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    FFRROONNTTEEIIRRAASSDDAAIIGGUUAALLDDAADDEENNOO

    EENNSSIINNOOSSUUPPEERRIIOORR::

    EEXXCCEELLNNCCIIAA && JJUUSSTTIIAARRAACCIIAALL

    Bolsista:Sabrina MoehleckeOrientador:Romualdo Luiz Portela Oliveira

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    Sabrina Moehlecke

    FRONTEIRAS DA IGUALDADE NO ENSINO SUPERIOR:

    EXCELNCIA & JUSTIA RACIAL

    Tese de Doutoradoapresentada Faculdade deEducao da Universidadede So Paulo.

    Orientador: Prof. Dr.Romualdo Portela Oliveira

    So Paulo

    2004

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    Universidade de So PauloFaculdade de EducaoPrograma de Ps-Graduao em Educaorea de concentrao: Estado, Sociedade e Educao

    FRONTEIRAS DA IGUALDADE NO ENSINO SUPERIOR:

    EXCELNCIA & JUSTIA RACIAL

    Sabrina Moehlecke

    Orientador: Prof. Dr. Romualdo Portela Oliveira

    Tese de Doutoradoapresentada como requisito

    parcial para a obteno dottulo de Doutora emEducao.

    Durante a elaborao deste trabalho a autora recebeu o apoio financeiro da FAPESP

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    Agradecimentos

    "Entre a idia e sua expresso, existe uma vida"

    Some kinda love, Lou Reed

    Felizmente, a dimenso solitria da construo desse trabalho de doutorado foi diversas

    vezes interrompida por importantes e estimulantes amizades e dilogos. A muitos gostaria de

    agradecer por fazerem parte de minha vida durante esse percurso e de, certamente, tornarem-no

    mais interessante:

    Aos meus pais, pelo constante entusiasmo, compreenso e por todo carinho e apoio que

    sempre nos dedicaram.

    Cris e Las, minhas irms, por tudo que passamos juntas, pois mesmo quando

    seguimos direes que parecem to distintas, como se pouco mudasse.

    Ao meu maninho Andr, pela eterna pacincia e inestimvel ajuda nas minhas

    constantes tentativas de compreender o universo estatstico.

    Aos amigos Sumaya, Marcos, Maria, Beto, Mrio, Alessandra, Ktia e Marcelo, que at

    tornaram-se mais prximos quando mais distante fisicamente estvamos. Depois de tantos anos

    passados na academia temos, todos, muito que comemorar.

    amiga Gilda, com quem divido o flat alguns dias do ano e de onde se desenvolveu

    uma amizade que espero se mantenha ainda que a vida mude constantemente nossos rumos. E aquem devo uma relaxante, ensolarada e animada virada de ano pelas terras capixabas.

    Valria, Joo, Ocimar e Mrcia, amigos de labuta, projetos e viagens, e a quem estou

    devendo algumas noites para festejar.

    s colegas do CEPPPE, Luciane, Andria, Alessandra, Alicia, Brigite, Amanda, Aninha,

    Cludia, com quem convivi mais intensamente ano passado e sem as quais dificilmente

    manteramos o ritmo intenso de trabalho, realizado de forma competente e ao mesmo tempo

    descontrada.

    Ivanira, Wilson e Jane, pelo cuidadoso trabalho que desenvolveram por ocasio do

    survey dessa pesquisa.

    Aos reencontros, sempre marcantes, com Moiss, Rafael e Percival, que, espero,

    permaneam mais prximos.

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    Aos professores Pedro Noguera e Gary Orfield, que gentilmente me acolheram quando de

    meu estgio nos Estados Unidos e pela pacincia que tiveram diante de meus constantes

    questionamentos e demandas.

    Sandra Zkia, pelos anos de convivncia em vrios projetos e com quem muito aprendi.

    Rosngela Prieto e Cludia Vianna, pela experincia nica de trabalho que pudecompartilhar e que muito tem ajudado em minhas primeiras incurses na docncia.

    Ao professor Celso Beisiegel, por ter me acompanhado e apoiado desde quando ingressei

    no mestrado na FEUSP.

    Ao Afrnio Catani, pelas interessantes e animadas discusses e pela oportunidade em

    pesquisar e conhecer melhor a rea do ensino superior.

    E ao meu orientador Romualdo, que teve a pacincia de acompanhar, nos ltimos seis

    anos, meus estudos sobre a ao afirmativa e com quem aprendi muito mais do que se espera

    formalmente de uma orientao. Nem sempre conseguimos acompanhar seu ritmo, mas

    certamente aprendemos a levar a vida, e principalmente seus contratempos, de uma maneira mais

    leve e bem humorada.

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    Resumo

    Polticas de igualdade racial como a ao afirmativa, ao exigirem direitos coletivos e a

    identificao racial dos grupos beneficiados, perturbam no apenas a noo moderna de

    igualdade e justia, segundo a qual a distribuio de bens e posies sociais seria baseada noindivduo e em seus mritos e talentos naturais, mas tambm a ideologia brasileira da

    mestiagem e da democracia racial, constitutiva de nossa identidade e unidade nacionais, onde

    no haveria espao para divises ou diferenciaes de raa. Analisa-se, ento, como tm sido

    recebidas as experincias de ao afirmativa implementadas no Brasil, especialmente no ensino

    superior, local da excelncia e meritocracia. Contextualiza-se, inicialmente, o desenvolvimento

    das preocupaes com a igualdade nas oportunidades de acesso educao superior, para em

    seguida confrontar, em termos normativos, os argumentos universalistas e particularistas

    construdos no debate de tais propostas. No intuito de analis-las com mais detalhes, observa-se

    seu desenvolvimento nos Estados Unidos, reconstituindo-se seu contexto histrico, as formas

    assumidas e avaliando-se alguns dos resultados alcanados, atravs do estudo de caso da

    Universidade da Califrnia. Nos dois ltimos captulos, apresenta-se as principais teorias norte-

    americanas e brasileiras sobre polticas de ao afirmativa, confrontando-as s percepes sobre

    o tema observadas entre os estudantes entrevistados em um survey realizado na cidade de So

    Paulo. Percebe-se existir, para alm das explicaes sobre identidade nacional e racismo velado,

    mltiplos fatores a influenciar e motivar os estudantes no apoio ou rejeio a tais polticas, comoo status universitrio, indicando a necessidade de aprofundarmos os estudos sobre relaes

    raciais na rea da poltica.

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    "Admito acreditar que as teorias deveriam ser testadas tanto por suaabrangncia como por sua compreenso, sua importncia tanto quanto suavalidade e sua elegncia tanto quanto sua congruncia com fatos tais comoos que temos mo. minha maior convico que a sociologia faz seus

    avanos intelectuais mais significativos sob o impulso de estmulos eatravs de processos que partilha extensamente com a arte; que, sejamquais forem as diferenas entre a cincia e a arte, o que elas tm emcomum o que mais importa para a descoberta e a criatividade. (...)Vale a pena notar que a palavra teoria origina-se da mesma raiz gregaque a palavra teatro. Ela significa, basicamente, olhar fixamente para,contemplar. (...)Ambos, artista e cientista, so movidos pelo desejo de entender, deinterpretar e de comunicar sua compreenso para o resto do mundo. (...)

    A concluso, ento, no que cincia e arte so, ou deveriam ser,similares. A concluso mais simples, mas mais fundamental, que emambas, arte e cincia, opera o mesmo tipo de imaginao criativa. (...)Quanto mais eu estudo as inter-relaes entre as artes, mais ficoconvencido que todo homem , em parte, um artista. Certamente como umartista ele modela sua prpria vida e movimenta e atinge outras vidas. Euacredito que somente como artista que o homem conhece a realidade. Arealidade o que ele ama, e se seu amor se perde isto o seu infortnio. "

    (Robert A. Nisbet. 1970. A Sociologia como uma forma de arte.)

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    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................. 12

    I. DO OBJETO E OBJETIVOS ................................................................................................ 12

    II. DO

    DEBATE E

    HIPTESES

    .............................................................................................. 15III. METODOLOGIA DO SURVEY........................................................................................... 23

    1. A DEMOCRATIZAO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL .. 29

    1.1. BALANO DA LITERATURA SOBRE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR................................ 291.2. OS ANOS 60 E A REFORMA UNIVERSITRIA ................................................................ 311.3. O DEBATE SOBRE DEMOCRATIZAO E SELETIVIDADE SOCIAL.................................... 331.4. A REDEMOCRATIZAO E A NOVA REFORMA DOS ANOS 90 ......................................... 381.5. DEBATE: VELHAS E NOVAS QUESTES ......................................................................... 421.6. CONSIDERAES ......................................................................................................... 50

    2. A IGUALDADE QUE PERTURBA A JUSTIA NO MUNDO MODERNO: O

    DISCURSO SOBRE AO AFIRMATIVA .................................................................. 532.1. AS DECLARAES DE DIREITO.................................................................................... 542.2. A IGUALDADE PELA DIFERENA: UNIVERSALISTAS E COMUNITARISTAS...................... 602.3. O DEBATE SOBRE AO AFIRMATIVA NA MDIA ........................................................ 69

    3. O DILEMA AMERICANO E A INTEGRAO RACIAL: A EXPERINCIA DEAO AFIRMATIVA NOS ESTADOS UNIDOS ......................................................... 80

    3.1. CONTEXTO HISTRICO ................................................................................................ 813.2. POLTICAS DE AO AFIRMATIVA NO ENSINO SUPERIOR............................................ 883.3. O DESENVOLVIMENTO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR NOS ESTADOS UNIDOS ........ 893.4. ESTUDO DE CASO: A EXPERINCIA DA UNIVERSIDADE DA CALIFRNIA EM BERKELEY92

    3. 5. CONSIDERAES ...................................................................................................... 1034. UMA POLTICA DE IGUALDADE RACIAL EM MEIO MESTIAGEM .. 107

    4.1. UMA QUESTO DE IDENTIDADE NACIONAL ................................................................ 1084.2. POLITICS MATTERS: PARA ALM DA RAA E DA LINHA DE COR................................. 1154.3. POLTICAS DE DIVERSIDADE ...................................................................................... 1184.4. O RACISMO AMBIVALENTE ........................................................................................ 1224.5. A PERCEPO DA DISCRIMINAO RACIAL ............................................................... 1324.6. O DOMNIO DOS JOGOS DE INTERESSES ...................................................................... 1384.7. A IDIA DA RAA SOCIAL BRASILEIRA ................................................................... 1434.8. O STATUS UNIVERSITRIO......................................................................................... 146

    4.8. CONSIDERAES ....................................................................................................... 1525. MERITOCRACIA E DIREITO AO ENSINO SUPERIOR .................................... 154

    5.1. O TALENTO NA ARISTOCRACIA BRASILEIRA .............................................................. 1545.2. VESTIBULAR, TESTES E AO AFIRMATIVA: AS REPRESENTAES DOS ESTUDANTES1625.3. USOS E IMPLICAES DE TESTES ............................................................................... 1665.4. ENSAIO: PELO DIREITO AO ENSINO SUPERIOR.......................................................... 172

    6. BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 176

    7. ANEXOS ....................................................................................................................... 191

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    Introduo

    I. Do Objeto e Objetivos

    Essa pesquisa de doutoramento fez parte de um projeto de estudo iniciado em 1998, por

    ocasio da realizao do Mestrado, em que me propus analisar as chamadas polticas de ao

    afirmativa direcionadas populao negra1 brasileira. O principal objetivo do trabalho foi

    aproximar-me das questes suscitadas no debate sobre essa temtica e mapear algumas das

    experincias desenvolvidas no ensino superior, tanto no mbito do poder pblico quanto dos

    movimentos sociais organizados, do perodo da redemocratizao dos anos 80 ao ano de 2000.

    Sucintamente, observou-se que a discusso fora objeto de seminrio realizado pelo

    governo federal em 1996, que instalou no mesmo ano o Grupo de Trabalho Interministerial para

    formular polticas de valorizao da populao negra e o Grupo para a Eliminao da

    Discriminao no Emprego e na Ocupao. Suas discusses foram acompanhadas por alguns

    grupos dos movimentos negros, contudo, aes prticas de ao afirmativa ficaram restritas, at o

    final dos anos 90, s iniciativas da sociedade civil. Essa situao modificou-se em 2001, quando

    o governo brasileiro, por ocasio da Conferncia Mundial contra o Racismo realizada em

    Durban, frica do Sul, apresentou um programa de ao afirmativa e, ao final do mesmo ano,

    diversos rgos federais estabeleceram o sistema de cotas raciais na contratao de funcionriose na distribuio de bolsas de estudo. Na rea educacional, a Assemblia Legislativa do Estado

    do Rio de Janeiro aprovou o uso de cotas raciais e sociais na seleo de estudantes para suas

    universidades estaduais.

    Paralelamente, na educao superior, vivia-se um contexto de intensa presso por

    expanso e reforma do sistema, especialmente diante da quase universalizao do ensino

    fundamental e da progressiva extenso do ensino mdio a todos. Somente em 2002, tivemos

    quase 4 milhes de candidatos a uma vaga no ensino superior que foram deixados de fora do

    sistema, o que correspondia a 76% daqueles que tentaram transpor os muros da universidade.

    Nesse processo criou-se o Movimento dos Sem Universidade; proliferaram Cursinhos

    preparatrios para o vestibular alternativos voltados populao de baixa renda, negros e outras

    minorias excludas; e surgiram propostas de flexibilizao do sistema de seleo. Esses novos

    1 Utilizo o termo negro no sentido de afro-descendente, semelhante quele que lhe atribudo por diversosmovimentos negros brasileiros. Ao trazer a referncia s origens africanas da populao, esse termo em geraltambm abrange tanto pretos quanto pardos, segundo a classificao utilizada pelo IBGE.

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    aspirantes educao superior provm de estratos sociais mais desfavorecidos que a classe mdia

    absorvida pelo setor privado at ento e pertencem a grupos que historicamente estiveram

    distantes desse espao, como a populao negra e indgena. Diante desse perfil de estudantes, a

    presso por incluso e expanso de vagas recai principalmente sobre as instituies de ensino

    superior pblicas e gratuitas, o que podemos observar no significativo aumento da relaocandidato/vaga no setor pblico, que foi de 8,9 em mdia em 2002, comparado a 1,6 no privado.

    Todavia, as solues para a ampliao do sistema de ensino superior brasileiro ou para a

    melhoria das condies de igualdade racial2em nossa sociedade so, e no poderiam deixar de

    ser, conflitantes. At recentemente, poucos eram aqueles que reconheciam existir um problema

    racial no pas, pois julgvamo-nos uma nao mestia e miscigenada impregnada pelo ideal da

    democracia racial. Por sua vez, a educao superior brasileira, sob uma perspectiva universalista,

    sempre foi orgulhosa de seu sistema de ingresso por exames vestibulares, atravs dos quais

    avaliava-se o mrito intelectual de cada candidato independentemente de suas origens sociais,

    raciais, tnicas ou de gnero.

    As polticas de ao afirmativa tensionam ambas as vises. A classificao racial que s

    vezes utilizam confronta a idia dos brasileiros como um povo mestio e nico, vivendo numa

    sociedade ausente de divises ou diferenciaes raciais. Tambm exigem o reconhecimento da

    existncia de racismos e discriminaes raciais no pas, pois se caracterizam como uma medida

    de justia e reparao pela desigualdade de oportunidades existentes na sociedade em relao ao

    acesso a bens e servios. Questionam a idia de meritocracia liberal sustentada por processosformalmente neutros ao chamarem a ateno para suas conseqncias em termos das

    desigualdades produzidas entre os grupos raciais, muito alm do que seria razovel supor se

    existisse uma distribuio natural e eqitativa de talentos entre os distintos grupos.

    Por poltica de igualdade racial entendemos todas aquelas aes institucionais, como a

    ao afirmativa, interessadas em amenizar ou erradicar as desigualdades sociais existentes entre

    grupos raciais, como brancos e negros, quer tenham um carter universalista ou diferencialista

    (racializado). Polticas universalistas so caracterizadas como aquelas aes sociais,

    redistributivas ou compensatrias, indiferentes a condies adscritas, dirigidas ao conjunto da

    populao ou parte mais desfavorecida socialmente. Contrapondo-se a esta perspectiva, as

    polticas diferencialistas, tambm designadas como particularistas, trazem como foco de suas

    aes no o indivduo, mas grupos especficos definidos por sua condio racial, tnica ou de

    2O termo raa utilizado como uma construo social, que supe uma ideologia racial e um racismo peculiares, apartir da qual as pessoas se classificam e se relacionam. Trata-se de um conceito propriamente sociolgico, queprescinde de fundamentao biolgica (cf. Guimares, 1999: 20).

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    gnero. Polticas de igualdade racial podem abranger essas diferentes estratgias, nem sempre

    excludentes, e fazer uso de distintos mecanismos, como as cotas, proporcionais ou no, mais ou

    menos flexveis, metas, cronogramas, ainda que no debate brasileiro isso se tenha reduzido ao

    sistema de cotas.

    Mais do que avaliar se polticas de ao afirmativa so uma medida interessante a serimplementada no Brasil, pretende-se nesse trabalho compreender as percepes formadas a seu

    respeito e o que motivou as pessoas a apia-las ou no. Diante das questes que envolvem,

    dificilmente encontraremos uma posio unnime, mas o que definiria a formao de possveis

    maiorias favorveis ao afirmativa?O que estaria a motivar os sujeitos nas posturas e falas

    que adotam publicamente sobre as polticas de igualdade racial? Como novas concepes de

    igualdade perturbam o discurso tradicional sobre justia no Brasil e no ensino superior, espao

    privilegiado da meritocracia liberal?

    Originalmente, essa pesquisa focaria o debate sobre polticas de ao afirmativa a partir

    de uma perspectiva normativa e axiolgica, dentro da filosofia poltica. Realizar-se-ia uma

    anlise crtica da noo moderna de igualdade, a partir da oposio entre teorias polticas de

    fundamento universalista e diferencialista, no intuito de explicar as motivaes polticas,

    ideolgicas e de valores que sustentariam o posicionamento em relao a tais polticas. Esse

    projeto, ao longo do desenvolvimento do trabalho, foi alterado. Isso ocorreu principalmente no

    segundo ano do doutorado, por ocasio do estgio e pesquisa de campo realizados nos Estados

    Unidos, onde tive contato com um vasto material na rea que me fez decidir mudar os rumos do

    projeto. Primeiramente, encontrei dois estudos que realizaram algo muito prximo do que

    pretendia, Affirmative action and principles of justice, de Kathanne Greene (1989) e

    Affirmative action and justice: a philosophical and constitucional inquiry, de Michael

    Rosenfeld (1991). Juntamente com essa descoberta, tomei conhecimento de um debate que

    comeava a questionar a centralidade tanto da explicao poltica com a qual eu pretendia

    trabalhar, que ressaltava os valores morais e ideolgicos a influir no apoio dado s polticas de

    ao afirmativa, quanto da teoria construda em torno do conceito de racismo simblico, nointuito de explicar a rejeio ao afirmativa que no mais recorria a argumentos racistas, mas

    noo de igualdade. Estas, acrescidas da teoria do racismo de livre-mercado, seriam apenas uma

    das explicaes possveis para justificar os diferentes posicionamentos adotados. Dessa forma,

    optei por observar de que forma as diversas questes levantadas por estas teorias mostravam-se

    presentes no Brasil.

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    Contudo, como a rea da teoria poltica racial ainda pouco desenvolvida no pas,

    estando a discusso das relaes raciais mais restrita antropologia e em menor grau

    sociologia, e para que no fossem utilizados apenas autores norte-americanos, optou-se por

    realizar um survey, no intuito de confrontar as hipteses tericas com o que observamos

    empiricamente.A seguir, apresentam-se as principais questes presentes no debate sobre polticas de ao

    afirmativa, as hipteses com as quais trabalhamos e a metodologia utilizada em nosso survey.

    II. Do Debate e Hipteses

    O debate e aes nos ltimos vinte anos sobre as relaes raciais brasileiras, no mbito

    dos movimentos negros e do poder pblico, seguiram no sentido de estabelecer a questo racial

    como problema nacional, centrada numa estratgia de denncia da ideologia da democracia racialatravs da explicitao das desigualdades sociais existentes entre brancos e negros.

    Primeiramente, caberia perguntar qual o impacto desse debate entre a populao em geral.

    Observam-se mudanas no discurso do Brasil como paraso racial e um reconhecimento da

    existncia de desigualdades substantivas e concretas entre os grupos raciais, ou o problema

    continua sendo negado e a harmonia racial reafirmada?

    Qual a importncia das explicaes atribudas s desigualdades raciais?Srgio Martins

    (1996) entende que um consenso mnimo na sociedade brasileira sobre as razes dasdesigualdades material e social a que esto submetidas a populao negra seria o primeiro passo

    necessrio para a implementao de polticas raciais como a ao afirmativa. Historicamente, o

    debate sobre as causas das desigualdades raciais tem oposto explicaes que identificam um

    problema de classe a outras que ressaltam a existncia de motivaes de cunho racial, disputa

    essa que remonta ao debate terico na rea de Relaes Raciais e s reivindicaes do

    movimento negro.

    Peggy A. Lovell (1992) identifica duas escolas de pensamento no que diz respeito

    situao racial no Brasil: uma que se baseia no argumento de uma maior importncia da categoria

    de "classe"sobre a de "raa"para explicar as desigualdades entre brancos e negros; e outra que

    entende que a discriminao racial existe no pas e um trao contemporneo. Nenhuma das

    duas negaria o preconceito ou o fato da maioria dos negros ser mais pobre que os brancos, mas

    cada uma delas teria uma explicao diferente sobre a desigualdade scio-econmica entre

    brancos e negros.

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    Na primeira escola, a principal referncia so os estudos sobre relaes raciais realizados

    por Florestan Fernandes. A explicao apresentada pelo socilogo paulista na obra "A integrao

    do negro na sociedade de classes" (1978 [1965]) tem sido tradicionalmente interpretada como

    postulando que as desigualdades sociais entre brancos e negros estariam associadas herana de

    um passado escravista e pr-moderno. Com a industrializao da sociedade brasileira e possveismudanas estruturais, essas injustias raciais histricas poderiam ser superadas.

    A partir do final dos anos 70, um conjunto de pesquisas desenvolvidas por Carlos

    Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle Silva (1980) procurou mostrar a relevncia da

    discriminao, propriamente racial, como trao contemporneo do Brasil. Romperam com o

    argumento anterior ao conceberem o racismo para alm de um reflexo epifenomnico da

    estrutura econmica ou um instrumento conspiratrio usado pelas classes dominantes para dividir

    os trabalhadores. (Hasenbalg & Silva, 1992: 11). Compreendem-no como uma ideologia e

    conjunto de prticas, que reelaboram as sobrevivncias do antigo regime e as transformam

    dentro da nova estrutura social existente (cf. Hasenbalg, 1979: 76). A raa/cor passa a ser

    pensada como um esquema classificatrio e um princpio de seleo racial que est na base da

    persistncia e reproduo de desigualdades sociais e econmicas entre brasileiros brancos e no-

    brancos. (Hasenbalg & Silva, 1992: 11). Estas pesquisas indicam a dissociao fundamental

    entre grupos de cor e classes sociais, por um lado, e de grupos de cor e posio social, por outro.

    (Guimares, 1997: 168).

    Discutindo a perspectiva interpretativa adotada por Hasenbalg e Silva, Antonio SergioGuimares (1997) entende que, ao mesmo tempo em que tais estudos superaram uma abordagem

    desenvolvimentista e integracionista, tambm obscureceram a permanente associao entre

    raa, cor e posio social no Brasil. Ao propor que pensemos o Brasil como uma sociedade

    de status, Guimares ressalta o carter de permanncia e rigidez do sistema de hierarquia social

    do pas. Afirma que

    a importncia das diferenas de status (posies sociais) no Brasil tem se

    reproduzido desde a colonizao, atravs do sistema de castas escravistas e, mais

    tarde, do clientelismo rural ou urbano, resistindo espantosa urbanizao e

    industrializao do pas nos ltimos cinqenta anos; para no falar da sua

    resistncia s mudanas de sistema e de regime polticos. (Guimares, 1997: 169).

    Para alm do nvel da ideologia3, Guimares prope a sociedade de status como

    3Guimares refere-se aqui interpretao realizada por Roberto DaMatta, quando este identifica a resistncia smudanas na sociedade brasileira como uma ideologia organizada em torno do princpio de classificaohierrquica, sustentada em relaes sociais baseadas em laos pessoais. (Guimares, 1997: 169).

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    uma sociedade onde os grupos sociais, inclusive as classes sociais, desenvolveram

    direitos a certos privilgios em relao ao estado e aos outros grupos sociais. Tais

    privilgios de posio so resguardados, no plano das relaes entre sujeitos, por

    distncias e etiquetas, que tm na aparncia e na cor, (...) suas principais referncias

    e marcos no espao social. (1997: 169).Sua questo central a naturalizao das hierarquias sociais existentes no Brasil.

    Ao buscar na hierarquia social e nos grupos de prestgio brasileiros a raiz do

    racismo cotidiano, isto , do tratamento desigual de pessoas baseado na cor, espero

    ter colocado sobre bases mais precisas o desrespeito aos direitos civis. (...) isso

    significa que para combater o racismo e para reduzir as desigualdades econmicas,

    preciso, antes de tudo, denunciar as distncias sociais que as naturalizam, justificam

    e legitimam. (Guimares, 1997: 171-172).

    Tentativas recentes como a de Guimares (1997) buscaram explorar a inter-relao

    existente entre ambos os fatores, social e racial, no que poderia vir a estabelecer um acordo

    mnimo nas explicaes. Entretanto, no plano do senso comum, fora dos embates acadmicos,

    esse um campo ainda permeado por posies divergentes. Lus Cludio Barcelos e Elielma A.

    Machado (2001), em pesquisa realizada com estudantes universitrios no Rio de Janeiro,

    observaram que so recorrentes as explicaes de carter individualista oferecidas por seus

    entrevistados, que atribuam a um desinteresse dos prprios negros em melhorar sua situao a

    justificativa para as condies desfavorveis em que se encontravam.Outro aspecto a analisar seria o apoio ou oposio a uma poltica de igualdade racial de

    acordo com a forma como construda. As possveis polticas voltadas para a melhoria das

    desigualdades entre os grupos raciais usualmente so divididas entre polticas universalistas,

    destinadas a toda a populao ou de carter redistributivo, privilegiando o recorte scio-

    econmico, e polticas diferencialistas, que envolveriam aes direcionadas a grupos especficos

    de acordo com critrios de gnero, raa, etnia e outros.

    Por fim, o ltimo ponto seria incorporar os trs aspectos anteriores, ou seja, as percepes

    sobre as desigualdades raciais, suas causas e as possveis solues, s teorias tm procurado

    explicar as motivaes das diferentes posies adotadas em relao s polticas de ao

    afirmativa. Ou seja, o que motiva o apoio a um tipo de poltica e no a outro? Existiria uma

    correlao entre as justificativas apresentadas para as desigualdades raciais e o tipo de poltica

    defendida?

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    As polticas pblicas brasileiras tm se caracterizado por adotar uma perspectiva social e

    universalista. Mesmo quando se reconhece a existncia de situaes de desigualdade racial e se

    formulam polticas para solucion-las, estas no incorporam a raa como um aspecto relevante

    ou especfico, nem necessariamente reconhecem a discriminao racial como um dos fatores

    determinantes dessas desigualdades, como tm reivindicado os movimentos negros. Concorda-seque as desigualdades raciais representam um problema, mas sua causa seriam as condies

    sociais precrias nas quais se encontra a populao negra e no as prticas de racismo e

    discriminao racial.

    De acordo com Kabengele Munanga (1996), ainda que as polticas implementadas no

    Brasil privilegiem uma abordagem universalista, existe uma variao nas explicaes e nas

    propostas de "combate ao racismo" dependendo das posies poltico-ideolgicas adotadas. O

    autor identifica duas posturas tpicas, uma caracterstica da direita, ou de liberais e outra da

    esquerda.

    A direita, considerando a extino do racismo institucionalizado em todo o mundo atual,

    assume que a razo essencial da persistncia das desigualdades raciais deve-se ao fato de que os

    negros sofrem de uma falta de cultura e instruo compatveis com a economia ps-industrial.

    (1996: 79) Ou seja, reconhece a existncia de desigualdades entre os grupos raciais mas no as

    atribui ao racismo; suas causas seriam, essencialmente, as

    foras do mercado, indiferentes raa e atentas apenas s carncias dos negros,

    numa economia em que a inteligncia, baseada no domnio da informtica e das

    telecomunicaes, atributo indispensvel para a sobrevivncia de qualquer um,

    independentemente de sua raa, sexo ou religio. (Munanga, 1996: 79-80).

    Quanto s estratgias para a resoluo desse problema da maneira como o configura, a

    direita afirma a necessidade de uma guerra contra a pobreza e medidas que promovam o

    crescimento econmico e o emprego para os negros.

    J na esquerda, central a viso do racismo como uma questo de classe. Radicalmente,as desigualdades raciais so interpretadas como reflexos dos conflitos de classes, e

    os preconceitos raciais considerados como atitudes sociais propagadas pela classe

    dominante, visando diviso dos membros da classe dominada, para legitimar a

    explorao e garantir a dominao. (Munanga, 1996: 80).

    Como estratgia, prope transformar profunda e radicalmente a estrutura de uma

    sociedade de classe. (Munanga, 1996: 80).

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    Peter Fry (1991) tambm observa semelhante predomnio da viso universalista em nossa

    cultura poltica, a qual reala a identidade do brasileiro como um povo mestio. Ao comparar ex-

    colnias portuguesas e britnicas, observa diferenas no comportamento chamado politicamente

    correto nesses distintos contextos sociais. Nos Estados Unidos, por exemplo, as polticas

    voltadas para as minorias etno-raciais ou sexuais estariam articuladas com a noo de diferenae afirmao de identidades especficas. J no Brasil, a filiao etno-racial ou de gnero no seria

    utilizada comumente na definio de polticas, prevalecendo como critrio bsico as condies

    scio-econmicas. Barcelos (1996), ao avaliar a mobilizao racial no Brasil, segue a mesma

    direo ao afirmar que a cultura poltica existente no pas caracteriza-se pela pouca receptividade

    afirmao de identidades particulares.

    Na literatura norte-americana, a teoria dos valores polticos assume uma posio ctica

    quanto ao papel causal do racismo na determinao da oposio s polticas raciais

    contemporneas (Sniderman & Piazza, 1993; Sniderman & Camines, 1997). Argumenta-se que

    as animosidades e os esteretipos raciais no so mais elementos centrais na definio de

    opinies sobre polticas raciais. O que importa so a cultura e a ideologia poltica e no

    consideraes de ordem raa. Reconhece-se que o preconceito no desapareceu da sociedade

    norte-americana e que em circunstncias particulares e em certos segmentos ainda tem grande

    impacto, contudo, o preconceito racial no mais organizaria e dominaria a reao da grande

    maioria da populao branca norte-americana. De acordo com essa teoria: a) os americanos esto

    fortemente comprometidos com o valor da igualdade; b) a oposio a polticas como a aoafirmativa e o sistema de cotas est ligada a valores polticos e ideolgicos como individualismo

    e justia, e no o racismo, preconceito ou animosidade racial; c) tanto conservadores quanto

    liberais avaliam polticas para grupos raciais de forma diferente dependendo do grupo alvo; d)

    racismo e conservadorismo so atitudes independentes, ao menos entre as pessoas mais

    educadas; e) a educao do respondente e no sua orientao ideolgica que explica as

    diferenas no apoio a polticas para grupos raciais (Sidanius, Singh & Federico, 2000).

    Distintos valores de igualdade, como o apoio igualdade formal, mas no igualdade de

    oportunidades ou de resultados, estaria a motivar as diferentes posies sobre polticas de

    igualdade racial? De acordo alguns grupos dos movimentos negros (Moehlecke, 2000), o que

    explicaria a rejeio a polticas para a populao negra seriam as prticas cotidianas mais sutis de

    racismo, discriminao e preconceito raciais, encobertas pela ideologia da democracia racial. O

    carter de nossas relaes raciais geralmente no permitiu o confronto racial explcito e formal,

    j que a prpria identidade nacional brasileira constituiu-se, entre outras coisas, a partir da idia

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    da mistura das raas, que teria gerado um povo que no conheceria divises raciais. Denuncia-se

    que nosso credo racial universalista serviu para encobrir o racismo, as injustias e as

    desigualdades sociais desfavorveis populao negra.

    Essa percepo sobre nossas relaes raciais tem influenciado o debate sobre polticas de

    igualdade racial. Antonio Sergio Guimares (1999), ao analisar a discusso brasileira sobre aao afirmativa, identificou, entre outros, trs argumentos contrrios a tais polticas: a)

    significariam o reconhecimento da existncia de raas e distines de raas, o que contraria o

    credo brasileiro de que somos um s povo, uma s nao; b) a adoo de medidas universalistas

    teria o mesmo efeito; c) no existiria consenso na sociedade brasileira sobre a desigualdade

    social provocada por diferenas de cor e raa. Esses argumentos trazem um ponto em comum:

    negam o uso de critrios especificamente raciais na definio de polticas e indicam que, para

    esse grupo de pessoas, o racismo no um problema relevante.

    As teorias scio-psicolgicas norte-americanas na rea das relaes raciais so

    interessantes para pensarmos sobre as mais variadas formas que o racismo pode assumir em

    diferentes contextos. Baseando-se em pesquisas nacionais, constatou-se que a igualdade racial

    formal, ao contrrio do que existia poca do movimento pelos direitos civis, tornou-se um ideal

    amplamente aceito nos Estados Unidos. Entretanto, ressalta-se que o racismo no teria

    desaparecido, apenas adquiriu novas caractersticas. Esse "novo racismo" definido como

    "racismo simblico" ou "racismo ambivalente". Algumas teorias divergem quanto natureza e

    maneira como esse racismo relacionar-se-ia com valores e atitudes racialmente neutros.

    De acordo com o racismo simblico, uma nova forma de racismo estaria por trs da

    oposio contempornea dos brancos s polticas raciais e aos candidatos polticos negros (Sears

    & Kinder, 1971). Suas proposies principais so: a) antigas formas de racismo hoje pouco

    predizem atitudes diante de polticas raciais, em parte porque o apoio a esse racismo declinou; b)

    apesar do seu declnio, a socializao de esteretipos negativos sobre negros continua; c) negros

    so vistos por brancos como violando valores tradicionais norte-americanos; d) esse novo

    racismo envolve crenas como: a discriminao no mais uma barreira para negros; negros

    devem se esforar mais; negros muito freqentemente recebem tratamento especial do governo

    (Kinder & Sanders, 1996; Sears, 1988; Sears et al.1997; Sears, Henry, & Kosterman, 2000).

    Na perspectiva do racismo ambivalente, as imposies da era ps-direitos civis no

    permitem mais a explicitao pblica do racismo. Dessa forma, o racismo explcito estaria sendo

    substitudo por um racismo mais sutil, observado na defesa de valores tradicionais, no exagero de

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    diferenas culturais e na ausncia de emoes positivas com relao a grupos de fora (Meertens

    & Pettigrew, 1997; Pettigrew, 2000; Pettigrew & Meertens, 1995).

    Um racismo, sutil e dissimulado, manifestado atravs de um discurso de harmonia e

    igualdade racial, seria a principal motivao na oposio s polticas de ao afirmativa no

    Brasil?Uma terceira abordagem, distinta das anteriores, abrange as teorias sociolgicas, que

    enfatizam a estrutura social e os interesses de grupo como explicaes para as posies tomadas

    acerca de polticas raciais. Segundo a teoria do "conflito de grupo realista", o problema racial

    surge diante da ameaa que os negros representam aos privilgios dos brancos. Mesmo uma mera

    percepo da privao de um grupo j poderia ser suficiente para desencadear reaes, sem

    necessitar de reais conflitos de interesse (cf. Vanneman & Pettigrew, 1972).

    Alguns tericos da identidade social percebem o conflito como algo inerente prpria

    formao de grupos (Tajfel & Turner, 1986). Outros pesquisadores sustentam existir um sentido

    de posicionamento de grupo a influir as aes e reaes dos indivduos. Vo alm dos interesses

    econmicos e polticos concretos presentes na teoria do conflito de grupo realista para focar a

    idia de status (cf. Bobo, Kluegel & Smith, 1997). Lawrence Bobo desenvolve a idia de laissez-

    faire racism, que consiste em dois componentes principais: o persistente esteretipo negativo de

    negros e a explicao dogapscio-econmico racial como responsabilidade dos prprios negros.

    No Brasil, a principal hiptese que procura explicar a rejeio s polticas de ao

    afirmativa ressalta seu carter racializado e particularista, exgeno e conflitante com nossacultura poltica universalista, influncia e influenciada pela ideologia da democracia racial.

    Decorre, ento, que o que motivaria as pessoas seriam valores polticos e raciais associados

    identidade nacional. Por outro lado, e reafirmando a posio que sustentam desde o final dos

    anos 70, os movimentos negros brasileiros argumentam que nossa democracia racial, enquanto

    ideologia, tem na verdade encoberto nossas divises raciais e operado como mecanismo de

    perpetuao da discriminao e desigualdades raciais.

    Considerando essas duas posies, nosso estudo segue no sentido de analisar a possvel

    influncia de outros fatores na explicao dos posicionamentos dos indivduos em relao a

    polticas de ao afirmativa, como, por exemplo, as razes apresentadas para as desigualdades

    raciais existentes, o pertencimento racial, as percepes sobre as relaes raciais, o pblico alvo,

    o tipo de poltica de igualdade racial proposta, o nvel educacional e o status de grupo e a posio

    social.

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    Em sntese, estaremos analisando as seguintes questes e hipteses presentes na literatura

    sobre polticas raciais:

    a) Teorias polticas: distintos valores polticos com relao igualdade, e no motivaes

    racistas, definem as diferentes posies assumidas em relao s polticas de igualdade racial,

    como a ao afirmativa;b) Cultura poltica brasileira: no Brasil existe uma tradio de polticas universalistas e isso

    dificulta a receptividade s polticas que exigem a afirmao de identidades particulares.

    c) Novo Racismo: o que explica a rejeio a polticas de ao afirmativa a existncia de

    prticas histrias e sutis de racismo, discriminao e preconceito, encobertas pela ideologia

    da democracia racial brasileira.

    d) Teorias sociolgicas: a estrutura social e os interesses de grupos explicam as posies sobre

    polticas raciais; a oposio a essas polticas significa antes um processo de proteo dos seus

    prprios interesses.

    O ensino superior tem sido uma rea privilegiada do debate e experincias de ao

    afirmativa no Brasil, no apenas por motivos conjunturais, como o processo de expanso e

    reforma por que passa, mas tambm por ser um dos raros espaos na sociedade brasileira onde

    intensamente difundida a ideologia meritocrtica, originalmente universalista e constituda por

    oposio a distines de grupos. Utiliza-se, ento, a educao superior como local para pensar os

    embates, questes e hipteses elaboradas em torno de polticas de ao afirmativa.

    No intuito de contextualizar a forma como o debate sobre polticas de igualdade racialestabeleceu-se no ensino superior brasileiro, analisa-se no primeiro captulo as mudanas

    ocorridas nos ltimos 40 anos, em termos da expanso do sistema e das preocupaes tericas

    construdas acerca da igualdade nas oportunidades de acesso a esse nvel de ensino no pas. Com

    o esgotamento do modelo da reforma universitria de 1968 e diante de significativa presso por

    ampliao, o sistema de ensino superior nos anos 90 confronta-se com o desafio de encontrar

    maneiras de acolher um novo perfil de estudantes que em sua maioria no tm condies de

    financiar seus estudos superiores e que historicamente estiveram de fora dos bancos

    universitrios.

    Quais as questes tericas trazidas pela idia de igualdade subjacente s polticas de ao

    afirmativa, em especial as de cunho racial?No segundo captulo, analisa-se, de uma perspectiva

    normativa e axiolgica, os argumentos universalistas e particularistas a partir de nossa tradio

    moderna. Em seguida, observa-se como se estrutura o debate em torno da ao afirmativa no

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    Brasil e as principais polmicas levantadas, atravs da anlise de artigos publicados na mdia

    escrita.

    Antes de explorar com mais detalhes como esse tema recebido no pas, observa-se como

    foi seu desenvolvimento nos Estados Unidos, onde as experincias com ao afirmativa j

    existem h quase quarenta anos. Reconstitui-se seu contexto histrico, as formas que assumem eanalisa-se alguns dos resultados alcanados. Pragmaticamente, podemos dizer que elas

    funcionaram?Atravs de um estudo de caso a implementao do programa de ao afirmativa

    da Universidade da Califrnia-, observa-se os embates envolvidos e as maneiras encontradas por

    uma instituio altamente seletiva de educao superior para conciliar aes de incluso de

    grupos raciais e tnicos com a manuteno do padro de excelncia de seus cursos.

    No quarto captulo, analisa-se as principais teorias norte-americanas e brasileiras sobre

    polticas de ao afirmativa, confrontando-as s percepes sobre o tema observadas nos

    estudantes entrevistados no surveyrealizado na cidade de So Paulo. Para alm das explicaes

    sobre valores e identidade nacionais e formas veladas de racismo, percebe-se existir mltiplos

    fatores a influenciar as avaliaes sobre tais polticas, como a idia de um status universitrio,

    identificada como a principal varivel explicativa do apoio ou rejeio ao afirmativa.

    Essa ltima idia melhor trabalhada no captulo final, quando discutimos a imagem de

    ilha de excelncia e mrito que caracteriza o sistema de ensino superior, principalmente pelo

    sistema de seleo utilizado, baseado em testes e exames formalmente neutros. Quais as crticas

    feitas ao uso de testes e quais as conseqncias de sua flexibilizao, como sugerem algunsmodelos de ao afirmativa? Como essas mudanas so recebidas e percebidas pelos nossos

    estudantes entrevistados? possvel pensar em um direito educao superior, tanto em termos

    da incluso e garantia de efetiva igualdade de oportunidades de acesso para grupos raciais e

    tnicos quanto de uma progressiva expanso do sistema?

    III. Metodologia doSurvey

    Escopo e instrumentos da pesquisa

    A pesquisa de campo realizada consistiu num survey por amostragem, desenvolvido no

    segundo semestre de 2002, entre os alunos de graduao ingressantes em 2000 na Universidade

    de So Paulo - USP, no campus da capital e, portanto, no 3 ano de curso, e entre os alunos de

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    trs Cursos Preparatrios para o vestibular alternativos4 existentes na cidade de So Paulo

    ingressantes em 2002 (Cursinho do Grmio da Escola Politcnica da USP - POLI, Cursinho da

    Psicologia da USP e Cursinho da Associao de Educadores da USP - AEUSP).5

    Como instrumento de pesquisa, foi elaborado um questionrio respondido

    individualmente pelos envolvidos. As entrevistas foram aleatrias, mas controladas as variveis"ano de ingresso" e "instituio a que pertencem" para que sejam representativas do grupo em

    estudo. Um modelo do questionrio consta anexo (anexo1).

    Nos quadros abaixo segue uma descrio da amostra utilizada.

    Quadro 1 - Estudantes de Graduao da Universidade de So Paulo

    Cursos No. Ingressantes turma 2000 amostra

    Direito 460 76

    Geografia 160 54

    Medicina 175 61

    Fonoaudiologia 25 16

    Engenharia - CB 750 76

    Fsica (bacharelado) 160 55

    Total 1745 338

    = 5% = 0.10

    Quadro 2 - Estudantes de Cursos Preparatrios para o Vestibular Alternativos

    Cursos No. de alunos* Amostra

    Cursinho da POLI 8000 100

    Cursinho da Psicologia da USP 210 63

    Cursinho da AEUSP 120 46

    Total 9470 209

    * Estimativas referentes a 1999 e 2000. = 5% = 0.10

    Para chegarmos a essa amostra, foi utilizada a frmula abaixo, ajustada com o estudo

    piloto realizado.

    4 Por Cursinhos alternativos entende-se aqueles sem fins lucrativos destinados populao desfavorecidasocialmente.5Para maiores informaes sobre a histria e o funcionamento desses cursinhos ver Bacchetto (2003). Interessanteobservar, apenas, que os trs cursinhos citados foram criados e continuam sendo mantidos por estudantes da prpriaUSP.

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    n = z2/2 . pq . N-n no= z2/2 . pq

    2 N-1 2

    Quadro 3 Definio dos componentes da frmula estatsticap = p - valor no = primeira aproximao da amostra

    q = 1 - p = erro tipo 1 (grau de confiana)

    N = populao total = erro amostral

    n = tamanho da amostra z = 1,96 (valor obtido da tabela normal)

    O tratamento estatstico dos dados obtidos com as entrevistas realizadas no survey foi

    desenvolvido pela Empresa de Estatstica Jnior do Instituto de Matemtica, Estatstica eComputao da Universidade de Campinas.

    Contexto Demogrfico da Universidade de So Paulo e do Estado de So Paulo

    Em termos de composio racial, a populao brasileira distribui-se proporcionalmente,

    segundo o Censo realizado em 2000, entre 54% de brancos, 39% de pardos, 6% de pretos, 0,5%

    de amarelos e 0,3% de indgenas. Na regio Sudeste, a situao altera-se um pouco: a

    porcentagem de brancos fica em 64%, de pretos em 6,7%, pardos em 28,4%, amarelos em 0,8% eindgena em 0,1%.

    No que diz respeito USP, a Fundao para o Vestibular - FUVEST introduziu em 2000

    o quesito cor/raa como um dos itens de seu questionrio de ingresso a ser preenchido pelos

    candidatos inscritos no vestibular, tornando possvel a anlise do perfil racial de seus candidatos

    e ingressantes. De um modo geral, podemos observar que em 2000 a proporo de pretos e

    pardos diminui na relao entre inscritos e convocados para a 1chamada, a de brancos manteve-

    se a mesma e a de amarelos aumentou. Do total de convocados para a 1 chamada, em 2000

    encontrou-se 1,2% de pretos e 4,8% de pardos, 12,9% de amarelos e 80,4% de brancos; em 2001,

    temos 1% de pretos e 6% de pardos, 12,9% de amarelos e 79,5% de brancos. Dentro das

    carreiras, nos dois anos analisados observou-se uma leve tendncia rea de humanas concentrar

    maior percentagem de pretos e pardos e menor de amarelos, em comparao com as reas de

    exatas e biolgicas.

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    Justificativas

    Os estudantes da USP foram escolhidos por representarem um grupo que potencialmente

    estaria envolvido nos desdobramentos de polticas de ao afirmativa adotadas no ensino

    superior, quer como atores polticos ou como estudantes que passaram por um dos processos

    seletivos mais concorridos do pas. A escolha pelos ingressantes em 2000, alunos ento no

    terceiro ano de faculdade, foi realizada para que os entrevistados tivessem um certo tempo de

    vivncia na universidade.

    A opo por entrevistar tambm estudantes de Cursos preparatrios para o Vestibular

    Comunitrios foi feita por estes representarem os supostos beneficirios das polticas em questo,

    formuladas em termos sociais e/ou raciais, e por serem um importante grupo de controle, pois

    tm um perfil social e racial distinto da maioria dos alunos da USP.

    A escolha dos cursos da USP que fariam parte da amostra foi realizada considerando-seexistir uma hierarquia entre eles, mesmo dentro de uma universidade como a Universidade de

    So Paulo, principalmente em relao ao seu grau de seletividade. Nesse sentido, definimos seis

    cursos que possuam um nmero significativo de alunos (mais do que 60), dois de cada uma das

    grandes reas - humanas, exatas e biolgicas, sendo um deles mais concorrido (em termos da

    relao candidato/vaga) e outro menos concorrido.

    Tcnicas de Anlise Estatstica

    Os recursos de anlise estatstica utilizados na pesquisa foram as anlises univariadas,

    bivariadas e multivariadas e seus subgrupos; anlises de correlao de Pearson; anlises de

    varincia; teste do Quiquadrado; e teste de significncia.

    As anlises univariadas atendem a objetivos descritivos e examinam a distribuio de

    apenas uma varivel a cada vez. As anlises bivariadas e multivariadas tm objetivos

    explicativos atravs dos quais buscamos conhecer a relao existente entre os valores de uma

    varivel dependente e os valores de uma varivel independente, de forma probabilstica.

    As anlises de correlao tambm tm objetivos explicativos, onde procuram identificar a

    existncia ou no de relao linear entre duas variveis. A constatao de uma correlao seja ela

    positiva ou negativa, significa que uma varivel exerce influncia sobre a outra, mas no implica

    necessariamente numa relao de causalidade.

    Para avaliar a fidedignidade das informaes levantadas, foram realizados testes de

    varincia, significncia e qui-quadrado. No teste de varincia, "os casos estudados so

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    combinados em grupos representando uma varivel independente, e o grau de diferenciao entre

    os grupos analisado em termos de uma varivel dependente. O grau de diferenciao dos

    grupos comparado com o padro de distribuio aleatria." (Babbie, 2001: 421). O teste de

    significncia expressa uma relao de probabilidade:

    "Significativo no nvel 0,05 (p

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    a. Pertencimento racial: questes 5 e 6.

    b. Condio scio-econmica (Critrio Brasil): questes 7, 8, 9 e 10.

    c. Pertencimento universidade: estar ou no na USP.

    d. Posies polticas: questes 20 e 21.

    e. Posies em relao noes de igualdade: questes 24b e 22a

    (formal), questes24c e 22c (oportunidades e condies).

    f. Posies sobre as relaes raciais:

    - reconhecimento do preconceito\discriminao\racismo: questes 19c, 24f, 24h,

    24i.

    - explicaes sobre as desigualdades raciais: questes 23, 24a, 24e, 24g, 27.

    g. Posies acerca do valor do mrito: questes 19d, 25, 24d.

    h. Posies sobre o vestibular: questes 19a, 32g e 32h.

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    1. A Democratizao do Acesso ao Ensino Superior no Brasil

    O ensino superior brasileiro continua, como o era nos anos 60, um espao no

    universalizado cujo acesso est legalmente condicionado s capacidades acadmicas de cada um.

    Entretanto, nas ltimas quatro dcadas, observou-se uma preocupao recorrente com ademocratizao do ingresso a esse nvel de ensino. Mas que democracia poderia ser

    reivindicada em espao ainda to restrito como o da educao superior?Processos democrticos

    de gesto e distribuio interna de poder, igualdade de oportunidades no acesso e permanncia,

    direito de todos educao?

    A partir da literatura, analisa-se que sentidos essa democratizao assumiu ao longo dos

    ltimos quarenta anos, observando a relao entre as preocupaes que envolveram o acesso ao

    ensino superior e as transformaes polticas e sociais por que passou a sociedade brasileira.

    Dividi-se a anlise em dois momentos: os anos 60 e 70, durante os quais foi gestada e

    implementada a reforma universitria de 1968; e os anos 80 e 90, quando se acentuaram os

    limites da reforma dos anos 60, suscitando mudanas e a formulao de novos projetos para o

    ensino superior.

    1.1. Balano da literatura sobre acesso ao ensino superior

    Na rea educacional, os trabalhos sobre o tema do acesso educao superior passaramde uma situao marginal a uma progressiva expanso da produo, que se acentuou ao final da

    dcada de 70 e se consolidou nos anos seguintes (Peixoto, 2001: 129). A temtica ganhou

    relevncia a partir de um problema prtico, a demanda externa e interna por vagas nas

    universidades, e de uma medida poltica, a Reforma Universitria de 1968, que pretendeu

    solucion-lo. A grande maioria dos balanos realizados tomou como ponto de partida para suas

    anlises esta reforma, vista como marco de significativas transformaes no acesso ao ensino

    superior (Franco, 1985; Baeta, 1985; Gatti, 1992; Peixoto, 2001).

    Um assunto permanente nesses quarenta anos foi o vestibular, abordado sob diversos

    aspectos, que abrangeram desde questes tcnico-pedaggicas a questes macro-sociais (Vianna,

    1980; Franco, 1985; Baeta, 1985; Gatti, 1992; Peixoto, 2001). Sua importncia nos estudos sobre

    o acesso ao ensino superior deveu-se ao fato de ser o principal instrumento de seleo daqueles

    que teriam direito a uma vaga nas instituies de educao superior no Brasil e sobre o qual

    incidiram muitas das modificaes realizadas nesse nvel de ensino. Um ponto forte nesse debate

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    foi a influncia da origem scio-econmica dos candidatos nos nveis de desempenho no

    vestibular, levando discusso sobre seu carter discriminatrio e elitista. J a nfase em seus

    aspectos tcnicos e pedaggicos foi mais significativa nos anos 70, especialmente entre

    integrantes de instituies responsveis pela realizao do vestibular (Peixoto, 2001: 129).

    Discutia-se sobre o vestibular enquanto instrumento de medida, sobre testes de mltipla escolha,os sistemas classificatrio ou eliminatrio, a incluso de provas de redao, a capacidade de

    seleo dos melhores alunos e de predio de seu sucesso nos cursos superiores. Ressaltava-se,

    ainda, as relaes do vestibular com o sistema de ensino, pensado tanto como possibilidade de

    incentivar melhorias nos nveis anteriores ao superior quanto de desvirtuamento dos seus

    objetivos, fazendo do ensino mdio apenas um preparatrio para o vestibular ou mesmo

    estimulando a criao de cursinhos preparatrios.

    Para alm das preocupaes com o vestibular, temos a questo das diferenas nas

    oportunidades de acesso ao ensino superior, questo que assumiu diversos matizes: a seletividade

    social, de gnero e tnica, realizada pelo vestibular, implicando nas desigualdades de

    oportunidades de acesso; os mtodos alternativos de seleo; as diferenas nas escolhas das

    carreiras; e a hierarquizao interna dos cursos superiores.

    A idia de democratizao marcou a discusso em torno do processo de expanso da

    educao superior nos anos 60 e as mudanas que a partir da se iniciaram, adquirindo vrios

    sentidos ao longo do perodo:

    Fala-se em democratizao do ensino, democratizao de oportunidades,democratizao de vagas, democratizao de carreiras. Democratizao (...) uma

    idia que tem em comum o fato de opor um momento da histria em que, no Brasil, a

    educao um atributo das elites a um outro em que o acesso escola comea a ser

    uma aspirao de muitos, das demais camadas sociais. A tendncia observada tratar

    o tema da democratizao do ensino superior antes como uma questo de meios do

    que como um problema de fins, o que seria mais justo face sociedade extremamente

    desigual em que ocorre a disputa por vagas na universidade. (Franco, 1985: 20).

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    1.2. Os Anos 60 e a Reforma Universitria

    A partir de 1945, o ensino ginasial6brasileiro conheceu significativa expanso, seguindo

    as transformaes que ocorreram na sociedade, como a queda do Estado Novo, o processo de

    urbanizao e intensificao da industrializao, e as mobilizaes sociais por educao e cultura

    que se espalharam pelo pas. Internamente ao sistema educacional, a principal causa desse

    crescimento foi o fim dos exames de admisso realizados na passagem do ensino primrio ao

    mdio. Outra mudana significativa ocorreu com a criao da lei de equivalncia, iniciada com

    as Leis Orgnicas de 1942 a 1956 e consolidada com a Lei de Diretrizes e Bases da Educao

    Nacional - LDB de 1961. Com o fim da dualidade no ensino mdio, abriu-se a possibilidade a

    todos os concluintes dos cursos mdios profissionais de se candidatarem ao ensino superior,

    oportunidade antes restrita queles que freqentaram o ensino secundrio. Os graduados em nvel

    mdio mais do que dobraram de 1955 a 1964 (Gouveia, 1967), o que conseqentementeaumentou a presso por vagas no ensino superior.

    Diante do crescimento do nmero de candidatos muito acima do nmero de vagas

    oferecidas no nvel superior, a competio e a seletividade realizadas atravs dos exames

    vestibulares poca taxados por alguns como estudanticdio (Campovilla, 1965) - tambm

    aumentaram. A situao agravou-se com o problema dos excedentes, ou seja, aqueles estudantes

    que foram aprovados para um curso superior, mas que no poderiam freqent-lo por falta de

    vagas. O tema ganhou projeo na mdia, levou formao de classes extras para os estudantes e

    a diversos protestos estudantis. Os alunos reivindicavam seu direito de freqentarem o ensino

    superior, j que foram aprovados para o mesmo de acordo com as regras estabelecidas

    legalmente. Processos judiciais impetrados foram favorveis aos estudantes (Cunha, 1988).

    Esse processo culminou na aprovao da Lei no. 5540 de 1968, que estabeleceu a

    Reforma Universitria. Aprovada pelo governo militar em seu momento mais autoritrio, a

    reforma abordou duas questes centrais para o acesso ao ensino superior: a expanso desse nvel

    de ensino e o exame vestibular.

    A Reforma de 68, com a expanso do ensino superior no seu horizonte de preocupaes,

    props como soluo a criao de grandes estabelecimentos universitrios, escolhidos pela

    facilidade de ampliao medida que aumentasse a demanda por vagas. Entretanto, os rumos

    tomados foram outros, como veremos mais frente.

    6 A Lei Orgnica do Ensino Secundrio, promulgada em 9 de abril de 1942 mediante o decreto-lei no. 4244,reestruturou o ensino secundrio em um primeiro ciclo, chamado ginasial, e um segundo ciclo, subdividido emclssico e cientfico (cf. Romanelli, 2001).

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    O vestibular, institudo em 1911 pela Reforma Rivadvia Correia e caracterizado como

    um exame de sada do ensino secundrio chamado preparatrio, foi transformado em 1925 em

    exame de ingresso, com o propsito de verificar a capacidade do candidato em acompanhar um

    curso superior. Sua prxima mudana significativa ocorreu com a Reforma Universitria de

    1968, quando passou a abranger os conhecimentos comuns s diversas escolas do ensino mdio,a avaliar a formao recebida pelos candidatos e sua aptido intelectual para os cursos superiores.

    Props-se ainda unificar os exames em termos regionais e estabelecer um contedo nico para

    todos os cursos ao invs dos antigos exames por rea de conhecimento. Modificou-se, assim, a

    situao existente desde a LDB de 1961, que concedia s Universidades autonomia para

    realizarem o concurso vestibular. Coube Comisso Nacional de Vestibular Unificado -

    CONVESU viabilizar essas mudanas preconizadas pela Reforma de 68 (Cunha, 1988). As

    provas tornaram-se majoritariamente escritas ao invs de orais e gradativamente foram

    introduzidas questes de mltipla escolha no lugar das dissertativas. O exame perdeu seu carter

    eliminatrio para tornar-se classificatrio, na tentativa de resolver o problema dos excedentes ao

    condicionar o ingresso s vagas existentes, excluindo-se apenas o candidato com resultado nulo

    em qualquer das provas, em substituio exigncia anterior de uma nota mnima igual ou

    superior a cinco.

    Em termos da expanso do sistema, no perodo de 1962 a 1979, o nmero de alunos

    matriculados cresceu mais de 12 vezes, passando de 107 mil matriculados em 1962 a 1,300

    milhes em 1979. O total de novas vagas oferecidas subiu de 47 mil para 402 mil.Quantitativamente, ampliou-se significativamente o acesso ao ensino superiro. Entretanto, esse

    crescimento esteve concentrado em estabelecimentos isolados privados, que passaram de 42 mil

    em 1965 para 407 mil em 1974. J a proporo de instituies de ensino superior pblicas

    diminuiu de 56% em 1965 para 38% em 1974 (fontes: MEC/INEP/SECC; Sousa, 1975).

    Houve, ainda, um aumento desproporcional dos candidatos em relao ao nmero de

    vagas. Os inscritos ao vestibular passaram de 71 mil em 1962 para 1,559 milhes em 1979, e a

    relao candidato vaga passou de 1,5 em 1962 para 3,9 em 1979. Enquanto o nmero de

    candidatos aumentou quase 22 vezes, o nmero de vagas cresceu 8,5 vezes.

    Contudo, juntamente com a implantao da Reforma e a expanso do ensino superior

    vieram as crticas qualidade e ao abastardamento da educao superior cujas novas polticas,

    na nsia pela ampliao de vagas, teriam descuidado do controle do nvel dos cursos oferecidos

    (Cunha, 1977: 12). Em termos de legislao educacional, tivemos a Lei no.5692 de 1971, que

    profissionalizou compulsoriamente os cursos do ensino mdio, na tentativa de diminuir parte da

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    demanda por ensino superior. Como uma forma de melhorar o nvel de preparao dos alunos, a

    redao foi introduzida nos exames vestibulares, primeiramente na Universidade de So Paulo,

    em 1974 e nacionalmente, em 1976. Alguns critrios eliminatrios foram reintroduzidos no

    processo seletivo e o sistema classificatrio tornou-se efetivamente misto. Em 1974, da parte do

    Conselho Federal de Educao, praticamente no foi autorizada a abertura de novos cursossuperiores.

    1.3. O debate sobre democratizao e seletividade social

    Como avaliar a expanso do ensino superior ocorrida nos anos 60 e 70? Houve uma

    intensa democratizao? Resumidamente, pode-se dizer que a ampliao da educao superior

    caracterizou-se pelo aparecimento de um novo tipo de escola, as instituies superiores voltadas

    para o lucro e por um significativo crescimento das matrculas no ensino superior, ainda que no

    tenham acompanhado o crescimento do nmero de candidatos a uma vaga. A expanso incluiu

    um maior nmero de estudantes e, alm disso, incorporou um novo estrato social s instituies

    de ensino superior, que deixaram de ser freqentadas quase que exclusivamente pela elite para

    envolver tambm os setores da classe mdia baixa. No entanto, o reconhecimento do carter

    democratizador das mudanas ocorridas variou significativamente. Como a questo foi analisada

    sob diversos pontos de vista, apresentamos algumas das principais abordagens.

    Uma das caractersticas centrais no debate sobre a democratizao do ensino o princpioliberal da universalidade, segundo o qual todos os nveis do sistema educacional, inclusive o

    ensino superior, deveriam ser disponveis para cada indivduo, sendo sua carreira educacional

    determinada por sua inteligncia e motivao, mais do que por sua origem scio-econmica.

    (Santos Fo., 1986: 23). Quer-se enfatizar que o acesso ao ensino superior deve estar aberto a

    todos, condicionado capacidade e mritos individuais, e no a restries de ordem social, de

    status ou de nascimento; quer-se garantir uma igualdade de oportunidades.

    Parte significativa da produo sobre o ingresso ao nvel superior no Brasil deteve-se

    anlise de como esse princpio de igualdade foi traduzido em prticas educacionais. Para alguns,

    a democratizao refletiu-se numa tendncia deselitizante observada no ensino superior,

    identificada atravs da mudana no perfil dos universitrios brasileiros. Da seleo entre muito

    poucos do sculo XVI ao incio do sculo XIX, teramos passado para uma seleo entre

    poucos, no perodo que abrangeria a vinda da famlia real ao Brasil at meados do sculo XX. A

    seleo entre muitos iniciar-se-ia aps a dcada de 50 e, com a supresso da evaso na

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    educao bsica, a expanso de vagas e o aperfeioamento dos exames de ingresso, entraramos

    na seleo entre todos, caracterizando a deselitizao do acesso ao ensino superior (Santos,

    1998).

    Ao analisar o perfil dos alunos ingressantes no ensino superior nos anos 60, Aparecida

    Joly Gouveia (1968) estende a idia de democratizao da educao, definindo-a a partir dadistribuio dos diferentes grupos sociais entre os vrios cursos universitrios. Segundo a autora,

    o limite terico da democratizao do ensino

    seria a completa eqidade nas oportunidades de acesso aos diferentes nveis de

    ensino, oferecidas aos vrios grupos da populao. Estatisticamente, a realizao

    desse modelo traduzir-se-ia em situaes como a seguinte: se, em determinado pas,

    os agricultores (ou os habitantes das zonas rurais, os pretos, os indivduos do sexo

    feminino) constiturem a metade da populao, nesta mesma proporo ho de figurar

    no corpo discente das escolas superiores. (1968: 233).

    Ao seguir essa perspectiva, precisa seu conceito de igualdade de oportunidades liberais

    que, se por um lado aceita a existncia de diferenas naturais de talentos entre os indivduos, por

    outro supe que a distribuio desses talentos independa dos grupos sociais aos quais pertencem

    os indivduos.

    Os estudos realizados nos anos 60 e 70 pretenderam mostrar o quo distante desse

    princpio de universalidade e igualdade estava a realidade do acesso ao ensino superior no Brasil.

    Influenciadas pelas teorias da reproduo social, especialmente pelos trabalhos de PierreBourdieu e J.C. Passeron, como Les hretiers: les tudiants et la culture, de 1964 e A

    Reproduo, de 1970, as pesquisas na rea focalizaram sua anlise sobre quem estaria sendo

    beneficiado com a expanso do ensino superior e por que, ressaltando principalmente a

    influncia das condies scio-econmicas dos candidatos no processo de seleo.

    Gouveia (1968), em pesquisa com universitrios do primeiro ano de trs instituies

    superiores paulistas - USP, Mackenzie e PUC-SP - observa que os estratos de nvel mdio da

    populao estariam mais presentes nessas universidades e que os filhos de trabalhadores manuais

    representariam apenas um sexto do corpo discente. Preocupado com a origem social dos

    universitrios, seu trabalho constata uma seletividade social existente nos cursos superiores,

    assim como j observaram estudos anteriores (Foracchi, 1965; Castro, 1968). Mas, alm das

    diferenas no perfil dos estudantes universitrios, Gouveia percebe que este variava de acordo

    com o curso realizado. Ou seja, alm de uma incluso desproporcional de alguns grupos sociais

    na universidade como um todo, tambm ocorria uma estratificao social nos cursos, onde a

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    distribuio dos diferentes grupos seguia uma hierarquizao das carreiras, classificada pela

    autora entre cursos seletos, intermedirios e populares. Conclui, ento, que a mera expanso

    quantitativa das oportunidades educacionais no iria suprimir, necessariamente, desigualdades no

    acesso a certos nveis ou tipos de educao nem garantiria a democratizao do ensino:

    no se ter conseguido tal democratizao, mesmo quando possam as camadasmenos favorecidas freqentar cursos superiores, enquanto os filhos de industriais se

    concentrarem em faculdades de Medicina, Arquitetura e Engenharia, e os filhos de

    operrios, em cursos de economia e direito de segunda categoria. (Gouveia, 1968:

    244).

    Nos estudos seguintes, a anlise da seletividade social e dos condicionantes scio-

    econmicos centrou-se no exame vestibular, principal mecanismo de acesso e seleo. As

    tenses e disputas em torno do ensino superior tambm recaram, nesse momento, sobre o

    sistema de ingresso.

    O vestibular seria o instrumento que potencialmente garantiria a universalidade e

    igualdade de oportunidades ao utilizar um exame formalmente neutro que avaliaria unicamente o

    mrito e a capacidade de cada um em freqentar um curso superior: No que concerne

    discusso sobre a natureza das provas, os especialistas em medidas argumentam que provas

    objetivas bem elaboradas so eficazes para selecionar os mais capazes de forma mais

    democrtica, porque no sofreriam a influncia da subjetividade do examinador. (Baeta, 1985:

    107). As modificaes realizadas nos anos 60 foram avaliadas de forma positiva. A introduodo sistema classificatrio ao invs do eliminatrio, e a unificao regional e por contedos dos

    exames foram vistos como benficos aos estudantes por evitarem que se acumulem despesas com

    inscrio, estudo e transporte.

    Entretanto, essas mudanas no foram suficientes para evitar a seletividade social

    perpetuada atravs dos exames vestibulares (Hamburger, 1970; Castro & Ribeiro, 1979). Castro e

    Ribeiro (1979), a partir de dados do vestibular da Cesgranrio de 1973 a 1978, analisam a

    variao na participao de estudantes de nveis scio-econmicos mais desfavorecidos na

    universidade. Dos resultados observados, percebem que no s a presena dos vestibulandos era

    proporcionalmente menor quanto mais baixo o seu nvel social, como tambm eram menores as

    suas chances de aprovao nos exames. Quanto possvel democratizao do acesso, concluem

    no haver evidncia de que a universidade se abra para grupos sociais de origem mais modesta

    no perodo considerado. (Castro & Ribeiro: 1979: 13).

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    Alm de ressaltarem a permanncia das desigualdades de oportunidades, Castro e Ribeiro

    chamam a ateno para um novo processo em curso, a formao de barreiras no acesso internas

    s universidades. Diante da transparncia de informaes sobre o desempenho exigido nos

    diferentes cursos e carreiras, observam existir uma pr-seleo, anterior realizao do

    vestibular, onde os estudantes com fraca formao escolar e de baixa renda tenderam a procurarcursos menos concorridos e prestigiados, enquanto que aqueles de melhor renda e desempenho

    eram atrados por carreiras de alto prestgio e maior retorno financeiro:

    [o] aumento no acesso das classes baixas se d nas carreiras que mais rapidamente

    se desprestigiam, onde mais difcil conseguir emprego e onde os nveis mdios de

    remunerao so menores. Ou seja, h uma crescente diferenciao interna da

    universidade. Os vestibulandos de nvel scio-econmico baixo cada vez menos

    conseguem atingir as carreiras mais almejadas. (ibdem: 18).

    Desvenda-se no apenas a seletividade social presente no acesso ao ensino superior, mas

    tambm as transformaes das desigualdades nas oportunidades educacionais. Percebem como a

    dualidade do sistema de ensino, j observada por Ansio Teixeira e Fernando de Azevedo,

    perpetua-se, no mais atravs de diferentes cursos de nvel mdio e seus exames de admisso,

    mas por meio de cursos superiores em instituies de qualidade distinta e em carreiras de

    diferentes prestgio e retorno financeiro.

    O tom que predominou nos anos 60 e 70 foi de crtica ao projeto incompleto de

    democratizao da educao, ressaltando o descompasso e a contradio entre a viso liberal daeducao como espao da igualdade de oportunidades e a realidade da sociedade brasileira,

    marcadamente oposta, seja no campo poltico, econmico ou educacional. Arabela Oliven, ao

    analisar o processo de expanso do ensino superior do perodo, centrado no setor privado e na

    forma de escolas isoladas, conclui que este representou uma forma de cooptao da classe

    mdia, que teve como finalidade ampliar as bases de legitimao do Regime, no representando

    democratizao, mas refletindo isto sim, as contradies da nossa sociedade e, principalmente, as

    da classe mdia com seus interesses a curto prazo. (Oliven, 1980: 75). Para a autora, a expanso

    teve como motivao conter o perigo da politizao e presso estudantis, organizadas

    principalmente em universidades pblicas, e cooptar o apoio da classe mdia, tradicionalmente

    dependente do Estado e da elite, ao projeto poltico governamental. Ao indicar as finalidades e

    propsitos poltico-governamentais que orientaram a ampliao da educao superior, Oliven

    reala seu distanciamento de ideais democrticos e igualitrios.

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    Lcio Kowarick, em breve artigo publicado na revista Cincia e Cultura, radicaliza a

    crtica aos fundamentos liberais e aos limites estruturais impostos pelo capitalismo

    democratizao do ensino e extenso da igualdade:

    A competio que marca a trajetria escolar no igualitria. Ao contrrio, est

    marcada por diferentes handicaps que transcendem de muito as potencialidadesindividuais.(...) no so sempre os mais aptos que chegam ao final da corrida, mas

    so, em grande parte, os que possuem determinadas condies econmicas e scio-

    culturais. Os favoritos, aqueles que podero percorrer a trajetria educacional at os

    nveis altos, j esto, em grande parte, de antemo escolhidos. O background de

    uma criana ou jovem, isto , a posio social que ocupa sua famlia em termos de

    renda, ocupao, educao, prestgio, acesso a informaes etc..., condiciona

    fortemente a probabilidade do seu sucesso educacional. (Kowarick, 1976: 134).

    Que igualdade possvel quando alguns j nascem favoritos?Para Kowarick, a idia de

    igualdade de oportunidades educacionais algo irrealizvel. A democratizao do ensino, numa

    sociedade capitalista liberal, s teria sentido como um ideal bem intencionado mas utpico.

    (ibdem: 135):

    A idia de uma democratizao fundamental ou de extenso da cidadania que

    tem como postulado um amplo acesso educao, perdeu seu vigor enquanto

    alternativa reformista na medida mesmo em que a expanso educacional tendeu a

    espelhar as desigualdades de oportunidades existentes entre os diversos grupossociais de uma sociedade. (...) Mesmo nas sociedades avanadas a questo da

    igualdade de oportunidades e o suposto sistema de gratificaes baseado na

    meritocracia nada mais so do que crenas alimentadas pela ideologia burguesa

    liberal. (ibdem: 134).

    Ainda que a nfase nas origens econmicas das desigualdades e a crtica s limitaes da

    igualdade de oportunidades educacionais prevaleceram nos debates sobre democratizao do

    ensino nos anos 60, algumas pesquisas tambm chamaram a ateno para outros aspectos

    essenciais democratizao: as desigualdades tnicas e de gnero.

    Carmen Lcia M. Barroso e Guiomar Namo de Mello (1975), em estudo sobre a insero

    da mulher no ensino superior, observam que a questo da igualdade no acesso no exigia uma

    ampliao do ingresso, mas antes uma melhor distribuio das mulheres entre as diversas

    carreiras, pois elas se concentravam naquelas profisses tradicionalmente femininas, como o

    magistrio. Alm disso, as autoras constatam que as mulheres tinham melhor desempenho que os

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    homens no ensino mdio e estavam em maior nmero entre os candidatos a uma vaga no ensino

    superior, contudo, suas chances de ingresso eram menores: H uma tendncia de as diferenas

    de sexo, quando investigadas na situao escolar, serem favorveis s mulheres, ao passo que, de

    modo geral, d-se o contrrio quando o desempenho avaliado em situaes mais padronizadas e

    impessoais, como em concursos e exames de ingresso. (Barroso, C.L.; Mello, G.N., 1975: 73).As autoras introduzem uma nova dimenso nos estudos sobre acesso ao ensino superior, a cultura

    e as relaes de gnero, e em especfico a observncia das caractersticas de personalidade e

    comportamento atribudos s mulheres.

    Dando continuidade s suas pesquisas anteriores, Aparecida Joly Gouveia (1972), ao

    analisar uma amostra de estudantes matriculados em trs universidades na cidade de So Paulo,

    observa existir uma relao entre a freqncia determinada rea de estudos e a situao

    socioeconmica e a origem tnica da famlia do estudante. Com relao influncia da origem

    tnica, que dividiu em cinco categorias brasileiros, judeus, japoneses, srio-libaneses e latinos -

    constata existir uma diferenciao na escolha da carreira, mesmo controlada a varivel

    socioeconmica:

    Os estudantes brasileiros e latinos so os menos propensos cincia e tecnologia e,

    por outro lado, os mais propensos a direito, cincias humanas e ramos correlatos.

    Contrariamente, os japoneses so os que menos freqentemente matriculam-se nesta

    rea. Concentram-se em cincia e tecnologia quando provm de famlia de nvel

    mdio ou superior; mesmo, porm, entre os de origem mais modesta, que maisraramente chegam a matricular-se a, so os japoneses os que mais comumente o

    fazem. (Gouveia, 1972: 79).

    Essas duas ltimas pesquisas apresentadas incorporam a cultura e as diferenas em termos

    de gnero, raa e etnia discusso sobre democratizao do acesso ao ensino superior como

    aspectos relevantes a serem considerados. Contudo, ser apenas nos anos 80 e principalmente 90

    que essas preocupaes se generalizam e ganham espao na agenda das polticas educacionais.

    1.4. A redemocratizao e a nova reforma dos anos 90

    Os anos 80 foram marcados pelo processo de redemocratizao do pas, pela Lei de

    Anistia de 1979, a reorganizao da sociedade civil, o movimento pelas Diretas em 1984, o

    processo constituinte, a elaborao da Constituio de 1988. Foi um perodo instvel econmica

    e politicamente, caracterizado pelos governos dos vices: primeiramente Jos Sarney, empossado

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    presidente aps a morte de Tancredo Neves, e depois Itamar Franco, que assume depois do

    impeachment do Presidente eleito Fernando Collor de Mello.

    A rea educacional vivenciou intensos debates e propostas de reforma, fragilizados, no

    entanto, pela descontinuidade poltica. No perodo de dois mandatos presidenciais, passaram pelo

    Ministrio da Educao - MEC oito dirigentes. Das aes significativas no ensino superior,tivemos a constituio da Comisso Nacional para a Reformulao do Ensino Superior em 1985,

    que implantou o programa Nova Universidade e em 1986 a instituio do Grupo Executivo

    para a Reformulao da Educao Superior. Dentre as modificaes realizadas nas polticas de

    admisso, houve em 1987 a ruptura em definitivo do modelo nico de vestibular, que da

    centralizao anterior passou a um processo de descentralizao. Discutiu-se propostas

    alternativas de acesso a esse nvel de ensino, como a avaliao seriada formulada pela

    Universidade de Braslia e depois pelo MEC com o Sistema de Acompanhamento de Processos

    das Instituies de Ensino Superior - SAPIENS; cotas de 50% para alunos carentes em

    instituies pblicas, como props em 1986 a Comisso de Assuntos Constitucionais; ou mesmo

    a extino do vestibular (Chiroleu, 1996). Outra questo que voltou pauta foi as vagas ociosas

    decorrentes, na rede privada, da falta de recursos financeiros dos estudantes e, na rede pblica, da

    rigidez dos exames de acesso. O problema agravou-se na segunda metade dos anos 80: nos anos

    de 1986, 87 e 88, as vagas ociosas foram de 8%, 9% e 18%, respectivamente, nas instituies

    particulares e 3,5%, 12% e 13,5% nas instituies pblicas (Franco, 1989: 103). Esse debate

    estendeu-se por anos e solues efetivas ocorreram apenas nos anos 90, como quando aUniversidade de So Paulo modificou, em 1993, seus critrios de aprovao nos exames

    vestibulares, dando maior nfase em seu carter classificatrio e restringindo medidas

    eliminatrias (Beisiegel, 1995).

    Em meados dos anos 90, nos deparamos com um cenrio poltico em certa medida

    distinto daquele da dcada anterior, principalmente pela definio mais clara de um projeto de

    reforma para o Estado e para a rea educacional, inclusive no nvel superior. Por contraste, o que

    caracterizou esse momento foi a continuidade, marcada pela reeleio do Presidente Fernando

    Henrique Cardoso, governando o pas por dois mandatos consecutivos e pela permanncia de um

    nico Ministro da Educao, Paulo Renato Souza, durante oito anos.

    A expanso do ensino superior pela diversificao e privatizao do sistema orientou as

    decises do MEC e do recm-criado Conselho Nacional de Educao e consolidou-se na Lei de

    Diretrizes e Bases da Educao Nacional - LDB aprovada em 1996 e no Plano Nacional de

    Educao - PNE de 2001. Em termos do acesso ao nvel superior, a LDB permitiu a existncia de

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    outros sistemas de ingresso que no os exames vestibulares; estabeleceu novos modelos de

    instituies e cursos superiores, como os Centros Universitrios, que no necessitam dedicar-se

    pesquisa e dispensam a autorizao prvia para a criao de novos cursos, e os chamados "cursos

    seqenciais por campo de saber", de menor durao que os tradicionais. J o PNE props uma

    expanso do ensino superior dos atuais 9%

    7

    para, ao menos, 30% da populao brasileira na faixaetria dos 18 aos 24 anos at o final de 2010; a manuteno da proporo de alunos em

    instituies pblicas superiores em um patamar mnimo de 40%; e a definio de aes

    direcionadas incluso de minorias vtimas de discriminao na educao de nvel superior.

    Analisando os dados educacionais dos anos 80 e 90, observou-se uma significativa

    expanso do ensino fundamental, que em 2002 atingiu 97% das crianas na faixa etria

    correspondente, totalizando 35,150 milhes de matrculas e garantindo sua quase

    universalizao. O ensino mdio contabilizou 8,710 milhes de matrculas nesse mesmo ano e

    cresceu 53% de 1996 a 2002. Em 2000, os concluintes no ensino fundamental eram 2,648

    milhes e no ensino mdio 1,836 milhes (Censo da Educao Bsica 2000 e 2002). J a

    expanso do ensino superior concentrou-se nos anos 90 e ocorreu majoritariamente no setor

    privado.

    De 1,377 milhes de alunos matriculados na educao superior em 1980 passamos para

    1,518 milhes de alunos em 1989. Enquanto que a matrcula total cresceu no perodo 11%, no

    ensino privado aumentou 5% e no pblico estadual 77%. A proporo de matrculas em

    instituies de ensino superior privadas diminuiu de 64% para 61,5%.O nmero de vagas aumentou muito pouco, passando de 404 mil em 1980 a 466 mil em

    1989. O nmero de candidatos ao vestibular manteve-se praticamente o mesmo: eram 1,800

    milhes em 1980 e 1,818 milhes em 1989, tendo atingido um pico de 2,193 milhes em 1987. A

    relao candidato vaga caiu de 4,5 em 1980 para 3,9 em 1989. O quadro geral foi de estagnao

    na dcada de 80.

    A situao comeou a mudar nos anos 90. De 1,540 milhes de alunos matriculados em

    1990 passamos para 3,479 milhes em 2002, representando um crescimento de 126%, mais

    acentuado a partir de 1995. O nmero de vagas subiu de 502 mil em 1990 para 1,773 milhes em

    2002, representando um crescimento de 253%, onde o setor privado aumentou 282% e o pblico

    70% em relao oferta de vagas. As instituies privadas possuam 83% do total de vagas

    oferecidas em 2002. No entanto, eram responsveis por 70% do total de alunos matriculados em

    instituies de ensino superior, j indicando uma taxa significativa de ociosidade.

    7 Esse percentual aproxima-se dos 13% quando so contabilizadas as matrculas de alunos de faixas etriassuperiores.

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    O nmero de candidatos tambm aumentou significativamente: de 1,905 milhes em

    1990 chegamos a 4,984 milhes em 2002, representando um crescimento de 162%. Apesar da

    maioria das vagas estar concentrada nas instituies privadas, a maior parte dos alunos

    candidatou-se a uma instituio pblica, federal ou estadual, onde a procura tem aumentado

    consideravelmente a cada ano. Do total de candidatos inscritos, 3,779 milhes no conseguiramuma vaga em instituio de ensino superior; nas instituies pblicas, o nmero de candidatos

    deixados de fora do sistema foi de 2,346 milhes e nas privadas 1,432 milhes.

    A relao candidato/vaga variou de 3,8 em 1990 a 2,8 em 2002. No entanto, essa queda

    concentrou-se basicamente nas instituies privadas, onde a relao baixou para 1,6, enquanto

    que nas pblicas esta s tem aumentado, sendo de 8,9, em mdia, em 2002. No que diz respeito

    aos sistemas de acesso, os ingressantes atravs de processos distintos do vestibular

    representavam 9% do total em 2002.

    Podemos observar por esses dados que, apesar do nmero de vagas oferecidas ter

    aumentado em propores maiores que a procura, ela no tem sido suficiente para atender ao

    crescente nmero de alunos excludos do sistema. Faamos um pequeno exerccio de projeo da

    demanda por educao superior para entendermos melhor que pblico esse e quais os desafios

    que nos tem