanipal, rei da Assíria, mostrei publicamente a cabeça de Teumman, rei

do Elam, em frente dos portões da cidade onde o ancião tinha dito que a profecia do oráculo predizia: ‘A cabeça de teus inimigos deve cortar’.4

Os mesopotâmicos utilizavam-se dos adivinhos para compreender e interpretar

as mensagens criptografadas dos deuses, mas acreditavam, também, que os deuses poderiam se dirigir diretamente aos homens, através da revelação. Juntamente com o exame das vísceras de animais sacrificados para esse fim, a interpretação dos

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sonhos constituiu o procedimento divinatório mais antigo na Mesopotâmia (PO-ZZER, 2008, p.176). 5 Naquele tempo eu peguei entre minhas mãos a taça, eu versei (uma libação) sobre

a cabeça de Teumman, rei do Elam.6

Mas o gesto de decapitação dos inimigos não era restrito à Assíria. Ele está do-

cumentado em Ebla, desde o III milênio a.C.; em Mari, por volta de 1800; e na correspondência de Tell el-Amarna, no século XIII. Uma última crônica neobabi-lônica, que se refere ao reinado de Nabonida, relata que Nabonida, o último rei de Babilônia, manda, por sua vez, cortar as cabeças de seus inimigos.

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QUAnDO hOMERO IGnORA O TEMPO: A JUvEnTUDE DE AQUILES

Alexandre Santos de Moraes*

Resumo:

Aquiles é a personagem homérica mais complexa. O herói de quem a Musa canta a ira na Ilíada é também uma das personagens cuja idade é mais difícil de ser definida. Este artigo pretende refletir sobre os critérios de definição de seu grau etário considerando que as idades da vida são eventos biológicos socialmente refletidos.

Palavras-chave: Aquiles; juventude; poesia homérica.

Definir a idade de alguém não parece ser uma questão que suscite grandes dúvidas. Uma breve observação da aparência física, do vocabulá-rio e dos costumes mais evidentes é suficiente para nos julgamos capazes de sugerir com razoável grau de certeza quantos anos de vida o avaliado tem. Às vezes, erramos, mas dentro de um limite aceitável. Ao reconhe-cermos a idade, também somos capazes de supor suas condutas sociais básicas, já que cada fase da vida traz consigo a exigência de determinados comportamentos. Para nós, por exemplo, seria digno de estranhamento ver um grupo de adolescentes se sentar à mesa de uma distinta cafeteria para discutir a política macroeconômica do governo, devidamente acompanha-do de um saboroso chá de camomila e ao som de Billie Holiday; também seria digno de nota um grupo de idosos partilhando uma garrafa de vodka barata, com a carteira de estudante em mãos, esperando impacientemente

* Aluno de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF), sob orientação do Prof. Dr. Ciro F. S. Cardoso. Bolsista CNPq.

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sua vez para comprar uma meia-entrada para o Rock in Rio. É verdade que o recente envelhecimento da população e o recrudescimento da longevida-de sadia contribuíram para que os estratos mais velhos da sociedade pudes-sem desempenhar atividades antes exclusivamente destinadas aos jovens, mas não são necessárias grandes pesquisas para deduzir que esse é um fenômeno quase que exclusivamente contemporâneo.

A coerência entre o comportamento e a idade no presente da vida social também é marca característica dos poemas atribuídos a Homero, em que a caracterização etária das personagens tende a possuir uma regulari-dade pouco comum a outros temas. De fato, há alguns “lapsos” na narrativa que são perfeitamente explicáveis pela origem oral dos poemas. A questão do tempo é uma excelente medida. Basta recordar que, segundo a tradição, os combates entre gregos e troianos, narrados pela Ilíada, duraram dez anos, mas Homero os descreve apenas a partir do nono, e as ações pro-priamente ditas duram apenas cinquenta e seis dias. No caso da Odisseia, o herói errante enfrentou os perigos também por dez anos, mas, em termos cronológicos, o poema é ainda mais conciso que a Ilíada: a ação dura ape-nas quarenta e um dias. Para Donaldo Schüler, “a unidade do tempo em narrativa longa é invenção apreciável; apresenta, no entanto, dificuldades que Homero ainda não soube solucionar” (SCHÜLER, 2004, p.25). Ou-trossim, quando pensa as idades das personagens, Homero é meticuloso. Não há como dizer que Néstor e Príamo, os idosos mais conhecidos na Ilíada, não se comportavam de acordo com as limitações impostas pela senectude; na Odisseia, o caso de Telêmaco é notório: torna-se adulto

1 por

volta dos 20 anos, visto que Odisseu o deixou recém-nascido em Ítaca e regressou somente após duas décadas. Aliás, o envelhecimento de Odisseu também é respeitado, já que Athená em diversas vezes o “rejuvenesce” para cumprir determinados feitos. Homero oferece um espaço privilegiado para compreender as expectativas dos helenos dos séculos X ao IX a.C. acerca das ações sociais atribuídas a cada grau etário.

O caso de Aquiles é uma exceção. Os eventos que envolvem o herói cuja cólera a Musa canta e a quem Homero presta inúmeras deferências são complexos e exigem análise cuidadosa. O poeta se concentra longamente em tudo que o envolve, já que o filho de Peleu é o protagonista da narra-tiva e a guerra se move, com os auspícios dos deuses, para que a ofensa de Agamêmnon seja reparada com primícias. Assim, temas que poderiam despertar o interesse do ouvinte (e de nós, leitores!) acerca da guerra pro-

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priamente dita, não assumem tanto destaque quanto eventos aparentemente casuais, como o canto introspectivo a que o herói se dedica no acampamen-to dos Mirmidões (HOMERO. Ilíada, IX, 186-195) ou a longa descrição das armas que Hefesto forjou a pedido de Tétis (HOMERO. Ilíada, XVIII, 468-617). O mesmo ocorre em nível da linguagem, visto que “quando Ho-mero dá voz a Aquiles [...] a linguagem fica muito mais rica e incomum se comparada a outros personagens” (THOMAS, 2005, p.52). O investimento na personagem foi tão intenso que, segundo Katherine Callen King, Home-ro disponibilizou para os autores posteriores uma quantidade expressiva de temas para que eles pudessem reviver Aquiles em suas próprias persona-gens, como a juventude belicosa, a brutalidade guerreira, a obsessão pela honra, a querela entre o rei e o melhor guerreiro, a escolha entre a glória e a vida longa, o escudo divino, etc. (KING, 1991, p. 19).

Tais questões fizeram de Aquiles um tema extremamente atrativo para os Estudos Clássicos,

2 mas as análises acerca de sua condição etária

carecem de maior atenção. A questão é importante porque estamos plena-mente conscientes de que à idade dos indivíduos é adida uma série de ex-pectativas sociais que orientam suas práticas cotidianas e ajudam a definir a posição social que o agente ocupa. Logo, a periodização da vida implica um investimento simbólico específico em um processo biológico universal (DEBERT, 2007, p.51). Os discursos que estabelecem distinções sociais a partir de referências biológicas parecem plenamente adequados ao que Pierre Bourdieu denominou habitus, ou seja, “princípio gerador de estra-tégias inconscientes ou parcialmente controladas tendentes a assegurar o ajustamento às estruturas de que é produto tal princípio” (BOURDIEU, 2004, p.60). Compreender o habitus etário como um dado estruturado e estruturante é um dos caminhos privilegiados para avaliar a produção e re-produção da vida social. Assim, a visibilidade de Aquiles é tão interessante para nós quanto foi para o aedo de Quios.

As idades da vida em Homero não são institucionalizadas, diferen-temente do que ocorre atualmente, dado que se atribuem responsabilida-des aos agentes assumindo como referência a passagem do tempo. Aliás, a contagem da vida em anos parece ser um dado pouco significativo para o poeta.

3 Desse modo, o recurso mais apropriado para reconhecer o grau

etário de determinada personagem é avaliar de que modo seus comporta-mentos e posições sociais se apresentam a partir da comparação com outras personagens.

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Aparentemente, um traço distintivo em Aquiles é sua juventude (νεότης), que parece adequada, ainda segundo Katherine Callen King, ao fato de o herói estar associado ao tema da vida que se torna curta em função da guerra (KING, 1991, p.5). Um dos epítetos a ele associados, μινυνθάδιος, “que tem vida breve”, “que vive pouco”, denuncia essa condição constante-mente ratificada ao longo da narrativa.

4 Em seu lamento junto a Tétis, o herói

questiona: “Mãe, que me dotaste de uma vida tão curta (μινυνθάδιόν), não devia o Olimpo cumular-me de honras?” (HOMERO. Ilíada, I, 352-354). O mesmo aparece expresso pelo vocábulo ὠκὐμορος, “morrer rapidamente”,

5

também presente em uma fala de Tétis (HOMERO. Ilíada, I, 417) e que, diferentemente do primeiro, é associado exclusivamente a Aquiles. Alguns estudos relacionam a glória guerreira à morte precoce, já que o herói esteve disposto à entrega de uma vida potencialmente capaz de ser vivida.

6

No campo de batalha, a juventude era, na concepção homérica, uma condição indispensável. Néstor, por exemplo, é constantemente eximido da atividade guerreira em função de sua idade avançada, como quando, em um elogio, Agamêmnon louva o ânimo do ancião e lamenta sua senec-tude: “pudessem responder em vigor os teus joelhos” (HOMERO. Ilíada, IV, 313); ou quando o próprio Néstor se ressente por não poder aceitar o desafio que Héctor fizera aos melhores aqueus: “fosse eu jovem como quando junto ao rápido-fluente Celadonte [...]” (HOMERO. Ilíada, VII, v. 133-134). A longa digressão que Príamo faz ao lamentar a própria velhice é igualmente célebre:

Num moço, no ardor de Ares, pó agudo bronzelancinado, a jazer no campo de batalha,ainda que morto, tudo é belo; mas um velho,profanadas, como cabeça e barba brancasa genitália; um velho, pasto para os próprios cães – não há visão mais triste para os tristonhosmortais.(HOMERO. Ilíada, XXII, 73-79)

Estar disposto ao combate, contudo, não é uma evidência suficien-temente segura para aferir a idade das personagens. Se assim o fosse, a juventude poderia ser entendida como uma fase em que o agente não é mais criança (παῖς, παιδός), já que dispõe de recursos físicos para o combate, tampouco idoso (γέρων), já que sua capacidade guerreira ainda não o im-

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pele ao afastamento. Assim, mesmo que a disposição para combater afaste tacitamente a marca da senilidade, ela não elucida os matizes etários nada desprezíveis observados nos heróis que duelaram nas planícies de Troia.

Em alguns momentos, através das relações interpessoais travadas pe-las personagens, as diferenças etárias ganham visibilidade justamente por-que são exigidas para sustentar alguma posição social. Essa questão parece atingir o paroxismo no Canto IX, quando Aquiles reencontra Fênix, aquele que Peleu escolheu para instruir seu filho quando o herói era apenas uma criança. Juventude e Velhice criam um contraste sine qua non durante a Em-baixada enviada por Agamêmnon. Lamentando a posição irresoluta de Aqui-les de não retornar à guerra, o ancião recorda aos prantos a época em que esteve presente junto a ele, com a intenção expressa de dissuadi-lo através da autoridade quase paterna que conquistou: “Mais de uma vez, na altura do pei, a túnica me manchaste, menino rebelde, cuspindo nela a bebida. Muitas coisas passei por ti, muito sofrimento” (HOMERO. Ilíada, IX, 490-493).

Outro contraste aparece quando se observa a relação de philía entre Aquiles e Pátroclo, que, segundo a fala de Néstor, foi enviado a Troia na in-tenção de oferecer bons conselhos ao herói de ânimo intempestivo. Durante uma reminiscência junto ao segundo, o orador de Pilos fala de sua visita a Peleu para convocar Aquiles para o combate: “A Aquiles, Peleu recomen-dou que superasse a todos, sobranceiro; Menécio te alertou: ‘Aquiles, pela estirpe, te excede. Porém, és mais velho. Em força, ele também te sobrepuja. Deves dar-lhe conselhos sábios, apontar caminhos. Ele, para seu bem, há de ouvir-te”’ (HOMERO. Ilíada, XI, 779-791). Mesmo que não saibamos com precisão a idade de Pátroclo, sabemos que Aquiles é mais jovem que ele.

Finalmente, uma última diferença etária serve de medida pra avaliar a questão e exibir a contradição do poema homérico. Aquiles decide retor-nar à guerra após a morte do amigo. Ansioso por combater os troianos, o filho de Peleu sequer se alimentava. Odisseu, cuja ponderação é reconhe-cidamente uma constante em todo o épico, tenta recomendar ao herói que espere a hora certa para o combate e se prepare para tal: “Replicou-lhe Odisseu, poliastuto, dizendo: ‘Aquiles Peleide, és o mais forte dos Dânaos, de longe, e me superas no vigor da lança; mas muito me avantajo sobre ti no engenho: nasci primeiro e muito mais coisas já vi”’ (HOMERO. Ilíada, XIX, 216-219). Odisseu, assim como Pátroclo, é mais velho que Aquiles. Sabemos que o primeiro, diferentemente do segundo e do terceiro, era ca-sado e tinha um filho.

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Claudine Leduc fez uma análise bastante ponderada do casamento nas sociedades homéricas. Como é comumente admitido, o matrimônio tende a instaurar uma nova fase da vida, já que o indivíduo abdica do anti-go vínculo familiar para instituir seu próprio oîkos, angariando autonomia e visibilidade social. O casamento é o ensejo para o surgimento de uma nova geração, já que a reprodução de filhos legítimos foi a prerrogativa que sustentou o princípio organizador do sistema matriarcal durante séculos de história grega. A autora concentra seu maior interesse na relação entre os bens que acompanhavam, ou não, as noivas. Com base nessas preocu-pações e tomando como referência principal a situação experenciada por Penélope, a antropóloga deduziu que, no oîkos homérico, a esposa assume uma relação de parentesco com seu marido semelhante àquela que dispu-nha anteriormente com seu pai, e com seus filhos, semelhante à vivida com seus irmãos consanguíneos (LEDUC, 1994, p.291). Para nós, contudo, o mais importante é que o casamento da nobreza homérica (da qual Aquiles e Odisseu fazem parte) é oblíquo, visto que “o noivo, seja qual for o caso de figura considerado, pertence à geração que precede a da noiva” (LE-DUC, 1994, p.301). Assim, tal como ocorria no Período Clássico (séc. V ao IV a.C.), a jovem adolescente, mal atingida a puberdade, era dada a um homem maduro. Para a autora, essa obliquidade no casamento, assinalada séculos mais tarde, é um dado estrutural herdado das sociedades do século IX a.C. a que Homero parece se referir (LEDUC, 1994, p.301).

A juventude de Aquiles que, como vimos, é insistentemente ratificada durante o épico, parece contradizer esse sistema matrimonial tão coerente em relação à idade das outras personagens e desequilibrar o habitus etário que evoca. Apesar de desejá-lo, Aquiles ainda não tinha se casado, como declara:

Se os deuses me salvarem, se retorno ao lar,certo o próprio Peleu me buscará uma esposa.Na Hélade, na Ftia, entre as Aqueias há de sobrafilhas de paladinos da pólis, princesas;farei da que prefira minha esposa cara;meu coração deseja há muito uma legítimaconsorte, que comigo goze das riquezasque Peleu conquistou. Pois nada como a vida.(HOMERO. Ilíada, IX, 394-401)

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O fato de não ter esposa também fica explícito através da enorme lista de dons reparatórios de Agamêmnon, na qual uma de suas filhas foi oferecida para assumir essa condição (HOMERO. Ilíada, IX, 121-161). A despeito do fato de não ser casado e de ter significativa diferença de idade em relação a Pátroclo e Odisseu, tal como o filho de Laertes, Aquiles também deixou um filho em seu oîkos antes de partir para a guerra. Homero não menciona quem seria a mãe da criança, mas deixa claro que Aquiles é pai de Neoptólemo durante o lamento que o próprio herói faz após a morte de Pátroclo:

Dor maior não poderia afligir-me,nem mesmo se eu soubesse que morreu meu pai,que ora talvez em Ftia derrame ternas lágrimas pela ausência do filho. (E eu, entre gente estranha,pela funesta Helena, a combater os Troicos!)Nem mesmo se meu filho, que em Esciro educa-se,símil-a-um-deus, Neoptólemo, morrera (se éque ainda vive).(HOMERO. Ilíada, XIX, 321-328)

Não parece provável que os aedos que compuseram os épicos, inter-locutores de uma aristocracia consciente de seus privilégios, se dispuses-sem a ferir um sistema tão coeso justamente através do herói de maior visi-bilidade na trama.

7 A questão se torna ainda mais interessante, se conside-

rarmos a seguinte passagem protagonizada por Fênix: “Peleu, domador-de--corcéis, quando, há tempo, da Ftia te mandou a Agamêmnon, enviou-me contigo; eras muito jovem, inexperiente ainda na guerra crua e nos debates da ágora, onde nobres formam-se” (HOMERO. Ilíada, IX, 438-442). A ideia de juventude associada ao herói atinge seu auge com essa passagem, visto que o traçado que diferencia o filho de Peleu dos demais é justamente seu ímpeto combativo, e há uma diferença flagrante entre tornar-se guerrei-ro durante a guerra e ir à guerra por ser guerreiro.

Aliado a essas questões, não se pode desconsiderar que, entre a época da chegada de Aquiles a Troia e o presente da narrativa, se passaram nove anos, o que torna o nascimento de Neoptólemo ainda mais peculiar. Tam-bém é notável o fato de que Aquiles não parece ter assumido, ao longo desse período, o habitus etário tradicionalmente associado aos indivíduos que su-peraram a hýbris típica da juventude: permanece intempestivo (HOMERO. Ilíada, I, 226-230), de ânimo ardoroso (HOMERO. Ilíada, IX, 160-161),

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incapaz de pronunciar bons discursos (HOMERO. Ilíada, XVIII, 104-106) e alheio aos conselhos (HOMERO. Ilíada, XIX, 303-304), distanciando--se, assim, da prudência, da ponderação, da habilidade oratória e do respei-to à experiência que caracterizam a sophrosýne dos heróis mais velhos. É verdade que seu páthos

8 parece ter sido capaz de ajudar o herói a superar

determinados comportamentos, mas isso só se dá na ocasião da morte de Pátroclo (HOMERO. Ilíada, XVIII) e, de modo quase indiscutível, quando se compadece de Príamo na ocasião do resgate do corpo morto de Héctor (HOMERO. Ilíada, XXIV).

Diante disso, deduz-se que a juventude de Aquiles não é uma condi-ção passageira, mas um traçado distintivo inerente à caracterização da pró-pria personagem. Para mantê-lo permanentemente jovem, Homero recusou tacitamente a influência que a passagem do tempo exerceria sobre ele. A razão que funda sua eterna juventude, como apontado anteriormente, pare-ce evidente: era necessário adequá-lo ao tema da glória em combate, para o qual o estatuto de jovem é uma condição inicial por gerar uma “bela mor-te” – καλός θάνατος. No entanto, não há incoerências flagrantes em outras personagens a respeito do envelhecimento, mesmo naquelas que também morrem jovens em combate e são louvadas com distinção. Esse não parece ser um argumento suficientemente claro para entender a contradição.

Em primeiro lugar, pode-se defender que o poeta não dispunha de lei-tores críticos capazes de apontar deslizes e buscar soluções para remediar os equívocos: como é próprio das palavras oralizadas, uma vez enunciadas são impossíveis de ser corrigidas. Em segundo lugar, não parece plausível que a coerência temporal do poema fosse uma preocupação tanto para o poeta quanto para seus ouvintes, já que a épica tradicional não se prestava a inquietações que são típicas de uma cultura literária surgida séculos mais tarde. Em terceiro lugar, pode-se sugerir que essa incoerência seja resulta-do da própria complexidade dos temas associados a Aquiles, que fizeram dele uma personagem incapaz de centralizar tantos elementos e manter-se, ainda assim, imune a algumas contradições.

Essas três questões podem ser plausíveis. No entanto, penso que ο principal motivador que levou Homero a cometer tal contradição foi a ne-cessidade de conciliar dois postulados extremamente valorizados pela cul-tura bélica que a Ilíada exibe e que são excludentes entre si: a exacerbação da juventude do “melhor dos aqueus” (ἂριστος Ἀχαιῶ) e a geração de filhos legítimos, segundo os critérios supracitados, da aristocracia.

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Curiosamente, o tema do casamento, que serviu para confirmar a in-coerência, serve também para entendê-la. A geração de filhos legítimos é constantemente reiterada ao longo do épico como um dos mais importantes aspectos para a reprodução da vida social. No exército troiano, por exem-plo, a proteção das mulheres e crianças parece ser a principal motivação que impele os guerreiros ao combate,

9 tendo em vista a expectativa de asse-

gurar a possibilidade de crescimento de um filho homem capaz de superar em virtudes seu próprio pai (HOMERO. Ilíada,VI, 466-484). Os homens, que reconhecem sua finitude, veem em seus filhos o único meio de perpe-tuar os méritos da comunidade, do oîkos e de sua própria glória pessoal, já que estão plenamente conscientes de que, como defendeu Dodds, “a vida de um filho era um prolongamento da vida do pai” (DODDS, 2002, p. 41). É nesse sentido que os filhos dos heróis da épica tradicional convertem-se em um instrumento de memória. Crê-se que, quando atingissem a idade viril, sustentariam, através da exibição pública de seus valores, a glória im-perecível de sua linhagem: do mesmo modo que “herdavam a dívida mortal dos pais exatamente como herdavam suas dívidas comerciais” (DODDS, 2002, p. 41), arrastavam consigo o louvor de quem os gerou.

Homero considerou indispensável atribuir a paternidade a Aquiles justamente por causa de sua morte iminente: Neoptólemo seria aquele que daria continuidade às façanhas do herói, ampliando seus méritos e asse-gurando sua imortalidade. Se, por um lado, Homero rompeu, através de Aquiles, a rígida coerência do estatuto etário das personagens, por outro lado manteve-se coeso em relação ao tema que fundamenta as ações ao longo da Ilíada. O tempo social, o tempo da narrativa e o próprio curso da vida encontram-se subordinados à glória em combate, questão inicial e arbitrária para o canto dos aedos.

whEn hOMER IGnORES ThE TIME: AchILLES’YOUTh

Abstract: Achilles is the most complex homeric character. The hero of whom the Muse sings the anger in the Iliad is also the character which the age is most difficult thing to be defined. This article intends to reflect about the criteria definitions of age-grade considering that the aging is biological events socially reflected.

Keywords: Achilles; youth; homeric poetry.

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Documentação escrita

ÉSQUILO. Agamêmon. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2007.HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Editora Mandarim, 2001. _____. L’Iliade. Trad. Victor Berárd. Paris: Les Belles Lettres, 2001._____. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004._____. L’Odyssée. Trad. Victor Bérard. Paris: Les Belles Lettres, 2001.

Dicionários

BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librairie Hachette, 1950. CHANTRAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Pa-ris: Editions Klyncksieck, 1968.ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990.LIDDELL; SCOTT’S. An Intermediate Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1992.

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notas

1 Lembramos que as denominações aqui utilizadas são convenções, já que os vo-

cábulos que definiam as diferentes fases da vida em Homero são radicalmente dife-rentes daqueles que utilizamos atualmente. 2 Os homeristas também analisaram longamente as características do herói, de

modo que seria uma tarefa inexequível contemplar a variedade de trabalhos disponíveis sobre o tema. A título de exemplo, destacam-se as análises criterio-sas de BURGESS, 2009; MACCARY, 1992; NAGY, 1979; REDFIELD, 1994 e ZANKER, 1997.3 É notável que a única referência à contagem da vida em anos apareça na Odis-

seia, justamente para relatar um fato completamente excepcional: Odisseu, durante sua passagem pelo Hades, relata a existência de Oto e Efialto, filhos de Posêidon e Ifimédia, que “nove côvados tinham de largo ao contarem nove anos, e nove braças de altura, também, nessa idade atingiram” (HOMERO. Odisseia, IX, 311-312).4 A única personagem que partilha este epíteto é Héctor: “Restava-lhe de vida

apenas um lapso mínimo (μινυνθάδιος): Palas Atena já o empurrava para a Moira mortal” (HOMERO. Ilíada, XV, 612-614).5 Segundo Pierre Chantraine, ώκύς é explicitamente um antônimo de βραδὐσ,

“tardio” (CHANTRAINE, 1968, p. 1299), o que transforma ὠκὐμορος em um vo-cábulo que possui uma significação bastante correlata a μινυνθάδιόν.

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6 Dos quais podemos destacar VERNANT, 2002; LOURAUX, 1994 e ASSUN-

ÇÃO, 1995.7 Justamente porque, como defendido em trabalhos anteriores, a adequação dos

discursos aos anseios da aristocracia palaciana era o principal mecanismo de sobre-vivência dos poetas orais, cuja atividade dependia do poder econômico dos nobres a quem celebravam as tradições orais helênicas. Sobre esse tema, consultar MO-RAES, 2011.8 A ideia do sofrimento como um acontecimento capaz de gerar aprendizado foi de-

senvolvida com mais clareza séculos depois. Vemos que Ésquilo, em Agamêmnon, associa ao πάθει μἀθος, o “saber pelo sofrer”, a possibilidade de amadurecimento através da experiência (ÈSQUILO, Agamêmnon, v. 176-179). 9 HOMERO. Ilíada, VI, 276-278; HOMERO. Ilíada, VI, 364-367; HOMERO.

Ilíada, VI, 429-432 e HOMERO. Ilíada, IX, 593-596.

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O GInÁSIO cOMO ESPAçO DE FORMAçãO DE cIDADãOS: AS PRÁTIcAS ESPORTIvAS nA GRÉcIA AnTIGA

Fábio de Souza Lessa*

Vanessa Ferreira de Sá Codeço**

Resumo:

Neste artigo, defendemos que o ginásio, espaço público e indissociável da dinâmica políade, era um lugar socialmente construído, onde os valores helêni-cos eram exaltados através das práticas esportivas e das interações sociais.

Palavras-chave: espaço; ginásio; Grécia Antiga; nudez.

Um dos grandes legados dos helenos que o mundo moderno herdou foi a prática esportiva. Não que ela fosse exclusividade dos gregos, mas constituía uma parte preponderante de sua cultura. O esporte teve grande destaque entre os helenos, especialmente durante o Período Clássico (sé-culos V e IV a.C.). A ginástica, por exemplo, ocupava parte significativa do processo educacional. O fato de o esporte ter se tornado o elemento preponderante em toda paideía não só ateniense, mas helênica de um modo geral, explica-se por dois fatores: sua importância militar e a capacidade de iniciação numa vida civilizada. O gosto pelos esportes atléticos e sua prática permanece desde a Época Arcaica (séculos VIII-VI a.C.) e se torna um dos traços dominantes e definidores da identidade grega, separando-a dos bárbaros pelos valores éticos exaltados.

* Professor associado de História Antiga do Instituto de História (IH) e do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Membro do Laboratório de História Antiga (Lhia)/UFRJ. Apoio financeiro do CNPq e da Faperj. Bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado (Faperj).

** Professora doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC), sob orientação do Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa. Bolsista Capes.

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As atividades esportivas tinham finalidades muito específicas. Cada modalidade atlética deveria contribuir para despertar uma série de atribu-tos, como a andréia (ARISTÓTELES. Política. VIII, 1337 b, 28), o espíri-to agonístico, a koinonía, a euxía (saúde) e a areté, além de também aten-der a objetivos militares. Inicialmente, a prática física estava ligada princi-palmente às necessidades da vida militarizada; apenas depois do século VII é que podemos assinalar uma sensível desmilitarização de algumas póleis, como Atenas, que abandona a vida marcadamente militar, ainda encontrada em Creta e Esparta, canalizando os esportes para as esferas cívica e heróica (BARROS, 1996, p.31). Em tempos de paz, a educação gímnica tinha o objetivo de construir o corpo do atleta, contudo a função de defesa da pó-lis não era de todo abandonada, de modo que também atendia a esse fim. Assim, dardos poderiam ser substituídos por lanças, discos por escudos, já que a luta era imprescindível na guerra. Tudo em favor da defesa da pólis. Platão, nas Leis, assinala a relação das práticas esportivas com a guerra:

Já apresentamos muitos reparos com referência à dança e a toda espécie de exercícios, pois incluímos no conceito de ginástica todos os trabalhos relacionados com a guerra: o tiro com arco, e outras modalidades de arremesso, o combate com armas leves e pesadas, evoluções táticas, a arte de levantar ou fixar acampamento, e tudo o que se relaciona com o ensino da equitação. (PLATÃO. Leis. VII, 813-d a 814-a)

As práticas esportivas também permitiam a interação de diferentes grupos de homens/cidadãos no interior da sociedade políade, explicitan-do suas alteridades (LESSA, 2003, p.53). Em Atenas, a esfera esportiva produzia identificação e promoção social, marcava o eu e o outro, implica-va prestígio perante seus isoí, promovia a coesão cívica e materializava a identidade sociocultural helênica.

Com tantas finalidades (ética, militar e social), não seria difícil ima-ginarmos o quanto tais atividades caíram no gosto dos atenienses. A fre-quência aos ginásios, que não era obrigatória, tornara-se um diferenciador social. Lá, os cidadãos aprendiam que o corpo pertencia a algo muito maior – a pólis, a koinonía (SENNETT, 1977, p.42) –, tornando-se um dos ele-mentos de integração dos isoí à medida que os homens se reconheciam nos olhos dos outros homens e marcavam suas identidades como cidadãos. Tal identidade tinha a máxima exibição e expressão nas competições esporti-vas, nas quais o cidadão apresentava seu corpo bem treinado.

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Há consenso entre os especialistas de que os Jogos eram um espelho da vida e da sociedade dos gregos antigos, já que reuniam enorme multidão para assistir às cerimônias religiosas e diversas disputas desportivas nas quais os grandes atletas competiam. Assim, as competições tinham lugar num espaço público perante a comunidade reunida.

Mas até a competição, um longo caminho era percorrido, e parte fun-damental dele estava no treinamento que acontecia nos ginásios – espaço destinado a essa finalidade. Assim, defendemos que o ginásio grego era um espaço de significação social, isto é, construído cultural e socialmente, fundamental para a formação do cidadão, onde modelos de sociabilidade eram vivenciados pelos helenos do Período Clássico.

É corrente na historiografia relacionada ao esporte helênico a inexati-dão entre os autores quanto à definição do que se entendia por ginásio entre os gregos antigos. Etimologicamente, a palavra ginásio deriva de gumnoi: nus. Num sentido mais amplo, os ginásios eram espaços públicos onde aqueles que neles se exercitavam estavam desnudos. Originalmente, um lugar para a prática esportiva, isto é, para o exercício cotidiano, que é um meio de desenvolvimento corporal; posteriormente, um centro intelectual. Os ginásios eram, essencialmente, um espaço de comunicação, de intera-ção social.

De acordo com Z. Newby, o desenvolvimento dos ginásios aparece vinculado ao aumento da necessidade de treinamento para as competições. A autora defende, ainda, que eles se tornaram espaços nos quais se evi-denciou a diferenciação da elite social porque ganharam a conotação de expressão da superioridade física, sendo acessíveis apenas às camadas mais abastadas da sociedade (NEWBY, 2006, p. 69-70).

No momento de definir o que constituíam os ginásios para os gregos antigos, há, entre os autores, uma confusão no que se refere a dois dos espaços físicos mais frequentemente associados às práticas esportivas: os próprios ginásios e as palestras. De acordo com a documentação, os giná-sios teriam sido estruturas maiores, contando com espaços para caminhada e corrida, bem como estruturados para a prática da luta e do pugilato. Ainda assim, há relatos de ginásios que incluíam também a palestra. Dessa forma, ginásio seria a nomenclatura dada ao complexo inteiro, e palestra, o con-junto do espaço que circundava a área aberta, com os vestiários, salas de descanso e de banho.

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É impossível ter certeza absoluta sobre o que realmente aludem os autores antigos quando se referem aos ginásios e/ou palestras. Entretanto, em todos os casos, esses complexos tinham salas combinadas para con-versas e discussões, assim como áreas para banho, massagem, vestiários e locais para a prática das diversas modalidades atléticas.

Defendemos, na pesquisa, que os ginásios constituíam um conjunto formado pela reunião da palestra, campo de exercício cercado de edifica-ções diversas e estádio, pista para corrida a pé. Porém, para nós, o mais re-levante é entendê-los como importantes locais para a educação dos jovens cidadãos; nesse sentido, um espaço para interações sociais, exposição dos corpos e, inclusive, prática da sexualidade.

Pausânias, na Descrição da Grécia, obra escrita na segunda metade do século II d.C., logo, distanciada do nosso período de análise, define gi-násio como um conjunto de construções para disputas dos atletas, incluindo a palestra (6.15.8). Para o autor, a palestra era uma construção diferente. Ele nos informa que, à esquerda da entrada do ginásio, existia um recinto fechado menor, onde se encontravam as palestras dos atletas (6.21.2). Por fim, sintetiza o ginásio como uma construção da cidade de Élis, destinada à competição de luta e pugilato (6.23.4).

Refletir acerca do espaço físico dos ginásios nos remete, de imediato, às várias considerações dos autores contemporâneos acerca do conceito de espaço. As leituras teóricas que fizemos têm em comum o fato de concebe-rem o espaço como um lugar praticado – nesse sentido, uma construção sociocultural.

Henry Lefebvre, uma referência nas discussões acerca da temática, afirma que o espaço não é passivo nem vazio: é produzido por ações e rea-ções – “o espaço intervém na produção: organização do trabalho produtivo, fluxo das matérias-primas e das energias, rede de repartição dos produtos” (LEFEBVRE, 2000, p. XX). O autor continua destacando que “o conceito de espaço liga o mental e o cultural, o social e o histórico. Reconstituindo um processo complexo: descoberta (de espaços novos, desconhecidos, dos continentes ou do cosmos), produção (da organização espacial própria a cada sociedade), criação (de obras: a paisagem, a cidade com a monumen-talidade...)” (LEFEBVRE, 2000, p. XXII).

Ao afirmar que cada sociedade com seu modo de produção específico produzirá um espaço específico (LEFEVBRE, 2000, p. 40), Lefebvre inse-

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re a categoria espaço na dimensão sociocultural.1 Em sentido semelhante, o

antropólogo Roberto Damatta defende que, para se entender o espaço, é ne-cessário entender a sociedade, destacando que ele possui uma significação social (DAMATTA, 1985, p. 26 e p. 41). Já Michel de Certeau contribui para a discussão chamando a atenção para o fato de que o espaço deve ser definido como um lugar praticado, como o efeito produzido pelas práticas que o orientam (CERTEAU, 1994, p. 202).

Pensando sobre a relação entre o público e o privado na sociedade ro-mana, Annapaola Ruggiu conclui que o espaço não constitui uma realidade indiferenciada, definida simplesmente em termos quantitativos de grande-za, estando intimamente ligado às atividades essenciais da vida, à realidade e à natureza da comunidade. Nesse sentido, ele se torna espaço social, isto é, socialmente utilizável (RUGGIU, 1995).

Outro aspecto fundamental sobre o qual reflete Ruggiu é a consti-tuição de identidades a partir da interação com o espaço, porque, através da individualização dos limites e das fronteiras espaciais comuns, o grupo exprime a si mesmo e constrói a própria identidade (RUGGIU, 1995). Não podemos deixar de mencionar que o espaço se projeta com finalidades e valores de ordem social, política e cultural.

Tal reflexão também esteve presente nos estudos dos autores gregos antigos. Dentre os autores trabalhados por A.G. Navarro, interessa-nos mais estreitamente as ideias de Platão e de Aristóteles. O primeiro, no Ti-meo, definiu a Geometria como ciência do espaço, enquanto o segundo se dedicou a desenvolver uma teoria do topos (“lugar”), concebendo o espaço como a soma de todos os lugares, um campo dinâmico com direções e pro-priedades qualitativas (NAVARRO, 2007, p. 3).

Navarro ainda enfatiza que o espaço é uma das dimensões existen-ciais fundamentais do ser humano e, como tal, do seu plano vivencial, e que os homens, para levarem a cabo suas intenções, devem compreender as relações espaciais e unificá-las em um conceito. Podemos afirmar, as-sim como o autor, que a experiência que tem o homem do ambiente que o rodeia, permite assinalar que a percepção do espaço é algo muito mais dinâmico que estático (NAVARRO, 2007, p. 3-5).

Feitas tais considerações acerca da categoria espaço, consideramos que podemos nos centrar mais propriamente no nosso objeto de estudo neste artigo, a saber: o ginásio como espaço de formação dos cidadãos ate-

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nienses. Sabemos que ele, enquanto locus de exercício da cidadania entre os helenos, era dinâmico e complexo. Para efeito de delimitação temática, nos limitaremos a abordar um dos aspectos peculiares às interações desen-volvidas no espaço dos ginásios: a nudez do corpo do atleta.

Nunca é demais ressaltarmos que nossa análise se centrará no grupo social dos kaloi kagathói - os cidadãos bem-nascidos. Além das limitações oferecidas pela documentação, o próprio ginásio é um espaço de constitui-ção de identidades dos grupos de cidadãos abastados e de demarcação de alteridades frente aos demais grupos de cidadãos e de não cidadãos.

Selecionamos para análise três cenas cujas ações se desenvolvem no âmbito dos ginásios. Elas foram pintadas em uma kýlix

2 – Figura 1 (Faces

A, B e Medalhão) – de figuras vermelhas.3

Antes de analisarmos as cenas, algumas considerações acerca do tra-balho com imagens devem ser feitas.

4 Não podemos deixar de mencionar a

importância que as imagens pintadas nos vasos áticos têm para o conheci-mento da sociedade dos atenienses: sem elas, existiria uma lacuna expres-siva em nosso conhecimento. Outra questão a ser salientada é que viver na pólis era construir imagens, fossem elas verbais ou pictóricas (RASMUS-SEN; SPIVEY, 1993, p. XIII; THEML, 2002, p. 15).

Além de um produto de uso cotidiano entre os gregos antigos, a cerâ-mica é também um meio de expressão sociocultural que possui para o his-toriador a vantagem de vir diretamente do seu período - diferente dos textos escritos, que sofreram constantes intervenções, seleções e/ou censuras para sobreviver em nosso tempo (KEULS, 1993, p. 2).

As cenas pintadas nos vasos áticos são polissêmicas, sendo, assim como muitas outras formas de arte antiga, extremamente semióticas em sua natureza, isto é, o uso frequente de uma forma gráfica específica tem adquirido valores simbólicos que vão além de sua comunicação literal. No momento de analisar uma determinada imagem, devemos ter em mente que as interpretações variam em diferentes contextos, de acordo com os olhares e segundo nossas diferentes expectativas, até mesmo porque a lei-tura de uma imagem não se reduz à decodificação de um único significado (KEULS, 1997, p. 307-309; ROBERTSON; BEARD, 1993, p. 13-4).

Para sistematizar melhor nossos argumentos, passemos à interpreta-ção das imagens; na sequência, estabeleceremos as relações entre elas.

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Figura 1 Face 1A Face 1B

Medalhão

Localização: Boston, Museum of Fine Arts - inv. 98.876. Temática: Atletas em treinamento. Proveniência: Não fornecida. Forma: Kýlix. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Não fornecido. Data: 510-500. Inscrições: Face A (HO PAIS KALOS), Face B (KALOS HO PAIS]) e Medalhão (ATHENODOTOS KALOS).

Nesta kýlix, tanto nas duas faces quanto no medalhão as vestimentas estão ausentes, o que assinala se tratar de atletas, já que os esportes eram praticados com a total nudez dos corpos. Nas três cenas, também notamos que se trata de jovens, pois são imberbes.

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Quanto à apropriação do espaço, na Face 1A, temos o primeiro jovem da esquerda para direita, que se encontra agachado e parece segurar uma fita. Dois jovens, o do centro e o da direita, estão de pé. O primeiro segura um dardo, en-quanto o segundo, um par de dardos; já o terceiro porta um enxadão. Os jovens apresentam coroas na cabeça, um indício claro de que já foram vitoriosos em alguma das modalidades esportivas. Na Face 1B, os três personagens estão de pé. O primeiro, da esquerda para a direita, está segurando um par de dardos (o que se percebe mesmo havendo falhas no verniz). Os outros dois estão volta-dos para o primeiro personagem. O jovem ao centro também segura um par de dardos, e o da direita, um par de halteres. Os três apresentam coroas na cabeça. Já no Medalhão, o jovem representado está de pé, com a cabeça voltada para a esquerda e portando um par de halteres. Possui coroa na cabeça.

Nas três cenas, notamos a presença, ao todo, de doze dardos, três enxadões e dois pares de halteres, objetos que fazem menção explícita às modalidades esportivas. Nas três cenas, classificamos o espaço como inter-no. Mesmo não havendo objetos pendurados na parede, as modalidades às quais as cenas fazem referência (lançamento de dardo e salto em distância) eram praticadas na palestra, espaço utilizada para treino.

As inscrições HO PAIS KALOS (O jovem é belo), na Face A; KA-LOS HO PAIS (O jovem é belo), na Face 1B e ATHENODOTOS KALOS (Athenodotos é belo), no Medalhão, assinalam que não só as modalidades descritas, mas os jovens representados em cenas são considerados belos por estarem atuando em atividades valorizadas pela pólis. A presença do termo kalós pode fazer alusão à beleza ou, ainda, à condição social de bem-nascido. No que se refere à beleza física, não podemos esquecer que o objetivo dos pintores é valorizar as qualidades atléticas dos jovens, o vigor de seus exercícios (SCHNAPP, 1996, p. 45).

Quanto aos jogos de olhares, todos os personagens presentes nas ce-nas aparecem em perfil, forma mais comum de representação nas imagens áticas. No caso desse tipo de representação, a veiculação da mensagem não permite um diálogo direto com um enunciador-destinatário externo; isto é, não se estabelece uma interação com o público, e a cena adquire a conotação de um exemplo a ser seguido pelos receptores (CALAME, 1996, p. 108). No Medalhão da Figura 1, o olhar é de três quartos. Esse tipo de olhar denota comunicação interna e externa, produzindo um duplo diálo-go, levando o espectador a tomar como exemplo a cena representada e, ao mesmo tempo, a participar dela.

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Na interpretação das imagens, a observação dos gestos das persona-gens é fundamental. Tal questão foi objeto de um diálogo entre o Sócrates de Xenofonte e o pintor Parrásio. Sócrates faz a seguinte colocação e obtém concordância do pintor:

Ademais, a magnificência e a condição de homem livre e nobre, o servilismo e a condição de escravo vil, a prudência e o enten-dimento, a insolência e a vulgaridade refletem-se no semblante e nos gestos corporais, esteja-se em repouso ou em movimento (XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. III, 10, 5)

O que a passagem nos informa é a importância dos gestos como reve-ladores de sentido nas imagens. Através da análise do gestual, conseguimos diferenciar personagens, identificar o seu status, indicar as modalidades praticadas, perceber os espaços de ação da cena, etc. O disco seguro pelos personagens nos dois vasos, os seus corpos e as suas posturas são signos que indicam, na cena, movimento.

Nas cenas, fica evidente a valoração feita pelo pintor da beleza física, da prática esportiva, do desnudar-se característico da democracia atenien-se, do movimento e da harmonia do corpo, das virtudes de um cidadão ideal, do equilíbrio e da sincronia dos movimentos.

Outro elemento significativo nas imagens analisadas é a nudez. Compo-nente indissociada da prática esportiva, a nudez é um dos signos que ajudam a comprovar se a cena diz respeito, de fato, a uma cena de esporte, uma vez que os atletas se exercitavam nus. É frequente a escolha dos pintores em re-presentar os atletas com os corpos nus e apolíneos, pois era assim que seriam valorizados perante a pólis e desejados com honra (SENNETT, 1997, p.42).

A nudez dos corpos gregos poderia assinalar significados específicos, como distinção entre fortes e fracos, civilizados ou bárbaros (já que os bár-baros não se exercitavam nus), honrados e desonrados. O ato de exibir-se confirmava a dignidade da cidadania e reforçava os laços cívicos (SEN-NETT, 1997, p.30). O atleta utilizava a nudez como sua “vestimenta”, por-tando os signos que o localizavam dentro da dinâmica políade e do que os seus iguais deveriam esperar dele (ao visualizar a nudez do atleta, espera-va-se dele coragem, virilidade, força, etc). Por ser um atributo identificador do atleta, o corpo nu era enfatizado no contexto do social, da coletividade, enquanto produtor de significados e sentidos.

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Após analisarmos as cenas selecionadas, de posse de nosso conheci-mento na documentação imagética e reflexões teóricas, concluímos que o ginásio, mais do que um espaço físico para as práticas esportivas, era um lugar simbólico, um lugar praticado.

Nele, jovens e adultos, mais que adestrarem seus corpos, relaciona-vam-se e exercitavam os valores políades da koinonía, da coragem, da força, da virilidade e da publicidade dos atos. Esses valores estavam inti-mamente conectados ao modelo ideal de cidadania, caro entre os helenos, pois era aquele que os fazia gravitar na esfera da honra.

O ginásio, também, era o espaço para a formação dos futuros cida-dãos, vinculando-se diretamente à paideía. As diversas modalidades ali praticadas eram ensinadas aos mais jovens, que se tornariam, futuramente, os atletas que disputariam as competições esportivas. Para Marrou, falar em esporte era se referir ao esporte competitivo, pois era neste contexto que se encontrava o ideal agonístico herdado dos exemplos heróicos que os helenos tinham. Ser o melhor, o primeiro, o que se destaca em seu grupo (MARROU, 1998, p. 213).

Outro elemento relacionado ao espaço do ginásio é a interação so-cial ali desenvolvida. Inseridos na esfera dos desportos, os atletas entra-vam em contato com outros (mais novos, de sua idade e/ou mais velhos). Além de incentivar a philía entre os ísoi, essas relações impulsionavam outra etapa fundamental no processo educacional ateniense: a pederas-tia - prática que unia dois homens, um mais velho e um mais novo, na busca de uma maior preparação do mais jovem. Segundo Marrou, para o homem grego, a paideía também residia nas relações profundas e es-treitas que uniam pessoalmente um jovem (erómenos) a um mais velho (erastés). Esse homem mais velho seria seu guia, seu modelo, seu ideal e seu iniciador. A ligação amorosa homoerótica acompanhava-se de um trabalho de formação e de maturação, em que o erómenos era iniciado lentamente nas atividades sociais do erastés: a assembleia, o ginásio, o banquete, a agorá (MARROU, 1966, p.58-9). Essa prática estava atre-lada à construção do ideal de masculinidade ligado diretamente ao de cidadão. A pederastia, em especial na sociedade dos atenienses, podia ser aceita e valorizada quando a relação estivesse voltada para a educa-ção do jovem, principalmente aristocrata. Era uma instituição pedagógica (VRISSIMTZIS, 2002, p. 100).

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O ginásio, desse modo, convertia-se num espaço com uma dupla fun-ção: além de ser o local de preparação do corpo do atleta, era o espaço de exposição do mesmo, visto que a abordagem nele se dava através de cor-tejamentos e presentes (com animais vinculados à esfera da virilidade, da coragem e da caça, como galos, cachorros e lebres). Os presentes também poderiam ser vasos feitos sob encomenda, contendo o nome do receptor e, às vezes, o nome do adulto que os encomendou. Essas inscrições assinala-vam o destino desses objetos com adjetivos dados àqueles que os recebiam e/ou aquilo que os helenos consideravam belo. No vaso que analisamos neste artigo, encontramos inscrições similares, vinculando o jovem atleta ao adjetivo Kalos (belo).

Dessa forma, concluímos que o ginásio era um dos espaços públi-cos indissociáveis da dinâmica políade. Um lugar socialmente construído, onde os valores helênicos eram exaltados através das práticas esportivas e das interações sociais.

GYMnASIUM AS A PLAcE OF FORMATIOn OF cITIZEnS: SPORTS PRAcTIcES In AncIEnT GREEcE

Abstract: In this article we argue that the gymnasium, public space and inseparable from polyadic dynamics, was a socially constructed place where Hellenic values were extolled through sports practices and social interactions.

Keyword: Space, Gym, Ancient Greece, Nudity

Documentação escrita

ARISTÓTELES. Política. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Difusão Eu-ropeia do Livro, 1967.PLATÃO. República. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Difusão Euro-peia do Livro, 1965.XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Trad. Edson Bini. Bauru/SP: Edipro, 2006.

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notas

1 Lefebvre alerta para a necessidade de os pesquisadores prestarem a atenção à se-

guinte triplicidade: a prática espacial (produção e reprodução, lugares específicos e conjuntos espaciais próprios a cada formação social que assegura a continuidade numa relativa coesão), as representações do espaço (relacionadas às relações de produção, à ordem que elas impõem, aos signos e códigos), bem como os espaços de representação (relacionados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social, mas também à arte, que pode se definir não como código do espaço, mas código dos espaços de representação) (LEFEBVRE, 2000, p.42-3).2 Taça usada para beber vinho.

3 O estilo chamado de figuras vermelhas, mais característico do Período Clássico,

apresenta os elementos da decoração em tom claro sobre fundo escuro.4 Aplicaremos às imagens o método semiótico proposto por Claude Calame (1986),

que pressupõe a necessidade de:

1. verificar a posição espacial dos personagens, dos objetos e dos ornamentos em cena;

2. fazer um levantamento detalhado dos adereços, mobiliário, vestuário e gestos, estabelecendo um repertório de signos;

3. observar os jogos de olhares dos personagens, que podem apresentar-se em três tipos:

• Olhar de Perfil – o receptor da mensagem do vaso não está sendo convi-dado a participar da ação. Há comunicação interna entre as personagens pintadas, e suas ações devem servir como exemplo para o público receptor.

• Olhar Frontal – a personagem convida o receptor a participar da ação representada, estabelecendo uma comunicação direta.

• Olhar Três quartos - a personagem olha tanto para o interior da cena quanto para o exterior. O receptor da mensagem está sendo convidado a participar da cena.

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EDUcAçãO FEMInInA, PRAZER E PODER EM ATEnAS (SÉcULOS vI-Iv A.c.)*

Edson Moreira Guimarães Neto**

Resumo:

Em nosso artigo, apresentaremos as esferas de convivência e os processos de educação das cortesãs atenienses como ponto de referência, comparando-os aos pontos similares nas vidas das esposas legítimas e filhas dos cidadãos atenienses; assim, elucidaremos os objetivos e características específicos almejados no desenvolvimento de cada grupo.

Palavras-chave: banquetes privados; educação; poder; prostituição; sexo.

Diferente do que existe em relação às esposas legítimas, às cortesãs atenienses não foi imposto nenhum código específico de conduta em re-lação a seu comportamento. A documentação não faz nenhuma referência específica a um modo adequado de agir, falar, vestir-se, ou comportamento das hetaírai, o que nos leva a crer que determinados comportamentos ca-racterísticos dessas mulheres eram resultado das necessidades da função que exerciam. Cabe observar também que a responsável pela construção de modelos específicos de modo de vida e conduta das cortesãs foi a própria historiografia contemporânea, ora classificando-as como cultas e mulheres verdadeiramente livres da pólis, ora como vítimas de submissão imposta por uma sociedade masculinizada.

* Este artigo é uma adaptação do capítulo 2 da dissertação de Mestrado Gêne-ro, erotismo e poder: comparando identidades femininas em Atenas (séculos VI-IV a.C.), defendida em dezembro de 2010.

** Doutorando do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ. Bolsista Capes.

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A historiografia tradicional construiu seus modelos clássicos de heta-íra – a oprimida ou a mulher culta e verdadeiramente livre – basicamente através da biografia de duas personagens: Aspásia

1 e Neera.

2 Certamente,

os relatos acerca da vida de tais personagens não devem ser desprezados, podendo ser considerados até indispensáveis para a montagem de um cor-pus documental acerca do feminino e da prostituição em Atenas, contudo não devem ser tratados como modelos do todo.

No presente artigo, tentaremos desconstruir tais mitos criados pela historiografia tradicional. Para tanto, através do trabalho com a documenta-ção proposta, tomaremos as esferas de convivência e os processos de edu-cação das cortesãs como referenciais, comparando-os aos pontos similares nas vidas das atenienses; assim, elucidaremos os objetivos e características específicos almejados no desenvolvimento de cada grupo. Por fim, desve-laremos o que significava a figura da hetaíra no imaginário ático através dos discursos que legitimavam não apenas o seu status, mas também o daqueles homens a quem faziam companhia.

1. As origens da prostituição no Período Clássico

Ó Sólon, tu és nosso benfeitor, pois nossa cidade repleta de jovens de temperamento ardente que poderiam se extraviar pela prática de atos condenáveis. Porém, tu compraste mulheres e instalaste--as em locais determinados, onde ficam à disposição de quem as quiser. Ei-las, tal como as fez a natureza. Nenhuma surpresa. Vede tudo. Queres ser feliz? A porta abrir-se-á, se quiseres; basta um óbolo[...] Com algumas moedas podes comprar um momento de prazer sem correr o mínimo risco[...] Podes escolhê-las de acordo com a tua preferência – magras, gordas, baixas, jovens, de meia--idade, velhas – podes tê-las sem ter de recorrer a uma escada ou de entrar furtivamente[...] Todos podem desfrutá-las facilmente, sem receios e de todas as maneiras, dia e noite. (ATENEUS, XIII, 529d)

A partir das reformas realizadas por Sólon no início do século VI,3 a

prostituição em Atenas se tornara legal, contanto que não fosse praticada por atenienses. As prostitutas eram, em relação à sua origem, escravas ou ex-escravas (haviam sido libertas), métoikoi,

4 ou meninas que haviam sido

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expostas por seus pais5 (MOSSÉ, 1990, p.67-8). Cidadãos atenienses, es-

posas e filhos legítimos não podiam ser prostituídos, “[...] ninguém pode vender suas filhas ou irmãs, a não ser se ficar patente que elas perderam a virgindade antes de casar”

6 (PLUTARCO. vida de Sólon, XXIII, v.1).

O período de prostituição inconsequente e descontrolada chegava ao fim. Aos poucos, a quantidade de prostíbulos foi se multiplicando. Em nenhuma das póleis havia tantas prostitutas quanto em Atenas, exceto Co-rinto, onde era exercida a Hierá Porneía

7 (VRISSIMTZIS, 2002, p.84-8).

A palavra prostituta, em grego, é porné, que deriva do verbo pérnemi (vender ou ser vendido), portanto, aquela que está à venda ou aquela que vende sexo. (DAVIDSON, 1998, p.117; VRISSIMTZIS, 2002, p.85-6). A palavra traz consigo a ideia de comércio: dar a alguém os direitos sobre um corpo em troca de dinheiro, como uma mercadoria viva. O cliente que paga obtém uma autoridade momentânea para usufruir aquele corpo da maneira que desejar (BRULÉ, 2003, p.190 e 207).

Podemos dizer que, nesse mundo dos prazeres, as hetaírai ou compa-nheiras ocupavam o mais alto posto. Ao contrário das pórnai – que atua-vam nas zonas portuárias a baixos preços -, as hetaírai – com todos os seus dotes artísticos e físicos – serviam apenas a estrangeiros ricos e aos cida-dãos mais abastados – kaloí kagathoí –, cobrando quantias bastante ele-vadas. Outro aspecto bastante importante é que, enquanto as pórnai eram escravas que serviam a preços tabelados por lei, as hetaírai eram mulheres livres, portanto com poder de escolha acerca de quem atenderiam e em troca do quê (DAVIDSON, 1998, p.124-6). Teoricamente, o contato com a hetaíra não seria uma transação comercial, mas uma troca de favores (ou presentes) entre as partes envolvidas, sendo o sexo um elemento implícito, mas não uma compensação imediata ou obrigatória. Como veremos mais à frente, esse sistema de boa-fé, baseado em reciprocidade e confiança, gerava relações mais longas entre as cortesãs e seus companheiros e, por isso, uma rede de clientes limitada, mas que, devido à proximidade entre os envolvidos, favorecia a maximização dos ganhos daquelas mulheres e da satisfação concedida aos seus amigos (BRULÉ, 2003, p.208; DAVIDSON, 1998, p.120-7; KURKE, 1997).

As hetaírai eram companheiras dos homens em banquetes e outros eventos da vida social da pólis dos quais as esposas, filhas e irmãs não participavam, principalmente devido à austeridade no comportamento

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exaltado pelo modelo mélissa.8 Independentemente de seu flutuante status

econômico e social - que poderia sofrer grandes variações de acordo com as circunstâncias -, as hetaírai se caracterizaram por sua participação no banquete dos homens (CALAME, 2002, p.116-7).

2. Educadas para seduzir

As proxenetas helênicas – responsáveis pela educação das hetaírai – eram, na maioria das oportunidades, mulheres capazes de formar cortesãs destinadas a ter uma vida fácil ao lado de homens ricos.

9 Tradicionalmente,

parte da historiografia contemporânea tendeu a fomentar a construção de que as cortesãs recebiam uma formação intelectual superior até mesmo à das bem-nascidas, participando, inclusive, dos debates filosóficos (SAL-LES, 1982, p.46; POMEROY, 1999, p.110-1; VRISSIMTZIS, 2002, p.95). No entanto, tais considerações perpassam normalmente por exemplos como o de Aspásia, que sequer pode ser comprovadamente considerada uma hetaíra.

Além de belas, as cortesãs deveriam ser agradáveis. Acreditamos que a educação das hetaírai era estritamente voltada ao mundo dos prazeres, visto que sua principal prerrogativa era divertir, entreter e dar prazer a seus clientes, e, como veremos mais à frente, eram essas as armas que elas ti-nham para se inserir no diálogo de poder com os homens.

Em primeiro lugar, era preciso que essas jovens possuíssem o corpo ide-al, ou, pelo menos, parecessem possuí-lo. Para tanto, eram ensinadas a usar o próprio corpo, a remodelá-lo, e, citando Aléxis, Ateneus nos conta como:

Remodelam-nas completamente, de modo que essas jovens não conservem nem suas maneiras nem seu físico original. Uma delas é muito pequena? Uma palmilha é costurada em seu calçado. Outra é demasiado alta? Deve usar sandália e andar com cabeça enterrada entre os ombros, o que a faz parecer menor. E esta, não tem ancas? Costura-se um enchimento em suas vestes, na parte posterior, e os que a encontrarem ficarão admirados à vista do seu belo traseiro. E esta outra, tem a barriga grande? Pode usar seios postiços, como os atores; dispõe sua veste por cima do enchimento e a faz cair de tal maneira que sua barriga fique escondida. A que tem sobrancelhas ruivas as tinge com fuligem. A que as tem muito

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escuras passa alvaiade na pele. E a que é muito pálida passa ruge nas faces. A que tem uma parte de seu corpo particularmente bela arranja um modo de desnudá-la. A que tem belos dentes deve na-turalmente rir, a fim de que todo o grupo possa ver como tem uma bela boca. E, se não souber rir, deve – como as cabeças de cobras nos açougues – manter entre os lábios um ramo de mitra, o que faz com que, quer queira ou não, conserve a boca entreaberta. (ATENEUS. XIII, v.557)

Cabe ressaltar que o aprendizado das artes e subterfúgios da sedução não é um aspecto de domínio exclusivo das profissionais dos prazeres, pois, como dissemos anteriormente, o principal objetivo do casamento é a re-produção de herdeiros e a continuidade da pólis, tudo isso através do sexo. Portanto, dominar as ferramentas que manipulam a beleza e a sedução faz parte também das habilidades aprendidas pelas atenienses. Lisístrata nos dá um dos inúmeros exemplos que permeiam a documentação textual:

Se ficássemos dentro de casa, maquiladas,e, sob as tunicazinhas de Amorgos,nuas desfilássemos, o púbis depilado,

10

os maridos cheios de tesão, desejariam fazer sexo,mas se não nos aproximássemos, se nos recusássemos,negociariam a trégua rapidinho, sei bem disso. (ARISTÓFANES. Lisístrata, vv.149-154)

Nidam-Hosoi afirma que o discurso imagético ateniense nos apresen-ta um contexto em que a beleza masculina é obtida através da virtude, en-quanto a beleza feminina é construída por meio de subterfúgios (inclusive, com as vestimentas) – desde a origem mítica de Pandora (NIDAM-HOSOI, 2007, p.8-10). Podemos observar essa lógica operando nas imagens de to-alete feminina e preparação nupcial.

Lydie Bodiou nos mostra que o domínio da toalete feminina se esten-de da manipulação da aparência para a manipulação dos sentidos, pois, ao aplicar o óleo perfumado em seu corpo, a mulher (esposa ou cortesã) torna--se mais atraente não apenas pelo odor e pela hidratação proporcionados por tal substância, mas também porque ela torna a pele brilhante e atrativa (BODIOU, 2008, p.153-4 e 157). A utilização de tais téchnai tem influência no imaginário.

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As meninas recebiam também educação artística, aprendendo a dan-çar, cantar e tocar instrumentos como o krotalon,

11 a lira e, principalmente,

o aulós12

(CERQUEIRA, 2005, p.39; SALLES, 1982, p.61; VRISSIMT-ZIS, 2002, p.95). Segundo Fábio Cerqueira, o predomínio do aulós é abso-luto, aparecendo em 60% das cenas de sympósion, nas quais em 59% das vezes é tocado por mulheres. O aulós era o instrumento mais tradicional para o acompanhamento dos skólia

13 (CERQUEIRA, 2005, p.39-40).

Figura 1

Localização: Naples, Museo Archeologico Nazionale H3232. Temática: Educação/Prostituição. Proveniência: Italy, Nola. Forma: Hydría. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Polygnotos. Data: 440-430. Indicações bibliográficas: ARV 1032,61; BAGPP 213444; CP 138; KEULS, 1993, p.93, fig.84; LEWIS, 2002, p.34, fig.1.18.

Tomando como pressuposto que, por servirem as camadas mais abastadas da pólis dos atenienses, as hetaírai realmente passavam por um treinamento bastante pragmático e específico na busca de proporcionar o entretenimento da melhor maneira possível, observemos a Figura 1.

Nas Figuras 1 e 2 podemos ver a decoração exterior de uma hydría de figuras vermelhas de cerca de 440-430, atribuída a Polygnotos. Na Fi-gura 1, da esquerda para a direita, vemos o exterior A, onde um jovem rapaz (ausência de barba), vestido e apoiado a um cajado, assiste à cena que se desenrola: uma mulher vestida e de pé segura uma flauta com a mão

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esquerda e uma lira com a mão direita, enquanto observa uma moça apa-rentemente mais jovem, com roupas mais simples e mais curtas, dançando; às suas costas, outra garota, com roupas similares, dança ao som da flauta tocada pela mulher que está sentada e vestida à sua frente. No exterior B, a cena continua com um jovem (ausência de barba) vestido de guerreiro, com capacete, lança e escudo, enquanto outra mulher diante dele tem um krotalon em cada mão. Em seguida, podemos observar uma garota nua, em cima de uma mesa, fazendo acrobacias em torno de uma kýlix que repousa sobre a mesma; a cena termina com uma mulher vestida e de pé, que toca flauta para uma garota nua, que usa apenas uma fita amarrada à coxa es-querda e parece se preparar para fazer alguma acrobacia sobre três espadas apontadas para cima diante dela. A presença de mobília torna evidente que é uma cena de interior.

Figura 2

Idem à Figura 1.

Entendemos que, a despeito do que diz Eva Keuls,14

sem sombra de dúvidas se trata de uma cena representando o treinamento de cortesãs, pois as filhas legítimas dos atenienses aprendiam a cantar e a tocar principal-mente com fins religiosos e, normalmente, longe da presença dos homens; já as meninas da cena, evidentemente, treinam práticas de entretenimento.

Um aspecto interessante na cena das Figuras 1 e 2 é que apenas a personagem que se prepara para trabalhar com as espadas tem uma fita

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na coxa. Esse tipo de fita aparece, normalmente, na imagética da cerâmica ática como uma espécie de amuleto para proteção (LEWIS, 2002, p.104-7). Imaginamos que ela use o amuleto devido ao maior risco de sua aparente atribuição.

Com tais indícios, acumulamos argumentos suficientes para compro-var que uma bem-nascida, com o dever de gerar os novos cidadãos da pólis, não poderia estar inserida em tal situação.

A cena que se desenrola nas Figuras 1 e 2, aliada a alguns relatos encontrados na documentação textual

15 e nas produções historiográficas

contemporâneas,16

nos fazem concluir que, embora pudessem desempenhar variadas funções de acordo com os desejos dos clientes, cada uma das cor-tesãs assumia um papel mais específico na engrenagem de entretenimento em que se constituía um banquete,

17 oferecendo seus encantos, sobretudo

àquele a que fazia companhia, algo que podemos notar na disposição espa-cial dos convivas na Figura 5, assim como na seguinte passagem: “Quatro, os bebedores, e vem a amada de cada um” (Antologia Palatina, V, 183).

Além de belas e talentosas, as hetaírai deveriam ser companhias agradáveis para seus clientes; portanto, também deveriam saber se com-portar nos momentos em que seus atributos físicos não fossem o centro da ação. Nesses momentos, deveriam se portar de forma recatada e comedi-da, lembrando o comportamento esperado das bem-nascidas (ATENEUS, XIII, v.571; SALLES, 1982, p.61). Crobila ensina a sua filha Corina:

Escuta-me, vou te dizer o que deves fazer e como te comportar com os homens [...] Primeiramente, ela é elegante e atraente ao se vestir, tem um olhar bem disposto para todos os homens, não está tão disposta a rir tão abertamente [...], mas tem um sorriso doce e cativante [...] não trai ninguém com quem esteja, seja cliente ou acompanhante; e não se atira nos braços de um homem [...] não se embriaga, pois é ridículo, e os homens detestam as mulheres bêbadas. Não come demais, pois isso é prova de má educação. Toma os alimentos com a ponta dos dedos; come sem fazer barulho e sem encher as duas bochechas; e bebe com comedimento, com pequenos goles, não de um só trago [...] E ela não fala demais ou debocha de qualquer um dos convivas, tem olhos apenas para seu cliente. É por isso que os homens gostam dela. (LUCIANO. Diálogo das cortesãs, 6)

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Sua educação se concluía com a aprendizagem de métodos contra-ceptivos, para que pudessem estar em atividade na maior parte de sua ju-ventude, enquanto ainda fossem belas e desejáveis. A documentação e a historiografia falam de diversas substâncias a serem aplicadas na genitália antes do ato sexual, de raízes e plantas com atributos mágicos, sobretudo drogas e poções que objetivavam garantir, por um período mais ou me-nos longo, a esterilidade provisória, embora não se tenha muita certeza da eficácia de tais produtos (ATENEUS, XIII, 559; SALLES, 1982, p.63-5). Consideramos relevante destacar que a responsabilidade contraceptiva era sempre da mulher, não importando a técnica ou método utilizado para a obtenção de tal fim; portanto, obedecendo a esta lógica, a prática do coito interrompido ocorria de maneira inversa à que conhecemos atualmente, com a mulher tendo que observar a tensão crescente do membro masculino para prever o clímax e saber o momento exato de recuar para que seu par-ceiro ejaculasse fora de sua genitália (BRULÉ, 2003, p.163-4).

3. A esfera de atuação - os banquetes privados dos homens

Na dinâmica relacionada ao mundo dos prazeres, podemos situar o sympósion como o evento máximo. Esse era um dos acontecimentos mais característicos da vida social e sexual em Atenas. Literalmente significando festa de beber, era um encontro único, dedicado a vários tipos de comidas, bebida, jogos, discussões filosóficas e sexo com prostitutas e outros ho-mens, mas nunca com esposas (KEULS, 1993, p.160). Alexandre Carneiro ressalta que o sympósion não é só uma festa de pessoas abastadas e que, em um único festim, é possível encontrar membros de diferentes camadas sociais de Atenas, mesmo estrangeiros (LIMA, 2000, p.22). No entanto, defendemos aqui que, assim como as hetaírai, esses festins privados, a par-tir das reformas de Sólon e com o surgimento da democracia, funcionaram como marcadores de diferenciação social entre os membros da aristocracia e os cidadãos atenienses menos abastados. Acreditamos que, ao mesmo tempo que marca e solidifica os laços entre os iguais, o sympósion também é um espaço demarcador de alteridade, uma vez que de seu ambiente estão excluídos os que não são membros do grupo ali reunido.

Defendemos que, como elemento discursivo de uma identidade gru-pal, o imaginário dos banquetes privados deveria ser propagado por toda a

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pólis, para que o maior prestígio dos convivas fosse captado e reconhecido pelos demais membros da comunidade política (cidadãos). Logo, tanto a esfera prática como as representações escritas e imagéticas de tais eventos deveriam dispor de elementos específicos que constatassem o estilo de vida mais elevado da aristocracia ateniense.

Dentro dessa perspectiva de propagação dos ideais aristocráticos, en-tendemos que a mídia com maior facilidade para circular nos espaços pú-blicos da pólis são os vasos decorados. Observando esses textos imagéticos e aplicando o método de leitura isotópica, identificamos dois elementos constantemente euforizados: o vigor físico dos corpos dos kaloí kagathoí, e o convívio com as hetaírai – as rainhas do mundo dos prazeres –, a quem os cidadãos pobres jamais teriam acesso.

O sympósion é uma parte tão característica da vida ateniense, que muitas facetas daquela cultura seriam incompreensíveis se estes não fos-sem levados em conta. A busca da manutenção do entretenimento e da alegria estava nas mãos de pessoas que dependiam dessas festas como sus-tento pessoal. As hetaírai, musicistas e acrobatas, eram responsáveis pelo deleite e pelo prazer dos olhos e dos corpos dos convivas.

Os sympósia normalmente aconteciam no quarto dos homens (an-drôn) de residências privadas. O andrôn era, essencialmente, uma sala de jantar contendo pequenos pódios de pedra ou massa, nos quais se coloca-vam almofadas para recosto (klínai) e onde os convivas e as hetaírai recli-navam-se para comer e para beber. Os mesmos klínai serviam para dormir e para a prática do sexo (KEULS, 1993, p.162). O andrôn era enfeitado com motivos florais, sobretudo rosas, heras e violetas, simbolizando uma relação religiosa, fornecendo ao banquete um caráter intermediário entre o sagrado e o profano (THEML, 1998b, p. 104). Na entrada do andrôn, havia um vestíbulo que dava acesso direto à rua. Essa ligação direta com a rua era uma forma de evitar que as mulheres da casa (esposas e filhas) estabeleces-sem algum tipo de contato com os convivas – que eram homens estranhos ao seu convívio. Segundo Claude Calame, esse acesso direto à rua situa o andrôn, de certa maneira, no limite entre o interior e o exterior, fornecendo a ele um caráter semipúblico (CALAME, 2002, p.118).

Segundo Alexandre Carneiro, o banquete consiste numa prática festi-va que possui uma série de regras estabelecidas e ritualizadas, objetivando receber um amigo ou um estrangeiro (LIMA, 2000, p.31). Após a regula-mentação das diferentes fases do banquete, harmonicamente os convivas

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escolhem, por meio de sorteio, um simposíarchos ou “rei do sympósion”, ao qual se comprometem a obedecer (LIMA, 2000, p.31-2; PELLIZER, 1990, p.178; SALLES, 1982, p.106).

O simposíarchos tem a função de determinar o número de taças a serem bebidas, de cuidar do ordenamento do entretenimento, assim como indicar as penalidades destinadas a punir os maus bebedores. Ele é o prin-cipal responsável pelo bom andamento da bebedeira (LIMA, 2000, p.33; SALLES, 1982, p.106):

É preciso que a mistura do homem e do vinho se faça segundo a natureza de cada um; e o symposíarchos deve conhecer as regras dessa mistura e observá-las a fim de que, tal como um hábil músico com as cordas de sua lira, ele puxe um conviva dando-lhe de beber, solte um outro racionando-lhe o vinho, e conduza assim essas na-turezas em desarmonia a um uníssono harmonioso. (PLUTARCO. conversas à mesa, I, 4, 2f)

A sociedade ateniense valorizava a justa medida, e a ars bibendi do sympósion deve se fixar num ideal de consumo moderado, evitando os ex-tremos de completa abstinência (nephein) e embriaguês prejudicial (me-thyesthai, paroinein, kraipalan). O bom bebedor deveria transitar num es-tágio entre o comportamento tedioso do homem sóbrio e a irracionalidade e violência do bêbado (PELLIZER, 1990, p.178).

Os convivas que se excedem no vinho querem sair da ordem. O an-drôn e a libação dão condições para que eles ingressem em uma realidade utópica e carnavalesca, em que será deixado de lado o respeito às normas e às regras sociais. A limitação imposta pelo espaço interno (do andrôn) determinará o deslocamento para o espaço público (LIMA, 2000, p.36).

Tão importante para o sympósion como o próprio evento em si era o kômos, a procissão festiva que marcava a transição para o momento da bebedeira, da festa de beber, ou o transporte dos convivas de uma casa para outra (KEULS, 1993, p.174). Essa era, provavelmente, a ocasião que gera-va a violência com a qual os sympósia eram relacionados.

18

Podemos observar a Figura 3, que é uma das faces do exterior de uma kýlix de figuras vermelhas, de autoria de Brygos Painter. Nessa imagem, vemos, no centro, um jovem segurando uma taça na mão esquerda e um cajado na mão direita, tendo à sua direita dois homens adultos – o que se

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evidencia pela barba – e uma mulher que toca o aulós (a dupla flauta), e, à sua esquerda, um jovem e um homem adulto agarrando uma mulher que tem uma taça em sua mão esquerda. Somos levados a crer, pela relação entre a bebida, a música e o ritmo sugeridos pela posição das personagens, que tal imagem corresponde a uma procissão de kômos.

Três elementos devem ser destacados na análise dessa imagem: 1) os dois homens no centro seguram bengalas, o que nos informa que se trata de cidadãos; 2) três dos homens estão praticamente nus; 3) as duas mulheres estão completamente vestidas. Ao colocarmos tais elementos em conjunção, podemos imaginar que a euforização da nudez masculina é um fato consolidado pelo velamento dos corpos femininos. Guardemos tais informações e sigamos adiante.

Figura 3

Localização: Würsburg, Martin Von Wagner Museum 479. Temática: Sym-pósion/ Kômos. Proveniência: Etruria, Vulci. Forma: Kýlix. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Brygos Painter. Data: ce. 490. Indicações bibliográfi-cas: ARFV 254; ARV 372,32; BAGPP 203930; GARRISON, 2000, p.148, fig.5.21; HAMEL, 2003, p.8-9, fig.3, p.40, fig.9; KEULS, 1993, p.175, fig.152, p.221, fig.171; LEWIS, 2002, p.97, fig.3.6; LIMA, 2000, capa.

Por toda parte, a desordem é um vício; mas, entre os homens, principalmente quando bebem, ela revela então sua perversidade pelo excesso e por outros males indescritíveis, que devem ser pre-

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vistos e evitados por um homem capaz de ordem e de harmonia. (PLUTARCO. conversas à mesa, I, 2, 5)

O consumo desenfreado do vinho poderia, em algumas ocasiões, levar os convivas à embriaguez. É aí que, segundo Alexandre Carneiro, ocorre o fenômeno do carnaval, em que se verifica a suspensão da ordem e liberação das repressões sociais (LIMA, 2000, p.32). A Figura 4 corres-ponde ao medalhão interior da mesma kýlix representada na Figura 3: nela, podemos ver uma hetaíra ajudando um jovem rapaz, que segura um cajado (identificando seu status de cidadão), a vomitar. Tal imagem corresponde a um dos tantos excessos de que se tem relato na documentação textual e que causavam diversos conflitos em Atenas. Uma das mais famosas alusões a tais comportamentos se encontra na comédia As vespas, de Aristófanes, em que o autor claramente disforiza o comportamento do velho Filocléon, que aparece bêbado e descomposto em companhia de uma flautista nua e de outras pessoas, agride uma padeira e abusa da flautista (ARISTÓFANES. As vespas, vv.1335-1414).

Figura 4

Idem à Figura 3.

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Segundo Catherine Salles, os convivas dos banquetes gostavam de organizar competições de todo tipo sobre qualidades físicas ou intelectuais dos participantes. Essa autora afirma, ainda, que não era raro, ao fim do banquete, as mulheres concorrerem entre si para saber quem fazia o melhor amor, sendo que, em algumas ocasiões, chegavam a estabelecer provas es-pecíficas (como nos jogos olímpicos) segundo as capacidades próprias a cada uma das moças (SALLES, 1982, p.111-2). Paulo nos relata um con-curso de beijos:

Os beijos de Galatea são longos e sonoros, os de Demo, delicados, Dóride morde. Quem excita mais? Os ouvidos não devem julgar os beijos; depois de provar os lábios selvagens emitirei o meu voto. Estás equivocado, coração meu. Os delicados beijos de Demo co-nheces e o doce mel de sua boca de orvalho. Fique aí; ela merece a coroa. Mesmo que alguém goze com outra, não me separará de Demo. (Antologia Palatina, V, 244)

Rufino escreveu duas epigramas registrando espécies de competições mais picantes entre cortesãs. No primeiro, temos um concurso de nádegas:

Fui árbitro de um concurso de nádegas entre três mulheres; elas mesmas me elegeram e me mostraram o brilho desnudo de seus membros. De uma, a branca doçura ao tato florescia de seus glúteos e ficava estampada por dobras redondas como sorrisos. Da segunda, que abria as pernas, a pele de neve enrijeceu mais vermelha que uma rosa purpúrea. A terceira estava calma e como o mar quebrava com silenciosas ondas, agitada sua delicada pele por calafrios. Se o árbitro das deusas houvesse visto essas nádegas, não teria querido nem sequer olhar as de então. (Antologia Palatina, V, 35)

No segundo, três mulheres disputam aquela que possui a mais bela genitália:

Disputavam entre si Ródope, Mélite e Rodoclea, qual das três tinha o ‘entremúsculo’ mais belo, e me elegeram árbitro. Como as deusas, isentas e de pé, posaram desnudas, lambuzadas por néctar. O de Ródope brilhava em meio aos músculos, precioso, dividido como um ramo de rosas por um forte zéfiro. O de Rodoclea era igual ao cristal, como uma polida imagem esculpida em um templo. Sabendo

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claramente o que sofreu Páris por causa do concurso, justiça às três porquanto as coroei como imortais. (Antologia Palatina, V, 36)

O jogo que no Período Clássico tinha maior sucesso era o kóttabos, de implicações ao mesmo tempo eróticas e dionisíacas.

A partir do momento em que o rumor sonoro do vinho, próximo do ruído do teléfilon, estala contra o jarro profético, fico sabendo que tu me amas. Tu vais imediatamente me mostrar que isso é verdade, vindo dormir a noite inteira comigo. Com efeito, é assim que me mostrarás tua sinceridade. E eu deixarei esses bêbados jogarem o kóttabos, lançando ruidosamente o seu vinho sobre o jarro. (An-tologia Palatina, V, 296)

Através do jogo de kóttabos, os convivas distribuíam entre si as he-taírai que iriam diverti-los. O bebedor deveria esvaziar o conteúdo de uma taça e jogar as últimas gotas de vinho que restassem na direção de um prato ou jarro situado a certa distância; então, ele pronunciaria o nome da pes-soa que desejava: se o jato de vinho atingisse o local provocando um som harmonioso, o jogador teria certeza de que possuiria a pessoa cujo nome invocara (KEULS, 1993, p.160; SALLES, 1982, p.113; VRISSIMTZIS, 2002, p.94). Há um fragmento da Velha Comédia que fala a respeito de jogar kóttabos em troca de sapatos e taças de beber, e também em troca de beijos (KEULS, 1993, p.160).

O kóttabos está presente em várias cenas de banquetes da iconografia ática, como a Figura 5, na qual vemos uma das faces de uma kýlix de figu-ras vermelhas atribuída a Tarquinia Painter e datada de cerca de 470-460. Vemos uma cena de interior (evidenciada pelas almofadas, pelo cesto e a fita pendurados à parede) no ambiente do sympósion, onde dois casais - cada um composto por um homem adulto (barba) e uma mulher – jogam kóttabos. A prática nos parece mais evidente no primeiro casal da esquerda para a direita, pois o gestual de ambos nos faz imaginar que o homem se-gura a sua taça enquanto a mulher faz o movimento de tentar acertá-la com o vinho restante em sua kýlix, demonstrando uma similaridade incrível com a descrição que obtivemos de tal jogo.

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Figura 5

Localização: Basel, Antikenmuseum und Sammlung Ludwig: KA415. Temática: Sympósion/ Prostituição/ Kóttabos. Proveniência: Não for-necida. Forma: Kýlix. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Tarquinia Painter. Data: ce. 470-460. Indicações bibliográficas: ARV 868,45; BAGPP 211438; BOARDMAN, 1997b, fig.72a; BRULÉ, 2003, p.211.

Às vezes, quando as hetaírai gozavam de certa fama, elas mesmas praticavam o jogo do kóttabos e escolhiam, assim, seus companheiros de noitada. Segundo Catherine Salles, nesse jogo havia três elementos indis-pensáveis no sympósion: a ingestão de vinho, a prova de habilidade e o erotismo (SALLES, 1982, p.113-4).

Figura 6

Localização:Madrid, Museo Arqueológico Nacional 11.267. Temática: Kóttabos/ Prostituição/ Sympósion. Proveniência: Etrutia, Vulci. Forma: Kýlix. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Oltos. Data: 520-510. Indicações bibliográficas: ARV 58(53); BAGPP 200443; LISSARRAGUE, 1990, p.260, fig.53.

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Assim como a Figura 5, a 6 traz uma cena que, segundo nossa inter-pretação, representa a prática do kóttabos. Nessa última, vemos o exterior de uma kýlix de figuras vermelhas, de autoria de Oltos, na qual duas hetaí-rai, reclinadas em almofadas – o que evidencia ser uma cena de interior -, uma tocando o aulós enquanto a outra segura um skyphos com a mão es-querda e uma taça com a direita, dão a impressão de estar jogando kóttabos.

Tendo ou não ocorrido a prática do kóttabos e do kômos, o destino natural dos sympósia era a indução à atividade que mais dava fama às he-taírai: a prática do sexo.

Dispamos, grata amiga, nossas roupas e que os membros desnu-dos aproximem-se dos desnudos membros enlaçando-se. Que não haja nada no meio, pois teu delicado véu parece-me a muralha de Semíramis. Nossos peitos unamos e nossos lábios. (Antologia Palatina, V, 252)

Esse tipo de ocasião pode ser lembrado a partir da cena representada na Figura 7, na qual vemos o medalhão interior (única parte decorada) de uma kýlix de figuras vermelhas de cerca de 510-500, atribuída a Gales Painter. A cena mostra, da esquerda para a direita, uma hetaíra (com um aulós na mão direita)

19 e um jovem rapaz (ausência de barba): ambos, despidos e deitados

sobre uma kliné, trocam carícias e, aparentemente, fazem sexo. Cenas como esta e algumas de sexo em grupo se multiplicam na imagética dos sympósia.

Figura 7

Localização: New Heaven, Yale University Art Gallery 1913.163. Temática: Sympósion/Prostitui-ção. Proveniência: Etruria, Vul-ci. Forma: Kýlix. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Gales Pain-ter. Data: 510-500. Indicações bibliográficas: ARV 36.a; BA-GPP 200208; CP 138; LEWIS, 2002, p.123, fig.3.24.

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4. Relações de interação: corpo, discurso e poder

As hetaírai das Figuras 6 e 7 podem muito bem representar o ideal estético da jovem beleza feminina predominante na cerâmica ática ao longo do século V: magras, graciosas, com seios pequenos e firmes.

20 As medidas

são curiosamente masculinas, como se o artista utilizasse como modelo o corpo de um efebo adicionando os seios, nem sempre sendo convincentes (FANTHAM, 1994, p.116-8).

As produções da imagética nos mostram casos recorrentes de que, para essas mulheres, a beleza constituía sua maior e talvez única arma e instrumento de barganha nas relações de poder travadas com os cidadãos atenienses.

21 Diversos pintores representam hetaírai gordas e aparentemen-

te mais velhas tendo que se valer de subterfúgios para permanecer atuando no mundo dos prazeres,

22 como podemos conferir nas Figuras 8, 9 e 10.

Figura 8

Localização: Malibu, J. Paul Getty Museum 80A.E.31. Temática: Sympósion/ Prostituição. Proveniência: Não fornecida. Forma: Kýlix. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Phintias. Data: ce. 500. Indicações bibliográ-ficas: KEULS, 1997, p.408, figs.65 e 66.

Nas Figuras 8 e 9, temos, respectivamente, as faces exteriores A e B de uma kýlix de figuras vermelhas, confeccionada em torno de 525-475, atribuída a Phintias. Na cena da Figura 8, vemos uma velha e barriguda hetaíra nua, agachada, masturbando um jovem rapaz. Na Figura 9, vemos uma cena similar, com os mesmos personagens, na qual a hetaíra derrama

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o vinho de uma kráter23

sobre seu corpo, com a ajuda de um jovem que se masturba (KEULS, 1997, p.291).

Figura 9

Idem à Figura 8.

Na Figura 10, temos um askós24

de figuras vermelhas de cerca de 450, com duas cenas representando o que parece ser o mesmo jovem (ausência de barba) – identificado pelo nariz avantajado – mantendo relações sexuais com uma hetaíra diferente em cada uma delas. Aquela que se encontra na cena da parte inferior é jovem e de boa aparência: o homem faz sexo com ela, na posição denominada por Eva Keuls missionary position, o nosso papai-mamãe. A hetaíra na parte superior da cena é mais velha, sua barriga não tem firmeza e também parece desdentada. O cliente está penetrando-a por traz, pelo ânus (KEULS, 1993, p.176-9).

Figura 10

Localização: Athens, Keramei-kos Museum 1063. Temática: Prostituição. Proveniência: Athens, Ceramicus. Forma: Askós. Esti-lo: Figuras vermelhas em terraco-ta. Pintor: Não fornecido. Data: ce. 450. Indicações bibliográfi-cas: KEULS, 1993, p.178, fig.160; VRISSIMTZIS, 2002, p.68, fig.27.

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A cópula frontal era o método sexual mais refinado, reservado para as mulheres desejáveis, enquanto que o sexo por traz era menos valori-zado, sendo considerado, provavelmente, degradante. Segundo Davidson, a penetração por traz (kubda) tinha uma ligação com sexo barato, prazer obtido rapidamente, fora do âmbito privado, o que seria evidenciado na cerâmica pela presença de sapatos, capas e cajados, remetendo à urgência do homem em terminar logo o assunto – em algum bordel ou beco (DAVI-DSON, 1998, p.170). Eva Keuls argumenta que os contatos estabelecidos com velhas hetaírai poderiam servir para livrar a mente dos homens de qualquer vestígio de autoridade feminina, proveniente de sua infância e que pudesse estar mantido inconscientemente, desde os primeiros anos vividos no interior do gineceu (KEULS, 1993, p.179).

Em contraponto, Sian Lewis afirma que a obesidade não tem a ver com a atratividade das mulheres. Particularmente entre homens, era causa de ridicularização na cultura atlética e militar: nas Rãs, Dionisos zomba de um atleta gordo (ARISTÓFANES. As Rãs, vv.1089-1098; LEWIS, 2002, p.125-6). E também na cerâmica encontramos exemplos de atletas gordos entre jovens esbeltos (ARFV 80; ARV 166,11).

Por outro lado, podemos argumentar que a má forma física resulta da hýbris ou de alguma outra capacidade de manter o corpo esbelto – que é virtude masculina e feminina. Um corpo obeso remete a falta de comedi-mento, sendo, portanto, uma fraqueza, estabelecendo, assim, uma relação com a velhice – que também é fraqueza –, e o cidadão fraco e sem controle (como o velho Filocléon de As vespas) é inútil para a comunidade, e até a esposa legítima se manifesta quanto a isso: “Eu cumpro minha parte: con-tribuo com homens. Mas vocês, pobres velhos, não!” (ARISTÓFANES. Lisístrata, vv.651-652).

Logo, se a juventude é um atributo necessário para que o homem execute todas as tarefas de cidadão/soldado, também o é para a mulher, pois ela (esposa legítima ou cortesã) precisa seduzir. Sendo assim, pode-mos interpretar que, ao mostrar mulheres gordas e com seios caídos, os pintores dos vasos áticos apresentam um signo que revela a antítese do padrão de beleza e juventude, tornando evidente a idade avançada de tais personagens.

A imagética ática tem uma série de cenas em que é registrada uma relação entre adereços e gestual comumente interpretada como negociação

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ou uma espécie de corte – similar àquela feita aos jovens rapazes nas re-lações homoeróticas – entre homens e mulheres remetidas ao universo da prostituição. Nesse conjunto de cenas, podemos sempre observar a presen-ça de figuras femininas jovens; portanto, desejáveis. Nos momentos que ali estão representados, os papéis parecem se inverter, e os homens têm que se fazer desejáveis para as mulheres, que podem, inclusive, recusá-los. As Figuras 11 e 12 nos mostram algo nesse sentido.

Nas Figuras 11 e 12, podemos ver as duas faces exteriores de uma kýlix de figuras vermelhas de cerca de 500-450, atribuída a Makron. Na Figura 11, vemos a face A, em que duas mulheres hetaíriai (uma delas sen-tada) são abordadas por um jovem rapaz (sem barba) e um homem adulto (barba), trazendo cada um uma sacola (que pode portar dinheiro) na mão esquerda e uma flor

25 na mão direita. Na Figura 12, vemos a face B, na qual

há outros dois homens adultos (barba) apoiados em um cajado e sem as sacolas de dinheiro, tendo que se valer de outros meios para persuadir as mulheres. O da direita parece bem-sucedido ao estender sua mão direita, segurando uma flor (a mulher diante dele sorri e segura um ramo), o outro não parece ter tanta sorte.

Figura 11

Localização: Toledo, Ohio, 72.55. Temática: Negociação. Proveniên-cia: Não fornecida. Forma: Kýlix. Estilo: Figuras vermelhas. Pintor: Makron. Data: 500-450. Indicações bibliográficas: KEULS, 1993, p.167, fig.141 e 142; p.227, fig.204.

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Figura 12

Idem à Figura 11.

Segundo Sian Lewis, a imagética que traz representações das cor-tesãs com sacolas de dinheiro, longe de degradante, pode ser considerada positiva para essas mulheres (LEWIS, 2002, p.197). As cenas que encon-tramos nesses vasos não remetem a simples transações de troca de dinheiro por sexo, mas imagens de negociação, simulando uma espécie de corte. A temática gira em torno da concordância ou não da mulher. A partir de tal perspectiva, o vaso pode ser entendido como uma representação do poder exercido pelas cortesãs, captando o momento em que ele se manifesta de forma mais clara.

Por outro lado, se observarmos a ótica de exaltação do athenian way of life da aristocracia que predominava na cerâmica ática, podemos chegar a novas conclusões. Na kýlix representada nas Figuras 11 e 12, e também na da Figura 7, está presente o aulós, o que atribui um status superior às mulheres em cena e, consequentemente, maior valor ao êxito em conquistá-las.

A troca de favores – implícita na Figura 7 e explícita nas Figuras 11 e 12 (seja pelas flores ou pela sacola portando dinheiro ou algum outro pre-sente

26) – na busca pelo gozo pode ser compreendida como um exercício

do poder dos homens em cena. Essa prática pode ser considerada como um dos traços pertinentes à virilidade, que, na agonística sociedade atenien-se, só poderia ser concebida num aspecto relacional a partir do reconheci-

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mento pelos outros cidadãos (BOURDIEU, 2003, p.26-67). Dessa forma, aqueles que pudessem conquistar essas mulheres e obter a sua constante companhia lograriam a possibilidade de ser reconhecidos como melhores e mais aptos a exercer o poder perante seus iguais.

Se inserirmos a Figura 3 nessa discussão, torna-se mais fácil ainda vislumbrar todo esse mecanismo discursivo presente na imagética simpó-tica, pois os corpos dos homens nus remetem à beleza física que só os membros da aristocracia poderiam ter, devido ao tempo de que dispunham para se exercitarem e, além disso, praticar a scholé, exercendo, portanto, sua cidadania de maneira completa: diferenciando–se daqueles que neces-sitavam trabalhar e que não conseguiriam fazer as mesmas coisas. Aliado a isso, podemos notar que as mulheres estão vestidas porque a sua nudez é para poucos, apenas para aqueles que elas aceitam como seus companhei-ros, portanto, jamais desvelada nos espaços públicos da pólis.

Sendo assim, o mecanismo de troca de presentes/favores funciona bem para hetaírai e clientes, pois, teoricamente, a obrigação entre ambos era um compromisso ético sem intervenção econômica, de tal maneira que elas se distanciavam de serem vistas como prostitutas comuns, e eles de-monstravam sua virtude e capacidade ao obterem a constante companhia de mulheres tão especiais.

Ao longo deste artigo, vimos que, normalmente, as hetaírai não go-zavam de uma situação privilegiada, mas com isso não queremos dizer que eram vítimas da exploração masculina, pois entendemos que, desde que seu caminho no mundo dos prazeres começava a ser traçado, elas aprendiam a tirar o maior proveito possível das situações, utilizando-se das armas de que dispunham para se inserirem na dinâmica de poder da pólis.

Os resultados de sua atuação não ficam muito claros através da leitura da documentação, contudo esta nos mostra que, longe de serem elementos passivos nas práticas do dia a dia e nos contatos sociais que estabeleciam com os cidadãos, sempre agiram na intenção de garantir para si um melhor presente e futuro.

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FEMALE EDUcATIOn, PLEASURE AnD POwER In AThEnS (SIxTh TO FOURTh cEnTURY bc)

Abstract: In our article we present the spheres of coexistence and the processes of education of Athenian courtesans as a reference point, comparing them to similar points in the lives of legitimate wives and daughters of Athenian citizens, and thus elucidate the specific goals and characteristics desired in the development of each group.

Keywords: private banquets, education, power, prostitution, sex.

Documentação escrita

ARISTÓFANES. As rãs e As vespas. Trad. Junito de Souza Brandão. Rio de Janeiro: Editora Espaço e Tempo, s.d._____. The Acharnians. The Knights. The clouds. The wasps. Trad. Ben-jamin Bickley Rogers. Cambridge, London: Harvard University Press, 1992._____. Lisístrata. Trad. Ana Maria César Pompeu. São Paulo: Cone Sul, 1998._____. Duas comédias: Lisístrata e As Tesmoforiantes. Trad. Adriane da Sil-va Duarte. São Paulo: Martins Fontes, 2005._____. As mulheres que celebram as Tesmofórias. Trad. Maria de Fátima Silva. Lisboa: Edições 70, 2001.ATHENAEUS. The Deipnosophists. Books III.106E-V. Trad. Charles Burton Gulick. Cambridge, London: Harvard University Press, s.d. _____. The Deipnosophists. Books XIII-XIV. Trad. Charles Burton Gulick. Cambridge, London: Harvard University Press, 1993.[DEMÓSTENES]. Contra-Neera. In: Discursos privados. Madrid: Gredos, 1983._____. Against Neaera. In: Private Orations. Trad. A. T. Murray. Cambridge, London: Harvard University Press, William Heinemann LTD, 1988.Epigramas Eróticos Griegos: Antología Palatina (Libros v y xII). Trad. Guiller-mo Galán Vioque, Miguel A. Márquez Guerrero. Madrid: Alianza Editorial, 2005.HOMERO. Odisseia. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2009.LUCIAN. Dialogues of the Courtesans. In: Lucian Seventy Dialogues (The American Philological Association series of classical texts). Trad. Harry L. Levy. Oklahoma: University of Oklahoma, 1976.

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notas

1 Nascida por volta de 470, em uma proeminente família milésia, Aspásia era a irmã

mais nova da segunda esposa do velho Alcebíades, e foi provavelmente esta ligação que a levou a Atenas, devido ao término do ostracismo de seu cunhado. Não se tem certeza de como conheceu Péricles, mas não tendo permissão de casar-se com um cidadão ateniense (ironicamente, por causa da legislação que o próprio Péricles havia decretado pouco antes da chegada de Aspásia a Atenas), passou a viver como sua concubina (pallakê) após seu divórcio. Em 430, no começo do segundo ano da Guerra do Peloponeso (da qual foi acusada pelos inimigos de Péricles de ser a causadora, assim como de ser uma cortesã), uma terrível praga assolou Atenas e matou os dois filhos do primeiro casamento de Péricles. Aspásia havia lhe dado um filho que, na-turalmente, não poderia gozar de direitos políticos, contudo Péricles conseguiu uma exceção especial à lei para que seu filho ilegítimo obtivesse a cidadania ateniense. No ano seguinte, com a morte de Péricles, Aspásia foi deixada sozinha. Logo encontrara em Lysicles outro protetor, contudo este morreu um ano depois, e nada mais é sabido a respeito dessa mulher, que ficou muito conhecida por sua grande beleza, inteligên-cia e habilidade política (ARISTÓFANES. Os Acarnenses, v.524; ATENEUS. XIII, v.569; PLUTARCO. Péricles, vv.24-25; BLUNDELL, 1998, p.98-9; GARRISON, 2000, p.150; MOSSÉ, 1990, p.68-70: VRISSIMTZIS, 2002, p.98-9).

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2 O discurso jurídico Contra-Neera conta a história da ex-escrava Neera. Começa

em Corinto, onde desde menina esteve nas mãos da proxeneta Nicareta, depois pas-sando para as mãos de dois jovens cidadãos, que, quando estavam prestes a se casar, proporcionaram-lhe a oportunidade de comprar sua liberdade, oferecendo, inclusive, um desconto em relação a seu preço de compra. Neera recorreu à ajuda de antigos amantes para conseguir o montante necessário para obter sua liberdade e, em segui-da, foi para Atenas com Frínion, aquele que havia contribuído mais. Logo, Neera se encontrava em Atenas compartilhando com Frínion uma vida licenciosa no papel de sua principal amante. Ela o seguia livremente pela polis, mas mantendo os costumes de hetaíra, utilizando-se de seu corpo para proporcionar prazer aos convivas dos ban-quetes. Neera abandonou a Frínion e, posteriormente, passou a viver com um atenien-se chamado Estéfanos. Por volta de 340, foi levada à corte com a acusação de viver com Estéfanos como sua esposa, pois, naquele momento, era ilegal o casamento entre cidadãos e não atenienses. Havia também a acusação de que Estéfanos teria incluído Fano, a filha de Neera, em sua fratría e dado sua mão em casamento duas vezes a cidadãos atenienses. A condenação de Neera seria uma questão ética: sua absolvição significaria a colocação de uma prostituta no mesmo patamar de uma esposa legíti-ma ([DEMÓSTENES], contra-neera; BLUNDELL, 1998, p.97-8; MOSSÉ, 1990, p.71-8; SALLES,1982, p.44-134). No entanto, somos obrigados a mencionar estudos mais recentes que demonstram que toda essa história é mais produto da retórica utili-zada por Apolodoro para atingir seu inimigo político e pessoal, Estéfanos, do que um relato verídico e acurado da vida de Neera (HAMEL, 2003; MINER, 2003). 3 Todas as datas relativas à Antiguidade neste trabalho remetem ao período antes

de Cristo.4 Métoikos (meteco): homens ou mulheres livres, de origem estrangeira, que, por

tal motivo, não possuíam direitos civis e políticos (VRISSIMTZIS, 2002, p.124).5 Neste caso, mesmo tendo nascido filhas de cidadãos, quando recolhidas por al-

guém, normalmente acabavam sendo transformadas em escravas (VRISSIMTZIS, 2002, p.86). 6 Induzir uma mulher ateniense a se prostituir era completamente proibido e po-

deria ser rigorosamente punido com multas em dinheiro e outras penas (SALLES, 1982, p.57-8; VRISSIMTZIS, 2002, p.86).7 Prostituição Sagrada, instituição antiga na qual as escravas sagradas (hieródou-

loi) tinham relações sexuais com quem as solicitasse mediante pagamento. De tal modo, o ato sexual seria praticado em honra à deusa (Afrodite Pandêmica, cultu-ada, sobretudo, em Corinto, Abido e Éfeso), de acordo com os simbolismos e as associações de caráter mágico-simpatético, e proporcionaria fertilidade a todas as mulheres, fertilidade da terra e, por conseguinte, a prosperidade da pólis (VRISSI-MTZIS, 2002, p.85 e 123).

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8 Segundo Fábio Lessa, baseando-se neste modelo, podemos afirmar que as esposas

“bem-nascidas” devem administrar o oîkos, casam-se muito jovens, dedicam-se à fiação e à tecelagem, têm como função primordial a concepção de filhos (preferen-cialmente do sexo masculino), atuam no espaço interno (enquanto o homem, no externo), tomam parte das Tesmofórias (festa em honra à deusa Deméter) e das Pa-nateneias (cerimônia religiosa em honra à deusa Athena), permanecem em silêncio, são débeis e frágeis, apresentam a cor da pele clara, são inferiores em relação aos homens e possuem uma atividade sexual contida (LESSA, 2001, p.15).9 Falamos, aqui, das mulheres que tinham relações íntimas e de codependência

com as hetaírai, deixando de lado a figura do ponobóskos, o dono de bordel ou chefe de companhias de entretenimento simpótico como aquela que aparece em O banquete, de Xenefonte. Essas mães e/ ou avós que prostituíam suas filhas e netas não possuíam outra maneira de viver, tendo como única riqueza a beleza de sua descendente, havendo ela mesma sido, provavelmente, uma cortesã no passado. Temos o exemplo de Timandra, amante de Alcibíades e mãe da célebre Laís (VRIS-SIMTZIS, 2002, p.93).10

Martin Kilmer demonstra, através de seus estudos, que, assim como a docu-mentação textual, as imagens nos vasos destacam o apelo erótico e a necessidade estética da depilação feminina, sobretudo através das imagens em que ao menos uma das mulheres em cena é apresentada com a genitália numa disposição frontal, convidando o olhar direto do espectador, como nas Figuras 11 e 18 do presente trabalho (KILMER, 1982, p.104-12; 1993, p.133-59). Pierre Brulé argumenta que a preferência da genitália depilada estaria ligada ao ideal estético ligado a corpos jovens (BRULÉ, 2003, p.134-5).11

Castanhola (CERQUEIRA, 2005, p. 46).12

A flauta dupla dos gregos. Poderia ser tocado tanto por homens quanto por mulhe-res, e utilizado tanto na vida secular quanto no âmbito sagrado (LEWIS, 2002, p.214). 13

As canções dos sympósia. Cantados alternadamente em solo e em grupo (CER-QUEIRA, 2005, p.38).14

Segundo Eva Keuls, a flautista sentada na face B seria Elpinike, filha do general Miltiadese, meio-irmã de Címon, que gozava de má reputação, portanto se justi-ficando a esfera em que se desenrola a cena (KEULS, 1993, p.92-3). No entanto, acreditamos que a conclusão de Eva Keuls é precipitada, visto que não existem outros vasos com a temática Elpinike; assim sendo, esse único exemplar não é suficiente para se agarrar à validade de tal hipótese. Por outro lado, existem outras cenas que mostram o treinamento de jovens mulheres com a presença de signos que remetem muito mais ao treinamento para a celebração de cultos ou festivais do que à esfera da prostituição (LEWIS, 2002, p.31-3).

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15 Em O banquete, de Xenofonte, há duas passagens em que o autor faz refe-

rência à atuação de uma musicista, uma dançarina e uma acrobata, cada uma de-sempenhando seu papel (XENOFONTE. O banquete, II, vv.8-11 e VII, v.1). Nos Deipnosophistas, um conviva euforiza os talentos de belas dançarinas prostitutas e de jovens flautistas que mal chegaram à puberdade (ATENEUS. XIII, v.571b). Em outra passagem, o autor menciona tocadoras de flauta, cantoras, dançarinas, malabaristas e “mulheres nuas que faziam toda sorte de equilibrismos com espadas e lançavam fogo pela boca” (ATENEUS, IV, vv.129-130). 16

Segundo Fábio Cerqueira, as flautistas tinham como principal função deleitar os convivas com a música para, eventualmente, servi-los com sexo, o que se evidencia pelo fato de elas regularmente aparecerem vestidas nas cenas de banquete (CER-QUEIRA, 2005, p.40-1).17

A atuação das atenienses, desde os primeiros anos de sua educação e ao longo de toda a vida, era elaborada e executada de maneira conjunta e colaborativa com seus pares, favorecendo o fortalecimento de laços solidários e de um sentido de comunidade.18

Influenciados pelo vinho, os convivas eram transportados para um mundo di-ferente daquele regido pelas leis, normas e padrões da pólis. Essa carnavalização abria brechas nos valores e costumes euforizados pela sociedade, tornando-se uma questão muito séria e perigosa para o sistema social (LIMA, 2000, p.38).19

O aulós reforça a presença do amor cortesão – envolvendo prazer e poder – en-tre um homem livre e uma personagem hierarquicamente inferior na sociedade, a hetaíra. Além disso, evidencia que esta deveria ser uma cortesã do mais alto nível, posto que as auletrídes (tocadoras de aulós) eram as mais caras e mais disputadas profissionais do prazer em Atenas (CERQUEIRA, 2005, p.40-1).20

Segundo Claude Bérard, corpos jovens e esbeltos definem o ideal estético de beleza masculina e feminina nas representações iconográficas da Atenas do Período Clássico (BÉRARD, 2000, p.392).21

Neste sentido, cabe ressaltar que esta não era arma exclusiva das hetaírai, uma vez que, como temos demonstrado ao longo deste trabalho, a beleza das esposas legítimas também tinha forte apelo erótico a seus maridos, como nos mostra a He-lena de Eurípides, que abraça seu marido para assim poder desfrutá-lo, para que aproveitem tal oportunidade de ficarem juntos, e Menelau responde que deseja o mesmo (Eurípides. helena, vv.639-645). Destacamos a passagem na Odisseia, em que Odisseus e Penélope (paradigma de beleza e conduta da esposa legítima) retor-nam ao leito nupcial:

As palavras da esposa querida, aninhada em seusbraços, despertam-lhe a vontade de chorar[...]

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”Vamos para a cama, querida. Desfrutemosabraçados as doces delícias do sono.”Respondeu-lhe o peito acolhedor de Penélope:“A cama é tua agora e todos os dias. Sempre quetiveres vontade, vem” [...]Os dois, radiantes, voltaram ao antigo e respeitável leito[...]Refeitos do abraço que os uniu profundamente, os dois ainda tinham muito para conversar. (HOMERO. Odisseia, XXIII, vv.231-301)22

Da mesma forma, a documentação também oferece exemplos de esposas que, ao atingirem certa idade, procuram subterfúgios para não terem seu lugar ocupado por outra mulher mais jovem e mais bela. Podemos exemplificar tal situação com Deianeira, que, em sua juventude, era desejada por muitos, mas que depois de vinte anos de casamento com Héracles, teme que, embora este continue sendo seu ma-rido, torne-se o homem da jovem e bela Íole (KAIMIO, 2002, p.105-6). E Rufino confirma os temores das esposas: “Se a mulher tivesse tanta graça depois do tálamo de Afrodite, o homem não se cansaria de ter relação com sua esposa, contudo de-pois de Cipris, todas as mulheres carecem de encanto”. (Antologia Palatina, V, 77)23

Uma tigela larga e aberta, onde o vinho era misturado com água (LESSA, 2001a, p.131).24

Garrafa de vinho (KEULS, 1993, p.176). Um pequeno pote raso com um bico e uma alça erguida (LEWIS, 2002, p.214). 25

A flor é um signo que remete ao perfume e, portanto, à sedução, mas também tem uma ligação simbólica com a bela jovem e o desabrochar da maturidade sexual, um momento efêmero para todas as mulheres (BODIOU, 2008, p151; KEI, 2008, p.198).Tudo isso se resume na seguinte passagem: “Isiade a de doce alento, mesmo que dez vezes cheires a perfume, desperta-te e recebe com tuas mãos queridas esta coroa, agora exuberante, mas que a aurora verás murcha, símbolo de tua juventude” (Antologia Palatina, V, 118).26

Esses presentes se incluem no sistema de troca de favores a que nos referimos nas primeiras páginas deste capítulo, portanto, estabelecendo uma relação não entre objetos (dinheiro em troca de sexo), mas entre pessoas (DAVIDSON, 1998, p.110).

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TERMINALIA: FROnTEIRAS E ESPAçO SAGRADO

Claudia Beltrão da Rosa*

Resumo:

Os rituais religiosos romanos podem ser analisados como mecanismos que sacralizavam o ordenamento político e social da urbs, instituindo o papel e o lugar de cada coisa e de cada indivíduo na cidade, e suas relações com o “exterior”. Nos marcos de limites de propriedades, não apenas consid-erações da vida econômica, mas considerações religiosas expressavam e reiteravam a percepção espaçotemporal romana. Apresentaremos uma breve abordagem de alguns elementos dos rituais das Terminalia, dedicados a Terminus, divindade protetora dos marcos territoriais que legitimavam a organização do espaço na Roma arcaica e republicana, e da propagatio terminorum, que fundamentava a concepção de limites territoriais dinâmi-cos e passíveis de expansão no tempo e no espaço, e sua apropriação pela restauratio augustana.

Palavras-chave: religião romana; religião e política; discursos e rituais; Ordem Sagrada; Terminalia.

Comecemos por um poema de Ovídio:

Finda a noite, alvoreça a costumadafesta do deus que nos comparte os campos.Quer tosca pedra, ó Término, te embleme;quer tronco informe, pela mão de antigosenterrado no chão, sempre és deidade.Para ti, donos dois, de opostas partes,coroa a coroa te cingem; bolo e bolote vêm, de cá e de lá; como à porfia

* Professora associada de História Antiga da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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aí se te engenhou ara campestre! (...)Salve ó Término sacro! Ó tu que extremasBairros, cidades, reinos! Cada campoFora sem ti um campo de batalha. (...)Capitolino Júpiter que digaQue invencível te achou, quando, ao fundar-se-lheA área do templo, ao passo que os mais numesPara dar-lhe lugar retrocediam,Tu só, qual no-lo conta anosa fama,Ousaste resistir, ficar, ter parteNo templo augusto, e adorações com Jove;E inda lá – porque nada alfim t’ensombre –Sobre ti ao céu livre é rota a abóbada. (...)Mantém pois sempre, ó sacra sentinela,Mantém pois sempre, ó Término, o teu posto.Despreza os rogos do vizinho avaro;Não lhes concedas do terreno um ponto;Ceder a humanos, quem resiste a Jove?!Vem bater-te enxadão? Roçar-te arado?Proclama a vozes: - “Meus confins são estes;Dalém, tu; daquém, ele; a ambos coíbo;E em coibir aos dois, aos dois protejo”. Uma estrada une Roma aos Laurentinos,Reino que o Teucro prófugo buscara;Lá, dos marcos o sexto, em honra tuaVê que lanosa vítima se imola.Término, já que aceitas cultos nossos,Ampara-nos, sustenta nosso império.De cada povo o espaço é circunscrito;São de Roma os confins do globo. (Fasti, II, 629-678)

1

Este é o mais extenso documento literário sobre o festival das Termi-nalia, que ocorria no dia 23 de fevereiro. Numa primeira leitura, o signifi-cado político-religioso assoma: a Terminalia parece ter sido uma lustratio dos limites entre propriedades e, no final do poema, o poeta menciona um sacrifício no “sexto marco”, o que corresponde à VI milha de Roma na via

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Laurentina. Mas não só isso. Ovídio afirma também que a Terminalia era o sacrorum finis (Fasti, II, 50), e sua descrição nos permite depreender que envolvia, além dos ritos nos limites entre propriedades e num santuário na uia Laurentina, ritos purificatórios para a chegada do Ano Novo, perten-cendo ao ciclo dos rituais de fevereiro (cf. tb. VARRÃO. L.L., 6,13: Termi-nalia quod is dies anni extremus...). Leiamos o poema, complementando--o com outros dados da tradição literária: quando o rei Tarquínio decidiu construir seu templo a Júpiter, o terreno, ocupado por vários altares, tinha de ser limpo por meio de exaugurationes, antes de poder ser reutilizado (TITO LÍVIO, I, 50, FESTO, 160L, CATÃO. Orig., I, 25). Término teria se recusado a ter seu altar removido, o que foi considerado um signum auspi-cioso. A pedra que o representava foi incorporada ao templo, na própria cella de Júpiter, com uma abertura no teto que permitia que seu culto continuasse a ser realizado a céu aberto (D. HAL. 3, 69, 5; SÉRVIO. Aen. 9, 446).

A tradição literária apresenta as Terminalia como um festival arcaico, um dos “ritos de fronteira” (BELL, 2006), e o próprio teonômio já indi-ca sua ligação com os marcos territoriais. Giulia Piccaluga (1971, 111ss), numa exaustiva análise das Terminalia à luz da documentação literária, ressaltou o contraste entre a definição sagrada dos confins públicos rela-cionada à ideia – e ao impulso – da propagatio, à ampliação do território. Ovídio o expressa em Fasti, II, 683-84 (gentibus est aliis tellus data limite certo: Romanae spatium est urbis et orbis idem). Mesmo assim, os marcos subsistiam, ressignificados ao longo dos tempos, e neles eram realizados sacrifícios, permitindo uma via de acesso à compreensão dos modos pelos quais o espaço era percebido e definido pelos romanos.

Marcos teóricos e os aportes da Arqueologia

O poema de Ovídio insere-se no contexto da restauratio augustana, e devemos refletir sobre as características da documentação textual e sua utilização nos estudos sobre a religião romana. A maior parte da documen-tação textual que temos sobre a religião romana é formada por escritos do período tardo-republicano e do principado, e a exegese literária talvez per-mita perceber o que determinado autor ou grupo social específico pensava sobre um determinado tema. Mesmo assim, o que temos são ecos dessas impressões e podemos perguntar o quanto os escritores projetaram elemen-tos de seu próprio tempo no passado, para além dos problemas ocasionados

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pelo “filtro” dos escritores cristãos, através de cuja invectiva vários textos são reconstituídos (e o melhor exemplo, aqui, é Varrão-Agostinho).

Em relação à documentação literária, atualmente podemos definir algu-mas tendências da historiografia internacional da religião romana antiga: uma tendência cética em relação à obtenção de qualquer conhecimento seguro sobre o período arcaico romano (e.g. RÜPKE, 2009; ANDO, 2009), e uma tendência mais otimista que se apoia nos estudos da etimologia e do ritual, renovando o interesse pela releitura das fontes textuais (e.g. NORTH, 1989; SCHEID, 1987, 2003).

2 Desse modo, acreditamos que a análise da documentação literá-

ria, mesmo tardia, pode ser profícua para o estudo da religião romana. Esses textos trazem, nitidamente, alguns elementos de fundo arcaico (cf. D. Hal. 7, 70, 2-3: tas archaias kai topicas historias), que sobreviveram não fossilizados, ou seja, num contexto dinâmico, pois cada geração reconstituía e ressignifica-va o ritual e o mito. Certamente, o registro literário nos apresenta tais rituais num momento tardio de seu desenvolvimento, ou mesmo em sua recuperação pela restauratio augustana, mas também – e isso dificulta a pesquisa – valida novos cultos e práticas inovadoras com referência a antigas tradições religiosas (NORTH, 1989) – portanto, não só uma base teórica sólida, mas flexível, como também uma preocupação metodológica são, aqui, fundamentais.

Estudar a religião romana e seus rituais nos leva à necessidade de analisar nosso material numa perspectiva de longa duração, a fim de per-ceber alguns referenciais necessários para uma análise que deseja evitar o (excesso de) anacronismo. Em outras palavras, precisamos observar, na do-cumentação, onde, quando, quem eram os envolvidos, como e o quê. Daí o sucesso da perspectiva pós-processual, além da necessidade de lançar mão de uma grande variedade de tipos documentais (registro literário, epigrá-fico, numismático, artístico, arqueológico), o que complexifica tal estudo; o diálogo interdisciplinar é conditio sine qua non. Aportes da Antropolo-gia auxiliam o estudo, especialmente dos rituais, e consideramos plausível, para a pesquisa, uma dupla assunção antropológica: a) rituais são um tipo de ação que está, de algum modo, relacionado a um sistema de crenças; b) rituais devem ser entendidos observando-se os contextos social, político, econômico e cosmológico nos quais se inserem (BOURQUE, 2000, p.20). O estudo dos rituais implica observá-los tanto como poderosos meios de reforçar e consolidar laços sociais, hierarquias políticas, ideias, ideais e aspirações comuns, como também instrumentos de mudanças e inovações. Em suma, os rituais religiosos não são simples espelhos da vida social.

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Para Cl. Geertz (2008), S. Tambiah (1985) e C. Bell (1992), rituais são formas eficazes de comunicação simbólica, e seus participantes podem compreender o significado veiculado nas ações rituais, mesmo que haja uma polissemia nessa compreensão. Sem cair num reducionismo acredi-tando que haveria uma única mensagem e um único emissor em todos os rituais, estes permitem aos participantes comunicar suas ideias, aspirações, distinções, etc., que potencialmente podem ser compreendidas. Mesmo que a compreensão não seja igual entre os participantes, e nem poderia sê-lo, as imagens e emoções criadas e apresentadas no ritual criam ideias e mo-dos de ver e perceber a realidade, ou, ao menos, uma naturalização dessas imagens e emoções.

3 Os rituais integram, separam, reforçam as estruturas

sociais, mas isso ocorre – e não podemos esquecê-lo – num contexto dis-putado, heterogêneo, não fixo, nem dado de antemão. Assim, a perspectiva antropológica nos traz questões importantes para a análise, mas não respos-tas, e temos de ter isso em mente para não incorrermos no erro de esperar um significado, um tipo de participação correta, uma orthopraxis indubi-tável, e não privilegiar um tipo de leitura em detrimento de outras ou, pelo menos, saber quando e por que privilegiamos uma determinada leitura (cf. as discussões sobre o tema em BENDLIN, 2000 e ANDO, 2009). Os rituais religiosos romanos, portanto, podem ser analisados como mecanismos que sacralizavam o ordenamento político e social da urbs, instituindo o papel e o lugar de cada coisa e de cada indivíduo na cidade, e suas relações com o “exterior”. Vemos o ritual como um fenômeno social, marcado pela inte-gração e pelo conflito, reforçando os laços entre indivíduo e comunidade, legitimando o grupo e a autoridade. Nesse ponto, o ritual é comunicação e performance, pois, ao envolver o potencial mimético das performances – um drama, atores, espectadores, gestos, sons, palavras e objetos –, veicula conteúdos que, reiterados no tempo e no espaço, são agregados ao universo cognitivo e afetivo dos seus participantes, reafirmando ou alterando uma determinada ordem.

4

O diálogo com a Antropologia nos fornece, então, modelos teóricos sofisticados para lidar com o ritual, e esse diálogo é muito proveitoso, mas temos de ter alguns cuidados. O primeiro, obviamente, é que, ao contrário dos antropólogos, não podemos ter acesso direto aos grupos humanos que estudamos, e devemos ter em mente que, se para os antropólogos o ritual precisa ser analisado em seu contexto estrito, nós, embora saibamos muitas coisas sobre alguns rituais romanos, não temos informações suficientes –

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de nossas fontes fragmentárias – sobre alguns detalhes que são possíveis em sociedades presentes. Nossa documentação é fluida e polissêmica, e suas características nos impedem de perceber os rituais de um modo estri-to; no mais das vezes, o que temos são vozes e intenções aristocráticas e, mesmo assim, de grupos restritos. Certamente, o desenvolvimento da pes-quisa, ao longo dos últimos anos, ampliou tal compreensão, mas é preciso sempre ter muita cautela para não universalizarmos dados pontuais, pois a experiência religiosa romana envolveu e teve lugar em lugares reais, com pessoas reais, em tempos reais, com gerações distintas, cada qual com ne-cessidades, desejos e imagines mundi localizados no tempo e no espaço.

Por sua vez, os aportes da Arqueologia são fundamentais para o estu-do da religião romana arcaica, trazendo elementos para a compreensão das práticas rituais e dos locais onde eram realizadas, considerando sua repeti-ção no tempo, as relações com os sistemas de crenças e de identidade, etc. As conclusões de pesquisas realizadas segundo os parâmetros da Arqueo-logia pós-processual vêm contribuindo muito com nossas pesquisas, tra-zendo novos modelos para a interpretação das práticas religiosas a partir da análise do contexto das ações rituais, enfatizando a relação entre os lugares e a experiência dos grupos humanos, unidos em torno de laços religiosos e culturais, materializados em rituais, símbolos e monumentos na paisagem (INSOLL, 2004, p.67-104). Especialistas no período final do Bronze e no primeiro período do Ferro vêm dedicando-se aos estudos de depósitos voti-vos e sítios religiosos com ênfase na identificação de atividades repetitivas, ou repetições no material arqueológico, identificando “ações ritualizadas” (SMITH, 2007, p. 32), enquanto historiadores enfatizam comportamentos identificáveis como “ritualizados” em textos literários, em diálogo com a Arqueologia.

Lidamos, aqui, contudo, com um ritual e um santuário que deixaram poucos traços no registro arqueológico. De fato, conhece-se muito pouco sobre Término e as Terminalia. Seu estudo é baseado principalmente na documentação literária, além de ser tardia a data das edificações no santu-ário da uia Laurentina, o que complica a pesquisa. Segundo Momigliano, é possível que as guerras e a expansão territorial romana desde o período monárquico não tenham favorecido a materialização espetacular (diríamos monumental) dos limites há muito ultrapassados nas datas de construção (MOMIGLIANO, 1963). Notamos, porém, que rituais e cultos religiosos não dependem de construções, e os santuários, muitas vezes, são ditados

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pelo entorno natural (montanhas, lagos, cavernas, fontes, bosques, etc.). É importante, então, situarmos o status quaestionem arqueológico das Termi-nalia e suas contribuições para o estudo da religião romana. O registro ar-queológico identificou um santuário, com um templo dedicado a Término, na VI milha da uia Laurentina, e a arqueóloga Stefania Quilici Gigli, em 1978, publicou um excelente estudo sobre os confins do território romano no período arcaico, unindo aportes da documentação literária e de pesqui-sas arqueológicas. Seu objetivo era a reconstrução desses limites, o que não é o nosso caso,

5 mas duas de suas observações nos interessam diretamente:

a) a existência de uma série de lugares sagrados vizinhos à cidade de Roma, num raio de V-VI milhas; b) a série de festas arcaicas celebradas mais ou menos a esta distância de Roma: Terminalia (VI milha da via Laurentina), Robigalia (V milha da via Claudia), Dea Dia (VI milha, aruales, da via Campana), Fortuna Muliebris (V milha da via Latina) e outras.

Este limite de cerca de V-VI milhas parece ter um significado particu-lar e foi conservado mesmo quando Roma, expandindo-se, o ultrapassou. A arqueóloga defende a manutenção de um significado jurídico-sacral de um limite arcaico, talvez o traçado arcaico do ager Romanus. Quilici Gigli apresenta dados de escavações, na década de 1970, que trouxeram à luz um assentamento do período orientalizante na VI milha (8.869 km) de Roma, na uia Laurentina (cf. GIGLI, L. 1977, p. 36-38), chamando a atenção para a coincidência entre esse assentamento, a Terminalia e os confins, que re-velaria:

... uma consciência territorial, que remete ao primeiro momento de assentamento político, jurídico e sacral que a tradição representou no reino de Numa, e que agora devemos reportar a tempos recuados da história romana, talvez já no final do século VIII e início do século VII a.C. (QUILICI GIGLI, 1978, p.574)

Para essa arqueóloga, o estudo desses santuários de confins nos fornece uma luz para a compreensão da conquista do hinterland romano, uma primeira expansão romana, que lhe garantiu terreno agrícola e pasto-ril, tornando-se um lugar sagrado de longa duração na história de Roma. Decerto, o período compreendido entre fins do século VIII e início do sécu-lo VI a.C. viu ocorrerem grandes transformações urbanas e na organização política de Roma, a tomada do território e sua consolidação, e esse hinter-land é observado na constituição das primeiras tribos rústicas contemporâ-

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neas à organização da cidade em quatro regiões (tribos urbanas), organiza-ção atribuída a Sérvio Túlio. Tais santuários, apesar de só terem recebido edificações nos períodos republicanos médio e tardio, são datados da época tardo-arcaica, e a origem do santuário de Término pode estar vinculada ao assentamento descrito por L. Gigli, como proposto por S. Quilici Gigli, que data de séculos antes do santuário propriamente dito, mas a vizinhança de povos da Etrúria meridional pode ter tido seu papel na definição dos confins.

Figura 1 – Traçado dos limites do ager Romanus anti-quus segundo a documentação literária (cf. FULMINAN-TE, 2005, p.8).

Na década de 1980, John Scheid, a partir da análise da documentação

relativa ao bosque sagrado da Dea Dia (La Magliana), relacionado à Am-barualia e aos aruales,

6 propôs um modelo para a análise dos santuários

de confins: a) os santuários de confins estão situados em vias importantes que marcam os limites arcaicos do ager Romanus; b) os rituais comporta-vam aspectos guerreiros e agrários; c) o elemento central do ritual não era

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um edifício, mas um grupo humano: os sacerdotes eram encarregados de ressignificar, em data regular, a presença e o poder de Roma sobre seu ter-ritório; d) as divindades ali honradas impediam as más influências físicas e espirituais da violação do território de Roma; e) não há registro arqueológi-co de rituais preexistentes nesses locais, e as construções nesses santuários de confins são de data tardia; f) os festivais se realizavam em Roma e nos confins; g) na margem esquerda do Tibre, concentram-se elementos guer-reiros e uma afirmação clara e nítida do limite territorial; na margem direi-ta, os aspectos agrários são destacados; h) são cultos, à época de Augusto, confiados a sacerdotes de nível senatorial (no caso de Fortuna Muliebris¸ a matronas de nível senatorial); i) Augusto restaurou esses cultos, permitindo observar o caráter de sua restauratio e a permanência e a plasticidade des-sas antigas representações.

Segundo o modelo, esses santuários presidiam a entrada das grandes vias sobre o ager Romanus antiquus, como estava constituído em torno do século VI a.C., e Scheid propõe uma “especialização” de suas funções: os do lado esquerdo do Tibre concerniam à afirmação do limite e da pre-sença guerreira romana; nos da direita, prevaleciam os interesses agrários (SCHEID, 1987). Não há, nesses locais, traços de ocupação física perma-nente e de construções anteriores ao início do século III a.C. Interessante notar que os sacerdotes celebravam a primeira parte do ritual em Roma, iam ao santuário e retornavam a Roma, para concluir o festival; ou seja, passavam poucas horas nos confins, indicando que a movimentação físi-ca dos oficiantes era parte central da realização do ritual. Por fim, Scheid chama a atenção para o investimento realizado por Augusto nos antigos santuários de confins, incluindo a atribuição desses rituais a oficiantes de nível senatorial, e argumenta que é no período tardo-republicano que os romanos denotam ter consciência de um limite que se situava em torno da V-VI milha de Roma e que lhes parecia muito antigo, daí as construções realizadas nesses locais sagrados. Para o autor,

... é indubitável que mesmo se este velho limite, assinalado por uma série de santuários, de mitos ou de comportamentos, só adquira uma expressão monumental à época em que Roma aprende a contemplar a si mesma e a expressar seus conceitos através de um aparato helenístico, ele permaneceu na consciência dos romanos como a fronteira ideal do ager Romanus, a fronteira ideal da própria Roma.

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Viva e dinâmica até Severo Alexandre, e até os tempos difíceis de Genserico, esta representação permaneceu indissociável do desejo de prosperidade, de integridade e de permanência da cidade de Roma. (SCHEID, 1987, p.595)

Em 2005, a arqueóloga Francesca Fulminante retomou esse tema e publicou um estudo sobre o ager Romanus antiquus, com base na metodolo-gia do Geographical Information System (GIS)

7 e da Cost Surface Analysis

(CSA),8 comparando seus resultados com estudos baseados na análise da

tradição literária e aportes de reconstruções topográficas, contribuindo para o esforço de definição de suas fronteiras. Seus resultados são interessantes para nós. Levando-se em conta a topografia e as características do entorno natural de Roma, e o registro arqueológico em relação à vida econômica no sítio a partir do Bronze Recente, Fulminante reconstrói o ager Romanus antiquus numa distância entre 1-2 horas de caminhada em torno de Roma, observando a visibilidade a partir do Palatino e do Capitólio. Do Capitólio, denota-se o controle do Rio Tibre e suas planícies; do Palatino, local onde Rômulo teria tomado os auspicia, o foco de visão incide para o sudoeste, coincidindo com os dados da tradição literária, compreendendo a linha dos Montes Albanos e três santuários de confins (Terminus, Fortuna Muliebris e Fossae Cluiliae).

9

Os resultados de sua análise apontam para uma coincidência com os limites da tradição literária, como vemos na imagem a seguir:

Figura 2 – Ager Romanus antiquus (FULMINANTE, 2005, p.13).

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Denota-se, portanto, a coincidência entre os dados de pesquisas re-centes com relatos da tradição literária, indicando a importância desses santuários e sua localização, além de sua possível relação com as fronteiras do ager antiquus segundo a tradição literária. A localização de um santuá-rio não é arbitrária, e sua própria existência pode ser vista no sentido do es-tabelecimento de fronteiras. Sua materialidade articula uma mensagem (ou várias); santuários são vistos, visitados, e significam algo – muitas vezes, polissêmico – através dos tempos, modificando seu sentido e as percepções que dele se tem (POLIGNAC, 1994, p.3-18; IZZET, 2000). Sua localiza-ção, portanto, é estratégica, distinguindo fronteiras entre lugares sagrados e profanos, entre comunidades políticas, territórios de diferentes povos, etc. Nesse sentido, os santuários são espaços simultaneamente religiosos e políticos, e, principalmente aqueles ligados a ritos de fronteiras, funcionam como áreas de transição, organizando-se de acordo com elementos socio-políticos e ideológicos. São, segundo Zifferero, loci de conflitos, controle, negociações, trocas e interações entre povos (ZIFFERERO, 1995, p.335-50). Assim, acreditamos ser importante a retomada da análise da tradição literária a fim de buscarmos uma compreensão mais ampla do nosso tema.

Término, fronteiras e a tradição literária

É certo que as menções literárias sobre Término e seu festival tam-bém são esparsas e lacônicas: algumas relacionadas a datas, sacrifícios, lendas, pouco mais do que isso. Os dados são poucos e prejudicam, de antemão, a pesquisa. Um viés possível pode ser, portanto, a observação do contexto no qual as menções ocorrem, buscando seu sentido no discurso político-religioso.

A divisão e distribuição de terras de Roma são concomitantes, na tradição literária, ao processo de constituição da própria comunidade po-lítica romana à época da monarquia, e a observação do discurso sobre os primeiros reis nos fornece algumas pistas. A Numa eram atribuídas muitas dessas festas (Robigalia e Terminalia, e.g.), além da introdução dos limites da propriedade privada e a separação do território romano dos territórios dos povos vizinhos (PICCALUGA, 1971, 177 ss). Pelos relatos literários, vemos uma complementaridade discursiva entre os reinados de Rômulo e de Numa, os dois primeiros reis da tradição, a qual forma uma verdadeira epopeia real que mitifica a história e historiciza o mito (cf. GRANDAZZI,

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2010). Rômulo e Numa podem ser vistos como um “mito de fundação” de Roma. Os reis movem-se, ambos, no discurso e na ação religiosa, mas com sentidos antitéticos: o rei criador, violento e beneficiário dos auspicia, e o rei sacerdotal, justo e instituidor dos sacra. Rômulo é um chefe de bando e um herói divino; segundo Cícero, ele não tem necessidade de intermediadores em suas relações com os deuses (Diu, I, 2). Sua primeira ação é a de fundar e inaugurar o solo urbano, delimitando o perímetro sagrado do pomerium, no interior do qual exerce seu imperium. Cria os insignia imperii (T. LÍVIO, I, 8.3.; PLUT. Rom. 26, 2-3; DION. HAL. 2,5) e as primeiras instituições de sua cidade, mas esta é belicosa e violenta, e os povos vizinhos lhe recusam a aliança e o casamento (T. LÍVIO, I, 9, 2: societas conubiunque), seguindo-se os subterfúgios que o levaram ao rapto das Sabinas e a outras ações violentas (raptas sine more Sabinas: VIRGÍLIO. Aen. 8, 635).

Com Numa, vemos a ação ritual, religiosa e jurídica (iure legisbusque ac moribus: LÍVIO, I, 19.1). É o rei mediador que surge, dando à cida-de fundamentos que lhe garantirão a longevidade (legibus urbem fondare: VIRG. Aen. VI, 810). Para controlar a violência, garantindo a sobrevivência de Roma, Numa reforma o calendário, consagrando o primeiro mês a Jano. Segundo Plutarco (numa, 19, 8-9), com isso deu primazia às virtudes cívicas sobre as atividades guerreiras. Numa mediu e delimitou o ager Romanus, e instituiu um culto aos marcos territoriais e a um deus dos marcos e dos confins, Término; direcionou a população às atividades agrícolas, que de-mandam a paz (16, 5), dividindo o território romano em diversas partes e, a fim de diminuir a indigência (e a violência interna dela derivada), distribuiu terras aos cidadãos sem recursos (16, 4) e organizou os rituais religiosos (os sacra). Ao traçar as fronteiras e criar o calendário, Numa teria operado uma grande mudança na cidade. Ao delimitar o território de Roma, mediu o que pertencia ao povo romano interna e externamente, separando-o do que per-tencia a outrem – e, com isso, reconhecendo-o –, pois “se os marcos, quando respeitados, são o freio do poder, eles são, quando arrancados, a prova da injustiça” (numa, 16.3). Os limites e o poder de Roma tornaram-se, com Numa, mais claros para seus vizinhos: Roma respeitava as fronteiras.

Assim, segundo a tradição, Numa estabeleceu um grande número de prá-ticas rituais e sacerdócios (flâmines, sálios, vestais, o colégio dos pontífices, à frente dos omnia publica priuataque sacra: CÍCERO. Rep. 2, 13; T. LÍVIO, I, 20; PLUT. numa, 9-15), além de erigir um templo a Fides e fazer do juramen-to o mais importante meio de se garantir um acordo ou tratado (PLUT. numa,

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16, 1; T. LÍVIO, I,21,4), instituindo os ritos jurídicos (iura) dos quais os pon-tífices eram os depositários (ius pontificum) e, significativamente, as formas solenes da pium et iustum bellum, das quais os fetiales eram responsáveis e, por seus gestos e fórmulas rituais, firmavam tratados sob a garantia dos deuses (foedera, garantidos pela Fides; cf. T. LÍVIO, I.19.4). Desse modo, a violência era controlada e a coesão interna assegurada pelo rex, investido do poder de dizer o sagrado e seus limites, regere sacra, regere fines.

É necessário perceber que as Terminalia, a festa dos marcos fixados no solo, era também, como viam Ovídio (Fasti, II, 27) e Varrão (Ant. rer. diu. 16,9), um marco no tempo. Esse deus presidia não apenas os limites territoriais, mas também o fim do ano no antigo calendário, simbolizando a medida do tempo e do espaço, dando ao populus – e a seus vizinhos – fixidez e estabilidade (Fasti, II, 657-660). O festival das Terminalia era percebido, portanto, segundo uma perspectiva cósmica integral: Término tinha uma dupla função, marcando as fronteiras de espaço e de tempo, as-sim como Jano, que presidia o começo do ano e as portas (ianua). Os dois deuses e as duas datas são associados, na tradição literária, como antitéti-cos. Isso, contudo, não implicava que Roma estivesse cristalizada em seus limites, e sim que, para que houvesse guerra, os fetiales, os mediadores, ti-nham de fazer sua demanda na fronteira do território inimigo, tendo Júpiter por testemunha (DION. HAL. 2, 15). A guerra tinha de ser controlada, tinha de deixar de ser uma atividade exclusiva da nova cidade, para que esta não se tornasse apenas um campo de batalha (T. LÍVIO, I, 21,1: ...cum ipsi se homines in regis uelut unici exempli mores formarent).

Festa dos limites, limite das festas, as Terminalia se inscrevem no es-paço e no tempo. A localização de Término no espaço sagrado do Capitólio sinaliza seu papel no estabelecimento do templum (espaço consagrado para o ritual) mais antigo, permanecendo na cella de Júpiter Capitolino, negan-do-lhe a exauguratio e mantendo-se a abertura para o céu (OVÍDIO, Fasti, II, 672; FEST. 505L). Na tradição literária, Término surge ligado a Júpiter, o deus cívico par excellence, e moedas do período tardo-republicano e do augustano associam Júpiter e Término, e esta ligação denota a relação in-trínseca entre os limites territoriais e a dinâmica da propagatio terminorum, que permite repensar algumas aporias relacionadas à questão da ligação romana ao solum e à expansão imperial. O Término Capitolino é, ao mes-mo tempo, imóvel e móvel, e reside na cella de Júpiter Optimus Magnus, o deus a quem era especialmente dedicado o triunfo no período republicano.

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Retomemos a invocação de Ovídio: Término, já que aceitas cultos nossos,/ Ampara-nos, sustenta nosso império./De cada povo o espaço é circunscrito;/São de Roma os confins do globo (Fasti, II, 675-678). Pode-ríamos compreender Júpiter-Término como um marco inicial, um ponto de partida, o centro de um imperium sine fine? Toda e qualquer resposta é ain-da provisória e frágil, pois a religião romana não compunha uma categoria autônoma, imutável ou cristalizada. Ao contrário, por não ser ela formular nem fossilizada (uma imagem derivada da polêmica cristã), os discursos e suas práticas variavam no tempo, no espaço e de acordo com as tensões so-ciais, com participantes concretos, movendo-se – mesmo no caso dos sacra publica – entre os limites do individual, do social e do estatal, interpretando e reinterpretando aquilo que faziam, viam ou em que criam; portanto, a reli-gião romana pode ser vista como uma forma de comunicação que deve ter, para sua compreensão, seu contexto reconstituído (cf. BENDLIN, 2000).

Esses relatos nos apresentam, então, um mito de fundação de uma so-ciedade que constrói sua história; um discurso rigoroso e muito bem estru-turado, que se constituiu no início do principado. É interessante, portanto, ver o discurso religioso romano como parte de uma ordem social dinâmica, distinguindo aspectos de sua prática como dispositivos que instituíam uma ordem simbólica, modificando, sustentando ou consolidando hierarquias, fronteiras, poderes e suas redes derivadas, que apresentavam e representa-vam o mundo – social e natural – através de imagens pelas quais entreve-mos a ordem simbólica, permitindo uma via de acesso à compreensão das estratégias de obtenção e de garantia de tal poder.

TERMINALIA: bOUnDERIES AnD SAcRED SPAcE

Abstract: Roman rituals can be analysed as sacralising mechanisms for the political and social order of urbs that institutes the place and the role of everything and everyone in the city, and it’s relationships with the “outside”. On the boundary-marking of proprieties there were not only considerations regarding the economic life, but religious considerations that expressed and reaffirmed the Roman time-space perception. We’ll show, off of literary data, some elements of the Terminalia, dedicated to Terminus, the protector deity of territorial marks which, in turn, legitimized the organizing of space in archaic

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and republican Rome, and of the propagatio terminorum, which was the base for a conception of territorial limits, dynamical and subject to expansion on time and space.

Keywords: Roman Religion; Religion and Politics; Discourses and Rituals; Sacred Order. Terminalia.

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notas

1 Citamos os versos segundo a tradução em português de CASTILHO, A. F. Os

Fastos. Clássicos Jackson, v. IV. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1970. 2 Ch. Smith, por exemplo, apresenta o ritual da Parentalia, arqueologicamente

invisível, mas presente em textos, apesar de rituais funerários comporem um dos mais significantes elementos dos registros arqueológicos do Lácio entre 1000 e 500 a.C (SMITH, 2007, p.32).3 Catherine Bell chamou a atenção para a base dicotômica moderna, que concebe o

ritual exclusivamente como ação, oposta ao pensamento (cf. SCHEID, 2003), o que implica a dicotomia entre ritual x fé ou crença, nos estudos sobre a religião romana, e centrou sua atenção nos processos de ritualização que, para ela, não reproduzem ou refletem esquemas culturais. Ao contrário, manipulam e reorquestram tais es-quemas de modo a redefinir situações problemáticas, negociando compreensões de

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autoridade, de ser e de sociedade; desse modo, crenças individuais podem não afetar a manutenção, realização do ritual e sua eficácia simbólica para a sociedade, e seus atores não precisam acreditar nas ações rituais, mas apenas considerá-las importantes por outros motivos que não a fé. Assim, rituais têm uma função integradora, mas eles também podem ser contestadores: mantêm e sustentam a ordem social, mas podem, igualmente, inovar e transformar esta ordem (BELL, 1992, p.74 ff).4 O ritual também era o palco de conflitos e de significados contestados, revelando

múltiplos significados pressupostos e negociações entre os participantes, sacerdo-tes, administradores e usuários de santuários, por exemplo. Um santuário expres-sa, enfatiza, negocia fronteiras e reforça categorias – como as de sagrado e profa-no, de humano e divino, levando seus visitantes a agir e perceber as coisas de um modo particular, num espaço particular, integrando-se (os visitantes) no discurso do santuário. O maior risco é o de lidar com os dados da documentação como se a percepção dos envolvidos fosse idêntica, e.g., no século IV e no século I a.C. Os rituais não são os mesmos sequer quando narrados por um mesmo autor (e.g., cada lectisternia em T. Lívio surge com elementos e divindades distintas; cf. V, 13, 5-8; XXII, 1, 8-20; XXIX, 14, 5-14).5 Para os limites do ager e suas fontes textuais, seguimos ALFÖLDY, A. Early

Rome and the Latins. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1965. 6 Scheid defende que o culto de Dea Dia era um culto de confins pela análise

do carmen arcaico declamado pelos aruales; uma análise da expressão limen Sali revelou que limen significava fronteira, e o termo podia ser utilizado para limites privados ou públicos. O carmen endereça uma demanda a Marte, para que montasse guarda vigilante sobre o limen, e aos Lares, deuses do local e aos Semones – Dea Dia seria Mater Larum. A lenda etiológica remete o carmen aruale aos tempos de Rômulo, e a filologia indica ser anterior ao século IV a.C.; para nossos propósitos, importa que os romanos o percebiam como sendo arcaico, mas os dados arqueoló-gicos indicam a presença de romanos na margem direita do rio apenas no século VI a.C, a partir das evidências de um pagus fortificado, cujas tumbas remetem a Veios, e não a Roma, no século VII a.C., e material votivo (estatuetas) de tipo romano apenas no final do século VI a.C., relevando uma presença de tipo romano-lacial. Scheid depreende que um santuário romano seria possível a partir do século VI a.C. 7 O GIS pode ser definido como um método de estudo integrado, baseado nas re-

lações de visibilidade e intervisibilidade entre sítios, que vem sendo aplicado com sucesso em estudos de arqueologia do ritual. Trata-se de uma abordagem holística que leva em conta as características físicas do terreno analisado, tendo como referência o corpo humano e seus processos cognitivos, buscando compreender como o espaço se torna compreensível a partir da experiência corporal, que gera percepções e ações que estruturam e organizam a vida política, econômica e cultural na paisagem.

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8 Série de técnicas de GIS baseadas na investigação dos recursos naturais de um

dado território, nas especificidades e exigências de atividades econômicas (coleta, caça, agricultura) e nas distâncias passíveis de serem percorridas por seres humanos num dia, a fim de delimitar o raio de ação de grupos humanos no espaço físico. 9 Ressalte-se que os três santuários visíveis do Palatino têm ligações estreitas com

importantes mitos romanos: Término, ligado a Numa e à construção do Templo de Júpiter no Capitólio; Fossae Cluiliae, ligadas ao mito dos Horácios e dos Curiácios; e Fortuna Muliebris, ligado ao mito de Coriolano.

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nATUREZA nILóTIcA: UMA REPRESEnTAçãO MUSIvA AFRO-ROMAnA*

Regina Maria da Cunha Bustamante**

Resumo:

O Egito foi um tema figurativo recorrente na arte romana. Nas províncias romanas da África do Norte, encontra-se uma vintena de representações musivas com motivo egípcio. Para esta apresentação, selecionamos um fragmento do mosaico figurativo policromático que decorava o pavimento de um triclinium (sala de jantar) de uma domus (residência urbana da elite) da cidade portuária de Hadrumetum (atual Sousse na Tunísia), datado do século III. Atualmente, este fragmento (2,10m X 1,38m) faz parte do acervo do Museu de Sousse (inv. n° 10.457). Objetivamos identificar e analisar as implicações culturais presentes no discurso imagético musivo escolhido. Partimos da premissa de que a imagem é uma linguagem composta de signos icônicos; portanto, passível de interpretação. Visando compreender o modo de produção de sentidos deste discurso imagético musivo, aplicaremos a dinâmica de signo proposta por Pierce, centrada na relação solidária entre três polos componentes do processo semiótico, a saber: o objeto ou refer-ente (o que é representado pelo signo), o representamen ou significante (a face perceptível do signo) e o interpretante ou significado (que depende do contexto do seu aparecimento e da expectativa do receptor).

Palavras-chave: África Romana; mosaico; representação; Egito; identi-dade/alteridade.

* Comunicação apresentada no XII Encuentro Internacional de Estudios Clásicos: Naturaleza y sentido del silencio en la Antigüedad Clásica, promovido pelo Centro de Estudios Clásicos Giuseppina Grammatico Amari da Universidad Metropolitana de Ciencias de La Educación, em Santiago do Chile, no período de 07 a 10 de novembro de 2011.

** Professora associada de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Laboratório de História Antiga, do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer da UFRJ, e do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, que reúne pesquisadores de diversas instituições acadêmicas brasileiras.

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Introdução

Os estudos culturais contemporâneos criticam uma perspectiva unitá-ria, monolítica, autônoma, essencialista e a-histórica das culturas. Conside-ra-se que as formas de identidade/alteridade são específicas de um contexto histórico e social determinado tanto no tocante aos processos internos da sociedade quanto às suas relações e contatos com outras sociedades próxi-mas ou distantes. Portanto, pertencer ou não a um grupo ou a uma socie-dade é uma construção social e cultural cujo significado e forma variam no tempo e no espaço, podendo coexistir uma multiplicidade de identidades/alteridades que interagem umas com as outras. Por isso, devemos atentar para as múltiplas interpenetrações e apropriações culturais.

Ao lado dos parâmetros para que nos situemos frente aos “outros” pelo poder econômico e pela autoridade política, atenta-se para novos pa-râmetros que privilegiam uma visão do “eu” e do “outro” a partir das ex-periências relacionais do cotidiano, condizentes com os diferentes aspectos culturais presentes em cada sociedade. Assim, a identidade dos grupos hu-manos é construída a partir das interações culturais historicamente verificá-veis, nas quais se insere a concepção de alteridade, permitindo a percepção do homem na sua diversidade, como ser essencialmente cultural. Portanto, a mesma operação que possibilita conceber o “outro” inscreve também a identificação: reconhecer-se, substantivar-se, definir para si aquilo que lhe é próprio. Não há constituição separada do “mesmo” em identidade e do “outro” em diferença. O estudo dos mecanismos de abordagem da diferen-ça em sociedade pressupõe o estudo das formas de reconhecimento pelas quais o grupo se compreende e se fabrica como unidade. Pretendemos, aqui, avaliar as experiências vividas e os significados presentes no discurso construído pela elite provincial da África Romana, que, no presente estudo de caso, se materializa numa imagem vinculada a um mosaico.

1. Imagem, um discurso a ser interpretado

Neste estudo, privilegiaremos o modo de produção de sentidos da imagem, ou seja, como ela provoca significações. Partimos da premissa de que a imagem é uma linguagem composta de signos icônicos; portan-to, passível de interpretação (JOLY, 1997, p. 48). O produtor da imagem encontra-se numa relação dialógica com a sociedade na qual está inserido:

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produz por diversas motivações culturais e sociais, e seus produtos retor-nam à sociedade reforçando, criticando ou formulando novos valores e práticas. Seguindo Bérard (1983, p. 5-37), consideramos que as imagens correspondem a uma narrativa, e seus criadores as fizeram a partir de um repertório comum de elementos estáveis e constantes na sua sociedade. A combinação desses elementos constitui uma imagem de conteúdo narra-tivo. Através dessas combinações associativas, pode-se passar da relação de referência à relação de significação, daí a pertinência da aplicação da leitura semiótica. Tal como o signo, a imagem está no lugar de alguma coisa para alguém e possui alguma relação ou alguma qualidade analógica dessa coisa, dela constituindo, assim, uma representação visual. Apresenta--se como uma ferramenta de expressão e comunicação ao transmitir uma mensagem para outro. É, portanto, uma mensagem visual composta de di-versos signos, ou melhor, uma linguagem. O texto imagético, por utilizar um código visual construído socialmente, é um importante documento para a compreensão da sociedade que o produziu e consumiu.

Na leitura do mosaico selecionado, optamos por aplicar a proposta do semiólogo Pierce, pois consideramos a imagem um signo, já que exprime a relação entre o significante e o significado, que se transforma em ideias e demanda uma atitude interpretativa dos seus leitores. Eco (1991, 2004a, 2004b e 2007) abordou a ideia de Pierce da semiótica ilimitada, porém isso não implica dizer que a interpretação não tivesse critério nem que fosse desprovida de objeto nem, muito menos, que ocorresse por si própria. No esquema pierceano (PIERCE, 1992 e 2000), o signo mantém uma relação solidária entre, pelo menos, três polos que compõem a dinâmica de qual-quer signo como processo semiótico: o significante ou o representamen (a face perceptível do signo), o objeto ou o referente (o que é representado pelo signo) e o significado ou o interpretante (que depende do contexto do seu aparecimento e da expectativa do receptor). A partir desses três polos do signo, estruturamos o presente estudo.

2. Do representamen ou significante: representação musiva

Eis o mosaico selecionado que, no esquema pierceano, corresponde à face perceptível do signo, constituindo, portanto, o seu significante ou representamen:

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Figura 1

Dimensões: fragmento de 2,10m x 1,38m; Acervo: Museu Arqueológico de Sousse (inv. n° 10.457); Referências bibliográficas: FANTAR et al. 1994, p. 96; KHA-DER e SOREN, 1987, p. 193-194.

Passemos à identificação do objeto ou referente, visando inferir o que é representado pelo significante acima exposto (Figura 1).

Os elementos icônicos apresentam-se em composição livre, isto é, seus motivos (personagens, fauna e flora) estão distribuídos e espalha-dos sobre a totalidade do campo (o fundo branco), colocando-se, muitas vezes, até invertidos uns em relação aos outros. Essa disposição permite aos espectadores, leitores da imagem, vê-la não importando o lugar onde se encontrem. Para efeito de análise, considerou-se o jogo de olhares dos personagens humanos. A intencionalidade comunicativa dos olhares foi compreendida através das proposições de Calame (1986), que abordou a representação da figura humana, e, em particular, do jogo dos olhares na cerâmica clássica. Ele concluiu que os olhares não foram feitos ao acaso: havia uma relação entre os elementos do enunciado icônico e o receptor. O estudioso identificou três situações: o olhar de perfil, quando os perso-nagens olham entre si, não se preocupando com o receptor nem se interes-sando pela sua presença; o olhar de ¾, quando o personagem, ao mesmo

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tempo, olha para a situação do enunciado – o interior do texto – e para o receptor, como se o estivesse convidando a participar com ele da situação; e o olhar frontal, em que o personagem, voltado diretamente para o receptor, dialogaria com ele. No caso do mosaico, todos os olhares são de perfil, ou seja, estão plenamente interagindo entre si, alheios à presença dos especta-dores. Dividiu-se o mosaico em três áreas: na faixa inferior, os três perso-nagens humanos centram sua atenção no hipopótamo; nas outras duas, cada um está concentrado na sua atividade de pesca.

3. Do objeto ou referente: ambiente aquático com cenas de caça e pesca

No fundo branco, espalham-se motivos relacionados à fauna e à flora do delta do rio Nilo no Egito: uma área pantanosa repleta de lótus (Nelumbo Nucifera), papiros, peixes (peixe-papagaio, barracuda...) e patos (Anas Pla-tyrhynchos e Nettion Crecca) é o cenário para um ataque com pedras e tri-dente contra um hipopótamo (Hippopotamus Amphibius) e bem-sucedidas pescarias com vara e rede estendida, prestes a aprisionar um peixe grande, que foi assustado com o barulho do bastão na água. O mosaico apresenta também três barcos, mas, diferentemente dos barcos de junco em forma de crescente, característicos do Nilo, observa-se um tipo de embarcação com proa baixa e uma pronunciada popa. A proa baixa com um casco, que se projeta para baixo, era desenhada para cortar a água e agir como um aríete. O ornamento da popa em forma de leque (aphlaston) de um dos barcos já é conhecido desde o século VI a.C. Esse tipo de bote, provavelmente, pre-tende ser um tipo de galera mercante, mas a falta de velas pode indicar uma embarcação menor. O tamanho e a proporção não devem necessariamente ser tomados em termos absolutos.

Em terra, há um pigmeu macrofálico, sexualmente bem-dotado, com apenas uma clâmide nas costas, portando um tridente e um escudo verde, amarelo e vermelho. O outro pigmeu, atirador de pedras, que está no barco enfeitado com aphlaston, está vestindo uma tanga e uma touca pontuda, que aparenta ser um pileus de feltro sem abas, adereço característico dos libertos quando da obtenção da sua liberdade e utilizado também por mari-nheiros e pescadores. Seu companheiro no barco, também pigmeu – mais preocupado com o sol –, usa um pethasus de abas largas. Nos outros dois barcos, encontram-se homens com túnicas curtas, também protegidos do

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sol com pethasus. Enquanto os pigmeus enfrentam o hipopótamo, os dois homens realizam atividades mais prosaicas, como a pesca com vara e rede, sendo bem-sucedidos num ambiente aquático extremamente piscoso.

4. Do interpretante ou significado

Para abordarmos o interpretante ou significado, abordaremos, inicial-mente, o contexto do aparecimento do mosaico e, a seguir, a expectativa do receptor.

O mosaico selecionado é um dos que decoravam um cômodo de re-cepção de uma domus (residência) da antiga Hadrumetum, atual Sousse, na Tunísia. Essa cidade situa-se numa região que, desde a Antiguidade, permaneceu próspera devido à cultura da oliveira, cuja produção de azeite era exportada do seu porto. De origem fenícia, foi encontrado, na cidade, material arqueológico remontando ao século VI a.C. (FOUCHER, 1964, p.22-96). Durante a Segunda Guerra Púnica (218 – 202 a.C.) entre Cartago e Roma, Hadrumetum aliou-se a Roma, recebendo como recompensa o sta-tus de ciuitas libera (cidade livre), o que lhe permitiu manter sua autonomia até as guerras civis do Primeiro Triunvirato entre Pompeu e Júlio César, em meados do século I a.C. (LEPELLEY, 1981, p.261). Como se posicionou favorável aos pompeianos, com a vitória de Júlio César foi agravada (JÚ-LIO CÉSAR. Guerra da África XCVII.2) com pesados tributos e com a instalação de um conuentus ciuium romanorum.

1 Moedas hadrumetinas

da época de Augusto mostraram, entretanto, que a libertas (liberdade) era ainda conservada ou fora restaurada (FOUCHER, 1964, p.112-6).

A história municipal de Hadrumetum é malconhecida (GASCOU, 1972, p.67-75) devido à continuidade da ocupação humana da cidade, o que afetou a sobrevivência de material epigráfico. Por uma tábua de pa-tronato de 321, encontrada em Roma (CIL VI.1687 = ILS 6111), sabe-se que Trajano (98 – 117) promoveu Hadrumetum a colônia honorária, o que demonstra a plena inserção da cidade na ordem romana. Esse imperador estabeleceu ainda um procurator regionis Hadrumetinae, responsável pe-los domínios imperiais (LEPELLEY, 1981, p.262). Desde o Principado (27 a.C. – 284), Hadrumetum era uma capital regional. Em fins do século II (193 – 197), um cidadão hadrumetino, Décimo Clódio Albino, disputou o trono imperial com Septímio Severo, natural de outra cidade afro-romana, Leptis Magna (HISTÓRIA AUGUSTA. clodius Albinus IV.1). No gover-

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no de Diocleciano (284 – 305), com a criação da província de Bisacena,2 a

cidade tornou-se a sua capital.O porto de Hadrumetum teve um importante papel na exportação de

produtos africanos e, em especial, do azeite. Randsborg (1991, p. 128) nos apresenta um quadro síntese com os resultados dos trabalhos de arqueolo-gia subaquática, realizados pelo Anselmino e sua equipe no porto de Óstia, porta de entrada dos produtos para Roma:

Percentuais de ânforas de várias partes do Império Romano para ÓstiaPeríodo:

anosRegião

Itália Gália Hispânia África do Norte Egeu0 a 50 28 29 31 11 150 a 100 15 32 28 19 6100 a 150 17 19 31 29 4150 a 200 2 9 10 55 23200 a 250 4 6 10 71 10250 a 400 0 22 0 40 38

Foi justamente graças à prosperidade econômica da região norte--africana que, a partir do século II, foram construídos em Hadrumetum monumentos públicos como teatro, anfiteatro, circo, termas e suntuosas re-sidências aristocráticas ricamente decoradas com mosaicos. A ascensão da dinastia severiana (193 – 235), de origem afro-síria, ao poder representou um período de grande desenvolvimento para as províncias norte-africanas; foi a época de esplendor em Hadrumetum, quando houve uma significativa atividade edilícia, dentre elas a residência onde se localiza o mosaico em análise, datado do século III.

Nesse período, predominava o “estilo musivo africano”, surgido no século anterior, que rompeu com os padrões geométricos simples, seme-lhantes aos italianos, seguidos pelos mosaicistas da região, que relegavam as tradições púnicas. As oficinas norte-africanas passaram a se dissociar, então, dos cânones dos mosaicos italianos e estabeleceram seu próprio es-tilo com a gradual introdução da policromia nas bordas e da integração de elementos florais e geométricos. Produziram uma grande quantidade de mosaicos policromáticos, geométricos, florais e figurativos em fundo branco. Cada região desenvolveu seu próprio estilo e seus temas a partir de tradições locais (FANTAR et al., 1994, p. 18-45 e 55-59; LAVAGNE,

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BALANDA e URIBE ECHEVERRÍA, 2000, p. 68-74). A representação do cotidiano oscilou entre o realismo, a caricatura e alguma idealização, mas também era comum se recorrer a cenas mitológicas. A predileção por assuntos tomados da vida real e a forma de representação com distribuição de cenas trabalhadas em cores sobre uma ampla superfície branca não di-ferenciada eram características distintivas do “estilo musivo africano”, que chegou a sua maturidade a partir do século III e se difundiu pelo Império Romano (FANTAR et al., 1994, p.59 e 240-59).

Os mosaicos nas paredes e no teto eram um dos elementos decorati-vos mais admirados. Traziam leveza às domus da elite local, ao decorarem seus aposentos como se fossem afrescos e tapetes, e também revelavam a vida cotidiana, os prazeres e os valores da elite provincial (THÉBERT, 1990, p.300-98). A riqueza dessa elite, fundamentada, sobretudo, na pro-dução de cereais e na manufatura do vinho e do azeite, como em Hadru-metum, encontrou expressão tanto na construção de monumentos públicos quanto na decoração sofisticada das residências urbanas (domus) e rurais (villae), onde os membros da elite provincial, profundamente romanizada, afirmavam seu status e seus valores culturais. A decoração doméstica nas residências urbanas de pessoas abastadas buscava reafirmar a posição pri-vilegiada do seu proprietário frente à comunidade romanizada. A aceitação social do pavimento com mosaicos nas cidades norte-africanas era uma prática do estilo de vida urbano romano-africano. Dessa forma, podemos esperar que o conteúdo das decorações nos revele muito a respeito dos gostos e valores da elite nessa parte do mundo romano.

O arquiteto romano Vitrúvio (c. 70 – 25 a.C.) apresenta, para cada aco-modação da domus, uma decoração própria, condizente com seu uso (VIT-RÚVIO. Da Arquitetura VII.5.2). O mosaico, ora analisado, decorava um triclinium, a sala de jantar de uma rica residência. O pavimento desse tipo de cômodo era frequentemente composto de dois mosaicos separados por uma borda. Um mosaico, em forma de U, correspondia à área reservada para os três leitos (ou divãs) sobre os quais os convivas se estendiam para comer, colocados ao redor das paredes laterais e do fundo da sala. Usualmente o pavimento sobre o qual se colocavam os leitos era decorado com padrões geométricos. O segundo mosaico, na forma de um T, era costumeiramente decorado com cenas que ofereciam aos comensais voltados para diferentes direções vistas interessantes - no presente caso, um dos mosaicos que com-punham esse T era o da paisagem nilótica, e outro era o de uma cena de caça

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a lebre e ao javali, emboscado por um cão. Fragmentos desse último mosaico encontram-se, atualmente, no Museu do Bardo (YACOUB, 1993, p.125), na Tunísia: duas cenas de caça (cão atacando javali: inv. nº A2 e caçador no bosque: inv. nº A3) e uma decoração geométrica (inv. nº A4).

Para Fantar (1994, p. 198), não se podem negligenciar os modismos e esnobismos, os quais influenciavam na escolha dos temas dos mosaicos. Esse tipo de fenômeno também está presente em épocas mais recentes, como, por exemplo, o orientalismo em voga no Ocidente, durante o século XVIII, e o american way of life dos séculos XX e XXI. Boissel (2007) rea-lizou um cuidadoso levantamento de 90 mosaicos com temáticas referentes ao Egito Antigo no Ocidente Romano, no período de fins do século II a.C. ao IV. Desse corpus, a região norte-africana contribui com o segundo maior número de exemplares, apenas atrás da Itália. O Nilo e seus pântanos eram apreciados na África Romana. A elite provincial selecionou esse motivo decorativo para ornar seus ambientes de recepção. Para Fantar (1994, p. 96), o Egito foi constantemente apresentado no imaginário africano, pois manifestava a herança púnica: “o universo cartaginês estava pleno de deu-ses e gênios vindos da terra dos faraós”. Entretanto, a incidência de mosai-cos sobre essa temática - na Itália, com especial ênfase, e em outras regiões ocidentais do Império Romano - apontam que a “herança púnica” não daria conta de explicar a adoção generalizada de tal padrão decorativo.

Consideramos que a elite provincial afro-romana buscava se aparen-tar, se situar e se identificar à ordem romana. Os membros da elite pro-vincial, profundamente romanizada, desejavam afirmar não apenas o seu status, mas também valores culturais comuns. O esplendor, o fausto da decoração do triclinium valorizava o poder e o prestígio do dominus (se-nhor) frente aos seus clientes e amigos. Pertencentes às camadas dirigentes da sociedade romana, a decoração de suas casas devia refletir sua riqueza, status social privilegiado, seus valores, sua cultura e seu gosto para o luxo. Nesse contexto, o mosaico trazia dignitas ao seu proprietário.

Os pavimentos nilóticos com atividades ridículas dos pigmeus en-frentando grandes feras (como crocodilos e, no caso, hipopótamo) eram cômicos e divertidos, faziam rir e criavam uma atmosfera de alegria e divertimento no lugar onde se festejava e banqueteava. Ademais, através da alteridade da figura dos pigmeus macrofálicos e sumariamente vesti-dos em situações risíveis, apregoava-se a diferença do que se esperava de um cidadão romano e, principalmente, de um membro da elite: proporção,

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equilíbrio, simetria, comedimento, controle e sobriedade. O corpo estranho dos pigmeus, divergente do ideal romano, fazia-os indivíduos que viviam fora dos limites da romanidade. Condizente com o ideário romano, o corpo disforme e nu dos pigmeus se contrapõe ao cidadão trajando sua toga. A toga simbolizava a dignidade do cidadão romano. Também se relacionava à paz, pois era utilizada, em períodos pacíficos, para atividades políticas e cerimoniais, próprias do espaço urbano, diferentemente do uniforme e das armas do soldado, portados pelo cidadão em tempos de guerra. Por isso, o poeta latino Virgílio definira os romanos como “nação togada” (Eneida I, v. 282), ressaltando, então, a Pax Augusta (Paz Augusta), obtida com o Principado de Augusto (27 a.C.-14). Os romanos consideravam-se possui-dores não apenas do poder militar, mas também de uma civilização, que tinha a toga como a indumentária do seu cidadão, que se opunha às ves-tes do “outro” (mulher, escravo, estrangeiro/bárbaro). Tradicionalmente, a toga era feita de um longo tecido (em alguns casos, de até 6,5m) em lã espessa e branca, que era arrumado em dobras cobrindo o corpo. A própria palavra toga deriva do verbo latino tego, texi, tectum, que significa cobrir. Era uma roupa tão elegante quanto incômoda: era difícil de vestir e portar, restringindo os movimentos e tornando os gestos mais cometidos e solenes, distintamente da túnica curta que era utilizada pelos trabalhadores em suas fainas diárias, como os pescadores do presente mosaico. A toga diferencia-va os cidadãos por sua idade, condição social ou cargo público que ocu-pavam, sendo, portanto, um fator de visibilidade da diferenciação social.

Por sua vez, a natureza do Nilo, com sua fauna e flora características, era uma clara referência ao Egito Antigo. A paisagem nilótica consolidou elementos típicos do Egito, criando uma assimilação imagética entre o Egi-to e o Nilo, tal como Heródoto (histórias II, 10) já o expressara na em-blemática frase “O Egito é uma dádiva do Nilo”. O rio garantia fertilidade, prosperidade e vitalidade à região. A presença da água no tema nilótico glorificava seus benefícios, ainda mais numa região mediterrânea, onde as chuvas não eram tão abundantes. Essa fertilidade se materializava nas suas fauna e flora, atraentes por seu exotismo, mas também perigosas. No mo-saico, esse exotismo, entremeado de perigo, está representado na figura do hipopótamo, considerado o maior de todos os animais do Nilo. Seu tama-nho e sua grande boca aberta, mostrando suas presas, eram ameaças reais e amedrontadoras para qualquer um, ainda mais para os pigmeus com seu diminuto tamanho. Há de se considerar também que o elemento de alteri-

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dade encontra-se presente na própria natureza nilótica - exótica, selvagem e “bárbara”, que se opunha ao quadro da cidade, lugar por excelência da civilização romana. Os centros urbanos não trouxeram apenas modifica-ções na paisagem natural, mas principalmente novas concepções de modo de vida e de organização política e social para as populações locais. A ci-dade foi a célula-base do sistema imperial romano tanto no plano político como no econômico, social e cultural, constituindo-se, portanto, no centro de radiação de romanidade. Foi através de uma malha urbana que Roma assegurou, em parte, a integração da região mediterrânea. Aproveitando-se das cidades já existentes e criando novas, procurou difundir seus valores e estilo de vida nos territórios conquistados. O Império Romano foi uma vasta “empresa” construtora de cidades. A Urbs, a cidade por excelência, serviu como paradigma para as cidades já existentes e, principalmente, para aquelas que foram criadas, que reproduziam instituições, cultos e mo-numentos da cidade-mãe.

As cenas nilóticas constituíam, portanto, uma maneira de representar experiências e acontecimentos dentro de certa espécie de moral ou rede social; eram uma forma de expressar alguns “significados compartilhados” (HUSKINSON, 2000, p.7), que fundamentavam a cultura da qual se ori-ginavam. Para Huskinson (2000, p.5 e 8), apesar da diversidade cultural do Império Romano, havia uma experiência cultural compartilhada, mani-festa no emprego de representações aceitas na constituição da identidade comum, que percebemos, por exemplo, através do tema escolhido para o mosaico em análise. Dessa forma, inferiam-se o pertencimento e o aceite da ordem imperial romana.

Lemos o mosaico em foco – encomendado por um membro da elite afro-romana para decorar sua residência – como uma construção sociocul-tural que cria significações sobre o poder, gerando e mantendo hierarquias. Para Woodward (2000, p.8), “as identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas”. Justamente, compreendemos que o presente mosaico, através da linguagem visual, é uma representação que atuou simbolicamente para classificar o mundo, resultando na construção de uma identidade que estava vinculada a condições sociais e materiais específicas. Os sistemas de representação pre-sentes na decoração doméstica das residências da elite provincial constitu-íram meios a partir dos quais essa elite pôde se posicionar e se expressar.

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Conclusão

A manutenção da unidade do Império Romano demandou compati-bilidade de valores entre as unidades participantes da comunidade roma-na, compartilhando códigos de moralidade e comportamento social. Esses valores ganhavam efetividade quando incorporados a instituições, língua, religião, nomes, vestuário, culinária, imagens..., originando uma forma de vida que reforçava os laços entre as unidades e originava um sentimento comum, estabelecendo, assim, confiança e lealdade mútuas entre as unida-des da comunidade.

O mosaico permitiu compreender o processo de construção de iden-tidade entre Roma e a elite provincial norte-africana. As identidades cole-tivas envolvem sistemas complexos de interpelações e reconhecimentos através dos quais os agentes sociais se inscrevem na ordem das formações sociais de diversas formas, tais como voluntária, negociada, consensu-al, imposta e outras. Como beneficiária da ordem romana, a elite norte--africana adotou um marco decorativo que lhe servia como elemento de identificação e integração ao lhe permitir viver à maneira romana. Assim, manifestava sua participação na gestão do Império Romano e afirmava sua posição privilegiada frente à sociedade local. A existência de uma comu-nidade cultural mediterrânea, incentivada pela civilização romana e apoia-da num intenso intercâmbio econômico, político e intelectual, ocasionou o desenvolvimento de uma decoração privada característica das elites em todo o Império Romano. A homogeneidade social e a cumplicidade política dessas elites foram fatores fundamentais para a perceptível uniformidade dos princípios básicos de sua decoração doméstica, sem, contudo, excluir de todo os elementos locais.

As identidades culturais são formadas e transformadas dentro de um contexto social complexo, composto não apenas de instituições, mas também de símbolos e representações. Nesse sentido, Woodward (2000, p.17) aponta que “a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.” A constituição de uma comunidade demanda a capacidade de gerar um senso de identidade e aliança, e de construir significados que norteiem e organizem ações e autoimagens. É fundamental, portanto, compreender

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as estratégias implementadas para a construção de identidades com a ela-boração de modelos de comportamento, valores e imagens que permitam manter unidos grupos de pessoas que, identificando-se culturalmente, se reconheçam e se distingam dos “outros”.

nILOTIc nATURE: An AFRO-ROMAn MOSAIc REPRESEnTATIOn

Abstract: F The Egypt was a recurring theme in Roman figurative art. In the Roman provinces of the North Africa, approximately twenty mosaics showing Egyptian motives can be found. To this presentation, it was selected a fragment from a policromatic figurative mosaic, that decorated the floor of a triclinium (dinner room) from a domus (urban residence of the elite), in the port city of Hadrumetum (nowadays Sousse in Tunisia), dated from the 3rd century AD. Nowadays, this fragment (2,10m X 1,38m) is part of the holdings at the Sousse Museum (inv. nº 10.457). The aim of this work is to identify and analyze the cultural implications present in the imagetic discourse of the chosen mosaic. The work starting point is that an image is a language composed of iconic signs and, therefore, allowing interpretation. To comprehend the meanings production mode of this mosaic imagetic discourse, the sign dynamic proposed by Pierce will be applied, centered in the fellow relationship between the three component poles of the semiotic process, which are: the object or subject matter (that which is represented by the sign), the representamen (that which is perceptible in the sign) and the interpretant or meaning (that which depends of the context of its use and the expectative of the receptor).

Keywords: Roman Africa; mosaic; representation; Egypt; identity/alterity.

Documentação escrita

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notas

1 Associação oficial de cidadãos romanos nas aglomerações sem status de muni-

cípio ou de colônia (LAMBOLEY, 1995, p. 116). Em Hadrumetum, era composta de negociantes romanos que comerciavam os produtos agrícolas da região visando exportá-los para Itália (LEPELLEY, 1981, p. 261).2 Ignora-se a data precisa da criação da província; supõe-se entre 294 e 305. A

reforma administrativa diocleciana dividiu a Província da África Proconsular em três: Zeugitana ou África Proconsular propriamente dita, Bisacena e Tripolitânia. Essa divisão visava aumentar os recursos fiscais destinados a enfrentar as ameaças exteriores, reforçar a autoridade imperial e, ao mesmo tempo, diminuir a do pro-cônsul da África Proconsular, cujo poder em geral fazia o jogo dos usurpadores (MAHJOUBI, 1983, p. 482).

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O “cLIEnTELISMO PúbLIcO” DE PÉRIcLES nA hISTORIOGRAFIA DO SÉcULO xx

José Antonio DabdabTrabulsi*

Resumo:

Através de uma análise de algumas biografias de Péricles, escritas no século XX, proponho uma reflexão sobre o impacto do presente na reconstrução do passado, em relação ao muitas vezes mencionado “clientelismo público” de Péricles.

Palavras-chave: Péricles; clientelismo, Grécia antiga; historiografia contemporânea.

Na constituição de Atenas aristotélica, podemos ler (27, 3-5):

Ce fut aussi Périclès qui le premier donna une indemnité aux tri-bunaux, pour rivaliser de popularité avec la richesse de Cimon. En effet, Cimon, qui avait une fortune princière, d’abord s’acquittait magnifiquement des liturgies publiques et de plus entretenait be-aucoup de gens de son dème : chacun des Lakiades pouvait venir chaque jour le trouver et obtenir de lui de quoi suffire à son exis-tence ; en outre aucune de ses propriétés n’avait de clôture afin que qui voulait pût profiter des fruits. Périclès, dont la fortune ne pou-vait subvenir à de telles largesses, reçut de Damonidès d’Oiè (qui passait pour inspirer la plupart de ses actes et fut plus tard frappé d’ostracisme pour cette raison) le conseil de distribuer aux gens du peuple ce qui leur appartenait, puisque sa fortune personnelle était insuffisante ; et il institua une indemnité pour les juges. C’est depuis ce moment, à en croire les plaintes de certains, que tout a été plus

* Professor titular de História Antiga da UFMG.

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mal, parce que les premiers venus mettaient plus d’empressement que les honnêtes gens à se présenter au tirage au sort (tradução G. Mathieu et B. Haussoulier, para Les Belles Lettres).

Por seu lado, Plutarco, na vida de Péricles (9, 1-5) diz:

Thucydide dépeint le gouvernement de Périclès comme une sorte d’aristocratie: ‘C’était, de nom, une démocratie, mais, en fait le premier citoyen exerçait le pouvoir’. Beaucoup d’autres préten-dent que c’est lui qui, le premier, poussa le peuple à distribuer des lots de terre, des indemnités de spectacle, des salaires et que, par suite des mesures prises à cette époque, il lui donna de mauvaises habitudes et le rendit dépensier et ami du plaisir, de tempérant et laborieux qu’il était auparavant. Recherchons donc dans les faits eux-mêmes la raison de cette transformation. Au début, Périclès, jaloux de contrebalancer le crédit de Cimon, chercha, comme je l’ai dit, à capter la faveur populaire. Mais, supérieur en richesse et en moyens, Cimon profitait de ces avantages pour se concilier les pauvres, en donnant tous les jours à diner à tous les Athéniens dans le besoin et en habillant les vieillards. Il avait même enlevé les barrières de ses domaines pour permettre à qui voulait d’en cueillir les fruits. Périclès, ainsi désavantagé auprès du peuple, eut recours à des largesses faites avec les revenus de l’Etat, sur le conseil de Damonidès d’Oiè, selon ce que rapporte Aristote. Il eut vite corrompu la multitude avec les fonds pour les spectacles, les salaires assignés aux juges et toutes les autres allocations et largesses qu’il lui prodigua, et il se servit d’elle contre l’Aréopage, dont il n’était pas membre, le sort ne l’ayant jamais désigné pour les fonctions d’archonte, de thesmothète, de roi ni de polémarque, car les charges, depuis longtemps, étaient distribuées par le sort et ceux dont la gestion avait été approuvée montaient siéger à l’Aréopage. Fort de l’appui du peuple, Périclès accrut son op-position à ce Conseil et réussit à lui faire enlever par l’entremise d’Ephialte la plupart de ses juridictions, puis il accusa Cimon d’être ami des Lacédémoniens et ennemi de la démocratie, et il fit bannir par ostracisme cet homme qui ne le cédait à personne pour la fortune et la naissance, qui avait remporté sur les barbares les victoires les plus glorieuses et qui avait rempli la ville de richesses

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et de dépouilles abondantes, comme je l’ai raconté dans sa Vie. Tel était l’ascendant de Périclès sur le peuple (tradução R. Flacelière et E. Chambry para Les Belles Lettres).

Eis aí fatos e comentários que foram o ponto de partida de uma con-trovérsia que vem da Antiguidade, abundantemente retomada pelos mo-dernos. É através das diversas interpretações dos biógrafos de Péricles, ao longo do século XX, que tentarei, por amostragem, explicar meus procedi-mentos de análise em relação à questão da presença do presente no passado.

Começamos por um grande nome na elaboração da imagem de Pé-ricles no século XX. Em maio de 1944, Gaetano de Sanctis publica uma biografia de Péricles (DE SANCTIS, 1944). De Sanctis, filho e neto de funcionários do papa, católico por suas origens familiares e também por convicção, aluno de Karl Julius Beloch em Roma e, mais tarde, professor na Universidade de Turim, “neutralista” antes da Primeira Guerra Mun-dial, patriota durante o conflito, conservador e membro do Partido Popular Italiano, refratário ao fascismo - recusando-se a assinar o juramento de fidelidade exigido pelo regime -, caído em desgraça, abandonou a sua es-pecialidade, a história romana, vigiada demais, em benefício da história grega. Tudo isso estará, de uma forma ou de outra, presente no seu livro sobre Péricles; o que o torna extremamente interessante.

Um paralelo italiano muito pertinente é fornecido por Mario-Attilio Levi, o grande historiador italiano da Antiguidade, que escreveu, na etapa final de sua longa carreira, em 1980, um livro sobre Péricles. Ele seguiu, assim, de certa forma, o exemplo de seu mestre Gaetano De Sanctis, que tinha feito a mesma coisa em idade avançada, mais de trinta anos antes (1944). Aí acaba a comparação: quase tudo opõe os dois “Péricles”. No de Levi, pensamos poder observar reminiscências de algumas de suas posi-ções políticas de juventude, muito diversas das de De Sanctis, e nós exami-naremos o seu Péricles “ditador” em relação ao problema aqui abordado.

No universo de língua francesa, um caso interessante é fornecido por Léon Homo, historiador francês da primeira metade do século XX, espe-cialista da Roma Antiga, que sai de sua especialidade, num de seus últimos trabalhos, para fazer o elogio de Péricles e de sua experiência de “democracia dirigida”, o que não deixa de ter relações com o contexto social e político da França do início dos anos 1950, sobretudo com a instabilidade crônica da IV República e o perigo eleitoral representado pelo partido comunista na época.

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Por seu lado, Marie Delcourt, historiadora e intelectual belga, grande nome do helenismo de meados do século XX, publica, em 1939, pouco antes dos desastres da Segunda Guerra Mundial, uma biografia de Péricles profundamente marcada pelos traços do momento em que foi escrita. O que pensa Delcourt dessas práticas de Péricles?

No universo de língua inglesa, nós nos interessaremos de perto à imagem que é dada de Péricles por Donald Kagan (KAGAN, 2008). Esse Péricles do grande professor de Yale é marcado pelo momento em que foi publicado (1991): entre a queda do Muro de Berlim e o fim da União Sovi-ética, por um lado, e o início da aventura militar americana no Iraque, por outro lado.

Eis um programa bastante carregado para o tempo de que dispomos. Passemos, então, à questão. Comentando as práticas democráticas do regime ateniense, De Sanctis explica as oposições aos misthoi, a organização das retribuições, e conclui, com uma avaliação positiva, que considera “natural “ que as coisas tenham funcionado daquela forma. Apesar do custo do sis-tema, “não era pagar caro” esta “participação efetiva sem a qual não teriam sido possíveis as gloriosas audácias e as lutas orgulhosas pela liberdade da Atenas clássica”. E, já que o povo participava “dos sacrifícios” para a defesa e o aumento do poder ateniense, “era natural que ele partilhasse, pelo menos em pequena medida, as honras e as vantagens” (DE SANCTIS, 1944, 76-77).

O funcionamento do regime popular e de suas bases morais interes-sa muito a nosso historiador. A prática das “indenizações” pelos serviços prestados ao Estado não pode deixar de colocar a questão da preguiça; na re-alidade, as indenizações não constituíam, para os que instauraram o sistema, “um subsídio de desemprego, de invalidez ou de velhice”, apesar de também poderem servir para isso e “constituir assim, num certo sentido uma medida de justiça social”, “com o inconveniente, entretanto, que elas possuem, aos nossos olhos, muitas vezes, e até contra a vontade dos seus autores, o efeito das indenizações de desemprego, ou seja, o de promovê-lo”. Mas ele reco-nhece que esse inconveniente “devia ser mínimo”, tendo em vista a exigui-dade do desemprego num contexto social sadio e próspero, no qual “o traba-lho inteligente oferecia grandes perspectivas de lucros”, como era o caso em Atenas, em meados do V século (DE SANCTIS, 1944, p.89). Nega, então, qualquer intenção de promoção da preguiça, reconhece que a coisa poderia apresentar tal aparência “aos nossos olhos” (contemporâneos), mas nega que tenha produzido tais efeitos na época (pelo menos, de forma significativa).

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Ele não se mostra hostil a certa promoção “pública” de medidas de justiça social. Parece estar, quanto a isso, na linha de um catolicismo social, o que é confirmado por outras evidências de sua vida e obra.

No campo da “política social”, um conservador como o nosso autor está sempre atento, vendo perigos em toda parte. Segundo ele, “não é justo acusar Péricles de ter corrompido o povo com pagamentos”: aprova, aliás, as despesas com os órfãos de guerra e com os inválidos, “muito nobres exemplos um e outro do alto senso de justiça social com o qual Atenas se governava na época de Péricles”. Mas De Sanctis desaprova com ênfase o que veio depois de Péricles:

Mas quando faltou à direção do Estado a mão firme do homem que, após ter aberto os diques à onda democrática, tinha sabido contê-la e freá-la, quando a falência da política imperial e a empo-brecimento das classes médias rebaixaram o nível da vida política e agravaram as tendências parasitárias do démos, então outros pagamentos foram introduzidos, com os quais Péricles nunca teria estado de acordo, e que ele talvez sequer tivesse podido imaginar. (DE SANCTIS, 1944,94)

Ele está pensando, nesse momento, no misthos para a frequência à As-sembleia e na caixa do teórico para o financiamento da presença nos espetá-culos. O equilíbrio é perdido, e o misthos passa de sua condição de “cimento da democracia” a uma condição de “tonel sem fundo” para o dinheiro públi-co; ele vai até ao ponto de falar em tendências “parasitas” do démos...

Outro ponto importante: os grandes projetos de obras públicas, as-sociadas à grandeza da civilização e à “política social” de Péricles. O que levou Péricles a conceber aquele grandioso projeto de embelezamento de Atenas foi não apenas o objetivo de fazer da sua cidade a mais bela do mundo helênico, mas também “assegurar trabalho útil tanto às massas ur-banas quanto aos estrangeiros que confluíram para a cidade de todas as par-tes da Hélade” (DE SANCTIS, 1944, p.156-7). Ele utiliza claramente a ex-pressão “política de justiça social”: essa intensificação das obras públicas que acompanha o aumento dos pagamentos pelo trabalho de interesse para a cidade “é um outro aspecto dessa política de justiça social” que aparecia aos olhos dos adversários da democracia unicamente como uma espoliação do ricos em proveito dos despossuídos” (DE SANCTIS, 1944, p.157).

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Péricles leva adiante os seus grandes trabalhos de construção sem comprometer a política imperial e sem esgotar as finanças públicas: “Mas os sucessos que ele obteve nessa política foram bem menos duradouros do que os edifícios que ele fez erguer e aos quais permanece ligada para sem-pre a glória de Atenas” (DE SANCTIS, 1944, p.219). Dos faraós do Egito a Kubitschek (Brasília) ou Mitterrand, o que é sólido permanece... Os histo-riadores adoram os grandes construtores! Tanto mais quanto sua atividade obedece também a outros nobres objetivos - e esse era, é claro, o caso de Péricles, que, com seus grandes empreendimentos, não apenas embelezou Atenas, mas teve também por objetivo “eliminar o desemprego das massas operárias”. Ninguém, na Antiguidade, soube tão bem quanto ele combater a falta de trabalho; ninguém como ele “reconheceu de fato o direito ao trabalho” (DE SANCTIS, 1944, p.219). Trabalho para todos, “direito ao trabalho”. De Sanctis, historiador católico que viveu, durante muitos anos, numa grande cidade operária como Turim, está sem qualquer dúvida na linha de um catolicismo social. O exemplo que cita lhe permite comparar essa “boa política” às outras “medidas sociais” praticadas na Antiguidade, como as distribuições de dinheiro, pão subvencionado, redistribuição de terras, todas elas nocivas e, quase sempre, reforçando “as tendências ao ócio e ao parasitismo” (DE SANCTIS, 1944, p.219).

Passemos de mestre a discípulo. Mario-Attilio Levi (LEVI, 1980) aborda os grandes problemas políticos da cidade de Atenas, como, por exemplo, através do comportamento de Címon, as relações entre chefe e povo:

A liberalidade de Címon era uma iniciativa evidentemente dirigida à conquista de adesões e de popularidade, e a tradição histórica percebe com exatidão os objetivos dessa generosa forma de busca do favor político e eleitoral, com meios praticados em todas as épocas, mas especialmente apreciados num contexto no qual uma das qualidades principais das grandes personagens era a ever-ghesía, a vontade e a possibilidade de fazer o bem do próximo. (LEVI, 1980, p.86)

Nessa explicação da generosidade privada de Címon no contexto da luta pelo poder (em especial, contra os Alcmeônidas), ele prepara, de for-ma muito clara, uma futura explicação sobre a generosidade “pública” de Péricles.

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Um dos traços mais constantes da análise de Levi sobre Péricles é que ele é constantemente oposto a Címon, que assume um espaço no seu texto muito maior que o habitual nos livros sobre Péricles:

Os Antigos diziam que Címon era muito rico e podia se permitir conquistar o favor dos mais pobres dentre os cidadãos, enquanto que Péricles, não possuindo meios para tais liberalidades, precisava recorrer ao sistema de pagar pelo exercício das funções públicas, e pelas participações na assembleia e nos tribunais (a mistoforia), a fim de também obter o favor da massa dos tetas. (LEVI, 1980, p.147-8)

A formulação neutra, “escondida” atrás da opinião dos Antigos, é uma maneira de reforçar sua própria opinião sobre a questão, sem qualquer dúvida.

Sobre a questão das obras públicas, Levi adotará uma análise pou-co habitual. Ele faz o elogio da beleza clássica, mas logo toma o partido dos críticos antigos tanto do ponto de vista da audácia quase sacrílega do programa como sobre as acusações de corrupção. Ele não nega a astúcia propriamente política das grandes obras, como o fato de fornecer trabalho, estimular a economia, elevar o prestígio da cidade, mas o faz quase à ma-neira de um opositor da época, por exemplo, quando diz: “além disso, era possível polemizar com facilidade, comparando as munificências de Cí-mon, o qual, tendo enriquecido muito, gastava seu próprio dinheiro, com as despesas de Péricles, feitas com o tributo dos aliados” (LEVI, 1980, p.201).

Igualmente interessante é sua análise da figura pública de Péricles e de sua vida privada:

Devemos ainda lembrar que na época de Péricles e sob o seu governo, a política do grupo social que dirigia a cidade-estado apoiava-se sobre as camadas populares e médias do corpo cívico, de tal forma que convinha fazer de tudo para agradar a tais cama-das da população, que possuíam poucos recursos, não demonstrar qualquer forma de luxo ostentatório, levando uma vida austera e conforme as possibilidades e os gostos dos mais pobres.

Dessa forma, havia um nivelamento, e as roupas típicas da aristo-cracia do VI século “tinham se tornado não apenas impopulares, mas até

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provocatórias” (LEVI, 1980, p.14). O que Levi entende por isso é que o que chamaríamos de sociologia política do “partido” popular, molda (ou ajuda a moldar) a vida privada do líder político. Para além dos gostos particula-res de Péricles, existem imperativos políticos aos quais ele está ligado ou amarrado, o que significa - e talvez haja, aqui, razões de descontentamento para Levi - que os ricos atenienses se encontram sob a pressão do démos até no nível da simples forma de vestir.

Levi fornece uma análise da figura de Péricles indissociável das con-dições nas quais ele agiu politicamente:

Veremos a que tipo e a quantos condicionamentos de política interna Péricles esteve submetido, mas o certo é que, em muitos aspectos, ele tinha menos liberdade nos seus cálculos, previsões e decisões, do que tiveram seus predecessores, como Címon, que não precisavam se preocupar tanto quanto ele com as exigências e as expectativas nunca estáveis da parte mais numerosa, mas economicamente mais fraca, menos preparada e mais impressionável, da assembleia popular e do conselho escolhido por sorteio. (LEVI, 1980, p.140)

Para Levi, o ideal é o chefe com uma ampla autonomia de decisão; o povo aparece na sua análise como um obstáculo (exigências, expectativas sempre mudando, impressionabilidade, falta de preparo). Ele aparece, as-sim, e mais de 30 anos mais tarde, como claramente mais hostil ao povo de Atenas do que seu mestre De Sanctis (DE SANCTIS, 1944, p.76-7).

Essa visão se completa com uma opinião negativa do povo e da mis-toforia, fonte de egoísmo em política:

De fato, com o pagamento de um salário pela participação nas assembleias públicas e por todas as funções do Estado, chegava-se ao ponto que as maiorias fossem constituídas de gente privada de experiência política e de prática dos assuntos militares e econômi-cos, muito necessitados, com o medo da vida aleatória do dia a dia, e por isso sempre ansiosos, com seus interesses pessoais imediatos.

Ou seja, ele é muito claro: o interesse pessoal em política é sempre muito nefasto e condenável. Vemos também, no prosseguimento da mesma análise, a que ponto, para Levi, o contato do chefe com as instâncias cole-tivas da cidade é uma obrigação penosa, algo quase nojento:

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Os camponeses que temiam as incursões e a perda das colheitas, ou os indivíduos que temiam os aumentos de preço, esperavam das autoridades decisões que não iam além de suas próprias preocu-pações imediatas e particulares, e Péricles que, por necessidade política, estava em contato com a assembleia, com a boulè e com os prítanos em todos os momentos de sua ação no governo e no comando, encontrava nessas maiorias um limite prejudicial às escolhas e às decisões. (LEVI, 1980, 140)

É um nobre que vai ao sacrifício, obrigado a se misturar com a massa pelo bem de sua cidade...

Vejamos, agora, o que pensa Léon Homo sobre o sistema de paga-mentos, que ele explica em detalhe e no seu desenrolar histórico, aceitando as avaliações mais elevadas em termos de pagamentos, aliás: “De uns trinta mil cidadãos adultos, dois terços podem assim, por uma ou outra razão, re-ceber os pagamentos públicos” (HOMO, 1954, p.110). Com certo exagero, sem dúvida. Por exemplo: ele contabiliza 6000 jurados como beneficiários reais, quando sabemos que só recebiam o pagamento aqueles que eram sorte-ados e que compareciam às sessões do dia, o que estava longe de ser 6000 de cada vez. Explica também que “o sistema dos pagamentos foi muito critica-do, já na época de Péricles, por seus adversários e, depois de sua morte, pelos inimigos do regime democrático. Platão (...)” (HOMO, 1954, p.110). Belo encadeamento este de começar assim a lista dos inimigos da democracia...

Homo relata as explicações e as críticas dos Antigos sobre a questão (rivalidade com Címon, muito rico e pródigo; promoção da preguiça entre os atenienses, etc.). Para os Antigos, o sistema era uma manobra eleitoral, nada além disso. Mas Homo contesta:

A cronologia já basta para negar tal alegação. A criação do pri-meiro misthos, o dos jurados, situa-se após o desaparecimento de Efialtes, em 461. Neste momento, Címon, condenado por ostracismo, deixou Atenas, e Péricles não precisa mais lutar contra ele para obter popularidade e, por isso, a acusação que tende a fazer de Péricles um político de baixa extração se desfaz. Na realidade, a criação da mistoforia por Péricles responde a uma ideia política muito nítida e estreitamente ligada ao conjunto do seu sistema. (HOMO, 1954, p.112)

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“No regime democrático, tal como ele o concebe para Atenas, o es-tabelecimento da mistoforia aparece-lhe como uma medida a uma só vez de necessidade e de equidade” (HOMO, 1954, 112). A razão (do início do sistema) é raramente dada pelos historiadores e, no que se refere a Homo, sua formulação até esse ponto não revela qualquer hostilidade de princípio. E continua: “O sistema dos pagamentos públicos é uma necessidade. O regime de soberania direta, que era o da cidade antiga, exigia, para funcio-nar normalmente, a participação efetiva de todos os cidadãos no governo” (HOMO, 1954, 112). Nas cidades aristocráticas, os ricos tinham o lazer necessário para tal:

[...] no sistema democrático, os deveres políticos incumbem a todos os cidadãos, ou seja, ao mesmo tempo aos ricos e aos que vivem de seu próprio trabalho. Aos artesãos que negligenciam os negócios públicos, não se pode infligir uma multa, pois eles precisam viver. Assim, para incitá-los a preencher seus deveres cívicos, se lhes fornece um pagamento indenizatório. (HOMO, 1954, p.113)

Aqui, Homo passa a uma defesa mais clara da mistoforia:

Necessária em qualquer democracia, a mistoforia o é ainda mais numa democracia em pleno desenvolvimento como a de Péricles. A formação do Império determinou a criação de numerosos em-pregos, sob a forma, em geral, de colégios de dez membros - tantas quantas são as tribos- e a proibição legal da reeleição, salvo para os funcionários militares e financeiros, obriga a recorrer a um número maior de cidadãos e a descer, para recrutá-los, cada vez mais nas classes inferiores. O papel dos heliastas se desenvolveu com o número crescente dos negócios, e por outro lado, para evitar o perigo de corrupção, eleva-se seu número a um máximo (...). Em tais condições, o número de seis mil heliastas por ano não tem nada de exagerado. É preciso então cada vez mais apelar para as classes inferiores. A necessidade de um pagamento para o exercício das funções se encontra tanto mais aumentada. (HOMO, 1954, p.113)

O tom da análise continua mais para a aprovação: “O pagamento pelo serviço público representará, portanto, no pensamento de Péricles, para um cidadão, não um benefício, mas o reembolso do prejuízo, nada mais do que isso” (HOMO, 1954, p.114-5). O tom da análise parece cada vez mais posi-

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tivo. Insisto nesse ponto, pois o julgamento acerca do sistema da mistoforia é um dos testes mais seguros em relação às opiniões políticas e sociais dos historiadores da Grécia clássica (DABDAB TRABULSI, 2006).

Mas o entusiasmo não vai durar muito:

É preciso acrescentar que Péricles, em tal domínio, limita-se, e duplamente, ao estrito necessário. Ele não estende o princípio do pagamento a todos os serviços públicos sem exceção, mas apenas aos mais pesados e mais absorventes. O pagamento por presença na Assembleia, o misthosecclesiasticos, que teria sido a mais ca-racterística do sistema, só aparecerá após a guerra do Peloponeso, com o restabelecimento da democracia. (HOMO, 1954, p.115)

Ele recua a uma posição média e ainda acrescenta uma nuance:

Em segundo lugar o valor dos pagamentos realizados (...) permanece medíocre, senão desprezível. Péricles, em matéria de pagamentos, limitou-se ao indispensável, e nada além disso, e a responsabilidade inicial do sistema posta de lado, os exageros ulteriores só engajam a responsabilidade de seus sucessores. (HOMO, 1954, p.116)

Tudo isso, e um tom muito forte de “moralismo do trabalho”, encon-tra em Homo um uso mais diretamente político, sem dúvida em relação aos debates acerca da Seguridade Social na França do início dos anos 1950, quando os “trinta gloriosos” (os anos do milagre econômico francês do pós-guerra, com taxas de crescimento elevadas) ainda estavam apenas co-meçando, o crescimento econômico ainda não tinha, de fato, decolado e o mercado de trabalho não era ainda vigoroso o suficiente para assegurar o bem-estar da maioria. Mas com a “SécuritéSociale”, lançada por De Gaulle depois da Liberação, e um Partido Comunista muito forte e reivindicativo, o tema das redistribuições sociais era muito polêmico.

Uma etapa na Bélgica, agora. Em seu retrato de Péricles, Marie Del-court (DELCOURT, 1939) fala de “sua reserva, sua falta de espontaneida-de, seu puritanismo”, “ele falava em público o mais raramente possível”. De fortuna média, ele não podia se permitir as liberalidades de um Címon:

De resto, ainda que tivesse sido muito rico, ele não teria ousado abrir sua mesa e derrubar as cercas de suas terras; da parte dele,

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isso teria se assemelhado a um afronte e quase um método de cor-rupção, pois ele não tinha recebido o dom de ir simplesmente em direção ao povo e fraternizar com ele. (DELCOURT, 1939, p.133)

É Péricles... ou Marie Delcourt, que não teria feito isso? Os mecanis-mos de projeção dos historiadores sobre suas personagens são difíceis de controlar quase sempre.

Ainda no que se refere à imagem de Péricles, Delcourt se esforça em dissipar algumas ideias erradas. Segundo ela:

Havia em Címon uma espécie de unidade grande e robusta que seduzia demais este povo do qual ele retardava a emancipação. Ao contrário, Péricles devia se sentir encabulado, diante de seu próprio pensamento, pelos argumentos através dos quais ele colocava do seu lado este populacho que ele servia e do qual ele se servia, sem conseguir ter por ele muita estima. (DELCOURT, 1939, p.78-9)

É um Péricles-líder distante, e de um povo que não se parecia com ele. E até na explicação das circunstâncias de sua adesão ao “partido” po-pular, ela vai bem longe neste sentido:

Nada seria mais falso do que se imaginar Péricles tomando a dire-ção do partido popular por simpatia pelo que nós hoje chamamos de ideias democráticas. O que o determinou, não é nem, ao que parece, a ideia de que a grandeza de Atenas exigia um alargamento das bases do Estado. Plutarco diz de forma crua que ele adotou o partido popular porque Címon dirigia a aristocracia (...). (DEL-COURT, 1939, p.80)

É, portanto, através de uma análise muito sólida das próprias bases da sociedade ateniense que ela chega à questão dos misthoi: “Péricles, não aceitando que a guerra os empobrecesse, quis, ao contrário, que a guerra, paga pelos aliados, os recolocasse em seu antigo posto. É a razão pela qual ele atribuiu aos hóplitas uma indenização de alimentação que logo se tor-nou um soldo” (DELCOURT, 1939, p.96). Delcourt tem, sob certos aspec-tos, uma visão positiva sobre as indenizações:

Toda a legislação pericleana acompanha de perto as consequências da queda do valor do dinheiro. Seis mil cidadãos das quatro classes

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eram chamados a tomar assento todo ano nos tribunais populares. Péricles fez que recebessem, para tal, dois óbolos, o que bastava para viver muito modestamente. Seus inimigos fingiram considerar a coisa como uma medida demagógica, com a mesma sinceridade com a qual os nossos reacionários comparam salários de duas épocas diferentes, olhando só para o seu valor nominal, e se irritam de vê-los subir. (DELCOURT, 1939, p.97)

Delcourt, em certos momentos, situa-se bem à esquerda, como aqui, com esta denúncia dos “nossos reacionários”, manipuladores de estatísti-cas e antipovo! Ela explica em seguida que “Péricles considera que o que merece um salário não é o que nós chamaríamos um serviço público, mas simplesmente a participação na vida pública” (DELCOURT, 1939, p.97), o que é, mais uma vez, muito bem visto, enquanto análise. De onde sai esse dinheiro? “Em troca desse serviço, o povo recebe o seu pão. Esse pão vem a ele, em partes desiguais, dos recursos da própria Atenas e do tributo da Aliança. Este último representa, no conjunto do montante, a parte mais importante” (DELCOURT, 1939, p.97). Delcourt reconhece, sem qualquer ambiguidade, que democracia e império vão juntos. A questão dos recursos públicos é importante nesse contexto. Ela explica a antipatia pelo imposto e a dificuldade em fazê-lo aceitar. E julga que “certas prestações são im-postas aos ricos, que as fornecem de boa vontade e de forma faustosa, pois o mecenato é, em todas as épocas, em todos os países, mais frequente e menos meritório do que a coragem fiscal” (DELCOURT, 1939, p.98). O leitor fica de boca aberta diante de tal coragem: Delcourt é abertamente pró-imposto, em 1939. Ela solta o verbo, como um pouco antes em relação aos “nossos reacionários”.

Mas Delcourt explica também o soldo pago aos jurados do Heliasta como “a primeira ruptura com a coesão interna do sistema”, explicando que:

[...] no século V a.C. o soldo dos jurados assegurava à gente miúda pelo menos o seu jantar do dia, e lhes poupava o cálice do trabalho manual em relação ao qual eles nutriam horror e desprezo. Dois óbolos eram o suficiente para encantar os miseráveis cujas necessi-dades eram tão reduzidas quanto as ambições, e que subiam, felizes da vida, da miséria para a mediocridade. Os tribunais eram um meio de ocupar a plebe e alimentá-la. Mas, para que eles pudes-

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sem funcionar o ano todo, era preciso fazer que eles resolvessem muito mais processos do que os que envolviam apenas atenienses. (DELCOURT, 1939, p.98-9)

Sobre este aspecto, ela se coloca ao lado da maior parte dos críticos dos misthoi, considerando que eles podiam induzir à “preguiça”. E não é a sua única crítica:

Péricles imaginou então trazer para Atenas todos os litígios das outras cidades (...) Quando os atenienses reivindicaram o monopó-lio dos processos, eles ultrapassaram os seus direitos e não deram qualquer compensação em troca das vantagens que eles obtinham para si próprios (...) Péricles colocou sua prudência habitual na realização de tal abuso de poder (...) Abuso proveitoso, pelo menos no curto prazo. (DELCOURT, 1939, p.99-100)

O tesouro se enche, os juízes recebem um salário, Atenas intervém nos assuntos longínquos sem qualquer gasto. Mas, no longo prazo, isso atrai a antipatia de todos (salvo dos democratas) contra a cidade:

Péricles, que levanta de forma mais arguta do que qualquer outro homem do seu tempo aquilo que nós chamamos os problemas do trabalho, não nos compreenderia, entretanto, quando nós dizemos que a indenização aos juízes vale exatamente, para a riqueza cole-tiva, o que valem os nossos salários-desemprego. Ele também não enxergou que a multiplicação dos empregos de juízes desviava a plebe do trabalho manual. (DELCOURT, 1939, p.101)

Na Europa industrial que atravessa a crise dos anos 30, Delcourt é pró-trabalho, antipreguiça. Ela vê muito bem que os misthoi são o equiva-lente ao welfarestate contemporâneo, mas desaprova isso com vigor.

Delcourt examina também as dimensões sociopolíticas das grandes obras no prosseguimento daquilo que estava sendo teorizado, fazia muitos anos, por G. Glotz (por exemplo, G. GLOTZ, 1948, v. 2, 178 sq), como o “socialismo de Estado”, do trabalho para todos. Ela não concorda totalmente:

Este aspecto da questão, Péricles é o primeiro homem de Estado a ter reconhecido a importância. Se ele não imaginou as obras públicas que melhoram diretamente a condição do povo, ele pelo

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menos amadureceu perfeitamente sua concepção de Estado em-preendedor e aceitou as consequências sociais que ele acarreta. (DELCOURT, 1939, p.166)

Atravessemos, agora, o Atlântico para uma visão acerca da opinião de Donald Kagan. No seu capítulo II, “O político”, de seu livro sobre Pé-ricles (KAGAN, 2008), ele comenta toda a política ateniense do período, pintando também um retrato das outras grandes figuras da Atenas Clássica, tal como Címon dando o que comer aos atenienses pobres:

Era o meio de conseguir uma base política entre os pobres, e assim de enfrentar seu chefe natural, Temístocles, e os outros membros de sua facção. Como os bosses de outrora em Boston, Nova York ou Chicago, ele garantia para si uma clientela leal entre os eleitores pobres, ao se ocupar de suas necessidades pessoais e cuidando que eles votassem quando era preciso. (KAGAN, 2008, p.58)

Estamos mais habituados a ver tal atitude comparada à dos patrícios romanos; Kagan tenta, aqui, uma comparação contemporânea. É ousado, certamente didático para os seus leitores; pertinente ou não, é outro debate, no qual as opiniões serão, com certeza, divergentes. Como fiz, no passado, comparações análogas em relação ao “coronelismo” na política brasileira (DABDAB TRABULSI, 1991), a minha opinião é favorável.

Vemos, pouco a pouco, Kagan delinear uma abordagem fundamen-talmente simpática em relação ao regime democrático; por exemplo, sua explicação dos inícios da mistoforia é sintomática:

O ideal democrático necessitava que a maioria dos cidadãos to-masse parte nas decisões públicas, mas os pobres não podiam se dedicar a isso se não recebessem uma compensação (...) A cria-ção das indenizações pelo serviço público prestado deu a muitos atenienses, pela primeira vez, seu verdadeiro status de cidadão, e é com essas reformas que começa a democracia ateniense plena, completa. (KAGAN, 2008, p.72-3)

Sim, ele tem razão, e vemos que, junto com a constatação, toma uma posição de defensor de tal prática contra seus adversários antigos e modernos.

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Ele explica os efeitos do programa de construções:

Essas grandes obras também ajudaram Péricles a estender sua influência política, graças às oportunidades econômicas que elas ofereciam. Durante quase vinte anos, elas criaram uma demanda sem interrupção de materiais e de mão de obra, qualificada ou não qualificada, que estimulou a prosperidade e a atividade de todas as parcelas da população. Elas se inseriam na linha desses programas de obras públicas que, ao criar empregos, ao multiplicar os lucros para muitos cidadãos, multiplicam o apoio aos dirigentes. Foi com sucesso que Péricles conclamou ao enriquecimento geral quando do debate sobre o emprego das rendas imperiais para o programa arquitetural. (KAGAN, 2008, p.197)

Ainda que assinalando os dois aspectos da questão, o social e o político, Kagan é, como bom liberal anglo-saxão, mais sensível a certa dimensão de manipulação política do que à dimensão de “política social” à moda francesa.

Para concluir, digamos que as opiniões dos diversos biógrafos de Pé-ricles, no decorrer do século XX, e seu interesse pronunciado pela questão aqui abordada estão em relação direta com o grande debate que atravessou o século XX sobre o Estado de Bem-Estar Social (WelfareState ou Estado--Providência) e suas justificações. São os contextos sucessivos dos diversos autores, seus percursos pessoais, que constituem a explicação mais poderosa das análises que eles propõem sobre a realidade antiga. E como o Estado--Providência se desfaz diante dos nossos olhos, é legítimo nos perguntarmos se essas passagens dos autores antigos serão tão comentadas no século XXI como o foram no século XX. Quanto a mim, espero que continuem.

Outra questão seria saber se não há uma realidade antiga, mas apenas opiniões contemporâneas. Vasto problema. Digamos, para concluir, que houve certamente uma realidade antiga, mas que só é perceptível e sempre só será perceptível através dos olhares de uns e de outros, donde o papel primordial do trabalho historiográfico, cada vez mais encarado como uma dimensão inevitável do trabalho do historiador.

As traduções são todas minhas. Para uma análise completa e uma longa bibliografia, ver meu livro Le Présentdansle Passé. Autour de que-lques ‘Périclès’ du XX siècle et de la possibilité d’une vérité en Histoire, Besançon, Pufc, 2011.

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ThE « PUbLIc cLIEnTS » OF PERIcLES In ThE 20Th cEnTURY hISTORIOGRAPhY

Abstract: Based on a study of some contemporary biographies of Pericles, I propose an interpretation of the impact of the present on the reconstruction of the past, especially in the case of the so-called “public clients” of Pericles.

Keywords: Pericles; public clients, Ancient Greece; contemporary historiography.

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Resenha

LESSA, F. S. Mulheres de Atenas. Mélissa - do Gine-ceo a Agorá. Rio de Janeiro: Mauad x, 2010. 122p.

Maria Cecilia Colombani*

El texto que nos proponemos reseñar, Mulheres de Atenas. Mélissa - do Gineceo a Agorá de Fabio de Souza Lessa tiene una historia particular. El mismo tiene una primera edición en 2001 y una reedición revisada, ampliada y comentada en 2010. Agotada la primera edición y ante la posibilidad de la reedición, de Souza Lessa incorpora elementos de la teoría de género, que eclosionan durante la década en Brasil y aprovecha la reedición para efectuar una actualización bibliográfica.

El doctor Fabio de Souza Lessa aborda la problemática de género desde un lugar epistemológico que se inscribe en los estudios de la Escuela de Antropología Histórica. El libro está estructurado en tres capítulos, una introducción y una conclusión.

En esa arquitectura discursiva, podemos pensar en una escritura que respeta dos momentos que, a su vez, articulan en la propia experiencia inte-lectual del autor: un primer momento de sesgo constructivo, y un segundo momento de perfil deconstructivo.

Pensemos en la primera intención. En el primer capítulo, de Souza Lessa indaga el modelo de lo que canónicamente ha constituido la buena esposa en la narrativa clásica, el modelo de esposa melissa, abeja, esto es,

* Professroa Doutora da Facultad de Filosofía, Ciencias de la Educación y Huma-nidades - Universidad de Morón – e da Facultad de Humanidades - Universidad Nacional de Mar del Plata.

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el perfil de una esposa bien nascida, rastreo que de Souza efectúa tanto en la producción textual como en la producción iconográfica, siendo estas dos las fuentes que el texto pone en diálogo constantemente; diálogo que sostiene la propia tesis de la investigación propuesta: ver cómo la producción de imágenes que los vasos nos devuelven parece no coincidir, en más de una oportunidad, con el mensaje taxativo de las fuentes historiográficas o filosóficas.

En este punto de Souza Lessa trabaja con figuras canónicas de la literatura clásica como Alceste, en la narrativa euripidea, o la esposa de Is-cómaco, en la narrativa jenofonte a. Una esposa bien nacida que se tensiona entre Afrodita y Hera, entre los elementos de seducción propios de la bella Afrodita y la protección del hogar, como marca dominante de la legítima esposa del egidífero, padre de hombres y dioses. Es en este momento donde el autor pone en diálogo dos soportes materiales: la documentación textual y las imágenes presentes en el epínetron del pintor de Erétria. Y es allí donde el vaso devuelve el desvío, una primera transgresión al modelo

En el segundo capítulo, también enmarcado en esta primera tarea constructiva, el autor recorre la vida privada ateniense, desde dos andariveles vinculados entre sí, la división espacial, territorio que delinea precisamente dos espacialidades bien definidas, el espacio interno, de matriz femenina, y el espacio externo, de matriz masculina, y el comportamiento femenino. Este segundo territorio, a su vez, supone una lectura de doble horizonte, la vida cotidiana del gineceo, donde la presencia femenina se vuelve domi-nante, y el modelo de sumisión femenino que, como sabemos, representa un sema clásico de la literatura de género. El autor trabaja la espacialidad y las funciones en el marco de los procesos de subjetivación femenina.

Hasta aquí los dos primeros capítulos tendientes a plasmar la ideología dominante que parece inscribirse en la “historia oficial” dentro de los estudios de género referidos al recorte histórico que de Souza realiza.

El tercer capítulo parece inaugurar la tarea deconstructiva. Si los dos primeros representaron la consolidación de un modelo ideológico de raigambre masculina que el propio autor pone en términos de falocracia, el tercer capítulo rompe con el discurso oficial y se instala en un intersticio que la producción de imágenes parece abrir y posibilitar como discurso resistencial al logos oficial.

El capítulo se presenta desde una formulación interrogativa que re-coge el mismo espíritu del autor y del texto: “Modelo Mélissa: obediencia

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o transgresión?” reza el título, poniendo en clave interrogativa la misma construcción recorrida en apartados anteriores, quebrando con la interro-gación las certezas de un modelo que históricamente ha cabalgado sobre la producción, circulación y distribución de un discurso producido por hom-bres, desplegando con ello los juegos de poder que la misma producción discursiva pone en juego.

Las imágenes de los vasos hablan, como discurso-mensaje otro del discurso oficial y desde esa otra instalación parecen romper la canónica trabazón entre las palabras y las cosas; los vasos son el intersticio para una interpretación otra que deconstruye en su narrativa el modelo cristalizado de lectura de la división de los géneros.

En este tercer capítulo la presencia femenina se alza sobre la ausencia masculina; de Souza Lessa analiza los momentos de la ausencia de los va-rones para abordar un modelo de gestión de las mujeres que las territorializa a la posibilidad de actuar desde su misma condición de mujeres. Primera resistencia a un modelo ideológico dominante que se sustenta sobre la díada pasividad-actividad. Mujeres con capacidad de actuar que, desde esa posibilidad activa, rompen un esquema clausurado de matriz binarizante; esquema que parece haber silenciado e invisibilizado los matices que de Souza Lessa sabe buscar en el recorrido por textos e imágenes que su in-vestigación propone.

Las posibilidades de acción femenina en lo cotidiano dan cuenta de una notoria subversión del relato clásico que trabaja sobre las díadas que todos conocemos y que han servido como fuente de legitimación de un cierto tipo de lectura.

El texto de de Souza Lessa es, en este sentido, un texto político; un texto que entra en la usina productora de un modelo de consolidación de roles, el femenino y el masculino, para desbaratarlo, para hacer visibles los juegos de poder y legitimación de una cierta ideología y, desde esa misma acción, que es, a nuestro entender, una acción política, mostrar otra lectura posible; desandar los caminos de la construcción ideológica para transitar las huellas de un modelo de dominación teórica y ubicarse en otro lugar.

Un apartado para el título mismo de la obra: Mulheres de Atenas- mé-lissa do gineceo á agorá. La tarea de desmontar la ficción ideológica ubica a las mujeres en un desplazamiento que no sólo roza una cuestión territo-rial, como versa el título, “del oikos al agora”; hay algo más que una mera

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territorialidad que se modifica. Es el esquema mismo de la interpretación femenina lo que se transforma. El lugar no es meramente geográfico sino ideológico: el texto transita por la posibilidad de devolver una nueva lectura de los juegos políticos que han territorializado a hombres y mujeres a topoi clausurados y naturalizados. De Souza Lessa rastrea eso que Nietszche lla-maba Erfindung, el acontecimiento, la emergencia de un discurso-mensaje que rompe el viejo modelo sustancial y originario de comprensión de una determinada realidad. La mujer ya no es natural y esencialmente mélissa; las mujeres ya no son sólo eso o, si lo son, porque el texto no se opone radi-calmente a esa determinación, el modelo no registra la rigidez absoluta que la producción textual ofrece. Como todo acontecimiento se desliza en una lógica compleja, donde las imágenes son el motor de esa lógica que rompe los modelos interpretativos más tradicionales.

Las imágenes pintadas en los vasos no son meramente un hecho es-tético; son un acto de comunicación y el autor se ubica en el umbral de ese acto, en la espesura del mensaje, en la materialidad de aquello que reivindica, rompiendo desde su plasmación un mensaje sustancial.

De Souza Lessa se ubica en el lugar del desvío; toma un atajo tan-gencial para ver en qué sentido las imágenes devuelven la transgresión de un determinado modelo, sin caer tampoco en la simplificación de pensar que las mujeres que transgreden el modelo pertenecen al colectivo de las hetairai. El autor constata que actuar fuera de los límites del oikos no im-plica necesariamente una incorporación de las mujeres a un topos que fue el históricamente asignado.

La tarea de de Souza Lessa parece inscribirse insistentemente en dis-cutir el desnivel existente entre los ideales culturales de una sociedad mas-culinizada como la ateniense y sus propias experiencias sociales cotidianas.

Quizás la mayor riqueza del texto de de Souza Lessa sea lo que aún no dice, la abertura hacia una línea de investigación que se abre como una línea de fuga hacia otros logoi posibles. Casi una tarea que, en lo personal, me evoca las palabras de Michel Foucault a propósito de su propia obra, cuando la piensa siempre inconclusa. El mismo Foucault da cuenta de ello, a propósito de la crítica que en su momento tuvo Las palabras y las cosas: “Es parcialmente el resultado del viejo y tan enraizado vicio de juzgar un libro como si fuera una especie de construcción absoluta, perfectamente elaborada en cada uno de sus elementos. Pero como sabemos, escribo libros

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que se complementan unos a otros: el primero deja problemas abiertos, para que el segundo los trate; y a su turno, éste requerirá otro. Todo eso tampoco se da de manera lineal o continua; estos mismos textos se superponen y entrecruzan unos a otros”.

De Souza nos ha dejado un texto abierto, un modelo de abordaje teórico abierto a una exterioridad que su propia producción ha recogido en ulteriores trabajos y líneas de investigación; pero, sobre todo, nos ha dejado el legado de un espíritu de sospecha siempre fascinante: un modelo ideológico es siempre un dispositivo político que recoge las sendas embrolladas de un determinado conglomerado histórico.

El autor nos invita a la tarea deconstructiva de desmontar ficciones y el lector debe precaverse de esta trama política, de este juego de ocultamiento-desocultamiento. Lentamente sobre la superficie extendida y explicitada de un tema se desocultan otros territorios y otros recorridos de lectura. Esa es la riqueza del texto.

nota1 Foucault, M., El yo minimalista, p. 25