Sumário - perse.com.br · O Beócio Quincoélia: Sua Sina, Sua Sorte e Seu Filho / 11 O Esquecido...

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[1] Sumário Peixes sem Aquário / 2 O Beócio Quincoélia: Sua Sina, Sua Sorte e Seu Filho / 11 O Esquecido / 19 O Quarto de Kafka / 24 O Adestrador de Pulgas / 36 No Divã / 50 Laura, a Gata Laura e o Cristóvão, de Soslaio / 66 Doré / 82 A Moeda Perdida, o Anel Foragido / 85 A Coelhinha Teca / 96 O Camaleão Encalistrado / 101 Sra. N., Ph. D. em Lógica Matemática, com TOC na Co- zinha / 132 O Homem que Plantava Moscas / 148 À Mesa com os Inimigos / 153 A Esfinge / 166

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Sumário

Peixes sem Aquário / 2

O Beócio Quincoélia: Sua Sina, Sua Sorte e Seu Filho / 11

O Esquecido / 19

O Quarto de Kafka / 24

O Adestrador de Pulgas / 36

No Divã / 50

Laura, a Gata Laura e o Cristóvão, de Soslaio / 66

Doré / 82

A Moeda Perdida, o Anel Foragido / 85

A Coelhinha Teca / 96

O Camaleão Encalistrado / 101

Sra. N., Ph. D. em Lógica Matemática, com TOC na Co-

zinha / 132

O Homem que Plantava Moscas / 148

À Mesa com os Inimigos / 153

A Esfinge / 166

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PEIXES SEM AQUÁRIO

E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e mul-

tiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre

todo animal que se move sobre a terra.

— Gênesis 1.28

I

Roupa rota lava-se no tanque de casa? Ou:

roupa limpa acolhe-se no guarda-roupa do quarto

de dormir?

O homem da casa estava deitado, e dormia

gostosamente. O aparelho de TV discorria dispara-

tes de propagandas para as paredes do quarto noc-

tívago. Por volta das duas horas da madrugada, o

homem da casa desperta. Olha, escabreado para a

TV, que matraqueava incessantemente. A mulher

da casa esquecera-se de levantar e desligar a televi-

são, antes de dormir; coitada, adormeceu aí mes-

mo, nem se cobrira com o lençol de algodão, ele

pensa com seu pijama da cor de aço. Lembra-se,

por conseguinte, de seu amigo Kafka, o qual dera

uma entrevista ao Diário de Pernambuco e disse:

— Eu criava peixes ornamentais faz qua-

torze anos, porém, a necessidade de ter água na

torneira foi maior do que o amor aos peixes!

O homem da casa, também, abdicaria de

seu amor aos peixes? Durante vinte e cinco anos,

ele dedicara-se à criação de peixes ornamentais.

Isto lhe causava náusea, as lágrimas relutavam por

assomar-lhe aos olhos. Ele, num esforço maior que

o mundo, conteve-se, por um instante; depois, os

suores escorreram pela face; e, ele arrebentou o nó

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da garganta, preso até então pelo nariz troncho,

atamancado, torto do lado direito. Os soluços, irre-

freáveis e baixinhos, arregaçaram as mangas da

laringe e da faringe. (A mulher não podia sequer

sonhar que ele chorara pelos peixes. Embora não

fosse inimiga declarada, ela e os peixes sofriam

com uma coexistência pacífica.) Ele viu a maratona

de suas lágrimas, e as lágrimas atingirem o colchão

bruto e benigno.

De manhã, a mulher da casa despertara-o

com uma queixa malévola na boca dos ouvidos,

esbravejando:

— Por que você não se livra, de uma vez

por todas, desse aquário?! Você não percebe que

não temos sequer água para tomar banho! Ah!

Quanto calor!… Enquanto seus filhos morrem fri-

tos pelo sol; os seus peixes estão lá no bem bom,

todos, sem exceção, molhados e frescos! Você está

ouvindo-me?… Eu devia estar louca, casando-me

com um homem desses! — ela meneou a cabeça,

findando o seu esbregue matinal.

Há dias, meses e anos que vem censurando

o homem da casa. A mulher da casa repreende-o de

manhã, à tarde e à noite. Ela reprocha a lerdeza do

marido, a sua inércia cabulosa.

— Hoje, sem falta, eu farei o que me diz. E

quero ver, então, se você não me deixa em paz!

— Vamos ver se você vai cumprir a palavra

dada…

— Você parece com uma mosca que caiu na

sopa; e, gostou deveras, não obstante viesse a óbi-

to!…

— Na semana passada, na sexta-feira, para

ser exato, você disse que o aquário não passava do

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final de semana em pé. Você disse que ia destruir o

aquário, de tão enfezado que estava. Mas, era tudo

mentira, enganação sua, para que eu desse um

tempo ao seu juízo. Nisso, eu caí que nem boba; e

deixei-o em paz. Você cumpriu com sua parte do

acordo? Não! E, aqui, estamos nós de novo discu-

tindo pelo mesmo motivo.

— Certo; certo. Você pode deixar, eu

aprendi a lição. Com você, não se tem meio termo.

Não é, meu bem?

— Isso, isso. Comigo é: pau, pau; pedra,

pedra.

Será que a sua palavra não vale um tostão

furado? Ele fora pego pela boca, assim como peixe

pelo anzol. Agora, mais do que nunca, a sua esposa

iria transformar a sua vida numa caldeira em água

fervente. Urgia ao homem da casa tomar uma deci-

são urgente. No seu íntimo, amofinava-lhe a ideia

de livrar-se dos peixes; no entanto, outra parte de

si lutava ferrenhamente contra tal ideia.

Desenxabido, fitara seus sapatos; até

mesmo os sapatos de saírem estavam sujos, de

tanta dedicação e esmero pelo aquário gigantesco,

o qual ocupava metade da sala de estar. Aos peixes

não poderia deixar faltar a comida, nem a boa água

potável; senão, em breve, padeceriam. O cheiro de

peixe morto é… Confrangedor. A gente não sabe, ao

certo, onde enfia o nariz; pois, o fedor dos bichos

parece com o fedor de finado. Resolutamente, ele

não deixaria os nobres peixes fenecerem, só por

um capricho do cérebro mentecapto de sua consor-

te. Jamais! Aqueles peixes, eles certamente valeri-

am qualquer esforço que fosse necessário. Eram

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tão débeis, tão densos, tão dengosos; sim, tão dó-

ceis, nadando ignóbeis no aquário de verão.

Com efeito, o homem da casa lobrigou os

peixes em cardumes a navegarem pelo oceano de

vidro; os peixes reluziam suas cores vívidas, refor-

çadas pela luz incandescente do sol, e deixavam

transparecer suas lágrimas de élan patriótico pelo

aquário.

— Eu sei, eu sei! — exclamou —, isso que

vou fazer vai doer mais em mim do que em vocês,

meus filhos!

Peremptório, ergue-se do sofá, onde obser-

vava os peixes queridos, e chama o filho:

— Vamos, Pedro! Nós temos muito traba-

lho a fazer.

O menino, de uns oito anos de idade, larga

o carro com controle remoto na sala de estar, e vai

para a sala de visitas, onde o pai apreciava com

muito enlevo os peixes felizes. O deleite de sua

vida.

E que vida!

Foram vinte e cinco anos devotados ao

aquário, cuidando, dando carinho; em troca, os

peixes deram-lhe conselhos, enxugaram-lhe as

lágrimas, tornaram-se seus amigos íntimos; eles

conheciam cada expressão facial do homem da

casa. Quando ele chegava perto deles, sem dizer

uma palavra, e olhava-os com os olhos de cão pe-

dindo esmola; os peixes sabiam que o homem da

casa precisava de um aconselhamento sentimental.

Quando o homem da casa aproximava-se do aquá-

rio, sentando-se primeiramente no sofá; só com

esse gesto simplório, os peixes sabiam que ele ne-

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cessitava de alguém para arejar os pensamentos,

detonando suas lágrimas.

Molemente, o homem da casa e o menino

põem os peixes dentro de sacos plásticos com água;

empacotando-os e colocando-os na área de serviço.

Agora, o suplício iniciara. Onde arranjaria coragem

para vendê-los aos comerciantes na Rua Floriano

Peixoto?

Esmerilou os lados, com ar tão triste quan-

to um decênviro sem redigir as leis das Doze Tá-

buas. O homem da casa procurava escape, como

um ratinho ao ser perseguido pelo gato, que, ao

correr, procura desesperadamente um buraco, uma

toca qualquer, para enfiar-se lá, e só sair no instan-

te que o perigo iminente for embora. Caçou os pés

no chão; entretanto, não os encontrou.

Com denodo, pegara o seu carro, e saiu pi-

lotando da Rua Capitão Aurélio de Araújo até o

centro da cidade de Recife. No meio do caminho, ia

recordando-se o prazer estético que sentira ao

comprar o primeiro peixe.

À tarde, dois dias após a lua de mel, chega-

ra a casa, depois de um longo e tedioso dia na re-

partição pública. Portava em sua mão direita um

saco de plástico; e dentro do saco plástico jazia

exangue um peixe dourado; o peixe, com muito

esforço, navegava seus ares gratuitos na água polu-

ída. A mulher da casa, de semblante caído de raiva,

perguntou-lhe onde havia encontrado aquele bi-

chinho. Para evitar um incômodo maior, ele menti-

ra, atrevidamente mentira, e sentia-se culpado por

isso. Quiçá, se tivesse dito a verdade, não estaria

agora metido em maus lençóis. Disse que o tinha

encontrado dentro de um pneu velho, cheio de lodo

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e barata-d‘água, próximo à sua seção, onde se

acumulava uma água pútrida; apelando, aliás, para

o inconsciente maternal de seu cônjuge. A seguir,

um silêncio renhido. Ela rende a sua língua lângui-

da, e resmunga entre os dentes:

— Vá tomar banho! A janta já está pronta.

Após um intervalo de tensão entre olhares

descabidos, a mulher da casa diz, um tanto quanto

contrariada:

— Dei-me aqui o peixe, que eu vou achar

um vasilhame para ele, até você encomendar um

aquário — ela declarou com sua paciência embota-

da.

No entanto, dentro de sua alma pequena,

ela sabia que o esposo havia cometido o crime de

perjúrio; decerto, ele comprara o peixe dourado em

alguma esquina do centro da cidade; a mulher da

casa só não entendia por que ele fora tão intrépido

por um mero peixe, a ponto de mentir para ela. De

súbito, essa cena despertara em seu peito uma

ponta excruciante de ciúmes. Será que ele amava

mais o peixe do que a ela? Não! Terminantemente

não! Isso seria traição. Essas dúvidas entufavam-se

dia a dia na cabeça da mulher da casa.

O homem da casa, por sua vez, dividia-se

entre dois pensamentos. Se, por um lado, fora a

sua mulher quem o mandara encomendar um aqu-

ário; por outro, foi ela a primeira a querer desfazer-

se do objeto dos seus desejos. Ele ruminava: a es-

posa ardia de ciúmes dele para com os peixes! Não

tinha outra explicação plausível.

Enquanto dirigia sozinho para o seu desti-

no inequívoco, ele observou que os peixes estavam

desassossegados. A propósito, o homem da casa

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estacionou o carro, e devotamente olhou para

aqueles espécimes vivos, os quais se debatiam con-

tra o frágil saco plástico.

De resto, ele abriu a porta — um barbante

delgado — da casa provisória dos peixes e proferiu:

— Vocês querem morrer, é isso? Se conti-

nuarem assim, o saco vai rasgar-se todo; e aí, não

tem ninguém que possa acudi-los.

— Não, homem da casa! — esgoelaram os

peixes. — Mas, também, não queremos ser vendi-

dos no comércio, como se fôssemos relíquias ba-

nais.

— É verdade — disse ele, ainda atordoado

com a voz dos peixes falantes. — Porém, eu não

vejo outra solução. Caso contrário, a mulher da

casa é capaz de torrar vocês, vivos; isso de tanto

ódio que ela dispõe em seu coração a vocês.

— Você está certo, homem da casa. Mas, a

gente tem uma ideia muito boa. Você quer escutar?

— Claro. Por que não?

Daí a pouco, ele procura o seu fiel escudei-

ro, o Kafka, e entrega-lhe o saco plástico com os

peixes. Kafka compromete-se a cuidar bem dos

bichos aquáticos.

Quando, de mãos vazias, o homem da casa

chega a seu lar; sua consorte, literalmente, pula de

alegria. Finalmente, ela não teria mais de varrer a

sala de instante em instante; retirando a sujeira

que seu marido deixava ao dar de comida aos pei-

xes. Sua alegria era tão grande, que ela passou a

madrugada inteira, cantarolando na chuva:

— Estou livre, estou livre!

II

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Dias depois, lá estava o nosso amigo, ca-

vando um buraco desmesurado em seu quintal. E

cavava porque cavava; retirava areias, pedras, bri-

tas, tijolos, metralhas e concreto de um buraco do

tamanho do mundo.

A mulher da casa, bastante abelhuda, per-

guntara várias vezes para quê seria aquilo.

O homem da casa: calado estava; calado fi-

cava.

E cavava porque cavava — cavava por entre

areias, pedras, britas, tijolos, metralhas e concreto.

Queria porque queria chegar à raiz do problema

que persistia em luta renhida dentro de sua alma.

Pá e enxada, ele carregava-as até o grande buraco,

com as mãos calejadas, esquerda antes da direita. E

enxada vai a terra, e enxada vem ao céu, com des-

treza. Pá vai a terra, pá vem ao céu, jogando a terra

para longe do buraco de dentes arreganhados.

A mulher da casa pirou de vez, destrambe-

lhou o parafuso escorreito do juízo e tino.

Duas vezes eles malquistaram-se entre si;

ela foi dormir no quarto de hóspede, acusando-lhe

de ser um homem infiel, pois não revelara até en-

tão o segredo do buraco.

O homem da casa suportou com seus bo-

tões de paciência todas as cenas escandalosas que

ela arrumara para si; entretanto, jamais lhe revelou

o segredo do buraco. Jamais!

De quando em quando, ele objurgava a

mulher da casa:

— Curiosidade de mulher matou um gato,

quanto mais um homem como eu!

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Ela fervia chaleiras quentes, águas em ebu-

lição.

O homem da casa cavava porque cavava:

cavava por entre areias, pedras, britas, tijolos, me-

tralhas e concreto.

Certo dia, a mulher da casa estava tão en-

ferma de desespero que partiu em desabalada car-

reira à casa de sua mãe. Ela procurava assidua-

mente uma solução para as estroinices do marido.

Frustrada, recorrera à única pessoa que lhe acalen-

taria aquele sonho: o desejo incomensurável de

saber o segredo do buraco.

Para quê seria aquilo? Será que o homem

da casa não está louco, e vem minando a minha

mente com as suas maluquices? Será que eu estou

neurótica? pensava a mulher da casa.

— Mãe, o meu marido endoidou!

— Por que você diz isso, minha filha?

— Ele só quer saber de cavar um buraco

enorme, desse tamanho, ó!

— Mas, os homens são assim mesmo, cada

qual tem sua maluquice. Não vê o seu pai; pois é, o

seu pai tem aquele passatempo esquisito: ele gosta

de jogar xadrez contra si mesmo. Se você for en-

tender os homens, minha filha… então, acabará

aluada igual a eles!

— Mãe, a senhora tem razão. Mas, eu prefi-

ro o meu marido viciado no aquário e seus peixes

estúpidos do que lunático de corda e cacimba na

mão. A senhora entende-me?

— Claro, minha boneca. O tempo é o me-

lhor remédio para coração de homem. Você sabe

que sua mãe tem sempre razão.

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Ao regressar, a mulher da casa tem uma

surpresa. O seu cônjuge recebe-a com um sorriso,

de orelha a orelha. Ela fica de queixo caído, por-

quanto pela primeira vez em trinta dias, encontra-

ra-o asseado e bem trajado; não obstante, ao olhar

para o quintal, encontra um lago bastante grande,

com tartarugas, plantas aquáticas e os peixes, os

quais Kafka fielmente devolvera-lhe ao seu dono. A

mulher da casa exclamou:

— Oh, que gesto mais democrático, meu

bem!

— E o bom é que o Pedro pode tomar ba-

nho nesse lindo lago com os peixes!

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O BEÓCIO QUINCOÉLIA: SUA SINA,

SUA SORTE E SEU FILHO

Urubu; guarda desinfeliz,

Não há pau que o agasalhe:

Caso se senta no verde, seca;

Caso se senta no seco, caí.

— Versos populares

I

Sequer vocês suspeitassem... Sorte geral

que sim, azáfama que não: sem delongas. Francisco

Elias era o nome dele; por Chico Elias, também

acudia; de vulgarmente, Quincoélia Camumbembe,

o pai, em que pese sua barriga de miséria em peti-

ção das horas. A bem dizer, ele vivia em estado de

bênção. Acolá, no hiato da grota do Cantarino,

cantado, no princípio e fim; donde os urubus, de

abutres, alimentavam-no, em perpétua comunhão.

Engraçado, mas verídico: os urubus-de-cabeça-

vermelha dando esmolas a um lazarone.

Quem era ele, por nome Francisco Elias?

Um bangalafumenga profético, um sem préstimo,

estrapilho. Ele tinha um nariz adunco, de psitací-

deo; quase um papagaio humano, vis-à-vis ao perfil

de banda. E com seus um metro e cinquenta cen-

tímetros de altura, tamborete de forró; braços cur-

tos, carcomidos; manzorras encarquilhadas. Ele,

com efeito, parecia de quando em longe com um de

seus animais domésticos? — Certos homens têm

espírito de ave; outros: espírito de urubu! — vocês

comentavam às coscuvilhices. Isto são destampi-

ces! Pacovices! Ojeriza de um povinho com água de

coco na cachola — caraminholas e minhocas. Mo-

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déstia à parte, entanto, era só mera semelhança

com as alimárias aladas; enfim, não meçamos um

livro pela capa. — Ele parola com os seus pássaros

dele; como se fosse um deles, e as aves acudindo…

— à língua de víboras, vocês diziam, a dado dom

gratuito.

Patranhas! Prosagens! Eu assevero sem

vírgulas ou pontos de entremeio. Acolá, pois, esti-

ve; esteja um. O que decerto sucedia é que os pás-

saros retribuíam os óbolos do ermitão. De benevo-

lência, o Quincoélia zelava pelos ovos e filhote dos

corvos urubus. Ele ficava choco, ao nascerem os

rebentos. Ninava-os, como filhos que ainda tivera;

porquanto os outros falaram despropérios no exis-

tir dele. Por isso, na época, o refúgio no manancial

da lapa.

Ah! Vocês, insanos! Sepulcros caiados!

Deus habita de permeio aos louvores de aves?! E,

por que não em meio à osma de pássaros de rapi-

na? Deus sendo onipotente, deveras, olha o sofrer

de um ente. E este, ele, um dia foi Quincoélia.

Agora, já transfigurado Eliaquim — criatu-

ras de Deus todos são? Elucidados? — Deus é quem

redimia. Aleluias! Padeceu a triste partida.

Seu filho, seu legado, ficara, Enoelino.

Contudo, não acreditava no que falavam à boca

miúda, o zé povinho. Para o então menino, Enoeli-

no, seu pai era apenas mais um zé dos anzóis cara-

puça.

Tempo vai, tempo vem. E tudo que é vai-

dade, debaixo do sol, ora aparece, ora desaparece.

O fluxo constante das águas do rio, que não se ba-

nha duas vezes com as mesmas águas.

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II

A estridente e enfadonha campainha toca-

ra, anunciando o término da espera na sala de aula,

onde alunos rezingueiros sentavam displicente-

mente. Com os pés do tamanho do mundo, uma

cabeleireira rastafári fazia questão de mostrar o

tênis All Star, gravando o solado no espaldar da

cadeira alheia. Já uma tatuagem de dragão ferocís-

simo mascava chiclete, e, de quando em vez, asso-

prava uma bolha cor-de-rosa, ou cor de menta, ou

cor de hortelã. E ploc! — estourava a bolha, piparo-

te de agulha no desdém daquelas mentes brilhan-

tes. Enoelino surpreendera-se com o pipoco; as

gargalhadas de grasnas troaram.

— Ah! Ah! Ah! — Eles desdenhavam.

Uma bulharaça de carteiras.

Vencido pelo cansaço, Enoelino volta ao

seu repouso.

Em meio ao torvelinho de personalidades

tão diversas, lá estava Enoelino com os braços ma-

gros, cruzados sobre um calhamaço de livros e

cadernos, o jovem adormecido. As mangas de ca-

misa de cambraia puídas assinalavam que fora o

dia paleolítico; as calças cumpridas, com um ras-

gão no fundo, zelosamente remendado por sua mãe

Josefa, que era uma mulher abnegada, cem por

cento de tempo dedicado aos filhos. As olheiras

circulavam o escuro, ao redor e debaixo de sua vida

de trabalho e esforços contínuos. Três da madru-

gada, ele erguia-se da cama, dirigira suas súplicas a

Deus, como ensina o Livro Sagrado; cinco da ma-

nhã, ele tomava um café com torradas e caía no

lotação apertado que nem sardinha enlatada; sete,

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ele estava batendo o cartão de ponto. A rotina fati-

gante de ajudante de pedreiro calejava-lhe as ho-

ras. Ao meio-dia, no almoço, abrira uma marmita

fria, sabor de gelo, ele devorava arroz à grega, fei-

jão macaça e carne de charque, com os caninos

amolados pela navalha do suor de seu rosto, chu-

pado pela dor. Aos onze anos de idade, o pai perde-

ra, o qual lhe contava histórias por noites afora, e

assim ele dormia em seus braços, seguro do racio-

namento d‘água, do apagão de energia elétrica, da

falta do pão no prato, a barriga dava as horas, ron-

ronando. Dezenove horas, chegava entre acafobado

e cabisbaixo à faculdade de Medicina, seu sonho

desde que era menino, em verdade, ele gostava não

propriamente da profissão e sim das roupas bran-

cas, que os médicos usavam corriqueiramente.

Aquilo era uma insígnia de paz e sucesso, a aspira-

ção duma vida bem-sucedida com cheiro de aça-

frão-de-outono. E ali estava ele, o Enoelino, de

volta à sala animada de aula, com um professor de

inteligência mediana, o qual não aceitava críticas

dos alunos; se alguém desse um pio contrário à

matéria que lecionava, ele fuzilava-lhe com os

olhos aquilinos e dizia uma pilhéria qualquer; du-

rante suas aulas o docente tagarelava para a porta e

as janelas ouvirem sua dicção e oratória de primei-

ríssima qualidade.

— O aparelho digestivo ou digestório, ou

como queiram, sistema digestório, meus caros

alunos, é o sistema que, nos humanos, é responsá-

vel por extrair dos alimentos os nutrientes essenci-

ais às diferentes funções do organismo; tais como,

crescimento, energia para reprodução, locomoção,

etc. (Ele só pode estar zombando de mim, com sua