SUPLEMENTO CAMOES FERNANDO J. B. MARTINHO E … Afirmação do... · é utilizado mas não funciona...

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Ano XXV I 911 De 31 de Agosto a 13 de Setembro de 2005 Portugal € 2.60 Quinzenário Director José Carlos de Vasconcelos SUPLEMENTO CAMOES FERNANDO J. B. MARTINHO E JOSÉ LUIS PEIXOTO ESCREVEM SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA

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Ano XXV I N° 911 De 31 de Agosto a 13 de Setembro de 2005 Portugal € 2.60 Quinzenário

Director José Carlos de Vasconcelos

SUPLEMENTO CAMOES FERNANDO J. B. MARTINHO E JOSÉ LUIS PEIXOTO

ESCREVEM SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA

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6 em a 31 Agosto - 13 Setembro 2005

LITERATURA FANTASTICA PORTUGUESA Qu@lldo, em 1954; J.R.R. Tol1kien publicou o pri­meii.ro volume de O Se7 nhdr dos Anéis, era um mu#ldO completamente nov:o que se revelava. Ap~sar de alguns livros do mesmo género serem muito populares, como, por . exemplo, Frànken­steirz, de Mary Shelleys, ou (f.S aventuras de Júlio

. Veme, Tolkien surpreen­dia os leitores pela origi­nalidade dos povos e raças que descrevia, sobretudo pela fundamentação ba­seada em consistentés . mitologias, cosmógonías, contextos históricos e ge­nealogias linguísticas. O sucesso foi tão grande que tlem o racionamento de p~pel do pós-guerra impediu sucessivas reimpressões. Desde então, -gerações de fãs tornaram aquela trilogia uma obra de cvlto, estatuto confirmado pela·'adapt:J.ção cinematográfica do neOzelandi Peter Jackson, como a que o JL se referiu no tema 11 u lhe •I• •I ·ou na edição n. o 816, de 9 de Janeiro de 2002. Mesmo

111 est..a 11 dição literária, que no mercado anglo-sax.ónico leva à Pllbli,eaçàu tle numerosos livros por ano, têm surgido, em Portugal,

. autoresique se propõem· a imaginar universos igualmente fantásticos.

'" . São .nonna)mente sagªs

~pom vários volumes, . so~ ·· bretudo trilogias, doín çi: ·. yilizações criadas de ràiz.

. e que, quando se inicia a , narração, se vêem con-frontadas com um perigo

. (o mal) que quer dominâr tuq~:) e tOdos. Recuperando a tradição clássiça, .o es-colhido (o bém) deve ser

. encontrado, para restabe- . · lecer a paz, entre batalhas e peripécias sangrentas: Na altura em que chegam às livrarias, ou vão chegai muito em brevé, alguns novos livros dessas aven-turas intermináveis, o JL · traça o perfil dos prihci-

. pais autores ,portugueses de Literatura Fantástica, com idade entre os 19 e

43 anos, todos revelados-na última década: Filipe Faria, Inês Bo­telho, Miguel Ávila, Ricardo Pinto e; Sandra Carvalho. Fala, ainda, .

· cqm alguns editores que comentàíri 'á I:eçeppvidade do ·mercado. E; a abrir, a especialista deste généro literário, Maria do Rosário Monteiro, prof. a da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da . Universidade Nova de Lisboa, onde leccionada a cadeira de Lite- • ratura Fantástica, delimita as fronteiras deste universo, destacando as suas principais características

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III .IICI ' I I III I III 11 I

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tl'açu o pcrl1l dos princ1 autores portugues

A afirmação do impossível • MARIA DO ROSÁRIO MONTEIRO

A visita a uma livraria revela pra­teleiras e escaparates com livros de capas profusamente ilustradas e títulos do tipo: «A Saga dos ... » «As Crónicas de ... » «A Trilo­

gia ... » etc. Espadas, guerreiros, magia, parecem dominar o espaço físico e imaginário. Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. A expe­riência será análoga em livrarias de uma qualquer cidade europeia. Uma explicação simplista é a de que «Portugal acompanha as tendências europeias, está mais hodierno». Porém, a questão mais inte­ressante será tentar perceber o que é a literatura fantástica. Em primeiro lugar, como se diferencia da ficção científica, por que razão é tão lida e produ­zida neste momento. Depois, em particular, como se explica o aparecimento de vários jovens autores nacionais a escrever romances que se enquadram na literatura fantástica, com tão pouca tradição na nossa língua, e porque não se regista o mesmo na ficção científica portuguesa.

o mundo fantástico A presença do fantástico é uma constante na li­teratura desde os primórdios, assumindo formas

diferentes ao longo do tempo, ditadas pelas cultu­ras e sociedades. Neste sentido, o fantástico pode ser definido primeiramente como um modo, uma categoria meta-histórica que enuncia o que é im­possível, inverosímil ou irreal. Daí a presença de elementos fantásticos- criados pela fantasia -em obras de géneros, épocas e culturas diferentes, como, porexemplo:As Metamorfoses, de Ovídeo, O Bu"o de Ouro, deApuleio, Uma História Verí­dica, de Luciano, A Tempestade, de Shakespeare, As Viagens de Gulliver, de Swift, etc. Contudo, para além da presença de elementos fan­tásticos nestas obras, pouco mais as une. Pertencem a géneros literários diferentes em que o fantástico é utilizado mas não funciona como elemento ou característica nuclear da obra. Só quando o fantástico assume uma posição cen­tral no texto é que podemos falar de género, o que sucede nos finais do século xvm, com o movi­mento romântico. Poemas como The Rime of the Ancient Mariner, de Coleridge, La Belle dame sans Me rei, de Keats, ou contos como Der Sandmann, de Hoffmann ou ainda Der Runenberg, de Tieck, são exemplos claros da exploração de situações ou elementos fantásticos que passaram a constituir a essência da própria obra. Um estudo da evolução do fantástico desde os finais do século XVill até aos nossos dias revela que a produção se dispersou por diferentes formas (ou subgéneros,) algumas caídas já no esquecimento.

Curiosamente, uma das características do dito género reside precisamente no seu hibridismo, na capacidade de mudar de fonna, de absorver, adaptar e integrar técnicas de outros géneros. É principalmente por isto que se torna muito di­fícil encontrar uma definição suficientemente abrangente que compreenda obras que todos hoje consideramos fantásticas (como por exemplo A Metamorfose, de Kafka), mas que não incorra no erro de incluir textos em que a presença dos elementos fantásticos seja meramente pontual ou extrínseca. Em 1975, Colin Manlove propôs uma definição que ainda se mantém válida. Segundo ele, pode classificar-se como obra fantástica «uma ficção que suscite estranheza, e que contenha um princípio substancial e irredutível de mundos, seres ou objectos sobrenaturais ou impossíveis com os quais as personagens na história, ou os leitores, alcancem um certo grau de intimidade» (Colin Manlove, Modem Fantasy, 1975). A definição de Manlove tem a virtualidade de se adaptar às diferentes formas que o fantástico assu­miu ao longo dos últimos 200 anos: os românticos com o seu medievalismo revivalista; o século XIX com o fantástico de terror ou canónico (Jacques Finné, La Littérature Fantastique); o século XX com subgéneros mais recentes como o fantástico épico- na senda de O Senhor dos Anéis-, a co­média fantástica -cujo paradigma éDiscworld, de Terry Pratchett-ou ainda o pós-moderno de ltalo

Calvino, entre outros . Perante tantos «fantásticos», tão diversos, impõe­se a pergunta: o que unirá obras tão díspares na forma, no tom e no conteúdo. I;m primeiro lugar, será o facto de se desenvolverem a partir elementos fantásticos irredutíveis e incontornáveis: hoboits, espadas mágicas, mundos planos transportados por tartarugas, dinossauros falantes, tudo isto é «impossível», contrário às noções consensuais de realidade. Porém, a estrutura narrativa, o rigor da descrição, a dimensão humana dos seres imagi­nários (que potencia a identificação do leitor com os heróis) e, desejavelmente, a qualidade poética aliada a uma capacidade imaginativa imensa, tudo isto contribui para tornar o fantástico verosímil. O que acontece no mundo fantástico obedece a uma lógica identificável e tranquilizadora, logo adquire a qualidade de «possível».

Profetizar o futuro Da mesma maneira que encontramos dezenas de livros a tentar definir o fantástico, descobrem-se ou­tros tantos dedicados à mesma tarefa relativamente à ficção científica. Na realidade, as fronteiras entre os dois géneros são, por vezes, difusas. Ténues ao ponto de potenciarem o surgimento de géneros hí­bridos-como a ficção científica fantástica (science fantasy) de que acolectâneaDragonrider, de Anne McCaffrey, ou Darkover, de Marion Zimmer Bra­dley, são bons exemplos.

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-13 Setembro 2005

A diferença fundamental entre os dois géneros criados pelos român­ticos reside na natureza do mundo criado. O mundo fantástico não tem de ser baseado na realidade, nem nas suas regras, aceitando explicações e seres de carácter mágico ou sobrena­tural. Já a ficção científica, como o nome procura indicar, assenta na ex­trapolação a partir de conhecimentos «científicos» e tecnológicos. Assim, toda a ficção científica tende a defi­nir ou profetizar um futuro mais ou menos longínquo. Tal como o fantástico, também a ficção científica desenvolveu vários subgéneros. Os mais expressivos são: a ficção especulativa-caracterizada por uma maior preocupação social do que científico-tecnológica; o ci­berpunk-que desenvolve a temática da fusão homem/máquina; a hard science fiction (ficção científica ca-nónica)-com uma forte componente científica e tecnológica, e a space opera - caracterizada por desenvolver sequências de aventuras, exploradas principalmente no cinema, em séries como Star Trek, ou Babylon 5.

A chave do sucesso Se é verdade que a literatura fantástica enquanto género tem já mais de duzentos anos, também é inegável que nunca como agora se escreveu e leu tanta literatura fantástica. Provavelmente, estamos perante uma combinação complexa de causas e efeitos de natureza diversa. A literatura fantástica foi quase sempre um género marginal, mal aceite pela crítica habituada a uma escrita mimético-realista. Textos que tivessem

sociologia da litera­tura que clarifiquem outras possíveis ra­

zões para a importância da literatura fantástica desde meados do século XX.

A geração portuguesa Em Portugal, a literatura fantástica também foi sempre uma literatura marginal. O estudo deste género está ainda por fazer. Mas algumas obras sobressaem pela sua inegável qualidade literária: Antigas e Novas Andanças do Demónio e O Físico Prodigioso (1966), de Jorge de Sena, A Torre da Barbela (1965), de Ruben A., Contos dn Gin-tónico (1973), de Mário Henrique Leiria ou Um Homem sem Nome (1986), de João Aguiar. Lembremos que a tradução de O Senhor dos Anéis surgiu em Portugal apenas em 1981. Ou seja, o

Literatura Fantástica Tema 7

movimento que se desenvolveu nos países de língua inglesa a partir de meados dos anos 60 chega a Portugal, timidamente, com 20 anos de atraso. Pode falar-se de uma geração de novos escritores portugueses que se dedica à literatura fantástica - Filipe Faria, Bruno Matos, Ricardo Pinto (este de formação britânica), Miguel Ávila, ou Sandra Carvalho, para citar apenas alguns. São jovens que decerto leram literatura fantástica inglesa e norte-americana a partir dos anos oitenta, quer em tradução, quer na língua original. Isto é, a sua formação e fonte de inspiração não é a literatura portuguesa mas o fantástico inglês e norte-ameri­cano que, devido à maior rapidez das comunicações e ao desenvolvimento dos mercados editorias inter e nacional, se tomou muito mais acessível.

A ficção científica escrita por por­tugueses é, também, uma literatura marginal que, pontualmente, surge com alguma vitalidade e textos inte­ressantes. O caso dos anos 80 e 90 é paradigmático: uma editora (Cami­nho) aposta numa colecção que dê voz aos escritores portugueses e sur­gem Luís Filipe Silva, João Aniceto, ou João Barreiros como promessa de continuação do trabalho de Mário Henrique Leiria (Casos de Direito Galáctico). Mas no caso concreto deste género literário, não é possível escrever ficção científica sem alguns conhe­cimentos, mesmo que não muito avançados, de ciência e tecnologia. É da essência da ficção científica que haja uma extrapolação e uma projecção no futuro com base num determinado estádio de desenvol-vimento científico· e tecnológü:o.

Enquanto quem escreve vivelõ'num mundo que desconhece a ciência, e enquanto os cientis­tas não investirem na sua formação literária e cultural, dificilmente teremos uma ficção científica nacional que se paute pela inovação e continuidade. A pouca que se publica resulta do trabalho de escritores órfãos de paternidade nacional que fizeram a sua formação no género a partir da leitura da ficção científica inglesa e norte-americana lida, a maior parte das vezes, na língua original. E as editoras nacioanis não terão uma palavra a dizer, investindo na publicação de ficção cientí­fica portuguesa em vez de se limitarem a traduzir obras estrangeiras? e

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tonalidades fantásticas eram frequentemente con­siderados prúprios para o público infantil ou então, quando escritos por autores consagrados, encarados como meros devaneios inconsequentes do génio. Porque afirma o impossível, contraria a «verdade» aceite, o fantástico é por natureza subversivo, logo perigoso em épocas de forte pendor racionalista. · Durante o século XX, a sociedade ocidental en­frentou várias crises que puseram em questão não só concepções e formas de vida «tradicionais» como abalaram profundamente valores tidos como perenes e incontestáveis. A física, com as teorias da relatividade, quântica e do caos, estilhaçou o universo newtoniano, a psicologia descobriu o inferno no íntimo de cada ser humano, a sociedade pulverizou-se e o indivíduo perdeu referências e solidariedades que contribuíam para urna certa instabilidade emocional. É neste contexto que surge a obra de Tolkien, sem dúvida o grande responsável por tirar a literatura fantástica da marginalidade. Está-se no pós­guerra. O mundo interioriza lentamente o horror dos campos de concentração, muitos países en­frentam graves crises económicas que os obrigam a quase recomeçar do zero, as tensões políticas globalizam-se, as mulheres recusam perder a in­dependência intelectual e económica e regressar a casa, os jovens procuram uma voz própria que dê resposta às suas dúvidas. O Senhor dos Anéis impõe o seu imaginário len­tamente: seres frágeis e irreais, de mentalidade burguesa, enfrentam poderes destrutivas, inco­mensuravelmente mais fortes, e sobrevivem porque não perdem ou renegam valores como a amizade, o amor, a fidelidade, a compaixão, o respeito pelo outro e a aceitação da diferença. Num mundo caó­tico, à beira do holocausto global, são os valores do humarusmo que trazem a salvação, servida por uma capacidade poética comovente, uma imaginação fértil, uma cultura vastíssima. É esta voz estranha, por vezes trágica, outras có­mica, que se dissemina pela sociedade em crise da segunda metade do século e, lentamente, coloca a epopeia fantástica escrita por um académico desco­nhecido no primeiro plano da produção literária. Tolkien abriu o caminho que muitos trilharam depois, descobrindo novas vozes, novos mundos fantásticos, muitas vezes oferecendo apenas formas eficazes de escapismo. Estão ainda por fazer estudos de recepção e de

O filão da fantas a Os números aferem uma espécie de surto fantástico. Eragon, de Christopher Paolini, uma edição da Gailivro, já vendeu cerca de 45 mil exemplares e o segundo volume desta saga, Eldest, que sairá no prúximo dia 16 de Setembro, é aguardado ansiosamente ÍJelos tãs e, mesmo antes de ter chegado às livrarias, já está no top da Bertrand. Jonathan Strange & o Sr. Norrell, de Susana Clarke, publicado pela Casa das Letras, já vai em 16 mil exemplares vendidos. E livros como Manopla de Karasthan, de Filipe Faria ou Os Escolhidos, de Ricardo Pinto, ambos da Presença, têm vendas, respectivamente, na casa dos dez e sete mil exemplares. Isto para não falar dos clássicos, de que é bandeira O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien. A Europa-América lançou, em 1981, o primeiro volume, A Irmandade do Anel, e já fez 17 edições, enquanto que As Duas Torres e O Regresso do Rei já contabilizam 15. Ao todo, são 47 edições e centenas de milhares de livros vendidos, em números redondos, visto que a editora não divulga o volume de vendas, pois como assumem os seus responsáveis: «O segredo é a alma do negócio». Se tivermos em conta o acanhado mercado português e a crónica debili­dade dos hábitos de leitura, parece estarmos perante a configuração de um apreciável fenómeno. Afigura-se, pelo menos, a descoberta de um filão de fantasia, explorado por autores e editoras, e capaz de recrutar e encantar cada vez mais leitores, em Portugal como um pouco por toda a parte. Um encantamento a que o editor Francisco Espadinha, da Presença, prefere ainda não chamar boom, mas antes uma «forte tendência». «A Literatura Fantástica está em franca expansão entre os leitores portugueses», diz. «Trata-se de uma procura com todas as manifestações de uma forte ten­dência, mas ainda longe de esgotar todas as suas potencialidades». O editor acrescenta que a «dominante» dessa procura se prende com o facto de ser protagonizada por leitores jovens, de um leque etário «bem aberto», entre os 15 e 30 anos. Mas as razões deste crescente interesse não lhe parecem facilmente explicáveis. «Um dado certo é que, designadamente na litera­tura anglo-saxónica, já há muito que existe a chamada high fantasy, com autores de grande projecção internacional e obras de culto como O Senhor dos A!zéis», salienta. «Mas o gosto pela literatura de fantasia terá por certo outras raízes, talvez relacionadas com os sinais de mudança, com que os nossos tempos nos vêm surpreendendo. Sobretudo, na última década do século passado, com o fim dos amanhãs que cantam e o começo deste inquietante terceiro milénio». Para Carla Monso, da Gailivro, a receptividade deste tipo de livros explica-se também por uma certa «necessidade de reinventar e de quebrar a seriedade dos dias de hoje». Um objectivo conseguido até porque muitas das sagas fantásticas incidem sobre a Idade Media, com os seus mistérios, poderes e sobretudo muita acção. O primeiro caso de sucesso, nos territórios da ficção fantástica, no nosso país, terá sido porventura As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bra­dley, cujo volume inaugural foi publicado em 1987. Vai na 2J.O edição, o

que corresponde a cerca de 85 mil exemplares. O segundo tomo da lenda do Rei Artur, vista na perspectiva das mulheres, vai nos 65 mil, o terceiro em 58 mil e o quarto 55 mil. Uma saída constante, que teve picos de venda, nomeadamente, em 1997. Estabilizou nos 11 mil por ano, o que não é nada de desprezível na actividade da editora. «Quem dera que todos os livros vendessem o mesmo», diz o editor Miguel Fêzas Vital. Mas talvez a pedra de toque da actual euforia fantástica tenha sido Harry Potter, dei. K. Rowling com o seu estrondoso sucesso em todo o mundo. Francisco Espadinha, que editou o best-seller no nosso país não lhe atribui esse papel e lembra que a Literatura Fantástica tem os seus clássicos como Frankenstein, de Mary Sheller ou Drácula, de Bram Stoker. <<llarry Potter foi sobretudo, na ficção juvenil, o regresso do mundo mágico, depois de muitas décadas , de prevalência de um realismo que a pedagogia vigente recomendava», sublinha. Harry Potter figura entre os mais vendidos do catálogo de dois mil títulos da Presença. A editora tem, de resto, uma colecção de literatura fantástica, Via Láctea, que contabiliza três dezenas de títulos. Uma aposta que, segundo o editor, decorre da «actualização permanente» do projecto editorial: «A literatura fantástica tinha leitores em Portugal, mas com uma ou outra ex­cepção, não havia entre nós uma selecção das melhores obras do género num projecto de continuidade. A Presença chamou a si essa responsabilidade». E de acordo com a prúpria estratégia da editora, como sublinha ainda Fran­cisco Espadinha, como em qualquer outra colecção, há uma <~ustificada» aposta em autores portugueses. bos 33 títulos já publicado~ da Via Láctea -inaugurada justamente com Filipe Faria -nove são portugueses «Todos eles tem já um público considerável e sobretudo muito fiel: estão sempre à espera do prúximo livro dos seus escritores preferidoS>>. A Gailivro também investe no fantástico, na colecção Jovens Talentos, tanto mais que se adequa ao perfil da prúyria editora, conforme adianta a directora de rnarketing, Carla Monso: «E uma tendência entre os jovens e reconhecemos que tem urna grande riqueza em termos do imaginário e não deixa de ter qualidade literária. É portanto uma literatura que está na moda e apanha público infanto-juvenil, que é aquele em que mais apostamos». E o investimento é também na criação portuguesa. Autora da casa, a jovem Inês Botelho vai lançar, a 24 de Setembro, o terceiro livro da sua trilogia (ver figura). Já a Casa das Letras não abriu uma colecção específica. A escolha de Jonathan Strange & o Sr. Norrell ficou a dever-se não tanto ao facto de ser um «livro de fantasia pura e dura>>, mas antes «um misto de fantasia e de história, sendo que a editora pretende desenvolver, precisamente, uma linha de romance histórico, como adianta a responsável Marta Ramires. Quanto à Difel, Miguel Fêzas Vital adianta que continua a procurar um autor ou autora «comparável» a Marion Zimmer·Bradley, o que não se tem revelado uma tarefa fácil. Porque, como afirma: «há um interesse que não é passageiro e um público para este tipo de literatura, mas não é fácil encontrar bons livros fantásticos». Mas talvez tenha na manga uma verdadeira promessa.

MARIA LEONOR NUNES