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Jaílton O Coveiro Covarde

Um conto de Suzo Bianco

Jaílton O Coveiro Covarde

São Paulo – SP - 4/8/2011

Esta obra não pode ser reproduzida, nem comercializada sem a autorização direta e explícita de Suzo Bianco Evangelista vide a lei que protege os direitos intelectuais e artísticos do autor. Para

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velho terno preto que seu pai lhe doara antes de partir para o além não lhe caía tão bem, mas servia para a ocasião. Afinal de contas, não era uma reunião de negócios numa empresa executiva na Avenida Paulista ou algo do tipo. Quem

dera o fosse... Pois mesmo sabendo ser um incompetente em negociatas confusas e de honestidade questionável adoraria ter um daqueles empregos bem remunerados. Era o que imaginava... Sonhos.

O E foram estes sonhos desconexos e insensatos que o acomodaram ao passar dos anos. Não queria perder toda sua juventude em livros de estudos e faculdades chatas. Embora, se soubesse, teria feito uma forcinha. Mas, afinal de contas, quem ele estava querendo enganar? Não teria chance nenhuma. Aqueles cargos de executivo eram para o clero capitalista e para pessoas bem afortunadas. Era o que pensava... As faculdades eram caríssimas para serem cursadas por um filho de pedreiro nordestino recém chegado ao Sudeste. Era negro, pobre e feio... Feio. Quanto a isso não tinha muita certeza. Como dizia seu pai antes de morrer? ‘Pra cada panela há uma tampa!’ Isso. Era isso mesmo. Ele acreditava neste ditado... Uma pessoa sem dinheiro e sem amigos importantes contava apenas com seus sonhos. Não deveria ter vergonha de sonhar. Nunca. Os sonhos eram seu combustível, a sua esperança. Não só a dele, mas a de muitos como ele que não tinham a vida e o destino como um aliado respeitável neste quesito. Agora ele ali, caminhando calmamente e falsamente arrumado como um ‘Doutor’, mas pensava na amarga realidade. Não que tivesse medo do lugar ou pavor pelo que iria começar fazer, mas a gente nunca imagina um dia trabalhar num cemitério. Um jardim cinzento e verde repleto de andarilhos esquisitos. A vida nos prega cada peça. Fazer o que? Jaílton esfregava as mãos e os dedos enquanto seguia seu caminho pela calçada suja de terra na pequena Santa Cruz, uma cidade humilde e bem cuidada no sul do estado de São Paulo. Estava preocupado em não sujar a calça limpa e bem passada que usava, e muito menos seus sapatos recém engraxados, por ele mesmo, frente ao albergue que morava de uns meses para cá. Uma pousada na verdade... A Pousada de Santa Maria de Deus. Dona Joana, Jô, para os mais chegados, era a dona do estabelecimento. Dona Jô além de proprietária, era a gerente, zeladora, mestre-cozinha e agiota. Simplesmente uma empresária de pequeno porte da cidade. Uma senhora de olhos azuis e cabelos brancos sempre curtos e limpos, baixinha e gorda como uma típica nona.

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E para a sorte de Jaílton, ela também era simpática e muito compreensível. Caso não fosse, ele estaria enrascado. Desde que chegou à pousada de Santa Maria, o rapaz de 32 anos pagara somente dois meses e já estava devendo cinco. Não conseguia juntar dinheiro para pagar as mensalidades do quarto em que ocupava. Ocupar seria a palavra mais adequada no seu caso, pois seu canto se resumia numa cama, que já estava lá, numa escrivaninha, que também já estava e um micro armário com um cheiro de naftalina quase insuportável que fora a primeira coisa que adotara. Mas os móveis velhos eram de madeira vermelha e resistente, pelo menos. Baratos, mas nenhum fora comprado por ele... O que era de propriedade de Jaílton ali não tinha muito valor real. Um micro aparelho de TV preto e branco, algumas peças de roupa, uma escova de dente pouco usada, mas bastante tempo não reciclada, uma escova de pentear, um sabonete velho e já trincado que era mais usado como abrigo pelos pentelhos rebeldes do que pelo dono, um maço amassado de cigarros vagabundo, uma caixa de fósforos com sete palitos, um pacote de biscoito de maizena já consumido pela metade e uma sacola de plástico para carregar suas ‘riquezas’ por onde necessitasse. E necessitaria em breve se as coisas continuassem indo como estavam. Se não fosse a simpática dona Jô... Estava desempregado por um bom tempo, vivendo de bicos e biscates mal remunerados. Era o suficiente apenas para comprar seus cigarros e cachaças. Vícios malditos... Mas era o que o ajudava a segurar as pontas. Não se matava de beber, era só pra acalmar os nervos, como ele mesmo dizia aos conhecidos e vizinhos da pousada. O vício mesmo era o tosco tabaco. Dona Jô tinha um bom empreendimento ali. Só não ficava rica porque, de fato, não queria. Não era materialista, amava Jesus e só. Era o bastante para ela, uma mulher velha, com seus 53 anos duros, mas saudáveis. Era feliz à sua maneira e se contentava com pouco, não que isso a fizesse se acomodar numa rede e dormir o dia inteiro, pelo contrário. Sentia-se viva e desperta para o mundo cuidando da pousada, com muito sacrifício erguida e fundada. E mais ainda mantida com muito amor e atenção, até hoje. O lugar não era um hotel cinco estrelas, porém confortável. Uma casa térrea e comprida. Localizada numa paralela da rua principal de Santa Cruz. A rua era de paralelepípedos e subia para o norte. Sua pousada era referência. A entrada, enfeitada por uma modesta e bem cuidada tabuleta sobre o jardim, convidava o turista a ter noites agradáveis e calmas. Os quartos – concentrados num comprido corredor de lajotas cor de vinho - eram pequenos, mas limpos. Havia apenas dois banheiros para os veranistas, bem no final do corredor ao lado da porta que ligava a cozinha. Era o bastante para se manter. O custo de vida em Santa Cruz não era exorbitante. Uma sala grande, equipada de sofás com armações de palha tratada e pantufas caseiras era bem arejada por janelas grandes que se mantinham o máximo de tempo possível abertas. Geralmente era onde os turistas e moradores gostavam de passar a tarde conversando. Jaílton adorava a pousada. Porque se sentia num palácio. Não tinha planos de ir embora tão cedo, mesmo que a necessidade exigisse isso. Estava acostumado com muito menos que aquilo de onde veio. Nativo de uma região miserável, no sertão da Bahia, conhecia bem a ausência de conforto. Morou numa casinha de sapé e teto de barro.

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Passou fome... Passou sede... Tempos ruins de verdade. Coisa que o mais pobre morador de cidade grande nem se quer imaginava ser possível. Pois é... E havia gente que o perguntava se não queria coisa melhor na cidade. A resposta era sempre a mesma: Claro! Por mais que Jaílton tivesse uma origem humilde e miserável não significava que se contentava com pouco e fosse um completo ignorante. Vivia chorando as mágoas pelos cantos, quando se via sozinho, sonhando por uma vida melhor. Um dia conversou com Dona Jô sobre o assunto... Ela lhe deu bons conselhos. Foi quando soube do cemitério. - Olha Jaílton. Você é jovem e forte. Pode trabalhar na cidade grande e ganhar dinheiro como quer. Não acho que tenha motivos para se lamentar tanto assim... - Mas nunca vou ficar rico... – Estavam reunidos na cozinha naquela ocasião para se esconderem do frio noturno. - E pra quê você quer ficar rico homem de Deus? Saúde e felicidade já não são o bastante? Deveria se dar por satisfeito por Jesus lhe dar braços resistentes e uma boa cabeça... - A senhora pode ter razão. – Sentou-se numa cadeirinha numa das mesas postas para o almoço das cozinheiras. Ela preparava um cafezinho. – Mas estou lhe devendo cinco meses e não sei como vou te pagar isso... - Você vai me pagar uma hora, não vai? – Jô disse isso, mas não acreditava que fosse possível tão cedo. - Vou sim. Claro... Mas quando? Não gosto de dever ninguém dona Jô... Não mesmo. Meu pai, quando me trouxe da Bahia, me ensinou muita coisa e pôde me sustentar o suficiente pra eu terminar a escola... E uma das coisas que nunca vi meu pai fazer foi dever alguém. Era pobre como eu, mas honesto e direito. Não quero envergonhá-lo... – Suspirou. – Mas estou. Isso me deixa triste às vezes... Tenho que arranjar um emprego. E logo. - Você vai arranjar um bom emprego Jaílton, e logo, Jesus vai te ajudar. – Ela também sentou à mesa com a garrafa térmica na mão. – Sou velha e mesmo assim ainda não desisti de minha vida. Trabalho praticamente sozinha aqui e mesmo assim não desisto. Nunca. É difícil. Mesmo com ajuda das meninas e do senhor José, tenho que reunir forças todos os dias para não desanimar. Tenho fé que você ainda vai encontrar o que merece... - Deus te ouça dona Jô. Deus te ouça. Já estou quase desistindo. Se não fosse a senhora entender minha situação, não sei o que faria... Já pensei em ir embora para São Paulo, mas tenho medo. - Jaílton... – Ela pegou a garrafa de café quente e derramou a bebida fervendo na xícara que separara minutos antes. Depois de encher empurrou para seu amigo e inquilino. Após sorver um pouco do café de sua própria xícara prosseguiu. – Não tenho certeza absoluta, mas acho que sei um lugar que precisam de alguém para trabalhar de zelador... - Mesmo? – Nem tocou no café. Mais por distração do que por desfeita. – Onde?

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- Antes preciso ter certeza de duas coisas... Se a vaga não é só um boato e se você realmente está disposto a trabalhar. Por favor, não se ofenda, mas é que não posso indicar alguém que não vá ficar muito tempo no cargo... - Que isso dona Jô! – Finalmente tomou um gole do café quente, queimando a língua. – Claro que estou interessado em trabalhar. Onde é que seja... Não vou pra lugar nenhum, se aqui tiver lugar para trabalhar... Claro que não. Vou ficar. Gosto daqui... - Desculpe-me, mas foi justamente o que eu não queria que pensasse. – Ela sorriu um pouco constrangida. – É que geralmente as pessoas não gostam destes lugares... Uma besteira, mas eu tinha que ter certeza. - Como assim...? É uma vaga de zelador num p... - Não. Não... – Riu ela. – Nada disso Jaílton. Não é nestes lugares não. Sei que você é um homem direito e por certo eu não lhe indicaria pra um lugar destes. - Então? Onde é? - Num cemitério. – Ela parou e deixou que seu amigo absorvesse melhor a ideia. – No Cemitério Joaquim aqui perto. Sabe onde fica? - Cemitério? – Estava pasmo. – Puxa - Tinha medo de cemitério... E agora, o que faria? – Cemitério? - Jaílton? – Jô notou sua surpresa. – Sabe onde fica? - Sei sim... Sei sim dona Jô. – Parou quieto por um instante. Pareceu pensar. Deu mais um lento gole no seu café preto. – É dentro ou fora? - Como assim ‘dentro ou fora’? – Dona Joana quase riu. - Do cemitério. – Se controlou. Não queria que dona Jô percebesse que tinha receios de cemitérios. ‘Receio’ sim, porque homem que é homem não tem medo. Tem receio. – A vaga é pra cuidar dele dentro ou fora? Dona Joana não conseguiu segurar desta vez. Gargalhou. O homem estava com medo. Deus do céu, um marmanjo com medo de cemitério era hilário demais. - Você está brincando comigo não é mesmo Jaílton? – Provocou ela, ainda dando risinhos descontrolados. – Não pode estar falando sério. É claro que é dentro. Como se pode cuidar de um lugar pelo lado de fora homem de Deus? – E voltou a rir. A cena de Jaílton andando rente ao muro branco do cemitério do lado de fora, fazendo cara de mal, era engraçadíssima. - Ué! Só achei! – Foi o que conseguiu dizer. As risadas nada contidas da dona da pousada lhe deixaram constrangido. - Não Jaílton. – Tentava parar de rir. – A vaga é pra zelador ‘interno’ do cemitério... – Parou de vez com as risadas. Encarou o homem e tentou ser o mais séria possível. – Você tem medo de cemitérios Jaílton? Pensou em mentir. Mas não ia lhe adiantar nada, mais cedo ou mais tarde ela saberia. - Um pouco sim... - Pára com isso meu rapaz. – Riu. – Um homem deste tamanho com medo do que já se foi? Você tem que ter medo dos que ainda estão. Estes sim podem lhe fazer algum mal de verdade. No cemitério você só vai encontrar silêncio e muita folha de árvore para varrer. - Tem razão... Mas mesmo assim tenho meus receios... - Pára com isso! A vaga está lá, creio eu, e é um ótimo emprego. Principalmente para você Jaílton. Está desempregado e sem dinheiro. Com o salário de coveiro... - Coveiro? Não era zelador?

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- Coveiro... Zelador... Como preferir. O que quero dizer que o salário não é ruim e vai dar pra você pagar suas dívidas no começo e manter-se ‘bem’ morando nesta cidade. Além disso, você terá a opção de morar lá. - Como é? Morar no cemitério? Nem morto... Trabalhar num lugar destes até vai, mas morar lá. Nem morto! - Bem que morto você não terá escolha não é meso? – Riu. - Tem razão. Tem razão! – Riu junto. – Mas não sei se vou me acostumar com a coisa. De qualquer forma... Qual seria o horário? - Do que? - Do serviço. Eu ficaria no cemitério de que horas a que horas? - A sim... – Pensou. – Não sei Jaílton. Isso será o empregador que irá lhe dizer... - Certo. – Pensou cabisbaixo. Queria escapar daquela situação. Tinha que trabalhar... Mas num cemitério? Caramba. Não tinha escolha, teria que aceitar. Dona Jô já lhe fizera o favor de lhe dizer a respeito do emprego, que tipo de homem seria ele se negasse? Pelo menos iria ver do que se tratava em detalhes.– E quando posso ir até lá ver a vaga? - Amanhã te digo. Vou falar com o senhor José, foi ele que me falou da vaga. – Ela só não disse o jeito que lhe foi passada a informação. O Senhor José era um velhinho que ajudava Joana a cuidar da pousada. Concertava vazamentos, tratava do jardim e outras coisas. Ele comentou rindo sobre a vaga: ‘Quem iria querer trabalhar naquele cemitério dona Joana?’ E ria muito... - Quando eu souber dos detalhes, vou te procurar e avisar quando poderá ir... Está bem assim? - Está sim dona Jô. E obrigado pelo favor... – Tomou o último gole de sua xícara e se levantou. – Agradeço mesmo. De coração. Como eu já disse... Se não fosse a senhora... - Seria outra pessoa! – Comentou também se levantando. – Você é uma boa pessoa Jaílton. Sempre terá alguém pronto a lhe estender as mãos e te ajudar. Confie em Jesus, que todos que estão por ele, terão uma boa recompensa no final... - Amém dona Jô. A senhora que é realmente uma boa pessoa. Ajudando um perdido como eu que lhe deve dinheiro... Ainda vou lhe recompensar por tudo que está fazendo por mim. - Se quer mesmo me recompensar Jaílton, faça por si mesmo. Se cuide e já me fará um grande favor e me deixará muito contente. Gosto de ver meus amigos bem, isso que importa. - Obrigado mais uma vez. – Jaílton se despediu sorridente. Ainda tinha receios... No fundo estava torcendo para que a vaga no cemitério já estivesse preenchida. Não lhe agradava a ideia de ser coveiro. – E boa noite. - Boa noite Jailton! Dona Jô se retirou para seu quarto depois de lavar as xícaras.

2. Ele bem que quis desistir, mas no dia seguinte, Joana lhe informou das boas novas. A vaga realmente existia e estava à espera dele.

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Droga! E ali estava ele todo emperiquitado e cheio de receios. Fazia um calor desgraçado que o fazia suar muito. O terno já fedia a suor e poeira quando chegou ao Cemitério Joaquim. Quem havia inventado o terno devia tomar uns tapões... Aquilo era desconfortável – não lhe passou pela cabeça que geralmente aquela vestimenta era feita por encomenda – e no calor esquentava quando no frio esfriava. Uma besteira de roupa. Só a tinha vestido porque sabia bem que entrevistas de emprego deviam ser feitas daquele jeito. Droga! Coveiro? Diante da porta de ferro gradeada, que estava trancada a cadeados, parou e espiou para dentro. O lugar até que era bonito. O terreno era inclinado e repleto de árvores robustas e criptas cinzentas. Algumas - as dos mais pobres - eram simples e pintadas de cal, mas não estragavam a beleza bucólica do jardim. Havia um caminho cimentado que levava da entrada à casa do zelador nos fundos, do lado de uma improvisada capela branca e outras trilhas que seguiam entre os túmulos. Bem encostado ao muro, tanto na parte de dentro quanto na de fora, saliências largas na horizontal eram usadas para serem depositadas velas e santos, geralmente de gesso, dos visitantes que ali passavam. Algumas das velas ainda estavam acesas, como bem notou Jailton. Segurando as grades do portão, e com o rosto apoiado entre elas como se quisesse atravessá-las, pensou se iria mesmo entrar ou não quando foi surpreendido por um latido estridente. Graças ao susto, escapou de uma dolorosa mordida do vira-lata preto e branco que latia rente ao portão do lado de dentro. Maldito cão! Droga! Coveiro? Cachorros? O miserável cão era ridiculamente pequeno, mas parecia bravo como uma jaguatirica. Quem seria seu dono? - Pois não? – Perguntou um homem mal encarado e barbudo vestindo trapos pouco apresentáveis. Dirigia-se a ele logo atrás do cachorro escandaloso e caminhava preguiçosamente. Tinha um sotaque caipira carregado e aparentava uns cinquenta anos de idade mal vividos. – Em que posso ajudá-lo? – O cachorro calou-se. -Oi! – Se recompôs Jailton. – Estou aqui para uma entrevista de emprego... - Ah, sei... – O homem o olhou de cima a baixo e deu de ombros. – Sobre a vaga de coveiro?! - Isso mesmo... – Sorriu enquanto o recém chegado destrancava o portão com uma enorme chave pesada meio a um malho repleto de outras. Suas mãos eram sujas e sua blusa azul, estava quase cinza. – Quando o vi, achei que era um ‘adervogado’ ou um agente funerário. – Escancarou as grades enquanto o cão farejava algo interessante nas calças de Jailton. – Venha, pode entrar! - Ele não morde? – Perguntou olhando assustado pro enxerido canino. - Claro que morde! – Riu o homem. – É um cachorro, se não servir nem pra morder eu o jogaria fora! Mas pode ficar tranquilo que ele só morde gente ruim! Você não é ruim, é? - Não! – Se acalmou. – Claro que não.

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- Então me acompanhe, por favor, vou te levar até o ‘escritório’! – Riu e coçou a cabeça quando falou a última palavra. – O senhor está muito ‘chic’ vestido deste jeito, não precisava, ainda mais nesta lua danada que está fazendo! Lua... Era um sol. SOL! Que mania besta deste povo de comparar aquele sol escaldante com a lua... Nunca viu semelhanças. - É que é bom se vestir bem para uma entrevista, sabe como é, né? - Não sei não! – Já se encaminhavam para a casinha branca. – Mas se você está dizendo, deve ser! Cara chato. Tomara que não seja seu companheiro de trabalho. O homem entendia tudo ao pé da letra e não achava graça em nada além do que ele mesmo ‘profanava’. - Posso te fazer uma pergunta? – Arriscou Jailton enquanto examinava melhor os arredores. – Quem é o senhor? O zelador atual? - Sou sim senhor! Atual e definitivo! Como é que é? Pensou sobressaltado Jailton deixando escapar um ‘uh?’. - Por que? - Porque achei que a vaga fosse justamente para zelador do cemitério... - E é! - Agora não estou entendendo mais nada. - É que, além de não dar conta sozinho... – Girou os dedos para grifar o que dizia. – Pretendo visitar minha família em Abaité. Preciso que alguém cuide do lugar pra mim por alguns dias... Não posso deixar tudo isso aqui para as moscas. - Entendo! – No fundo até tinha ficado feliz. Então aquela tortura não seria por muitos dias. – É um trabalho temporário! - Né nada! É fixo! – O homem, que não apresentara o nome até agora, parou e abriu a porta de madeira pintada desleixadamente de branco da casinha e abriu espaço para que o visitante entrasse primeiro. – Mas ficará sozinho por dez dias até eu voltar. - Dez dias? – Assustou-se Jailton parando e bloqueando a entrada do anfitrião. – Tudo isso? - Tudo isso? Eu acho é pouco pra visitar minha gente. – O homem o empurrou gentilmente para que ele mesmo pudesse entrar e apontou um sofá velho e já muito esburacado. O cachorro, que os seguia, passou rápido e pulou para um confortável canto do móvel. Já sabia a causa dos rasgos no estofado. – Não liga pra ele, é bonzinho! - Não ligo não. – Acomodou-se no mesmo sofá, enquanto o barbudo sentava numa poltrona de couro marrom à sua frente e o cachorro o encarava como se Jailton fosse a coisa mais incomum que vira em toda sua vida canina. – Então, a vaga é pra zelador... - E coveiro se precisar que seja. – O senhor estendeu a mão. – Sou Pablo e cuido daqui a 36 anos. – Jailton a apertou e disse seu próprio nome. Sentia-se constrangido como se tivesse na casa de alguém. E estava de certo modo. Não duvidaria que Pablo dormisse ali mesmo. O lugar se resumia na salinha, no banheiro pequeno e mal tratado e só. Só mesmo. – O lugar não é lá aquelas coisas... – Comentou, notando o olhar crítico do candidato a vaga. – Mas dá pro gasto. Aqui tem um radinho! – Que descansava encima da única mesa da sala que ficava perto da porta. – E lá dentro... – Apontou pra cozinha. – Tem uma geladeira pequena e um fogão de duas bocas caso precise esquentar a marmita. As ferramentas e o resto do material ficam num quartinho lá fora perto da capela...

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- Certo, certo... – Coçou a nuca antes de continuar. Não sabia bem por onde começar... – Mas antes tenho que ter certeza se vou trabalhar aqui... - Se depender de mim, você já está contratado! – Riu ele. – Não sou eu quem vai pagá-lo, é a prefeitura. Você vai ter que ir lá todo final de mês e pegar seu salário. E preciso de ajuda aqui, não consigo mais dar conta de tudo sozinho... - E quanto vou receber? - Um salário ué! - Um salário? – Esperava mais. - Não tá bom? – Levantou os braços querendo dizer, ‘seja razoável, o que esperava?’ E riu. - Está sim! – Emitiu isto quase como um bufar. Fez uma careta, compreensível e suspirou. – Quando começo? - Quando pode começar? - Amanhã! - Ótimo. Mas vou precisar de você só segunda feira bem de manhãzinha... - Segunda! – Se levantou, ainda era sexta. – Tudo bem, ‘vou estar’ aqui, então... ‘Umas oito horas está bom’? - Sete, o mais tardar! – Também se levantou. – Preciso te passar todos os procedimentos... Nada muito difícil de entender, mas será bom pra você se acostumar! - Entendo! – Sorriu, começava a se acostumar com a ideia. – Vai ser de que horas a que horas? - Vai começar umas sete e meia, mais ou menos, até umas doze horas... Ufa!! Moleza... Pensou sem conter um riso diabólico. - Preciso que fique até bem de noitinha por causa da minha ‘saída’... - De noitinha? Mas não é só até o meio dia? - Doze horas da noite, meu filho! – Emburrou-se o barbudo mal encarado. – Não quer trabalhar não, é? Bosta! Quase gritou isso, mas moveu os lábios. Bosta, bosta e mais bosta. Moraria lá, praticamente, num cemitério daqui por diante. Bosta! - Escuta aqui meu filho... – Começou Pablo o guiando para fora da ‘moradia’. – Se você não quiser, não precisa ficar avexado, ta? Pode falar... Mas você ficará aqui o dia inteiro só até eu voltar... – Bateu em seus ombros magros. – Você vai ver... Não é tão ruim assim. Ninguém vai te amolar o dia inteiro e se começar cedo, antes da hora do almoço já vai ter acabado todas suas obrigações... Na prática, a prefeitura vai te pagar só pra coçar o saco o dia intero, isso não é bom? - Até que é sim. – Esboçou um sorriso tímido. – Quando você voltar, eu ou o senhor vai ficar com o turno da noite? - Eu! - Que bom...! – Desabafou. – Não estou muito acostumado com cemitérios. Acho que é a primeira vez que piso num depois da morte de meu pai. - Não gosta de cemitério? – Alisou o queixo barbudo e crespo e parou prendendo mais a atenção de sua companhia. Até Tonico, o cachorro, parecia entendê-lo. – Tem medo dos enterrados é? - Não. Não é isso. – Mentiu descaradamente. – Só um receiozinho de nada! – Assinalou a palavra com o polegar e o indicador quase encostados. – Nunca se sabe. - Se nunca se sabe... O que o senhor sabe que lhe mete medo?

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Mais uma daquelas e ele falaria umas boas e poucas para Pablo. - Não sei nada... – Tentou justificar-se. - Então não há nada a temer! – Definiu abruptamente o zelador. O pior que o safado tinha razão. Medo de quê? Medo de quem? Medo nenhum! Só um receiozinho...

3. No fim de semana Jailton passou as tardes se sentindo melhor. A idéia de se zelador-coveiro do cemitério da cidade ficou mais aceitável. Reparava nos turistas da pousada, nas meninas que ajudavam dona Joana na cozinha e no senhor José arrumando a perna de uma poltrona num dos quartos vagos e pensou: Ora, todos estão felizes por serem úteis de alguma forma. Por quê não eu? Pensou sobre toda sua vida de intempéries e dificuldades ocasionais. Sobre os bicos em construções que há muito tempo não fazia. A cidade simplesmente parou de crescer. E o quê faria se não fosse o trabalho no cemitério...? Agora isso era passado, já se sentia um homem importante mesmo antes de começar. Seria alguém, afinal das contas, nada muito ‘glamoroso’, mas bem vindo de qualquer forma. Seria um trabalhador fixo e honesto como a maioria e poderia olhar a todos de cabeça erguida, como a muito não fazia. Chega de ‘serrar’ cigarros e pedir dinheiro emprestado. Pagaria ele mesmo. Um dia quente e agradável e cercado por amigos. Sim senhor, ele estava feliz. Nem conseguia se lembrar do por quê dos receios de trabalhar no cemitério. Como foi bobo. Ainda bem que lutou contra seus instintos mais preguiçosos e pegou o ‘trampo’. Seu José, um homem magro de cabelos brancos pela idade - usava seu inseparável boné vermelho e uma camisa velha listrada – trabalhava despreocupado. Agora, vendo-o ali varrendo a sala com a vassoura de palha, sentiu-se tão importante quanto ele. Poderiam respeitá-lo agora. Não veria mais aquele olhar destinado a ele que dizia: ‘Você é gente fina Jailton, pena que é vagabundo...’ Lembrou-se que fora o velhinho que dera a dica da vaga de zelador para dona Jô. Aproximou-se, iria agradecer ele mesmo... - Boa tarde seu José! – Era tarde de domingo. O velho o espiou surpreso. Vendo quem era abriu um sorriso amistoso: - Boa tarde Jailton! - Quero lhe agradecer a indicação para a vaga no cemitério... - Ah! – Parou de varrer. – Não precisa agradecer a mim não, homem. Só comentei o assunto com a dona Jô, ela que teve a ideia de lhe indicar! - Mesmo assim! - Não há o que me agradecer! Pelo jeito você conseguiu a vaga né? - Consegui sim, começo segunda feira bem cedinho! - Que bom. Que bom mesmo... Você vai ver. Eu mesmo já trabalhei lá uns anos atrás... Foi bem... – Pensou por um instante. – Bem diferente! – Risadinhas.

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- Diferente como? – Xiii! Aí tinha... - Nada de mais se você não for um cagão! - Como assim seu José? – Seu medo dava sinais de progresso. Isso era mau... Tinha que falar com o velho mesmo? - Já te disse. Nada demais. De qualquer forma, não me arrependo de nada. Foi bom trabalhar lá, tranquilo e sossegado. Só saí porque já tava velho demais pra coisa... - Mas você disse que foi diferente... Diferente do quê? E por quê? Diz aí, me deixou preocupado... - Não precisa ficar preocupado. Você vai dar conta... – Voltou a varrer despreocupado. Não queria prolongar o assunto, isto estava claro. - Conta do quê homem? - Jailton! – Parou e o encarou. – Tem coisas neste mundo que agente simplesmente não entende! E vai por mim garoto. É melhor agente nem saber, fica mais fácil pra lidar com a coisa, entende? - Não! - Então esqueça o que falei. Estou velho e nem sei mais o que falo! - Eu, no começo estava um pouco preocupado em trabalhar lá. Depois consegui aceitar a ideia. Sabia que não seria nada demais... – Resolveu se abrir, não podia deixar aquilo assim. - Mas agora que o senhor falou estas coisas, já não tenho tanta certeza... Se não é nada demais... Por que não me fala o que é? José parou mais uma vez de varrer, e desta fez fitou Jailton nos olhos sem sorrir. - Quer mesmo saber? - Quero! - De verdade? Não vai contar pra ninguém que lhe disse isso, vai? - Não senhor... Pode falar! - Tem certeza? Porque jurei que não ia contar pra ninguém... Se você der nos bico, vou te capar Jailton. Juro! Pode falar seu José! – Riu ele. O velho não guardava segredos... Era só onda. Tinha certeza disso. – Juro que não conto pra ninguém. - Tá bom... – Olhou para todos os lados. Parou de falar no momento em que um turista atravessava a sala. Continuou. – Foi numa madrugada em que passei a noite lá... Se quer um conselho Jailton. Nunca passe a noite lá, se você tiver medo destas coisas... - Que coisas? – Sentou numa poltrona enquanto o velho fingia que varria os cantos. - Dos mortos! – Falou dando à frase a maior entonação que conseguia. Jailton não percebeu, mas seus olhos já estavam estalados. Impressionava-se facilmente, ainda mais naquelas condições, iria trabalhar no palco do causo do velho. Estava lascado! - Dos mortos Jailton! – O velho o encarava segurando o cabo da vassoura com força. – Das almas penadas, dos incansáveis, dos preguiçosos do além, dos... - Tá, tá, tá! Já entendi! – Receios... - Pois bem. Foi de madrugada quando eu cuidada do lugar que eu o vi! - Viu o que? - Ele! – Mais entonações exageradas. - Ele quem? - Deixa eu contar que você vai saber! Não interrompa! - Tá bem.

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- Eu estava caminhando despreocupado com Tonico, o cachorro do zelador, pelos caminhos que vão entre os túmulos. Só queria esticar as pernas até o sono voltar. Não conseguia dormir de jeito nenhum naquele dia... “Caminhava lentamente debaixo daquele céu lindo. Tinha muita estrela e a lua brilhava como um sol. Bonita demais, demais... Uma coruja piava lá no fundo, perto da capela e os grilos cantavam, cantavam... Depois parei, tirei a rolha da garrafa de cachaça que levava comigo e dei uns goles. Como é bom aquela danada... Sentei num cantinho perto da ameixeira mais encima no cemitério, sabe? E fiquei ali ao lado de Tonico vendo as casas vizinhas e os túmulos à minha frente que seguiam até lá embaixo. Eu gostava dali. Era bom. Calmo. E dava pra ver tudo sem precisar ficar andando de um lado pro outro. Foi nesta hora mesmo que ouvi alguma coisa... ‘Joséééééé!’ Falava a voz. Eu ouvi nitidamente. Mas no começo achei que fosse efeito na malvada. Tonico nem se moveu. Daí a pouco ouvi de novo... ‘Joséééééé!’ Daquela vez não tinha como negar. Alguém estava me chamando. Até mesmo o cachorro ouviu, porque ficou com as orelhas em pé. Levantou-se e deu três latidos. A voz parecia de uma velha carcomida. Vou te falar uma coisa, você pode nem acreditar, mas não fiquei com medo nenhum. Na hora achei que alguém estava de brincadeira comigo. ‘Me alevantei, enchi ‘os pulmão’... E gritei... Quem é que tá aí? Ninguém me respondeu. E gritei de novo e bem mais alto. Nem liguei se ia acordar alguém... ‘Quem é que tá me chamando aí?’ O grito foi tão alto e poderoso que até desafinei, e nem era de medo não... Mas se a pessoa tava querendo me assustar, não conseguiu, estava conseguindo é me deixar nervoso. E quando eu fico nervoso... Sai de baixo que é chumbo quente! ‘Josééééé, Josééééé, pára de gritar comigo Joséééé...’ Pronto. Foi nesta hora que comecei a ficar com um cadim de medo! Mas não muito... A voz estava alta e vinha de mais abaixo. De dentro do cemitério mesmo. Tonico já se tremia inteirinho. “Aquele cagão, só mete medo em gente mais cagona que ele.” A cena do cachorro lhe latindo no cemitério, quando foi fazer a entrevista, passou-lhe pela cabeça, mas não iria dizer nada ao velho. “Mesmo sem saber o que era, eu andei até o meio das árvores mais a baixo e comecei a procurar de onde vinha a voz. Se eu pegasse o fulano naquela hora, ia lhe encher de cascudos. De repente uma coisa passou pela minha cabeça fazendo um barulho esquisito. Tonico danou-se a latir nesta hora. Tomei um susto danado, mas era só a coruja, aquela sem vergonha. ‘Você está aí Joséééééé...?’ A voz estava mais clara ali. Parecia vim bem do outro lado das criptas que me separavam do outro caminho. Seja quem for, pensei, vou dá-lhe uma garrafada na cabeça para nunca mais tentar dar sustos nos outros. Não que eu tivesse com medo – Só um receio, pensou Jailton. – mas não sabia quem era. Era melhor tomar cuidado. Dei a volta e subi a trilha até onde achei ter ouvido o gemido. Tonico já estava lá e latia sem parar para um canto bem escuro duma vala aberta entre dois túmulos. Aproximei-me lentamente já com a garrafa na mão. Dei uns goles só pra esquentar... Era só um golpe na coisa e pronto.

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Mas quando cheguei lá, uma voz veio bem de frente, saindo da vala aberta. Tonico latia como se estivesse vendo um fantasma. “Enchi-me de coragem e cheguei bem pertinho do buraco...” - ‘Crauuuuummmm!’ – Gritou José para Jailton tentando assustá-lo. – Um gato enorme pulou pra fora da vala e sumiu de vista. Nem olhou pra trás! Ficou com tanto medo de mim que nunca mais o vi naquele cemitério... Tenho certeza de que as vozes eram ‘só’ coisa da minha cabeça, porque eu estava mamado... Jailton estava de olhos arregalados, mas no final riu daquela besteira toda. Que velho safado, o enrolara o tempo todo com aquela lorota... - Nossa! Seu José... Por um momento estava quase acreditando no senhor! –Riu despreocupado. – Chegou a me assustar. - E quem disse que é mentira? – Parecia indignado com seu ouvinte. – Não é mentira não filho. É a mais pura verdade! – Cruzou os dedos diante do rosto e os beijou três vezes. - Se está dizendo, deve ser... – Se levantou do sofá. – Mas o senhor me disse que era sobre mortos, então... - Era o gato! – Foi sucinto. – O gato era o morto! - Como é? – O velho estava insistindo. Puts. Já estava claro que o velhinho queria apenas assustá-lo. – O gato? - É! O gato era o morto... Não entendeu? – Apontou o cabo da vassoura pra ele. – Aquele gato estava enterrado ali Jailton. Eu não te disse, mas naquele cemitério, a dona dele tinha enterrado o bicho junto ao túmulo do marido. A mulher era doida, mas tinha bastante dinheiro antes de morrer, então pagou a gente pra enterrar a coisinha ali... Fazer o que? Não nos custava nada... - Você enterrou um gato no cemitério? – Que mentira. Pensou. – Não é proibido isso? - Que eu saiba não... Só não é comum. Enterrei sim, e daí? Ganhei pra isso e ninguém se incomodou. - Nossa... Você tem certeza que o gato estava morto quando o enterrou? - Absoluta certeza. Mortinho da Silva. Enterrei numa vala rasa, mas mesmo se estivesse vivo, não tinha como sair dali não. - Sei lá heim seu José. – Tentou ser simpático. – Não acredito muito nisso não. - Ah é? Não acredita em mim? - Me desculpa... Mas como poderia? Gato morto, e falando seu nome? - Era a dona... - Dona? – Quanto mais se explica maior é a mentira. Como dizia seu pai. - A dona do gato que estava me chamando. Tenho certeza, e quando cheguei perto, o gato apareceu e me deu aquele susto. Ela foi enterrada uma semana depois do bicho, bem ao lado. - Tá bom. – Riu e deu de ombros. – Bem... Tenho que ir. Vou dar um passeio e aproveitar a folga. - Pode ir... – O velho o encarou sério. – Por mais que possa parecer mentira isso. Saiba que não é. Mas se quiser ter certeza, é só passar uma noite lá e você vai ver... - Não pretendo passar nenhuma noite lá... - Ué! Ta com medo? – Provocou José rindo dele. - Nenhum. Mas prefiro dormir em casa.

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- Se você está dizendo... – Deixou claro que não acreditava na suposta coragem de Jailton. Ora, havia contado tudo aquilo pra ele porque sabia que o rapaz se cagava de medo de cemitérios. - E estou. Bem, boa tarde, seu José. – Se despediu. - Boa tarde Jailton. – Desistiu de prosseguir a conversa. Afinal das contas, ele é quem queria ficar sozinho. Mas aproveitou a chance de brincar um pouco com o medo do homem... Sabia que tinha dado certo. Até que Jailton disfarçou bem, mas geralmente as pessoas quando escutam aquela estória, não ficam com os olhos tão arregalados como ele ficou. – Não vá ter pesadelos eim? - Pode deixar! – Devolveu o aceno e se retirou. Teria um longo dia amanhã. Aquela estória de José lhe impressionou mais do que queria admitir. O velho estava lhe assustando de graça. Que sacana. Mal começou a trabalhar no lugar e já tinha alguém querendo ‘sacaneá-lo’. Que seja. Era um trabalhador agora e nada neste mundo o faria mudar de ideia, de novo.

4. Em fim o grande dia chegou. Jailton levantou bem cedinho e se dirigiu ao banheiro segurando num dos braços a roupa que iria vestir. O sol nem tinha aparecido ainda, mas o galo de algum vizinho já cantava anunciando a chegada da nova manhã. O ar ainda estava frio, mesmo assim tirou a roupa e entrou de baixo do chuveiro. A água estava fria. Quase perdeu o ar... Bosta. Mas era melhor do que nada, fedendo a suor é que não podia ficar. Logo se acostumou e relaxou os músculos. Pensava na estória do senhor José. Até onde aquilo tudo era verdade? Achava que o velho não teria tanta imaginação, a ponto de criar ele sozinho, toda aquela lorota. Se é que era mentira... Queria não acreditar, contudo... Arrumou-se. Vestiu sua camisa vermelha, suas calças jeans surradas e seus sapatos velhos. Estava bom assim. Não passaria frio depois que a manhã partisse. Depois de andar por uns quarenta minutos vendo o sol aparecer devagarzinho além das montanhas chegou ao seu destino. O cemitério parecia vazio... Abandonado. Logo Tonico se aproximou correndo e latindo como se nunca tivesse visto Jailton em sua vida. Cachorros. Esperou por uns cinco minutos depois de sua primeira salva de palmas. A porta da casinha branca se abriu, como esperava, e de lá saiu Pablo cambaleando um pouco. Tinha acabado de acordar, com certeza. - Bom dia rapaz! – Cumprimentou ele de longe acenando avidamente. Que energia tinha o homem. Tonico, assim que notou a presença do dono, correu para ele saltitante numa saudade invejável. - Bom dia! – Respondeu ele mais timidamente. Esticou os braços e bocejou. Estava morrendo de sono. Nos últimos meses não havia precisado se levantar tão cedo. Tinha se desacostumado. – Como vai?

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- Bem, graças a Deus! – Disse Pablo se aproximando lentamente e ignorando Tonico na medida do possível. – Dormiu bem? Terá um longo dia pela frente. - Dormi sim! – Sorriu enquanto o barbudo abria o portão de ferro. – Só esqueci de trazer comida, mas acho que vou poder saí pra comprar alguma coisinha né? - Não vai não. Não vai precisar... Separei algumas coisas pra você na cozinha. - Obrigado então. – Se deram as mãos. - Vem! Entra... – Pablo lhe deu as costas e voltou para a casa do zelador seguido por ele. – Vamos tomar um café primeiro. Assim que entrou, Jailton reparou numa mala de couro, velha e entupida, também sentiu o agradável cheiro incomparável do café caseiro e simples. - Vai viajar hoje? – Perguntou a Pablo que o olhou incrédulo. - Claro! Não te contei? - Contou, mas achei que seria amanhã... - Não, não. – Estendeu um copo de alumínio cheio de café quente para Jailton. – Tome! Não, vou hoje mesmo e será daqui a pouco... Comprei as passagens ontem e o ônibus vai partir umas oito horas mais ou menos! - Nossa! – Jailton tomou um gole e se sentou no sofá velho fazendo companhia a Tonico. – Será que vou dar conta de tudo tão rápido? - Vai sim. Claro que vai. – Pablo se retirou para cozinha e logo voltou com seu próprio copo, de plástico, cheio até a boca. Andava devagar para não derramar o conteúdo, depois de descansá-lo encima da mezinha deu sua atenção ao rapaz. – Você sabe varrer? - Sei! – Respondeu a isso fazendo uma careta. – Claro que sei. - Bom, bom. Excelente. – Riu Pablo. – Sabe trancar portas com cadeados? - Lógico que sei... Que pergunta... - Sabe dar comida pra cachorro e andar por um lugar sem dormir? - Aonde você quer chegar? - Sabe ou não sabe? - É obvio que sei todas estas coisas, quem não saberia? – Estava quase irritado. Ele o estava provocando por quê? - Então Jailson... - JailTON! – Corrigiu. Odiava quando erravam seu nome. - Jailton! É o que quero lhe dizer. Quem não sabe fazer estas coisas? Será o que você terá de fazer aqui... Além de zelar pelo lugar. Óbvio! Não deixar ninguém entrar sem se identificar e nem roubarem os santos dos túmulos... Consegue fazer isso? - Sim... - É fácil não é? Eu disse que seria moleza... – Tomou mais um pouco da bebida quente e sorriu simpaticamente. – Escute. Não se preocupe. Tudo vai dar certo... O pior que pode lhe acontecer é flagrar algum casalzinho mais assanhado por ai e ter que enxotá-los. Cemitério não é motel... Entendeu? - Entendi! Pode deixar... - Mas isso não significa que você não possa trazer uma namorada pra cá, ta? - Ta bem... – Riu Jailton. Já estava bem à vontade e começando a gostar de Pablo. Parecia um homem honesto e sincero. - Você tem namorada Jailton? - Tenho nada! – Voltou a rir sem jeito. – Quem iria me querer? – Queria confete.

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- Sei lá! – Riu Pablo timidamente. – Mas pra cada panela... -...há uma tampa! Tô sabendo. – Completou a frase parecendo um pouco descontente. - Que seja! Se arranjar uma, não se avexe... Pode trazer, é seu direito como homem e responsável por aqui, ta bom? - Ta bom! Pablo suspirou, sorveu o resto do café e se levantou. Pegou sua mala e se despediu: - Bem... Tenho que ir, já são sete horas e não posso correr o risco de perder o ônibus. – Estendeu a mão para Jailton que a pegou sorridente. – Tchau pra você também companheiro. – Se dirigia ao cachorro que o olhava com ternura. De alguma maneira sabia o que estava acontecendo ali. – Tchau pros dois... Pablo saiu, desta vez andando rápido, e acenou de fora do cemitério. Parou, olhou para o campo de enterrados por um longo tempo... De lá gritou: - Adeus aos dois! Jailton se arrepiou com aquela despedida. Adeus? Tinha algo errado ali... Não sabia o que era. Mas que tinha, isso tinha... Tonico ficou no portão latindo até perder Pablo de vista, e mesmo depois, uivou tristemente por meia hora. Quando se cansou, deitou escorado no portão e ali ficou até a noite cair. A noite...

5. Um belo dia era aquele. Nuvens de algodão branco e fofo flutuavam indiferentes meio ao céu azul. O sol não castigava tanto quanto imaginou que aconteceria. Uma brisa boa acariciava as árvores do cemitério e arrancava as folhas menos resistentes e mais velhas. Tonico estava encostado no portão despreocupado. Suspirava de solidão. Aquele olhar canino era comovente apesar de tudo. Jailton varria sem pressa as folhas amarelas e secas que se acumulavam ao redor das criptas e nos escorredores sujos. Tinha todo o dia pela frente. Estava feliz de certo modo. O trabalho enobrece o homem de fato. Seja qual trabalho for, se era honesto, valia a pena. Mas uma coisa era inegável. O clima dali era diferente... Diferente de qualquer outro lugar numa cidade. Diferente de uma igreja, de um hospital, de uma praça, de uma vila... Ali, sabia-se e sentia-se a tristeza. Não a melancolia afetada de pessoas mesquinhas e nada altruístas que caminhavam pelas ruas perdidas em seus pensamentos problemáticos. Não. Ali existia a verdadeira melancolia. Num cemitério, pessoas mais sensíveis podiam sentir o ar pesado e repleto de sentimentos sinceros daqueles que frequentavam o jardim. Senhoras viúvas que rezavam pelos maridos que se foram. Filhos que saudavam as boas lembranças dos pais que já tinham ido para o céu. Mulheres que se entristeciam ao se lembrarem de seus irmãos falecidos... A tristeza e a saudade, daqueles que frequentavam de vez em quando o lugar, pelos enterrados era o que ficava e temperava o ar dali. Não era algo a se considerar ruim. Era um choro insistente, mas respeitável. Jailton se lembrou... Nunca esquecera de verdade.

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Por mais que uma pessoa fosse insensível, ninguém ficaria indiferente caminhando entre os túmulos de anônimos e desconhecidos que descansavam para sempre no subsolo. Ninguém. Todos tinham aquela feição séria e respeitosa. Pelo menos na maioria das vezes. Até aqueles que tentavam sorrir e conversar normalmente sentiam a coisa ao redor deles. Não era possível ignorá-la. Era como um pagão numa catedral, por mais que não seguisse os caminhos de Jesus, ou confiasse em Deus, sabia que algo estava presente ali. E era este algo que verdadeiramente zelava o cemitério. Até mesmo, principalmente, Jailton, sendo uma pessoa simples, era vulnerável a estas sensações. De início, logo quando começou a varrer o primeiro monte de folhas, ele sentiu a presença onipotente que flutuava ao redor. Não era uma energia má, nem boa, apenas sincera e paterna. Como um enorme lobo assassino cuidando da cria, como um pássaro zelando pelos filhotinhos no ninho. Parecia perigoso, mas dava a sensação de proteção. “Menos mau...” Ele varria, parava por um momento e olhava ao seu redor. Pai... Tentava se acostumar com a paisagem dali. No seu subconsciente ele sabia. O cemitério era como um tesouro desprotegido. Um lugar desamparado como um cão sem seu dono. Um dono que nunca mais iria voltar, pois estava morto. Morto e distante dali. O que lhe dava forças eram seus sonhos, e a esperança de um dia revê-lo. Como Tonico... Jailton observou o cão ali. Parado. Deitado sobre as patas cruzadas e encarando a rua na esperança de rever Pablo a qualquer momento. Pensou em chamá-lo na hora, mas para que? Como se ampara um cachorro? Como se faz isso? Deixa pra lá! Pensou ele. Depois lhe dou comida... No fim de semana, principalmente depois de ouvir aquela estória boba do senhor José, ele quase voltara atrás em sua decisão de trabalhar ali. Mas agora, isso lhe parecia um absurdo. Algo... Algo estava mesmo querendo que ele ficasse. Que ele cuidasse do lugar. Era difícil explicar aquela sensação. Mas era legítima. Também era quase impossível não relacionar o lugar a morte do pai. Senhor Damaceno. O velho e bom pedreiro que o guiou a vida inteira. O mesmo homem que perdera a esposa e o caçula quando a mulher tentava dar a luz ao segundo filho. Os dois morreram no parto. Apenas ele e Jailton ficaram no mundo para passar fome. Não teve escolha e foi embora para o sul. Para São Paulo. Na cidade grande não foi muito diferente do sertão baiano. Quase morreram de frio e fome nas ruas, até que souberam por um amigo de rua que estavam precisando de pedreiros no interior. Pedro, o homem dos gatos... Vieram a pé. A viagem foi dura, mas conseguiram. Deus, como foi duro aquilo tudo. Damaceno arranjou um canto num barraco onde conseguiu trabalho e ali ficou. Depois de colocar o filho na escola, deu um jeito de levar a vida com trabalhos em construções de novas casas que surgiam. Até que havia sido uma época promissora, lembrou Jailton. Foi a melhor fase de sua vida com o pai. Depois conseguiu alugar uma casa bem simples onde moraram por um bom tempo. Jailton cresceu e terminou o colegial. Depois de sair da escola nunca conseguiu arranjar um emprego fixo. Então se virou como ajudante de pedreiro. Ajudante de Damaceno. Mas o destino foi implacável e levou seu pai usando a desculpa de taquicardia.

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Seu pai era um homem forte e saudável. Morrer decorrente de problemas no coração foi duro de engolir. Contudo, o que ele, um reles mortal, poderia fazer? Nada. E foi o que fez até hoje. Nada... Com o tempo, os bicos foram definhando. Logo se viu sem dinheiro ou chances de arranjar algum. Passou cinco meses morando de favor, na prática, na pousada de dona Joana. A velha e simpática senhora que o ‘acolhera’ gentilmente. Ela e seu pai eram amigos. Jailton desconfiava que eram até mais do que isso, mas nunca tirou a limpo. Não necessitava saber destas coisas... Seu pai se fora e não voltaria nunca mais. Nunca mais. Por pura obra do destino, Damaceno foi enterrado naquele mesmo cemitério. No mesmo jardim que ele varria agora. Evitou desde o começo ver a jazida de seu pai. Fora lá apenas uma vez. Quando teve de enterrá-lo. A tristeza e o desespero que sentiu foram tão fortes que jurou que nunca mais iria voltar ali. Não pelo seu pai. Mas por ele mesmo. Não se lembrava de quem, mas alguém uma vez lhe dissera que era sempre melhor esquecer os mortos, caso contrário, eles talvez não conseguissem chegar ao céu. O sentimento de lamentações dos que ficavam serviam como âncora para eles. Não era bom chorar os mortos. Mas ele chorou mesmo assim. Por muito tempo. Não diante do túmulo, não no cemitério, mas em seu coração. Isso estava enraizado nele até hoje. Nunca esqueceria seu pai. Nunca. Era a única coisa de valor que possuía, e Deus lhe tomara implacavelmente. Sem dó. Sem misericórdia. Desde a morte de seu pai, nunca mais pisou numa igreja. Não que passasse a odiar Deus, mas o ignorava. Queria mostrar ao criador o quanto estava magoado pelas suas ações em sua vida. Levara-lhe a mãe, o irmão que nem chegou a conhecer e seu pai. Seu amado pai. E quase levou a ele mesmo junto de tanta tristeza. Quase. Mas Jailton aguentou firme... Bem, nem tão firme assim. Passou a fumar e a beber. O cemitério parecia ler sua mente e alma. As árvores balançavam os galhos como se dissesse: ‘Esqueça isso filho, olhe como nós dançamos bem, mesmo sem podermos nos mover!’ Que ideia tola. Como era tolo... Seus sonhos anestesiavam a dura e cruel realidade. Mas não tapavam o sol com eficiência... Alguém espirrou. Olhou rapidamente na direção do som e notou que Tonico foi o responsável. Cachorros. Continuou a varrer até a jazida evitada até hoje. Lá estava ela. Uma cruz de pedra pintada de branco por cima de uma chapa de cimento suja de terra. Algum mato já crescia audaciosamente entre as saliências do túmulo. Uma pequena chapa de mármore negro identificava o falecido com uma pequena fotografia preto e branco protegida por um vidrinho elíptico emoldurado: ‘Aqui descansa em paz o amado pai e querido companheiro José Fransisco Damaceno. Nascido em: 1947, e embaixo; Falecido em: 2002.’ E o inevitável ocorreu. Sua garganta se engomou. Seu queixo tremeu. Seus olhos nublaram.

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- Pai! – Murmurou para o vento. Encostou a vassoura no chão. Ajoelhou-se diante da cruz. – Pai! – Fechou os olhos e chorou com as mãos cruzadas sob a face trêmula. O dia estava lindo, mas seu coração ficou pesado. - Oh pai! – Falou olhando para a imagem do pai na fotografia. Parecia tão vivo ali. Um senhor negro de olhos brilhantes. – Que saudade do senhor! Jailton ainda ficou ali por um bom tempo perdido em seus devaneios. Desabafou toda sua vida para o morto. Todas as suas angústias e medos. Tudo. Como se de alguma maneira seu pai pudesse ajudá-lo do além túmulo. Sonhos... O canto desesperado dos passarinhos ali perto lhe despertou. Tinha que trabalhar. Agora teria todo o tempo do mundo para visitar seu falecido pai. Como pôde ter ficado tanto tempo sem vê-lo? Levantou-se e pegou a vassoura. O céu ainda estava claro, mas com menos nuvens. O sol brilhava bem acima de sua cabeça. Encarou o astro apertando a vista. ‘Onde será que o senhor está?’ Pensou. Alguns pombos pousaram nas jazidas à frente e iniciaram uma caçada inútil por comida. Ali não havia o que comer, além dos defuntos. Apenas os vermes se satisfaziam... Apenas os vermes se alimentam dos mortos. Caminhou de volta para o quartinho de ferramentas depois de recolher as folhas secas e velhas que estavam espalhadas pelo cemitério. Não foi tão duro assim. Era como cuidar de casa e ser pago para isso. O portão estava destrancado caso alguém quisesse visitar algum parente. Mas ninguém apareceu. Jailton separou a comida de Tonico e tentou chamá-lo para comer, em vão. O cão estava sem fome. Depois entrou ele mesmo na casa do zelador e procurou os mantimentos que Pablo lhe disse. Havia uma panela na geladeira contendo arroz, mais três potes com feijão e mistura. Esquentou tudo usando uma única panela no fogão. Um mexido lhe cairia bem, tinha uma aparência horrível, mas era saboroso. Arroz, feijão, farinha, ovo e carne. Estava ótimo. Foi pra sala com a panela de alumínio cheia. Amparava-a com a mão esquerda coberta por um pano de algodão bordado e com a outra segurava a colher. Sentou-se na poltrona de Pablo e ligou o rádio. Vida mansa era o que sempre sonhara. As coisas estavam indo bem. Ainda se sentia um pouco triste depois de rever o túmulo do pai, mas sabia que logo isso passaria. Pelo menos esperava que passasse. Após comer tudo, estava faminto, resolveu dar uma cochilada. Seus músculos estavam cansados e ele mesmo não parava de bocejar. Acordou mais cedo do que estava acostumado. Fumou um cigarro, deixou a panela vazia de lado e relaxou. Logo estava dormindo...

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Tonico se cansou de esperar. Seu estômago estava roncando. O homem novo tinha sumido e já estava anoitecendo. Estava sozinho. Sozinho... Levantou-se rapidamente, sentou-se e coçou alguma coisa ‘coçante’ atrás da orelha. Gemeu de alívio. Finalmente tomou seu rumo. Fome. Fome danada... Andou até o canto da capela, bem ao lado da casa do homem-de-sempre e encontrou o prato de metal. Tinha comida ali. Bom. Muito bom mesmo. Balançou o rabo e enfiou o focinho avidamente no ‘rango’. Nada de ração pra ele, não senhor. Pra ele, Tonico, era só comida de verdade. Tinha arroz, velho, feijão, velho e uns generosos pedaços de osso de galinha, morta. Quando tinha sorte vinha um pouco do músculo e umas tirinhas esquecidas de carne. Contudo, não teve sorte daquela vez. Era só osso e tutano. Já estava bom, essa era a verdade. O homem novo devia ter colocado pra ele. Mas onde ele devia estar? Depois de limpar o prato e desaparecer com os ossos pequenos da falecida galinha, Tonico resolveu procurar o cara. Aquele escurinho e magro rapaz. Sentia cheiro de medo nele. Daquele tamanho e era medroso. Caramba! Será que estaria bem nas mãos dele? Deu uma corridinha esperançosa até a casa do homem-de-sempre e encontrou a porta aberta. Mais cheiro de comida. Lá estava seu homem. Sentado na poltrona do seu dono. Dormindo. Menos mal, nem ligava... Queria achar a fonte daquele cheiro de arroz-feijão-ovo-carne maravilhoso. Se tivesse sorte, ainda houvesse alguma coisa lá ainda esperando para ser devorada. Farejou e farejou até que encontrou. Encima da mesa. Hmmm... Dentro da coisa de colocar comida. Olhou de soslaio para o escurinho. Nada. Nem sinal de animação. Estava baldeado. Beleza! Andando bem sorrateiro e sem tirar os olhos de Jailton, se aproximou da mesinha. Ergueu-se e equilibrou-se nas patas traseiras. Cocô! Não dava, até alcançava a beirada com as patas, mas não conseguiria nunca cair de focinho na panela. Seus olhos brilharam. Tão perto e tão longe... Olhando ao redor viu o que precisava. Um andar... Subiu com facilidade no banquinho esquecido ao lado da mesinha. Sorte grande meu rapaz. - Uaaaahh!! - Opa! O homem novo bocejou. Tonico se congelou e esperou. Esperou mais um pouco até constatar que o escurinho ainda dormia. Nenhum movimento. Ótimo, era a hora. Deu um salto habilidoso e atingiu a parte de cima da mesa, onde a panela estava desprotegida de seu predador. Espiou mais uma vez o homem. Sabia que era dele, seja o que for que tinha na panela, era do homem. Tinha que agir rápido. Atacou o interior do objeto... Cocô! Estava vazia. Nadica de nada.

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Tanto trabalho à toa. Desceu da mesa de uma só vez, chateado. Iria passear na cidade quieta então... E foi. Caminhando entre as jazidas que ele o viu... O gato. Era um bicho grandinho, quase do seu tamanho. Tinha os olhos enormes e atentos. De pêlo ocre e traçado por manchas mais escuras. Tinha que fazer alguma coisa. Era o seu trabalho não? Cuidar do cemitério... Aquele gato fedia. Parecia o fedor das coisas que morriam... Empinou o traseiro, abaixou a cabeça e latiu o mais alto que pôde. Mas o gato nem se moveu, apenas emitiu aquele palavrão indecifrável: Miau! Bicho idiota! Isso lhe deu mais raiva ainda. Latiu, latiu e latiu... Mas nada. O bichano ainda estava lá o encarando desdenhosamente. Era hora do plano B. O ataque mortal. Saltou para cima do cretino... Ah sim. Desta vez teve êxito em sua investida mais agressiva. O gato correu habilidosamente por cima das lápides até atingir um galho mais baixo de uma ameixeira. Era esperta a criatura. Tinha que admitir... Mas não desistiu e continuou a latir. Cai miserável, cai daí e você vai ver o que te faço... Tonico saltitava e latia: - ‘Au!’ – Cai! – Au-au! – Cai-cai! – Au-auauauauau! – Cai-caicaicaicaicaicai... - Tonico! – Gritou alguém atrás dele lhe dando um susto danado. Sua alma pulou pra fora e voltou. Seus pêlos se arrepiaram e ele esganiçou: ‘Caincaincain!’ Correu por uns dois metros sem parar pra olhar, só depois de se sentir numa distância segura parou e olhou de volta. Nada. Ninguém. Farejou o ar e não sentiu nenhum cheiro incomum. Que estranho. - Tonico? – Mais um susto. Mas desta vez foi mais corajoso e só se virou contraído, já esperando ser devorado por um monstro inimaginável. Mas era só o homem novo. – O que houve cachorro? Queria responder... Mas como? Olhou de volta, na direção das lápides onde esteve a pouco tempo latindo pro intruso peludo. Nem o gato estava mais lá. Que sacana, se aproveitou de seu deslize e fugiu. Covarde. Todos os gatos eram covardes... - Está tudo bem aqui? – Continuou Jailton olhando pra mesma direção. Até que ele não é tão burro. – Pra quem você estava latindo? Tonico o encarou e pensou: ‘Estava latindo para um intruso senhor! Ache-o...’ Andou até chegar debaixo da árvore que serviu de refúgio ao gato e constatou a ausência do inimigo. Olhou entre as criptas e valas e farejou. Nada. Só o cheiro do gato... Quem havia lhe dado aquele susto? - Vem cá garoto! – Gritou o escurinho pra ele. – Não tem nada aí, tem? Por que não vem aqui e veja por si mesmo? Latiu. - Deixe eu ver! – Ué! Ele tinha entendido seu latido? Coincidência. – O que é? Não sei o que era, mas estava aqui... Jailton chegou. Olhou pra tudo que é canto e, claro, não viu nada demais. - Seu cachorro louco! – Jailton bufou. – Não tem nada aqui. Quer me assustar é? Sendo assim, o escurinho o deixou sozinho e voltou pros fundos do cemitério. Era sempre a mesma coisa. Ninguém nunca o entendia... Cocô!

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7. A noite de fato caiu e com ela veio a música noturna. Jailton já não aguentava mais coçar o saco. Sentado no sofá escutava música sertaneja e se lembrava de sua infância sofrida. Isso pelo menos o reconfortava, fazia-lhe dar valor a nova rotina. Que diferença. Abençoados sejam dona Jô, senhor José e Pablo. Pensando nele, no zelador original, se ‘incucava’. O que foi aquilo de manhã cedo? Aquele aceno seguido de um ‘Adeus’? Estranho. Tinha um mau pressentimento quanto aquilo. Será? Será que Pablo não pretendia voltar como havia dito? Tinha bons motivos pra acreditar nisso. O homem não deixou nenhum objeto pessoal pra contar a história. Nada. Só o rádio, mas até aí, o aparelho já estava velho e mal pegava as emissoras locais. Será? Se de fato não fosse retornar, era só dizer... Não iria mudar nada. Ou iria? Não sabia o que pensar. Pablo não lhe pareceu ser mentiroso ou desonesto. Pelo contrário... Que paranóia. Mesmo assim não podia ter certeza de nada... Só lhe restava esperar pra ver. Espreguiçou-se e forçou-se a caminhar. Ora, fazia parte de seu serviço, de suas obrigações como zelador do Cemitério Joaquim. Saiu e inspirou. Soltou o ar em seguida fazendo um ruído seco. Tirou o amassado maço do bolso e pegou um cigarro torto. Riscou um fósforo e acendeu o pequeno bastão envenenado. Tragou com vontade. Ao longe, Tonico que o observa atento achou ter visto um vaga-lume laranja aparecer e sumir. O cachorro correu alegre até o homem novo e se pôs ao seu lado. Estava começando a gostar dele... Jailton abaixou-se e acariciou o dorso do cão. - Como vai rapaz? – Sorriu entre uma tragada e outra. Papai do céu! Aquilo fedia mesmo... Pensou Tonico. Ajeitando a camisa vermelha pra dentro das calças iniciou a patrulha. Nossa! Pensou. Como aquele lugar era escuro de noite. Existiam apenas dois postes de luz no cemitério. Um encostado ao portão do lado de dentro e outro no fundo lá encima, rente ao muro. Na casinha branca, uma lâmpada velha, acima da porta, iluminava pouco. Nem contava. Fora isso, apenas as velas grossas no muro e na capela cintilavam nas sombras do cemitério. Aproximou-se da capela, não tinha dado muita atenção a ela desde que chegou. Era uma construção simples. Um quartinho coberto por telhas marrons e paredes brancas. Uma pequena leva de degraus de cimento levava ao seu interior onde uma imagem de gesso de Nossa Senhora de meio metro posava eternamente em sua calmaria. Aquele olhar eternizado pelo escultor causava melancolia. Algumas velas derretiam lentamente abaixo dela, no chão, onde outras imagens de santos vigiavam as rezas murmuradas

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daqueles que ali chegavam. Mas agora, de noite, apenas Jailton absorvia o clima estranho da coisa. Foi neste momento que ele ouviu ao longe um gemido. Não teve certeza do que ouvira de inicio, mas aguçou os ouvidos. Tonico empinou as orelhas e voltou sua atenção para o fundo do cemitério. Pra o norte do jardim... Jailton se voltou praquela direção também e apertou as vistas. Estava escuro, mas seus olhos já estavam acostumados com a escuridão. Então viu algo. Alguém atravessou a trilha que levava para cima, entre os túmulos, bem perto da ameixeira. Pôde ver isso claramente. Era uma pessoa e andava despreocupada, pois não fazia barulho quando andava. Por mais que a visão do intruso tenha sido rápida, Jailton pôde notar de que se tratava de uma figura masculina. Tonico não latiu, apenas rosnou baixinho por duas vezes e olhou para o homem novo na esperança dele fazer alguma coisa. - Jaiiiiiiiltonnnn! – Alguém gemeu de lá. – Jaiiiiiiiilt...! – Era uma voz áspera que causava frio. Quando alguém conta um caso semelhante, o ouvinte nunca pode sentir, de fato, o que aquelas vozes causam. Jailton pôde confirmar isso. Os pêlos de seus braços se eriçaram como os da nuca. Seu coração ficou pesado e seus nervos irritados. Respirar era difícil e consciente. O gemido lhe causou uma paralisia instantânea. O que iria fazer agora? Deixou seu cigarro cair. Seus instintos mais profundos lhe garantiam uma coisa; seja o que for não era normal. Depois de um tempo indeterminado, se moveu. Andou lentamente até a casa do zelador a fim de encontrar uma lanterna. Tonico estava quieto lá fora. Procurou por todos os cantos, até mesmo na cozinha e não encontrou nada, teria que improvisar. Saiu e se dirigiu à capela. Abaixou-se e arrancou uma vela acesa do chão. Que Nossa Senhora e todos os santos o perdoassem, mas precisava daquilo. Seu medo voltou. O seu velho receio dos mortos regressou com força. Achou que já tivesse superado aquilo, mas estava enganado. Bastou apenas ver algo estranho para desencadear toda a irracional fobia pelo cemitério. A coincidência foi tanta que, logo ao retirar a vela da capela, o mundo ao seu redor pareceu mudar. Para pior ao seu modo. Inexplicavelmente, passou a discernir na escuridão noturna, pequenas sombras de animaizinhos esquisitos empoleirados nas árvores. Eles pareciam não se mover. Nem um pouco, apenas espiavam das trevas. Tinham olhos-de-gato, mas Jailton sabia que não eram felinos. Eram outras coisas. Mas talvez, e bem provável, que fossem apenas sua imaginação afetada pelo medo. Receio. Procurou não olhar e nem definir os vultos ali, tinha medo de conseguir. Além disso, mesmo no silêncio, escutava algo como se viesse de longe, vozes. Não, não eram vozes, reparou. Era um barulho longínquo de gralhar. Como se gralhas ensandecidas rissem de sua situação. O pior foi ver todas aquelas coisas ‘refletidas’ nos olhos de Tonico. O cachorro também parecia perceber a mudança no ambiente, pois estava parado e os pêlos de seu dorso ouriçados. Ele não latia... Mais uma vez, seja quem for, atravessou o norte do cemitério, agora da esquerda para direita. Lá nos fundos. Parecia querer ser notado... Estranha atitude. Jailton ergueu-se nos pés a fim de prolongar a visão do homem, mas não conseguiu. A visão fora bloqueada pelas lápides mais além.

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- Quem está ai? – Gritou ele, segurando a vela mantendo o cuidado de não se queimar. – Eu já te vi e não vai adiantar se esconder! –Tornou a gritar. Enquanto esperava a resposta, e ainda se mantinha parado perto da capela, ele pensou – pensou? – ouvir risadas sussurradas vindas das copas das árvores. Aquilo lhe gelou o sangue. Tonico, enfim, latiu. O cão já não conseguia conter seu medo calado. - Não me faça ter que ir até aí...! – Jailton não perdia a esperança de ver alguém pulando o muro para fora e fugir. Mas nada disso aconteceu, pelo contrário, viu um gato grande saltar para a murada branca do cemitério, e de lá pra dentro outra vez. Não tinha outro jeito, teria que ir até lá. E fingir ser o cara mais perverso deste mundo e enxotar o invasor responsável pelos chamados; Jaiiiiiiton... Caminhou segurando a vela ao lado do ombro, e sendo acompanhado de perto por Tonico, que farejava o chão de vez em quando, prosseguiu. Conforme caminhava, as sombras dançavam meio a luz bruxuleante de sua grossa vela. Aquilo lhe causava arrepios. Tinha na cabeça a ideia de ver uma daquelas sombras dançantes se apresentarem como o homem, de repente. A qualquer momento. Tinha que tomar cuidado. O invasor poderia estar armado de um revolver ou um facão. Nunca se sabe. Sentiu-se um idiota, nem lhe passou pela cabeça procurar alguma coisa no quartinho de ferramentas que lhe pudesse servir como arma de defesa. Tarde demais, não iria voltar logo agora, poderia perder o homem de vista ou então, ao se voltar, dar as costas ao inimigo. Isso seria perigoso. Bastante perigoso. Contudo, seu receio de que o intruso na verdade fosse um ‘morador’ do cemitério descartava qualquer possibilidade de defesa real. Como se defenderia de alguém que já tinha morrido? Não tinha como se defender. Esta era a verdade. Isso está mesmo acontecendo? Respirava com dificuldade enquanto seu coração batia com facilidade. Queria até mesmo que isso parasse, pois a criatura, ou o homem, poderia ouvir as batidas. Exageros que a mente aplicava. Mesmo sabendo disso, seu receio não diminuía. ‘Crack.’ Algo se quebrou acima dele. Meio a densa folhagem da copa da ameixeira. Isso era inegável, algo estava ali. Nos galhos escuros. Olhou pra cima e ergueu a vela com a máxima cautela já imaginando um zumbi babando sangue e o fitando ávido, louco para devorar seus miolos como naquele filme da TV. Felizmente era só um gato, do tamanho de uma jaguatirica, mas ainda sim, apenas um gatinho de rua... O felino o encarava quieto, Jailton podia ver nos seus olhos o medo que tinha dele. Deu de ombros e prosseguiu a sua caça ao invasor. Ora, o que aquele gato poderia fazer de ruim num cemitério? Tonico pensaria diferente, mas não reparou no bichano. Nem ligou, o que lhe despertava curiosidade era o fedor incomum vindo de uma lápide logo ali. Tinha alguma coisa fedorenta perto deles, e estava morta. Seu focinho era infalível. Coisa morta fora do chão... - Jailtonnnn! – Alguém o chamou meio as sombras. – Jailton meu filho... – Sussurrava a voz áspera. – Não tenha medo, só me escute, não corra e me escute... E o aspirante a coveiro tremeu. Seus olhos se arregalaram tanto que seria hilário em outra ocasião. Tonico latiu alto desta vez e não parou mais. A voz vinha da cruz branca. Vinha da direção do túmulo de Damaceno.

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- Q-quem está ai? – Jailton gemeu. – Q-quem está me chamando? – E como sabe meu nome? Pensou na hora. Aquela voz era diferente dos primeiros gemidos de outrora. Tinha quase certeza quanto a isso. Mesmo assim estava se borrando de medo. Controlou-se usando toda sua força de vontade para não molhar as calças. - Quem e-está aí, diga logo... – Mesmo tremendo de medo, conseguia falar. Apontou a vela para aquela direção e o viu. Alguém estava sentado com as pernas cruzadas encima da chapa de cimento do túmulo de seu pai. Usava trapos como mendigo. O cachorro se calou... - Quem é você? – Não dava pra enxergar direito, mas podia distinguir a figura de um homem velho e negro. O homem segurava algum tipo de colar nas mãos que descansavam no colo. – Pode falar! Não vou te fazer nada se disser e ir embora, não pode ficar aqui este horário. – Estava mais calmo. Depois de confirmar se tratar apenas de um homem velho, seu medo e receio se extinguiu quase por completo. - Não posso lhe dizer meu nome... – Falou o velho dali, Jailton não se aproximava. Era melhor manter distância. – É a primeira lei. A segunda é que não posso sair daqui tão cedo... - Pode sim. Estou lhe dizendo... – Seja quem for, estava lhe testando. – Você vai me encrencar se eu o deixar dormir aqui. Vê se colabora e vá embora... – Quase pediu ‘por favor’, mas isso diminuiria seu respeito. - Já disse! – Falou o velho. Aquela voz era calma e... – Não posso, enquanto eu não resolver meu problema. – Pareceu raspar a garganta. – Não se preocupe, não vou lhe encrencar se você me ajudar... - Olha meu senhor... – Jailton deu um passou na direção do velho. - Não! – Protestou o homem. – Fique aí. Não chegue mais perto... Por favor, só me escute... – Pareceu reconsiderar. – Se o fizer, logo vou embora. Juro... - Olha meu senhor. – O coveiro parou, por um instante teve medo de uma má reação do velho, mas nada aconteceu. – Então diga logo o que tem pra dizer e vai embora, está bem? - Está bem Jailton, está bem... - Antes quero saber uma coisa. Como sabe meu nome? - Por enquanto não posso te responder isso... Não tenho muito tempo... - Se está atrasado pra alguma coisa, pode ir embora! – ‘Por favor, por favor, some logo daqui’ rezou. - Ainda não. Preste atenção... Deixe-me falar... - Está bem... - Vim aqui pra te dar um aviso Jailton. É muito importante. - Pode dizer! – Ele já não aguentava mais aquela lengalenga. - Algo ruim vai lhe acontecer e estou aqui pra te ajudar, este é meu objetivo e pra isso estou aqui. Este lugar é a morada de muitas pessoas boas, meu jovem rapaz, mas mesmo assim a ‘vizinhança’ tem seus exemplares ruins. Como sei que ele já fez maldade no passado, sei que vai fazer de novo. Você é novo e tenho medo que não consiga permanecer neste emprego por muito tempo... Isso seria um desastre na sua vida. Sei disso. Sei sim... - Do que é que você está falando? Está querendo me ameaçar é? - Nada disso. Muito pelo contrário... Já lhe disse. Quero te ajudar. Escute este velho preto meu filho. Confie em seu coração, não vou e nem quero lhe fazer maldade.

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- Está bem... Supondo que esteja sendo verdadeiro, como pode saber de tudo isso? - Desculpa! – Raspou a garganta mais uma vez. – Mas não posso lhe dizer, minha única esperança é que acredite em mim. Que me escute e se cuide. Ele vai parecer ser seu amigo e vai tentar te enganar, não lhe dê atenção está me entendendo? Não lhe dê ouvidos Jailton por mais que se sinta tentado. Nunca. Ele tem uma boa maneira de convencer, meu rapaz, e vai tentar te enrolar... Não lhe sirva, não lhe dê esperanças se não, vai ser pior. Principalmente isto. Não fale com ele, não chegue perto dele e evite-o o máximo que puder. E se não puder... Bem... Ignore-o! - Está bem, mas... – Aquilo estava realmente lhe assustando. Muito. - Jure! - Eu juro! - Jailton, Jailton. Isto não é nenhuma brincadeira. Se você subestimá-lo será seu fim. E lembre-se acima de tudo, aquele que te ama, não lhe pede cama. – O negro se levantou e depositou algo no chão. - Adeus filho... ‘Se cuida’! - Espere! – Queria saber quem era ele. De quem o velho estava falando? O velho desapareceu. Simplesmente sumiu. Talvez tenha se movido tão rápido que não pôde vê-lo partir. Era possível, naquela escuridão. A luz da vela não iluminava tanto assim. Tonico foi o primeiro a averiguar a situação. Aproximou-se do local onde o velho estava e farejou a jazida. Jailton se mantinha parado. Não mexia um músculo se quer. Algo lhe ocorreu quando o senhor se despediu... “Adeus filho... se cuida!” ...daquela maneira. A voz. O jeito de falar e aquela despedida. Não. Que besteira... Não podia ser. Se fosse ele teria se borrado inteiro ou corrido pra longe. Mas... O velho se parecia demais com seu falecido pai. Parecia demais... Despertou-se à vida e notou que o clima do cemitério voltara ao normal. Aproximou-se da jazida do pai. Tonico havia encontrado algo ali... Abaixou-se e pegou o colar. Era um rosário azul-claro. Descansou a vela ali mesmo e não a pegou mais. Tonico saiu dali e foi farejar outras lápides enquanto Jailton examinava melhor o objeto deixado pelo velho com ajuda da luz bruxuleante. De alguma maneira o rosário lhe era familiar. Mas não se lembrava de ninguém que o usara. Era só a sensação. Levantou-se e, mais calmo, voltou para a casa do zelador. Resolvera dormir ali mesmo, no sofá. Queria pensar melhor em tudo que ouvira do desabrigado que encontrou. O homem não era mal, isso teve certeza, mas não batia bem das ideias. Era ‘pinel’. Deitou-se no sofá velho e fechou os olhos. Logo estava dormindo e teve uma noite de sonhos nostálgicos. Sonhou com o pai Damaceno. Sonhou com sua infância sofrida. Sonhou com Pablo. Sonhou com o presente e passado. E... Com o gato...

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8. Acordou sobressaltado com o latido esganiçado de Tonico. Levantou-se e abriu a porta. Espreguiçou-se. Esticou o pescoço pra fora pra ver se havia alguém ao portão. Não tinha ninguém, como, de alguma maneira, desconfiava. O cachorro latia para um gato. O mesmo gato do dia anterior... Sabia disso. Sem dar muita importância ao fato voltou pro sofá e descansou mais um pouco. Aquela casinha devia ter uns quarenta anos no mínimo. A tinta nas paredes estava descascando e cheia de fungos nos cantos. Na cozinha o azulejo do chão estava quebrado em vários pontos e o cheiro de comida estragada estava impregnado na pia. Quantos já não dormiram ali naquele mesmo sofá da sala? O trabalho de coveiro estava mudando sua maneira de ver a vida. Olhar incessantemente aquelas lápides frias e sem vida lhe causava uma estranha sensação de privilégio. Como se, estar vivo, ali, onde a maioria esmagadora dormia eternamente, fosse algo que ele não merecesse. Queria fazer por merecer... A manhã correu sem muitas novidades. Quatro pessoas apareceram no cemitério e visitaram seus respectivos parentes e mais nada. Uma delas, uma moça vestindo um vestido vermelho sangue, chorou bastante diante do túmulo do ente querido. Depositou um buquê de rosas brancas e foi embora... Tédio. Tonico passeava de um lado para o outro despreocupado depois de desistir em capturar seu inimigo. Já o gato, também curtia o ar fresco saltando esporadicamente de uma lápide para a outra. Jailton se perdia em devaneios quando avistou o rosário jogado encima da mesa. Levantou-se e pegou o ‘colarzinho’. Examinou-o por um longo tempo. Aquilo lhe era familiar, era sim... - Pra que serve isso pai? – Ele perguntou um dia para o senhor Damaceno. O homem segurava cada esfera azul de um rosário com as duas mãos e fechava os olhos. Ficava assim por uns trinta segundos, e deslizava os dedos para o próximo. – Pai? - Estou rezando pra sua mãe Jailton! – Respondeu ainda de olhos fechados. Sussurrava uma ladainha, sentado num pedaço de papelão improvisado para dormir. – E pro seu irmãozinho. Estavam morando num barraco de rua em São Paulo na época. Na época ruim... - Ah! – Respondeu o menino. Não entendeu nada. Pra que servia aquela coisa? Rezar não era na igreja e antes de dormir? – Mas pra quê serve estas bolinhas? - Pra contar o número de orações... – Suspirou e deu de ombros. Seu filho só o deixaria em paz se explicasse tudo logo. – Agente usa isso pra não perder a conta, pra facilitar e carregar com agente... Pode usar como colar, como pulseira... Do jeito que quiser e nos dá proteção do nosso Senhor e da Virgem... – Estendeu o rosário pro menino. – Nosso amigo daqui que me deu isto ontem enquanto você dormia... - O tio dos gatos?

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- Ele mesmo. Bom homem é aquele. Bom homem... – Esfregou os olhos como se tivesse com dor de cabeça. – Não sei como pessoas tão boas podem acabar nesta situação. Jailton apenas o observou e devolveu o rosário. Seu pai o colocou no pescoço. - Não sei como pode... Falando nele... Ele nos deu uma boa dica filho. – Ensaiou um sorriso. - Numa cidade perto daqui estão precisando de pedreiros... Acho que lá poderemos conseguir alguma coisa boa. O que acha? - Muito bom pai! – Sorriu em toda sua inocência. – Agente vai pra lá? - Vamos sim. - Quando? - Amanhã antes do nascer do sol... Tem que ser bem cedinho pra gente chegar rápido. - E vai demorar? - Bem menos do que levamos pra chegar da Bahia pra cá. Bem menos. - Então não vai demorar... – Damaceno conteve-se. Iam demorar sim. E muito... - Vamos de caminhão ou de ônibus? - A pé... Vamos pegar carona... Um pouco dos dois. Jailton não conseguiu esconder a decepção. - Escute meu filho... – Damaceno abraçou Jailton. – Agente tem que ir embora, se não agente vai morrer de fome aqui... Está me entendendo? - O garoto ficou calado. Manteve-se quieto e pensativo. Triste. – Vamos pra lá e seja o que Deus quiser! Naquela noite Damaceno chorou sem seu filho ver. E vice-versa. Lembrando daquilo sentiu um arrepio. O rosário em sua mão era idêntico ao do seu pai. Talvez, teria como saber se era tão parecido assim... Diante da lápide do pai, se ajoelhou e fitou a fotografia na pedra. Tonico fazia-lhe companhia enquanto coçava a orelha. Jailton chegou bem perto pra ter certeza do que via. Sim... Era isso. Seu pai usava um rosário como colar quando tirou aquela foto. Seus olhos brilhantes, seu sorriso... Deus, Damaceno era um excelente pai e um extraordinário homem. Por que o levou Cristo? - Aquele velho de ontem... – Sussurrou para a imagem de José Francisco. – Era o senhor pai? – Aquilo foi mais difícil de dizer do que imaginou. Admitir a possibilidade daquele mendigo ser de fato seu falecido ente era tenebroso. Reconfortante? Não sabia dizer... Era uma sensação inimaginável. Seu pai estava morto. MORTO. Não havia possibilidade alguma daquele senhor ser seu pai. Não mesmo, não podia pensar assim... Entretanto. Eram parecidos. Mais do que queria acreditar. As semelhanças eram assustadoramente enormes. O rosário, o timbre de voz, o sotaque sertanista baiano... Só agora se dava conta de como fora bizarro, e estranho, tudo aquilo. - Sim. – Admitiu. Foi relutante, mas no fim assumiu pra si mesmo. – Era você sim... De alguma maneira era você aqui ontem, não era? - Miauuuummm! – O gato de rua apareceu diante dele equilibrando-se na cruz branca acima da lápide. - Olá garotão! – Brincou Jailton achando graça, enquanto Tonico avançou contra o bichano sem latir. Farejou a cruz e deu um único latido balançando o rabo.

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O gato pulou pro chão e correu para um pequeno arbusto mais abaixo na trilha cimentada. Tonico tentou ir atrás, mas Jailton o impediu segurando-o pelo pescoço. - Calma cachorro... Deixa o bicho em paz... Voltou-se para a fotografia do pai e depois releu as inscrições na lápide; ‘Aqui descansa em paz o amado pai e querido companheiro José Fransisco Damaceno. Nascido em: 1947 Falecido em: 2002.’ Falecido em: 2002. Falecido... Sorriu sem achar graça e voltou para a casa do zelador.

9. A noite voltou, mas desta vez escondendo as estrelas. O céu estava nublado e o cheiro de terra molhada trazido com o vento era ameaçador. Iria chover. Provavelmente. Tonico dormia encostado ao portão trancado sem ligar para nada. Sonhava e sonhava. Jailton o espiava, sentado num dos degraus da capela, e fumava um cigarro pensando na vida. ‘Vim aqui pra te dar um aviso Jailton. É muito importante...’ Aquele homem. ‘Ele vai parecer ser seu amigo e vai tentar te enganar, não lhe dê ouvidos está me entendendo? Não lhe dê ouvidos Jailton, por mais que se sinta tentado...’ De quem ele estava falando? Pai? De quem eu devo tomar cuidado? ‘Ignore-o...’ Ignorar quem? Seus olhos estavam olhando, mas não enxergavam nada. Seu pai, se é que era mesmo o fantasma de Damaceno, lhe tinha dado um aviso... Suspirou e teve um sobressalto. Sonho. Será que não havia sonhado tudo aquilo? Ora, ora... Pra que se enganar? Não era nenhum idiota completo, claro que foi real... Claro o quanto foi possível ser no escuro do cemitério. Aquele velho calmo, tranquilo e de fala pausada e firme era, de alguma forma, seu pai. - Jaiiiiiiilton! – Soou um gemido meio ao breu. – Jaiiiiiiilton... Socoooorrooooo! Levantou-se como se tivesse tomado um choque repentino no degrau. Em pé ele tremeu mais uma vez. Desta vez não vou responder nada... Pensou. Desta vez vou seguir as vozes e ver quem é o engraçadinho que está querendo me assustar. Ah! Se vou... Abaixou-se e apossou-se de mais uma generosa vela. Jailton seguiu os gemidos, que repetiam sem parar seu nome e a pedir por ajuda... Estava bambo de receio, contudo seguiu firme passo a passo em frente. Logo estava diante de um par de lápides... As duas pedras eram de um cinza escuro como grafite e dividiam uma única plaqueta identificadora entre elas; ‘Aqui jaz Marcos Augusto Filho: nascido em 1957, morto em 1997 e sua adorável esposa Carla Maria Augusto Filho: nascida em 1960, morta em 2006. Um casal exemplar e amado pelos amigos.’

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Os gemidos estranhamente vinham dali... Debaixo. Ao lado da jazida da mulher existia outra bem menor e mais simples, contudo também possuía sua identificação, onde se lia: ‘Mimi, a gata mais amada’; e embaixo: ’Por Carla Maria’. Uma gata? Pensou Jailton esquecendo por alguns instantes, os chamados. Nesse instante os tais gemidos cessaram, mas só depois dele ter tido certeza de que viam de lá. Assim pôde se concentrar mais nas lápides diante dele sem ser molestado por supostas vozes do além... - Então... – Murmurou. – A lorota do seu José não era mentira?! Realmente haviam enterrado um bicho ali... Sinistro. Mas nada era mais sinistro do que aqueles gemidos esquisitos chorados pela terra. Agachou-se encima de uma das criptas e fez o máximo de silêncio possível. Não moveu nenhum músculo, apenas protegia a chama sensível da vela com as mãos do leve vento. Queria ter certeza absoluta do que tinha acontecido. Queria ter certeza absoluta de que aqueles gemidos medonhos tinham mesmo partido dali... Sentiu uma presença estranha às suas costas... Será que era ele? Ficou onde estava, relutava em se virar... O medo voltara. O clima do cemitério se alterou como no dia anterior. Sim, tudo de uma vez só. Rápido como um feixe de luz. Sentiu a respiração da criatura atrás dele... Reuniu toda sua força de vontade e coragem e se virou lentamente já preparando sua mente para o pior... Tonico o olhou confuso. O homem novo estava com medo dele? Jailton colocou a mão no peito quase deixando a vela cair e fechou os olhos de alívio. - Não dá pra você fazer mais barulho enquanto anda cachorro? – Perguntou baixinho. – Quase me mata do coração seu bostinha. O cão achando se tratar de um elogio, se aproximou balançado o rabo e lambeu-lhe a perna agachada. O zelador o acolheu sorridente, e aliviado por não ser ele, e lhe acariciou as orelhas pretas. - O que quer aqui? – Falou com o cão... – Eim? Viu alguma coisa? Tonico apenas ofegava a maneira canina e curtia o carinho bem vindo. - Jaaaii...! – Sussurrou algo dali debaixo dele. Parecia mesmo sair da cova do velho e falecido Marcos. A palavra foi cortada ao meio como se tivesse saído num engasgo... Com terra? Como se o fantasma tivesse mudado de ideia talvez... Mesmo assim não foi um gemido curto e baixo o bastante para não ser notado, além de causar uma nova série de tremedeiras em Jailton. Ele estagnou-se. Os olhos estalados. Tonico fizera o mesmo e o encarava confuso. - Jái...! – Outra vez. Contudo foi mais claro, e mais repentino. – Jaiiiiiiton... – Conseguiu em fim proferir a voz rouca e gélida da coisa enterrada embaixo dele. Tonico chispou-se como um raio, nem sequer fez barulho. - Minha Nossa Senhora Mãe de Deus! – Resmungou Jailton mantendo os olhos cerrados de medo e choque. Não queria ter ouvido aquilo... Contudo, se não queria, o que estava fazendo ali naquela posição? – Pai do Céu que me proteja, sai de reto satanás... – Continuou desesperado.

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Se pudesse, daria qualquer coisa a qualquer um pra lembrar a oração do credo, que sabia fazer bem para aquelas situações. Infelizmente ele estava armado apenas de uma vela acesa e um cachorro covarde que nestas horas... Cachorro? Que cachorro? Nenhum maldito ‘au-au’ para espantar a criatura. Tonico se mandara rápido como um relâmpago... O desespero e o medo lhe davam sempre estas esperanças idiotas. O que um cão poderia fazer contra um fantasma? - Você está aí Jailtoooon? – Continuou a voz medonha. – Você está mesmo de verdade encima da minha casa Jailtoooon? Sem pensar duas vezes ele saltou pra fora da jazida. De pé na trilha ele respondeu ao seu interrogador do além numa rapidez constrangedora – suas mãos tremiam tanto que a chama da vela quase se extinguiu por completa. - Num-tô-mais-não-senhor! – Isso saiu de uma vez numa voz fina e desafinada. – D-desculpa não s-sabia q-que... – Gaguejou ao mesmo tempo em que se equilibrava naquela realidade trêmula. - Não tem problema não Jailton... – Disse a voz rouca. – Só quis saber, homem... - T-tá bem, mas eu não estou m-mais não. – Queria chorar. Por que? Medo. Claro, puro medo. - Está com medo de mim coveiro? – Desdenhou a coisa enterrada. – Logo eu? Um inválido sem possibilidade de ir e vir? Que vergonha... Medo de um... - N-não estou com medo não... – Falou na medida do possível, controlando sua gagueira repentina e engolindo em seco. – Só um receiozinho. - Receiozinho? – Riu. O riso era áspero como serra partindo um tronco grosso de eucalipto. – Receiozinho Jailton? - É sim senhor! – Respondeu como uma criança com medo do professor que descobriu sua cola durante a prova. - Receio não faz ninguém gaguejar coveiro! – Parou de rir. – Seu medo por mim me ofende! O que eu poderia lhe fazer de mau homem do céu? – Parecia realmente indignado e sincero. – Me diz? O que um morto, se é que estou mesmo morto, poderia lhe fazer além de assustá-lo de inicio? Fale-me? - Não sei, mas... - Ta vendo só? Não sabe... Se não sabe, por que está com medo? - Porque... – Pensou ainda controlando a vontade louca de correr dali. – Porque... - Ora! – Bufou. – ‘Porque, porque...’ Pare com isso homem! – Deu-lhe a bronca como um pai faz com o filho. Percebia-se na entonação da voz a boa intenção. – Você já está velho demais pra ter medo de fantasma... - Não é medo... – Tentou questionar Jailton. - ‘É só um receiozinho...’ – Imitou o morto. Morto sim. Isso já estava bem óbvio para ele. – Estou sabendo. – Um ruído molhado de bocejo. – Escute aqui meu rapaz. Coloque uma coisa na sua cabeça. Eu não quero lhe fazer mal nenhum... - Então o que você quer de mim? - Apenas palestrar! - Palestrar? - É! Homem do céu... – Ficou um pouco impaciente. – Conversar, bater papo, trocar ideias... Entendeu?

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- Sim. – Engoliu em seco de novo, deu um passo pra frente, e perguntou. – Sobre o quê? - Nada demais... – Estava claramente satisfeito. – Qualquer coisa. Você não sabe, embora eu saiba que um dia vai me entender... Ficar aqui embaixo o dia inteiro e a noite toda, sozinho e sem ter ninguém pra falar é difícil viu... Muuuito difícil. A solidão bate na gente de uma maneira ruuuuimmm... Nem queira imaginar. - Nem quero... - Eheheheh! Nem queira mesmo. Bem, mas isso não importa mais... Acho que você já está perdendo o medo de mim. E isso já está muito bom... Muito bom mesmo, de verdade. - Você acha? – Pra que perguntar? Era verdade... Aquele defunto enrolava e anestesiava o medo como um médico faz ao entreter uma criança na hora de aplicar uma injeção. - Acho! – Foi categórico. – E isso me faz ficar feliz de verdade. Você está começando a entender... Um morto é apenas um morto e só pode fazer mal se não for enterrado direito, poluindo a terra. Mas onde estou... Não, isso é impossível... Não estou dizendo que faria maldades por aí, pelo contrário... Bem, só quis dizer, me entendeu, não é? - Entendi... – Quase. Mantinha-se na defensiva no máximo. Talvez aquele morto fosse o tal ‘ele’ que seu pai lhe avisara. Ou estivesse sonhando... - Pois é! Sempre fui uma boa pessoa enquanto estive... Bem... Vivo! Não é só porque morri, ficaria malvado. Que ideias tolas que este pessoal inventa... Brincadeira né? - É...! - Agora eu durmo a maior parte do tempo. Enquanto estou sonhando até que é bom. Parece vida real. – Riu. – Mas quando desperto é um horror... Já não tenho quase mais pele nenhuma e mesmo assim sinto algumas coceiras desagradáveis. Isso é foda! Já tentou se imaginar tendo estas coceiras sem poder se mexer? Acredite amigo. É o inferno... Sabe do que mais? - Não...! - Eu estou puto! – Pela voz, era o que parecia ao coveiro. – Acho uma baita injustiça. Nunca fui ladrão, assassino e nem um tipo de marginal ou depravado. E mesmo assim... Mesmo assim, algum cretino lá encima me condenou a passar a eternidade dentro de um paletó de madeira pra ser comido por vermes. Isso é uma bosta! Definitivamente uma bosta gigantesca. Jailton não sabia o que dizer... Mantinha-se calado e só respondia em pausas estratégicas. - Está sendo muito chato isto aqui Jailton. Muuuito chato. Nem te conto o que acontece quando chove... Ah! Aí sim é uma bosta mesmo... Sabe o que acontece quando chove aqui coveiro? Sabe? - Não! - Claro que não sabe. Mas devia pelo menos imaginar... – Aquilo foi uma ofensa? Pensou Jailton – Isso aqui vira uma privada meu amigo. É sim. Uma droga duma privada nojenta de parada de caminhão! – Marcos, o defunto, estava nervoso. Não com ele, nem com ninguém especificamente, e sim com a vida... Ou melhor, com a morte. O coveiro deixou o ‘homem’ desabafar. O que tinha demais nisso? Só por que era um morto falante? Nem quis responder a esses pensamentos. – A água da chuva encharca toda a terra aqui embaixo. Sim. E não é só isso... Não senhor... Ela faz toda a sujeira daí

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de cima, a mesma sujeira que o senhoooor não limpou, descer até aqui e me cobrir de porcaria. Meu velho terno de linho nem existe mais... Apodreceu mais rápido do que eu. Vê se pode uma coisa dessas. Sinto cada monte de barro me cobrindo e me inundando. Neeeemmm os malditos e covardes vermes me amolam mais por causa disso. Os bichinhos depois de me comerem toda a carne, ainda viviam aqui comigo, mas depois da primeira leva de porcaria, foram embora, se mudaram para o vizinho daqui do lado... – A indignação em cada palavra era incontestável. Se o morto realmente pudesse sair dali, ele já teria feito isso há muito tempo. – Falando nisso... Quem é que está enterrado aqui do lado? - Quem o quê? – Tentou fingir Jailton. - Quem está enterrado aqui do meu lado homem de Deus?! - De qual lado você está falando? – Jailton sabia bem de qual lado, mas quis ganhar tempo. Não sabia se dizia ou não, ao morto irritado, que sua mulher é quem estava coberta. - Jailton... - Sua mulher! – Respondeu logo. E que se danasse, ele faria o que? Não era culpa de ninguém... Talvez até gostasse. Sua esposa o fazia companhia, por quê não gostaria? - Minha mulher? – Parecia confuso, perguntou isso numa voz baixa e incerta. - É sim senhor! - Carla é o nome dela? - É sim senhor, Carla Maria... - É ela mesmo! – Interrompeu numa voz embargada. – Minha Carla... Minha mulher... – Parecia estar à beira do choro. – Tem certeza não é mesmo? - Tenho sim senhor! – Pensou confuso. – Hm... Eu lamento. – Raspou a garganta. – Meus pesamos. – Ele estava dando pesamos a um morto? Deus! - Nãããããããoooooo...! – Chorou o defunto escondido dentro da tumba. – Minha Carlinhaaaa... Por que você me deixou Carlinha? Por queeeê? Me diz... – Jailton espiou de rabo de olho a jazida de Carla e pensou: ‘Não responde não, pelo amor de Deus.’ “Por que você me deixou?” O que aquele cadáver estava falando? Caramba o cara ficou louco depois de morto... Pensou Jailton quase sentindo pena do penado. E o estava enlouquecendo também. - Está bem senhor...? – Perguntou o coveiro tentando ser gentil. - Eu pareço estar bem homem? – Gritou desesperado ainda em pleno absurdo pranto. - Não senhor! – Sussurrou Jailton. - Me deixe em paz por hoje... – Soluçou Marcos. – Quero ficar sozinho! Jailton não lhe respondeu nada. ‘Quero ficar sozinho...’ Ave Maria, cada uma... A vela em sua mão já havia ficado dois centímetros menor. Deu de ombros e se retirou meio ao incessante pranto do cadáver. Deus! O que era aquilo? Pensou consigo. O clima pesado extingui-se repentinamente assim que alcançou a principal trilha do cemitério, a que levava do portão à capela branca. Assim que se sentou no sofá velho, onde Tonico já estava há tempos, é que todo o ocorrido lhe caiu como uma bigorna na cabeça. – Minha Nossa Senhora do Rosário! – Proferiu sustentando o rosto com as mãos. – O que foi isso Pai do céu? Ele tinha mesmo conversado com um defunto? Ele tinha mesmo ouvido o defunto chorar?

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Sim senhor! Logo em seguida ouviu os tapas d’água nas árvores e no telhado. A chuva caiu tamborilando no cemitério lhe tirando a possibilidade de ir embora para a pousada. Jailton não teve certeza meio ao barulho do temporal noturno, mas pareceu ouvir de longe outro gemido que lhe gelou os ossos: - Porcaria de chuva!

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Jailton, logo de manhãzinha, resolveu ir ao banheiro. Por sorte já sabia onde ficava o lugar. Pablo não lhe mostrou por distração quando chegou ali, mas o quartinho sanitário ficava fora da casa do zelador, aos fundos do cemitério no setor norte. O banheiro humilde, um pequeno cubículo construído com tijolos pintados de azul-bebê e uma velha porta de tábua presa por trincos pouco resistentes. Lá dentro havia apenas uma chapa de madeira suja e um buraco bem no meio, dali projetava-se um fedor característico. Não tinha outro jeito, teria que servir e rápido. Depois de aliviar a tensão intestinal, Jailton deu de cara com o gato bege. Parecia ser apenas um gato de rua, nada mais. Mesmo assim, pensou afivelando o sinto, tinha um olhar instigante. Um olhar inteligente. O bichano estava sentado no seu caminho encarando-o. O coveiro sorriu e não teve certeza de quem analisava quem naquele momento. ‘Mooonnn!’ Miou o gato numa voz grossa e lambeu a pata. Jailton agachou-se e estendeu a mão. - Vem cá gatinho... – Disse. Mas o bichano não se moveu, nem pareceu ter ouvido. – Vem cá...! O gato o olhou de novo. Deu mais um miado estranho e se aproximou cauteloso. Cheirou os dedos de Jailton e se roçou em seu braço. - Isso! Ta vendo? Não vou te fazer mal... Está com medo de mim coveiro? Lembrou. Seu medo por mim me ofende! O que eu poderia lhe fazer de mau homem do céu? Aquelas palavras o inundaram de dúvida. O que um morto poderia fazer para uma pessoa? Nada. Claro... Apenas causar saudade talvez. Mas mal? Não... Entretanto, um morto que falava... Isso ele já não tinha certeza. O defunto reclamava da estadia na tumba! Simplesmente surrealista. Inconcebível no mínimo. Mesmo assim, o fato ocorreu e ninguém lhe faria acreditar no contrário. Se contasse para alguém, por certo passaria por mentiroso. E não? Aquela história era inacreditável ao pé da letra. Coisas daquele tipo acabavam remotas nas sombras mais profundas da mente. A maioria das pessoas, vítima de tais ocorridos, passava a não recordar de tais acontecimentos com o tempo. E era isso que torcia para acontecer. Não queria se lembrar daquilo de maneira alguma. Não lhe faria bem ter em suas lembranças uma conversa com um morto.

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Tinha demorado muito até conseguir se sentir um homem útil e respeitável, não seria agora que estragaria tudo passando ter a fama de mentiroso, ou pior, de maluco. E é o que iria acontecer se insistisse em se lembrar... Era completamente compreensível o ato de não botar fé em tais contos e lorotas como aquela contada pelo senhor José da pousada. Estes causos eram para crianças, nada mais. Não para um homem como ele, no entanto, estava ali se remoendo de dúvidas sobre a autenticidade da coisa. Pensando nisso... Lembrou-se do gato da estória do velho da pousada. ‘Era o gato... O gato era o morto!’ Falou José pra ele. ‘Aquele gato estava enterrado ali Jailton. Eu não te disse, mas naquele cemitério, a dona dele tinha enterrado o bicho junto ao túmulo do marido. A mulher era doida, mas tinha bastante dinheiro antes de morrer, então pagou a gente pra enterrar a coisinha ali... Fazer o que? Não nos custava nada...’ O gato miava e ronronava de prazer aos carinhos de Jailton. Ele olhou para o animal que fechava os olhos quando passava a mão em sua cabeça. - Você está morto gato? – Perguntou sério pro bicho que ignorou a pergunta. – Você não seria um zumbi não né? Sorriu pelo absurdo da ideia. Mesmo assim pegou o bichano no colo e o examinou atentamente. O cheirou. Nada, era até bem cheiroso o animal. Já sorria de satisfação quando notou o sexo do gato. Não era um gato, sim uma gata. Coincidência? Mimi era fêmea e estava enterrada naquele mesmo cemitério. Pensou... Soltou a gata no chão, se afastou um pouco e chamou sem fazer nenhum gesto para não comprometer o teste: - Mimi? – Chamou docemente. O nem tão esperado assim aconteceu. A gata veio-lhe miando. Jailton sentiu mais uma vez seu coração aperta-se dentro do peito. O irracional medo apareceu. Nenhum pavor. Só o já bem conhecido receio. - Você é Mimi? – E a gata miou como se concordasse e estivesse satisfeita por ser reconhecida. Jailton a pegou no colo ainda não acreditando inteiramente no que estava associando. O bichano poderia ser apenas manso e atender a qualquer nome... - Acho que estou ficando louco... Você nunca poderia ser Mimi... Não é mesmo fofa? – E a acariciou mais uma vez. Jailton gostava de animais, nunca pôde ter um. Agora, na prática, tinha dois. – Vamos lá pra dentro, vou te dar alguma coisa pra beber e comer... E assim ele fez. Até aproveitou para esquentar o resto da comida que guardou no dia anterior. Para Tonico foi pouca coisa, resto do resto, tudo bem. Havia comido bem de manhã. A gata se alimentou satisfeita e miava de vez em quando, Tonico nem deu bola para ela, como achou que faria. Os dois talvez se tornassem até amigos, longe do estereotipo criado pelas pessoas. Assim passou-se dois dias. Tranquilos e naturais. Nada de fantasmas e mudanças repentinas na realidade. Era só Jailton, Tonico, Mimi e o cemitério. Nada mais. Nem mesmo visitantes. Jailton foi até a pousada na quarta feira para pedir um pouco de comida para dona Joana. Ela deu com prazer, pois ele prometera pagar tudo no final do mês. Não conversaram muito, pois o novo zelador do cemitério tinha que regressar rápido, não

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podia deixar o lugar vazio. Mesmo assim a vontade de compartilhar aquele ocorrido com alguém era muito forte. Fez força para segurar isso, mas todo seu controle se extinguiu ao encontrar José aparando algumas folhas nos arbustos do jardim. - Como vai Jailton? – Cumprimentou o velho acenando com uma larga tesoura. – Está bem no novo emprego? - Estou bem sim, graças a Deus. – Acenou no intuito de partir logo. - Viu algum fantasma? – Perguntou de repente o velho prestando atenção na reação dele. Jailton parou, coçou algo invisível na pele negra do braço... - O quê foi? – Realmente não teve certeza sobre o gênero da pergunta. – Não entendi. - Perguntei se você por um acaso não viu nenhum fantasma lá... - Ah! – Disfarçou o ‘comichão’ em suas lembranças. – Não, não vi nada estranho não. – Mentiu. - Que coisa... – O velho parou com seu serviço e se concentrou em Jailton. – No primeiro dia em que trabalhei lá já me deparei com estranhezas. Bem... Talvez você tenha o corpo fechado pra estas coisas. Jailton suspirou e se aproximou de José. Deu de ombros e revelou um pouco constrangido: - Na verdade só tenho ouvido umas coisas... - Ouviu é? Que tipo de coisa? – Os olhos do velho brilhavam. – Gemidos, é? - É sim... – Agachou-se do lado dele. – Não queria que ninguém soubesse... - Por que? – Parecia mesmo surpreso. - Fiquei com medo de alguém achar que estou ficando louco. Sei lá... Nem mesmo eu tenho certeza de estar... - Duvido que esteja louco Jailton. Estes tipos de coisas acontecem em lugares como aquele... Não se preocupe. Eu já vi coisa bem esquisita ali, e nem por isso estou doido. Mas me diga... O que você ouviu? - Foi mais que ouvir, na verdade... Eu conversei! – Jailton encarou o velho tentando parecer o mais cético possível. - Conversou? - É! Conversei com um fantasma... – Já esperava a risada incontida de seu José. Mas ela não veio, pelo contrário, o homem fechou o cenho e moveu os lábios de preocupação. – O que foi? Isso é ruim? - Depende... - Depende do que? - Ué... Depende de como foi a conversa e de quem estamos falando... - De um morto! - Sim, sim. Digo, depende se o fantasma é nervoso ou calminho... - Por que? – Jailton tinha um mau pressentimento quanto aquilo. - Por que? Isso é claro não é? Se for um fantasma mau, ele vai ser nervoso e se for bonzinho ele vai ser calminho e amigável... Como era o que conversou com você? - Não sei dizer... – Não sabia mesmo. O fantasma de Marcos não era nem uma coisa nem outra. Ora estava zangado, outra estava sendo simpático. – Ele era reclamão. Só isso, e estava carente de ter alguém pra conversar... - Certo! – Seu José voltou ao trabalho. – Então ele é só uma alma penada. - E isso é ruim?

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- Nem tanto. As almas penadas, como já diz o nome, são apenas espíritos que ainda não conseguiram ir pro céu. Tem algo que as prende ainda neste mundo... - E o que seria? - Sei não! Depende do morto. Alguns ainda estão amando a mulher, outros tem saudade dos filhos, uns se sentem traídos por alguém ou têm sede de vingança pelos seus assassinos. Depende... Existem muitos motivos que levam as almas se prenderem a este mundo. Isso é complicado... - Complicado mesmo... - Não foi o que quis dizer. Complicado no sentido de ‘como lidar com eles’! – José parou novamente e se sentou de vez no chão do jardim e descansou a tesoura na terra fofa. – Eles são todos carentes de atenção, por isso fica difícil ignorá-los. ‘Ignore-o!’ - Meu pai me disse algo parecido estes dias! – Isso saiu sem querer. - Seu pai? – O velho se surpreendeu. – Como assim ‘estes dias’? Seu pai não morreu?! Jailton olhou para o velho de uma maneira intrigante. Seus olhos se arregalavam enquanto José abria a boca, impressionado com o que estava começando a entender. - Me diz uma coisa rapaz! – Começou o jardineiro de plantão ainda revelando a feição espantada. – O fantasma de que me está falando... É seu pai? - Não, não senhor! – Garantiu Jailton rapidamente. – Este é outro! – E mais uma vez é traído pela própria boca grande. - Como assim ‘outro’? – José coçou o rosto áspero, pela barba mal aparada, e tirou o boné vermelho. – Quantos fantasmas conversaram com você meu filho? - Só um! – Grifou isso mostrando o indicador. – Mas não tenho certeza quanto ao outro... - Me explique melhor esta história Jailton... E foi o que ele fez. Contou tudo o mais detalhado que conseguiu. Desde o encontro com o velho até a palestra com Marcos, o defunto falante. Por final o velho bufou: - Vexe Maria Jailton! – Riu de nervoso e espanto. – O que ‘que’ é isso que você está me contando? Coisa danada de assustadora! - Pois é... – Suspirou Jailton desafinado. - Nossa Senhora... E o que você vai fazer agora? - Nada ué! – Deu de ombros. – Não posso fazer nada. – Levantou e pegou a sacola com comida e outras utilidades que levaria para o trabalho. – Só vou continuar na minha e trabalhar. - Tá certo. – José também voltou aos seus afazeres. – Você está corajoso, eim homem? Jailton apenas riu disso e se despediu.

11. Mas na madrugada de quarta pra quinta, quando ele nem mais se lembrava dos ocorridos, ele escutou o gemido já conhecido. O vento fazia com que a voz do morto

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ganhasse uma textura sombria e arrepiante. Tentou ignorar... Mas não deu, simplesmente não conseguiu de jeito nenhum. Levantou-se e foi até a tumba de Marcos. Logo que chegou, o gemido parou bruscamente. Tonico o havia seguido e se recostou no tronco grosso da árvore que os cobria ali. O caule se projetava do cimento da trilha de um lugar seguro para o cachorro, pelo menos era distante o bastante para ele. - Você está aí coveiro? – Perguntou de repente a voz caracteristicamente rouca. Jailton suspirou, segurando a mesma vela do dia anterior, e respondeu: - Estou sim... O que quer hoje? – Não notou. Nem parou pra pensar no assunto, mas ele já estava levando tudo aquilo de uma maneira bem natural... Sua mente já se acostumara com a coisa. Nem se quer notou alguma mudança climática ou algo semelhante. Estava tudo normal, uma noite escura e fresca. - Apenas palestrar! Pode ser? - Pode sim... Estou com sono, mas agora já não faz diferença... – Reclamou. - Me desculpe, mas não consegui me segurar. Até pensei em não te amolar coveiro, mas não aguentei... - Tudo bem... – Fez uma careta descontente. - Hoje até que estou me sentindo melhor. Não choveu e a terra está morna e confortável. Nem coceira eu senti. Só a solidão. Mas agora isso também já não me é problema. - Que bom. - Que bom mesmo. Agradeço desde já sua atenção e peço desculpa por ter gritado contigo naquele dia. Eu estava nervoso... Sabe como é... A coisa aqui é triste. Quando agente está vivo nem sonhamos como é isso. Passamos toda nossa vida correndo atrás dos nossos sonhos e resolvendo problemas, pagando dívidas, ofendendo e sendo ofendidos... Às vezes até nos esquecemos que estamos morrendo e que o final é inevitável. - Tem razão. - Pois é. Mas olhe pra mim aqui e agora. Morto. Mortinho da Silva! – Suspirou. – Agente sempre acredita que vai morrer só quando tiver uns noventa anos ou de alguma doença como câncer e AIDS. Mas Deus usa desculpas bem menos convincentes do que estas para nos levar daí de cima. A coisa é bem real. Muito real mesmo. Mesmo assim, a morte é tratada apenas como uma estória de terror. Não culpo ninguém por isso, eu também era assim... Pouts! Nem depois de morto acredito que morri... – Riu disso. Os dois. – Mesmo assim eu sei que agente morre coveiro. Sei. Não é um saber hipócrita e confortável da juventude, estou lhe falando da certeza de um morto! Nós todos enquanto vivemos sabemos que vamos morrer... Sabemos! Mesmo assim a certeza da morte de um jovem ou até mesmo de um adulto com seus trinta anos, não se compara a certeza de um moribundo. Não mesmo, a sensação é beeeeem diferente, posso lhe garantir. Você quase pode ver o além... Você se sente um filho pródigo voltando ao lar... Isso mesmo, nem sei te explicar direito, mas é bem esta a sensação. - Por que está me falando isso tudo? - Não é óbvio? - Não! - Porque você vai morrer Jailton! - Como sabe que vou...

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- Todo mundo morre Jailton! – Interrompeu Marcos antes que o coveiro o entendesse mal. – Estou lhe dizendo justamente isso. Todo o mundo morre. Eu disse que você vai morrer, só, nem quando e nem onde, mas que vai morrer isso é lógico. – Riu. – Está vendo só? Você não devia ter ficado surpreso se realmente soubesse disso... - Não fiquei surpreso... - Ah! Ficou sim senhor! ‘Como sabe que vou morrer?’ Não foi isso que me perguntou? Jailton se manteve quieto. Tinha algo por trás daquela conversa toda... - Escute coveiro. Minha intenção não é lhe assustar. Pelo contrário, quero que tenha plena consciência e satisfação de estar vivo, pois agente nunca sabe quando vamos dessa para uma melhor, me entende? Quero que viva, e muito, mas acima de tudo, que viva bem. Como já bem pôde comprovar, eu não tenho mais este direito... Quando o fantasma lhe disse isso, lembrou-se da conversa com seu José... - Posso te perguntar uma coisa? - Claro que sim coveiro! - O que te segura aqui? Silêncio. Segundos intermináveis se passaram antes da voz rouca responder: - Se eu te disser, talvez você não vá acreditar! - Pode dizer... - Tenho saudade de ver a lua cheia coveiro. – Jailton olhou pra cima e viu a lua crescente, quase cheia, era mesmo linda, mesmo assim... - A lua? Só isso? - ‘Só isso’ coveiro? – Pareceu indignado. – Talvez não seja grande coisa pra alguém que possa vê-la sempre que quiser... - Me desculpe... - Mas pra mim Jailton. Ela é meu talismã. O símbolo de tudo de bom que vivi, e me lembro... Mas nem mesmo em sonhos ela é tão real. Daria qualquer coisa só para fitá-la pela última vez. - E você poderia vê-la mesmo depois de morto? - Com certeza coveiro. A única coisa que me impede é esta lápide encima de mim. - Sem olhos? - Como assim? Não preciso destas coisas agora... Enxergo com a alma. - Me desculpe, mas, se pode fazer isso, por que precisa sair daí? - Não precisa se desculpar, sua pergunta faz sentido... - Então? - Talvez seja justamente por causa disso coveiro. A alma. Minha mente ainda está presa aos sentidos da vida. As leis da física e da razão de alguma maneira. Está frouxa, claro, se não, não estaríamos tendo esta conversa. Embora sua mente aberta facilite a coisa. Mesmo assim, tenho certeza que se eu tivesse um contato a olho nu, se me perdoa a expressão, poderia vê-la e partir para o além. Pena que minha alma não consiga sair daqui... Ela acha que tem peso e matéria ainda... É difícil explicar isso. - Mas acho que entendi... - Bem... Mas não tem jeito né? O jeito é ficar aqui chorando pro resto da eternidade ou até uma boa alma me tirar daqui só um pouquinho... Aquilo foi claramente uma indireta. Jailton não iria cair naquilo...

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- Entenda... – Não sabia se era direito chamá-lo pelo nome. Vai lá saber... Talvez o morto não quisesse se lembrar de quem fora ou coisa parecida. Porém, pensando melhor, ele o chamava pelo nome, teria que aceitar o mesmo tratamento ora bolas... - ...Senhor Marcos. Eu, infelizmente não posso tirá-lo daí, entende? Mais silêncio, então: - Compreendo! – Pareceu infeliz, mas vencido. – Você enterra pessoas, não as desenterra! - Pra falar a verdade nunca nem sequer enterrei alguém... Sou novo aqui. Estou trabalhando no cemitério apenas há três dias. Ainda não precisei enterrar ninguém... - Certo... Mas vai enterrar. Tudo bem, tudo bem... Não tinha muitas esperanças de fazer isso por mim de qualquer forma, além disso, nem é lua cheia ainda... - E como sabe disso... – Se intrigou Jailton. – Naquele dia também me disse algo sobre dia e noite... Como pode saber destas coisas aí debaixo? - Simples! O barulho... - O barulho? - É, coveiro, pelo som das coisas... – Suspirou como um professor faz antes de uma explicação que, no seu ver, é mais simples do que o aluno faz parecer. – De dia o barulho é o já conhecido. Passos de pessoas em excesso, animais diurnos, o estalo das folhas ao sol, carros e por ai vai. Já de noite, o ruído dos insetos noturnos, corujas, grilos, sapos ao longe e a ausência da turbulência humana, sem contar o ar fresco, sei disso pela temperatura da terra... - Certo, faz sentido... Até aí tudo bem... Mas como sabe a estação lunar? - Pelo som também... Depois de um bom tempo sem poder ver, como os cegos - até melhor do que eles inclusive - posso distinguir a diferença dos sons que os animais fazem em noite de lua cheia. Alguns são mais ativos neste dia e outros nem abrem o bico... - Estou impressionado... - Sei o bastante pra saber que é quase lua cheia, ainda. - Fantástico. - E seria maravilhoso se desta vez, eu pudesse vê-la, ainda mais depois de saber da morte de minha mulher... Ainda está difícil de aceitar a coisa. - Eu lamento... Não quis piorar as coisas pra você... - Não precisa se desculpar coveiro. Você está sendo mais gentil do que qualquer um que eu tenha conversado antes... - Você já teve conversas com outros coveiros? – Jailton achou aquilo extraordinário, então, afinal, ele não era mesmo louco. - Na verdade... Não... É uma pena, mas todos eles correram e arranjaram outros empregos... Sempre aparece um novo por aqui... Deve ser culpa minha... - É, deve ser mesmo... – Riu. – Mas Pablo ainda não se foi, só está de folga na cidade natal dele... - Pablo? - É, o coveiro que estava aqui semana passada, estou lhe cobrindo o turno esta semana... - Não conheço nenhum Pablo, coveiro. – Aquilo soou como quem queria insinuar que Jailton estivesse louco. – Tem certeza?

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- Tenho, foi ele que me deu as chaves do cemitério... – Parou e tentou lembrar-se disso. Não era bem verdade. As chaves foram mostradas a ele e nunca entregue de mão para mão. – Não se lembra dele? - Não... Eu me lembraria, pode ter certeza... - Não pode ser, ele trabalhou aqui por uns vinte anos mais ou menos... - Eu nunca ouvi falar de nenhum coveiro chamado Pablo! – Foi firme ao dizer isso. – Pode ter certeza, me lembro de cada um que trabalhou aqui... - Agora você me ‘encucou’! - Jailton espiou Tonico e coçou a cabeça coberta por um cabelo crespo e curto. – Não pode ser. Eu o conheci... Pessoalmente. - O último que trabalhou aqui se chamava Eliseu, e o outro antes deste se chamava José... - Você conheceu José? - Só de nome... Ele nunca conversou comigo... Tinha um medo danado, nem sentia seus passos por perto... - E este tal Eliseu... Sabe me dizer como ele era? - Fisicamente não, mas devia ser bem jovem, pela voz... - Não... Pablo já deve ter uns cinquenta anos se não me engano... - Com o perdão da palavra Jailton! Acho que você está pirando... Ou então... – Deu à palavra aquele tom típico de suspense. - Ou então? - Ou então este Pablo de quem está falando seja um fantasma! Fala sério... - Você não acha? - Impossível. Eu o vi frente a frente, peguei na sua mão, senti seu cheiro, olhei em seus olhos, o vi abrindo o portão pra mim e outras muitas coisas... Simplesmente seria impossível! - Não acho não. – Foi confiante ao dizer isso. – Tudo que me disse não prova coisa nenhuma... - Como não? - Jailton... Quer mesmo saber? Isso pode deixá-lo doido de vez... - Pode dizer, se conseguir me convencer... – Não acreditava que alguma opinião pudesse lhe fazer acreditar que o zelador residente do cemitério era um fantasma. Um morto queria convencê-lo de que um vivo era um fantasma? - Tudo bem. Antes me responde uma coisa... - Diga! – Jailton estava tão à vontade com a conversa que se sentou na jazida do lado, não a de Carla, na outra, a de um desconhecido de Marcos. Acendeu um cigarro... - O que é um fantasma pra você? - Ué! Um fantasma é alguém que já morreu e que aparece pros vivos... - Não senhor... Não é só isso... Sabe me definir isto melhor? Pensou e pensou. Não sabia... – Não... - Um fantasma não é alguém que já morreu! - E você não é um fantasma? - Sou sim, acho que sim... - Então?! - Mas sou um fantasma só pra você e pra mim Jailton!

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- Como assim? Tá maluco? E pras outras pessoas que você assustou com seus gemidos... - Pra elas também... Mas o que quero que entenda que fantasma não é ser, é ver ou ouvir... Antes que me pergunte alguma coisa, vou logo explicar! Embora eu não devesse... Mas você é inteligente e acho que me entenderá, embora eu corra um risco danado fazendo isso... Fantasma, Jailton, é algo que a mente produz quando é pressionada, afetada ou induzida. É algo que preenche as lacunas da nossa incompreensão! - Não entendi n... - Espere! Deixe-me terminar e você entenderá tudo. – Limpou a garganta teatralmente. – Quando uma pessoa vê, escuta ou sente um fantasma, na verdade ela é quem está fazendo aquilo. Não inteiramente, mas facilitando em noventa e nove por cento o fenômeno. Quando alguém sente muito medo destas coisas e se encontra em lugares como cemitério, casas abandonadas, ruas desertas, leito de morte... A mente humana é capaz de simular algo como fantasmas. Juntando isso ao fator, saudade de um ente querido ou de uma pessoa conhecida... Tudo isso pode ser a matéria prima de um ectoplasma, mas só ganha ‘vida’ a coisa se a pessoa acreditar ou tiver a mente muito aberta... Céticos nunca vêem estas coisas, apenas pessoas supersticiosas ou simples. Agora, aquela consciência perdida pelo corpo do morto, pode usar este mesmo ectoplasma criado pela pessoa, para habitar e ganhar uma semi-existência neste mundo... Como eu... Aposto que antes de ouvir minha voz ou o gemido, você estava se borrando de medo do cemitério em si, não estava? - Mais ou menos... - O medo é um excelente combustível para este processo... – Avisou, mas já era tarde demais. - E no momento em que você vê um fantasma pela primeira vez, as chances de voltar a ver um são enormes... E cada vez com mais frequência. Chego até a arriscar que eu não fui o primeiro que teve contato... - E não foi não... – Aquilo saiu inseguro. Mas àquela altura já não tinha mais o porquê de esconder de si mesmo a verdade. Vira seu pai. Seu pai é que era o velho. Fato. – Vi meu pai... Neste mesmo cemitério... - Seu pai? – Surpreendeu-se. – Xiiiiiiiii... - Por que? Isso é ruim? Ver meu próprio pai? - Não, não... Sempre é bom rever quem agente ama. O problema não é esse, mas sendo o que sou posso lhe assegurar que um fantasma só entra em contato com um parente direto pra trazer notícias ruins ou dar avisos... Silêncio. - Acertei não foi? – Perguntou o morto. – Virei um especialista em “fantasmologia”! – Riu. – Mas o que foi que ele te disse? Muito ruim? Jailton se sentiu acuado. E agora? O que faria? Não tinha muitas certezas sobre a índole de Marcos ainda, talvez fosse dele que seu pai estivesse falando. Pensou e pensou... - E então? Não quer falar sobre isso? Bem. Se ele não arriscasse, as chances de ter certeza nunca chegariam. - Meu pai veio pra me dar um aviso! - Aviso é? – Voz de preocupação. - Quanto ao quê? - Quanto a um fantasma! Que faria algum mal pra mim...

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Silêncio mais uma vez... - Bem! Não sei o que dizer... – Disse Marcos. – Só espero que não desconfie de mim... Como eu já disse, não faria e nem vou fazer nenhum mal pra você... - Espero que não! Acho você simpático e até te entendo quando fica bravo... – Fazendo a política do bom vizinho. – Mas a gente nunca sabe não é mesmo? - Nunca! – Ouviu-se um suspiro prolongado. – Tem razão, compreendo... Se não quiser mais conversar comigo... Vou entender! – Aquilo soou falso. - Não é isso... Na verdade nem me importo. Eu fico sozinho aqui fora também, até que conversar com você passa o tempo... Embora seja sempre de madrugada ou de noite... - É a hora em que acordo... – Explicou-se em tom de desculpa. – Não tenho escolha... - Tudo bem... – Jailton fitou a pequena jazida da gata neste momento. – Posso lhe fazer uma pergunta? - Pode, claro, até duas se quiser! – Tentou parecer menos magoado. - A gata de vocês, foi enterrada antes ou depois de você? - Gata? Que gata? - Mimi, como está escrito na lápide. Você não sabe do que estou falando? - Sei não... Nunca tive gata! A não ser que tenha sido de Carla depois que bati as botas... – Riu. – Mas por que está me perguntando isso? - É porque ela está enterrada ao lado da jazida de sua mulher, queria saber o por quê disso! - Enterrada aqui? – A surpresa foi grande pelo tom da voz. – Aqui no cemitério? - Foi sim, como eu disse, ao lado do túmulo de sua esposa... - Minha Nossa!!! Você está falando sério Jailton? - É! Por que? - Porque isto é grave... Muito grave... – O espanto de Marcos foi repentino e inesperado. – Jura que é verdade? - Juro... Está escrito assim, “Mimi, a gata mais amada”, e embaixo está grifado, “Por Carla Maria”. Era sua mulher... - Não acredito nisso! Ela arranjou um gato?! – Estava indignado. – E enterrou o puto aqui do lado? Tão perto? - Foi sim... E tem mais... Ouvi dizer que o gato... - quero dizer - a gata fugiu depois de morta... Na mesma época em que José era o coveiro... Ele que me disse... Pessoalmente. Até achei na hora se tratar de lorota do velho. - Mas que m...! – Xingou. – É pior do que imaginei... - Por que é tão grave assim? - Porque animais fantasmas são sempre péssimas coisas. O pior tipo de alma penada que existe é a de um bicho de estimação. Eles são irracionais mesmo quando vivos... Imagine o que podem ser depois de mortos... - Mas você mesmo me disse que a morte não torna ninguém pior... - E ainda digo, mas me referia às pessoas, não aos bichos, por isso o cemitério de animais é separado do cemitério dos homens. - Ainda não entendi a gravidade... – Jogou a bituca de cigarro fora. - Jailton, eu não te disse o que é um fantasma? - Disse, mesmo assim eu...

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- Pois então homem. Acorde! Animais não pensam, agem por instinto... Se um bicho volta do mundo dos mortos é mau sinal. Porque só voltam se tiverem possuídos por outra coisa... - Outra coisa? – Aquilo estava lhe causando arrepios. - Só existe um tipo de coisa baixa o bastante pra possuir um bicho irracional. Algo lhe dizia que não queria ouvir o que era... - Um ‘léprie’! - Um o quê? - Um léprie, Jailton, um maldito léprie! – Quase gritou. - Desculpa, não teria como saber... São uma espécie de... Como diria, seres sem corpo que dependem de alguma coisa para sobreviver... Acho que é isso, não tenho muita certeza... Ouvi sobre isso depois de morto, não me lembro como, mas tenho certeza de que foi isso e deste jeito, talvez em um de meus sonhos. – Marcos parecia assustado. Um morto com medo de um fantasma? – Eles não são fantasmas como eu... Eles são algo fora do contexto. Coisas que de alguma maneira não conseguiram encarnar em nenhuma forma humana ou animal e vagam eternamente no limbo. Entre o mundo dos vivos e dos mortos... E quando conseguem a chance de possuir um defunto, sempre de animal, ficam a mercê de más influências... E aprontam... - Aprontam? – Jailton engoliu em seco. - Sim... Dão azar e atacam como bichos selvagens quando menos se espera. Podem, em alguns casos, até matar. - Nossa Senhora, isso é grave... Mas como posso saber se um gato é um léprie ou não? - Na lua cheia... Apenas neste dia é possível notar alguma diferença... Eles mudam o comportamento, sem falar do cheiro... De perfume à carniça num segundo... Assim que a lua desponta no céu... - Certo... – A preocupação estava presente em seu tom de voz. - Por que me perguntou isso coveiro? Viu algum gato estranho por aí? Achou melhor não dizer... Chega de detalhes e intimidades... Além disso, a gata estava bem viva, com certeza... Como Pablo... Bem, quanto a este... - Não, na verdade não... É que José me contou sobre um gato... Já te disse. Foi só curiosidade. – Esperou ser convincente. - Ainda bem... Porque se tiver algum gato, ou gata, circulando por aí, no cemitério em noite de lua cheia. Fique longe! Ou se puder, espante-o para fora e não o deixe entrar aqui nem fodendo! – Era medo naquela voz. Era sim... – Fui claro? - Se foi! - Ótimo... Confio em você! – Suspirou. – Bem... Amanhã a gente conversa mais sobre isso e outras coisas... Graças a você estou com sono e me sentindo cansado. Boa noite coveiro! - Pensei que gostasse de conversar... - E gosto. Adoro... E por isto estou agradecendo... - Ah certo. – Riu sem jeito. – Então boa noite... - Boa noite mais uma vez... – Pausa. – Até amanhã! - Até! – Embora não quisesse ouvi-lo tão cedo. Neste momento Jailton se sentiu mais leve e tranquilo. Algo desaparecera ao seu redor. Não havia notado, mas o clima estranho estava lá o tempo todo e só dispersou

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agora. Como uma luz ao longe se apaga, e só percebemos que esteve lá quando se extingue. Jailton sentiu a cabeça pesada de arrependimento. Como se tivesse acabado de fumar um cigarro quando pretendia parar. Na hora foi até bom, mas depois... Não devia ter ido até lá... Agora o fantasma estava viciado nele... E... Talvez ele mesmo no fantasma. Quanto a Mimi. Era idiotice acreditar que aquela gata mansinha e cheirosa fosse má... Quanto a Mimi? Se assim fosse, por que a chamava pelo nome da gata morta? Por que se lembrava dela por aquele nome? Mimi!? Não soube como responder àquela pergunta delicada. Era melhor dormir. Amanhã teria o dia inteiro para pensar nestas coisas, ou até mesmo conferir... Tonico o seguiu até a casinha branca e se acomodou ao lado do sofá, onde Jailton se deitou e finalmente dormiu. A gata que parecia sonhar debaixo da mesinha sem se preocupar com nada abriu os olhos espelhados por um instante, logo depois de conferir a presença do coveiro, os fechou.

12. No dia seguinte Jailton acordou bem cedo, queria aproveitar o dia moscando depois de varrer o cemitério, recolher o lixo e depositar na lixeira da rua. Assim que se levantou foi pra cozinha preparar um café bem forte e comer um pão com manteiga. Mimi descansava debaixo da mesa e Tonico o acompanhava na cozinha na esperança de abocanhar alguma coisa. Foi pra sala e ligou o rádio, sintonizou numa emissora caipira e deu sorte. Estava tocando uma música que gostava muito de uma dupla nova, mas promissora, Nilo & Nelson. A dupla cantava sobre eles mesmos no começo de carreira... Isso fazia Jailton se lembrar de sua vida e a procura incessante do sucesso profissional. Ele mesmo não sabia fazer nada em especial, por isso o trabalho de zelador ali lhe calhou tão bem. Sempre teve medo de cemitérios, nunca imaginou que de fato iria gostar da coisa. Sua maneira de pensar mudou bastante em poucos dias. Antes se imaginava tendo um infarto se encontrasse um fantasma, hoje tudo era bem diferente. Era fantástico como a vida nos provava o quanto estávamos enganados sobre nós mesmos. Pensando nisso, ele espiou a gata que se lambia inteira sem ligar pra nada. Tonico latia lá fora para algum transeunte ou passarinho. Olhando ela daquele jeito era impossível imaginá-la uma morta-viva. Contudo, as palavras de seu pai lhe voltaram à memória... ‘Ele vai parecer ser seu amigo e vai tentar te enganar, não lhe dê atenção está me entendendo? Não lhe dê ouvidos Jailton por mais que se sinta tentado. Nunca.’ Não lhe dar ouvidos? Com certeza não era a gata o ser que seu pai lhe aconselhou evitar. Gatos não falavam... Bem, os mortos também não deviam, no entanto...

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Em fim, Jailton foi trabalhar. Passou a manhã inteira varrendo e recolhendo o que varreu. Até que o crepúsculo inevitável chegou colorindo o céu com cores extravagantes. O coveiro se recostou na parede da casa e acendeu um cigarro. Mimi estava aos seus pés e miava para a lua cheia que surgia por trás das árvores das casas da vizinhança. De repente o ar impregnou-se com um desagradável cheiro de carniça Jailton olhou pra baixo e encarou a gata que ainda miava como se estivesse no cio. - Não pode ser! – Murmurou incrédulo. – Então é verdade! Você está morta? Controlou a tremedeira melhor do que esperava e acalmou-se. Não podia deixar que a gata percebesse seu medo e nem que já sabia de seu segredinho sinistro. Entrou lentamente na casa e respirou fundo. Olhou pra porta pra se certificar que Mimi não o seguia. Parou, desligou o rádio, e pensou no que iria fazer. “...se tiver algum gato, ou gata, circulando por aí, no cemitério em noite de lua cheia. Fique longe! Ou se puder, espante-o para fora e não o deixe entrar aqui nem fodendo!” Foi o que o defunto o disse? Sim, se lembrava bem... Felizmente teve uma ideia. Lembrou-se de uma flanela velha jogada no quartinho de ferramentas. Poderia usá-la para apanhar a gata e prendê-la lá até o dia seguinte. Por mais que estivesse errado sobre a natureza da bichana, era sempre melhor prevenir do que remediar. Já havia acontecido muita coisa estranha desde que começou a trabalhar ali, não tinha mais o porquê de desacreditar no fantástico. Então, se desconfiasse que a gata era um zumbi... Era melhor se livrar dela até o dia seguinte. Com certeza... Jailton ajeitou a manga da camisa preta que vestia para não correr o risco de sujá-la no quartinho. Saiu da sala e passou pela capelinha, e ao lado entrou no quarto de ferramentas. Mimi ainda estava deitada, mas atenta, ao lado da porta. Ele achou o que queria, tirou algumas ferramentas velhas do caminho e pegou o generoso retalho de flanela. Olhou mais uma vez pra gata. Estava quieta e detraída no momento. Segurando o tecido com as duas mãos de modo que pudesse capturar Mimi e prendê-la com a outra extremidade, Jailton caminhou lentamente em sua direção. Chegou bem perto e deu o bote. Mas foi inútil. A gata se esquivou miando de susto e raiva. Correu saltitante para as lápides mais ao norte, e quando se sentiu segura encima de uma jazida meio ao arbusto bem podado se virou e fitou o coveiro com ódio. Bosta! E agora? Pegar aquela gata seria dificílimo. Ainda mais de noite. O céu já estava escuro e só a lua, laranja ainda no horizonte, brilhava com as estrelas. - Gata maldita! – Xingou. – Vem cá vem... Não vou te... Ah! Esquece. – Desistiu. Dando de ombros voltou para o quartinho e depositou o pano lá de qualquer jeito. Fechou a porta e voltou para a salinha da casa branca. Foi para cozinha a fim de tomar mais um copo de café quando teve a nova ideia. Encima da pia estava um pratinho de alumínio que estava usando ultimamente para colocar comida para a gata. E justamente hoje, esquecera de alimentá-la. Ganharia a bichana pelo estômago... Era sua última chance.

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Preparou uma generosa quantidade de comida, arroz e carne bovina mesmo, e uma porção de leite num outro pratinho. Separou tudo e depositou com cuidado no interior do quarto de ferramentas. Olhou ao redor e não a viu. Tudo bem, ela viria... Deixou a portinha do lugar aberta, tomou distancia e sentou-se no chão da porta da casa. Dali daria tempo de correr e trancá-la no recinto. Faria isso rapidamente assim que a visse. Esperou. Esperou e esperou... Nada da gata. Já desistia quando a notou olhando pra ele meio as folhas de uma baixa árvore que ficava bem do lado do quartinho. Mimi o encarava, curiosa e com cautela. Jailton não tirou os olhos do dela. Não. Tinha que disfarçar, pois conhecia a fama da inteligência felina. Quando baixou os olhos para o quartinho, notou um rabo balançando lá dentro... - Tonico! – Chamou ele desesperado. – Sai daí filho da p...! – Xingou. Levantou-se e ameaçou o cão ao simular uma corrida. O cachorro correu e nem olhou pra trás, não fazia mal, só tinha comido a metade da carne. Mimi pulou do galho, aproveitando a distração de Jailton, que encarava Tonico rente ao portão. O coveiro por sorte olhou pra trás, na intenção de ver o quanto o cão tinha estragado seu plano, quando se deparou com a gata lá. Realmente estava faminta... Nem pensou direito, apenas agiu. Andou o mais silenciosamente possível e num rápido golpe, fechou a porta velha num baque. Pronto. A gata estava presa. Até que toda ação foi rápida. Teve um pouco de sorte, era inegável, mas os fins justificavam os meios. Massageou as mãos e voltou para a casinha. Precisava de outro gole de café... Pensou nisso, mesmo assim não tinha ideia do quanto realmente necessitaria. Mimi miou alto de lá. Aquele miado era comovente, mas Jailton não se deixaria influenciar.

13. Mimi se viu no escuro e empoeirado cubículo. Ali a sujeira se acumulava pelos cantos como cárie nos dentes. Logo ela, sendo presa daquele jeito? Tudo bem! Fazia parte do plano. Não seria aquela porta velha a lhe segurar ali. Não por muito tempo. Tudo seguia conforme imaginou. O lugar era lotado de ferramentas velhas. Enxadas, picaretas, pás, furadores, tesouras de podar, alicates, um carrinho de mão e outros artefatos do gênero. Mesmo se tivesse mãos, não precisaria de nada daquilo para fugir... Era um gato agora. ‘Está quase na hora!’ Pelo menos fora um felino um dia, há muito tempo atrás, antes de morrer atropelada. O choque contra o carro foi superficial, mesmo assim causou-lhe um trauma craniano. Fatal. Nenhum veterinário do mundo a salvaria. Sua dona chorou muito... Ela a amava e

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vice-versa. Embora nunca esperasse ser enterrada ao lado do marido da mulher... Destino. ‘Talvez seja por isso que ele a possuiu.’ Tudo bem... Teve sua segunda chance, e se os humanos estivessem certo, ainda lhe faltavam seis vidas. Ótimo. Contudo, desde que voltou a ‘semivida’ vinha se sentindo estranha... Desde que o deixou possuí-la. ‘Você será minha e eu serei você... Gatinho.’ No início ela teve medo, não sabia se era certo voltar para cima, ainda mais não sendo ela mesma. Aquele espírito era estranho... Mas ele prometeu que a trataria bem e que ninguém a faria mal... ‘Me deixe... Só até a lua cheia, depois me vou... Juro’. E era noite de lua cheia hoje. Ela sentia seu sangue correr mais rápido, sua visão se aguçar e sua alma vibrar... Não conseguia se conter. Quando Jailton preparou a armadilha, ela logo teve a ideia. Deixe-o pensar que me prendeu, vai facilitar as coisas pra mim. ‘Sim, sim, sim... Deixe-o fazer o que pretende. Será mais fácil pra mim... Sim, sim...’ É... E foi mesmo. Aquela porta podre... Mas não seria agora. Não. Mais tarde, quando ele estivesse distraído... A comida estava boa, pelo menos o que sobrou... Tonico era um esfomeado como todo cachorro. Cão idiota. Mas também lhe serviu bem afinal de contas... Agora só tinha que esperar... Logo não teria mais controle nenhum sobre seu corpo alugado. Logo ele assumiria e daria cabo ao seu objetivo. ‘Não me subestime coveiro.’ Tudo bem. Como não o subestimaria? Era só um gato, não? ‘Tenho que impedi-lo a qualquer custo...’ Mimi circulou o recinto e deitou. Esperar era o que faria. Somente aguardar a hora certa de dormir e deixar seu novo dono agir por conta própria. Ela prometeu e ele também... Cumpriria sua parte.

14. Jailton pensava na madrugada que passou ao lado do fantasma. Toda aquela conversa foi absurda, embora tivesse que admitir... Teve lógica. Marcos estava se abrindo pra ele. Realmente devia ser horrível permanecer ali dias e dias sem ninguém pra conversar. Era ruim só de pensar. Nunca imaginou na possibilidade de continuar consciente mesmo depois de morto. Nossa, era terrível imaginar esta possibilidade. Deitado inerte no caixão, a sete palmos da superfície e coberto por terra e cimento. Credo. E se fosse ele ali no lugar de Marcos? O que faria? Como convenceria um coveiro a lhe tirar de lá? E para quê? Bem provável que não pudesse nem sentir a diferença... Puts! O que estava pensando? Aquilo tudo lhe dava nó no cérebro. Muitas possibilidades e nenhuma delas lhe eram concebíveis. Nada era concebível... Nada. Nem mesmo a de ter ele mesmo vivido aquelas experiências. Nada o fazia aceitar a coisa inteiramente. Tinha uma remota esperança de acordar de um sonho longo e

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esquisito. Talvez fosse por isso mesmo que tivesse se adaptado ao clima irreal dali. Um cemitério repleto de mistérios. E mortos-vivos. A lua brilhava bastante no céu, a noite estava bem clara. Mesmo assim não diminuía sua preocupação quanto ao que faria quando Marcos acordasse. ‘E aí coveiro... Pode me tirar daqui?’ Tinha um mau pressentimento quanto aquilo. Sentia que, mesmo se não o obedecesse, estaria enrascado. Ou não... Confusão. Talvez... Talvez Marcos fosse realmente apenas uma alma penada e carente. Só. Possuía motivos para acreditar nisso também... Ora, até ele ficaria chato se estivesse no seu lugar. Morto, mas acordado. O defunto lhe tratava bem e não o chateava em quase nada, queria apenas conversar... Isso não era nenhum mal. Era? Mimi é quem lhe dava arrepios agora. Aquela carniça ambulante. Uma das coisas que devia agradecer ao Marcos. Ele o avisou quanto ao bicho e estava certo. ‘Do nada a gata começa a cheira mal’. Foi por um triz, nem queria imaginar o que poderia lhe acontecer com aquela gata solta por aí. Em pensar que desconfiou dele no começo... O cara estava na pior e sentia falta da esposa mesmo depois de morto. Aquele choro foi real, intenso e verdadeiro. Pôde sentir isso. Cada soluço... Foda! Ele mesmo não tinha ninguém, mas não era difícil imaginar a falta que alguém faria se ele mesmo estivesse lá... Enterrado e só. Pensou no seu pai. O homem resistente e amável que conheceu lhe protegeu a vida inteira. O ensinou muitas coisas, a viver, a andar, a falar, a aprender... Deu-lhe a chance de cursar a escola primaria e o colegial, segurando as pontas sozinho. Batalhador e protetor. Solidário... Agora também estava ali... Sozinho debaixo de uma lápide cinzenta e sem coração. Suspirou e caminhou até a jazida do velho. Mataria um pouco mais da saudade que se aflorou no peito desde que começou a trabalhar ali. Desde que conversou com o pai naquela noite. Diante da cruz, alisou o rosário que usava no pescoço, e com a outra mão acariciou a fotografia do pai como se fosse o próprio. - Pai... – O coração doeu de angústia. – Pai! Que saudade do senhor... Me ajuda a enfrentar estas minhas dúvidas... No fundo esperava mesmo que o velho reaparecesse e respondesse as suas súplicas, mas nada aconteceu. Apenas uma já conhecida voz rasgou o silêncio confortável da noite no cemitério. - Coveeeeeeirooo...! Oh! Coveiroooo... Escuta-me pela última vez... - Deus! – Reclamou baixinho. Não queria que o morto de excelentes ‘ouvidos’ escutasse. – Isso nunca vai parar? - Jailton? – Perguntou Marcos como se o tivesse ouvido sussurrar. E foi o que aconteceu. – É você aí? Jailton se aproximou a largos passos até se por de frente a tumba do chato. - Sim! Sou eu Marcos... - Boa noite coveiro... – Parecia radiante. Feliz como nunca. – Que bom que veio... Cheguei a pensar que não o “veria” mais... - É! Mas estou aqui... Eu vim. – Sentou-se onde estava. – Alguma novidade? - Novidade? Como poderia haver alguma?

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- Me desculpa, é que você me parece bem contente hoje! - E estou coveiro... – Riu de alegria. – Estou me sentindo ótimo homem... Graças a você! - A mim? – Acendeu mais um cigarro, e sorriu com aquilo. – Por que? - Hoje sonhei com minha esposa, homem de Deus! Se é que posso dizer que foi um sonho, afinal, ultimamente, não há nada que me empeça de acreditar no contrário. Pois estamos ambos mortos, não é mesmo? - Sim! E isso é bom... Mas por quê me agradecer? Não me lembro de ter feito nada em especial... - Como não? – Grunhiu como quem não concordasse com o que ouvia. – Não foi você quem me avisou que ela foi enterrada aqui do lado? - Fui eu mesmo... - Então. Você fez com que eu pudesse conceber a ideia dela existir aqui... Fantástico. Jailton riu. Estava mesmo gostando de conversar com Marcos. Cada dia ele se tornava mais simpático e gentil. Achou que estava na hora de conhecer melhor o homem que um dia aquele defunto falante fora antes de... - Marcos? Posso te fazer uma pergunta? - Claro, claro que pode coveiro... – Parecia ainda rir sozinho. - O que você fazia antes de morrer? - Eu? Eu era professor. Lecionava na escola pública da cidade. - Na estadual? – Jailton estudou na municipal... - Isso mesmo. Época boa... Mas por que me perguntou isso? - Porque você tem sempre uma explicação lógica pra tudo, mesmo aí... Morto e falando. Risada. – Tem razão. Justamente por estar morto é que posso falar destas coisas, você não acha? Sei bem o que estou dizendo quando se trata de estar morto... - Tem razão. - Pois é. Mas voltando ao assunto se me permite... Minha mulher estava demais, coveiro. - Estava é? - Oh se estava. – Riu outra vez. – Ela estava usando uma blusinha branca e uma saia bem fininha estampada, aquelas no estilo indiano, sabe do que falo? - Mais ou menos! - Não importa. No meu sonho, eu a encontrei sentada numa rede de uma casa enorme. As paredes e os móveis eram todos brancos e a luz do sol ofuscava tudo lá fora. Éramos jovens de novo. Notei isso. Ela ainda usava aquele cabelo longo e sedoso... Ahhh... Estava linda. Ela me viu e sorriu. Aquilo apertou meu coração de um jeito que mal pude sustentar o sonho. Estava bom demais pra ser verdade. “ Me aproximei dela e lhe dei as mãos. Fomos para um salão enorme e redondo. Uma banda invisível tocava uma valsa maravilhosa. Não me contive e deslizei com ela por todo local. Parecíamos dois fantasmas flutuando naquele casarão abandonado. Era tudo muito bonito de se ver... Pousamos bem no centro. Como pássaros brancos. Ela me olhou com aqueles olhos azuis e brilhantes e me disse: - Você me ama? – E eu respondi. – Como não a amaria? – Ela me beijou em seguida sem dizer mais nada. Foi excelente. Perfeito. Quando eu já começava a acreditar que não acordaria mais, ela me fez um pedido: - Marcos, me escute meu amor. Eu já estou aqui no céu... Tudo é lindo, quase

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perfeito. Mas seria realmente o paraíso se você pudesse ficar comigo. – Eu a olhei, a beijei de novo e disse: - Mas eu estou aqui, não vou mais embora. – Ela me encarou e largou minhas mãos. – Não meu amor. Ainda não está. Você precisa se livrar da saudade e dos desejos... Você precisa vê-la mais uma vez, só assim ficará em paz consigo mesmo e poderá vim pra cá de vez... Até lá... Não nos veremos outra vez. – E desapareceu na luz. Tudo ficou branco...” - Assim acordei aqui. Ela foi embora, mas fiquei feliz como nunca por tê-la revisto. Foi maravilhoso, coveiro, se foi... - Que bom Marcos... Fiquei feliz por você. - Obrigado. - Isso porque você me disse que não tinha novidades eim? – Estava sorrindo. - Pois é... Na hora tinha me esquecido disso. No entanto, lembrei logo, né? - Verdade. – Pensou. O defunto lhe agradecia por aquilo. Era quase uma obrigação retribuir o favor. Lembrou-se de Mimi. – Também tenho uma novidade! - É mesmo? – Marcos pareceu intrigado, mas logo voltou à voz alegre. – E qual é? - Lembra de quando falei sobre a gata de sua mulher? Que tinha escapado do túmulo e tal...? - Lembro... O que tem ela? – De novo aquela preocupação estampada. - Pois bem. Apareceu uma gata aqui no cemitério estes dias. Não notei nada de diferente nela, mas depois que me contou aquela história sobre os... Como era mesmo o nome deles? - Lépries! – Citou isso sério. - Exato. Você me disse que eu saberia se um gato estava ou não ‘infectado’, pelo cheiro em dia de lua cheia não foi? - Disse sim... Por que? A tal gata fedeu carniça? - Fedeu sim... E foi de repente. Puf! Exatamente como me falou... - E o que você fez? – Medo, Marcos estava claramente com medo. Jailton notou isso, mas não deu importância. Teria uma boa notícia para ele. - Eu a prendi no quarto de ferramentas. Tranquei a porta. Ela não vai sair de lá tão cedo... E a calma do cemitério foi perturbada por uma risada repentina e áspera. Chegava a ser contagiante. Nunca o viu tão feliz. Marcos gargalhava de satisfação. - Mesmo é? – Ria. – Jura que você fez isso com ela? - Juro. – Jailton ria junto, mas não com tanta convicção. Não via tanta graça assim. – Por que está rindo tanto? Você mentiu pra mim? - Não. Não mesmo Jailton. – Controlou o excesso. – Estou rindo da facilidade que teve para capturar o bicho. Você não tem noção, mas estas pestes são assassinas e perigosíssimas. Não teve ideia do perigo que correu. Saber que o léprie encarnado nela foi pego com tanta facilidade me fez rir. - Ah certo! – Voltou ao semblante contente. – Isso é bom, não é? - Oh se é... Você é mesmo demais coveiro. Sensacional. – Riu mais um pouco. – Agora relaxe. Amanhã cedo ela já não oferecerá mais perigo algum... - Mesmo? – Duvidava um pouco daquilo. Depois do que ouviu... Assassinos. Nossa, correu mesmo um perigo danado, se Marcos estivesse falando a verdade. E pelo o tom de voz que usava, ele estava sendo sincero sim.

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- Acredite. Depois da lua cheia eles ficam mansinhos... Realmente foi uma ótima notícia Jailton. Ótima. Mal sabiam ambos que estavam sendo observados pela vítima das calúnias. ‘Maldito! Pagará caro seu atrevimento...’ Mimi estava sobre um galho da ameixeira, logo acima das jazidas do casal. Ela observava quieta, atenta e paciente. Chegaria logo sua hora de agir. A porta do quarto de ferramentas não resistiu as suas unhadas potentes como bem imaginou. Foi realmente muito mais fácil do que pensou. Jailton a subestimou... - Você ficou bem feliz com isso. – Comentou o coveiro jogando a bituca do cigarro fora. – Mais do que imaginei. - Fiquei sim Jailton. Bastante feliz. Em apenas uma semana você quase me fez gostar de estar aqui... Seria perfeito se não fosse por uma única coisa... - Qual? - Você deve imaginar... Pronto. Sabia bem o que era. Marcos não se esquecera da lua. Do dia de lua cheia. Era hoje e ele sabia disso. - Ver a lua... - Isso mesmo coveiro. Ver e sentir a lua pela última vez... Hoje seria perfeito para ir para o além de vez. Quero ir assim, feliz e contente. Rever minha mulher e ficar com ela no paraíso para sempre. - Não sei o que dizer... – Sabia sim. Só não tinha coragem. Não lhe agradava a ideia de desenterrar o morto falante por mais simpático que parecesse o individuo. - Diga que sim Jailton! – Marcos implorava de uma maneira difícil de recusar. Aquela voz continha toda a esperança de alguém implorando comida ou um copo d’água. – Por favor, só um pouquinho já será o suficiente. - Hm... – Estava indeciso. Antes tinha a plena ciência das coisas. Não o faria e pronto. Mas agora... - Considere meu pedido. Não estou lhe pedindo pra me tirar daqui, só quero ter contato visual... Nem vou e nem tenho como sair daqui... Já te disse isso. Mesmo se descobrir que posso, não o faria de qualquer jeito, afinal de contas, assim que eu olhar pra lua, eu partirei finalmente desta para uma beeeeem melhor. - E se você estiver errado? - Impossível... Quando a gente consegue o que quer, nada nos segura aqui neste mundo. Nada! – Foi convincente. – E, além disso, o que eu faria perambulando por aí? Todas as pessoas de que gostava já se foram. A última coisa que quero é continuar acordado neste mundo Jailton. Você não entende homem? O que estou lhe pedindo é uma passagem para o além... Silêncio. - Olha Jailton. Você pode até estar adorando ter minha amizade toda madrugada ao invés de estar dormindo. – Foi claramente irônico. – E eu também gosto de sua companhia, mas prefiro ir pro céu. Não deve ser difícil de entender isso. - Entendo. – Deu de ombros. – Acho que você tem razão! - Então? – Esperança. – Vai me ajudar? - Vou sim... – Se levantou e tomou rumo ao quarto de ferramentas. – Depois é só enterrar tudo de novo. Vai ser um saco. Mas se é pra te mandar pro céu, onde – por favor, não se ofenda – é seu lugar!

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- Exato Jailton. – Concordou com satisfação. – Vou esperar aqui... E obrigado desde já! - Não há de quê! Jailton andou lentamente até onde havia prendido Mimi. Não demorou notar um rombo na parte inferior da porta. - Ave Maria! – Proferiu e correu para lá. – A gata fugiu... Droga! Bem... Não escutou nenhum miado e Tonico dormia tranquilo ali do lado. Preocupar-se-ia com ela mais tarde. Talvez Marcos pudesse ajudá-lo nisso também. De acordo com ele, o bicho era perigoso... Abriu a porta e se apossou de uma pá, um furador manual de terra e uma picareta. Seria o suficiente para o serviço. Até mesmo para enfrentar Mimi se tivesse que fazê-lo na pior das hipóteses. Andou o mais rápido que pôde até a lápide de Marcos, nem se quer notou um volumoso vulto pulando o portão do cemitério. Mas Tonico sim. Ergueu a cabeça e as orelhas, atento ao indivíduo invasor. Rosnou baixinho. A sombria aparição se aproximou do cachorro ameaçadoramente. Tonico engoliu em seco e paralisou-se ao reconhecer a figura. Perto dali, Jailton se ajeitava espalhafatosamente. Deixou a pá e o furador cair no chão ruidosamente. - O que foi isso? – Perguntou Marcos. – Que barulhada é essa? - Sou eu! – Falou Jailton parecendo um pouco preocupado. Ainda não sabia se dizia ou não sobre o sumiço do léprie. – Deixei cair algumas ferramentas. Com a picareta na mão falou: - Agora não sei ao certo o que fazer, nem por onde começar. - Você tem sorte coveiro. – Parecia sorrir de dentro da tumba. – Este cemitério não é dos mais caros e por isso mesmo somos enterrados quase de qualquer jeito... A única coisa que encontrará dificuldade é na remoção da lápide aí encima. Fora isso é só terra e a madeira do meu caixão. - Certo! – Aliviou-se. – Só isso? - Só. Acha que consegue? - Consigo sim... – Perecia mais perturbado do que o normal. - O que houve Jailton? – Perguntou o morto notando a vibração na voz do seu ajudante. – Parece assustado, preocupado... - Não é nada... – Enfiou a ponta da picareta na cavidade estreita da lápide e com o pé direito, apoiou na outra ponta. Fez força... Ergueu a pedra apenas alguns centímetros. Era mais pesada do que imaginou. – Isso aqui é pesado... - Deve ser sim, te aconselho a arranjar um jeito de empurrá-la, não levantá-la. - Tem razão, nem pensei nisso. Voltou a erguer a lápide achatada e fez força para que ela deslizasse um pouco. Abaixou-se e iniciou o árduo ato de empurrar. - Está conseguindo coveiro? - Mais ou menos, está bastante pesada e deve ter muita terra incrustada por baixo dela. – Sentou-se e começou a empurrar com os pés. Teve mais sucesso desta vez. – Acho que estou conseguindo agora. - Bom. Sabia que você conseguiria. – Suspirou. – Mas me diz Jailton. O que você tem? Parece mais assustado do que o normal...

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- Não é nada, já disse... Acho que só estou um pouco nervoso por estar fazendo isso. Tenho medo de me enrascar por desenterrar você... - Mas não precisa me desenterrar, apenas abrir um pouco o caixão... - É a mesma coisa Marcos. Na prática... - Tem razão coveiro. Obrigado pelo que está fazendo por mim. De verdade! - Tudo bem. – Com um último chute, conseguiu fazer a lápide cair do outro lado livrando o caminho para a nova etapa. – Agora é só cavar! E foi o que fez. Marcos se manteve quieto o tempo inteiro até que ouviram o bater da pá na madeira velha do caixão. - Quem é? – Perguntou Marcos satirizando o bater na madeira. – Já tem gente! – E riu disso sozinho. Jailton o acompanharia na risada se não tivesse tão cansado. Exausto, mal conseguia mover os braços. Ofegava muito quando falou: - Pronto! – Limpou o suor da testa com os nós dos dedos. Em pé encima do caixão olhou pra baixo. – Está tudo bem aí em baixo? - Está sim! – Estava feliz. – Agora só você sair de cima de mim que já está bom Jailton. - Tudo bem, espere só um pouquinho. – Droga, havia sujado de terra toda sua camisa preta. Escalou o buraco com pouca facilidade e sentou na jazida de Carla para descansar. – Não quer que eu abra o caixão? - Não vai precisar! Neste instante Jailton percebeu a presença pesada e atordoada da noite fantástica. Ouviu as risadinhas ao longe. Mesmo sabendo que, se desta vez olhasse para as copas das árvores dali, veria as criaturinhas sinistras e sem formas definidas. Então não olhou. Estranho. O medo que há muito tempo não sentia voltou com euforia. Seu coração bateu rápido e sua pele sentiu mais frio. Seu estômago roncou e seu intestino ameaçou vomitar. O maldito medo. Mas medo do quê? Do morto, ora, ele havia desenterrado um morto-vivo. Como não ter medo daquilo? Não. Era Marcos... Seu amigo. Será mesmo seu amigo? Era tarde para pensar nestas coisas. Agora era só esperar que estivesse certo quanto ao gênio do defunto falante. Um ronco surdo, depois o barulho de madeira se estilhaçando e logo em seguida a de terra caindo numa caixa vazia. De onde estava Jailton pôde ver o vulto se erguendo do buraco. - Minha Nossa Senhora! – Murmurou. – O que foi que eu fiz!? – Segurou uma das esferas do rosário e rezou um Pai Nosso... Marcos deve ter se movido bruscamente, pois Jailton ouviu o barulho da pá caindo no interior do caixão. Primeiro viu um par de mãos ossudas e quase ausentes de pele. Elas seguravam a beirada da cavidade cavada pelo coveiro. Era assombroso por mais que achava estar preparado... Marcos havia lhe dito que não sairia do caixão! Ele disse que nem se quer conseguiria... No entanto lá estava ele.

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Finalmente surgiu uma cabeça. Pelo menos parecia ser uma. A visão daquilo foi mais forte do que o coveiro esperava. Por pouco não molhou a cueca, segurou o máximo que pôde. O crânio, sujo de terra e salpicado por mechas ralas de cabelo negro, girou para os lados até encontrar o que queria. - Jailtooooon!! – Rosnou numa voz bem diferente da que usava para conversar debaixo da terra. – Que bom te ver... “Amigo”! - V-você d-disse q-q-q... – Simplesmente não conseguiu dizer nada. Quando viu aquele rosto desfigurado pela decomposição parecendo lhe fitar, quase teve um ataque do coração. - Eu disse sim. – Conforme falava, sua mandíbula se movia incerta, como se a qualquer momento pudesse despencar. – Eu disse muita c-coisa... Não é mesmo? – E riu sinistramente disso. Bem, parecia risada aquele grasnar horrendo que gelava a alma. Com uma facilidade incrível, o defunto escalou o barranco de sua ex-morada. Pôs-se de pé meio cambaleante, curvado, diante de Jailton que se tremia inteiro. Esse finalmente não suportou mais, liberando a urina na calça. Aquela criatura era horrível, assombrosamente terrível e difícil de crer. Mesmo de noite, os detalhes escrotos eram bem visíveis. A luz prateada da lua deixava o ser ainda mais bizarro e assustador. Marcos parecia ter certa dificuldade de se manter de pé. Suas pernas podres e ossudas – em boa parte ao pé da letra – tremiam e cambaleavam lentamente. Nada em seu corpo era sadio. Tudo estava ralo e fétido. Seus membros deixavam boa parte da ossada a mostra e os farrapos de pano, que um dia fora seu terno, flutuavam acompanhando o movimento da brisa noturna envolta das juntas e tórax. O morto animado deu um passo incerto, como bêbado em direção ao coveiro, que gemeu de medo. Jailton notou que Marcos tinha olhos, não como os dos vivos, mas sabia que eram olhos. Nas cavidades de sua face podre, duas pedras negras refletiam a luz fantasmagórica da lua cheia. As mandíbulas secas se moveram e a coisa falou: - Olá, Jailton! – E riu disso. – Obrigadooo por ter me ajudado... Olhou para cima com certa dificuldade e berrou como um desvairado alucinado. A lua realmente lhe dava prazer. Logo em seguida, voltou para perto do buraco, abaixou-se e empunhou a picareta. Girou a cabeça para Jailton e grunhiu: - Por que está tão quieto? – Levantou-se. – Está com medo de mim? Jailton reuniu toda sua coragem e respondeu: - Você me disse que não sairia de lá... - Ah! Isso? – Riu asperamente. – Eu menti! - Me disse também que iria embora se olhasse para lua... – Jailton estava desesperado. Mas conseguia falar... Era como se não tivesse mais nada a perder. - Isso também foi mentira! – Deu um passo em sua direção. O coveiro permanecia sentado e com as mãos apoiadas na jazida de Carla. Não teria pra onde fugir. Ele estava perto demais... - Me prometeu que seria meu amigo e que me deixaria em paz se eu lhe fizesse este f-favor! – Estava quase chorando de pavor. Aqueles olhos negros eram terríveis. De uma crueldade crua e nua. Marcos ergueu a picareta ameaçadoramente e roncou:

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- Isso também era mentira! – E riu muito disso. O medo do coveiro lhe dava prazer. Aquilo lhe enchia de satisfação... Em fim estava livre. - Pelo menos... – Desabafou Jailton já em lágrimas. – A gata está solta! - O que? – Urrou Marcos claramente em pânico repentino. Neste exato momento Mimi saltou de onde estava nas sombras e agarrou a face do morto-vivo. No susto, Marcos deixou a picareta cair. A ponta da ferramenta quase perfurou uma das pernas abertas de Jailton, que ainda em pânico, levantou-se e afastou-se dali. Mimi arranhava e puxava tudo que encontrava no zumbi. Jailton não se movia. Aquilo tudo era insano. Foi então que sentiu sua perna úmida e quente. Mijou-se todo. Não era nenhuma vergonha, já estava feliz por ainda estar vivo. Ainda... Marcos urrava de dor e raiva da gata. Tentava agarrá-la a qualquer custo, mas em vão. Mimi se saía muito bem, fazendo o cadáver ambulante cambalear mais do que o normal. Infelizmente, o monstro conseguiu o que queria, pegou a bichana pelo pescoço peludo e com uma força incrível a jogou por cima da árvore se livrando de seu flagelo. - Morra outra vez sua praga! – Xingou a ‘plenos pulmões’. Recompôs-se e girou em 180 graus a cabeça e encarou Jailton, que ainda tremia de medo. - Estou te vendo aíííí... – Brincou. Mas não tinha graça nenhuma. Do jeito que estava, se abaixou sem tirar o coveiro de vista e pegou a picareta mais uma vez. Girou o corpo até ficar alinhado à cabeça e falou: - Então você também mentiu pra mim? – Riu grotescamente. – Seu sapeca! Jailton, por sorte e reflexo, achou o furador aos seus pés. Agarrou a ferramenta e posicionou-se pronto para revidar. - Não se aproxime! – Gritou desesperado. – Fique longe de mim! - Ora, ora Jailton. – Desdenhou. – O que é isso? Não somos amigos homem? - Seu lazarento mentiroso... - Opa... Não precisa ofender! – Riu e atacou repentinamente. Felizmente Jailton era mais rápido, desviou do golpe e se pôs atrás da criatura que perdera por instantes o equilíbrio. - Morra seu filho da p... – Gritou e aplicou com o máximo de suas forças um golpe certeiro na cabeça do zumbi, que ainda estava curvo por causa de seu movimento anterior. Marcos tombou produzindo um barulho seco. A picareta chiou ao se chocar contra a cripta do lado e Jailton arfou de alívio. Deus do céu! Aquela tinha sido por pouco. Isso é o que dava confiar em gente morta. No final a gata acabou salvando sua vida. Ele o enrolou o tempo inteiro. Como seu pai avisou. Sentiu que podia estar sendo enganado, mesmo assim... - Miau! – Jailton olhou pra trás e viu Mimi ferida e mancando muito. Abaixou e a pegou no colo a fim de lhe pedir perdão. - Me desculpe fofa... – Acariciou o animal. – Fui enganado! Estrelas amarelas surgiram como um feixe de luz. Um escuro frio e sem vida lhe possuiu. Apenas uma rápida dor na parte de cima da cabeça e não sentiu mais nada. Nem mesmo notou a dor do tombo duro, ao se chocar no cimento do chão. A gata miou mais uma vez, mas desta vez já não tinha mais forças para ajudar o coveiro.

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Marcos jogou a picareta no chão. Não precisaria mais dela... - Nunca mais dê as costas para um morto Jailton. – Riu. O zumbi tinha um novo buraco no crânio e coçou bem ali. Uma pequena poça de sangue se formava como travesseiro ao redor da cabeça de Jailton que estava esparramado no chão e inconsciente. - Seu merdinha... – Provocou o zumbi. - Achou que poderia matar um morto? Como você é idiota! – Abaixou e pegou pelas pernas de Jailton. Arrastou-o até a vala recém aberta de sua tumba. - Agora será a hora da minha vingança! – Rosnou para o coveiro desfalecido. – Você vai sentir na pele o que é ficar preso ali dentro... Ah se vai... Sem nenhum esforço jogou o homem dentro do buraco de qualquer jeito. Abaixou-se, apanhou o furador de terra para arrastar como podia a terra para dentro da vala... - Dorme menino que a Cuca vem pegar... – Cantarolou enquanto despejava os montes de terra fofa encima do coitado. – Papai foi pra roça e mamãe foi passear... Mimi desmaiou... De repente Marcos escutou um barulho de metal raspando no chão. Olhou pra trás ainda cantarolando e o viu: - Quem é você? – E foi a última coisa que proferiu. Não teve tempo de reação, a picareta lhe acertou o olho direito o fazendo cambalear e largar o furador. Como se não fosse o bastante, outro golpe lhe arrancou a esfera esquerda lhe tirando completamente a animação e falsa vida. Tombou como um entulho. Marcos não existia mais, apenas seu fedido e podre corpo desfigurado. Aos pés do estranho, Tonico assistiu a tudo sem ter medo algum. Viu também quando o que restava do zumbi esparramou-se ao vento como cinzas, deixando no chão, apenas duas esferas negras e brilhantes.

15. - Obrigado amigo... – Agradeceu o espírito que a pouco ainda possuía o corpo de Mimi. – Se não fosse você ter aparecido agora, não sei o que faria. – Estendeu a mão negra e velha para Pablo. – Já estava perdendo as esperanças. Pensei que meu filho fosse mais inteligente... – Lamentou o senhor vestindo trapos e de olhos vivos e brilhantes. - Por nada velho Damaceno. – Respondeu Pablo apertando a mão do fantasma. – Seu filho não teve culpa. O calhorda tem uma lábia danada... - Mesmo assim. – Sorriu finalmente. – Eu tive um trabalho danado para avisá-lo... E mais trabalho ainda assumindo o corpo da gata morta. Ainda bem que a bichinha era boazinha e me deixou entrar sem muitos problemas. Sendo assim, pude acompanhar de perto meu filho... - Falando nele... – Pablo se aproximou da vala. – Tenho que levá-lo logo a um pronto socorro. A pancada não foi fatal, mas foi forte... - Tem razão. Faça-me o favor. Ele não pode mais me ver e eu não posso sair daqui do cemitério como você! Leve-o...

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- Vou levá-lo. Antes... – Apanhou do chão e entregou as enigmáticas esferas negras para Damaceno. – Tome. Consegui pegá-las. Era isso o que queria não era? - Era sim! Meu Mestre ficará bastante satisfeito. – Riu revelando dentes brancos como marfim. – Obrigado mais uma vez Pablo, por isso tudo que me fez. Arranjou o emprego pro meu filho, conseguiu as pedras... Não sei como lhe agradecer. Vou ficar lhe devendo... - Não precisa me pagar nada. - Mesmo assim... – Deu as costas. – Pode me chamar sempre que precisar. Até lá... Diga ao meu filho que eu o amo e que estou bem, num lugar maravilhoso. Adeus. – Acenou e sumiu nas sombras noturnas. Pablo suspirou profundamente e depois de muito esforço, tirou Jailton de dentro da vala. O coitado ainda respirava, mas nem dava sinal de consciência. Tonico balançava o rabo em volta dos dois, contente em rever seu dono original. O zelador, depois de encostar o homem numa lápide perto dali, depositou com carinho o corpo da gata no interior do caixão quebrado e tapou a vala com cuidado. Depois de todo o esforço para enterrá-la novamente, ajoelhou-se diante da jazida, fez o sinal da cruz e se levantou. - Esta foi por pouco mesmo! – Murmurou para Tonico, que o encarava sem entender nada. - Mas valeu a pena me esconder por aqui e assistir sem interferir. – Com Jailton desacordado no colo, parou e olhou para o cão. – Você quase me entrega Tonico. Da próxima vez, não durma e nem fique no portão me olhando... E se ele tivesse percebido, eim? Estaria tudo estragado... Tonico Latiu contente. Pablo tinha que ajudar o fantasma de Damaceno a encontrar as pedras negras... Algo que precisava pra resolver um problema entre os mundos, ou algo assim... O velho não queria lhe dizer pra que elas serviam, mas depois de ver ele mesmo o efeito em Marcos, já podia imaginar. Aquelas coisas eram perigosas, no mínimo. Se o maldoso e esperto defunto já não soubesse de que ele, Pablo, já conhecia suas intenções, ele mesmo teria cuidado da coisa. Como não existia esta possibilidade, teve que usar alguém... E o fantasma de Damaceno teve a ideia. No final tudo acabou bem... Dois dias depois na cama do hospital municipal da cidade, Jailton recobrava a consciência. Quando abriu os olhos encontrou Pablo lhe fitando com um sorriso amistoso. - Está se sentindo melhor Jailton? - Estou sim... – Passou a mão na cabeça. - Só um pouco tonto. - Que bom... - O que aconteceu...? Eu peguei a gata no colo e... Paft! Desapareceu tudo. - Você que tem que me dizer o que houve... ‘Te encontrei’ desmaiado e com um machucado feio na cabeça... Jailton o encarou e suspirou... – Se eu te contar, você não vai acreditar... - Por que não tenta? E o coveiro contou tudo que ocorreu, até o momento de seu desmaio repentino. - Quando acordei já estava aqui.

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- Nossa Jailton. – O homem barbudo ria. – Impressionante. De verdade... Mas me diz uma coisa... - O que? Já sei... Lá vem a piadinha... “A pancada não te fez mal?” – Não acredita em mim? - Não, não... Acredito sim, ora... – Parou de rir por um momento. Pablo sorriu e resolveu também contar o que sabia sobre o ocorrido. Jailton apenas permaneceu calado... – Agora, queria apenas saber de você, que tinha tanto medo de cemitério... Ainda pretende trabalhar comigo? - Sim... – Respirou fundo. – Acho que não vou ter mais problema... Depois do que você me contou, fiquei até mais tranquilo. - Mas me diz uma coisa! Na hora em que o morto saiu da tumba... Tentou te acertar a primeira vez, você não ficou com medo? - Medo, eu? – Indignou-se Jailton. – Eu não... ...Só um receiozinho!

Fim

Suzo Bianco - 2011

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