Tabuleiro do crime o jogo de xadrez por trás da guerra entre PCC e CV
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Tabuleiro do crime: o jogo de xadrez por trás da guerra entre PCC e CV
Camila Nunes Dias (O Estado de S.Paulo)
Por trás do rompimento entre PCC e CV há um complexo jogo de xadrez, do qual
participam o encarceramento em massa adotado no País e políticas prisionais que se
apoiam em facções. A mais recente onda de carnificinas nas prisões brasileiras é mais
grave do que sugerem análises apressadas e revela o que as autoridades de alguns
Estados, hipócrita e cinicamente, há décadas insistem em negar: no Brasil, as prisões
são controladas por facções e são elas que garantem a ordem, a estabilidade e a “paz”
nestes estabelecimentos. E, por isso, são elas que decidem quando a “paz” deve chegar
ao fim. Para contextualizar a nova crise no sistema prisional brasileiro, um brevíssimo
histórico. A aliança entre CV e PCC está registrada no primeiro estatuto elaborado pelo
PCC, ainda na década de 1990:
“(...) nos consolidamos a nível estadual e a médio e longo prazo nos consolidaremos a
nível nacional. Em coligação com o Comando Vermelho – CV e PCC iremos revolucionar
o país dentro das prisões e nosso braço armado será o Terror ‘dos Poderosos’
opressores e tiranos que usam o Anexo de Taubaté e o Bangu I do Rio de Janeiro como
instrumento de vingança da sociedade na fabricação de monstros.”
De lá para cá, muita coisa mudou. O CV, fragmentado desde o seu surgimento, no final
dos anos 70, atravessou as últimas décadas em meio às guerras por territórios, dentro e
fora das cadeias, tanto com facções rivais, quanto com as milícias e com as polícias. O
CV sobreviveu como a mais forte das facções cariocas, mas, enfraquecido diante de seu
aliado paulista, cuja história seguiu rumo diferente.
O PCC, criado em 1993, logrou êxito em eliminar ou restringir os grupos rivais que
surgiram em contraposição a ele. Ainda no início dos anos 2000, protagonizou ações
articuladas nas prisões de São Paulo e em 2006 expressou publicamente a hegemonia
que havia alcançado nas prisões paulistas e o seu espraiamento para fora dos muros,
marcando presença em amplas áreas do Estado e em prisões do Paraná e do Mato
Grosso do Sul. De lá para cá, o PCC seguiu consolidando-se na posição hegemônica no
mundo do crime paulista, dentro e fora das prisões, constituindo-se como principal
distribuidor de drogas ilegais e articulador de crimes de grande porte, como roubo a
bancos, carros-fortes, cargas. Essa hegemonia traduziu-se também na prerrogativa de
mediação e de regulação de toda sorte de conflitos nas áreas sob sua influência, mas,
essencialmente, dentro das prisões, através de um rigoroso controle imposto sobre a
população carcerária.
Neste sentido, explica-se a mágica de São Paulo na última década: com 1/3 da
população carcerária do país, 166 unidades prisionais – a quase totalidade delas
hiperlotadas, em situação calamitosa – e uma estabilidade nunca antes vista na história
das prisões: pouquíssimas rebeliões e pouquíssimos homicídios. E explica, igualmente,
a trágica crise atual cujo palco principal são as prisões do Norte e do Nordeste.
Consolidado em São Paulo e, não por acaso, no Paraná e no Mato Grosso do Sul –
Estados cujas fronteiras são importantes portas de entrada de drogas ilícitas que
abastecem o mercado brasileiro – o PCC passou a habitar algumas áreas estratégicas
para esses negócios, coligando-se com o CV em consórcios que permitiram melhores
condições comerciais aos dois grupos.
Adotando a tradicional estratégia econômica de expansão das áreas sob seu controle,
PCC e CV – com preponderância do primeiro – rapidamente marcam presença em todos
os Estados brasileiros, coligando-se, fundindo-se ou opondo-se às numerosas facções
locais que surgem nas prisões Brasil afora, conformando um complexo e precário
equilíbrio prisional que se assemelha a um tabuleiro de xadrez e que, simplificando, se
apresenta da seguinte forma: hegemonia do PCC em São Paulo, Mato Grosso do Sul,
Paraná; hegemonia do CV no Mato Grosso, Tocantins e no Rio de Janeiro (no último
caso, em disputa com a facção Amigos Dos Amigos); disputas com grupos
declaradamente inimigos do PCC em Santa Catarina (Primeiro Grupo Catarinense/PGC)
e no Amazonas (Família Do Norte/FDN); presença significativa do PCC e do CV em
todos os Estados do Nordeste e do Norte, sem predomínio claro de um ou de outro e,
portanto, num cenário de equilíbrio de poder entre as duas facções, embora com certa
vantagem do PCC.
A construção deste tabuleiro de xadrez tem como força motriz a política de
encarceramento em massa adotada no Brasil inteiro, puxada pela locomotiva carcerária
paulista. A situação não é nova. De novo, tem-se apenas a ruptura da aliança entre PCC
e CV – ruptura essa que tem uma multiplicidade de contornos, uma sequência de fatos
e é marcada por uma disputa pela capacidade de “comandar o crime nacionalmente”.
A montagem do tabuleiro permite compreender o porquê da carnificina provocada pela
ruptura atingir de forma imediata Rondônia, Roraima, Ceará, Acre. Meses atrás – quando
a ruptura era ainda apenas uma ameaça recíproca – passou praticamente despercebida
a carnificina ocorrida no presídio de Naviraí (MS).
Não se sabe até aonde se deslocarão as peças do tabuleiro. O que se sabe é que antes
da nova conformação, muitas vidas poderão ser perdidas até que se obtenha uma nova
acomodação.
Diante do exposto, importante salientar que trata-se uma tragédia nacional, mais do que
anunciada e cujo epicentro está em São Paulo. Neste sentido, atentar apenas para o
palco principal onde eclode essa guerra – os Estados do Norte e do Nordeste – impede
a compreensão das condições que a criou e que tem relação com uma política de
encarceramento que conta com o controle que as facções exercem sobre a população
carcerária para se manter enquanto tal. Uma política de Estado que, pelo menos no caso
de São Paulo, se sustenta e é dependente da manutenção da hegemonia conquistada
pelo PCC para se manter enquanto tal. Não por outro motivo é também o Estado em que
o sistema prisional transformou-se em caixa-preta: quase nada se sabe, quase nada é
dito e quase nada se mostra.
Neste sentido, o governador Geraldo Alckmin deve explicações para a sociedade, que,
novamente, assiste à episódios de barbárie envolvendo uma facção cujo berço e cujo
centro de comando parece estar justamente nas prisões de São Paulo.
O que há por trás dos muros das prisões que sangram no Norte e Nordeste nós já
sabemos. Mas há que se perguntar o que há tanto por trás dos muros das prisões
paulistas que não possa ser visto. Talvez aí resida a resposta tanto para o suposto
“sucesso” da política prisional de São Paulo, quanto para a carnificina que se espraia
pelos presídios Brasil afora.
SP - 22 Out 2016