Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

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XXVI Encontro Anual da Anpocs Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos embates entre natural e cultural Daniela Tonelli Manica Mestrado em Antropologia Social – IFCH – Unicamp Grupo de Trabalho: Pessoa e corpo: novas tecnologias biológicas e novas configurações ideológicas . 3 a . Sessão: Intervenções químicas no corpo 25 de outubro de 2002

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XXVI Encontro Anual da Anpocs

Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns

dos embates entre natural e cultural

Daniela Tonelli Manica

Mestrado em Antropologia Social – IFCH – Unicamp

Grupo de Trabalho: Pessoa e corpo: novas tecnologias biológicas e novas

configurações ideológicas.

3a. Sessão: Intervenções químicas no corpo

25 de outubro de 2002

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A ausência de sangramentos mensais durante o período fértil da

mulher é freqüentemente associada à gravidez ou a uma disfunção do

organismo feminino. No entanto, a supressão da menstruação passou a

integrar o universo de possibilidades de efeitos que as tecnologias

contraceptivas hormonais presentes no mercado atualmente podem

provocar. Embora isso fosse possível desde a década de 60, quando as

primeiras pílulas contraceptivas foram lançadas no mercado farmacêutico,

com a comercialização dos chamados "anticoncepcionais de terceira

geração", a ação supressora da menstruação tornou-se mais freqüente.

Pílulas anticoncepcionais como Cerazette e Gestinol 28, o DIU com

progestágeno Mirena, anticoncepcionais injetáveis como o Depo-Provera e

implantes como Norplant e Implanon,1 quase todos lançados no mercado

brasileiro há menos de dois anos2, têm sido bastante divulgados no meio

médico da ginecologia. Essas tecnologias distinguem-se das pílulas

contraceptivas tradicionalmente utilizadas pela ação mais efetiva de

componentes derivados da progesterona (hormônio feminino), cujo efeito

contraceptivo implica uma alteração do padrão de sangramentos

menstruais. Grande parte das pacientes que usam essas tecnologias

apresentam amenorréia, ou seja, a ausência dos sangramentos mensais.

Menstruar ou não menstruar passou, então, a ser mais uma questão a ser

pensada em meio às possibilidades de contracepção.

O debate sobre a supressão da menstruação existe há algum tempo

no Brasil. A discussão foi inicialmente provocada por Elsimar Coutinho,

médico e professor na Universidade Federal da Bahia, que defende

publicamente a supressão da menstruação por mulheres em idade fértil.

Segundo ele, a menstruação, ao contrário do que muitos defendem, não é

um fenômeno natural do corpo feminino, e sim social. Num hipotético

1 Ver anexo sobre Tecnologias Médico-Farmacológicas Contraceptivas, p.27.

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estado de natureza, as fêmeas não menstruariam, pois estariam

constantemente grávidas ou amamentando. A utilização de tecnologias

contraceptivas, introduzidas pelo ser humano, foi o que permitiu que a

menstruação se tornasse um fenômeno mais freqüente e, atualmente,

catalisador de várias doenças. Para ele, suprimir a menstruação não

somente não significa ir contra a natureza, como é, na verdade, benéfico.

A polêmica lançada por Elsimar Coutinho em 1996, quando

publicou a primeira edição de seu livro Menstruação, a Sangria Inútil,

retoma força com o surgimento dessas novas tecnologias contraceptivas. A

indústria farmacêutica, ao produzi-las, empenha-se também em defender

a supressão da menstruação como um benefício para a saúde da mulher.

Ginecologistas manifestam-se contra e a favor a questão nos meios de

comunicação, onde cada vez mais informações sobre essas tecnologias são

veiculadas.

Procuro apresentar, nas próximas páginas, alguns dos argumentos

utilizados por ginecologistas em diferentes contextos em que debatem a

supressão da menstruação. Utilizo para análise, neste texto, dois livros de

ginecologistas: Menstruação, a Sangria Inútil de Elsimar Coutinho e A

Inteligência Hormonal da Mulher, de Eliezer Berenstein3, artigos e fóruns de

discussão sobre o tema na internet, e a observação participante nos

seguintes congressos: 49o Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia

promovido pela Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e

Obstetrícia), em novembro de 2001, e VII Congresso Paulista de Ginecologia

e Obstetrícia da Sogesp (Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Estado

de São Paulo), em agosto de 2002, ambos realizados no ITM (International

Trade Mart - Centro Têxtil), cidade de São Paulo.

2 Com exceção do Norplant e da Depo-Provera. 3 Que, na verdade, intitula-se feminólogo e não ginecologista.

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É importante considerar, nesse material apresentado, seu contexto

de enunciação. A maioria das falas de ginecologistas apresentadas a seguir

destinam-se, na verdade, ao público leigo.4 Não se trata, portanto, de fazer

uma análise do discurso acadêmico ou científico sobre a menstruação, mas

sim de perceber como esses ginecologistas utilizam-se de conceitos que

circulam também no senso comum, como menstruação, natureza, cultura,

feminilidade ou modernidade, para falar sobre a supressão da

menstruação e tecnologias médico-farmacológicas contraceptivas.

Para analisar essa questão proposta, não interessa considerar a

menstruação como um mecanismo fisiológico, natural, sobre o qual

diferentes grupos sociais inscrevem suas regras e seu código simbólico-

cultural, como faz Françoise Héritier5, mas tomar a menstruação como um

conceito, "des-essencializá-la", a fim de perceber os diferentes sentidos que

este conceito toma nas enunciações e as relações com outras questões,

que surgem nas falas sobre menstruação.

A menstruação, como veremos, é freqüentemente associada ao

conceito de natureza feminina. O argumento de Elsimar Coutinho, em

oposição a essa associação, fundamenta-se na atribuição da menstruação

ao domínio da cultura. Considerar natureza e cultura, como sugeriu

Claude Lévi-Strauss6, seja como um par de oposição binária

universalmente operante na mente humana, seja como categorias teórico-

metodológicas para explicar a diferença entre seres humanos e os outros

animais, resultaria em perder de vista como esses conceitos estão

envolvidos nestes embates sobre noções e concepções relativas à

menstruação e às tecnologias médico-farmacológicas.

4 Com exceção de algumas atividades realizadas nos congressos, que são predominantemente um espaço de discussão mais estrita ao campo da medicina / ginecologia. 5 HÉRITIER (1998). 6 LÉVI-STRAUSS (1982)

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O material desta pesquisa contém exemplos de diferentes sentidos

de natureza e cultura em jogo nas falas sobre a menstruação, mostra

como o próprio conceito de menstruação é ambíguo em relação à oposição

natureza x cultura7, e como a associação com feminilidade e modernidade

é colocada em questão de acordo com a posição tomada pelo sujeito que as

enuncia em relação à polêmica.

Não se pode, portanto, afirmar que natureza e cultura têm

significados fixos. Elas são, como sugere Carol MacCormack, palavras

polissêmicas, que desde o século dezoito apresentam-se com significados

ambíguos e contraditórios. A autora critica a utilização da metáfora da

natureza como verdade literal: a metáfora, segundo ela, está baseada em

um significado figurado, e não literal, de uma palavra, portanto seu

significado pode ser modelado ou estendido através da metáfora. Mulheres

menstruadas, exemplifica a autora, têm ciclicidade assim como a natureza,

entretanto são selvagens e indomáveis. Mas a selvageria pode ser também

um significado implícito da masculinidade. Porque a metáfora está baseada

na natureza polissêmica e aberta das palavras, ela tem um grande potencial

para contradição e para "re-descrever a realidade" e não deve ser tomada

como verdade em nenhum sentido literal.8

Marylin Strathern, no artigo No Nature, No Culture: The Hagen Case,

publicado neste mesmo volume, defende que não existe algo como natureza

e cultura, (...) nenhum significado único pode ser dado a natureza e cultura

no pensamento ocidental; não há uma dicotomia consistente, apenas uma

matriz de contrastes.9 A autora critica a apropriação dessas categorias para

explicar todo e qualquer caso etnográfico encontrado. Strathern enxerga,

nessa atribuição, uma intenção ideológica de produzir uma dicotomia

(natureza x cultura) a partir de um conjunto de combinações (todos os

7 Como já apontou Cecília Sardenberg em SARDENBERG (1994). 8 MacCORMACK (1980:09) 9 MacCORMACK (1980:177)

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significados que natureza e cultura têm em nossa cultura, ricos em

ambigüidade semântica). A lógica desse processo intencional seria a

mesma que cria oposição a partir da diferença. 10

A relação entre natureza e cultura da forma como é pensada pelos

modelos ocidentais implica, para Strathern, um processo (a natureza pode

se transformar em cultura, por exemplo) que envolve tensão e a atribuição

de hierarquias entre esses conceitos. A idéia de que a cultura é superior à

natureza e de que pode – por conta disso – domá-la, presente em algumas

das falas que se seguem, seria um bom exemplo de como esses conceitos

estão envoltos em uma relação que não se limita à diferença, mas que

produz, de acordo com uma determinada intenção, uma oposição

hierárquica.

Levando-se em conta todas essas questões, torna-se necessário

considerar natureza e cultura como categorias êmicas. É preciso relativizar

esses conceitos, considerá-los como construtos culturais constituídos num

processo histórico, e ainda em constituição, com todas as suas inflexões e

(re)significações, percebendo quais hierarquias e oposições são construídas

a partir desses conceitos e de que processo social essas oposições estão,

na verdade, falando. Seguindo a sugestão de MacCormack, deve-se

considerar que as idéias de natureza não estão livres de valores.11

Os sujeitos que aqui falam sobre a supressão da menstruação

utilizam-se, ao mesmo tempo, de elementos que surgiram inicialmente em

outros campos de saber – biologia, primatologia, antropologia ou história –

e de argumentos que falam de uma certa moralidade feminina, discutindo

questões como a necessidade da fertilidade da mulher, a importância ou

conseqüências da adoção de técnicas contraceptivas, a possibilidade de

optar por continuar ou não sangrando mensalmente.

10 MacCORMACK (1980:179) 11MacCORMACK (1980)

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Várias autoras têm, de alguma forma, se preocupado em demonstrar

como a produção de conhecimento – principalmente do conhecimento

sobre o corpo feminino – está fundamentada por pressupostos

historicamente datados, por mitos construídos com intenções ideológicas

específicas e por relações de dominação e subordinação.12 Nesse sentido,

cabe lembrar o que diz Joanna Overing ao defender que o conhecimento

"puro" nunca está separado do conhecimento moral ou "prático"13, e

procurar perceber, em meio às falas sobre a supressão da menstruação,

como operam alguns desses conceitos e intenções.

***

Um dos ginecologistas pioneiros nessa discussão e bastante

conhecido pela apologia da supressão da menstruação é Elsimar Coutinho,

médico e professor titular de Medicina e Reprodução Humana na

Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Em 1996,

Coutinho lançou a primeira edição de seu livro Menstruação, a sangria

inútil. Desde então, tem aparecido freqüentemente na mídia para falar

sobre a supressão da menstruação. Recentemente, em agosto de 2002,

esteve no VII Congresso Paulista de Obstetrícia e Ginecologia, em São

Paulo, debatendo com outros ginecologistas a questão É necessário

menstruar?.

Após dedicar seu livro a Tereza, que dividiu com ele a sua

experiência de viver sem as regras impostas pela natureza14, Elsimar

Coutinho propõe a suspensão da menstruação como benefício para a saúde

12 CORRÊA (2001),CORRÊA (1994), HARAWAY (1991), ISRAEL (1993), ROHDEN (2001), SCAVONE (1998), MacCORMACK (1980), OVERING (1985), STRATHERN (1997 e 1992) 13 OVERING (1985:17) 14 COUTINHO (1996) Ênfase no original.

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da mulher, para as mulheres para quem o sangramento menstrual traz

evidentes malefícios, como endometriose, miomatose, menorragia, tensão

pré-menstrual, anemia e outras condições associadas a menstruação15 e

para quem a menstruação não passa de um ‘incômodo’.16

Para defender a supressão da menstruação, Coutinho diz buscar

desestranhar uma herança cultural que domina o comportamento das

mulheres há mais de 2000 anos, segundo a qual a menstruação estaria

associada à juventude e à feminilidade. Seu principal argumento se

resume nas primeiras páginas da introdução:

Na realidade, tudo indica que no passado remoto, quando as

mulheres começavam a ovular depois dos 18 anos e morriam antes

dos 30, a menstruação era um fenômeno raro. Vivendo em bandos,

sempre grávidas ou amamentando até a morte, não poderiam mesmo

experimentar as menstruações repetidas, possíveis apenas quando

mulheres e homens férteis vivem separados. Somente quando o

homem começou a se organizar socialmente é que surgiram as

condições que deram à mulher a oportunidade e os meios de

sobreviver sem ser alvo da ação reprodutora dos homens. Os filósofos

gregos, que estabeleceram as bases do racionalismo ocidental,

analisaram a menstruação à luz da lógica e concluíram que se

sangrar periodicamente não fazia mal às mulheres, devia fazer bem.

A caracterização do sangramento periódico, tido como fenômeno

benéfico por Hipócrates, o Pai da Medicina, e Galeno, o Príncipe da

Medicina, corroborada pela execução da sangria pelo médico como

recurso terapêutico insuperável, assegurou à menstruação uma

15 A endometriose é uma doença que afeta muitas mulheres e que decorre da presença, na parte externa do útero, de tecido semelhante àquele que reveste o seu interior. Mesmo se localizando na parte externa do útero, esse tecido sofre influências das oscilações hormonais que ocorrem mensalmente nos ciclos menstruais. À semelhança do que ocorre com o revestimento interno do útero, o tecido da endometriose cresce no transcorrer do mês e sangra na menstruação (nas suas ‘regras’). Extraído de um folheto produzido pela Zêneca Farmacêutica do Brasil Ltda, chamado “Entendendo a Endometriose”. A miomatose caracteriza-se pela incidência de miomas uterinos e a menorragia consiste na perda excessiva de sangramento menstrual.

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conotação positiva, não apenas útil, mas indispensável à saúde da

mulher. 17

Segundo Coutinho, a utilização da sangria como tratamento médico

inspirou-se na observação do sangramento mensal das mulheres e na

atribuição de um valor positivo a este sangramento. Embora a sangria não

seja mais utilizada pelos médicos, esta conotação positiva da menstruação,

surgida na Grécia Antiga, continua operando em relação à menstruação:

[...] apesar do declínio da sangria terapêutica por absolutamente

inútil, a menstruação incorporou-se de tal modo à cultura no mundo

inteiro que, com o advento da pílula anticoncepcional, que dava pela

primeira vez à mulher a oportunidade de não menstruar, a maior

preocupação da indústria farmacêutica e dos médicos foi desenvolver

um regime de administração que assegurasse às usuárias a

ocorrência de um sangramento mensal que simulasse uma

menstruação.18

Sustenta-se, segundo ele, entre os médicos, a idéia de que

menstruar é bom e faz bem. Essa concepção teria condicionado os

laboratórios farmacêuticos a produzir pílulas anticoncepcionais o mais

parecidas com o ciclo menstrual possível, preocupando-se, principalmente,

com a manutenção dos sangramentos mensais. Com isso, buscava-se a

maior aderência das pacientes aos métodos propostos. Um método

contraceptivo hormonal que provocasse a suspensão dos sangramentos

menstruais seria, em função dessa conotação positiva da menstruação,

questionado. Coutinho tem enfrentado essa resistência às tecnologias de

supressão da menstruação desde a década de 60, quando descobriu, na

Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, a ação da

medroxiprogesterona para a contracepção e a inibição da menstruação.

16 COUTINHO (1996:17) 17 COUTINHO (1996:18)

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Além de apontarem para a conotação positiva da menstruação, os

argumentos contra a disseminação desse medicamento estariam pautados,

segundo ele deixa transparecer em seu livro, pela associação da

menstruação à feminilidade. O seguinte episódio, relatado por Coutinho,

evidencia como a utilização de hormônios incita uma discussão sobre

feminilidade.

Elsimar Coutinho diz ter sido acusado pela AMERJ (Associação

Médica do Rio de Janeiro) de que a utilização de um derivado da

progesterona associado a um derivado da 19-nor-testosterona

transformaria as mulheres em homens. Segundo ele, o presidente da

Sociedade Brasileira de Endocrinologia, Thomaz Cruz, respondeu à

acusação ensinando aos acusadores que a 19-nor-testosterona, ao contrário

da testosterona, que é o hormônio masculino, não tem nenhum efeito

masculinizante e que não menstruar não masculiniza a mulher. Atualmente,

segundo Coutinho, apesar da enorme resistência ao produto, que culminou

numa CPI no congresso norte-americano, essa droga é usada por mais de 10

milhões de mulheres que se beneficiam dos longos períodos livres de

menstruação. 19

A utilização de um hormônio considerado como masculino (a

testosterona) ou mesmo de um derivado desse hormônio pode significar,

para alguns, a transformação de mulheres em homens. Este é, de fato, um

dos argumentos de Eliezer Berenstein em seu livro A inteligência hormonal

da mulher.20 Segundo o autor, (...) uma porta sombria foi aberta. A

aplicação, muito em voga, dos hormônios androgênicos no corpo feminino,

para aumentar a libido ou suprimir a menstruação é a grande moda. Mas a

idéia de interferir no ciclo menstrual – que a princípio parece ser apenas

uma solução prática para um ‘probleminha’ – pode ter conseqüências

18 COUTINHO (1996:19) 19 COUTINHO (1996:20) 20 BERENSTEIN (2001)

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desastrosas. O uso clínico de hormônios masculinos, principalmente a

testosterona, e sua ação no organismo da mulher devem ser avaliados, com

sensatez, respeitando as metas da vida.21

Uma das metas da vida da mulher a que se refere o autor é a de,

seguindo os ciclos mensais lunares em concordância com o cosmos, ter

seus ciclos férteis mensais: (...) interferir ou brecar essa ciclicidade é o

mesmo que alterar a feminilidade em relação ao cosmos. Transformar

mulheres em homens – pois é isso que acontece quando doses maciças de

testosterona são aplicadas para interromper o ciclo menstrual – é uma

atitude tão machista quanto dizer que mulheres não podem ter cargos de

chefia numa empresa por serem diferentes dos homens. 22

Boa parte do livro de Berenstein é dedicada a demonstrar a relação

entre o período do ciclo menstrual em que se encontra a mulher e o seu

comportamento. Ele defende que, para usar a inteligência hormonal, é

necessário saber reconhecer esses períodos, e então programar ou adiar

atividades condizentes com eles. A ciclicidade hormonal e comportamental

diferenciam, para o autor, a mulher do homem:

É a ciclicidade propiciada pela variação hormonal, a cada mês, uma

das responsáveis pela maior adaptabilidade e criatividade inerentes ao sexo

feminino, tais como cuidar da casa, dos filhos, e do trabalho, tudo

praticamente ao mesmo tempo. (...) Não quer dizer que, para usufruir de

todas as vantagens proporcionadas pela múltipla ação hormonal, é preciso

menstruar como fenômeno de eliminação de sangue, mas sim ciclar-se

mensalmente, apanágio da feminilidade.23

Debater a utilização de hormônios na contracepção e/ou a

supressão da menstruação implica, também, falar sobre

21 BERENSTEIN (2001:12) 22 BERENSTEIN (2001:13) 23 BERENSTEIN (2001:25 e 26)

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masculino/feminino, ou sobre masculinidade/feminilidade. Além da

utilização de hormônios masculinos em alguns desses medicamentos ser

entendida como perigosa a ponto de transformar mulheres em homens, a

ausência dos sangramentos menstruais representa uma intervenção na

feminilidade, regida por determinados hormônios e marcada pelo seu

caráter cíclico.

Argumentando a favor de uma relação entre a feminilidade e a

menstruação e defendendo que o desejo pela supressão da menstruação

seria a manifestação de uma rejeição psicológica das mulheres à sua

feminilidade, o ginecologista Nelson Soucasaux, ao responder uma questão

sobre a utilização ininterrupta da pílula anticoncepcional para suprimir a

menstruação num fórum de discussões sobre saúde e sexualidade na

internet, reprova a utilização desses contraceptivos:

Há (...) um motivo não-médico que também vem sendo usado para

reforçar este novo "modismo" de abolir as menstruações através do uso

ininterrupto da "pílula" : é a rejeição psicológica que algumas mulheres

manifestam por este sangramento uterino cíclico que é a menstruação -

mesmo quando assintomático e inteiramente normal sob o ponto de vista

médico. Aqui trata-se de uma inadaptação de um grupo de mulheres à um

dos traços mais característicos da fisiologia feminina - traço este que é a

principal manifestação externa do típico caráter cíclico da natureza da

mulher.24

A menstruação, para esses médicos, é parte de um ciclo natural à

mulher, parte do que dá à mulher sua feminilidade. Recusá-la equivale a

recusar a própria natureza. E a natureza é algo bom, benéfico, com que

não se deve mexer. É através da inversão dessa associação da

menstruação ao domínio da natureza que Elsimar Coutinho pretende

justificar a sua supressão. Seu argumento principal sustenta-se na

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afirmação de que a menstruação não é um fenômeno natural, e sim social,

produto da civilização. Antes da organização social, as fêmeas viviam sob a

constante influência da ação reprodutora dos machos, o que impedia-nas

de ter ciclos férteis não fecundados e, portanto, de menstruar. Para

sustentar essa argumentação, Coutinho lista, no primeiro capítulo de seu

livro, as formas com que a menstruação teria se apresentado no mundo

animal, na pré-história, no alvorecer da civilização, na Grécia Antiga,

durante o Império Romano, na Idade Média, na Europa feudal, na

Renascença e no Século XX. Durante sua apresentação na sessão "ponto e

contraponto" É necessário menstruar?, realizada no VII Congresso Paulista

de Ginecologia e Obstetrícia, Coutinho investiu grande parte do tempo

para demonstrar à platéia como a menstruação seria um fenômeno

incompatível com o que ele entende como vida natural (o oposto de

qualquer forma de civilização).

Evidentemente, como ele mesmo reconhece em seu livro, seu

argumento está pautado por uma noção de evolução, que o permite fazer

uma analogia entre as fêmeas humanas e primatas. A distinção entre o ser

humano e os primatas aos quais Coutinho se refere está na passagem de

um estágio de natureza para a cultura ou civilização: para um evolucionista

darwiniano, nada mais lógico (...) do que buscar no comportamento sexual e

reprodutivo dos macacos o modelo do comportamento sexual dos

antepassados do homem e da mulher modernos, já que no passado viviam

(certamente como ainda vivem os primos peludos do homem) completamente

sem a influência da cultura e dos costumes da civilização.25

Coutinho defende que a menstruação só ocorre quando as fêmeas

primatas estão em cativeiro, onde ficam isoladas dos machos: vivendo em

liberdade (...) torna-se difícil encontrar uma fêmea de qualquer uma das

24 SOUCASAUX (2000) 25 COUTINHO (1996:23)

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espécies de macaco menstruando, porque quando não estão grávidas estão

amamentando e tanto numa condição como na outra não menstruam.26

No alvorecer da civilização surge, segundo Coutinho, a oficialização

do casamento: para atender aos interesses da sociedade, a liberdade

sexual praticada na vida selvagem já não era permitida. O acasalamento

obedecia a regras preestabelecidas.27 O casamento ocorria muito cedo e a

mulher, então, entrava num ciclo de gravidez e amamentação que a fazia

menstruar poucas vezes ao longo da vida.

Somente no século XX os mecanismos hormonais dos ciclos

reprodutivos são descobertos e conhecidos e se torna possível, então,

suprimir espontaneamente a menstruação. Segundo o autor, somente

depois da década de 50 surgiram os anticoncepcionais que, pela primeira

vez na história da humanidade, davam às mulheres a alternativa de

controlar o seu ciclo menstrual, prolongando-o, encurtando-o ou

simplesmente abolindo-o, por períodos curtos ou longos. Porque a grande

massa de mulheres do mundo inteiro não passou a se valer desse recurso

para deixar de menstruar é a pergunta-chave que este livro tenta

responder.28 Em sua fala durante o VII Congresso Paulista, Coutinho

enfatizou duas questões que possibilitaram a persistência da menstruação

entre as mulheres contemporâneas: a utilização de tecnologias de

contracepção e a utilização de tecidos e artefatos que permitem que as

mulheres menstruadas não sejam percebidas como tais pelas outras

pessoas.

A menstruação, para Elsimar Coutinho, é produto de um

investimento cultural ou social no controle do processo de reprodução, este

sim entendido (e enfatizado por ele) como natural. No congresso, além de

exemplificar seu argumento através de hipotéticas situações do mundo

26 COUTINHO (1996:25) Ênfase no original. 27 COUTINHO (1996:28)

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natural em que mulheres menstruadas estariam destinadas à morte (como

ao atravessar um rio cheio de piranhas ou ao aproximarem-se de um urso

faminto), Coutinho apontou ainda o uso de perfumes e sabonetes como

uma forma que a civilização encontrou para controlar a sexualidade,

reduzindo a atratividade natural do macho aos odores da fêmea, que

dificultaria bastante uma convivência social civilizada. Esses exemplos e

argumentos, recebidos com risos por uns e indignação por outros,

suscitaram respostas que também colocavam em jogo a oposição natural x

cultural. Lucas Viana Machado, o outro ginecologista encarregado de

debater a questão com Elsimar Coutinho, lembrou-o de que, embora

enfatizasse que a menstruação não é natural, em seu livro Coutinho

sugere possibilidades de suprimir a menstruação fundamentadas em

procedimentos cirúrgicos ou tecnologias contraceptivas hormonais, ou

seja, em procedimentos não naturais que, como tais, devem ser

questionados. Embora o argumento de que em um hipotético estado de

natureza as mulheres não menstruariam possa até ser aceito, Lucas

Machado pareceu, com esse colocação, representar o interesse de outros

ginecologistas da platéia em debater as tecnologias utilizadas para a

supressão da menstruação, e de um outro ponto de vista: considerando,

por exemplo, resultados de pesquisas científicas sobre seus riscos e efeitos

colaterais.29

Em resposta a argumentos como esse colocado por Lucas Machado,

e apesar de defender que a menstruação não é natural, Coutinho incluiu,

na edição publicada nos Estados Unidos e Europa pela Oxford University

Press e na nova edição de seu livro em português, um capítulo dizendo

28 COUTINHO (1996:44) 29 Na verdade, afirmo isso tendo como base não somente a forma como Lucas Machado e outros ginecologistas reagiram à exposição de Elsimar Coutinho, mas comparando sua fala com outras palestras, cursos e conferências deste congresso e do 49o Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia, realizado em novembro de 2001, em São Paulo. Nesses eventos, não se discute diretamente "a oposição natureza x cultura no corpo feminino", e sim os benefícios e riscos das tecnologias disponíveis, divulga-se resultados de pesquisas com determinadas tecnologias, revisam-se metodologias de diagnosticar e tratar determinadas patologias. Nesse sentido, a apresentação de Coutinho nesse debate foi absolutamente dissonante.

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como é possível ficar naturalmente sem menstruar. Por natural, neste caso,

entende-se a não utilização de tecnologias hormonais. Essas formas, no

entanto, limitam-se à gravidez e lactação – não interessantes para as

mulheres que buscam a contracepção – e à diminuição brutal da massa

gordurosa no organismo com a prática intensiva de esportes – inviável

para a maioria das mulheres.

Um outro uso desse sentido de natural foi feito durante a conferência

TPM e Dismenorréia: Abordagem Natural, apresentada por Célia Regina da

Silva no 49o Congresso Brasileiro. Nesta conferência, a médica

recomendou dietas nutricionais para pacientes com tensão pré-menstrual

(TPM) e cólicas menstruais (dismenorréia) e ressaltou a prática de

exercícios físicos e os tratamentos de acupuntura como eficientes no

tratamento desses sintomas. A abordagem natural opôs-se, aqui, aos

tratamentos comumente sugeridos pelos ginecologistas, fundamentados

por medicamentos (hormonais ou não).

Isso revela, novamente, que algumas das oposições colocadas em

jogo nessa discussão são natural : artificial :: corpo feminino : tecnologias

médico-farmacológicas. No entanto, essas oposições não representam

dicotomias fixas. A própria menstruação pode ser pensada como natural

ou artificial, dependendo do contexto em que ela é enunciada. Se o

sangramento não resulta do ciclo menstrual normal da mulher e sim do

uso de contraceptivos hormonais, ela pode ser pensada como artificial,

como aponta Nelson Soucasaux na resposta sobre pílulas

anticoncepcionais já citada anteriormente.

(...) tornam-se necessárias algumas explicações acerca do

funcionamento dos contraceptivos orais. A "pílula", que é o melhor e o

mais seguro de todos os métodos contraceptivos, age através de um

bloqueio reversível da função ovariana, por interferir no eixo

hipotálamo-hipófise-ovários. As menstruações que vêm após cada

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série de uso dos anticoncepcionais orais não são menstruações

naturais, visto que o ciclo ovariano encontra-se abolido durante o seu

uso. Elas são artificiais, devendo-se à queda nos níveis dos

estrogênios e progestogênios sintéticos contidos na "pílula", queda

esta causada pela interrupção no seu uso ao final de cada série de 21

comprimidos. Isto imita o que ocorre com os hormônios ovarianos

naturais ao final de cada ciclo fisiológico.30

As tecnologias contraceptivas hormonais são entendidas como uma

intervenção humana no funcionamento normal ou natural do corpo

feminino. A pílula contraceptiva, mesmo quando tomada com o intervalo

de 7 dias, produz um efeito de artificialidade no corpo feminino. No

entanto, essa artificialidade não é tão evidente para as pacientes como

quando a pílula suprime os sangramentos menstruais.

Um fórum de discussão na internet sobre a questão da supressão da

menstruação foi organizado por Isabel Vasconcellos, apresentadora do

programa Saúde Feminina, exibido diariamente pela Rede Mulher de

Televisão. Após receber em seu programa alguns ginecologistas para falar

sobre temas relacionados à saúde da mulher, a apresentadora

disponibilizou na sua página da internet uma discussão sobre a Polêmica:

menstruar ou não? 31, em que questiona a relação entre comportamento e

hormônios, menstruação e feminilidade, e apresenta respostas dadas por

alguns desses ginecologistas às suas questões.

A idéia de que a menstruação é benéfica, normal e natural aparece

na fala do ginecologista César Eduardo Fernandes:

A menstruação representa para as mulheres que elas estão bem e que

o seu organismo está funcionando normalmente.

30 SOUCASAUX (2000) 31 VASCONCELLOS (2001)

Page 18: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

18

Quando não existem transtornos relacionados à menstruação, penso

que elas devam seguir o seu curso natural.

Quando, ao contrário, a menstruação se faz acompanhar de

problemas, me parece muito útil a sua interrupção.32

Sérgio dos Passos Ramos, ginecologista, enfatiza a associação entre

a natureza e a menstruação, e pensa as tecnologias de supressão da

menstruação como uma interferência do ser humano na natureza, que

como tal tem efeitos com os quais o ser humano (a mulher que opta por

suprimir a menstruação, no caso), tem que arcar.

Menstruar ou não menstruar ?

Um ditado oriental diz que a água corre da montanha para o mar e

que é possível mudar o sentido da corrente do rio, mas... não por

muito tempo.

É possível evitar que a mulher menstrue. Os medicamentos

necessários irão contra a natureza e, sempre que se faz isto, há um

preço a pagar.

Resta perguntar para as mulheres que não querem menstruar se

aceitam os efeitos colaterais desta decisão. Mudança de

comportamento, acne, alguns "quilinhos" a mais, e outros que podem

aparecer.

Na minha opinião somente as mulheres que não podem de maneira

alguma menstruar, entre elas as com endometriose

(www.gineco.com.br/endometr.htm), cólica menstrual intensa

(http://www.gineco.com.br/colica.htm), hemorragias e anemias, ou

com atividades profissionais especiais é que não deveriam menstruar.

32 FERNANDES (2001)

Page 19: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

19

Para as outras há terapias hormonais e não hormonais não tão

drásticas que diminuem a menstruação e os incômodos da mesma.

Uma coisa é verdade: Todas as vezes que o homem alterou a natureza

ele pagou um preço. Resta saber se as mulheres querem pagar este

preço.33

A única médica mulher a declarar sua opinião nesse fórum de

discussão foi Maria Helena Pacheco, diretora do IML. A menstruação surge

novamente relacionada à feminilidade e, apesar de incômoda para algumas

mulheres, como algo desejado por elas. O que para outros ginecologistas

era entendido como natural – os ciclos menstruais – é, por ela, pensado

como algo bolado por Deus e que, por isso, não deve sofrer interferência

desnecessária.

Minha opinião sobre menstruar ou não:

Do ponto de vista psicológico - Para cada mulher, existe um tipo de

incômodo, assim sendo, para muitas mulheres o incômodo é ficar

"incomodada", porém, para muitas, o incômodo é exatamente não ficar

"incomodada". Muitas mulheres, sentem-se menos femininas se não

menstruarem, sentem-se tensas, menos desejadas, envelhecidas, etc.

Outras preferem não menstruar, porém, só se houver um motivo

relevante, como uma viagem com o namorado, umas férias na praia.

Só que querem voltar a menstruar assim que voltarem. O que

realmente pode incomodar as mulheres são as cólicas pré menstruais,

mas até isso muitas consideram o maior charme, inclusive para seus

companheiros. Dificilmente vamos encontrar uma mulher que não

queira menstruar.

33 RAMOS (2001)

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20

Do ponto de vista hormonal - Considero que os ciclos hormonais da

mulher são muito bem bolados por Deus, só devendo ser tratados com

hormônios os ciclos irregulares que alguma paciente apresente.

Do ponto de vista econômico - não sei o que é mais barato se os

absorventes ou se os hormônios inibidores de menstruação.

Enfim, como dizem os franceses "na medicina e no amor, nem jamais,

nem sempre".34

Eliezer Berenstein – que como vimos está preocupado com a

supressão da ciclicidade feminina – argumenta que a criação dessas

tecnologias contraceptivas de supressão da menstruação é, na verdade, a

re-edição de uma cruzada antimenstrual, produto de um interesse

masculino por uma mulher que não menstrua, que já teria sido promovida

em outros momentos da história da humanidade.

A contracepção e a supressão da menstruação, sua conseqüência

mais radical, seriam formas de adaptar a mulher aos interesses

econômicos masculinos de produção de capital. Nesse mundo, não cabe

uma mulher que tenha um filho atrás do outro (pois é necessário, depois

de tê-los, amamentá-los), que tenha variações constantes de humor,

cólicas menstruais que a impossibilitam para o trabalho uma vez ao mês, e

assim por diante. Além disso, para Berenstein, a menstruação seria uma

forma encontrada pela mulher para repelir o homem, evitando a

aproximação sexual deste durante os dias em que está sangrando. A

invenção da supressão da menstruação seria uma resposta masculina à

esse mecanismo de defesa ou repulsa criado pelas mulheres. Segundo ele,

estamos querendo fazer uma simiesca sempre sexualmente disponível, ou

uma simiesca que não tenha ciclicidade para ser uma boa funcionária, uma

boa operária (...) por trás de tudo isso existem forças inconscientes mais

34 PACHECO (2001)

Page 21: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

21

diversas, tem os interesses religiosos, econômicos para que se tire essa

função menstrual.35

As tecnologias médico-farmacológicas que provocam a supressão da

menstruação são pensadas por Berenstein como tentativas de controlar a

natureza, personificada na mulher através de sua capacidade reprodutora:

(...) ainda hoje, em pelo século XXI, é possível observar novas

manifestações da "cruzada antimenstrual", que utiliza agora uma

nova linguagem científica. (...) A mídia que aborda temas ligados à

saúde vem sendo bombardeada com argumentos sobre a inutilidade

da menstruação, com a mesma voracidade que os religiosos fanáticos

tiveram ao atribuir-lhe os poderes maléficos.

A indústria de ferramentas cirúrgicas para a remoção do órgão

feminino "responsável pelo menstruar" vem-se aprimorando. Técnicas

videolaparoscópicas retiram o útero, deixando mínimas evidências.

Medicações (hormonais ou não) atingindo o objetivo de não menstruar

são comemoradas com entusiasmo. Enfim, busca-se o domínio da

razão sobre a natureza. É preciso dobrar a natureza aos pés dos

homens para mostrar que somos superiores aos deuses que nós

mesmos criamos. Por trás desta guerra, nada mais há do que uma

cruzada tão antiga e preconceituosa quanto foram as outras. 36

Esse controle da natureza pela razão é feito, principalmente, através

das tecnologias contraceptivas. A contracepção é o problema central em

questão, cujo desenvolvimento criou a possibilidade de suprimir a

menstruação. Os argumentos de Berenstein e Coutinho fundamentam-se,

neste caso, nesse mesmo pressuposto. O que os diferencia é o valor que

atribuem a um ou outro termo dessa oposição. Enquanto Eliezer

Berenstein questiona a dominação da natureza, paradigma do bem, da

35 Entrevista realizada durante o 49o Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia. 36 BERENSTEIN (2001: 62-63)

Page 22: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

22

feminilidade e do equilíbrio, Elsimar Coutinho defende a utilização da

contracepção para mais um fim: aliviar os desconfortos dos sangramentos

menstruais e prevenir as doenças que pudessem, a partir deles, se

desenvolver.

A relevância da questão da contracepção, perceptível através do

grande investimento por parte dos laboratórios farmacêuticos na produção

de anticoncepcionais, e no empenho dos ginecologistas em relação às suas

pacientes para que elas adotem uma metodologia contraceptiva, revela a

importância da fertilidade e a maternidade nas discussões sobre mulheres,

e a ambigüidade inerente aos conceitos que são empregados nessas falas.

Revela, ainda, como sugerira Strathern, o quanto esses conceitos são

utilizados de acordo com a intenção ideológica dos sujeitos em relação à

questão da maternidade e da contracepção.

Embora a necessidade e a importância da contracepção sejam

enfatizadas por alguns médicos, a ampla utilização de métodos

contraceptivos e o conseqüente aumento do número de sangramentos

menstruais ao longo da vida da mulher são vistos como causas de doenças

(câncer de mama, endometriose, miomas do útero, anemia, TPM) que,

segundo alguns médicos, não eram tão freqüentes antes da introdução

desses métodos. Este é, ainda, um dos argumentos usados por Elsimar

Coutinho em seu livro (ele dedica um capítulo exclusivamente às doenças

decorrentes da menstruação, chamadas catameniais). Ao relacionar

menstruação a doença, o autor efetua uma inversão na sua chamada

conotação positiva. A menstruação passa a ter um caráter nocivo, maléfico

e insalubre. Assim, justifica-se com mais propriedade a sua supressão.

Vejamos o que diz o médico José Bento de Souza.

Menstruar ou não Menstruar, eis a questão

Cerca de 450 menstruações é o número aproximado que a mulher

moderna possui durante sua vida. Nossas bisavós menstruavam no

Page 23: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

23

máximo 1/3 disso. Tinham a primeira menstruação mais tarde (ao

redor dos 16 anos), casavam logo depois e engravidavam em seguida.

Amamentavam durante mais 1 ano e seguiam com outra gravidez até

formarem famílias numerosas, talvez para compensar as altas taxas

de mortalidade infantil da época. Por isso, antigamente, a mulher

passava por longo tempo sem sangramentos.

O estilo de vida e o comportamento sexual da mulher atual mudou

completamente. Apareceram métodos anticoncepcionais eficientes, a

mulher entrou no mercado de trabalho além do que as meninas dos

países industrializados começam a menstruar por volta dos 12 anos,

adiam a maternidade para depois dos 30 anos, têm dois filhos no

máximo e que são amamentados por poucos dias (37 em média no

Estado de São Paulo).

O organismo feminino não ficou indiferente a estas mudanças e o que

presenciamos hoje é um aumento de algumas doenças como câncer de

mama, endometriose, miomas do útero, anemia, TPM e outras.

Será que vale a pena ficar menstruando? Faça essa pergunta a você

mesma e converse com seu médico sobre o assunto. 37

Nem todos os ginecologistas se arriscam a afirmar com tanta

veemência a positividade da supressão da menstruação e a sua utilização

como preventiva dessas doenças em questão. Soubhi Kahhale, professor

associado e livre docente da USP, apesar de não ser contra a supressão da

menstruação em alguns casos, resguarda-se de recomendá-la para

pacientes que sentem-se bem menstruando.

Quem tem que decidir se quer ou não menstruar é a própria mulher.

Isso é o mais importante. O que há de bom nisso é que hoje temos esta

opção para oferecer à mulher.

37 SOUZA (2001)

Page 24: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

24

É como querer saber se é melhor o DIU ou a pílula, para algumas

pacientes é o DIU, para outras é a pílula.

É natural que aquelas mulheres que "sofrem" com a menstruação, tem

cólicas fortes e ou sangramento abundante que acarretam anemias ou

ainda na perimenopausa devem optar por não menstruar. Por outro

lado aquelas que se sentem melhor menstruando, que ciclam e sentem

conforto com isso devem continuar menstruando.

Em relação à saúde da mulher, ou seja se é benéfico ou não, ou seja

se protege ou não contra determinadas doenças como a endometriose

ou algum tipo de câncer, faltam ainda evidências científicas para tal

afirmação.38

Kahhale acha bom ter essa opção para oferecer à mulher que desejar

não menstruar. Paulo Cézar Fernandes David atribui esse desejo à mulher

moderna, e defende a utilização das tecnologias que suprimem a

menstruação como um avanço da medicina e um direito da mulher.

É claro que cada vez mais torna-se uma realidade o desejo da maioria

das mulheres que tenho contato em minha clinica diária sobre a

oportunidade de poder não menstruar. (...) minha opinião é que as

mulheres tem esse direito sim.

O que ocorre muitas vezes é que na hora H de usar um método para

não menstruar, aí entra a dúvida e o medo de estarem fazendo algo

contra a natureza , incorreto, até impuro pois ainda há a idéia

absurda de que a menstruação vai subir para cabeça ou coisa

parecida. Pelo amor de Deus isso não existe !!

A mulher moderna cada vez mais quer ficar sem a menstruação e

cresce a cada dia em nossos consultórios muitas mulheres com esse

propósito procurando informação com o médico ou trazendo

Page 25: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

25

informações para o médico via internet, artigos e informações de

outras mulheres que já fizeram esta opção.

A opção por não menstruar em minha opinião é um avanço da

medicina que pode estar ao alcance da maioria das mulheres desde

que realmente elas assim desejarem.39

Como pode-se perceber nessas falas, mudanças no estilo de vida e

no comportamento sexual são atribuídas ao mundo moderno, o desejo de

não menstruar é um desejo da mulher moderna, em oposição à mulher que

existiu num antigamente em que não se conheciam os mecanismos

hormonais que regulam a fertilidade feminina, em que as técnicas

contraceptivas não eram produzidas por indústrias farmacêuticas e não

eram tão eficientes, em que as mulheres tinham muitos filhos, não

trabalhavam, e tinham sua sexualidade controlada pelos pais ou maridos.

Modernidade aparece, aqui, como o contexto em que se encontram

as mulheres contemporâneas, cujas preocupações distinguem-se daquelas

de antigamente. O mito da mulher moderna é empregado para mostrar o

quanto essas tecnologias contraceptivas são, em função desse contexto,

necessárias e desejadas.

Um conceito antropológico muito interessante para pensar essas

falas sobre a supressão da menstruação é o de re-presentação, empregado

por Daniel de Coppet.40 O autor descarta o uso de separações como

pensamento e ação, dizer e fazer, idéia e valor, que fundamenta algumas

análises na Antropologia Social, e defende que o conceito de representação,

ao qual usualmente atribui-se o sentido de substituição, seja – pelo

contrário – entendido como algo que torna presente novamente. Com isso,

De Coppet busca incorporar ao conceito uma dimensão de ação social. A

38 KAHHALE (2001) Ênfase minha. 39 DAVID (2001) 40 DE COPPET (1992:71)

Page 26: Supressão da Menstruação: uma discussão sobre alguns dos ...

26

re-presentação é um ato social criativo que torna-se conhecimento

confirmado ao mesmo tempo em que constitui um fato-valor abarcado por

um todo social particular.

Para além do consultório médico, a questão da contracepção é re-

apresentada no senso comum através da discussão sobre a supressão da

menstruação e, embora esse debate não se restrinja ao campo acadêmico

da medicina ginecológica, são os ginecologistas que, de uma posição

socialmente caracterizada como de autoridade, falam sobre ele. Nestas re-

apresentações entram em jogo não somente concepções sobre

menstruação, feminilidade e contracepção, mas também as interações

sociais que tornam essas questões possíveis e socialmente valorizadas,

protagonizadas por ginecologistas, representantes dos laboratórios

farmacêuticos, comunicadores e mulheres (enquanto pacientes).

Em função do contexto em que essas interações sociais ocorrem, isto

é, de como essas questões são re-apresentadas, dizer que a menstruação é

social tem um efeito diferente do que, por exemplo, quando enunciado por

Roussel no século XVIII.41 Nas falas aqui apresentadas, este argumento é

usado para dizer que menstruar não é necessário; e mais, que a

menstruação pode ser suprimida por tecnologias contraceptivas hormonais

disponíveis no mercado. Da mesma forma, enfatizar a menstruação como

intrínseca à natureza feminina coloca essas tecnologias em dúvida.

Aproveitando-se da ambigüidade desses conceitos e metáforas, os

sujeitos enunciam o seu veredicto sobre a supressão da menstruação,

associando menstruação tanto a feminilidade, maternidade e natureza

feminina, como a modernidade, contracepção, e/ou doenças catameniais.

Perceber a configuração desses conceitos nessas falas e a hierarquia que

lhes é atribuída é, portanto, fundamental para entender essas re-

apresentações da menstruação e do corpo feminino.

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27

ANEXO: ALGUMAS TECNOLOGIAS MÉDICO-FARMACOLÓGICAS

CONTRACEPTIVAS

Cerazette – Pílula contraceptiva fabricada pela Organon que contém

o derivado da progesterona (progestágeno) desogestrel (75mcg). Cada

cartela contém 28 comprimidos, que devem ser tomados

ininterruptamente (sem a pausa de 7 dias). Grande parte das pacientes

entra em amenorréia.

Gestinol 28 – Pílula contraceptiva fabricada pela Libbs, que contém

um derivado estrogênico, o etinilestradiol (30mcg) combinado com um

progestágeno, o gestodeno (75mcg). É chamado COC – Contraceptivo oral

combinado. Cada cartela contém 28 comprimidos, que podem ou não ser

tomados ininterruptamente, dependendo da necessidade ou vontade da

paciente. A pausa de sete dias provocará um pequeno sangramento. A

paciente pode, por exemplo, programar 3 ou 4 sangramentos anuais.

Mirena – DIU com progestágeno (levonorgestrel). Chamado pela

Berlimed (Schering) de SIU "sistema intra-uterino" ou "endoceptivo".

Consiste em uma estrutura plástica em forma de "T" com um cilindro que

libera diariamente 20 mcg do progestágeno levonorgestrel. Tem duração de

até 5 anos.

Implanon – Implante produzido pela Organon que consiste em um

bastonete de 4cm de comprimento por 2mm de diâmetro que contém o

progestágeno etonogestrel. É introduzido pelo médico na porção média do

braço não dominante da mulher. Tem duração de 3 anos. Além da ação

contraceptiva, pode provocar amenorréia.

Norplant – Implante que consiste em seis cápsulas de do

progestágeno levonorgestrel. É introduzido na nádega, braço ou antebraço.

41 apud ROHDEN (2001:108)

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28

Tem duração de 5 anos. Além da ação contraceptiva, pode provocar

amenorréia.

Depo-Provera – Injetável produzido pela Pharmacia, composto por

150mg de acetato de medroxiprogesterona. A injeção, aplicada em

farmácias, tem duração de 3 meses (1 mês para ampola de 50mg). Provoca

amenorréia. (Contracep é o variante produzido pela SigmaPharma).

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