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literatura russa

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TAMAN

TAMANpor Mikhail Lermontov

Taman a pior cidadezinha que se pode encontrar em toda a costa da Rssia; estive por l quase a morrer de fome e por l tentaram afogar-me. Cheguei l noite avanada, num carro de posta; o postilho levou a fatigada troika primeira casa de tijolo da cidade, junto das portas. O guarda, cossaco do mar Negro, ouviu o tilintar das campainhas e berrou com uma voz spera e ensonada: Quem est a? Depois saram um sargento e um fiscal, a quem expliquei que era oficial, que ia para a frente em servio e que desejava aboletar-me. O fiscal levou-nos pela cidade, mas todas as cabanas a que batemos estavam j cheias. A noite estava fria; eu j no dormia h trs noites e sentia-me imensamente fatigado. Por fim, perdi a serenidade e gritei:- Malandro, leva-me para onde quiseres, para o Diabo, se te apetecer, mas arranja-me cama!- Ainda h por a outro lugar - disse o fiscal coando a nuca - mas naturalmente V. Ex. no quer... pouco limpo...No compreendi logo o sentido exacto destas ltimas palavras e disse-lhe que fssemos imediatamente; depois de andarmos que tempos por vielas imundas, ladeadas s por casebres em runas, chegmos a uma cabana pequena e edificada mesmo junto do mar.A lua cheia brilhava sobre a cobertura de canas e de colmo e sobre as paredes brancas da minha nova residncia; no ptio, que era rodeado de um muro feito de pedras redondas, mal talhadas, estava outro casinhoto, inclinado para uma banda e mais velho e mais pequeno do que o primeiro. Os rochedos desciam quase no prolongamento das paredes e l em baixo as vagas azul-escuras rebentavam com incessante murmrio. A Lua parecia contemplar o inquieto elemento que lhe obedecia e luz que dela vinha podia eu distinguir ao longe dois navios cujos perfis negros se esboavam, como imvel teia de aranha, sobre o fundo plido do horizonte. H navios no porto - pensei eu; - j posso embarcar amanh para Gelenzhik. A minha ordenana era um cossaco de linha; dei-lhe ordem para que tirasse do carro a maleta e pagasse ao cocheiro e ao mesmo tempo pus-me a chamar pelo dono da casa. Nem resposta. Bati - de novo o silncio. Que diabo querer dizer isto?... Por fim, um rapaz de uns catorze anos surgiu entrada.- O patro?- No h patro.- Qu, patro nenhum?- Nenhum.- E a patroa?- A patroa foi aldeia.- Ento quem abre a porta? - disse eu, atirando um pontap. A porta abriu-se por si prpria e da cabana veio um cheiro a bafio. Acendi um fsforo e cheguei-o cara do rapaz; o fsforo iluminou dois olhos brancos. Era cego, completamente cego desde nascena. Estava de p, diante de mim, sem se mover, e comecei a examinar-lhe as feies.Devo confessar que tenho grande preconceito contra todos os cegos, os tolhidos, os surdos, os mudos, contra todos os que no tm pernas ou braos ou so corcundas ou tm qualquer outra deformao. Tenho notado sempre uma estranha ligao entre o exterior de um homem e o seu esprito; parece que com a perda de um membro ou de uma possibilidade tambm a alma perde uma parte da sua sensibilidade.Principiei, portanto, a examinar a cara do moo; mas que se pode ver numa face sem olhos? Por muito tempo o contemplei com um involuntrio sentimento de piedade; depois, subitamente, um sorriso quase imperceptvel lhe passou nos lbios finos e, no sei porqu, provocou uma impresso muito desagradvel. Entrou-me no esprito a suspeita de que o rapaz no era to cego como parecia; e era intil repetir-me a mim prprio que era impossvel imitar uma catarata; de resto, que razes haveria para tal? Mas no podia deixar de haver a suspeita; como disse, tenho tambm os meus preconceitos.- Tu que s o filho da patroa? - perguntei por fim.- No, no sou.- Ento quem s?- Um pobre rfo.- A patroa tem filhos?- Teve uma filha; mas embarcou com um trtaro.- Que espcie de trtaro?- S o Diabo o sabe. Um trtaro da Crimeia, um marinheiro de Kertch.Entrei na cabana; dois bancos, uma mesa, uma arca enorme perto do fogo constituam a nica moblia. No havia nas paredes uma s imagem - mau sinal. Pelos vidros quebrados soprava o vento do mar. Tirei o resto duma vela de cera da maleta, acendi-a e comecei a arranjar as minhas coisas. Pus o sabre e a espingarda ao canto do quarto, as pistolas sobre a mesa e desdobrei a capa sobre um dos bancos; o cossaco ps a dele em cima doutro. Ainda no tinham passado dez minutos, j ele ressonava; mas eu no podia dormir; via sempre o rapaz com os seus olhos brancos na escurido.Passou-se mais ou menos uma hora. A luz brilhava atravs da janela e os seus raios iluminavam o cho de terra da cabana. De repente, uma sombra cruzou a linha brilhante do cho. Sentei-me e olhei pela janela. Alguma coisa correu segunda vez e desapareceu, Deus sabe onde. Nem podia supor que esta criatura tinha corrido pelas rochas a pique, mas de facto no havia outro caminho. Levantei-me, vesti o dlman, prendi o punhal cintura e deixei a cabana sem fazer barulho. O rapaz cego veio na minha direco, com um grande volume debaixo do brao. Escondi-me junto da parede e ele passou, com um passo cuidadoso mas firme; voltando-se para o lado do porto, comeou a descer uma vereda estreita e ngreme. Ento se abriro os olhos dos cegos e cantaro as lnguas dos mudos - pensei eu, seguindo-o a distncia, embora no o perdendo de vista.A Lua escondeu-se nas nuvens, o mar cobriu-se de nevoeiro; o farol de popa do barco mais prximo mal se via da costa e a cada momento parecia que a espuma das vagas ameaava apag-lo. Com dificuldade desci a vereda ngreme e eis o que vi quando cheguei abaixo: o rapaz parou borda de gua, depois voltou direita e seguia to perto do mar que se tinha a impresso de que uma vaga o arrebataria. Era evidente que no fazia o caminho pela primeira vez, porque dava passadas audaciosas de pedra a pedra e evitava as poas de gua. Por fim, parou; durante uns momentos esteve na atitude de quem escuta; em seguida, sentou-se no cho, com o fardo ao lado. Eu estava oculto atrs duma rocha que fazia salincia e espiava-lhe os movimentos. Poucos minutos depois, uma figura branca aproximou-se dele e sentou-se ao lado. De tempos a tempos, o vento trazia-me trechos da conversa:- O tempo est muito mau. Janko j no vem - dizia uma voz de mulher.- Janko no tem medo do mau tempo - respondia o rapaz.- O nevoeiro cerrou mais - tornou a mulher num tom de pena.- mais fcil passar os guardas com nevoeiro - foi a resposta.- E se se afoga?- Bem, e se se afoga? Tens que ir domingo igreja sem fita nova.Depois, houve silncio. Uma coisa me surpreendeu: o cego, quando me tinha falado, empregara dialecto, agora falava russo.- Olha, quem tinha razo era eu - disse o cego batendo palmas. - Janko no tem medo do mar, nem do vento, nem do nevoeiro, nem dos guarda-costas. Ora ouve: no o barulho das ondas... No me engano: so os remos.A mulher, que evidentemente estava muito ansiosa, ps-se de p e olhou para o largo.- Ests doido, rapaz; no vejo nada.Devo dizer que tambm eu me esforava por divisar ao longe qualquer objecto parecido com um barco, mas sem resultado. Passaram cerca de dez minutos e viu-se ento uma pequena mancha entre vagas como montanhas; ora parecia aumentar, ora parecia diminuir. Subindo vagarosamente ao cimo das ondas, depois descendo rapidamente, o barco a pouco e pouco se aproximava da costa. Deve ser ousado marinheiro quem se aventura a atravessar numa noite destas uma baa de trinta verstas e deve ser importante o negcio que o traz por c - pensava eu, com o corao palpitante ao contemplar o barco que lutava sempre. Mergulhava como um pato, depois, com uma rpida pancada dos remos que pareciam asas de uma ave, saltava das profundidades numa nuvem de espuma; julguei que bateria nas rochas da costa e se faria em bocados; mas no: virou de bordo com destreza e entrou sem avarias numa pequena abriga. Um homem de estatura mdia, com um barrete trtaro de pele de ovelha, saltou do barco e fez sinal aos outros; os trs comearam a tirar no sei qu do barco e a carga era to grande que ainda hoje no posso perceber como no afundou a embarcao. Cada um tomou o seu fardo, meteram praia e cedo os perdi de vista. Tive de voltar cabana, mas confesso que todas estas estranhas ocorrncias me tinham indisposto de tal modo que no pude esperar pela manh.O meu cossaco ficou muito surpreendido quando, ao acordar, me viu j pronto; no entanto, nada lhe expliquei. Fiquei algum tempo janela, a admirar o cu azul, como que semeado de fragmentos de nuvens. A costa distante da Crimeia alongava-se como uma linha de prpura at acabar num promontrio em cujo cimo se podia ver a torre branca de um farol. Depois fui fortaleza de Fanagoria saber do comandante a hora da partida para Gelenzhik.Infelizmente, o comandante nada me podia dizer de seguro; os navios que estavam no porto eram ou guarda-costas ou barcos mercantes que nem sequer tinham ainda principiado a meter carga.- Talvez o barco do correio chegue daqui a trs ou quatro dias; nessa altura, v-se o que se pode fazer.Voltei para a cabana aborrecido e maldisposto; porta estava o cossaco, com uma expresso de temor.- Isto no tem bom aspecto, Excelncia! - disse ele.- Pois no, amigo; e sabe Deus quando sairemos daqui.Pareceu ficar ainda mais alarmado; inclinou-se e disse num murmrio:- No estamos bem aqui. Esta manh encontrei um sargento do mar Negro que eu conheo, estive no destacamento dele o ano passado. Disse-lhe onde estvamos e disse-me ele: A no esto bem; isso no boa gente... Parece que h qualquer coisa. Que espcie de cego este? Anda por a sozinho, vai ao po ao mercado, vai buscar gua. Acho que por aqui todos esto habituados.- Bem, e depois? E a patroa, ao menos, apareceu?- Pois; quando o senhor saiu, entrou a velha, com a filha.- Que filha? Ela no tem filha nenhuma.- Ento se no filha, Deus saber quem ela . Mas, olhe: a velha est l dentro.Entrei na cabana; o fogo estava aceso e cozinhava-se um almoo bastante abundante, para o costume entre pobres. A todas as minhas perguntas, a velha respondia apenas que era surda e que no podia ouvir. Que havia eu de fazer? Voltei-me para o cego que estava junto do fogo a atirar lenha para o lume.- Anda c, diabo cego - disse-lhe eu, puxando-lhe a orelha -, conta-me s onde foste levar aqueles fardos a noite passada.De repente o rapaz comeou a chorar e a gritar:- Onde que eu fui? No fui a parte nenhuma! Que fardos? Sei l nada de fardos...Desta vez a velha ouviu e murmurou:-Bonitas invenes. E dum aleijado. Largue-o l, faz favor. Que lhe fez o rapaz?Fiquei irritado com tudo isto e sa decidido a aprofundar aquele mistrio.Embrulhei-me na capa, sentei-me numa pedra junto da parede e olhei para o largo. Diante de mim estendia-se o mar, ainda bravo da tempestade da noite anterior, e o montono rudo das vagas, como o som de uma grande cidade quando vai a adormecer, fez-me lembrar dias passados e levou meus pensamentos para o Norte, para a nossa fria capital. Perturbado pelas recordaes, perdi-me em sonhos...Assim passou uma hora, talvez mesmo mais. Subitamente, pareceu-me que uma cano me chegava aos ouvidos... E era realmente uma cano, entoada por uma voz fresca de mulher; mas donde vinha? Pus-me escuta. A melodia era umas vezes arrastada e triste, outras ligeira e alegre, sempre harmoniosa. Olhei em volta, mas no vi ningum. Escutei; pareceu-me que os sons vinham do Cu. Levantei os olhos: sobre o tecto da cabana estava uma rapariga com um vestido s riscas e o cabelo solto ao vento - como uma ninfa das guas. Com a mo fazia sombra aos olhos e fitava atentamente o largo; umas vezes, ria-se e falava consigo mesmo, depois voltava a cantar.Lembro-me de todas as palavras da cano:

Pelas ondas inquietasDo mar verde de cetimBarquinhos de velas brancasVelejam longe de mim.Entre eles navega o barcoQue me vem a procurar,Dois remos o vo guiandoPor sobre as guas do mar.Abre a asa o navio grandeMesmo no forte do ventoE segue a sua carreiraNo balano largo e lento.Mas eu ajoelho e peoQue a vaga se torne calmaE que eu veja so e salvoO barquinho da minha alma.Tesouros que ele me trazNem eu os posso contar!Bendita a fronte e a moQue por vento e cerraoO trazem a navegar!

Involuntariamente me passou pela cabea a ideia de que j tinha ouvido aquela voz na noite anterior. Durante um momento estive como em sonho e, quando olhei outra vez, j a rapariga l no estava. De sbito, passou diante de mim a cantar em surdina outra melodia e, batendo os dedos, foi ter com a velha e principiou a discutir com ela. A velha estava zangada, a rapariga ria s gargalhadas. Depois vi a minha ninfa das guas vir a correr e a saltar na minha direco; quando chegou aonde eu estava sentado, parou, olhou-me fito nos olhos, como se estivesse muito surpreendida de me ver ali; por fim, voltou-se com indiferena e foi para o desembarcadouro. As coisas no ficaram por aqui; todo o dia andou volta da cabana e nem um momento deixou de cantar e de danar. Estranha criatura! No tinha no rosto sinais de doena; pelo contrrio, os olhos, que punha em mim com audaciosa penetrao, pareciam dotados de poder magntico. De cada vez que a surpreendia a fitar-me parecia que estava espera de que lhe fizesse qualquer pergunta, mas, sempre que eu abria os lbios para falar, ela fugia, com um sorriso arteiro.Realmente, nunca tinha visto uma mulher como aquela. Estava longe de ser bonita, mas eu tambm tenho os meus preconceitos quanto a beleza. Tinha raa: e raa, nas mulheres como nos cavalos, uma grande coisa. Esta descoberta devemo-la ns Frana nova. Manifesta-se - a raa, claro, no a Frana -, a maior parte das vezes, na cinta, nas mos e nos ps; em especial, o nariz de grande importncia. Na Rssia, um nariz correcto mais raro do que um p bem feito. Parecia que a minha cantora no teria mais de dezoito anos. A invulgar elegncia do seu corpo, o jeito gracioso de inclinar a cabea, o cabelo louro e longo, o tom dourado que levemente cobria o pescoo e os ombros queimados pelo sol, a correco do nariz, especialmente, - tudo era encantador para mim. Apesar de perceber um certo ar selvagem e suspeitoso nos olhares que lanava de lado, apesar de haver alguma coisa de indefinido no seu sorriso, tal a fora do preconceito que a correco do nariz me ps doido. Imaginei que tinha descoberto a Mignon de Goethe, essa caprichosa criao da sua fantasia germnica. Havia, de facto, muita semelhana entre elas, as mesmas rpidas mudanas do mais bravio desassossego para a mais completa imobilidade, as mesmas falas enigmticas, os mesmos pequenos movimentos e estranhas canes. tardinha, encontrei-a porta e travei com ela a seguinte conversa:- Ora diga-me, minha linda, que estava a fazer hoje no telhado?- Estava a ver de que lado soprava o vento.- E em que a interessava saber isso?- que do lado de que vem o vento vem a sorte.- Ento estava a atrair a felicidade com as suas canes?- Onde se canta h felicidade.- E se as canes lhe trouxerem desgraa?- Ora, que se h-de fazer? Quando no pode ser melhor pior. Do bem ao mal pouco vai.- Quem lhe ensinou aquela?- Ningum ma ensinou. Quando penso numa cano, canto-a. Quem tem de ouvi-la h-de ouvi-Ia e quem no tem de ouvi-Ia no a percebe.- E como se chama a cantora?- Isso l sabe quem a baptizou.- E quem que a baptizou?- Ah! isso no sei!- Pois bem, sua misteriosa, vou eu contar-lhe o que sei a seu respeito.A expresso do rosto no mudou; nem moveu os lbios: ficou como se tudo lhe fosse indiferente.- Descobri que foi praia a noite passada.Depois, solenemente, disse-lhe tudo o que tinha visto, julgando que a embaraava muito. Ps-se a rir com todo o gosto.- Viu muito, mas sabe pouco; e o que sabe melhor guard-lo a sete chaves.- E se eu resolvesse informar o comandante? - disse eu muito srio, quase feroz.Ela deu um salto e desapareceu a cantar como a ave que foge assustada duma moita. As minhas ltimas palavras tinham sido descabidas de todo; nessa altura, nem suspeitei da sua importncia, mas tive depois ocasio de me arrepender.Estava j a escurecer. Ordenei ao meu cossaco que preparasse a chaleira, como na frente, acendi uma vela e sentei-me para uma boa cachimbada. la a acabar o segundo copo de ch quando a porta estalou e ouvi atrs de mim um brando som de passadas e o ligeiro roagar de um vestido. Tive um sobressalto e olhei em volta - era a minha ninfa das guas. Sentou-se em silncio em frente de mim e em silncio me fixou. No sei porqu, o seu olhar pareceu-me extremamente terno; lembrou-me outro olhar que anos antes me subjugara como um tirano e me brincara com a vida. Parecia ela que estava espera duma pergunta, mas eu permaneci calado; sentia uma perturbao indescritvel. O rosto da rapariga estava muito plido e traa a agitao que lhe ia na alma, a mo vagueava-lhe pela mesa e notei que tremia levemente; por vezes o peito arfava, outras parecia conter a respirao. Esta comdia principiava a impacientar-me e estava a ponto de quebrar o silncio da maneira mais prosaica oferecendo-lhe um copo de ch, quando subitamente deu um salto, me lanou os braos volta do pescoo e me deu nos lbios o mais ardente dos beijos. Faltou-me a luz, senti-me tonto e abracei-a com todo o vigor da paixo juvenil; mas, como uma cobra, deslizou dos meus braos e murmurou-me ao ouvido:- Esta noite, quando todos estiverem a dormir, venha praia - e saiu da casa como uma seta.Ao passar, virou a chaleira e a vela que estavam pousadas no cho.- Diabo de rapariga! - exclamou o cossaco que se tinha acomodado na palha e estava a acabar os restos do ch. S nesse instante voltei a mim.Duas horas depois, logo que tudo sossegou no porto, acordei o meu cossaco:- Se eu disparar a pistola, corre para a praia.Olhou-me com espanto, depois disse, mecanicamente:- As ordens, Excelncia.Meti a pistola ao cinto e sa. Ela estava minha espera no cimo da descida; as roupas eram poucas e tinha sobre o gil corpo um pequeno xale.- Venha comigo - disse-me, pegando-me na mo.Comemos a descer e no sei como no parti a cabea; quando chegmos abaixo, voltmos direita e seguimos pela vereda por onde, na noite anterior, tinha ido atrs do cego. A Lua ainda no tinha nascido e s duas estrelas, como dois faris, brilhavam na abbada azul-escura. As vagas largas vinham morrer regularmente uma aps outra e mal moviam o bote solitrio que estava preso ao paredo.- Vamos embarcar - disse a minha companheira.Hesitei, porque no gosto de excurses sentimentais pelo mar, mas era tarde para recuar. Ela saltou para o barco, eu segui-a e, antes de eu saber onde estvamos, j tnhamos largado.- Que quer dizer isto? - perguntei zangado.- Quer dizer - e, fazendo-me sentar junto dela, enlaou-me com os braos - quer dizer que te amo. Apertou a face contra a minha e senti-lhe o hlito ardente. De repente ouvi cair qualquer coisa na gua; apalpei o cinto - tinha-se ido a pistola. Ento penetrou-me no esprito uma horrvel suspeita e o sangue subiu-me cabea. Olhei para trs: j estvamos a umas cinquenta braas da costa e no sei nadar. O barco principiou a balanar, mas dominei-me e uma luta desesperada comeou entre ns. A raiva dava-me foras, mas cedo notei que era inferior em agilidade ao meu adversrio.- Que que tu queres? - gritei eu apertando-lhe as mos com violncia; os dedos estalaram-lhe mas a sua natureza de serpente podia suportar a dor.- Tu viste tudo - respondeu ela. - Querias denunciar-nos! - e com esforo sobre-humano conseguiu derrubar-me. Estvamos os dois debruados da borda e o cabelo dela tocava na gua. O momento era decisivo; firmei o joelho no fundo do barco, segurei-lhe o cabelo com uma das mos e com a outra apertei-lhe a garganta; largou-me logo as roupas: aproveitei a ocasio e atirei-a para a gua.J estava bastante escuro; vi a cabea aparecer-lhe umas duas vezes no meio da espuma do mar e depois no enxerguei mais nada.No fundo do barco encontrei metade de um remo e aps longos esforos consegui chegar ao desembarcadouro. Quando ia, ao longo da praia, para a cabana, olhei involuntariamente para o lugar em que, na noite anterior, tinha visto o cego esperar o remador nocturno. A Lua j despontara no cu e pareceu-me que alguma coisa branca estava sentada na praia; espicaado pela curiosidade, arrastei-me para a frente e deitei-me na erva, na sombra que faziam os rochedos. Levantando a cabea acima das pedras, podia ver nitidamente do meu esconderijo o que se passava em baixo e no fiquei muito surpreendido, fiquei mesmo contente, ao reconhecer a minha ninfa das guas; estava tirando do cabelo a espuma do mar; o vestido molhado modelava-lhe o corpo elegante e o peito redondo. Depressa um barco apareceu ao longe e veio na sua direco. Como na noite anterior, desembarcou um homem de bon trtaro, mas agora tinha o cabelo cortado moda dos cossacos e trazia um grande punhal no cinto de couro.- Janko! - disse ela - est tudo perdido! Depois continuaram a conversao em voz to baixa que no pude ouvir nada.- Onde est o moo? - perguntou Janko, por fim, em voz mais alta.- J o mandei... - respondeu ela e poucos minutos depois chegava o cego; trazia s costas um saco que puseram no barco.- Escuta! - disse Janko. - Ficas de guarda, percebes? H por l coisa rica. E dizes ao (no consegui perceber o nome) que no fico ao seu servio; isto vai mal; no me torna a ver; as coisas vo-se tornando perigosas. Vou ver se encontro trabalho noutro stio; e nunca mais encontra aventureiro como eu... E dizes-lhe que se me tivesse pago melhor nunca Janko o teria deixado. Todos os caminhos me esto abertos, todos os caminhos por onde o vento soprar e o mar rugir. - Depois de um pequeno silncio, continuou: - Ela vai comigo; no pode ficar aqui; e diz velha que j tempo de morrer; j viveu bastante - devia ser mais razovel. No tornar a ver-nos.- E eu? - disse o cego com voz triste.- Que prstimo tens tu para mim? - foi a resposta.Entretanto, a ninfa das guas tinha saltado para o barco e feito um sinal ao companheiro. Ele ps qualquer coisa na mo do cego e disse:- Aqui tens para broas.- S isto? - perguntou o cego.- Que esperavas tu mais? - e ouviu-se o tinir da moeda nas pedras.O rapaz no a apanhou. Janko entrou no barco. O vento soprava da costa; iaram uma pequena vela e depressa se fizeram ao largo. Durante muito tempo, viu-se a vela branca passar iluminada pelo luar sobre as ondas escuras. O cego ficara sentado na praia e ouvi uma espcie de soluos; parecia que o rapaz chorava e que chorava longamente. Fiquei triste. Porque me tinha o destino atirado para este grupo de honestos contrabandistas? Como a pedra lanada ao poo tranquilo, tinha-lhes eu perturbado a calma; e como a pedra tambm, tinha estado quase a ir ao fundo.Voltei ao meu alojamento. No corredor a vela pingava sobre um bocado de madeira e o meu cossaco, contrariamente s ordens que lhe tinha dado, estava em sono profundo, segurando com fora a espingarda que tinha na mo. Deixei-o em paz, peguei na vela e fui para a cabana. Ai! a caixa do dinheiro, a espada com guarnies de prata, a adaga de Reggistan, presente de um amigo, tudo tinha desaparecido. S ento ca na conta de que coisas levava o maldito cego no seu saco. Acordei o cossaco com uma pancada no muito branda e berrei com ele, furioso; mas nada havia a fazer. Teria sido ridculo queixar-me s autoridades de ter sido roubado por um cego e quase afogado por uma rapariga de dezoito anos. Graas a Deus, apareceu na manh seguinte oportunidade de me ir embora e sa de Taman. No sei que sucedeu velha e ao rapaz. E, na realidade, que tenho que ver eu, oficial em viagem de servio, com as alegrias e as tristezas da humanidade?