Tambores Para Rainha Da Floresta_Dissertação_Ayahuasca_Puc_2007

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC / SP

    ANTONIO MARQUES ALVES JUNIOR

    TAMBORES PARA A RAINHA DA FLORESTA:A INSERO DA UMBANDA NO SANTO DAIME

    MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    SO PAULO

    2007

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOPUC / SP

    ANTONIO MARQUES ALVES JUNIOR

    TAMBORES PARA A RAINHA DA FLORESTA:A INSERO DA UMBANDA NO SANTO DAIME

    MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    Dissertao apresentada BancaExaminadora da PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo,como exigncia parcial para obtenodo ttulo de Mestre em Cincias daReligio sob orientao do Prof.Doutor nio Jos da Costa Brito

    SO PAULO

    2007

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    BANCA EXAMINADORA

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    A Toninho Marques e Yone Aby-Azar, meus grandesprofessores,a Sebastio Jorge Menezello, meu companheiroargonauta,e ao Sol, Lua e s Estrelas.

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    AGRADECIMENTOS

    Capes, pela bolsa de estudo.

    Ao programa de Cincias da Religio da PUC-SP, na figura de sua

    coordenao, seus professores e secretaria, pelo acompanhamento e

    formao que enriqueceram este trabalho.

    Ao Professor nio Jos da Costa Brito, meu orientador, e ao seu

    entusiasmo pelo estudo da religiosidade brasileira.

    Aos Professores Jos J. Queiroz e Sandra Lcia Goulart pelasinestimveis contribuies que enriqueceram este trabalho.

    Dalmo Ribas, filho de Oxal, pelo incansvel otimismo, quem me levou

    este Mestrado.

    minha ecumnica turma de Mestrado, realizando a riqueza da

    diferena.

    Ao Padrinho Alfredo, Madrinha Jlia, Madrinha Maria Brilhante, Maria

    Alice, Regina Pereira, Raimunda Corrente, Lucy Dias, Alex Polari, LuisFernando, Seu Chagas, Marcos Trench, e Kiki, pelos relatos saborosos e

    confiana. E a todos os amigos que deixamos no Cu do Mapi.

    Brgida Malandrino, pela paciente reviso tcnica.

    Aos muitos irmos do Reino do Sol e da Escola da Rainha,

    companheiros de estudo e de realizaes, pelas suas indagaes e sede de

    saber.

    E peregrina Ro Perez, pelas muitas caminhadas nos domnios daRainha da Floresta.

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    RESUMO

    A presena da Umbanda dentro do Santo Daime, verificada no conjunto

    de preceitos e ritos que compem a cosmoviso daimista, adquiriu visibilidade

    a partir dos anos oitenta, no bojo da expanso que levou esta religio para fora

    dos limites da floresta amaznica. Sob o comando de Sebastio Mota de Melo,

    o Santo Daime testemunhou o crescimento da importncia da Umbanda em

    sua constelao doutrinria, a ponto de distinguir-se por ela no conjunto das

    religies ayahuasqueiras, entre as quais aquelas derivadas da criao do

    Mestre Irineu.

    Na gerao que corresponde liderana do Padrinho Sebastio, um

    conjunto de ocorrncias precipitou os elementos dispersos, mas presentes, que

    permitiram a recepo da Umbanda. A primeira delas resulta do impacto dachegada de um macumbeiro que fascinou a jovem comunidade daimista e seu

    lder espiritual com suas performances to familiares ao nosso meio: consultas,

    advertncias, demandas e espetculo.

    Interpretava-se nos acontecimentos um embate entre as foras da

    Verdade e as falanges do Mal, ali representada pelo Rei dos Exus, o Tranca

    Rua, que ao final, sob a luzda bebida sagrada, firmou um pacto com o Santo

    Daime: o de ser seu defensor contra os espritos das trevas. Imprimia-se, ainda

    que sem nome, o ethos umbandista no imaginrio da comunidade.

    Os anos finais do Padrinho Sebastio foram concomitantes ao grande

    crescimento do Santo Daime, particularmente na cidade do Rio de Janeiro.

    Impregnados pelas perspectivas da cultura alternativa, que parecia fazer o elo

    entre a religio da mtica Floresta e a extica Umbanda, encontraram-se a

    Umbanda e o Santo Daime nas pessoas de seu padrinho e de uma me-de-

    santo carioca, frente de um grupo de discpulos que se aproximava do Santo

    Daime. Alguns destes discpulos viriam a cumprir papel fundamental na

    formatao dos ritos que expressaram esta aliana.

    O papel do sucessor do Padrinho Sebastio, Alfredo Gregrio de Melo,

    seu filho, foi o de reconhecer a demanda, talvez irresistvel, da Umbanda e

    express-la na criao de novos rituais, oficializando, por assim dizer, aquela

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    insero e presena, e a posicionando mais prxima do centro de sua floresta

    de crenas.

    Palavras chaves: Santo Daime, Umbanda, Umbandaime, possesso,

    ayahuasca.

    ABSTRACT

    The presence of the Umbanda inside Santo Daime, verified in the sum of

    precepts and rites that make up the Daimistic cosmovision, gained visibility from

    the eighties onward, in the epicenter of the expansion that led this religion to the

    outer limits of the Amazonian Forest. Under the command of Sebastio Mota de

    Melo, the Santo Daime witnessed the growth of Umbanda relevancy in its

    doctrinaire constellation, to the point of being distinguished by this Umbanda

    presence in the context of the Ayahuascan religions, among those the ones

    derived from the creation of Mestre Irineu.

    In the generation guided by Padrinho Sebastio, a handful of occurrences

    precipitated the scattered nonetheless present elements that allowed the

    reception of the Umbanda. The first one resulted from the impact of the arrival

    of a macumbeiro who bewitched the young Daimistic community and its spiritual

    leader with his performances so familiar to our niche: consultations, warnings,

    demands and theatricalism.

    One could see in these events a fight between the forces of Truth and the

    legions of evil, represented by the King of Exus, the Tranca Rua, that, in the

    end, under the light of the sacred beverage, signed a pact with the Santo

    Daime: he would be its guardian against these wicked spirits. The Umbandistic

    ethos was silently being hardcoded into the community imaginarium.

    The last years of the life of Padrinho Sebastio were concurrent with the

    growth of the Santo Daime, particularly in Rio de Janeiro city. Impregnated with

    the perspectives of the counterculture that seemed to link the mythical Forest

    and the exotic Umbanda, both traditions found themselves in the personasof

    his Padrinho and of a Me de Santo from Rio de Janeiro, leading a group of

    disciples that was arriving at Santo Daime. Some of those came to have a

    central role in the design of the rites that expressed this alliance.

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    The role of the successor of Padrinho Sebastio, his son Alfredo Gregrio

    de Melo, was to acknowledge the maybe irresistible demand of the Umbanda,

    and express it through the creation of new rituals formalizing, so to speak, that

    presence, and placing it closer to the center of its forest of faith.

    Key-words: Santo Daime, Umbanda, Umbandaime, possession, ayahuasca.

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    SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................. 11

    Capitulo I O SANTO DAIME ..................................................................... 23

    1.1 - Amaznia: o bero do Santo Daime ................................................. 23

    1.1.1 - O processo de ocupao da Amaznia ..................................... 24

    1.1.2 - O cenrio cultural da Amaznia ................................................. 25

    1.1.3 - A religiosidade popular amaznica ............................................ 27

    1.1.4 - A ayahuasca .............................................................................. 31

    1.1.5 - As religies ayahuasqueiras ...................................................... 341.2 - O Santo Daime histrico ................................................................... 36

    1.2.1 - Nascimento do Alto Santo ......................................................... 36

    1.2.2 - O encontro com o Padrinho Sebastio ...................................... 39

    1.2.3 - Rompimento com o Alto Santo .................................................. 42

    1.2.4 - A continuidade do Alto Santo .................................................... 43

    1.2.5 - A Colnia Cinco Mil do Padrinho Sebastio ............................... 441.2.6 - Rio do Ouro e Cu do Mapi ...................................................... 45

    1.2.7 - A expanso em nmeros ............................................................ 48

    1.2.8 - A Nova Era do Padrinho Alfredo ............................................... .. 49

    1.3 - Expresses rituais do Santo Daime ................................................... 53

    1.3.1 - Alguns elementos rituais ............................................................. 53

    1.3.2 - O espao sagrado ....................................................................... 54

    1.3.3 - As fardas ................................................................................... .. 56

    1.3.4 - Ritos do Santo Daime ................................................................. 57

    1.4 - Como o trabalho espiritual concebido ............................................. 63

    1.4.1 - Os hinos ...................................................................................... 65

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    Capitulo II: AS MATRIZES DO SANTO DAIME.......................................... 69

    2.1. As razes religiosas do Santo Daime .............................................. 71

    2.1.1. Catolicismo popular ................................................................. 72

    2.1.1.1. Os santos ......................................................................... 732.1.1.2. As festas .......................................................................... 75

    2.1.2. Xamanismo, pajelana, curandeirismo e vegetalismo ............ 77

    2.1.3. O Crculo Esotrico da Comunho do Pensamento ............... 81

    2.1.4. Espiritismo kardecista ............................................................. 85

    2.1.5 A presena afro-brasileira ........................................................ 88

    2.1.6. Contribuies da religiosidade maranhense............................ 95

    Captulo III CONSIDERAES GERAIS SOBRE A UMBANDA ........... 98

    3.1 Histria ............................................................................................ 99

    3.1.1 Razes afro-brasileiras e outras matrizes ............................... .. 99

    3.1.2 O sculo XIX ............................................................................. 102

    3.1.3 A macumba ............................................................................... 103

    3.1.4 As tenses do nascimento da Umbanda .................................. 105

    3.1.5 O kardecismo e o mundo catlico ............................................ 106

    3.1.6 A perseguio ........................................................................... 108

    3.2 A narrativa umbandista ................................................................... 110

    3.2.1 A especificidade da Umbanda.................................................. 111

    3.2.2 Os deuses da Umbanda .......................................................... 112

    3.2.3. O lugar da possesso ............................................................. 114

    3.2.4 A consulta ................................................................................ 116

    3.2.5 A esquerda e a direita .............................................................. 118

    3.2.6 A interpretao da aflio ........................................................ 121

    3.2.7 Expectativas a que a Umbanda atende ................................... 124

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    Captulo IV O ENCONTRO DO SANTO DAIME COM A UMBANDA ..... 126

    4.1 A presena da Umbanda ................................................................ 126

    A Barquinha ......................................................................................... 127

    A Unio do Vegetal .............................................................................. 1274.1.1 Possesso: demarcando as fronteiras ..................................... 128

    4.2 A insero da Umbanda atravs das geraes............................... 130

    4.2.1 Primeira gerao: A viagem de Irineu a Mestre ....................... 131

    Os dias inaugurais do Santo Daime ................................................. 136

    4.2.2 Segunda gerao: A expanso do Padrinho Sebastio ........... 140

    4.2.2.1 O embate com o macumbeiro Cear ................................. 140

    Os ltimos dias juntos ao Alto Santo ............................................ 141

    A chegada do Cear ..................................................................... 143

    As entidades do Cear ................................................................. 146

    As macumbas do Cear ............................................................... 147

    As ciladas do Cear ..................................................................... 151

    Os ensinamentos do Cear .......................................................... 153

    4.2.2.2 Cear viu que ia perder .................................................... 157

    A derrocada do Cear ................................................................. 160

    O morcego e a guia ................................................................... 163

    Do Rio do Ouro ao Cu do Mapi ............................................... 164

    O pacto com o Tranca Rua .......................................................... 167

    4.2.2.3 A expanso e o chamado do Padrinho ............................. 169

    Os novos fardados do terreiro da Baixinha .................................. 170

    Os trabalhos de banca no Cu da Montanha ............................... 172

    A Umbanda vai ao Mapi ............................................................. 176

    Os ltimos momentos do Padrinho Sebastio ............................. 179

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    4.2.3 Terceira gerao: a Umbanda atravs do Padrinho Alfredo .... 183

    A passagem de So Miguel ........................................................... 185

    O rescaldo da Umbanda .................................................................. 187

    Dois nveis de recepo da Umbanda ............................................. 188A sntese da Mesa Branca ............................................................... 189

    A fase final ....................................................................................... 191

    Captulo V INTERAES ENTRE O SANTO DAIME E A UMBANDA... 193

    5.1 - As matrizes includentes comuns ..................................................... 195

    5.2 Doutrinas em construo ................................................................ 204

    5.2.1 A autonomia do pai-de-santo e do padrinho ............................ 207

    5.2.2 Interpretao doutrinria e licena potica .............................. 208

    5.2.3 A relao da mirao com os hinos ......................................... 211

    5.3 A perspectiva marginal e a afirmao do desejo ............................ 217

    5.3.1 Os sem-voz .............................................................................. 222

    5.3.2 As relaes de poder no Santo Daime .................................... 224

    5.3.3 As relaes de poder na Umbanda .......................................... 228

    5.3.4 Assistncia: o diferencial da Umbanda .................................... 231

    5.3.5 As mulheres ............................................................................. 236

    5.4 Disciplina daimista versus catarse umbandista ............................. 238

    5.4.1 Disciplina e festa ..................................................................... 239

    5.4.2 O rigor ritual ............................................................................. 239

    5.4.3 A nova moral e a dimenso do corpo ...................................... 241

    5.4.4 O corpo no Santo Daime e na Umbanda ................................. 243

    CONCLUSO............................................................................................... 248

    BIBLIOGRAFIA............................................................................................ 256

    ANEXOS....................................................................................................... 264

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    INTRODUO

    Duas surpresas me aguardavam quando de meu encontro com o Santo

    Daime, no incio dos anos noventa: a primeira, de descobrir que ele abrigava

    uma simpatia com as religies medinicas, entre elas a Umbanda; a segunda,

    um pouco mais tarde, a de experimentar em mim mesmo, pela primeira vez, a

    catarse da incorporao1. Foi uma experincia impactante para algum que,

    desde a chegada adolescncia, j havia procurado na Umbanda o sentido

    que interligasse as perspectivas introjetadas da contracultura: a experincia

    mstica, ora xamnica, ora oriental, e a busca por um projeto existencial que

    valorizasse a espiritualidade.

    Minhas simpatias anteriores com a prtica umbandista, talvez motivadaspelas pretas-velhas benzedeiras a que minha me catlica me levava na

    infncia, encontraram-se com a trajetria sinuosa em que o Santo Daime se

    relacionou com o estudo esprita e de incorporao, a partir da direo de

    Sebastio Mota de Melo - Padrinho Sebastio para os daimistas. Mdium que

    trabalhava com entidades do panteo kardecista no interior da floresta

    amaznica e que trouxe estas prticas para dentro do Santo Daime, Padrinho

    Sebastio acolheu egressos de toda sorte de prticas medinicas para

    fortalecer seu batalho.

    Pude testemunhar, ainda nos primrdios do Santo Daime em So Paulo,

    tanto a resistncia que o estudo da Umbanda provocava em muitos de suas

    fileiras quanto a forte atrao que exercia sobre parcela tambm considervel

    de seu contingente. Testemunhei ainda o crescimento de simpatizantes e o

    fluxo de certo modo irresistvel com que a Umbanda se legitimou internamente

    no imaginrio daimistapaulista.

    Meu testemunho pessoal no isento, sou sujeito e objeto destapesquisa. Ao incorporarpela primeira vez iniciei uma investigao em todos os

    1Para uma reflexo sobre transe e possesso em termos gerais, e no contexto umbandista, ler

    Concone (1987). A expresso possesso, no entanto, ainda que disseminada no mundoacadmico, pouco utilizada no meio esprita, entre os quais o de Umbanda, assim como entreos daimistas, por conotar a perda da alma, estar possudo, em geral associado a forasmalignas. Incorporao a expresso mais utilizada nestes meios. Entre os daimistas, atuaotambm utilizada com mltiplos significados, um deles o de atuar um ser, ou seja, estarincorporado. Ler ainda O lugar da possesso, pgina 114.

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    sentidos entusiasmada. O cume deste processo me levou a experimentar nos

    limites do ambiente daimista as snteses possveis desta aproximao entre a

    Umbanda e o Santo Daime, ao fim do qual nasceu a igreja daimista Reino do

    Sol, da qual sou dirigente, identificada pela sua afinidade com o estudo e a

    prtica ritual da Umbanda. Seu calendrio de giras e outros rituais onde aincorporao admitida certamente contriburam para que a Umbanda se

    disseminasse ainda mais entre os adeptos do Santo Daime, particularmente os

    paulistas. Ou seja, desempenho um papel relevante deste processo de

    insero, seja como seu agente, intrprete ou filho.

    Meu encontro com o Santo Daime se deu em meados da dcada de noventa,

    h mais de dez anos, quando a reabertura dos trabalhos da Umbanda no Cu

    do Mapi era ainda muito recente. A igreja Flor das guas vivia seus ltimos

    anos, j longe de conturbadas experincias com o universo afro, e o Cu de

    Maria, que viria a ser a maior igreja de So Paulo, dava seus primeiros passos

    nos fundos da casa de seu dirigente, Glauco Villas Boas. At que aqueles

    acontecimentos na central da doutrina viessem a reverberar em So Paulo um

    hiato de tempo era inevitvel, o que resultava, entre outras razes, em

    profunda resistncia aos trabalhos com incorporao e vinculados Umbanda.

    provvel que o Reino do Sol, igreja que ajudaria a fundar em 2002,

    represente um testemunho da forte atrao que a Umbanda exerce sobre

    faixas de daimistas e da qual fui involuntrio agente. Fato que cresceu e

    atraiu para seus rituais prximos Umbanda um contingente considervel de

    adeptos do Santo Daime e contribuiu em So Paulo com mais um

    deslocamento da prxis umbandista, quando ela adquire ainda maior

    centralidade. O Reino do Sol, poderia dizer, se situa nas ondas da terceira

    gerao do processo de insero da Umbanda no Santo Daime.

    Claro que esta posio, sob muitos aspectos, privilegiada, permitiu um

    olhar de dentro difcil de obter em outras circunstncias. No apenasinstitucionalmente dentro, pelo contato com personagens e informaes

    relevantes para a pesquisa, mas tambm na condio de testemunha direta

    dos mecanismos daquelas snteses cosmolgicas necessrias para conduzir a

    aproximao. Ou, em outras palavras, aquilo que se passa no ntimo do sujeito

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    quando confrontado com duas formulaes para cuja sntese necessrio

    encontrar sentido.

    Este mesmo privilgio, no entanto, confronta com a necessria

    objetividade esperada de uma pesquisa em Cincias da Religio. No se trata

    de um conflito entre f e razo, mas do fino fio que separa objetividade e

    subjetividade, o mesmo que deve pautar a posio do olhar indagador.

    Devemos considerar que parte considervel dos trabalhos de cunho

    acadmico voltados para o Santo Daime foram realizados por pesquisadores,

    no mnimo, simpatizantes do Cefluris e da experincia daimista em geral, o que

    torna usual entre seus autores a discusso preliminar sobre essa posio do

    sujeito da pesquisa em relao a seu objeto. Particularmente me simpatizo com

    as reflexes de Labate, que ao final conclui:

    uma postura que vem sendo adotada por alguns pesquisadores, entreeles eu mesma, a possibilidade de uma categoria como a deantroplogo ayahuasqueiro, um caminho possvel para permanecerligado ao fenmeno a partir de dentro, mas tambm de fora. 2

    No interior desse tenso dilogo, foquei minha pesquisa no estudo dos

    movimentos iniciais que introduziam a Umbanda, em outro lugar e tempo,

    deixando a igreja Reino do Sol e seus simpatizantes fora de meu objeto.

    Ao buscar entender o processo pelo qual a Umbanda se inseriu e foi

    ganhando corpo dentro do Santo Daime, necessitei preliminarmente entender

    os dois corpos que interagiam. Elementos da ritualstica umbandista foram

    sendo incorporados paulatinamente. Trabalhos medinicos em clareiras na

    floresta passando a se denominar giras; a dispensa da farda daimista,

    substituda por roupas brancas; a crescente importncia dos tambores; a

    introduo de corimbas, muitas vezes em substituio aos hinos; a prpriadenominao das entidades por aquelas encontradas no panteo daimista: tais

    so muitos dos elementos ritualsticos gradualmente reconfigurando a

    paisagem dos trabalhos medinicos na floresta. Esse movimento ocorria

    2Beatriz Caiuby LABATE,A reinveno do uso da ayahuasca nos centros urbanos, p. 53.

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    paralelo elaborao do discurso doutrinrio dos dirigentes, que se dava em

    duas frentes: primeira, aquele marcado pela oralidade, atravs de prelees,

    explicaes e orientaes extra-trabalhos transmitidas pelos lderes; a

    segunda, e de maior importncia, pela introduo de elementos umbandistas

    nos hinos, que no Santo Daime possuem a chancela de seres recebidos doastrale so reconhecidos como seu livro sagrado, ou seja, onde est contido o

    seu corpus doutrinrio.

    O objeto desta pesquisa o processo de insero da Umbanda no

    Santo Daime observado atravs dos relatos de testemunhas do processo, que

    agrupo em trs geraes: 1) a do Mestre Irineu e de seus contemporneos;

    2) a do Padrinho Sebastio e daqueles que o acompanharam at a fundao

    da Vila Cu do Mapi, no interior do Amazonas e seu posterior falecimento, j

    incluindo-se entre eles indivduos egressos de outras regies do Brasil e que

    foram co-participantes da expanso geogrfica do Santo Daime; 3) e a do

    Padrinho Alfredo, seu filho e substituto no comando do Santo Daime at os

    dias de hoje.

    Santo Daime o nome genrico pelo qual esta religio veio a ser

    conhecida, a partir de sua divulgao decorrente da expanso de uma das

    dissidncias da igreja original do Mestre Irineu, o Cefluris. A igreja dirigida pela

    viva de Irineu, Peregrina, assim como outras dissidncias prximasgeograficamente, so hoje conhecidas como Alto Santo. Muitos pesquisadores

    ajudaram a disseminar a denominao Santo Daime, talvez em consonncia

    com a popularizao do nome adotado no Cefluris, ou porque a maioria deles

    desenvolveu laos mais estreitos com a vertente de Sebastio Mota de Melo,

    e/ou a adotaram como objeto de estudo. Na nossa pesquisa, designa a religio

    fundada por Raimundo Irineu Serra e aps a separao do grupo de Sebastio

    Mota de Melo, quando no acompanhado de outras indicaes, designa o

    Cefluris. Optamos assim por utilizar o termo na perspectiva do segmento queestudamos, o Cefluris, que se v como uma linha de continuidade da religio

    fundada por Mestre Irineu. Daimista, neste trabalho, tanto representa o adepto

    do Cefluris quanto do grupo contemporneo ao Mestre Irineu, antes de seu

    falecimento e da separao realizada pelo Padrinho Sebastio.

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    Intentamos descrever o processo pelo qual a Umbanda ganhou corpo na

    composio doutrinria do Cefluris. A partir de um enfoque histrico-

    antropolgico, a pesquisa ocupou-se de recuperar via histria oral, atravs de

    entrevistas com os dirigentes e antigos, eventos ocorridos a partir da dcada

    de setenta em Rio Branco, no Acre, e no Cu do Mapi, povoado beira do rioPurus, no Amazonas localidade tida como central do Santo Daime; assim

    como em igrejas do Sul, particularmente do Rio de Janeiro, na primeira leva da

    expanso daimista, determinantes para o rumo dos acontecimentos.

    Centramos nossa pesquisa, no entanto, na segunda gerao, aquela que nos

    pareceu prenhe de conseqncias para o estabelecimento da Umbanda e que,

    no nosso entender, inauguravam sua presena.

    Ao finalizarmos esta etapa de nosso trabalho nos ressentimos da

    ausncia de uma pesquisa junto ao grupo da me-de-santo Baixinha e de seu

    grupo contemporneo aos acontecimentos relatados, em quem julgamos ser

    possvel desvelarmos nuances e detalhes certamente enriquecedores para

    melhor compreenso da sucesso de fatos.

    So muitos os aspectos desta insero a merecer aprofundamento, e

    que no couberam nos limites deste trabalho. A compreenso desta interao

    se enriqueceria pelo recorte da anlise dos rituais, em um modelo comparativo;

    o estudo do processo de legitimao que se d a partir dos hinrios outrapossibilidade de abordagem que promete ser substanciosa; um levantamento

    etnogrfico a partir dos hinos tambm nos oferece uma rica perspectiva por

    onde analisar os acontecimentos deste encontro. Em suma, nos contentamos

    aqui em recuperar o cenrio de um perodo que identificamos como fundante

    da lgica pela qual essa aproximao seria interpretada pelos seus integrantes.

    As ocorrncias derivadas da chegada de um macumbeiro, que mobilizou

    a comunidade religiosa dirigida por Sebastio Mota de Melo, imprimiram entre

    seus participantes um conjunto de noes e interpretaes que acabaram por

    ocupar uma posio relevante em sua viso de mundo. Em seguida, a

    vertiginosa expanso do Cefluris colocar seus integrantes em contato com

    outro universo cultural, proveniente das grandes cidades do sul, no bojo do

    qual aportaria a cultura alternativa e a Umbanda. Ser na terceira gerao, no

    entanto, que o conjunto de experincias decorrentes do contato se expressar

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    em novos formatos rituais e no reconhecimento oficial do espao que lhe cabe

    dentro da cosmologia daimista.

    Segue a Umbanda seu curso dentro do Santo Daime, cujos

    desdobramentos no nossa tarefa prever. Se o Santo Daime ser capaz de

    manter sua coeso enquanto corpo religioso institudo, ou se se render a uma

    fragmentao irresistvel, da qual a prpria Umbanda possa ser agente, entre

    outros, uma questo em aberto.

    Entre os daimistas, a fuso dos elementos umbandistas com o Santo

    Daime que resultou na elaborao de um complexo de noes, de um conjunto

    de hinos que fazem aluso entidades reconhecidas como do panteo, de

    aparatos e formatos rituais prprios, disseminou o nome Umbandaime para

    design-la. Como prprio das concepes daimistas, alude a um estudo,

    dentre os vrios possveis. Com seu uso popularizado, Umbandaime tornou-se

    um termo genrico, passvel de ser largamente matizado. No possui, no

    entanto, status oficial; tampouco o encontramos utilizado em nenhuma das

    entrevistas de dirigentes e antigos. Reconheo, pela prpria experincia no

    meio, que seu uso corrente para designar as prticas afinadas com a

    Umbanda - tal como utilizado, no entanto, sugere a existncia de um corpo

    estruturado, como que a caminho de relativa independncia do conjunto

    doutrinrio. Essa no a nossa viso; como demonstraremos, a porosidadeque caracteriza o Cefluris quase surpreendente, enquanto objeto de estudo

    acolhe a Umbanda da mesma forma que a outras tradies e coabitar com

    elas, pelo menos nos limites do horizonte visvel. De acordo com a nossa viso,

    a Umbanda no chegou para germinar nas fendas do Santo Daime uma

    presena que lhe estranha, mas para transform-lo, e a si prpria, produzindo

    uma sntese que j distingue o Cefluris no conjunto das religies

    ayahuasqueiras. Umbandaime um nome prprio para referir-se insero,

    mas no expressa mais que sua percepo difusa. Estas so as razes pelasquais escolhemos no utilizar Umbandaime para designar esse encontro que

    nosso objeto de estudo.

    Encontrei material de alguns participantes do Santo Daime de momentos

    relevantes da expanso geogrfica da Doutrina, como nos livros de Alex Polari:

    O livro das Miraes, O guia da Floresta e o Evangelho segundo Sebastio

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    Mota e os de Lcio Mortimer, Nosso Senhor Aparecido na Floresta e Bena

    Padrinho.

    Uma referncia central de nosso trabalho foi o conjunto das obras de

    Sandra Goulart, que oferece anlises perspicazes e uma viso panormica do

    Santo Daime, particularmente sua dissertao, Razes Culturais do Santo

    Daime e sua tese, Contrastes e Continuidades em uma Tradio Amaznica:

    as religies da ayahuasca.

    Nos trabalhos acadmicos de cunho antropolgico sobressaem as

    pesquisas de Edward MacRae em Guiado pela Lua: Xamanismo e uso ritual da

    ayahuasca no culto do Santo Daime, tambm uma obra de referncia quando

    se trata do Santo Daime. Sinttico, pontua aspectos que nortearam pesquisas

    que o sucederam, entre os quais a do presente trabalho.

    Beatriz Caiuby Labate em A reinveno do uso da ayahuasca nos

    centros urbanos e como organizadora em O uso ritual da ayahuasca, nos ajuda

    a descrever os mecanismos de sua expanso e as novas conformidades que

    vo surgindo do encontro da doutrina cabocla com o policromtico ambiente

    urbano brasileiro. Beatriz Labate levanta hiptese a ser considerada, da

    influncia de intelectuais daimistas que, em mo reversa, levaram parte de

    suas concluses para o interior do corpo doutrinrio, em artigo no livro lcool e

    drogas na histria do Brasil. Outra obra organizada por Labate em parceriacom Wladimyr Sena Arajo, O uso ritual da ayahuasca, rene rica coletnea de

    estudos do universo ayahuasqueiro.

    Uma variada gama de outras obras enriqueceram nosso universo de

    pesquisa, dentre as quais ainda destacamos a etnografia de Alberto Groisman,

    Eu venho da floresta: um estudo sobre o contexto simblico do uso do Santo

    Daime.

    Para o entendimento do universo cultural afro-brasileiro busquei notrabalho de Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, onde encontrei a

    descrio do candombl de meados do sculo passado, assim como da

    chamada macumba urbana, ambiente que viria a ser revisitado por Reginaldo

    Prandi meio sculo depois, com Segredos Guardados: Os orixs na alma

    brasileira.

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    Renato Ortiz nos apresenta seu um estudo sociolgico, A morte branca

    do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira, em que descreve seu

    processo de formao a partir de transformaes sociais no Brasil do incio do

    sculo XX. Entre a cruz e a encruzilhada, de Lsias Negro; Marginlia

    Sagrada, de Fernando G. Brumana e Elda G. Brumana e Umbanda: umareligio brasileira, de Maria Helena Vilas Boas Concone, so obras de

    referncia para quem quer estudar a Umbanda. Situam-nos, a partir da custosa

    elaborao da Umbanda, entre as tenses e ambigidades que compem o

    cenrio religioso brasileiro, e o modo como, imerso em seu caudal, variadas

    manifestaes religiosas so parte de um mesmo denominador comum, em

    torno do qual transitamos com peculiar facilidade.

    Ao buscar os filtros que justificassem a receptividade do Santo Daime

    em relao Umbanda, procurei entender suas aproximaes. A dissertao

    de mestrado de Maria Beatriz Lisboa,A Lua Branca de Seu Tupinamb e de

    Mestre Irineu: estudo de caso de um terreiro de umbanda, encontramos um

    emblemtico exemplo de converso de um terreiro de Umbanda s prticas

    ritualsticas concomitantes do Santo Daime.

    xtase religioso; um estudo antropolgico da possesso por esprito e

    do xamanismo, de Ioan M. Lewis, traz luz complexidade deste sincretismo

    brasileira e nos ajudou decisivamente a situar o papel desempenhado pelapossesso, central na Umbanda, no conjunto de atitudes e crenas do

    daimista.

    possvel identificar a partir de trabalhos supracitados muitas das

    tradies presentes na formao da doutrina e do imaginrio daimista.

    Encontramos em Kardecismo e Umbanda, de Cndido Procpio Ferreira de

    Camargo, a tese de um gradiente esprita-umbandista, que estabelece o

    kardecismo em um dos extremos do gradiente e a Umbanda no outro;

    desenvolve ainda a idia de um continuum religioso no Brasil e faz a primeira

    tentativa de entender a matriz esprita kardecista, presente em ambas as

    religies e que demonstra tambm, a partir da obra de Maria Laura Viveiro de

    Castro Cavalcanti, Vida e Morte no Espiritismo kardecista, a complexa teia que

    inter-relacionam espiritismo, catolicismo popular e Umbanda.

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    Busquei referenciais tericos para o xamanismo na obra de Mircea

    Eliade, El chamanismo y las tecnicas arcaicas del extasis. O dilogo de Ioan

    Lewis com as teses clssicas do estudo do xamanismo amplia e questiona

    esses referenciais, como no caso da relao possesso/vo xamnico.

    Alguns estudos do universo indgena ajudaram a situar a dinmica de

    contato; destaco Pacificando o branco, de Bruce Albert e Alcida Rita Ramos

    (orgs.). Para a necessria compreenso das mltiplas dimenses do

    catolicismo popular encontrei fundamentos em Catolicismo popular no Brasil,

    de Gunter Paulo Sess. E em Karl Heinz Arenz, A teimosia da pajelana: o

    sistema religioso dos ribeirinhos da Amaznia encontramos uma descrio

    daquele universo peculiar. Algo do panorama religioso que nos auxilia neste

    destrinchamento podemos encontrar na sociedade relacionalcom que Roberto

    DaMatta instrumentaliza suas anlises, como emA casa e a rua.

    Pelas nossas hipteses existem fortes aproximaes da doutrina do

    Santo Daime com a Umbanda, a partir de suas matrizes culturais e religiosas

    comuns. A religiosidade catlica popular brasileira, altamente porosa; o pendor

    sincrtico do espiritismo kardecista, j transformado em solo brasileiro; a

    mesma abertura doutrinria da Umbanda constituem ambiente propcio troca

    de contedos.

    Havia, de acordo com nossas suposies, um cenrio preparado paraesta acolhida da Umbanda tambm por eventos que estruturaram preceitos,

    atitudes e vises os quais procuramos recuperar.

    Presumimos tambm que as atitudes de peregrinao e busca do

    mundo alternativo - em relao ao novo, ao mistrio embutido nas tradies e

    ao distante - forneceram os elos entre a Umbanda e o Santo Daime. Nos anos

    setenta o encontro entre hippies mochileiros e caboclos daimistas na Amaznia

    propiciaram a expanso do Santo Daime para todo o territrio nacional e, hoje,

    em pases de vrios continentes. A profunda transformao vivida no sculo

    passado em nosso cenrio social e religioso e a crescente importncia da

    dimenso existencial trazida pela contracultura so ainda estmulos

    complementares que ajudam a dar sentido aesta ressignificao.

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    Um quadro de ampliao da mobilidade geogrfica de indivduos

    oriundos de ambientes scio-culturais distintos e mltiplos, da velocidade

    alterada da troca de informaes via urbanizao/globalizao/revoluo dos

    meios de comunicao possibilitaram profunda interao e intercambio de

    contedos religiosos em mo dupla, passvel de ser recuperada.

    A integrao da Umbanda no corpo doutrinrio do Santo Daime fornece

    instigante material onde investigar o modo de atuao de uma coletividade na

    reconstruo de seu iderio. No encontro destas religies (ambas tidas como

    brasileiras, mas nascidas em contextos marcadamente distintos) podemos

    vislumbrar, por contraste, o pano de fundo de nosso frtil ambiente cultural e

    religioso.

    A partir da anlise da insero da Umbanda no Santo Daime, so muitas

    as possibilidades de identificarmos traos estruturantes de nosso carter

    religioso geral, constitutivos de nossa identidade. Um ambiente fragmentado,

    poroso, sincrtico, contm as matrizes que determinam os filtros deste

    movimento de reelaborao. Identificar suas matrizes e reconstituir sua

    atuao a partir desta reconstruo pode explicitar as necessidades que

    direcionam a busca de sentido de importantes camadas da populao

    brasileira.

    Realizamos uma pesquisa de campo cujo ncleo foram entrevistasrealizadas com antigos e dirigentes no Cu do Mapi entre os meses de janeiro

    e fevereiro de 2007, a que vieram se somar outras entrevistas em So Paulo,

    no Rio de Janeiro e na Bahia. As lacunas, preenchi com um variado acervo de

    obras, que estruturam uma bibliografia panormica do fenmeno Santo Daime.

    Optamos por manter as denominaes das duas religies em contato,

    objeto deste estudo, em maiscula, enquanto que todas as outras tradies

    religiosas comentadas foram grafadas em minscula.

    O sistema de referncias que consideramos mais adequado o de notas

    de rodap que, a meu ver, mantm o texto limpo e a visibilidade das notas.

    Organizamos nossa dissertao em cinco captulos. Oprimeiro captulo

    possui trs partes: a primeira descreve os entornos do nascimento do Santo

    Daime: a Amaznia, seu ambiente cultural as construes culturais a partir da

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    bebida ayahuasca, que no Brasil propiciariam o surgimento de trs religies

    ayahuasqueiras; uma delas o Santo Daime. A segunda situa historicamente a

    trajetria do Santo Daime: de seu criador, Mestre Irineu e seu encontro com a

    ayahuasca, dos primeiros dias da religio nascente, de seus mitos fundantes

    ao encontro com o Padrinho Sebastio e expanso do Cefluris. Por fim, aterceira descreveas expresses rituais, cosmovises e elementos constitutivos

    do Santo Daime.

    No segundo captulo buscamos recuperar as vrias matrizes do Santo

    Daime: o catolicismo popular amaznico; a herana indgena atravs da

    pajelana e da tradio vegetalista; a presena cabocla no curandeirismo; o

    papel da organizao espiritualista Circulo Esotrico da Comunho do

    Pensamento; o papel crucial do espiritismo kardecista e a presena dos

    elementos da religiosidade afro-brasileira, entre outros.

    No terceiro captulo descrevemos os elementos da Umbanda que seriam

    teis compreenso deste corpo religioso, que se apresentaria e mesclaria

    com a viso de mundo daimista.

    No quarto captulo, buscamos recuperaras trs geraes que compem

    a linha de continuidade do Santo Daime, a partir de sua relao com nosso

    objeto de pesquisa, a saber, a insero da Umbanda no Santo Daime. A

    primeira delas a do Mestre Irineu, at seu falecimento. A segunda gerao,aonde centramos nossa pesquisa, a nosso ver aquela que oferece os

    acontecimentos mais importantes para o desenvolvimento da Umbanda no

    interior daimista. Nela descrevemos o encontro da comunidade do Padrinho

    Sebastio com um macumbeiro, o Cear, que produziria uma gama de

    conseqncias para o conjunto de crenas daquele grupo. Em seguida, com a

    expanso do Cefluris e o nascimento de novas igrejas, entre as quais as do Rio

    de Janeiro, jovens egressos da contracultura e em contato com a Umbanda

    carioca, acabariam por importar a Umbanda para dentro da comunidade do

    Padrinho Sebastio.

    Por fim, no quinto captulo, desenvolvemos uma anlise de possveis

    razes para a grande receptividade Umbanda no meio daimista: matrizes

    includentes comuns, estruturas internas que potencializam a caracterstica

    aberta de ambas as religies, o contraste entre as atitudes contidas do daimista

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    tradicional e a catarse umbandista; o papel do corpo e a possibilidade de

    expresso aos sem-voz.

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    CAPTULO I O SANTO DAIME

    Descrever a religio do Santo Daime, situando-a no tempo e no espao

    a inteno deste captulo. Relatar cronologicamente os principais fatos e

    personagens responsveis pela sua elaborao nos ajuda a visualiz-la em

    seu contexto, em relao a um cenrio mais panormico: o Brasil que

    atravessa o sculo XX, as transformaes vividas pela Amaznia, as religies

    que emolduram e so emolduradas por estas dinmicas.

    As especificidades do Santo Daime que resultaram deste quadro

    tambm so as ocupaes deste relato. Pretendemos delinear as prticas

    religiosas do Santo Daime com seus elementos rituais, suas tcnicas sagradas

    e como eles se distribuem em sua cosmologia.

    O modo de ser daimista emerge destas prticas com um relato comum

    tanto da existncia como da relao com o sagrado. Para compreendermos o

    Santo Daime no que ele tem de prprio necessrio situar-nos em sua

    perspectiva, a partir da qual possamos apreender sua viso de mundo.

    Finalmente a elaborao de sua narrativa, transformada em cosmoviso,

    produziu categorias que a distinguem das demais religies, seja aproximando-

    se, seja apartando-se, naquele jogo prprio que caracteriza a inveno dasformas e contedos religiosos. A mirao3, o canto, a incorporao, a cura, a

    mediunidade so parte desta elaborao que colorem de modo nico esta

    busca de encontro com o Divino proposto pelo Santo Daime.

    1.1 - Amaznia: o bero do Santo Daime

    O Santo Daime o desaguadouro de um dos afluentes nascidos da

    tradio ayahuasqueira amaznica, ou seja, que tm no uso sacramental dabebida genericamente conhecida como ayahuasca4 uma de suas

    3 O termo mirao tem sua origem provavelmente na erupo de imagens com caractersticasonricas, provenientes do efeito do daime, mas ganha conotao mais ampla, podendo conotaroutras formas de alterao de conscincia, como profundas emoes e esclarecimentos naforma de insights. Voltamos a fazer uma reflexo sobre mirao pgina 211.4Ayahuasca , dentre vrios, o nome mais generalizado, de uma bebida amaznica queresulta da coco de duas plantas: um cip e uma folha. Possui propriedades alteradoras de

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    caractersticas centrais. Nele se mesclaram as principais matrizes que

    compem o ethos religioso brasileiro; co-habitam e se interpenetram no Santo

    Daime, de modo to ntido e peculiar, mas no surpreendente, os mundos

    indgenas, brancos e negros. Pretendemos recuperar brevemente o que se

    conhece de seus elementos constitutivos.

    A Amaznia palco de uma religiosidade sui generis, prpria de uma

    floresta equatorial virgem de dimenses continentais, aonde habitam inmeros

    agrupamentos indgenas muitos at hoje no contatados pelo homem branco.

    1.1.1 - O processo de ocupao da Amaznia

    Segundo Furuya5, dois horizontes histricos so identificados na

    ocupao da Amaznia. No primeiro deles uma destribalizao no meio

    indgena haveria ocorrido entre meados do sculo XVIII e do sculo XIX, da

    decorrendo a formao de uma massa popular amaznica e uma cultura a ela

    vinculada. O horizonte caracteriza-se pelas tradies religiosas populares que

    tm como fator principal a crena nos santos e a pajelana formadas naquela

    poca, base, segundo o autor, das religies populares 6.

    Neste sentido podemos observar neste meio, apesar de suas

    peculiaridades, muitos dos mesmos elementos que constroem a identidade

    religiosa brasileira.

    O segundo horizonte, que tem sua intensificao em 1872, v o frentico

    crescimento da populao amaznica, que de 330 mil pessoas em torno de

    1872 evolui para 1 milho e 400 mil pessoas em 19297, naquele que seria

    conhecido como o Ciclo da Borracha. A explorao da borracha em escala

    industrial elevou a migrao de nordestinos para a Amaznia a nveis inditos.

    conscincia e utilizada extensamente, na regio amaznica, em contextos religiosos. Destasprticas nasceram, especificamente no Brasil, algumas religies, entre elas o Santo Daime.5 Cf. Yoshiaki FURUYA apud Clodomir MONTEIRO, O uso ritual da ayahuasca e o reencontrode duas tradies, In: Beatriz Caiuby LABATE; Wladimyr SENA Arajo (orgs.), O uso ritual daayahuasca, p. 416-417.6 Clodomir MONTEIRO da Silva, O uso ritual da ayahuasca e o reencontro de duas tradies ,In: Beatriz Caiuby LABATE; Wladimyr SENA Arajo (orgs.), O uso ritual da ayahuasca, p. 416-417.7 Cf. Samuel BENCHIMOL apud Clodomir MONTEIRO da Silva, O uso ritual da ayahuasca e oreencontro de duas tradies, In: Beatriz Caiuby LABATE; Wladimyr SENA Arajo (orgs.), Ouso ritual da ayahuasca, p. 416-417.

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    A economia da borracha representou um grande contingente de

    deslocamentos internos; sendo o Acre, em particular, o espao de fronteira e

    de trfegos interculturais 8. A intensificao da circulao de pessoas

    (seringueiros, burocratas, comerciantes, entre outros) e as trocas presentes

    nas relaes scio-econmicas que delas se originam favoreceram o forteintercmbio cultural entre os povos da bacia do Alto Amazonas, incluindo os

    seringueiros e outros recm-chegados, e os habitantes da floresta no Peru,

    explicitando a inesperada insero da Amaznia em um vigoroso fluxo

    intertnico e de migrao de smbolos. O consumo da ayahuasca voltado para

    a finalidade teraputica seria um dos pontos mais importantes deste

    intercmbio. 9

    As proximidades da Segunda Guerra Mundial e a conseqente

    revalorizao estratgica da borracha re-injetaram dinamismo explorao da

    borracha por volta dos anos quarenta. Novo fluxo migratrio dirigiu-se

    Amaznia, para ver muito rapidamente frustradas suas aspiraes; a mudana

    do cenrio scio-politico mundial mais uma vez determinou o esvaziamento da

    importncia da borracha. Como conseqncia observou-se um acelerado

    processo de migrao da floresta para os ncleos urbanos; primeiro para as

    pequenas cidades e vilarejos, em seguida para as cidades maiores. 10

    1.1.2 O cenrio cultural da Amaznia

    Muitos autores j observaram a respeito da surpreendente unidade

    cultural da vasta regio compreendida como amaznica. Em uma rea que se

    estende das Guianas at a foz do Orenoco, a selva amaznica abrange uma

    rea de cerca de 6,5 milhes de quilmetros quadrados. Conforme afirma

    MacRae:

    Apesar dessa extenso, a regio constitui uma unidadeextraordinariamente homognea, devido a sua histria geolgica, ao

    8 Carlos Alberto AFONSO apud Sandra Lucia GOULART, Contrastes e Continuidades em umaTradio Amaznica, p.17.9 Luis Eduardo LUNA apud Sandra Lucia GOULART, Contrastes e Continuidades em umaTradio Amaznica, p.13.10 Clodomir MONTEIRO apud Edward MACRAE, Guiado pela lua, p. 60.

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    clima uniforme e posio equatorial. No seu livro sobre a adaptaodo homem ecologia amaznica, a antroploga Betty Meggers comentaque uma das caractersticas mais surpreendentes da vida na Amazniade hoje a ausncia de diferenciao regional. Segundo ela constata,ao longo de todos os rios principais e de alguns tributrios menores, opovo come a mesma comida, veste roupas semelhantes, vive nomesmo tipo de casa e participa das mesmas crenas e aspiraes. 11

    A catequizao catlica desde os primeiros sculos da colonizao

    apontada como um dos principais fatores constitutivos desta homogeneidade.

    O antroplogo brasileiro Eduardo Galvo v a atuao dos missionrios e

    colonos junto aos indgenas, desde o sculo XVII, como grande responsvel

    pela homogeneidade de hbitos e crenas do homem amaznico. Segundo ele,

    o desmembramento das sociedades indgenas os impediram de resistir ao

    catolicismo.

    Reflexo possvel a respeito do encontro indgena com o mundo branco,

    e sua incapacidade de resistir ao domnio do projeto colonial, seria quanto ao

    papel da superioridade tecnolgica dos brancos resultando em capacidade

    de impor seu modo de ser no desmoronamento das antigas concepes.

    Os brancos chegaram com equipamentos que denotavam seu poder,

    caso das ferramentas de ferro. Enquanto isso as epidemias dizimavam parte

    considervel de suas tribos. A letalidade do encontro trazia a incontornvel

    indagao quanto a estratgias de sobrevivncia. De toda forma, parecia haver

    uma receptividade incrustada na alma indgena da qual seu olhar ao Outro

    parecia se constituir12. Estudos de Meli13, Chamorro14, Alberto e Ramos15,

    sugerem um modo de ser indgena onde a alteridade encontra espao.

    Segundo Chamorro:

    Atrevo-me a considerar os indgenas como grupos sociais em que

    prepondera o princpio da identidade, onde o mais importante empenhar-se em reconhec-los [aos outros] como parte de si mesmo,

    11 Edward MACRAE, Guiado pela lua, p. 58.12

    Sobre este aspecto includente da matriz indgena, ver tambm p. 209-211. 13 Cf. Bartolomeu MELI, El Guarani conquistado e reducido.14 Cf. Graciela CHAMORRO,A comunidade na perspectiva indgena.15 Cf. Bruce ALBERT; Alcida Rita RAMOS (orgs.), Pacificando o branco.

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    por acreditar-se que sem isso ningum pode chegar a ser pessoa empleno sentido. 16

    possvel que este conjunto de fatores tenha determinado, mais que a

    suposta fragilidade de suas elaboraes rituais, a penetrao avassaladora docatolicismo, quando o mundo passou a ser interpretado em chave religiosa

    crist. Neste sentido, MacRae afirma:

    Subsistiram as crenas mais diretamente ligadas ao meio ambiente, queno tinham substituto ou equivalente no cristianismo. Alm disso, adifuso de uma lngua geral, variante do tupi guarani, contribuiutambm para nivelar diferentes formas de expresso. Isso, segundoGalvo, levou a uma tendncia de se atribuir importncia talvezexagerada contribuio indgena na cultura cabocla, numa regio

    tambm exposta a outras fortes influncias. 17

    O xamanismo em sua verso amaznica, a pajelana, seria, nestas

    condies, um dos legados indgenas que menos se transformaram. 18

    1.1.3 A religiosidade popular amaznica

    Esta massa popular derivada do Ciclo da Borracha, impelida Amaznia

    pela misria e por condies climticas adversas em suas regies de origem,

    constituda pelo incremento populacional, pelo crescimento das cidades e pela

    catequizao catlica, acaba por estabelecer uma comunidade cultural, difusa,

    mas de contornos definidos. Fragmentos de mundos diversos, resduos que

    lentamente se sedimentaram, delinearam uma viso de mundo onde os

    curandeiros passam a desempenhar um papel importante.

    Curandeiros, xams, pajs, vegetalistas, mas tambm doutores,

    mestres, vovozinhos

    19

    so, portanto, termos que designam a pessoa dotada dopoder de comunicao com o invisvel, para interceder pelos problemas dos

    consulentes, mas tambm personagens centrais de uma cosmoviso que

    16 Graciela CHAMORRO,A comunidade na perspectiva indgena, p. 99.17 Edward MACRAE, Guiado pela lua, p. 60.18 Sobre as relaes entre xamanismo, pajelana, curandeirismo e vegetalismo, ver a pgina 77.19 Cf. Edward MACRAE, Guiado pela lua, p.30.

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    mescla elementos sobreviventes das culturas indgenas com as re-

    apropriaes brancas populares do catolicismo e do espiritismo, naquele

    contexto. A pajelana amaznica no se diferencia, neste sentido, da

    pajelana cabocla maranhense tal como descrita por Bastide. 20 No

    queremos com estas afirmaes anular diferenciaes importantes entre estasdesignaes, nem a existncia da pajelana exclusivamente indgena, mas

    situ-las na totalidade que nos interessa, a do contato entre os dois mundos.

    O combate lanado pela Igreja Catlica na primeira metade do sculo

    XX contra as prticas religiosas populares - que no Brasil neste perodo quase

    sempre quis significar catolicismo popular tambm teve impacto sobre a

    religiosidade amaznica. A tentativa do catolicismo ortodoxo se impor sobre as

    prticas populares demandou um movimento de transformao e resistncia21,

    em que as atitudes diante da religio buscam se adaptar s transformaes

    que ocorriam em diversos campos. No demais lembrar que a investida da

    ortodoxia catlica se expressou no apenas em proselitismo, mas efetivamente

    no aumento dos conflitos entre a polcia e as prticas religiosas amaznicas. 22

    Goulart levanta a hiptese de que tal ofensiva est na raiz da

    combinao de elementos do curandeirismo amaznico com as concepes

    catlicas neste perodo. Tradies que representavam distintas matrizes da

    religiosidade cabocla mesclavam-se em um processo em que as crenas docurandeirismo perdiam legitimidade diante do catolicismo. 23 Walter Dias

    igualmente defende as mesmas razes para o abandono por Raimundo Irineu

    Serra dos formatos mais nitidamente africanos e a aproximao com elementos

    mais catlicos e brancos na construo do Santo Daime, em suas origens. 24

    Uma anlise de Alba Zaluar sobre o perodo25 acreditava no predomnio

    da nova moral imposta pela Igreja, com a extino das antigas prticas

    20 Cf. Roger BASTIDE,As religies africanas no Brasil, p. 256-266.21 Cf. Sandra Lucia GOULART, O contexto do surgimento do culto do Santo Daime, In: BeatrizCaiuby LABATE; Wladimyr Sena ARAUJO (orgs.), O uso ritual da ayahuasca, p. 290.22 Cf. Eduardo GALVO apud Sandra Lucia GOULART, O contexto do surgimento do culto doSanto Daime, In: Beatriz Caiuby LABATE; Wladimyr Sena ARAUJO (orgs.), O uso ritual daayahuasca, p 298.23 Cf. Sandra Lucia GOULART, O contexto do surgimento do culto do Santo Daime, In: BeatrizCaiuby LABATE; Wladimyr Sena ARAUJO (orgs.), O uso ritual da ayahuasca, p. 299.24 Cf. Walter DIAS JR, O imprio de Juramidam nas batalhas do astral, p. 67-73.25 Cf. Alba ZALUAR, Os homens de Deus, passim.

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    Galvo nota mais tarde que, concomitante influncia do espiritismo, os

    santos acabam por se transformar tambm naqueles espritos familiares, por

    meio de quem os curandeiros efetuam suas intervenes, ao contrrio do

    passado, quando no se imputava poderes aos santos para resolver certos

    problemas como o assombrado de bicho32. Um mundo mestio de crenas

    assomava do incremento populacional na Amaznia e de seu inevitvel caldo

    cultural que, apesar de suas distintas matrizes, era concebido pelo caboclo

    como dotado de unidade: conviviam em uma nica cosmoviso.

    Os xams33, ou os pajs, so tidos como portadores do poder de se comunicar

    com os seres do mundo espiritual, de onde recebem seus poderes e seus

    conhecimentos. Obedecendo aos seus conselhos e os tendo como aliados

    para o cumprimento de suas demandas. O prprio significado do termo

    vegetalista exprime estas concepes: refere-se aos espritos aliados de certas

    plantas, transmissores do conhecimento que distinguem o xam. So as

    denominadas plantas maestras, ou plantas professoras, as verdadeiras

    portadoras da magia e do conhecimento da cura que transmitem aos

    curandeiros, ou mais especificamente aos vegetalistas.

    De modo que tambm nestas razes podemos encontrar os modos de

    pensar o sagrado que facilitaram sua absoro das cosmovises quelentamente invadiam a Amaznia a partir de todas aquelas profundas

    transformaes que paulatinamente desmoronavam o mundo at ento

    estabelecido do caboclo. 34

    1.1.4 - A ayahuasca

    32Ibid., p. 103.33

    Xam a expresso consagrada pela obra clssica de Eliade, El chamanismo y las tcnicasarcaicas del xtasis, para designar o agente do sistema religioso xamnico, encontrado emtodos os continentes. A pajelana indgena, posteriormente derivando em uma pajelanacabocla, mesclada com elementos exgenos, seria uma prtica xamnica amaznica, possvelde ser identificada como tal a partir da presena de traos constitutivos comuns. O nomeindgena para seu agente paj, derivado do tupipay. Segundoo antroplogo Estevo Pinto,citado por Arenz emA teimosia da pajelana, p. 75, ele provm, provavelmente, ou de pa-y,que quer dizer aquele que diz o fim, isto , profeta ou de epiaga/epicque significa vidente.Assim, ao utilizarmos a dominao xam para designarmos opaj, estamos reconhecendo sereste expresso local daquele sistema xamnico acima referido.34 Sobre as relaes entre o xamanismo e o Santo Daime ver p. 89-94.

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    A ns interessa particularmente o ramo destas praticas que utiliza a

    ayahuasca. O uso desta categoria de plantas, que aqui escolhemos chamar de

    entegenas35, podemos encontrar nas mais diversas prticas xamnicas, em

    culturas ao redor do planeta, hoje e no passado. 36 De todas estas plantas

    professoras, a mais importante seria a ayahuasca37

    , no sentido da extensode seu uso e na derivao das religies que vimos se desenvolver no lado

    brasileiro da Amaznia. Praticada por diferentes especialistas, na

    intermediao entre a selva e os ncleos rurais e urbanos 38, seu uso se

    estende pelas bordas da floresta amaznica, pela Bolvia, Peru, Equador,

    Colmbia, entre outros, assim como no Brasil.

    A chamada cultura vegetalista ayahuasqueira, presente na regio h

    aproximadamente 200 anos, seria o resultado, para alguns autores, de

    diferentes fluxos migratrios e produzida no correr de sculos por traos do

    mundo andino, a influncia das misses catlicas e de elementos oriundos das

    culturas nativas da floresta. Haveria, portanto, diferentes tipos de vegetalismos

    mesclando-se com outras matrizes na origem do Santo Daime, da UDV e da

    Barquinha, segundo hiptese aventada por Luna. 39 Na Amaznia Ocidental

    seriam setenta e dois os grupos indgenas que se utilizam da ayahuasca. 40

    35 Segundo Ibid., p. 33, h uma discusso em torno do uso deste neologismo, tido por algunscomo uma opo ideolgica por parte daquele segmento que apia o uso de psicoativos. Mas uma expresso incorporada ao lxico daimista, aceita como mais fiel sua viso do assunto.O termo alucingeno viria carregado de preconceitos, j expressando uma viso negativa douso de alteradores de conscincia, produzindo alucinaes, e no um encontro com o divino,ou com umanatureza divina, como se poderia significar entegeno. WASSON et. al. apud Ibid.,p. 33, foi quem props o termo. MACRAE, Guiado pela lua, p.16, afirma que entegeno derivado grego antigo entheo que significa Deus dentro.36 Segundo Germn ZULUAGA: De fato, sabemos da Amanita muscaria na sia e Amrica doNorte, o peiote e o Don Juan no Mxico, o So Pedro na costa peruana, o yag e a virola naselva amaznica, o yopo na regio do Orinoco e das selvas da Guiana, a coca e o borracherona regio andina, o pio no Extremo Oriente, a marijuana na antiga Prsia, a atropa, a datura eo meimendro na regio mediterrnea e a iboga na frica. Confirmou-se tambm que o uso do

    cogumelo Claviceps purprea faz parte das antigas tradies pr-socrticas da antiga Grcia eque o cogumelo soma originou, de certo modo, a escritura de Rig Veda, o primeiro livrosagrado dos hindus. A cultura do yag: um caminho de ndios. In: Beatriz Caiuby LABATE;Wladimyr Sena ARAUJO (orgs.).O uso ritual da ayahuasca. So Paulo: Mercado de Letras,2004, p. 130-133.37 Sandra Lucia GOULART, Razes culturais do Santo Daime, p. 90.38 Clodomir MONTEIRO, O uso ritual da ayahuasca e o reencontro de duas tradies, In:Beatriz Caiuby LABATE; Wladimyr SENA Arajo (orgs.), O uso ritual da ayahuasca, p. 420-421.39 Cf. Sandra Lucia GOULART, Contrastes e Continuidades em uma Tradio Amaznica,p.13.40 Cf. Beatriz Caiuby LABATE,A reinveno do uso da ayahuasca nos centros urbanos, p. 65.

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    A origem do uso da bebida perdeu-se no tempo. fato que vem sendo

    utilizada na regio amaznica e seu entorno desde tempos imemoriais, em

    geral associada ao uso ritual e mgico, at vir a tomar a forma do Santo Daime

    entre outras religies derivadas de seu uso. So muitos os nomes pelos

    quais conhecida, entre eles yaj, caapi, camarambi, nixi pae41

    , vegetal, sendoque no Santo Daime conhecida como daime, denominao com a qual

    passaremos a nos referir bebida.

    Sua identificao correta pelo botnico Richard Spruce data de 1852, quando

    foi classificada como pertencente ordem das Malpigiceas e ao gnero da

    Banisteria. Neste ano ... ele testemunhou uma festa indgena realizada na

    zona do rio Vaups, na fronteira entre o Brasil e a Colmbia. Os participantes

    ingeriam uma bebida preparada com uma planta trepadeira chamada caapi 42.

    Spruce, deduzindo que se tratava de uma espcie ainda no descrita,

    denominou-a Banisteria caapi. Em 1857, Spruce encontrou entre os indios

    Zparo da Amaznia equatoriana um narctico ao qual chamavam ayahuasca.

    (...) Ele deduziu que esta planta e dos Vaups eram uma s, apesar dos nomes

    diferentes43.

    Os primeiros estudos laboratoriais para a identificao das plantas

    utilizadas no preparo da bebida se deram em 1931. At ento reinava certa

    confuso entre alguns investigadores que chegaram a apontar um arbusto,para na dcada de vinte o explorador belga Claes descrever corretamente um

    grande cip amaznico.

    A preparao do daime consiste na coco deste cip, o Banisteriopsis

    caapicom a Psychotria viridis, uma folha utilizada principalmente na Amaznia

    brasileira e que no Santo Daime recebeu o nome de rainha em aluso ao

    princpio feminino nela contido, de acordo com as concepes daimistas. 44

    Zuluaga (2004) afirma que depois da ltima glaciao, quando aesmagadora maioria dos espcimes vegetal foi extinta pelo frio, sobreviveram

    pequenas manchas de flora e fauna que deram origem aos ecossistemas

    41 Cf. Ibid., p. 13.42 Sandra Lucia GOULART, Razes culturais do Santo Daime, p. 10.43 Sandra Lucia GOULART, Razes culturais do Santo Daime, p. 10.44 Cf. Ibid., p. 10-11.

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    atuais. Dos nove refgios identificados na Amrica do Sul, um deles est

    situado na regio amaznica equatoriana, nas proximidades do Rio Napo.

    Exatamente este teria dado origem aos ecossistemas que vo desde o norte do

    peru at o sul da Colmbia, conhecido como o piemonte amaznico. Muitas

    plantas utilizadas pelos grupos indgenas para suas prticas xamnicas tmcomo centro de origem e difuso este refgio 45.

    Ayahuasca, portanto, seria o nome genrico desta beberagem nascida

    dojagube (uma das denominaes do cip, utilizada, por exemplo, no Cefluris)

    cortado em pedaos e macerado e cozido junto com a rainha. um termo

    quchua que significa liana dos espritos, ou parra del alma, entre muitas de

    suas tradues livres. O que surpreende aos desavisados a extensa

    utilizao da ayahuasca nas prticas mgicas e religiosas da regio

    amaznica, malgrado suas dimenses e as dificuldades bvias pela aparente

    ausncia de veios comunicantes em meio maior floresta do planeta. A

    uniformidade dessa regio abrangida pela floresta , como comentamos neste

    captulo, reconhecida por seus pesquisadores tambm em outras

    manifestaes da presena do homem.

    1.1.5 - As religies ayahuasqueiras

    Apesar de largamente utilizada no entorno da floresta amaznica,

    apenas no Brasil a utilizao da ayahuasca produziu o surgimento de religies

    centradas em seu uso sacramental; so partes, portanto da grande tradio

    indgena de utilizao desta bebida no trato com o sagrado. 46

    Dessa matriz germinaram o Santo Daime, a Unio do Vegetal e a

    Barquinha, trs religies distintas, sendo que as duas primeiras se expandiram

    para alm de suas fronteiras originais. As chamadas religies ayahuasqueiras

    surgiram no Brasil a partir da dcada de trinta estruturadas por migrantes quese dirigiram Amaznia em funo da explorao dos seringais. So re-

    elaboraes, como vimos, do curandeirismo amaznico e do catolicismo

    45 Germn ZULUAGA, A cultura do yag, In: Beatriz Caiuby LABATE; Wladimyr SENA Arajo(orgs.), O uso ritual da ayahuasca, p. 132.46 Arneide Bandeira CEMIN, Os rituais do Santo Daime In: Beatriz Caiuby LABATE; WladimyrSENA Arajo (orgs.), O uso ritual da ayahuasca, p. 347.

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    popular mediadas pelo consumo ritual da ayahuasca; assim como a partir de

    influncias espritas kardecistas, da tradio afro-brasileira e de elementos do

    esoterismo europeu. 47 Hoje se constata a proliferao de usos religiosos da

    ayahuasca a partir de seu encontro com as cidades, derivando em cada vez

    mais numerosa variedade de prticas.48

    A Barquinha foi fundada pelo tambm maranhense Daniel Pereira de

    Mattos que iniciou seus trabalhos com daimejunto ao Mestre Irineu, com quem

    foi buscar cura do alcoolismo entre o final dos anos trinta e o incio dos anos

    quarenta, conforme variados depoimentos. Consta que foram amigos e

    trabalharam juntos. Tendo recebido instrues espirituais prprias que

    indicavam ser outra a sua linha, comunicou ao Mestre Irineu a continuidade

    de sua trajetria e dele recebeu autorizao para seguir seu prprio caminho.

    O prprio Mestre Irineu lhe forneceu daime no primeiro ano, indicando assim

    quo amigvel foi essa separao.

    A Barquinha desenvolveu um rumo ritualstico bastante diferente do

    Santo Daime, privilegiando a prtica da caridade atravs do trabalho

    medinico, particularmente pelo transe de incorporao. Nos cultos, mdiuns

    prestam atendimento assistncia.

    Outra religio nascida da tradio ayahuasqueira a Unio do Vegetal,

    tambm conhecida como UDV. Reencarnacionista, a que menos expressaelementos cristos em suas prticas rituais. Foi fundada em 1961 tambm por

    um nordestino, o baiano Jos Gabriel da Costa. Tal como os fundadores das

    duas outras religies comentadas, Gabriel foi seringueiro, tendo chegado

    Amaznia no incio dos anos quarenta. Em relao s outras religies

    ayahuasqueiras a UDV a que mais se expandiu, contando hoje com grupos

    organizados em quase todo o territrio nacional e no exterior. A UDV tambm

    se distingue dentre as religies ayahuasqueiras pelo seu perfil mais racional,

    onde o xtase no mantm a nfase encontrada no Santo Daime e na

    Barquinha. A incorporao, por exemplo, no aceita.

    O presente estudo se ocupa do Santo Daime em uma das suas

    vertentes. Santo Daime designa a religio organizada por Raimundo Irineu

    47 Beatriz Caiuby LABATE,A reinveno do uso da ayahuasca nos centros urbanos, p.65.48 Cf. Ibid..

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    Serra, um maranhense negro que tambm se dirigiu Amaznia motivado

    pelas perspectivas da borracha nas primeiras dcadas do sculo XX. A partir

    de seu falecimento, um de seus discpulos, Sebastio Mota de Melo, tendo se

    desentendido com os sucessores oficiais de Irineu49, liderou a separao de

    um grupo que deu origem a uma outra linha50

    daimista, atualmente autodesignada Centro Ecltico da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra

    CEFLURIS. 51 O Cefluris se expandiu por todo o territrio nacional e por outros

    pases do mundo, tendo esta expanso produzido re-configuraes em seu

    sistema de crenas e prticas rituais. Distanciou-se assim, em muitos aspectos,

    do tronco original, ainda que, para a narrativa do Cefluris, tenha se mantido

    nuclearmente dentro dos preceitos estabelecidos pelo Mestre Irineu. Deste

    modo, dentre as religies ayahuasqueiras, permanecem sendo considerados

    como pertencentes linha do Mestre Irineu.

    O antigo grupo ainda hoje comandado pela viva de Irineu passou a ser

    conhecido como Alto Santo, em funo do bairro de mesmo nome em que se

    localizam. Continuam restritos Rio Branco, no Acre e se opem expanso e

    criao de filiais, sendo essa uma das crticas que fazem ao seguimento

    desenvolvido pelo Cefluris. Quando escrevermos Santo Daime, portanto,

    estaremos nos referindo religio desenvolvida a partir do desmembramento

    liderado por Sebastio Mota, o Cefluris, salvo quando especificadas origens

    distintas.

    1.2 - O Santo Daime histrico

    Uma breve reconstituio cronolgica dos principais fatos que levaram

    ao nascimento e desenvolvimento desta religio brasileira ajuda a ambientar

    essa pesquisa.

    49 Quando estivermos nos referindo a Raimundo Irineu Serra na condio de agente histrico odenominaremos simplesmente de Irineu. Quando esta referncia tratar de aes eposicionamentos do mesmo enquanto lder e criador do culto, o denominaremos de MestreIrineu. O mesmo vale para Sebastio Mota de Melo, ou Padrinho Sebastio.50 Linha expresso utilizada em muitos contextos religiosos, e tambm entre as religiesayahuasqueiras, geralmente para distinguir-se das outras. nesta perspectiva que autilizaremos em nosso trabalho, quando no indicados outros contextos. Para uma discussomais aprofundada da terminologia no campo ayahuasqueiro ver Sandra GOULART, Contrastese Continuidades em uma Tradio Amaznica, p.8-12.51 Neste trabalho, esta sigla CEFLURIS tratada como nome prprio: Cefluris.

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    1.2.1 - Nascimento do Alto Santo

    O ano 1930 costuma ser indicado pelos adeptos, e aceito de forma

    geral, como aquele em que Raimundo Irineu Serra - conhecido entre os seus

    como Mestre Irineu - fundou o Santo Daime. Fernandes afirma mais

    precisamente que o primeiro trabalho haveria ocorrido na casa de Irineu no

    bairro de Vila Ivonete, em Rio Branco, em vinte e seis de maio de 1930. 52

    Raimundo Irineu Serra era um negro maranhense do municpio de So

    Vicente Ferrer localizado cerca de 280 quilmetros de So Luis, onde nasceu

    em 1892. Bem jovem migrou para Xapuri, no Acre, acompanhando o grande

    fluxo migratrio do perodo em busca das oportunidades oferecidas pela

    explorao da borracha. Estabelecer com preciso o ano em que Irineu deixouo Maranho, assim como o roteiro que perfez difcil. Os pesquisadores

    apresentam informaes diferentes; ora a deciso de partir se deu aos onze,

    ora aos quinze, ora aos vinte anos. 53 Afirma-se que Irineu passou um tempo

    em So Luis antes de se dirigir ao Acre, assim como tambm que ele esteve

    por um perodo em Belm, para s ento ir a Manaus, alguns afirmando que ali

    ele passou um tempo maior. De toda forma corrente a informao de haver

    demorado anos o percurso que o levou ao Acre. 54 Em Xapuri viveu dois anos,

    continuando seu trabalho posteriormente nos seringais de Brasilia por trsanos e outro tanto em Sena Madureira. Por esta poca foi funcionrio da

    Comisso de Limites, que trabalhava na delimitao da fronteira do Acre com a

    Bolvia e o Peru. 55

    Seringueiro por vrios anos, consta que Mestre Irineu teve contato com a

    ayahuasca pela primeira vez com Antonio Costa, e junto com seu irmo, Andr

    Costa conterrneos e tambm negros viveu o perodo inicial do encontro

    com a bebida prximo fronteira com a Bolvia.

    52 Cf. Vera Fres FERNANDES, Histria do povo Juramidam, p. 27.53 Cf. Sandra Lucia GOULART, Contrastes e continuidades em uma tradio amaznica, p.31.54 Cf. Ibid., p. 32.55 Cf. Edward MACRAE, Guiado pela lua, p. 61-62.

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    pequenas cidades amaznicas e depois s maiores, em busca de melhores

    condies de vida. So eles a maioria dos primeiros daimistas. 62

    Cada vez mais conhecido como um respeitado curador, lentamente vai

    crescendo o prestgio de Mestre Irineu para alm dos limites de seu bairro e

    comunidade, at chamar a ateno das autoridades. Sua amizade com

    polticos influentes em Rio Branco acabou sendo til quando pressionada pelo

    avano da pecuria a pequena comunidade daimista foi forada a se mudar do

    bairro onde vivia. Nesta poca, 1945, com a ajuda do ento senador Guiomar

    dos Santos63, obteve terras em uma rea mais perifrica chamada Colnia

    Custdio Freire. Este seria o local onde a comunidade daimista pde se

    estruturar e que viria a ser conhecido como Alto Santo. Ergue-se ali a primeira

    igreja do culto do Santo Daime (...) posteriormente registrado como CICLU

    (Centro de Iluminao Crist Luz Universal), 64 onde foi construda uma igreja

    com uma grande cruz de Caravaca. poca, ... em certos dias, at seiscentas

    pessoas vinham participar dos rituais. 65

    1.2.2 - O encontro com o Padrinho Sebastio

    Sebastio Mota de Melo, aquele que viria a ser conhecido mais tarde

    como Padrinho Sebastio, cruzou sua trajetria com a do Mestre Irineu quando

    este j era conhecido como curador e dirigia os trabalhos com o seu grupo

    pioneiro de daimistas. Foi ao encontro dele, em busca da cura de um mal do

    fgado que o afligia h tempos.

    Quando bateu s portas do Mestre Irineu, movido por uma doena que o

    fizera peregrinar por centros espritas, macumbeiros e curadores de variadas

    estirpes, Sebastio j vinha de uma longa trajetria de atendimento kardecista.

    Nascido em Eurinep, no estado do Amazonas, no seringal Adlia,

    incrustado no vale do rio Juru, desde menino Sebastio foi assaltado pelo

    62 Cf. Sandra Lucia GOULART, O contexto do surgimento do culto do Santo Daime, In: BeatrizCaiuby LABATE; Wladimyr Sena ARAUJO (orgs.), O uso ritual da ayahuasca, p. 281.63 Cf. Ibid., p. 284. Edward MACRAE, Guiado pela lua, p. 66 afirma ser um governador.64 Sandra Lucia GOULART, Razes culturais do Santo Daime, p. 14.65 Edward MACRAE, Guiado pela lua, p. 66.

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    o negcio dentro de mim subindo at a garganta e voltava para trs.Durava de quatro da tarde at as oito da noite. Todo dia era essesofrimento. Tinha dia de eu encher um penico: era uma baba horrvel.Ainda fui me valer de uma macumbeira pra ver se ela atinava com ofeitio. Mas, quando me viu, ela que quis se valer de mim, que estavapra morrer, e pediu ajuda, e no outro dia ela morreu. Foi a que algumme disse: Vai no Mestre Irineu. Eu pensei um pouco e disse: mesmo, vou j pro Mestre Irineu. (...)

    - Depois que me deram a idia de ir at l, voltei para casa, nooutro dia me arrumei e fui. Tinha um servio de concentrao. Chegueil falando com ele que me encontrava neste estado, doente edesenganado. Ele olhou para mim e me perguntou se eu era homem.Eu respondi para ele que no sabia. Ou melhor, que em certosmomentos eu era homem, mas sobre aquele trabalho ali, que eu noconhecia, eu no ia dizer que era, porque no sabia, no ? Eu sei queeu sou assim, desse jeito disse para ele -, mas no sei se souhomem, homem mesmo, porque isso no qualquer p-rapado, no. Eele me disse: Se voc for homem, entre na fila, tome o Daime e depoisvenha me dizer alguma coisa. Tudo bem. Fui. Tomei o Daime, fui l

    para o meu cantinho e sentei. Passou um tempo e comeou aquelenegcio, e eu j fui criando medo, me levantei e sai bem devagarinho,porque era uma concentrao e estava todo mundo concentrado. Eu saandando na pontinha do p, quando chego bem perto de onde a gentetoma o Daime, o Daime me deu um assopro assim que eu achei tofedorento Voltei para trs! Quando vou chegando no banco para mesentar, uma voz falou: O homem perguntou se voc era homem e vocat agora s fez foi gemer! Bem, a o corpo velho foi abaixo. Ficou lno cho. E eu, j fora do corpo, fiquei olhando para aquele bagulhovelho estendido, que era eu. De repente se apresentam dois homensque eram as duas coisas mais lindas que eu j vi na minha vida.Resplandeciam que nem fogo. A eles pegaram e sacaram o meuesqueleto todinho de dentro daquela carne toda, sem machucar nada. E

    vibravam tudo de um lado para o outro. E eu do lado de c olhando tudoque eles faziam. Tiraram tudo que era rgo, um deles ficou segurandoo intestino com as mos. Pegaram uma espcie de gancho, abriram,partiram e tiraram trs insetos do tamanho de uma unha, que era o queeu sentia andar para cima e para baixo. A um deles veio bem pertinhode mim, que estava sentado assim do lado do corpo que continuavaestendido no cho, e disse: Est aqui. Quem estava te matando eramesses trs bichos, mas desses voc no morre mais. A eles fecharame pronto! Voc v algum remendo? No tem. Graas a Deus, fiqueibonzinho, igual a menino.

    - J no dia seguinte estava bom?

    - Estava bonzinho.

    - Foi a primeira vez que o senhor tomou Daime?

    - Foi. A primeira vez. E a, meus f ilhos, desembolou. E desemboleimesmo a ter conhecimento das coisas e fui indo...At que hoje eu tenhoo conhecimento. No falo toa. 68

    68 Alex POLARI, O guia da floresta, p.84-85.

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    Chama a ateno que, vindo o Padrinho Sebastio de uma prtica

    kardecista, tenha procurado sua cura em outra linha. O relato de sua operao

    espiritual muito prximo da tradio vegetalista, onde o ataque espiritual

    muitas vezes realizado pela insero de objetos mgicos, ou insetos, naquele

    que se quer atingir. Esse trnsito, por sua vez, talvez possa ser compreendidopela mobilidade de fiis que Cndido Procpio identificava, em funo do

    entendimento da experincia medinica, entre os vrios formatos encontrados

    no que denomina de gradiente esprita-umbandista69. Ou seja, no campo

    esprita, os fiis sentem-se vontade para transitar entre diversas modalidades

    entendidas como pertencentes uma identidade religiosa maior.

    Provavelmente as prticas curandeiras de Mestre Irineu e o Santo Daime a ele

    associado, eram sentidas como pertencentes a este gradiente.

    Consta, entre o Padrinho Sebastio e o Mestre Irineu, uma relao

    respeitosa e de confiana. O fato de morar longe e de reunir um povo

    numeroso levou o Mestre Irineu a autorizar o Padrinho Sebastio a produzir

    daime na Colnia Cinco Mil. 70 O acordo era o de destinar metade da produo

    ao Alto Santo, cumprido at o falecimento do Mestre Irineu.

    1.2.3 - Rompimento com o Alto Santo

    Mestre Irineu em vida exercia uma liderana carismtica71, conseguindo

    agregar sem defeces o j grande contingente daimista. Comando inconteste,

    muito admirado como curador, Raimundo Irineu Serra faleceu na manh de 06

    de julho de 1971. Deixou como sucessor Lencio Gomes, um de seus

    primeiros discpulos, com cuja neta, Peregrina Gomes, Mestre Irineu veio a se

    69 Cf. Cndido Procpio Ferreira de CAMARGO, Catlicos, protestantes, espritas, p. 166.70 Outros discpulos do Mestre Irineu tambm receberam esta autorizao.71 Carisma aqui designa atributos do indivduo capazes de atrair a simpatia do grupo,

    outorgando a ele sua liderana, s vezes proveniente da identificao nele de poderessobrenaturais; ou mesmo do dom extraordinrio e divino concedido a ele para o bem de umacomunidade. Goulart, em Contrastes e continuidades em uma tradio amaznica, realiza umaanlise sobre liderana carismtica a partir deWeber, Economia e sociedade: fundamentos dasociologia compreensiva, identificando nos lderes do Santo Daime muitos dos atributosrelacionados pelo autor, como o carisma hereditrio, a rotinizao do carisma, entre outros. Oenfoque de Goulart privilegia o papel da liderana carismtica nas cises que se desenvolvemneste campo. Esta mesma lgica, no entanto, pelo plo contrrio, chama a nossa ateno: ela responsvel pela manuteno da coeso do grupo enquanto perdura a presena carismticado lder. Para uma viso mais panormica de carisma e liderana carismtica ver Goulart,Contrastes e continuidades em uma tradio amaznica, p. 83-85; 149; 162-164; 263.

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    casar na dcada de cinqenta. Peregrina foi a ltima esposa de Irineu e ainda

    hoje dirige uma igreja no Alto Santo que se considera herdeira direta dos

    ensinamentos do Mestre.

    Desde o incio de seus trabalhos em Rio Branco at o dia de seu

    falecimento Mestre Irineu veio elaborando progressivamente sua prtica ritual e

    incorporando novos elementos ao corpus doutrinrio da embrionria religio.

    Sua morte veio abrir em meio ao contingente daimista defeces, diferenas e

    disputas crescentemente acirradas.

    O mais importante dos rompimentos72 foi aquele liderado por Sebastio

    Mota de Melo. Em uma das verses, o motivo foi o questionamento pelo

    sucessor de Mestre Irineu, Lencio Gomes73, da permisso de produzir o

    daime. Muitos foram os motivos que resultaram na deteriorao da relao de

    Sebastio com o novo comando do Alto Santo. Uma verso aponta o

    rompimento como decorrncia da solicitao deste ltimo em levantar a

    bandeira nacional junto igreja, em um momento de grande perseguio

    policial, com o intuito de demonstrar s autoridades o apego ordem por parte

    do Santo Daime. A instruo74 viera com o hino Levanto essa bandeira. 75

    Outras verses interpretam esta proposta de hasteamento da bandeira

    como significando uma iniciativa de afirmao de liderana e independncia da

    parte de Sebastio. 76 Lencio Gomes no concordou com a idia, dizendoque se ele queria introduzir modificaes no ritual que fosse levantar bandeira

    em sua prpria casa 77. Transcorria o ano de 1974. 78 Nesta ocasio, Padrinho

    Sebastio retirou-se acompanhado de sua numerosa famlia e de significativa

    parcela dos adeptos do Alto Santo.

    72 Do ponto de vista da formao do Cefluris, e da expanso do Santo Daime atravs dele, apartir da qual adquire o perfil de fenmeno religioso com dimenses nacionais, quando passou

    a ser conhecido em todo o Brasil e mesmo em muitos outros pases.73 Cf. Edward MACRAE, Guiado pela lua, p 72.74 Instruo o termo no universo daimista que designa uma mensagem ou conselho domundo superior, do astral, muitas vezes expresso nos hinos recebidos.75 Sebastio Mota de MELO, O justiceiro, hino n 89, Levanto esta bandeira, Cu do Mapi,Pauini, AM, 235 p.76 Cf. Sandra Lucia GOULART, Contrastes e continuidades em uma tradio amaznica, p. 82-83; Lucio MORTIMER, Bena Padrinho, p. 87-89.77 Edward MACRAE, O guia da floresta, p. 72.78 Cf. Edward MACRAE, O guia da floresta, p. 71; Sandra GOULART, Razes culturais doSanto Daime, p. 15.

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    1.2.4 - A continuidade do Alto Santo

    Depois do falecimento de Lencio Gomes, em 1980, substituiu-o na

    presidncia do CICLU Francisco Fernandez Filho, conhecido como Teteu. Um

    desentendimento com a viva do Mestre Irineu, dona Peregrina, apenas cinco

    meses aps a posse, culminou com sua expulso. Possuindo, junto com o

    ento secretrio do CICLU, que o acompanhou, direitos legais sobre a

    instituio que presidia, Teteu proclamou a desativao da organizao,

    fundando uma nova igreja prxima antiga. 79

    Na sede fundada por Mestre Irineu, Peregrina Gomes Serra continua

    comandando os trabalhos, como viva e, p