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TADEU PEREIRA DOS SANTOS ENTRE GRANDE OTELO E SEBASTIÃO: TRAMAS, REPRESENTAÇÕES E MEMÓRIAS UBERLÂNDIA 2016

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  • TADEU PEREIRA DOS SANTOS

    ENTRE GRANDE OTELO E SEBASTIO:

    TRAMAS, REPRESENTAES E MEMRIAS

    UBERLNDIA2016

  • TADEU PEREIRA DOS SANTOS

    ENTRE GRANDE OTELO E SEBASTIO:

    TRAMAS, REPRESENTAES E MEMRIAS

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Uberlndia como exigncia final para a obteno do Ttulo de Doutor em Histria.

    rea de Concentrao: Histria Social

    Orientadora: Prof. Dra. Maria Clara Tomaz Machado

    UBERLNDIA2016

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    S237e 2016

    Santos, Tadeu Pereira dos, 1978-

    Entre Grande Otelo e Sebastio : tramas, representaes e memrias / Tadeu Pereira dos Santos. - 2016.

    597 f. : il. Orientadora: Maria Clara Tomaz Machado. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Uberlndia, Programa

    de Ps-Graduao em Histria. Inclui bibliografia. 1. Histria - Teses. 2. Grande Otelo, 1915-1993 - Teses. 3. Histria

    social - Teses. 4. Historiografia - Teses. I. Machado, Maria Clara Tomaz. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Histria. III. Ttulo.

    CDU: 930

  • O princpio da sabedoria : Adquire a sabedoria;Sim, com tudo o que possuis, Adquire o entendimento.

    Provrbios 4,7 Bblia Sagrada

  • AGRADECIMENTOS

    A possibilidade de agradecer um privilgio, pois permite reconhecer e, ao mesmo tempo, dizer o quanto vocs foram fundamentais na realizao desse sonho. Por isso, pela contribuio dada a mim nessa jornada, as palavras so insuficientes para expressar a minha gratido, o meu muito obrigado.

    Agradeo, primeiramente, a Deus, o nico que digno de toda honra, glria e louvor, pela sua constante presena em minha vida e por ter a certeza de que, at aqui, me ajudou o Senhor.

    Aos meus pais Maria Helena e Tarciso por todo amor e carinho que me concederam durante toda a vida, no medindo esforos para que eu pudesse concretizar os meus objetivos: obrigado por me deixarem fazer parte de suas vidas.

    Aos meus irmos (as) Tnia, Telma, Telmy, Telmar, Tarcia, Telmo, Tlio, Teane e os (as) sobrinhos (as) que tornaram a minha vida mais gostosa, s vezes pautada por desavenas, brincadeiras, afetos, carinhos, enfim, por acreditarem em meu sucesso.

    Aos professores da Escola Estadual Laudelina Dias Lacerda e da Escola Estadual Tancredo Neves, em especial, Edna Figueiredo e aos mltiplos significados que ocupam na minha histria de vida a Risomar e a Tnia Mares.

    Aos amigos Vincius Barros, Rodrigo Botelho, Elder, Lauvir, Alex (Da Lua), Leandro Rocha, Ruth Sabia, Valria, Vanessa Gomes, Breno Gomes, Fabiana, Hudson, Rodney, Jorge Antunes, Mateus caroo, pessoas com quem sempre dividi minhas alegrias e tristezas.

    Dona Maria Barros e famlia, assim com a Dona Idena e famlia, que sempre terem me incentivaram nessa jornada e pelos momentos maravilhosos que pude desfrutar ao lado dessas famlias.

    Aos irmos das Igrejas Presbiterianas de Almenara, em especial, Fabiano Arajo, Ademir Gobira, Rozilmar e famlia, Noeme, Ruth, Israel e Sandra, Sandrinha Botelho e famlia, Ravel, Ramisss, Fatinha, Pereira, Wedson, Hanna, Wiliam Vagner, Jos Carlos, Beth, Iran, Ronaldo, Cida, Raquel, Weder e Ded.

    A Dom Felipe e famlia, pelos bons ensinos, pelo carinho e amizade.

    A Eduardo Warpechowski e Sandra Fiuza, pelas sugestes intelectuais, pelo convvio e pelo apoio tcnico.

    Aos meus entrevistados pela confiana a mim concedida e por fazer do meu projeto de pesquisa uma realidade.

  • Aos filhos de Sebastio, visto como Grande Otelo, que tem lutado arduamente para que a sua histria no seja esquecida.

    Aos tcnicos do Instituto de Histria, Luciana Lemes, Joo Batista, Gaspar, Abadia, Juliana, Sandra, Josiane, Stnio, Lus, Cristina, Flvia e Maria Helena pelos nossos constantes bate-papos e pelo significativo trabalho prestado aos alunos desse Instituto, que sempre tem facilitado muito a vida dos estudantes.

    Aos mestres professores do Curso de Histria, pela magnfica contribuio intelectual que corroboraram para que o trabalho fosse uma realidade.

    professora Maria Clara Tomaz Machado, a qual sempre foi meu suporte no mbito acadmico, com quem tive a oportunidade de compartilhar sonhos, projetos. Agradeo, tambm, pela sua solidariedade em momentos difceis da minha jornada, pelo carinho e compreenso e pelos valiosos conselhos, fundamentais para o meu crescimento pessoal e intelectual. Ser seu orientando no doutorado foi um privilgio pelos plurais significados que voc ocupa em minha trajetria. O seu profissionalismo, cumplicidade, amizade e, sobretudo, o modo com que conduziu a orientao permitiram aprimorar o meu crescimento e, por sua vez, realizar a tese com xito. Assim, posso dizer que a liberdade concedida e a sua crena em meu potencial foram cruciais para que eu pudesse ousar. Desse modo, para alm da orientao, reforo a minha gratido e alegria, j que o convvio oportunizou-me aprendizado com qualidade, haja vista que suas inmeras qualidades compartilhadas, sobretudo seu carter, compromisso, humanidade e sabedoria, renovavam meus sonhos e impulsionaram-me para que chegasse ao final deste percurso feliz e grato por tudo!

    Aos ex-orientadores Newton Dngelo e Helosa Helena Pacheco Cardoso, o meu muito obrigado. Afinal, as suas contribuies e preciosos ensinos foram fundamentais para que eu pudesse chegar ao doutorado.

    Ao professor Antnio de Almeida por ter sido uma inspirao para que eu me tornasse Historiador. A seriedade do seu trabalho acadmico validado em seus ensinos manifestos em uma vida pblica ou privada em que se aliam prtica e teoria e, sobretudo, por fazer parte de toda minha trajetria acadmica, por meio do dilogo, de conselhos, que, ao longo do desenvolvimento desse trabalho (13 anos) foram fundamentais para o aperfeioamento do mesmo.

    Aos professores (as) da Ps-Graduao em Histria, em especial Clia Rocha Calvo Rocha, Luciene Lehmkulh, Rosangela Patriota e Maria Clara Tomaz Machado, pelas significativas contribuies nas disciplinas ministradas do durante o curso.

    A professora Jacy Alves de Seixas, pelas suas contribuies intelectuais e pelo grande incentivo na leitura da obra de Paul Ricoeur, a qual conduziu-me a um novo olhar sobre memria.

  • s professoras Marta Emsia Jacinto Barbosa e Maria do Rosrio da Cunha Peixoto, as quais me deram como presente a problemtica da tese. Suas valiosas contribuies sedimentam a presente obra sobre Sebastio.

    Ao professor Gilberto Cesar de Noronha pela sua valiosa leitura no exame de qualificao, cujo olhar acurado me conduziu reformulao da tese aqui apresentada. Isto , o seu envolvimento, compromisso, dedicao com o intuito de somar, suscitou questes no pensada, mas essenciais para substanci-la. Espero continuarmos nosso fludo dilogo, que j dura quase 10 anos em questes sobre memria e histria, que muito nos instigam. Obrigado pela preciosa leitura e profissionalismo do que se espera de um amigo.

    Aos professores (as) Maria Izilda Matos, Valdeci Borges e Gilmar Alexandre da Silva, por aceitarem o convite em compor a Banca de Defesa de Doutorado, na medida em que, alm do seu profissionalismo, as suas contribuies sero fundamentais para o desenvolvimento futuro desse trabalho e, sobretudo, pela peculiaridade de ter em minha Banca um amigo/irmo (Gilmar) que desde, a Graduao, um interlecutor constante nos debates intelectuais, aos bons conselhos nos momentos de dificuldades pessoas e profissionais. Estamos juntos nessa luta e sempre inquietos com aquilo que mais nos instigam na Histria, a escriturao e os desafios aos historiadores.

    Aos colegas da VII Turma do Doutorado em Histria da Universidade Federal de Uberlndia, em especial, ao Radams, Iraneide, Valria, Mauro, Raquel, Sandra, Ricardo, Cintias, Rosane, Tlio, Roberto e Elias, pela convivncia, soliedaridade em compartilhar experincias no mbito da academia e fora dela.

    Ao irmo(a)/amigo(a) Radams e Juliana pelo compartilhar da mesma f, pela amizade, pela fora nas adversidades e pelos incentivos ao longo dessa jornada.

    Aos amigos do Norte de Minas: Meire, Valria, Rosana, Leandro Aquino, Andrey, Clarice, Roberto, Filomena, Lauro, Auricharme, Eduardo, Valmiro, Saulo, em especial a Rosana, Valria, Auricharme e Andrey, pela amizade construda e sedimenta na fase do doutorado.

    Aos eternos Populinos (Diogo de Souza Brito, Carol, Floriana, Rafael Guarato, Elmiro, Getlio, Ricielle, Ricardo Gollovat, Raphael Ribeiro, Florisvaldo, Fernanda Santos, Jacqueline, Luciene, Roberta Paula e Vera Puga) pelo convvio, pelas brincadeiras, pela contribuio intelectual e por concederem-me momentos prazerosos na produo intelectual.

    Aos Docpopulinos Anderson/Coxinha, Floriana, Priscylla pela convivncia, irmandade, amizade e cumplicidade. A nossa convivncia e apoio mtuo na concretizao de nossos sonhos tornaram-se um grande suporte na superao dos desafios. Aos amigos da sala 1H63, em especial ao Anderson, que pelo apoio tcnico, pode acompanhar mais de perto a minha labuta diria, o meu muito obrigado pelo apoio e pacincia ao longo da construo da tese.

  • Aos professores da Linha Histria e Cultura, em especial aos professores(as) Florisvaldo, Vera Puga e Mnica Abdala pelas significativas contribuies intelectuais e pela solidariedade.

    Ao Tlio, Raquel e Roberto, da Linha Histria e Cultura, pelo compartilhar dos desafios e solidariedade ao longo do curso.

    Ao professor Cairo pela sua contribuio intelectual, profissionalismo e grandes incentivos ao meu crescimento acadmico e profissional. A preciosidade de seus ensinos foi de grande valia para o meu aprimoramento intelectual e pessoal.

    Ao Leandro Ferraz, meu conterrneo, colega do curso desde a infncia, com quem compartilhei a saudade da terra natal.

    Aos amigos e conhecidos do Facebook pelo constante incentivo para que eu continuasse o meu labor.

    Ao amigo (a) Cristiano Rangel e Dona Ana pelos fludos dilogos e pela convivncia e suporte em Uberlndia.

    Ao amigo Artur Nogueira pelas suas valiosas contribuies intelectuais que foram fundamentais para o aprimoramento dessa tese, pelo convvio e fludo dilogo enriquecedor e, sobretudo, pelo socorro em questes tcnicas.

    H amigos mais chegados que irmos, diz o principio bblico, e desse modo que eu reporto-me a Fernando Carlos Naves e Dona Juracy, pessoas que so presentes de Deus em minha vida. O meu muito obrigado por tudo que me proporcionaram ao longo desses anos em Uberlndia. T-los como amigos um privilgio, os conselhos, os incentivos e, sobretudo, as interlocues intelectuais foram cruciais para o xito do meu crescimento acadmico.

    Capes pela concesso da bolsa de estudos, que possibilitou-me fazer uma tese com qualidade, haja vista que dedicar-se integralmente pesquisa e aos estudos acadmicos no uma prerrogativa extensiva a todos os estudantes de Ps-Graduao.

    Aos funcionrios do Arquivo Pblico de Uberlndia, da FUNARTE, Biblioteca Nacional, Associao de Imprensa Brasileira (ABI), Museu de Imagem e do Som do Rio de Janeiro e So Paulo, pela acolhida durante as pesquisas.

    Ao amigo Edelson Matias de Azevedo (in-memoriam), pelo seu ensino que contriburam para que essa tese fosse uma realidade.

    Aos amigos da ex-repblica da antiga rua 29, no Bairro Santa Mnica, em especial a Jane Machado, pela amizade sincera, pela cumplicidade e pela significativa contribuio e apoio vivo ao longo dessa jornada ao longo de 15 anos em Uberlndia. Sua ausncia se faz presena pelo incentivo e pelas boas lembranas e convvio na Graduao.

  • minha amiga Luciana Lemes Barbosa, o meu muito obrigado pelo apoio dispensado ao longo de minha jornada no Bloco H. O socorro, o auxlio, os conselhos e, sobretudo, os incentivos foram fundamentais para concretizao dessa conquista.

    Floriana e Roberta Paula pela amizade, carinho, pelos dilogos, encontros dentro e fora da academia e, sobretudo, por me incentivarem e torcerem pelo meu crescimento.

    s colegas que se tornaram amigas Cinthia Martins, Cssia Silva, Rosana Kuniya com quem tive o prazer de saborear prazerosos almoos no RU, dividindo alegria e tristeza da nossa caminhada intelectual.

    Luciana Tavares, Jaqueline Peixoto e Carol, pelas contribuies intelectuais e pelos fludos bate-papo ao longo de bons anos nos corredores da Histria.

    Aos amigos de Patos de Minas, em especial a Leonardo Latini, Paulo Moreira que sempre me incentivaram nessa conquista.

    Aos amigos e pessoas da Repblica da Antiga rua 13, que tornaram mais leve o meu caminhar ao longo desses 4 anos. Isto , dividir o meu cotidiano com Valria, Rosana, Walter, Andrey, Mariana, Adriana e Auricharme, me oportunizou fruto de crescimento intelectual e pessoal. Alm disso, a convivncia com Mateus Germano, Jean, Caio, Juliana, Emerson, Michele e Victor, foi enriquecedora e proporcionando dilogos muito prazerosos.

    A Byron e famlia pela generosa acolhida ao longo desses 10 anos que moro em sua casa. Seus incentivos e compreenso foram fundamentais para manter o ambiente saudvel e agradvel.

    s demais pessoas e amigos que colaboraram na realizao desse trabalho: Paulo Augusto Soares, Walter Assis, Cleodir, Janana Jcome, Geovana de Lurdes, Jos Amaral Neto, Tlio Barbosa, Victor Mariusso, Cssio Murilo, Amlia, Diogo Naves, Tiago, Abner, Rafaela, Padre Rogrio, Dom Felipe Junior, Nbia, Renato Jales, Jaciely, Jeremias Brasileiro, Jlio Cesar Meira,Adelmo e Eunice Naves.

    Isso para eu lembrar que essa conquista s foi possvel pela grande contribuio de cada pessoa mencionada e por aqueles que, ao redigir essas linhas, no me lembrei.

  • Eu no sou um mito, sou um homem. Eu no

    tenho a cultura que deveria ter por circunstncias

    do prprio pas em que nasci. E cultura muito

    importante para um ator. Eu s no fui

    discriminado pela minha maneira de olhar, de dizer

    sim ou no. Eu nasci zangado. Eu existo,

    modstia parte. Eu sou um personagem de

    Malba Tahan que ficou numa cela por longo tempo

    e exercitou tanto a viso que acabou achando

    alfinetes no escuro. Tudo no passa de um longo

    exerccio. Comigo foi a mesma coisa. Eu

    entrei na Selva e tive de sobreviver. Para isso usei

    todos os truques, os bons e os maus. Eu fui o

    maior cachaceiro que este pas j teve. Eu s no

    consigo largar o cigarro. Eu prefiro morrer do

    que ficar velho e esclerosado, sem ter mais nada

    para dar ao mundo. Eu sou o jumento que, velho e

    experiente, aconselha as pessoas. Pudesse eu dizer

    o que sinto e diria que ainda tenho esperanas.

    Eu, negro, pequeno, feio e sensvel, no podia

    pensar muito aqum de seus limites. E ainda

    insisto em pensar. Eu s consigo trabalhar entre

    pessoas que se comunicam.

    Eu, pra chegar ao ponto em que cheguei, tive de

    dizer muito sim senhor, tive de me agachar

    muito, s no me agachei demais pra no aparecer

    o bumbum.

    Sebastio de Souza Prata

    Revista Manchete, 1983

  • RESUMO

    A tese consiste em uma anlise da integralidade do sujeito Sebastio, negro, ator,

    umbandista, poltico, poeta, escritor, compositor e pai de 5 filhos, cuja identidade fora

    usurpada pelo seu ser cultural comercial Grande Otelo. Trata-se de sujeito de relevncia

    artstica/cultural nacional, com veiculao ainda recorrente, proporcionando aos

    diversos tipos de leitores e expectadores mltiplos significados e sentidos referentes ao

    artista por suas vivncias no teatro, cinema e TV. Desentranhei, via carter relacional, o

    sujeito Sebastio dos seus personagens e do produto cultural Grande Otelo, percorrendo

    os mbitos ficcional, e real, entrelaando Memria e Histria como fios condutores da

    trama, sem desconsiderar, contudo, suas respectivas peculiaridades. O intervalo

    temporal pesquisado foi o perodo entre 1915 a 2015. Desta feita, perscrutamos o

    passado que nos conduziu ao processo originador de Grande Otelo em 1935, de modo a

    explicitar os usos e abusos dos processos instituidores do lembrar do ler e ver Sebastio

    como Grande Otelo, mantendo o primeiro como sombra do segundo. A partir do

    esquecimento de Sebastio em Grande Otelo nos reportamos ao nascimento em 1915,

    pela sua expresso de humanizao como sujeito social, estabelecendo as aproximaes

    e distanciamentos do relacionamento entre as naturezas distintas de suas constituio.

    Para tanto, vali-me como historiador do sentido pretrito da memria reclamante da

    ligao entre memria lembrana e memria habitus, portando-me como mediador entre

    ambas para satisfazer interpretao requerida com carter histrico, dotando a

    narrativa de pertinente inteligibilidade e legibilidade para clareza do e sua posterior

    reflexo. Em suma, pela perlaborao, ficou explicitado no poder deslocar a realidade

    de Grande Otelo para a de Sebastio, para dar sentido a um por meio do outro e,

    sobretudo, no ser possvel equival-los, pois enquanto o ponto referencial de Grande

    Otelo consiste no ano de 1935, o Sebastio o precede, datando-se em 1915.

    PALAVRAS-CHAVE: PRATA/SUJEITO. NEGRITUDE. PERSONAGENS. GRANDE

    OTELO/PRODUTO CULTURAL. REPRESENTAES. ESQUECIMENTO. MEMRIA.

    HISTRIA. HISTORIOGRAFIA.

  • ABSTRACT

    The thesis consists in an analysis of the integrality of Sebastio, negro, actor, Umbanda

    spiritist, politician, poet, writer, composer and father of 5 children, whose identity had

    been usurped by his commercial and cultural career as Grande Otelo. He is a person of

    national artistic and cultural relevance who is constantly promulgated by his roles in

    theater, movies and TV to various types of readers and viewers who transmit to the

    artist multiple meanings and senses. I developed the character and personality of

    Sebastio by means of his role playing and of his cultural product, Grande Otelo, and by

    reviewing his fictional and real spheres and intertwining memory and history as the

    thread of the plot, without ignoring, however, their respective peculiarities. The research

    period was from 1915 to 2015. Thus, we investigated the past which led to the original

    existence of Grande Otelo in 1935 in order to clarify the uses and abuses of the

    founding processes of memory, reading and seeing Sebastio as Grande Otelo, keeping

    in mind the first as a shadow of the second. Starting from the disappearance of

    Sebastio in the role of Grande Otelo we go back to his birth in 1915 in order to express

    his humanization as a social subject, and establish the similarities and differences of the

    relationship between the distinct natures. Thus, as a historian, I availed myself of the

    preterit sense of memory which exacts a link between memory memory and memory

    habitus. I then considered myself as a mediator between the two so as to satisfy the

    interpretation required by a historical character, and imparted the relevant intelligibility

    and readability to the narrative in order to clarity the reflection of the reader. In short,

    through our analysis it was shown that the reality of Grande Otelo can not be transferred

    to that of Sebastio in order to make sense of one by means of the other, and above all

    that it is impossible to equate them since e point of reference for Grande Otelo is the

    year 1935, and that of Sebastio dates back to 1915.

    KEYWORDS: PRATA/SUBJECT. NEGRITUDE. CHARACTERS. GRANDE OTELO/

    CULTURAL PRODUCT. REPRESENTATIONS. OBLIVION. MEMORY. HISTORY.

    HISTORIOGRAPHY.

  • LISTAS DE TESTEMUNHOS IMGETICOS

    1 Mausolu de Grande Otelo no Cemitrio So Pedro em Uberlndia, 2004. O Mausolu foi afixado em 26 de novembro de 1994 ...................................................... 45

    2 Em Macunama o momento mximo da carreira de um homem que dedicou toda sua vida ao cinema e cultura brasileira e pagou caro por sua ingenuidade e dedicao arte ................................................................................................................................. 54

    3 O gnio que se chamava Grande Othelo.................................................................. 62 4 Material de divulgao da Medalha Grande Otelo................................................... 66

    5 Agente culturais recebem homenagens.................................................................... 68

    6 Manifestao em frente ao Teatro Grande Otelo...................................................... 76

    7 Manifestao em frente ao Teatro Grande Otelo...................................................... 76

    8 Manifestao em frente ao Teatro Grande Otelo...................................................... 76

    9 Rua Grande Otelo...................................................................................................... 79

    10 Escola Municipal de Educao Infantil Grande Otelo .......................................... 82

    11 Trilogia Inacabada de Nelson Pereira dos Santos ................................................ 111

    12 Artistas negros brigam por espaos ..................................................................... 114

    13 Artistas negros brigam por espaos ..................................................................... 115

    14 Programao Festeja os 90 anos de Grande Otelo ............................................... 120

    15 Talento estimulado pela necessidade ................................................................... 122

    16 Fs e parentes rezam por Grande Othelo ............................................................. 134

    17 Uberlndia da reportagem .................................................................................... 137

    18 Othelo ser enterrado s 16h ................................................................................ 139

    19 O Adeus de Uberlndia a Grande Othelo ............................................................. 140

    20 O caixo desceu sepultura por volta das 19 horas ............................................. 142

    21 A viva Maria da Graa emocionada no desembarque ........................................ 143

    22 Multido foi dar o ltimo adeus a Othelo, o Grande ............................................ 144

    23 O hall da Cmara Municipal ficou lotado o dia todo ........................................... 145

    24 Multido da o ltimo adeus .................................................................................. 148

    25 Grande Othelo: multido da o ltimo adeus ........................................................ 150

    26 Busto de Grande Otelo, localizado na Praa Tubal Vilela, centro da cidade de Uberlndia .................................................................................................................... 152

    27 Busto de Grande Otelo na Praa Tubal Vilela, centro da cidade de Uberlndia ....................................................................................................................................... 153

    28 Pronunciamento do Deputado Zaire Rezende em homenagem ao ator Grande Otelo ....................................................................................................................................... 156

  • 29 Tia Neguinha: Ele, era um menino bastante levado ......................................... 158

    30 Othelo se preparava para encenar mais uma pea ............................................... 161

    31 Grande Othelo enterrado em meio a discusso sobre jazigo ............................. 164

    32 Otelo visita o teatro ao qual emprestou seu nome ............................................ 172

    33 Ator queria vaga na Academia de Letras ............................................................. 178

    34 O cinema brasileiro perde a sua cara ................................................................... 186

    35 Uberlndia perde o seu Grande Othelo ............................................................... 188

    36 Pas chora morte de Othelo .................................................................................. 189

    37 Grande Otelo morre aos 78 anos em Paris ........................................................... 191

    38 Grande Otelo morre em Paris .............................................................................. 194

    39 O cinema brasileiro perde sua cara ...................................................................... 194

    40 Ator queria vaga na Academia de Letras ............................................................. 194

    41 Na ltima entrevista, uma declarao de amor arte .......................................... 198

    42 Grande Otelo morre em Paris .............................................................................. 201

    43 Tamanho no documento .................................................................................. 211

    44 Capa do compacto Grande Otelo, gua, gua, gua..., do Carnaval de 1985 ...................................................................................................................................... 224

    45 A vida de Otelo e a prpria histria do Teatro Brasileiro ................................... 227

    46 A vida de Otelo e a prpria histria do Teatro Brasileiro ................................... 227

    47 Lamento de Otelo ................................................................................................ 228

    48 Libertao dos escravos ....................................................................................... 230

    49 Libertao dos escravos ....................................................................................... 231

    50 Casamento na roa ............................................................................................... 234

    51 As primeiras fotos do filme Caminho do Cu .................................................. 233

    52 Como nasce um filme .......................................................................................... 240

    53 Imagem do Filme Moleque Tio ......................................................................... 248

    54 Maria Abadia me de Sebastio .......................................................................... 275

    55 Francisco Pinto irmo de Sebastio ..................................................................... 275

    56 Sebastio Bernardo da Costa na Estao Mogiana em So Pedro de Uberabinha ... 276

    57 Sebastio Bernardo da Costa na reunio da famlia Queirz ............................... 284

    58 Imagem publicada aps a tragdia em 1949 ........................................................ 287

    59 Grande Otelo casou-se de novo ........................................................................... 297

    60 Grande Otelo chorou em pleno palco .................................................................. 301

    61 Quantos cigarros voc fuma por dia? .................................................................. 303

    62 Sebastio, Olga e filhos no ensaio do Homem de La Mancha ............................ 304

  • 63 Sebastio como Prata e sua segunda famlia ....................................................... 305

    64 Jaciara, Sebastio e sua neta recm-nascida ........................................................ 307

    65 Sebastio como Prata e filho Mrio Lus ............................................................. 311

    66 Sebastio como Prata, Olga e filhos .................................................................... 312

    67 Sebastio como Prata e filhos .............................................................................. 312

    68 Sebastio como Prata e seus filhos ...................................................................... 313

    69 Sebastio como Prata e seus quatro filhos com Olga Vasconcelos ..................... 313

    70 Sebastio como Prata e seus quatro filhos com Olga Vasconcelos ..................... 314

    71 Sebastio como Prata e filho caula .................................................................... 314

    72 Sebastio como Prata e um dos seus filhos ......................................................... 315

    73 Orson Welles, Maria Helena e Sebastio ............................................................ 324

    74 Sebastio como Pequeno Otelo nas Companhias Negras de Revistas em So Paulo ...................................................................................................................................... 337

    75 Sebastio Bernardo da Costa nas Tabocas .......................................................... 409

    76 Sebastio como Prata e Grande Otelo ................................................................. 441

    77 Ainda o casamento de Grande Otelo ................................................................... 444

    78 Tudo muito vlido para evitar o azar ................................................................ 445

    79 Sebastio em Prata como Grande com policiais das Foras Expedicionrias ...................................................................................................................................... 519

    80 Sebastio como Prata na PRE-8 .......................................................................... 524

    81 Grande Otelo barrado porque preto! ................................................................. 529

  • LISTRA DE QUADROS

    Captulo 1

    Quadro I: A quantificao via Qualitativo de Sebastio em Prata como Grande Otelo no

    seu ps morte entre 1993 a 2015 .................................................................................... 84

    Quadro II: Filmes exibidos aps a morte de Sebastio em canais abertos e fechados,

    reportando a Grande Otelo (1993-2010) ........................................................................ 97

    Captulo 4

    Quadro III: Manchetes de plurais jornais e revistas do pas ........................................ 221

    Quadro IV: Fase constitutiva de Sebastio como Grande Otelo ................................. 243

    Quadro V: Afirmao de Sebastio como Grande Otelo, Sebastio como Prata e do

    Cinema Nacional .......................................................................................................... 245

    Quadro VI: Peas teatrais encenadas por Sebastio como Sebastio Bernardo da Costa e

    Sebastio como Prata ................................................................................................... 246

    Quadro VII: Participao de Sebastio como Prata na Atlntida ................................ 250

    Quadro VIII: Peas teatrais com atuao de Sebastio como Prata ............................ 252

    Quadro IX: Filmografia de Sebastio como Prata entre 1955 a 1969 ......................... 254

    Quadro X: Peas com atuao de Sebastio como Prata entre 1955 a 1968 ............... 256

    Quadro XI: Filmografia de Sebastio como Prata entre 1969 a 1985 ......................... 258

    Quadro XII: Peas teatrais de Sebastio como Prata entre 1969 a 1985 ..................... 261

    Captulo 6

    Quadro XIII: Homenagens prestadas a Sebastio em Prata como Grande Otelo ........ 387

    Captulo 7

    Quadro XIV: Filmes e novelas relativos temtica negra que Sebastio como Prata

    atuou (1949-1989) ........................................................................................................ 448

  • Captulo 8

    Quadro XV: Exemplificativo das mencionadas criaes de Sebastio como Prata nos

    diversos domnios da Arte ........................................................................................... 516

  • SUMRIO

    Consideraes iniciais .................................................................................................... 1

    1 PARTE: O PROCESSO DE CONSTITUIO E MANUTENO

    DO SER GRANDE OTELO

    Captulo 1. No espelho da vida: Sebastio Prata e Grande Otelo no morreram

    ainda .............................................................................................................................. 39

    1.1. O Sebastio reinventado em Grande Otelo: lembrana que questionam a

    homogeneizao do ser ................................................................................. 39

    1.2. Sebastio como Prata realado por Grande Otelo: mdias congelam

    memrias ....................................................................................................... 83

    1.3. O negro aflora na produo artstica nacional ...................................... 110

    Captulo 2. A teatralizao da memria e a ltima cena de uma histria: o

    esquecimento de Sebastio no seu passamento ........................................................... 129

    Captulo 3. O dia que se equivaleu a 78 anos: rastros de Sebastio presentificados em

    Otelo como sua representao ..................................................................................... 174

    Captulo 4. O imaginrio da tessitura de Sebastio como Prata por Grande Otelo: fios

    atemporais em redes de linguagens ............................................................................. 210

    2 PARTE: AS MLTIPLAS FACES DE SEBASTIO

    Captulo 5. Sebastio e suas mltiplas famlias: histrias de um sujeito ................... 266

  • Captulo 6. Ecos de lembranas/rastros de Sebastio em pginas de histrias: imagens

    de sua sobrevivncia .................................................................................................... 326

    6.1. Sebastio como Prata se sobressai a Grande Otelo: lembranas que o

    constituem ................................................................................................... 326

    6.2. Os lugares acolhedores ......................................................................... 346

    6.3. Sebastio como Prata e suas paixes ................................................... 369

    6.4. Sebastio como Prata e seus demnios ................................................ 378

    6.5. Reconhecimento enquanto produto cultural: Sebastio como Prata

    projeta-se nas sombras ................................................................................ 387

    Captulo 7. A negritude de Sebastio: tticas de sobrevivncia, astcias e

    trampolinagens ............................................................................................................. 395

    7.1. Sebastio em busca de seu caminho .................................................... 395

    7.2. No Rio de Janeiro: as ambiguidades de Sebastio Bernardo da Costa e

    Sebastio como Grande Otelo no cenrio cultural ...................................... 421

    7.3. Fazer-se negro no cenrio cultural ....................................................... 434

    7.4. Quando Grande Otelo obscurece Sebastio como Prata e Sebastio: os

    rastros encontram o sujeito ......................................................................... 458

    Captulo 8. O fazer e refazer como negro no Brasil por Sebastio como Prata:

    fragmentos de uma imagem do possvel ..................................................................... 484

    8.1. A expressividade do ser negro: poltica e vida .................................... 484

    8.2. Mutaes e desejos: o ser criador ........................................................ 513

    Consideraes finais .................................................................................................. 543

    Documentao ............................................................................................................ 559

    Referncias ................................................................................................................. 567

  • 1

    CONSIDERAES INICIAIS

    Apaguem esses refletores, essas gambiarras!... Eu vou quebrar este spolight. Eu no quero a luz. Apaguem para sempre a luz dessa ribalta Quero a escurido da minha cor envolvendo tudo S se escute meus soluos Neste silncio mudo. (Ribalta Apagada, PRATA, Sebastio Bernardes de Souza)

    Meu trabalho tem como alvo a vida e obra de um sujeito por sua relevncia no

    cenrio nacional, cujas imagens e personagens criados no cinema e teatro

    permaneceram no imaginrio social no apenas por suas atuaes, mas significando sua

    identidade pessoal.

    Trata-se de Sebastio, negro, ator, umbandista, poltico, poeta, escritor,

    compositor, pai de cinco filhos, dentre outros atributos dotados ao longo de quase

    oitenta anos. Profissionalmente, destacou-se no cinema e teatro brasileiros, com nfase

    nos filmes Moleque Tio, Carnaval na Atlntida, Rio Zona Norte, Assalto ao Trem

    Pagador e Macunama, por cujas interpretaes, e por sua negritude, o revelaram no

    mbito da arte.

    O tema em questo foi traado em meio a uma paixo vislumbrada durante a

    iniciao cientfica, traduzida tambm na monografia de final de curso1, quando

    trabalhei com o sujeito Sebastiozinho que, com graa, estilo e estripulias, recolhia

    moedinhas em troca de apresentaes nas portas de hotis, casas de jogos e onde mais

    fosse possvel danar e cantar, j mostrando a stira e provocando gargalhadas.

    Negrinho, numa cidade racista2, parte com o circo em busca de novos horizontes e, aos

    1 SANTOS, Tadeu Pereira dos. luz do Moleque Bastio/Grande Otelo: Aranhando Uberabinha,Monografia (Graduao em Histria). Universidade Federal de Uberlndia. 2005. 2 Em relao ao racismo em Uberlndia, ver: CARMO, Luiz Carlos do. Funes de Preto: trabalho e cultura de trabalhadores negros em Uberlndia/MG 1945-1960. Dissertao de Mestrado. Pontifcia Universidade Catlica. SP, 2000.

  • 2

    poucos, vai se enfronhando no meio artstico nacional, firmando culturalmente o artista

    Grande Otelo. Suas performances foram multifacetadas e permearam o cinema, o teatro

    de revista, a TV e o rdio.

    Conhecido nacionalmente passa, ento, a ser cobiado por sua cidade natal,

    Uberlndia, que estrategicamente tenta se apoderar de sua imagem, como filho do

    lugar, rendendo-lhe homenagens diversas na busca por frutos em que tal associao

    pudesse projet-la nacionalmente. Todavia, Sebastio, j senhor de si e consciente do

    papel do negro no Brasil, entra nesse jogo de seduo, com tticas e astcias, ora

    aceitando, ora rejeitando tal assdio.

    Porm, o percurso de sua vida e obra continuou a me intrigar. Sujeitos,

    Sebastio em Prata como Grande Otelo se fundem e se tornam um s personagem?

    Muito se escreveu sobre ele. Produziu-se um filme, O Moleque Tio3, no qual a vida do

    menino Sebastio se funde de Grande Otelo. Roteiro intencional? Bomio inveterado,

    frequentador de rodas de samba, amigo dos morros, foi homenageado tambm pelas

    Escolas de Samba do Rio de Janeiro4. Figura da comdia, soube interpretar com

    maestria o Macunama de Joaquim Pedro de Andrade5. Respeitado pela crtica por

    suas atuaes, demonstrou que no era apenas um artista popular, o palhao que ria

    OLIVEIRA, Jlio Csar de. O ultimo trago, a ltima estrofe vivncias bomias em Uberlndia nas dcadas de 40, 50 e 60. Dissertao (Mestrado em Histria) Pontifcia Universidade Catlica, 2000. 3 Ficha Tcnica: Ttulo: Moleque Tio; Diretor Jos Carlos Burle; Roteiro: Alinor Azevedo, Nlson Schultz, Jos Carlos Burle; Argumento: Alinor Azevedo, a partir de reportagem de Joel Silveira e Samuel Wainer; Fotografia: Edgar Brasil; Montagem: Waldemar Noya, Jos Carlos Burle (ou Watson Macedo); Msica: Lrio Panicali; Produtora: Atlntida; Ano/Pas: 1943/BRA; Durao: 78min.; Cor: P&B.; Elenco: Grande Otelo, Custdio Mesquita, Lurdinha Bittencourt, Sara Nobre. 4 importante salientar que, em 1986, a Escola de Samba Estcio de S, tambm lembrou os 70 anos do artista quando fez de Otelo o enredo de seu samba para a disputa do carnaval daquele ano. Otelo participou da festa e, no desfile, acompanhou o percurso da Escola de Samba ao longo da Marqus de Sapuca, no Rio de Janeiro. Grande Otelo Aos 70 anos Foi a Prata da Noite no Desfile da Estcio. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 22/02/1986, Revista Semanal, n 1, 766, Ano 34, pp. 32-33. 5 Ficha Tcnica: Ttulo Original: Macunama; Gnero: Comdia; Tempo de Durao: 108 minutos; Ano de Lanamento (Brasil): 1969; Estdio: Grupo Filmes /Condor Filmes/Filmes do Serro; Distribuio: Embrafilme; Direo: Joaquim Pedro de Andrade; Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade, baseado no livro de Mrio de Andrade; Produo: Joaquim Pedro de Andrade; Msica: Jards Macal, Orestes Barbosa, Silvio Caldas e Heitor Villa-Lobos; Fotografia: Guido Cosulich e Affonso Beato; Desenho de Produo: Ansio Medeiros; Figurino: Ansio Medeiros; Edio: Eduardo Escorel; Elenco: Grande Otelo (Macunama), Paulo Jos (Macunama), Dina Sfat (Ci), Milton Gonalves (Jigu), Jardel Filho (Pietro Pietra), Rodolfo Arena (Maanape), Joana Fomm, Maria do Rosrio, Hugo Carvana, Wilza Calda, Zez Macedo, Maria Lcia Dahl; Sinopse: Macunama um heri preguioso, safado e sem nenhum carter. Ele nasceu na selva e de preto, virou branco. Depois de adulto, deixa o serto em companhia dos irmos. Macunama vive vrias aventuras na cidade, conhecendo e amando guerrilheiras e prostitutas, enfrentando viles milionrios, policiais, personagem de todos os tipos.

  • 3

    do prprio negro e do Brasil, nas Chanchadas, mas tambm que poderia satirizar essa

    sociedade por meio de interpretaes da obra de Mrio de Andrade.6

    Esse ator social intrigante, performtico, deixou suas memrias7. Sabia de sua

    importncia no cenrio cultural brasileiro e, por isso, na sua autobiografia,

    intencionalmente desejou representar o que acreditou ter sido o seu papel e sua vida,

    considerando que outras representaes poderiam deturp-las. Outras biografias,

    homenagens, peas teatrais, o projetado Museu da Imagem e do Som8, com a

    documentao de sua obra e vida, servem a interpretaes diversas. Sua riqueza,

    possibilita recortes distintos da sua participao na cultura brasileira, contribuindo para

    conhecer melhor seus jeitos e trejeitos.

    Mltiplas representaes9 implicam imagens conflituosas a seu respeito e, assim,

    na anlise que proponho, trao um caminho de no-linearidade, que sua vida jamais

    comportaria. A inteno foi perceber as mudanas dessas memrias e, mais que tudo,

    at que ponto o prprio ator fora capaz (e se foi possvel a ele), de separar os

    personagens do sujeito.

    A imagem de Sebastio em Prata como Grande Otelo de uma figura alegre, com

    o riso debochado, a camisa listrada, a molecagem, travestiam, de forma caricatural, o

    carioca, o brasileiro cordial, compondo o cenrio cultural do pas. Nesse vis, foi

    possvel que tal sujeito, to complexo, tivesse a conscincia poltica do que seria ser

    negro no Brasil? A criao de seus personagens no consistiu em astcias para

    sobreviver da arte, por cujas performances apresentou o cotidiano das classes

    populares? Ou seja, as trampolinagens de Sebastio no poderiam desvelar a situao

    dos excludos e as diferenas sociais no Brasil? O negro, compondo o cenrio dessa

    sociedade burlaria, atravs de peripcias e atrevimentos (talvez sendo mais perceptveis

    6 Cf. JOHNSON. Randal. Literatura e cinema. Macunama: do modernismo na literatura ao cinema novo. So Paulo: T.A. Queiroz, 1982. 7 No Musical ta Moleque Bamba ressaltado que Otelo, por vrias vezes, tentou elaborar sua prpria autobiografia, a qual no foi possvel naquele momento, entre as dcadas de 1950 a 1970. Na dcada de 1990, legou populao seu livro Bom Dia, Manh, onde sua experincia tornou-se mais explcita, resultado de um dentre os vrios projetos que ensejou desenvolver ao longo da sua trajetria de vida. 8 uma instituio de responsabilidade do governo estadual do Rio de Janeiro, juntamente com a Fundao Roberto Marinho. O museu reunir documentao de figuras que simbolizam a sociedade carioca e brasileira tais como: Grande Otelo, Carmem Miranda, Pixiguinha, Noel Rosa, Nara Leo, Oscarito, Tom Jobim, dentre outros. 9 Torna-se perceptvel, em Roger Chartier, que o conceito de representao assume mltiplos sentidos configurativos da articulao indivduo/sociedade e indivduo/grupo, delimitando a relao tempo e espao. Assim, so sujeitos plurais ao invs de universais, cujos campos de atuao se fazem em meio s representaes, prticas e apropriaes, com os quais so construdos sentidos. Cf. CHARTIER, Roger. AHistria Cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990, pp. 13-66.

  • 4

    por meio dos personagens), situaes inusitadas, revelando tretas, coretos e

    insinuaes de um Brasil injusto e desigual.

    A inteno foi ler, por entrelinhas, a contrapelo dos interesses da indstria

    cultural, que Sebastio, ao amadurecer criou um espao na mdia onde pde contracenar

    com o gal, provocar o riso fcil do burgus, referir-se s mulheres interesseiras,

    representar o poltico corrupto, entre tantos outros personagens, que passaram da

    esperteza como libi ao jeitinho brasileiro. Denuncia a resistncia na arte do viver.

    De suas atuaes constitui-se um imaginrio que, por vezes, o apresenta como

    uma espcie de heri da nao, devido s dificuldades scio-histricas enfrentadas e

    posterior superao das mesmas. Sobretudo, os filmes por ele protagonizados so

    apresentados como molas propulsoras de sua carreira, a exemplo de O Moleque Tio

    (1943) e Macunama (1969).

    Cinema, teatro, rdio e TV, so espaos reveladores de transformaes sociais

    no apenas vivenciadas pela sociedade brasileira, mas de destaque atuao de

    Sebastio como referncia para vrias geraes de artistas ao longo do sculo XX.

    A Escola de Frankfurt opunha-se indstria cultural por ser burguesa.10 Toma

    corpo especialmente, a partir de 1930/1940, quando o negro incorporado s produes

    artsticas em contraste com seu preconceito e racismo. Tal fato ainda apontado por

    grandes atores como Milton Gonalves, Ruth de Souza, Lzaro Ramos, Mauricio

    Tizumba, dentre outros, cujos papis apenas compem a cena, restringindo-se a

    mordomos, empregados domsticos, guardas, etc. O que dizer, ento, do desempenho de

    Sebastio? Por suas prprias feies fsicas, explorou-se a ironia do Moleque Tio,

    alegre/irnico que, ao apresentar-se pequeno e saliente pde, no fundo, astuciosamente,

    desvelar o lugar que o negro ocupava no imaginrio brasileiro: franzino, favelado,

    trambiqueiro, sambista do morro, que vivia de expedientes duvidosos. O que

    importou, enfim, foi descobrir, por meio de sua vida e obra, at que ponto Sebastio fez

    de sua sobrevivncia uma insero social.

    Na monografia, considerei Sebastio em Prata como Grande Otelo por falta de

    clareza de estar reduzindo o potencial do testemunho. Assim, conformava o passado que 10 Em relao indstria cultural ver: ADORNO, Theodor. Tempo Livre. In: ALMEIDA, Jorge M. B. (org.). Indstria cultural e sociedade. So Paulo: Paz e Terra, 2006; ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. A indstria cultural. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. So Paulo: tica, 1994 (Col. Grandes Cientistas Sociais n. 54); BENJAMIN, Walter. A obra de arte na poca de sua reprodutibilidade tcnica. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; ORTIZ, Renato. A moderna tradio brasileira. 5. ed. So Paulo: Brasiliense, 2001. VIANNA, Hermano. O mistrio do samba. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002; VAZ, Alexandre Fernandes et al. Indstria Cultural hoje. So Paulo: Boitempo, 2008.

  • 5

    sustentasse minha proposio, j que reportava a algum significado nos jornais pela

    arte, distanciada de Sebastio.

    At o mestrado, ignorava os desdobramentos de Sebastio em Bernardo da

    Costa, Tziu, Sebastiozinho da Tia Silva, Otelo de Abigail Parecis, Pequeno Otelo,

    Grande Otelo e Sebastio como Prata, os quais por sua vez so aberturas para novas

    verses. Assumi o ser Grande Otelo como se o prprio Sebastio, estando o primeiro

    relacionado a esforos da mdia em repercutir determinada recepo que objetivava

    instituir o ler e ver, mas que no logra xito, por completo, uma vez ser apenas uma

    variante do processo, em decorrncia de elementos contrrios, onde pulsa a humanidade

    de Sebastio. Apesar de ser por ela apresentado como objeto de consumo, o sujeito

    reclama a sua integralidade.

    Minhas reflexes no mestrado, sobre as ligaes de Sebastio cidade de seu

    nascimento em sua fase adulta, ampliaram as possibilidades de compreend-lo como

    sujeito social, apesar de insistir, poca, em enquadr-lo como Grande Otelo. Pelas

    frestas escriturrias deixadas pela voluntariedade, vislumbrei rastros que me impediam

    de realizar um jogo de equivalncias entre Grande Otelo e Sebastio.

    Pondero tais questes pelas reflexes suscitadas em qualificao de ento,

    especialmente relativas quelas que me conduziram a repens-lo, indagando a unicidade

    entre sujeito e personagens e que centralizaram a problemtica de minha tese. Durante a

    defesa da dissertao, os apontamentos relativos ausncia do sujeito Sebastio como

    Prata e da anlise estar centrada no personagem Grande Otelo, reforaram o meu

    interesse pela questo, tendo ento percebido a perspectiva ampliadora do foco de

    anlise. Ao equivaler arte e vida, como peculiar paisagem, constri-se nova roupagem a

    Sebastio nominando-o Grande Otelo, j que sua aceitao social se apoia na arte de rir

    e chorar, cuja dimenso cmica, grotesca e vulgar expressam-no como produto

    comercial.

    Sua negritude, o ser bomio e irresponsvel, so como se fossem suas marcas.

    Visto e lido no cinema, teatro, revistas, jornais, quadrinhos, em discos, nos diversos

    tempos e espaos, pela habitualidade e reiterao, se favorece a indstria cultural.

    A profuso de suas imagens correntes no cotidiano, criou um imaginrio que o

    catapultou como Grande Otelo, o qual, postumamente, firmou-se em silenciamento

    sua humanidade. Neste sentido, correlacionam-se velhos instrumentais mediadores e

    instituidores de significaes a novos parmetros, pertencentes realidade atual,

    renovando sua performance pretrita que o aprisionou em Grande Otelo. Assim, o

  • 6

    personagem mantido em constante inovao, assegurando representao do ator

    negro, smbolo do cinema nacional.

    Pela indstria cultural, as diversas interpretaes buscam descortinar as plurais

    formas de sua arte, que o faz grande. Isto , h um movimento potencializador do

    artstico, apresentando mltiplas interaes com o referido espao. Transformam-no em

    algum que vivera para a arte compartilhando da mesma significao do passado: o

    mundo como cenrio artstico.

    A diversidade o dinamiza e promove sua homogeneizao, pois se fez objeto

    de interesse pblico pela sua arte, alando-o grandeza artstica, elevando-o

    condio dos homens pblicos obscurecendo, em certa medida, sua humanidade.

    Orientados por essa lgica, espraiaram-se suas representaes materializadas em

    jornais, revistas, meios eletrnicos (internet), trabalhos cientficos, biografias,

    expressando Sebastio como Grande Otelo, harmonizando sujeito e personagem numa

    equivalncia consumista.

    Nesse mote, se faz objeto de celebraes quando, na verdade, deveria ser

    objeto de reflexes que o conduzisse diversidade dos processos de sua constituio,

    acentuando a diferena entre o sujeito e seus personagens. Contudo, pela lgica do

    consumo, o passado ainda tem o mesmo sentido, no permitindo a manifestao de

    outras possibilidades potencializadoras.

    Afirmo que as reiteraes de suas representaes se fizeram criaes

    asseguradoras da continuidade, mas que reduzem a leitura do seu passado. Sebastio

    significa-se pela presena nos plurais espaos de produo cinematogrfica ao longo do

    sculo XX. Extensivamente, participou de mais de 120 filmes, tendo conquistado um

    lugar no cenrio artstico nacional e internacional, tendo sido homenageado com

    diversos prmios e inserido no calendrio cinematogrfico.

    Na atualidade, torna-se objeto de consumo pela via nostlgica, pela louvao e

    constantes recordaes que refletem o seu trnsito nos diversos meios de comunicao.

    As celebraes asseguram suas imagens, destitudas do carter crtico, j que o

    presentificam para a esfera mercadolgica. neste sentido que se vinculam as diversas

    interpretaes sobre a vida e obra de Sebastio s homenagens do seu centenrio em

    2015, tanto na sua localidade natal, quanto em outras regies do pas, reverenciando um

    homem que viveu para as artes.

    Embora complexo, a indstria cultural o dicotomiza entre Grande Otelo e

    Sebastio. O simbolismo que permeia sua trajetria, afigurando-o como ator negro, o

  • 7

    transforma-o num objeto de celebrao ao invs de reflexo. Sua memria desencadeia

    o campo da disputa, por consistir em verses de comunicao tambm expressivas da

    lgica comercial que o faz protagonista do jogo, transformado num produto

    transmutador de Sebastio em ator, sendo a temporalidade do sujeito deslocada como se

    equivalente a ambos. A data de nascimento de Sebastio transformada na de Grande

    Otelo.

    Assim, suas organizaes temporais estruturaram as tramas cronologicamente,

    de modo que a recomposio da representao do passado de Sebastio como Grande

    Otelo tem como nico e exclusivo referente o ano de 1915, embora o ser Grande Otelo

    tenha surgido apenas posteriormente, em 1935. Esta lgica, heroiciza-o11, configura-o

    como um ator de fronteiras12, reala sua arte de rir e chorar13, modelam-no como um

    artista genial14 e conferem-lhe relevncia pelo cinema, explorando os elementos

    corporais, raciais e de gnero como expressivos do sujeito, mas se valendo das suas

    performances cnicas.15

    Tanto as interpretaes no mbito acadmico quanto fora dele, convergem para

    a construo de uma memria feliz, baseada numa retrospectiva do passado com o

    propsito de nele identificar os elementos asseguradores de Sebastio Prata como

    Grande Otelo, reduzindo o potencial do documento e do prprio homem. Neste sentido,

    a movimentao e a identificao, que se do sob tais parmetros analticos, produzem

    sombras irradiadoras em perspectivas diferentes.

    Pauto minha reflexo entendida pelos instrumentais da histria especficos a

    mim enquanto historiador que, pelo uso da historicidade, apresentam Sebastio pelos

    espaos e tempos de suas constituies sem conform-lo a Otelo. Particularmente

    considero que os trabalhos dos demais autores tratam Sebastio como Prata em Otelo e

    se diversificam conforme a tica de suas formaes.

    11 CABRAL, Srgio. Grande Otelo: uma biografia. So Paulo: Editora 34, 2007. p. 1-320. 12 Cf: BRITO, Deise Santos de. Um ator de fronteira: uma anlise da trajetria do ator Grande Otelo no teatro de revista brasileiro entre as dcadas de 20 a 40. Dissertao (Mestrado em Artes) Escola de Comunicao e Artes da Universidade So Paulo Departamento de Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. 13 DOURADO, Ana Karicia Machado. Fazer rir, fazer chorar: a arte de Grande Otelo. Dissertao (Mestrado em Histria) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Sociais Departamento de Histria, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2005. p. 1-224. 14 MOURA, Roberto. Grande Otelo: um artista genial. Rio de Janeiro: Relume-Dumar: Prefeitura, 1996. p. 1-146. 15 HIRANO, Luis Felipe Kojima. Uma interpretao do cinema brasileiro atravs de Grande Otelo:raa, corpo e gnero em sua performance cinematogrfica (1917-1993). Tese (Doutorado em Antropologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Sociais Departamento de Histria, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013. p. 1-449.

  • 8

    Os trabalhos se somam contributivamente pelas respectivas formas

    compartilhadas em suas anlises, confrontadas minha tese, que explicita a ruptura de

    equivalncia, ao apresentar as aproximaes e distanciamentos produtores de sombra e

    luz entre as realidades de ambos.

    Da, o meu aventurar pelos caminhos da memria e da histria, uma vez que

    ambas se solicitam sem abdicarem das respectivas identidades, apesar do intercmbio

    existente no fazer e refazer historiogrfico requerer, cada qual, sua exigncia16. Dessa

    forma, no permite o seu aprisionamento, por tratar de elemento desajustador capaz de

    configurar aberturas entre as temporalidades, sendo o esquecimento17, reclamado por

    ambos. Desse modo, podemos perscrutar o passado e decifrar por um trabalho de

    perlaborao os processos instituidores do esquecimento.

    O imaginrio de Sebastio em Prata como Grande Otelo o imperativo do

    impedimento do seu esquecer. Ao contrrio, no se pode esperar da memria o papel de

    explicitar e exaurir os problemas culminando no esquecimento, j que o que foi

    silenciado, a produzir o seu efetivo apaziguamento, pode ser transformado em uma

    falcia de harmonia.

    Aqui, procurei partir do esquecimento, situado no mbito da histria, alado

    seara da memria, para problematizar em que consiste a representao do passado,

    juntamente a novos esquecimentos, conformadores de nossas problemticas.

    Pelo carter da memria e da histria que se quer crtica, h a impossibilidade

    de fechar-se em si e de fazer da ausncia, presena, pois a produo do novo

    esquecimento se torna mais uma abertura porque consiste em uma ausncia que porta

    presena e, por isso, novas oportunidades para questionamentos e outras problemticas.

    Da problemtica decorreram o mtodo e os procedimentos utilizados como

    historiador na perscrutao da realidade, vasculhada no enigma da memria. Da sua

    flexibilidade no fluir da reflexo historiogrfica, cuja matriz de inquietao se faz

    geradora do contnuo fazer e refazer de uma prtica que se pretende histrica. Trilhei

    um escopo terico que me permitisse estabelecer diversos dilogos com a problemtica

    proposta, tendo como fio condutor a experincia pessoal do sujeito, suas imagens no

    cinema e na grande imprensa, dentre outras mdias e interpretaes a ele referentes,

    16 RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2010, p. 1-512. 17 Na obra de Paul Ricoeur, o esquecimento assume a mesma relevncia de memria e da histria. Contudo, ressaltamos que embora seja o esquecimento o ponto de partida e chegada, pela memria que se d o lembrar e o esquecer. RICOEUR, Paul. Op.cit. p.423-425.

  • 9

    evidenciando tenses e conflitos que suscitam e se entrecruzam as experincias de

    Sebastio.

    O carter relacional entre Sebastio, seus personagens e o produto cultural

    Grande Otelo foram os fios condutores, concomitantemente, aos mbitos ficcional e

    real. As proposies da memria e da histria deram tessitura trama, permitindo

    relacion-los sem, no entanto, desconsiderar suas peculiaridades. Os dilogos em torno

    da memria e histria lanam luz e sombras relativas s aproximaes e

    distanciamentos entre Sebastio e Grande Otelo, por quase 60 anos, a partir de 1935 e

    que, por usos e abusos, tomada em 1915. Ressalto ser Grande Otelo integrante de

    Sebastio, mas no o prprio. Tambm contemporneo de Sebastio Bernardes de

    Souza Prata, sua criao, expressivo da sua condio de homem consciente e de

    memria. Alm disso, no devemos esquecer que Sebastio no passivo na construo

    do ser Grande Otelo, reclamado como sua criao.

    Neste nterim, o recorte temporal aqui proposto consistiu no intervalo que

    aambarca cem anos (de 1915 a 2015), sendo a vida e obra de Sebastio, suportes

    existncia do produto cultural Grande Otelo. A equivalncia entre ambos desloca-se da

    data de nascimento do sujeito para a do produto cultural, dando a ler e ver duas

    realidades distintas como se fossem uma. Tal temporalidade ainda permitiu

    problematizar como, e de que forma, no ps-morte de Sebastio, ainda mantida a

    representao do passado aprisionado a Grande Otelo, assegurando sua dimenso de

    produto cultural. Desta feita, apoiei-me nos dilogos projetados entre memria e

    histria, buscando perscrutar o passado que me conduziria ao processo originador de

    Grande Otelo (1935), de modo a explicitar os usos e abusos e, sobretudo, os processos

    instituidores do lembrar de um Grande Otelo que, por vezes, relega Sebastio ao mundo

    das sombras.

    Nesta lgica, voltei meus olhar ao processo configurador do nascimento de

    Sebastio (1915), expressivo da sua humanizao, de modo a considerar sua existncia

    como sujeito social, bem como relacionando-o ao mercado no estabelecimento de

    aproximaes e distanciamentos entre naturezas ambivalentes e distintas. O

    desentranhamento do sujeito em meio ao produto cultural me fez perceber que o

    primeiro se constituiu instituindo diversas significaes e manifesta o seu processo de

    fazer e refazer-se profissionalmente, enquanto o segundo obscurece sua faceta humana e

    o condiciona ao campo artstico, transformando-o num homem que viveu apenas para o

    mundo das artes. Da, o lembr-lo para esquec-lo ser afirmado pela acentuao de

  • 10

    silenciamentos ou ocultamentos, de aspectos que questionam sua heroicizao pela

    grandiosidade da sua experincia.

    Os dilogos com autores que tm como objeto de reflexo a relao histria e

    memria tambm serviram de inspirao. A memria revela teor polissmico com

    pluralidade de abordagens.18 A sua multiplicidade explicita o carter transformacional

    da prpria historiografia por aproximaes e distanciamentos. A relao histria e

    memria perpassada pelas incurses da memria diferente da histria, da memria

    igual histria e entre memria e histria.19

    Tal relao ainda continua sendo um campo minado entre historiadores, sendo

    necessrio, de minha parte, estudar a diversidade de interpretaes de autores como Paul

    Ricoeur, Jacy Alves de Seixas, Beatriz Sarlo, Pierre Nora, Paolo Rossi, Maurice

    Halbwachs, Antnio Astor Diehl, dentre outros, fundamentais compreenso das

    especificidades da memria e histria e dos usos e abusos que se fazem das mesmas.

    Optei por uma relao entre memria e histria que se entrecruzam, porm,

    assegurando suas particularidades. Isto , a memria se fez ponto de partida para o

    exerccio de anlise aqui proposto, j que parti do esquecimento, o qual orientou-me a

    problematizar como se acentua tal perspectiva. Apoiei-me nos instrumentais que

    qualificam o mesmo realizando uma espcie de escavao, que me possibilitou a

    construo de uma narrativa significadora para novos esquecimentos.

    18 Da termos memrias subterrneas, compartilhadas, enquadradas, seletivas, dentre outras categorias. 19 Ressaltamos que as implicaes da problemtica em torno da relao entre histria e memria ocupa ainda um importante lugar no debate em torno da temtica memria. Isto , a memria abre inmeras possibilidades de interpretaes das sociedades e, por isso, ocupa o centro desses debates que aproximam ou distanciam abordagens historiogrficas. Seixas, em suas produes acadmicas, apresenta inmeras possibilidades relativas memria nas diferentes formas que perpassam a relao memria e histria. Acentua diferenas, igualdades e proximidades, trazendo ao centro das discusses as reflexes de Maurice Halbwachs, Proust, Bergson e Pierre Nora. SEIXAS, Jacy A. Percursos de memria em terras de histria: problemticas atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Mrcia (org.). Memria e (re)sentimentos: indagaes sobre uma questo sensvel. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2001. A respeito dessa discusso ver tambm: SEIXAS, Jacy. Os campos (in)elsticos da memria: Reflexes sobre a memria histrica. In: BRESCIANI, Maria Stela; MAGALHES, Marion Brepohi; SEIXAS, Jacy A. (org.). Razo e paixo na poltica. Braslia, DF: UNB, 2002; SEIXAS, Jacy. Comemorar entre memria e esquecimento: reflexes sobre a memria histrica. Histria: questes e debates, Curitiba, n.32, p.82, jan./jun.2000; DALESSIO, Mrcia Mansor. Intervenes da memria na historiografia: identidades, subjetividades, fragmentos, poderes. In: Revista Projeto Histria, So Paulo: PUC, n 17, nov. 1998, p. 269-280; HALBWACHS, M. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990; NORONHA, Gilberto Csar de. Joaquina do Pompeu: tramas de memrias e histrias nos sertes do So Francisco. Uberlndia: Edufu, 2007; POLLAK, Michel. Memria e Identidade Social. In: EstudosHistricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212; SAMUEL, Raphael. Teatros da Memria. In: Projeto Histria. Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC/SP, So Paulo: EDUC, n 14, 1997, p.41-88; RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007; VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a memria histrica. So Paulo: Hucitec, 1997.

  • 11

    Neste sentido, os escritos de Paul Ricoeur so muito importantes, uma vez que

    a problemtica deste autor se pauta na anlise do que consiste a representao do

    passado. Ricoeur estabelece o dilogo entre memria e histria e suas peculiaridades,

    fazendo-as simultaneamente relacionais e ensejando muitos dos processos de

    lembranas como recordaes ou reminiscncias possveis, vinculando a memria e o

    esquecimento, assim como os colocando, por vezes, em flagrante oposio.

    Esse processo plural qualifica diferentes maneiras do lembrar e esquecer.

    Assim, o lcus da memria, numa mediao histrica, materializa-se em narrativas

    emolduradas conforme as problemticas propostas. Por diferentes modos de construo

    de memrias, por usos e abusos das lembranas, pensamos e repensamos os modos de

    significaes que aproximam e distanciam o ser Grande Otelo de Sebastio e de

    Sebastio como Prata.

    O horizonte da memria tornou-se, desta maneira, um elemento crucial para a

    problematizao da relao que Sebastio como Prata estabelece com e sobre o tempo

    ao longo da sua trajetria, sendo produzidas autoimagens derivadas de sua experincia,

    tanto pelas verses dos que com ele conviveram, bem como do grande pblico que

    assistia aos filmes que protagonizara. A respeito da relao entre memria e

    temporalidades, Antnio Astor Diehl sugere:

    (...) a noo memria como identidade precisam estar envolvidas com aqueles aspectos que proporcionaram o dficit da historiografia moderna: o tempo, espao e o movimento. Dos mltiplos cruzamentos entre memria e identidade com as trs variveis podero abrir outras tantas possibilidades para o estudo da histria.20

    A relao tempo, espao e movimento foram cruciais para minha percepo de

    como Sebastio, ao longo do tempo, processou suas representaes, j que viveu intensa

    negociao cultural, experimentou plurais transformaes na sociedade, nos mbitos

    poltico e cultural, numa diversidade de tempos. Por isso, lidar com memria exigiu

    atentar para o entrecruzamento temporal em que se apoiam lembranas de diferentes

    geraes, boatos e monumentos, numa sociedade dinmica e em disputa pelo controle

    de seus rumos. 20 DIEHL, Astor Antnio. Memria e identidade: perspectivas para a histria. In: Cultura Historiogrfica: memria, identidade e representaes. Bauru, SP: Edusc, 2002. Relativos s discusses da relao do tempo e memria, ver tambm: SEIXAS, Jacy Alves de. Os tempos da memria: (des)continuidade e projeo. Uma reflexo (in)atual para a histria? Projeto Histria, So Paulo, v. 24, p.49, 2002b; PINTO, Jlio Pimentel. Os muitos tempos da memria. In: Projeto de Histria, So Paulo/PUC, n 17, 1998. pp. 203-211.

  • 12

    A memria constitui-se o canal de captao das aes de Sebastio na

    construo de suas prprias imagens e representaes, cuja (res)significao do passado,

    seleto e atualizado, faz do lembrar o esquecer21. No tocante a Sebastio, considero seus

    passados bem presentes, por tratar-se de um sujeito em permanente mutao e

    mltiplos tempos.

    Sebastio possibilitou uma anlise mais acurada das imagens produzidas pelo

    cinema, veculo que permitiu publicizar o ambiente onde floresceram seus potenciais

    artsticos, levando-me a questionar o seu desejado enquadramento pelas mdias no ser

    Grande Otelo. Enfatizei a relao constituda por meio da memria e do esquecimento,

    j que o esquecimento que suscita a memria e permite voltar-se para o esquecido.22

    Optei por partir do esquecimento, em decorrncia da reconstruo do passado dar-se

    seletivamente numa operao permeada por silenciamentos e ocultamentos. Conforme

    nos sugere Paolo Rossi:

    (...) h muitos modos de induzir ao esquecimento e muitas razes pela qual pretende provoc-lo. O apagar no tem a ver s com a possibilidade de rever, a transitoriedade, o crescimento, a insero de verdades parciais em teorias mais articuladas e mais amplas. Apagar tambm tem a ver com esconder, ocultar, despistar, confundir os vestgios, afastar da verdade, destruir a verdade.23

    As interpretaes elaboradas sobre Sebastio foram forjadas por meio do

    silenciamento da relao entre sujeito e personagens. A anlise do esquecimento nos

    permitiu refletir sobre a relao entre o sujeito e os personagens constitutivos da mesma

    trama com elos ficcionais e reais.

    Desta feita, a memria, como sendo do pretrito, reclamou-me habilidades que

    me permitissem relacionar memria-lembrana ligada memria-habitus24, pois as

    representaes manifestadas no presente resultam de outros tempos e espaos. No

    primeiro instante, analisei as representaes que mantiveram Prata como Grande Otelo,

    realizando uma busca ontolgica do seu processo de constituio pela configurao de

    lembranas que ofuscavam de Sebastio. No segundo momento, avaliamos o

    21 Marilena Chau tambm afirma, na apresentao do prefcio do livro de Ecla Bossi intitulado Memria e sociedade: lembranas de velhos, que lembrar tambm esquecer, pois, a lembrana decorre da seletividade e leva ao silenciamento de outras possibilidades. CHAUI, Marilena. Introduo. In: BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. So Paulo: T.A. Queiroz/USP, 1987. pp. 17-32. 22 ROSSI, Paolo. O passado, a memria, o esquecimento: seis ensaios da histria das ideias. So Paulo: Ed. Unesp, 2010. p. 20. 23 Ibid. p. 32. 24 RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2010. p.43.

  • 13

    distanciamento entre ambos, na medida em que o prprio sujeito reclama o direito a

    construir sua prpria memria, diferindo-se de mero produto cultural.

    Foi ento possvel desvelar os processos de esquecimentos de Prata como

    Grande Otelo. Ao interligar a problemtica da lembrana como recordao, foi

    produzida uma paisagem no e sobre o tempo, que assumiu diferentes formatos

    inovando-o, assegurando a dimenso pretrita. As linguagens que utilizei na produo

    de minha trama so como aberturas que, embora utilizadas para conferir sentidos a

    problemticas, permaneceram fraturadas, j que os modos de instituio de lembranas

    foram alterados por usos e abusos que, conformados ao proposto e destitudos dos

    controles das realidades, por si mesmos produzem naturezas contraditrias.

    Contudo, faz-se necessrio ressaltar que ocorre uma impropriedade da prpria

    literatura pesquisada no trato com a temtica por deslocar o pertinente ao sujeito para o

    produto cultural, fazendo o esquecido em Grande Otelo. Da as citaes reportarem a

    Grande Otelo, dizendo de Sebastio ofuscando as suas demais personificaes numa

    unicidade sufocadora da heterogeneidade pela supremacia das referncias dos

    testemunhos a Grande Otelo, tornou-se um dificultador para compreenso dos ns de

    Sebastio.

    O cerne da tese orientou os meus procedimentos na leitura da documentao,

    no dilogo com os autores e, sobretudo, no modo de organizao da narrativa para que,

    a contento, fosse possvel explicit-la inteligvel e legvel para que o leitor nela

    refletisse e fosse provocado por dvidas, indagaes e questionamentos, capazes de

    abrir-lhe novos horizontes, no somente para repens-la mas, sobretudo, para colocar

    em discusso no que consiste o ofcio do historiador. Os procedimentos decorreram da

    proposta, cada qual exigindo a produo de um mtodo capaz de oferecer ao leitor o

    processo de compreenso do trabalho, organizado em uma narrativa que, afinal, fora

    resultante de contnuo e rduo amadurecimento, ancorados no dilogo entre o

    documental e o historiogrfico para as interpretaes.

    A origem/problemtica que desencadeou tanto o meu incio quanto consistiu

    na espinha dorsal do trabalho, conduzindo escrita, que foi da averiguao e anlise dos

    arquivos (fase documental), compreenso/explicao e representao/narrativa,

    buscando a clareza, conciso e coerncia.25 E, conforme nos sugere Paul Ricoeur:

    25 RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2010, p. 149.

  • 14

    Propusemos a palavra fase para caracterizar os trs segmentos da operao historiogrfica. No deve haver aqui qualquer ambiguidade concernente utilizao do termo: no se trata de estgios cronologicamente distintos, mas de momentos metodolgicos imbricados uns nos outros; repetiremos quanto for preciso, ningum consulta um arquivo sem um projeto de explicao, sem uma hiptese de compreenso; e ningum se dedica a explicar uma sequncia de acontecimentos sem recorrer a uma colocao em forma literria expressa de carter narrativo, retrico ou imaginativo.26

    Orientado pela problemtica, iniciei a pesquisa em algumas instituies, como o

    Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, de Braslia e do Museu Afro-Brasileiro, em So

    Paulo, lugares de registro das memrias das cidades, atentos aos grupos sociais

    envolvidos com os mesmos, tendo claros os porqus em se preservar seleta

    documentao e a inteno dos organizadores em assegurar determinada memria.

    A perspectiva documental ainda se balizou nas evidncias disposio nos

    arquivos j que, no Brasil, esse espao o principal lcus de suporte pesquisa para as

    cincias humanas, especialmente no que concerne histria. Levou-nos a repensar os

    testemunhos, o processo da pesquisa e suas implicaes concernentes ao olhar do

    historiador, os mtodos e as formas de produzir narrativas. Aqui, Franois Hartog se fez

    essencial com o seu texto Conjuntura do final de sculo: a evidncia em questo?27. O

    referido texto nos conduziu reflexo dos espaos de arquivos enquanto zonas de

    prticas de poder, na medida em percebemos suas respectivas constituies: a

    documentao neles presente, e sua consequente organizao, ocorrem por meio de uma

    prtica poltica direcionada a uma dada interpretao da realidade. Articulam o processo

    organizativo atrelado a um poder que lhe inerente, de modo que os status de

    preservao e conservao foram e, ainda so, elementos de formao de uma dada

    memria. A ttulo de exemplo, destaco a organizao espacial do Arquivo Pblico

    Municipal de Uberlndia, cuja poltica de preservao definida nos moldes das gestes

    pblicas locais.

    O controle pode ser visualizado pela preocupao com a documentao,

    especialmente a existente em relao ao prprio Sebastio. Vinculado histria local

    pelos discursos das elites, tido como um filho da terra, consta no Arquivo, a seu

    respeito, apenas uma pasta com recortes de jornais referentes a seu cortejo fnebre.

    Destacam-se as colees das revistas O Cruzeiro e Manchete, em pastas plsticas

    26 Ibid. p. 147. 27 HARTOG, Franois. Conjuntura do final do sculo: a evidncia em questo? In: HARTOG, Franois. Evidncias da histria: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autntica, 2011, pp. 229-251.

  • 15

    contendo de 10 a 20 exemplares. Fica explcito o silenciamento da documentao, ali

    desprovida de manuteno e restaurao.28

    A instrumentalizao organizacional constitui-se em lcus sugestivo da

    ausncia na presena, pois o arquivo , com efeito, uma testemunha, uma prova; fala-

    se de sigilo, de dissimulao e de confisso29 e igualmente evidencia a diviso entre o

    que se v, entre a aparncia e a realidade, entre a iluso e o que realmente existe.30 A

    (des)naturalizao nos induziu ao silenciamento e ao esquecimento definidos pela

    institucionalizao. Sendo Sebastio em Prata, como Grande Otelo, uma figura ilustre

    da cidade e relevante, no que tange cultura nacional, torna-se injustificvel a

    documentao referente a Sebastio/ Sebastio como Prata/Grande Otelo carecer de um

    maior cuidado, j que a de outras figuras de menor expresso nestas searas ampla.

    O referido Arquivo, apesar das dificuldades, tornou-se meu ponto de partida

    na busca por vestgios e conduziu-me a outros espaos de pesquisa, tais como:

    Biblioteca Nacional, Museu de Imagem e Som de So Paulo, igualmente limitadores do

    meu campo de explorao documental.

    Esse silenciamento, sobretudo, me levou questionar tais instituies. Tidos

    como produtores de memria, suscitaram-me as seguintes indagaes: No que consistia

    aquele objeto analisado? De que modo ocorreu sua difuso e circulao? Esteve

    presente no cotidiano de quais sujeitos sociais? Por que se fala tanto de sua importncia

    e se desconsideram suas memrias?

    Por conseguinte, tal perspectiva me fez percorrer dois caminhos, no tocante s

    buscas documentais: o primeiro se revelou em decorrncia da presena do objeto

    analisado e de sua durabilidade na sociedade, nela prefigurar por quase 60 anos,

    evidncia que nos levou Internet, cuja difuso e circulao de imagens, textos,

    hipertextos, so reveladoras das interaes de sujeitos com os quais mantivemos

    contato, vendedores/colecionadores, sujeitos que fazem circular determinados objetos

    nostlgicos. Desta maneira, ampliei o horizonte analtico em relao ao objeto

    abordado, o que permitiu-me delimitar a prpria problemtica.

    28 Cabe aqui destacar que, embora tenha presena de alguns historiadores no referido espao, quase inexistente no local a presena de profissional habilitado para o desenvolvimento das atividades. Isto , l se encontram tcnicos administrativos que desempenham funes para as quais no esto e no foram habilitados. 29 HARTOG, Franois. Conjuntura do final do sculo: a evidncia em questo? In: HARTOG, Franois. Evidncias da histria: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autntica, 2011, p. 235. 30 Ibid. p. 234.

  • 16

    O segundo caminho decorreu da prerrogativa dos arquivos transcenderem

    realidade de suas respectivas existncias. A materialidade proporcionada por esses entes

    de memria, manifestada nos documentos, (tomados aqui enquanto fatos visveis no

    presente), se reconfigura na condio de vestgios, condutores ao dado existencial e a

    processos originrios singulares ao testemunho/documento, e no em srie, de acordo

    com Hartog.31 Dessa busca da presena portadora da ausncia, recorri a outras

    instituies e lugares. O objeto de anlise nos exigiu lidar com a imprensa e com

    documentos pblicos locais e nacionais, revistas, filmes, sites da Internet, biografias e a

    prpria produo biogrfica de Sebastio.32Constatei ser o tratamento destinado

    memria de Sebastio equivalente de seus pares. Sua condio de smbolo do cinema

    e expresso da cultura no lhe legou nenhum arquivo prprio, que resguardasse a

    prpria documentao, ou outra para posteriores estudos a seu respeito.

    Os diversos pesquisadores que analisaram sua experincia tiveram como

    terreno comum o compartilhamento das dificuldades em localizar a documentao sobre

    o mesmo, embora sua experincia tenha consistido num lcus de significao,

    oportunizou trazer tona sujeitos comuns e fraturar memrias construdas a seu respeito

    desqualificando, em alguns momentos, suas prticas sociais.

    Localizei nas instituies pesquisadas pastas com recortes de jornais e revistas.

    Em nenhuma delas pude encontrar documentao substancial. Entretanto, os

    deslocamentos a So Paulo e Rio de Janeiro nos serviram para ampliarmos nossa viso

    sobre a documentao e a percepo das dificuldades em localiz-la.

    A descoberta do universo comercial aberto pela Internet reafirmou a ausncia

    de prticas e polticas fomentadoras da pesquisa sobre Sebastio no pas. As

    dificuldades em localizar documentos nos arquivos e as insuficincias das instituies

    preservadoras, explicitaram certo descaso poltico. A seleo excludente de temticas

    relevantes histria do pas demonstra no haver preocupao com a memria nacional

    31 Ibid. p.233. 32 Discusso a respeito ver: BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In: AMADO, Janana e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, pp. 183-191; LORINGA, S. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: aexperincia da microanlise. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998; SCHMIDT, Benito Bisso. O gnero biogrfico no campo do conhecimento histrico: trajetrias, tendncias e impasses atuais e uma proposta de investigao. Anos 90. Porto Alegre, n.6, pp. 165-192, dez. 1996; SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias... Historiadores e jornalistas: aproximaes e afastamentos. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, n. 19, 1997, pp. 1-17.

  • 17

    na medida em que so institudas polticas que impem o desenvolvimento de pesquisas

    que no questionem interpretaes cristalizadas e dadas a ler como verdades absolutas.

    Neste sentido, percorrer um caminho diferente na busca documental foi

    fundamental para ampliar meu ngulo de viso sobre Sebastio e sua obra, pois seus

    rastros se espraiam pulverizando representaes. Por isso, adquiri grande parte do meu

    acervo de colecionadores, que arquivam materiais at de forma romntica, como uma

    espcie de tributo, mas que no disponibilizam seus acervos consulta por parte da

    populao, apenas sendo alguns poucos materiais publicizados como relquias

    comerciais, prximos louvao.

    Via Mercado Livre e Estante Virtual, fui conduzido a esses colecionadores. A

    minha frequncia ao ambiente virtual foi rotineira, em decorrncia da renovao

    constante dos elementos disponibilizados para venda. Assim, acessibilidade e contatos

    permitiram-me a obteno de materiais no presentes nos arquivos e que foram

    fundamentais para firmar a problemtica de aproximao e distanciamento entre

    Sebastio e Grande Otelo.

    Tornei-me tambm um colecionador de artefatos, uma vez que aspectos

    importantes ao desenvolvimento do trabalho foram realizados desta forma. Assim,

    obtive uma gama variada de materiais de pesquisa, tais como filmes, revistas, jornais,

    elementos pessoais, cartazes de filmes e de peas. Por meio dos leiles, objetos cruciais

    eram colocados em disputa entre colecionadores e pesquisadores, a exemplo daqueles

    objetos mais ligados como fs. Com efeito, no que tange aquisio em definitivo do

    material, por vezes me vi em dificuldades, pois a bolsa de pesquisa oferecida pela

    CAPES nem sempre era suficiente para a aquisio necessria.

    Outra dificuldade encontrada consistiu no lidar com os documentos

    disponibilizados pelas instituies pblicas ou privadas em sites de busca, a exemplo

    dos arquivos da Biblioteca Nacional e do jornal O Estado de S. Paulo. Se por um lado,

    ampliaram e tornaram-se facilitadores de acesso para as fontes, por outro,

    impossibilitavam a integralidade das informaes, pois as matrias eram feitas como se

    fossem manifestaes de si prprias. Tal fato dificultava a compreenso integral do

    jornal e a sua filosofia.

    Concomitantemente pesquisa nos arquivos pblicos (Nacional, Uberlndia,

    Braslia), assim como nos sites da Internet e filmografia, ampliei a anlise Histria

    Oral, com indagaes concernentes ao projeto. Entrevistei familiares, a exemplo do seu

  • 18

    filho Carlos Sebastio Prata, mais conhecido como Otelinho e sua tia Dona Marolina,

    alm de contemporneos ainda vivos como Nininha Rocha, dentre outros.

    As variaes do lembrar Sebastio nos reportam tanto ao mundo imprenso

    como ao oral, j que suas reminiscncias desvelam a aglutinao de recordaes

    singulares, em decorrncia de sua experincia estar condicionada pelo ver, ler e ouvir

    contar. A materialidade da documentao deu forma e sentido problemtica e, se antes

    a mesma se apresentava configurada em hipteses, agora era possvel uma tessitura, a

    qual foi suporte da elaborao da estrutura e organizao da tese em dois movimentos: o

    primeiro, a instituio e manuteno de Grande Otelo e Sebastio como Prata; o

    segundo, a humanidade de Sebastio.

    A documentao utilizada, que compe o universo presente na Internet,

    postada por diferentes sujeitos, que chamam vida a memria de Sebastio.

    Virtualmente, ele visibilizado de forma fluida, por intermdio de sites de msicas,

    teatro e cinema, blogs de fs, comunidades no Orkut e Facebook, fragmentos de filmes,

    programas de televiso, vrias imagens do artista, nomes de ruas, cinemas, teatro e de

    espaos culturais, dentre outros. Isto permite desvelar as sries de Sebastio,

    reconfiguradas em Grande Otelo, num movimento em que o ficcional tambm o real,

    por ser expressivo do humano.

    Os referidos espaos foram de fundamental importncia para relacionarmos

    Sebastio, Sebastio como Prata e Grande Otelo na contemporaneidade. So neles

    destacadas as programaes de televiso e cinema, considerando os modos e formas,

    pelas quais tanto o sujeito Sebastio como Prata ou Grande Otelo, so presentificados.

    Tal programao constitui-se de filmes, novelas, dentre outros meios em que, no caso

    dos filmes, ajustaram diferentes realidades num mesmo plano, com destaque dupla

    Otelo e Oscarito.

    Ainda analisei as biografias de seus contemporneos, publicadas na atualidade,

    a exemplo daquelas referentes a Herivelton Martins33, Oscarito34, Dercy Gonalves35,

    dentre outros, cujos teores, invariavelmente, apresentam Sebastio Prata como Grande

    Otelo.

    Os artigos presentes nas revistas A Cena Muda, Radiolndia, O Cruzeiro, O

    Centenrio, versam sobre contedos relacionados ao cinema, teatro e televiso que, 33 DUARTE, Ana; RIBEIRO, Pery. Minhas duas estrelas: uma vida com meus pais, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. Rio de Janeiro: Globo, 2009. 34 MARINHO, Flvio. Oscarito: o riso e siso. Rio de Janeiro: Record, 2007. 35 AMARAL, Adelaide. Dercy de cabo a rabo. So Paulo: Globo, 1994.