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TNIA BITTENCOURT BLOOMFIELD

O CARRO COMO UM LUGAR: PERSPECTIVAS DE TERRITORIALIDADES E REPRESENTAES NA CIDADE DE CURITIBA.

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia, curso de Mestrado, Setor de Cincias da Terra da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Geografia. Orientao: Profa. Dra. Salete Kozel Teixeira.

CURITIBA 2007

TERMO DE APROVAO

TNIA BITTENCOURT BLOOMFIELD

O CARRO COMO UM LUGAR: PERSPECTIVAS DE TERRITORIALIDADES E REPRESENTAES NA CIDADE DE CURITIBA.

Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Curso de Ps-graduao em Geografia, do Setor de Cincias da Terra da Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:

Orientadora:

Professora Doutora Salete Kozel Teixeira (UFPR - Presidente da Banca)

Professor Doutor lvaro Luiz Heidrich (UFRGS)

Professor Doutor Wolf-Dietrich Sahr (UFPR)

Professor Doutor Sylvio Fausto Gil Filho (UFPR- suplente)

Curitiba, 30 de maro de 2007.

AGRADECIMENTOS querida professora Salete Kozel Teixeira, orientadora desta dissertao, por ter me acolhido de forma to calorosa no curso de Ps-graduao em Geografia da UFPR e ter depositado tanta confiana em um desvio da curva-padro. professora Iria Zanoni Gomes e colega Giselle Marquette Nicaretta, sem as quais eu no teria percebido a pertinncia de uma abordagem geogrfica ao objeto desta pesquisa. Obrigada pelo grande carinho e constantes incentivos. minha empenhada amiga Mrcia Maria Fernandes de Oliveira, a quem muito devo, por toda a gentileza, amizade e dedicao que me dispensou. Aos professores do Departamento de Geografia da UFPR, pela excelente formao que me proporcionaram: Dra. Salete Kozel Teixeira, Dr. Sylvio Fausto Gil Filho, Dra. Olga Lcia C. F. Firkowski, Dr. Wolf-Dietrich Sahr, Dr. Francisco de Assis Mendona. Aos colegas do curso de Ps-graduao em Geografia da UFPR, especialmente, aos meus diletos e pacientes amigos: Denis Carloto, Letcia Bartoszeck Nitsche, Marcelo Lus Rakssa, Marino Godoy e Pablo Rodigheri Melek. Ao Luiz Carlos Zem, que faz jus ao seu sobrenome. Aos entrevistados desta pesquisa, por terem compartilhado comigo alguns fragmentos de seus mundos vividos. Ao Mrcio Polli, por todo o interesse demonstrado e pela grande ajuda que deu pesquisa. Raquel e ao Svio Bloomfield, pela compreenso das horas roubadas de convvio. Por tanta pacincia, interesse e ajuda, tambm mereceriam ttulos de mestres em Geografia. Snia Bloomfield, pelo grande interesse que sempre demonstrou por mim e pela pesquisa, pela inspirao intelectual e pelo exemplo de coerncia com seus ideais. Ao Lus Carlos dos Santos, por toda a generosidade e inteligentes reflexes que compartilhou comigo, ao longo do curso de Mestrado. Ao Departamento de Artes da UFPR - seus professores, funcionrios e alunos - por terem me dado apoio e incentivo s tarefas atinentes ao curso de Mestrado. Uma meno especial faz-se necessria, aqui, s professoras e amigas incondicionais de tantos anos, Dulce Osinski e Marlia Diaz. s minhas grandes e eternas amigas, Deise Marin, Didonet Thomaz, Giovana Terezinha Simo, Olga Nenev, Regiana Miranda e Suzana Mehl Guimares, por sempre torcerem por mim. s professoras e amigas Ana Maria P. Liblik, Luciana Martha Silveira e Maria Ins Hamann Peixoto, pela grande generosidade e confiana que depositaram neste trabalho.

A SUPOSTA EXISTNCIA Como o lugar quando ningum passa por ele? Existem as coisas sem serem vistas? O interior do apartamento desabitado, a pina esquecida na gaveta, os eucaliptos noite no caminho trs vezes deserto, a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de sepultados, ns, sozinhos no quarto sem espelho? Que fazem, quem so as coisas no testadas como coisas, minerais no descobertos - e algum dia o sero? Estrela no pensada, palavra rascunhada no papel que nunca ningum leu? Existe, existe o mundo apenas pelo olhar que o cria e lhe confere espacialidade? Concretude das coisas: falcia de olho enganador, ouvido falso, mo que brinca de pegar o no e pegando-o concede-lhe a iluso de forma e, iluso maior, a de sentido? Ou tudo vige planturosamente, revelia de nossa judicial inquirio e esta apenas existe consentida pelos elementos inquiridos? Ser tudo talvez hipermercado de possveis e impossveis possibilssimos que geram minha fantasia de conscincia enquanto exercito a mentira de passear mas passeado sou pelo passeio, que o sumo real, a divertir-se com esta bruma-sonho de sentir-me

e fruir peripcias de passagem? Eis se delineia espantosa batalha entre o ser inventado e o mundo inventor. Sou fico rebelada contra a mente universa e tento construir-me de novo a cada instante, a cada clica, na faina de traar meu incio s meu e distender um arco de vontade para cobrir todo o depsito de circunstantes coisas soberanas. A guerra sem merc, indefinida prossegue, feita de negao, armas de dvida, tticas a se voltarem contra mim, teima interrogante de saber se existe o inimigo, se existimos ou somos todos uma hiptese de luta ao sol do dia curto em que lutamos. (ANDRADE, 2002, p. 21-23)

RESUMO A presente pesquisa qualitativa, inserida no mbito da Geografia Cultural, teve o objetivo de mapear as motivaes e perceber as relaes que existem entre as vises de mundo, os contextos domsticos e profissionais, que levaram alguns dos proprietrios de carros que circulam em Curitiba, a escolherem combinaes de letras e nmeros em suas placas, de modo a veicularem mensagens. Para dar conta da pesquisa de campo, foi utilizado um cruzamento entre diferentes aportes terico-metodolgicos: a Teoria das Representaes Sociais, a Etnometodologia, a Fenomenologia e o conceito de Cultura Transversal de massa. Os conceitos de lugar e territrio concorreram como categorias analticas, a partir da sistematizao e descobertas da anlise das entrevistas, realizadas com trinta proprietrios de veculos de Curitiba, cujas placas de carro foram escolhidas. As placas escolhidas dos carros foram os elementos que permitiram ampliar o entendimento sobre a constituio do carro como um lugar e sobre as territorialidades envolvidas nas prticas que se do, especialmente, nas ruas de Curitiba. Palavras-chave: Geografia Cultural, placas escolhidas de carro, lugar e territorialidades.

ABSTRACT This work translates the results of a qualitative research which employed the theoretical tennets of Cultural Geography. One of its research goals was to map the motivations of 30 car owners, in the city of Curitiba, who vehiculated personal messages on their car plates through the combinations of letters and algarisms. The plates were chosen for this research as elements which allowed the researcher to Understand the construction of the object Car as a "place", and of the related territorialities developed by them on the streets of Curitiba. After such a phenomenon was mapped, it became imperative to search for, to analyze, and to understand the interrelationships between the car owners' worldviews and their professional and personal backgrounds. The data collected and generated during the fieldwork stage, in which the above mentioned cars' owners were interviewed, led to the use of diverse theoretical approaches, such as the Social Representation Theory, Ethnometodoly, Phenomenology, and also the concept of Traverse Mass Culture. For the analysis of the results, the concepts of "place" and "territory" were employed as the necessary tools to systematize, understand, and present the data obtained under the guidance of the discipline of Cultural Geography. Key-words: Cultural Geography, choice of car plates, place and territorialities.

LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 PLACAS DE CARROS, FOTOGRAFADAS EM CURITIBA E ANTONINAPR, EM JULHO DE 2005..........................................................................................................118 FIGURA 2 PESQUISA REALIZADA COM CIDADOS DE CURITIBA, PELA PARAN PESQUISAS...............................................................................................................................146 FIGURA 3 PESQUISA REALIZADA COM MOTORISTAS E PEDESTRES DE CURITIBA E DE OUTRAS CIDADES BRASILEIRAS, PELA ASSOCIAO BRASILEIRA DE MONITORAMENTO E CONTROLE ELETRNICO DE TRNSITO................................................................................................................................148 FIGURA 4 PEAS PUBLICITRIAS DA CAMPANHA QUALIDADE DE VIDA COMEA NA RUA, DA PREFEITURA DE CURITIBA......................................................150 FIGURA 5 ADESIVOS DE ADVERTNCIA A OUTROS MOTORISTAS, COLADOS EM CARROS DE CURITIBA. MANTENHA DISTNCIA. EU FREIO PARA ANIMAIS. QUER CORRER? V AO PARQUE!...................................................................................151 FIGURA 6 ADESIVOS DE ADVERTNCIA A OUTROS MOTORISTAS, COLADOS EM CARROS DE CURITIBA. JESUS TE AMA! MAS EU TE ACHO UM BABACA!................................................................................................................................152 FIGURA 7 ADESIVOS DE SOLICITAO E DE ADVERTNCIA EM MOTOCICLETAS, D ESPAO AO MOTOQUEIRO. QUEM LUCRA VOC. MAIS RESPEITO, MENOS VIOLNCIA.........................................................................................153 FIGURA 8 PLACA DE ADVERTNCIA AOS MOTORISTAS E PROPAGANDA DA AGNCIA DE PUBLICIDADE EXCLAM!, BAIRRO BOM RETIRO, CURITIBA.................................................................................................................................155 FIGURA 9 PLACA DO CARRO DA ENTREVISTADA AH..............................................163 FIGURA 10 PLACA DO CARRO DA ENTREVISTADA RM...........................................164 FIGURA 11 PLACA DO CARRO DA ENTREVISTADA CH............................................169 FIGURA 12 O CARRO: ESPAO VIVIDO PELOS SEUS MOTORISTAS......................170 FIGURA 13 PLACA DO CARRO DA ENTREVISTADA SC.............................................186 FIGURA 14 PLACA DO CARRO DA ENTREVISTADA MD...........................................193 FIGURA 15 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS CL, FF e JC...................217 FIGURA 16 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS AH, DO e CG...............217 FIGURA 17 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS MZ, CH e RC.............. .217 FIGURA 18 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS MM, PI e RG................217 FIGURA 19 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS RM, MJ e SC................218 FIGURA 20 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS JB, VC e BR.................218 FIGURA 21 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS WK, WN e SG..............218 FIGURA 22 PLACAS DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS AB, FP e MD................218 FIGURA 23 PROCESSO DE IMPRESSO EM RELEVO SEM TINTA, DA PLACA DE CARRO DE RM, A PRIMEIRA ENTREVISTADA DESTA PESQUISA..............................219 FIGURA 24 PROCESSO DE IMPRESSO DA GRAVURA DA PLACA ART-7464, PERTENCENTE A RM DETALHE.......................................................................................219 LISTA DE MAPAS MAPA 1 LOCALIZAO DA CIDADE DE CURITIBA-PR.............................................105 MAPA 2 SISTEMA TRINRIO DE CURITIBA..................................................................115 MAPA 3 SRIE DE PLACAS DE CARROS, POR ESTADO DO BRASIL.......................122 MAPA 4 LOCALIZAO DAS RESIDNCIAS DOS ENTREVISTADOS, POR BAIRRO DE CURITIBA...........................................................................................................................133 MAPA 5 VILA DAS TORRES: LUGAR TOPOFBICO, SEGUNDO OS ENTREVISTADOS...................................................................................................................190

LISTA DE QUADROS QUADRO 1 ONTOLOGIA......................................................................................................19 QUADRO 2 EPISTEMOLOGIA.............................................................................................20 QUADRO 3 PRESSUPOSTOS DAS PESQUISAS EM GEOGRAFIA.................................21 QUADRO 4 DIFERENAS ENTRE A GEOGRAFIA COMPORTAMENTAL E A HUMANISTA..............................................................................................................................67 QUADRO 5 CONHECIMENTO CIENTFICO X CONHECIMENTO DO SENSO COMUM.......................................................................................................................................75 QUADRO 6 REDUO FENOMENOLGICA HUSSERLIANA.......................................98 QUADRO 7 CARACTERSTICAS DE CURITIBA.............................................................104 QUADRO 8 SIGNIFICADO DAS PLACAS ESCOLHIDAS, REPRESENTAES E NOES DE MEMBRO RELACIONADOS AOS CARROS.................................................136 QUADRO 9 O QUE OS MOTORISTAS FAZEM EM SEUS CARROS, QUANDO NINGUM EST OLHANDO.................................................................................................171 QUADRO 10 CRESCIMENTO DA FROTA DE VECULOS/ANO, NO BRASIL......................................................................................................................................182 QUADRO 11 CAUSAS DE ACIDENTES DE TRNSITO NO BRASIL...........................183 QUADRO 12 ACIDENTES DE TRNSITO EM CURITIBA 2000 A 2005....................185

LISTA DE TABELAS TABELA 1 MODERNIDADE FORDISTA X PS-MODERNIDADE FLEXVEL.............39 TABELA 2 EVOLUO DA FROTA DE VECULOS, EM CURITIBA, DE 2000 a 2006............................................................................................................................................119 TABELA 3 ESTADOS BRASILEIROS LIGADOS AO RENAVAM E RESPECTIVAS SRIES DE PLACAS................................................................................................................121 TABELA 4 IDENTIFICAO DOS ENTREVISTADOS E RESPECTIVAS PLACAS DE CARRO......................................................................................................................................128 TABELA 5 TIPO/MARCA DOS CARROS DOS ENTREVISTADOS E SEUS VALORES APROXIMADOS NO MERCADO NACIONAL.....................................................................129 TABELA 6 SEGUNDO O SEXO DOS ENTREVISTADOS................................................130 TABELA 7 SEGUNDO A PROFISSO DOS ENTREVISTADOS....................................130 TABELA 8 SEGUNDO A FORMAO ACADMICA DOS ENTREVISTADOS..........131 TABELA 9 SEGUNDO A IDADE DOS ENTREVISTADOS..............................................131 TABELA 10 SEGUNDO A NATURALIDADE DOS ENTREVISTADOS........................132 TABELA 11 SEGUNDO O BAIRRO DE RESIDNCIA DOS ENTREVISTADOS EM CURITIBA.................................................................................................................................132 TABELA 12 SEGUNDO O ESTADO CIVIL DOS ENTREVISTADOS.............................134 TABELA 13 SEGUNDO O PERTENCIMENTO A UM GRUPO DO UNIVERSO DA PESQUISA.................................................................................................................................134 TABELA 14 SEGUNDO A DATA DA ENTREVISTA.......................................................135 TABELA 15 UNIVERSO DE ENTREVISTADOS AB a JC................................................220 TABELA 16 UNIVERSO DE ENTREVISTADOS JM a RM..............................................221 TABELA 17 UNIVERSO DE ENTREVISTADOS SC a WN..............................................222

SUMRIO 1 INTRODUO..........................................................................................................11 2 O INVISVEL, NA VISIBILIDADE: OS ESPAOS EXISTEM EM NS OU NOS INSERIMOS NELES?.........................................................................................16 A VISIBILIDADE DO PENSAMENTO: O MUNDO TEM UM NOVO PARADIGMA?...............................................................................................................23 3 A CULTURA E AS REPRESENTAES, COMO VIAS DE INTERPRETAO PARA A GEOGRAFIA CULTURAL.....................................54 4 ALGUMAS MANEIRAS DE SE REVELAR O INVISVEL ..............................84 4.1 AS REPRESENTAES SOCIAIS, A ETNOMETODOLOGIA, A FENOMENOLOGIA E O CONCEITO DE CULTURA TRANSVERSAL: UM ESFORO PARA SE COMPREENDER.......................................................................91 4.1.1 A Teoria das Representaes Sociais.....................................................................91 4.1.2 A Etnometodologia.................................................................................................94 4.1.3 A Fenomenologia...................................................................................................96 4.1.4 O conceito de Cultura Transversal......................................................................100 4.2 CARACTERIZAO DO UNIVERSO DA PESQUISA......................................103 4.2.1 Curitiba: espao dos carros e de seus motoristas..................................................106 4.2.2 Uma maneira inusitada de tornar visvel o invisvel: a placa de carro.................117 5 A EVANESCNCIA DAS TERRITORIALIDADES E DOS LUGARES, QUANDO SE EST DENTRO DE UM CARRO....................................................141 5.1 O CARRO COMO UM LUGAR............................................................................157 5.2 TERRITRIO E TERRITORIALIDADES A BORDO DE UM CARRO.............175 CONSIDERAES FINAIS......................................................................................199 REFERNCIAS...........................................................................................................203 APNDICE..................................................................................................................212 ANEXO.........................................................................................................................223

SINOPSE DA PESQUISA O CARRO COMO UM LUGAR: PERSPECTIVAS DE TERRITORIALIDADES E REPRESENTAES NA CIDADE DE CURITIBA.2 O INVISVEL, NA VISIBILIDADE: OS ESPAOS EXISTEM EM NS OU NOS INSERIMOS NELES? Debate: paradigma moderno ou ps-moderno?

1 INTRODUO GNESE E TRAJETRIA DA PESQUISA: a placa de carro como manifestao simblica em Curitiba

3 A CULTURA E AS REPRESENTAES, COMO VIAS DE INTERPRETAO PARA A GEOGRAFIA CULTURAL

Fenomenologia 4 ALGUMAS MANEIRAS DE SE REVELAR O INVISVEL

Teoria das Representaes Sociais

conceito de Cultura Transversal

caracterizao do universo da pesquisa.

Etnometodologia

Procedimentos metodolgicos: entrevistas estruturadas e abertas; registro visual e impresso de gravuras das placas dos carros

o carro como um lugar.

5 A EVANESCNCIA TERRITORIALIDADES E LUGARES, QUANDO SE DENTRO DE UM CARRO

DAS DOS EST

territrio e territorialidades a bordo de um carro.

CONSIDERAES FINAIS

11 1 INTRODUO A geografia est em toda parte. Este o ttulo de um texto de Denis Cosgrove (1998), que aborda a cultura e o simbolismo nas paisagens humanas. Mesmo antes de, conscientemente, compreender a amplitude desse raciocnio, eu j estava incursionando pelos meandros de uma investigao geogrfica, sobre o tema que d ttulo a este trabalho. Em 1994, dirigindo o meu carro pela rua Jos de Alencar, em Curitiba, prximo ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba IPPUC, eu avistei um veculo, um Volkswagen Braslia, cuja placa era BEN-0666. A viso desse carro, no seria diferente de tantos outros carros que j havia visto transitando pela cidade, a no ser pela leitura que fiz da combinao das letras e nmeros em sua placa, no momento em que o vi. O nmero 666 conhecido pela simbologia que carrega. Trata-se do nmero que identificar a besta, no fim dos tempos, registrado no Livro do Apocalipse 13: 17-18, do Novo Testamento da Bblia. A fontica, gerada pelas letras BEN, semelhante palavra pronunciada em hebraico que designa filho de. O sentido implicado nessa inusitada combinao de letras e nmeros, a princpio, causou em mim um estranhamento e uma atitude de afastamento do carro em questo. Em seguida, suscitou a curiosidade de saber se aquela combinao era fruto de uma configurao randmica, ou se havia intencionalidade na escolha das letras e dos nmeros. Sendo uma coincidncia ou no, havendo uma inteno de enviar alguma mensagem ou no, isto no foi to relevante, quanto o fato de ter me despertado para uma prtica sociocultural no espao urbano, para a qual comecei a prestar a ateno, desde aquele momento. A ttulo de esclarecimento, eu no abordei o proprietrio daquele carro, para saber mais sobre aquela placa. A partir desse episdio, passei a observar as letras e os nmeros nas placas de carros, de uma outra forma. Como sou artista plstica, decidi usar essa percepo como mote para um trabalho de Artes Visuais. Em um primeiro momento, pensei em registrar fotograficamente as placas, cuja combinao de letras e nmeros, apresentassem um nexo para mim. Achei essa soluo pouco significativa. Passei, ento, a executar uma outra: abordar os proprietrios dos carros e retirar a impresso em relevo das placas, obtendo, assim, uma gravura. Para tanto, eu criei um documento de autorizao para que os proprietrios, no s me autorizassem a tocar nos carros, mas tambm

12 permitissem que eu veiculasse a imagem das gravuras, em diversas mdias (APNDICE 1). Isto acabou gerando uma exposio de artes plsticas, na Sala Arte & Design da Universidade Federal do Paran, UFPR, em 2002 (ANEXO 1). A partir desse trabalho, eu percebi que, mais do que obter um produto plstico, a possibilidade de estabelecer um dilogo com os proprietrios dos carros, se configurou como a parte mais interessante do projeto. Primeiramente, porque eu corroborei as hipteses de que, nos carros abordados, havia algum tipo de mensagem. Em segundo lugar, porque o universo por trs das escolhas desses indivduos era extremamente rico e interessante. Isto despertou em mim, a vontade de explorar o assunto, por meio de uma abordagem cientfica. Ento, pensei em algumas reas do conhecimento que poderiam servir para a investigao, tais como a Antropologia, a Histria, a Psicologia, a Sociologia, a Comunicao. A compreenso de que uma abordagem geogrfica seria mais do que apropriada, s veio aps eu ter cursado a disciplina Epistemologia da Complexidade como aluna ouvinte, no Mestrado da Geografia da UFPR, em 2004, graas sugesto de Giselle Nicaretta, colega de turma, e da professora Iria Zanoni Gomes. A elaborao do presente trabalho teve como objetivo inicial o levantamento das motivaes e a compreenso das relaes que existem entre as vises de mundo, os contextos domsticos e profissionais, que levaram alguns dos proprietrios de carros que circulam em Curitiba, a escolherem combinaes de letras e nmeros que esto em suas placas. A princpio, algumas questes foram levantadas sobre esse tema: por que veicular mensagens pela cidade, usando para isso placas de carro? A quem se destinam essas mensagens? Qual o perfil sociocultural desses indivduos? Existe alguma relao entre o background, classe social, grau de escolaridade, atividades profissionais, locais de residncia ou de trabalho, e o fato desses indivduos veicularem mensagens em suas placas de carro? H influncia dos que veiculam mensagens em placas de carros, sobre outros proprietrios de veculos, fazendo com que estes tambm adotem aquele comportamento? Como os proprietrios desses veculos percebem o contexto em que esto inseridos, enquanto dirigem? O que significam, para eles, seus carros? Essa pesquisa est filiada linha de Territrio, Cultura e Representao, do Programa de Ps-Graduao em Geografia, da UFPR. Logo de incio, detectei a necessidade de usar um referencial terico-metodolgico que apresentasse uma articulao entre diferentes reas do conhecimento. Com nfase na perspectiva da

13 Geografia Cultural, a pesquisa necessitou de aporte da Histria, da Sociologia, mas em dilogo metodolgico com a Fenomenologia, a Psicologia Social e a Etnometodologia. Os captulos dois e trs cumpriram a satisfao da necessidade de compreender o debate contemporneo, acerca dos atuais paradigmas cientficos e filosficos que norteiam as Cincias Humanas, de modo a me situar frente aos complexos pontos de vista que vagueiam entre ns e melhor enquadrar o objeto da pesquisa. Obviamente, houve a eleio de alguns autores, que no meu entender trouxeram uma grande contribuio, com argumentaes transdisciplinares sobre temas como a oposio entre Modernidade e Ps-Modernidade, a dialtica entre sociedade e indivduos, a relao entre as dimenses espao e tempo no conhecimento geogrfico, a globalizao, a mundializao da cultura, a relevncia dos Estudos Culturais, hoje em vrios campos cientficos, como a chave para o entendimento dos problemas da atualidade. A dcada de 1960 foi decisiva e marcante para uma reviso dos paradigmas que orientavam, at ento, as cincias de modo geral. A partir dessa poca, ainda que de forma no to extensa, ganharam relevo os Estudos Culturais. Nessa perspectiva, a abordagem fenomenolgica-hermenutica passou a figurar como a base necessria para dar conta de problemas de pesquisa, em que os indivduos, suas prticas e inter-relaes foram entendidos como os elementos que constroem a realidade social. Dentro desse quadro, as Cincias Sociais tm deixado documentados conflitos e debates tericos, entre perspectivas positivistas, marxistas e fenomenolgicas. Ora esto em foco abordagens de carter objetivistas x subjetivistas, ora materialistas x idealistas, ora explicaes totalizantes x singularizadoras. A Geografia, como campo de conhecimento, no escapou desses embates. Hoje, se revela de extrema pertinncia, o entendimento de que o espao a dimenso reveladora das prticas e das relaes sociais - no tanto o tempo, configurando-se uma certa averso ao historicismo. H tambm a percepo de que a cultura - ou culturas - so os lugares de onde tudo sai e para onde tudo conflui, desde os elementos materiais at os aspectos simblicos e as representaes sociais. Ainda que autores marxistas continuem defendendo a ascendncia do determinismo econmico nas relaes sociais, suas abordagens comeam a se flexibilizar. Para esses autores, certo que a cultura no mais do que um produto das determinaes econmicas, ou a sua face mais bem acabada, e que sobre ela que se deve deter a ateno, para que se desvende a intrincada e obscura lgica que governa o mundo. De qualquer maneira, mesmo para autores marxistas mais ortodoxos, parece

14 estar claro que a pesquisa sobre as questes culturais no pode ser subestimada. Por mais que o capitalismo exera um jugo sobre os indivduos e sobre as culturas, estes parecem ter estratgias prontas para se desvencilharem, subverterem e resistirem s opresses e aos cerceamentos que levam homogeneizao e a atomizao das pessoas, como bem demonstrou Michel de Certeau. Por outro lado, epistemologias que levem em considerao, excessivamente, as individualidades, correm o risco de terem um carter solipsista. No captulo quatro, para dar conta da pesquisa de campo, foi utilizado o aporte terico da Teoria das Representaes Sociais em dilogo metodolgico com a Etnometodologia, com a Fenomenologia e com o conceito de Cultura Transversal. Compreendida dentro do campo da Psicologia Social, a Teoria das Representaes Sociais, formulada por Serge Moscovici, trata do conhecimento prtico e teorias do senso comum, que so vivenciadas, formuladas e transformadas pelos indivduos, de modo a comunicarem, construrem, explicarem e compreenderem os contextos materiais, sociais e ideolgicos da realidade social em que vivem. A Etnometodologia foi proposta pela obra fundadora de Harold Garfinkel e se configura por ser uma abordagem que entende os indivduos como socilogos prticos, tendo como um de seus pilares tericos a Fenomenologia, sobretudo os textos de Alfred Schtz. A Etnometodologia a cincia dos etnomtodos, ou seja, estuda como os indivduos realizam as suas prticas, as entendem, as explicam, as descrevem, e como essas atividades constituem a realidade social. A Fenomenologia, como base epistemolgico-filosfica que integra a Etnometodologia e as pesquisas da Geografia Humanista, foi tambm utilizada na tentativa de compreender os mundos vividos dos entrevistados. O conceito de Cultura Transversal, proposto por ngelo Serpa, se coadunou bem com as outras opes terico-metodolgicas, porque estabeleceu um horizonte analtico em que foram considerados os mundos vividos, as subjetividades e as intencionalidades dos indivduos, em uma relao dialtica com os processos de macro da realidade social. Da mesma forma, os conceitos de lugar e territrio surgiram como categorias analticas no ltimo captulo, enquanto eu estava ouvindo os entrevistados. No transcurso da pesquisa, autores como Yi-fu Tuan, Edward Relph, Werther Holzer, Rogrio Haesbaert, Marcelo Lopes de Souza, ngelo Serpa, entre outros, figuraram como importantes fontes de referncia.

15 A placa escolhida de carro que, inicialmente, foi o objeto definido para a pesquisa, tornou-se uma pista, ou melhor, adquiriu o status de indcio da representao que o motorista faz de seu carro. De fato, as placas escolhidas dos carros foram os elementos que permitiram ampliar o entendimento sobre a constituio do carro como um lugar e sobre as territorialidades envolvidas nas prticas que se do, especialmente, nas ruas de Curitiba. Concomitantemente reflexo terica e durante a pesquisa de campo, eu produzi uma tiragem de gravuras das placas dos carros, a partir da tcnica de relevo sem tinta, dos proprietrios que foram entrevistados. Dessa forma, foi possvel dar continuidade pesquisa plstica que iniciei em 2000. A realizao dessas gravuras foi feita de tal modo que a articulao entre os conceitos de visvel e invisvel estivessem implicados em sua manufatura, para enfatizar a pouca visibilidade que algumas prticas dos motoristas alcanam na cidade. Atrevidamente, com esta pesquisa terica, eu busquei compreender aspectos invisveis de diferentes maneiras de conhecer e representar o mundo, contidos nos universos consensual e reificado das prticas verificadas no campo e da intricada racionalizao das teorias cientficas, associadas a esse universo emprico.

16 2 O INVISVEL, NA VISIBILIDADE: OS ESPAOS EXISTEM EM NS OU NOS INSERIMOS NELES?

O campo cientfico no pode reivindicar para si a exclusividade do conhecimento. Muito menos sustentvel, a posio de quem, no universo cientfico, pensa que h uma verdade absoluta, revelada por meio de sujeitos neutros, afastados de seus objetos de pesquisa. Estas afirmaes poderiam ter sido ditas por um terico convicto de que se vive sob uma condio de ps-modernidade. Como todos so sujeitos pertencentes a um contexto histrico, geogrfico, social e cultural, esto inseridos no mundo, carregando consigo suas idiossincrasias. Uma outra faceta que est envolvida nessas afirmaes, pode apontar para a interpretao de que o mundo preenchido, construdo, concebido, inventado, representado, interpretado e sentido por diferentes mundos vividos de diversos indivduos. Afinal, o que prevalece? O mundo, a partir das subjetividades que o criam? Ou h a constituio dos indivduos, a partir da materialidade do mundo? A poesia de Carlos Drummond de Andrade (op. cit., loc. cit), A Suposta Existncia, que abre esta dissertao, fala, exatamente, da oposio entre essas duas formas de compreenso do real: os espaos existem em ns, so criaes subjetivas e intencionais, ou nos inserimos nele e, portanto, somos moldados ou construdos por este espao exterior? Este debate muito antigo no campo da Filosofia. Ele pe em confronto, at os dias de hoje, idealistas e materialistas. A discusso central presente nesse confronto - que vem do incio da Idade Moderna, especificamente, a partir do Renascimento tem a ver com a busca pela compreenso de como se d o conhecimento. Envolvidos nesse embate, podem ser lembrados filsofos como Descartes, Leibniz, Locke, Bacon, Berkeley, Hume, Kant, Hegel, entre outros. Segundo o gegrafo Rogrio Haesbaert da Costa (2002, p. 18-19), foi com o filsofo Kant, no sculo XVIII, que teve incio uma teoria do conhecimento.Com Kant, o problema do conhecimento comeou a ser objeto da teoria do conhecimento, que com o pleno advento da razo no perodo conhecido como Iluminismo (para muitos, hoje, sinnimo de Modernidade), se afirmou como uma das disciplinas centrais da Filosofia e, com o desenvolvimento cientfico, acabou dando origem atual epistemologia.

A diviso do real em universos distintos - de um lado, o sujeito; do outro, o objeto possibilitada pelo surgimento da razo cientfica, a partir de mtodos

17 cientficos e racionais, deu relevo s polarizaes filosficas que separam a Ontologia da Epistemologia, o idealismo do materialismo e o empirismo do racionalismo. A Ontologia faz parte da Metafsica e trata da natureza essencial do ser. Muitos sculos aps Aristteles, filsofo grego do sculo IV a.C., que com o seu Metafsica buscava os princpios primeiros, Kant desenvolveu a tese de que as estruturas cognitivas a priori da mente eram as responsveis pela percepo e pelo entendimento dos conceitos metafsicos. Depois de Kant, a metafsica afastou-se da pesquisa das causas fundamentais e voltou-se para questes como a que interroga se a realidade fundamentalmente mental ou fsica. (ROHMANN, 2000, p. 272). Outro dos cinco campos clssicos da Filosofia, alm da Esttica, da tica, da Lgica e da Metafsica, a Epistemologia. Esse campo filosfico busca a compreenso do que o conhecimento, como procur-lo, e tambm como se d a relao entre o conhecedor e aquilo que se busca conhecer. A resposta pergunta fundamental - o que o conhecimento? - depender das convices do pesquisador, de suas bases cientficas e filosficas. Um idealista, por exemplo, entende que a conscincia, o eu, se sobrepe ao objeto, ou materialidade do mundo. No limite, um idealista subjetivo pode defender a tese de que tudo o que existe s se apresenta como , por conta das construes mentais, das representaes e das percepes das conscincias individuais. Desta forma, a realidade se modifica a partir das subjetividades que a enfocam. Um pensador materialista, ao contrrio, entende que o real existe fora das conscincias e as determina. A existncia precede a conscincia. Os marxistas, por exemplo, so considerados materialistas. Dessa forma, necessrio, antes, mudar o mundo, as relaes materiais e as relaes sociais, para que sejam mudadas as conscincias. Segundo Costa (op. cit., p. 22), dentro da perspectiva do marxista Henri Lefbvre, existe, ainda, uma outra distino importante a ser explorada, quando se contrapem as posies materialistas s idealistas: a distino entre metafsica e dialtica. O termo metafsica teve, no decorrer da histria, diversas definies e usos. Diferentemente de ser somente aquilo que est para alm da fsica - a sua definio mais corriqueira - a metafsica compreende uma oposio entre conscincia e objeto, para Lefbvre. A dialtica visa a superao dessa oposio.Assim, na viso do autor (de Lefbvre), enquanto o materialismo vulgar, mecanicista ou metafsico, sobrevalorizando o carter material da realidade, a reduz a essa dimenso, o idealista acaba, de um modo ou de outro,

18priorizando sempre a esfera das idias, do sujeito. A proposta da dialtica, segundo a viso marxista, a de romper com essa dicotomia realizando a efetiva interao sujeito x objeto, reconhecendo a realidade como a prpria ao conjunta e concomitante (a prxis) entre conscincia e matria, onde, no dizer de Hegel, o que racional real e o que real racional. Essas dimenses, ao mesmo tempo em que mantm suas especificidades, encontram-se unidas, sendo nessa interao (contraditria), nesse processo que inclui a unidade da diversidade, que a realidade se transforma e que possvel se produzir conhecimento. (COSTA, op.cit., p. 23).

Relacionada com o par idealismo x materialismo, est a oposio empirismo x racionalismo. O empirismo puro uma atitude filosfica que pressupe que todo o conhecimento vem da experincia, e se contrape idia de que existam pensamentos que possam ser gerados sem o auxlio dos sentidos. Portanto, desse ponto de vista, uma atitude contrria ao racionalismo. O empirismo est relacionado metodologia cientfica, porque ao fazer uso desta, pretende-se a validao do conhecimento por meio da experincia. Um positivista, por exemplo, pode ser entendido como um empirista. O empirismo, que j existia na Grcia antiga, comumente est ligado aos nomes dos filsofos dos sculos XVII e XVIII, John Locke, George Berkeley e David Hume, como explica Chris Rohmann (op. cit., p. 128):Embora divergissem no tocante natureza exata da realidade e fonte das idias, as filosofias dos trs (Locke, Berkeley e Hume) partem da premissa de que s por intermdio dos sentidos temos acesso ao mundo, seja qual fora a sua forma real. A verso do empirismo de Hume e de Berkeley, que afirma que as nossas percepes dos fenmenos constituem a nica realidade de que podemos ter conhecimento, chama-se Fenomenismo (Locke acreditava, ao contrrio, que o mundo se compe de objetos reais que realmente percebemos). No sculo XIX, uma forma de empirismo conhecido como Pragmatismo, que salientava a avaliao das idias por seus resultados prticos, foi criada pelo filsofo Charles Sanders Pierce e popularizada por William James, que chamava sua filosofia de empirismo radical.

O racionalismo uma postura que defende a razo como o nico caminho confivel para o conhecimento, diferentemente da experincia. Tambm j estava presente no pensamento de antigos filsofos gregos. Na Idade Mdia, nos sculos XI a XV, razo e f foram associadas por escolsticos de diferentes posturas filosficas, que estavam unidos pelo mtodo didtico contido nas discusses formais e pela postura geral de que a razo e a f so compatveis devido sua fonte comum no esprito de Deus. (ROHMANN, op. cit., p. 135). A principal figura dessa poca foi So Toms de Aquino. Mas o racionalismo est mais vinculado aos filsofos do sculo XVII,

19 Descartes, Spinoza e Leibniz e aos pensadores do Iluminismo do sculo XVIII. Contudo, diferentemente dos Racionalistas Continentais do sculo XVII, que acreditavam que a razo vinha de Deus e que a existncia dele poderia ser provada por meio de mtodos racionais, especialmente, matemticos, os Iluministas estavam atrelados idia de que era necessrio laicizar o mundo. Segundo Rohmann (op. cit, p. 337), o que se seguiu na trajetria do empirismo, o que se apresenta abaixo.No sculo XIX, o racionalismo passou a ser amplamente associado ao Idealismo de Hegel, para quem a razo no operava somente no intelecto humano, mas no racional e inevitvel progresso da Histria. O racionalismo estrito, que afirma ser possvel obter a verdade por intermdio apenas da razo, no tem mais tanta validade; o papel da observao emprica na conquista do conhecimento hoje amplamente aceito. A complementaridade do racionalismo e do empirismo se expressa, por exemplo, na filosofia de Alfred North Whitehead, que dizia que o conhecimento requer raciocnio e experincia.

Depois deste breve resumo, necessrio que se diga que as dicotomias apresentadas so de natureza didtica, ideal, pois, no universo filosfico e no cientfico existem posies intermedirias, que mesclam diferentes aspectos do que foi aqui apresentado. Abaixo, dois quadros explicativos dessas posturas e dos campos filosficos mencionados. (QUADROS 1 e 2).

QUADRO 1 - ONTOLOGIA MATERIALISMO Importncia dimenso material Objetivo Mecanicista a IDEALISMO Importncia dimenso ideal, espiritual. realidade Objetivo a realidade existe fora da

objetiva determinada pela dimenso conscincia, mas determinada por ela. material e a ela se reduz. Objetivo Dialtico admite a dimenso Subjetivo a realidade s existe na ideal, mas condicionada esfera material. FONTE: Adaptado de COSTA, 2002, p. 27. conscincia humana.

20 QUADRO 2 EPISTEMOLOGIA EMPIRISMO Conhecimento a partir da experincia; prioriza o singular. Objetivo s h uma nica leitura verdadeira da realidade Subjetivo s possvel fazer leituras subjetivas, mltiplas, da realidade. FONTE: Adaptado de COSTA, 2002, p. 27. Analogamente ao que ocorreu na Histria da Filosofia e das Cincias Sociais, de forma geral, a Geografia tem passado por perodos em que h a prevalncia de um tipo de postura - embora resistam outras formas, concomitantemente - apresentando ora posturas tericas mais empiristas, ora mais racionalistas. Como exemplo de postura terica de base racionalista mais restrita na Geografia, podem ser citadas a Geografia Quantitativa e a Geografia Marxista, duas abordagens que passaram a existir, de forma mais consistente, aps a Segunda Guerra Mundial. Nesse campo do conhecimento, esse perodo foi chamado de renovao e, apesar das diferenas epistemolgicas entre as novas abordagens geogrficas, esse momento acarretou uma oposio ao perodo anterior, considerado clssico. Para a primeira, a Geografia Quantitativa, foi imprescindvel a busca de leis universais, por meio do mtodo hipottico-dedutivo. Ao se utilizar desse mtodo, a Geografia Quantitativa deu relevncia ao objeto, em detrimento do sujeito. O mtodo hipottico-dedutivo privilegia a objetividade, alcanada por raciocnios lgicos, preferencialmente, por meio da linguagem matemtica. A segunda teve como meta a busca pela objetividade do mundo, por meio de uma postura filosfica totalizante que desvendasse a verdade que se encontra, logo ali, por baixo da visibilidade, em que nada possui uma essncia. Para a Geografia Marxista, o mtodo dialtico sinnimo de mtodo cientfico, por meio do qual se busca a revelao das determinaes econmicas histricas que produziram e produzem o espao. Ao seguir esse mtodo, um marxista colocar o sujeito e o objeto em relao de contradio, no havendo a predominncia de um em relao ao outro. na relao dialtica, entre essas duas partes, que reside a possibilidade de construo mtua. RACIONALISMO Conhecimento a partir da razo; prioriza o geral. Objetivo s h uma nica leitura verdadeira da realidade. _____

21 Apresentada como uma Geografia diferente das outras duas, a Humanista tomou corpo, por volta da dcada de 1970. A principal diferena em relao s outras abordagens mencionadas consistiu em ter trazido tona o homem, sua singularidade, sua subjetividade, suas representaes, suas prticas culturais como produtores de espao. Assim como h diferenas nas concepes de diferentes humanistas, tambm existem variadas nuances entre os gegrafos, filiados ao aporte terico-metodolgico humanista fenomenolgico-hermenutico. Inseridas, no que foi mencionado por Sposito (2004, p. 38-39) como mtodo fenomenolgico-hermenutico, na Geografia, habitam diferentes correntes filosficas dos significados, a saber: Fenomenologia, Existencialismo, Idealismo e Hermenutica. Ainda h outras menos usadas, mas recentemente mais exploradas, como a combinao entre humanismo e marxismo. Segundo Mello (1990), a origem da abordagem humanista em Geografia, para alguns estudiosos, remonta-se a Vidal de La Blache, Sauer, Dardel ou Lowenthal, nos sculos XIX e XX. No entanto, h um maior consenso sobre a consolidao do Humanismo, em estudos geogrficos, a partir dos anos de 1970, com os tericos Yi-fu Tuan, Anne Buttimer, Relph, Entrikin, Guelke, Pocock, David Ley e M. Samuels. Essa abordagem geogrfica conhecida por Humanstica ou Humanista. O quadro, que segue abaixo, relaciona aspectos que diferenciam as trs abordagens geogrficas, umas das outras - a Quantitativa, a Marxista e a Humanista, respectivamente no que se refere aos pressupostos para a pesquisa, que devero estar no horizonte do pesquisador, seja qual for a opo terico-metodolgica escolhida. (QUADRO 3). QUADRO 3 PRESSUPOSTOS DAS PESQUISAS EM GEOGRAFIA PESQUISAS FENOMENOLGICASHERMENUTICAS Aspectos Epistemolgicos Aspectos Epistemolgicos Aspectos Epistemolgicos Objetividade processo Concreticidade processo Racionalidade processo cognitivo centralizado no cognitivo centrado na cognitivo centrado na objeto (deduo) relao dinmica sujeitoracionalidade do sujeito objeto (dialtica) (dialtica ou induo) Existncia de dado Construo da sntese Construo da idia na imediato despido de sujeito-objeto que acontece sntese sujeito-objeto que conotaes subjetivas, no ato de conhecer. acontece no ato de analisado segundo as leis Concreto como ponto de reflexo. Racional como PESQUISAS ANALTICAS PESQUISAS CRTICODIALTICAS

22 do raciocnio lgico dedutivo. chegada, de um processo que tem origem empricoobjetiva, passa pelo abstrato, de caractersticas subjetivas e forma de sntese. A histria como categoria preocupao diacrnica Aspectos Ontolgicos Concepo de realidade, de homem, sujeito, objeto, cincia, construo lgica viso dinmica e conflitiva da realidade (categorias materialistas de conflito e de movimento; ser social ponto de partida e de chegada, de um processo que tem como origem lgico-subjetiva de singularizadora. Historicidade ausente preocupao exacrnica Aspectos Ontolgicos Concepo de realidade, de homem, sujeito, objeto, cincia, construo lgica viso dinmica, racional e de interao de todos os elementos da realidade (categorias racionais de conflito e complementaridade); idealismo, existencialismo, fenomenologia, hermenutica; ser cultural A natureza como concepo e idia, apreendida no processo de conhecer, o homem como natureza pensante.

A histria como categoria preocupao sincrnica Aspectos Ontolgicos Concepo de realidade, de homem, sujeito, objeto, cincia, construo lgica viso fixista, funcional e pr-definida da realidade (recurso ou imput e produto ou output)

A natureza como algo separado do homem e com estatuto prprio; o homem como entidade autnoma.

A natureza e a sociedade como partes de um mesmo movimento; o homem compreendido como sociedade. FONTE: adaptado de SPOSITO, op.cit., p. 54-55.

As bases filosficas aqui apresentadas, de forma muito sinttica, criaram o ambiente para as discusses que envolvem os conceitos de Modernidade e PsModernidade no mundo contemporneo, relacionando-os com os impactos nos diferentes campos do conhecimento - notadamente, no da Geografia - e no mundo banal ou consensual, aqueles que interessam, diretamente, presente pesquisa. A perspectiva adotada para a compreenso do objeto j mencionado na Introduo deste trabalho, a da Geografia Cultural, em que aspectos empricos e de racionalidade concorrero para o entendimento das prticas sociais e culturais aqui envolvidas. Para tanto, torna-se necessria uma contextualizao histrico-filosfico-paradigmtica, a partir da qual, determinadas relaes dialticas entre as singularidades e as representaes sociais dos sujeitos da pesquisa e sua contra-parte, as representaes que circulam no universo tcnico-cientfico, sejam mais bem compreendidas.

23 A VISIBILIDADE DO PENSAMENTO: O MUNDO TEM UM NOVO

PARADIGMA? O fim das utopias, da Histria, da Arte, da Modernidade, dos territrios, do Estado-nao, do encantamento, das esperanas, da civilizao, do mundo. Penetra-se ou vive-se em diferentes tempos, em diferentes espaos? O que invisvel no real, que no se d a conhecer? Caso seja correto pensar que se vive, hoje, em uma encruzilhada, diante de uma ruptura, o que seria isto e com o que houve o rompimento? Quando alguma coisa vai mal, geralmente, se recorre aos especialistas, de forma que as dvidas sejam dirimidas. Esse tem sido um expediente, cada vez mais utilizado pelos meios de comunicao, no intuito de informar o cidado ser que realmente pode-se cham-lo assim? ou desinform-lo, propositadamente, acerca desse ou daquele ponto crtico que estiver em pauta, dos acontecimentos da atualidade. Em vrios desses meios, podem ser ouvidas de especialistas, ou lidas, palavras como globalizao, fluxos de capitais financeiros, latinizao do primeiro mundo, choque de civilizaes, processos de desterritorializao, compresso do espao e do tempo, aquecimento global, pandemia de gripe aviria, pauperizao do terceiro mundo (mais?), nanotecnologia, produtos wireless, era da informao, guerra cirrgica, crise de identidades, moderno, modernismo, modernidade, ps-modernismo, ps-moderno, psmodernidade. O conhecimento, que antes das novas tecnologias de comunicao, se buscava por meio da sala de aula, de conferncias, ou das bibliotecas, quase que exclusivamente, hoje pode ser alcanado por diferentes mdias, como Internet, televiso, vdeo, cinema e publicidade. Esta uma poca mediada por imagens, segundo o que prega o dogma psmoderno (HEARTNEY, 2002, p. 7). Diversos campos cientficos so distinguidos por seus intelectuais, que so impelidos a esclarecerem sobre a lgica que se esconde por trs dessas expresses. Essa no uma tarefa fcil, porque so diversas as matrizes de pensamento que se entrechocam, na tentativa de desmistificar as representaes sociais que se fazem delas. Esses termos, de alguma forma, esto entrelaados? O que significam, o que os articula, ou os separa? A difcil constatao de que a busca pela verdade absoluta fracassou, assim que se pensou ter chegado perto dela, fez com que as cincias, donas de explicaes totalizantes para o mundo, arrefecessem sua energia de origem. As metanarrativas esto silenciando, disse Lyotard (1998). Como metanarrativas, podem ser entendidos os

24 sistemas tericos, que visam dar uma explicao sobre outras narrativas da realidade social. Essas explicaes, ento, so narrativas de narrativas. A cincia, mesmo a mais positivista, ento, no passaria de uma das inmeras possibilidades de interpretao do real. Obviamente, no se pode entender a afirmao de Lyotard, literalmente, qual seja, a de que se tenha chegado ao fim da filosofia e da cincia na contemporaneidade. A sua intuio o advertia, no entanto, que a cincia, sendo constituda por vrios discursos, entre tantos outros existentes, no poderia requerer para si o status de dona da verdade. O filsofo Jean-Franois Lyotard, nascido em 1924 e morto em 1998, foi o primeiro a adotar em uma obra filosfica, A Condio ps-moderna, publicada originalmente em 1979, o conceito de ps-modernidade. Esse termo, Lyotard emprestou de Ihab Hassan, um crtico egpcio, colaborador da publicao Boundary 2, que foi criada por Charles Olson nos EUA, em plena Guerra do Vietn. Hassan, antes de ser convidado a escrever para esse peridico, havia lanado um ensaio sobre ps-modernismo em 1971. Segundo Perry Anderson (1999, p. 25), Hassan estava ligado a um grupo oriundo da escola de arte Black Mountain College John Cage, Robert Rauschenberg e Buckminster Fuller e a Marshall McLuhan, famoso pela expresso que cunhou, aldeia global, por seus estudos das novas mdias e pela investigao acerca do impacto das tecnologias no homem. Os trs primeiros mencionados se configuraram como importantes nomes da arte contempornea, termo utilizado por alguns autores para designar a arte que veio depois do modernismo e aps a Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, Hassan conseguiu sintetizar alguns aspectos do ps-modernismo.Quando Hassan concluiu sua investigao dos variados indcios do psmodernismo desde a espaonave Terra aldeia global, da faco dos happening, da reduo aleatria pardia extravagante, da inconstncia intermediao e procurou sintetiz-los como tantas anarquias do esprito, jocosamente subvertendo as altivas verdades do modernismo, o compositor (John Cage) era um dos pouqussimos artistas que se podiam relacionar de modo razovel maior parte da lista. (ANDERSON, op. cit., loc.cit.)

De fato, o termo ps-modernismo surgiu na dcada de 1930, no mundo hispnico, com o crtico literrio Federico de Ons. No mundo anglo-saxo, com o historiador Arnold Toynbee, em uma publicao intitulada Study of History (Estudo de Histria) que comeou em 1939 e que em 1954, alcanou o seu oitavo volume. Essa obra no foi concluda at hoje, e foi no ltimo volume publicado que o autor usou o

25 termo idade ps-moderna, se referindo poca que se iniciava com a guerra francoprussiana. (ANDERSON, op. cit. p. 10-11). Como ps-modernismo, pode-se entender uma mirade de posturas e aes poticas dentro dos campos das artes plsticas, da arquitetura, da literatura, da msica, entre outros. Essa tendncia se contrape e, ao mesmo tempo, d continuidade a certos aspectos do modernismo. Para alguns autores, o ps-modernismo se alinha com outros aspectos da condio ps-moderna e a sua face cultural. Segundo Heartney (op. cit. p. 12), algumas de suas estratgias englobam atitudes como a revoluo contra a f modernista na universalidade, contra o progresso artstico e contra o significado compartilhado. Junto a essas caractersticas, podem ser somados o niilismo, o cinismo, o humor, a subverso de sentido, a destituio da funo original dos objetos, a apropriao, a citao de elementos do passado, o pastiche.O ps-modernismo surgiu do modernismo na segunda metade do sculo XX, dando continuidade a algumas de suas tendncias, como o experimentalismo estilstico, e desprezando outras, como a preocupao com a pureza da forma. [...] Nas artes, o ps-modernismo (cuja abreviatura pomo), distingue-se pelo ecletismo e pelo anacronismo, nos quais as obras podem expressar e comentar uma ampla srie de expresses estilsticas e perspectivas histrico-culturais. (ROHMANN, op. cit. p. 317).

Se o termo ps-modernismo for entendido, fundamentalmente, como uma oposio ao modernismo, ento se faz necessrio defini-lo, minimamente, ainda que seja arriscado faz-lo.Em geral, identifica-se o modernismo como tendncia artstica que teve incio por volta do sculo XIX e dominou a expresso cultural at a Segunda Guerra Mundial ou depois dela (as estimativas da durao da sua influncia variam muito). [...] O modernismo nas artes surgiu em reao ao Romantismo e ao Realismo do sculo XIX, rejeitando o teor da narrativa convencional e os modos tradicionais de expresso para retratar um mundo visto como novo e em fluxo constante. (Na famosa frase do crtico de arte Harold Rosenberg, o modernismo criou a tradio do novo.) (ROHMANN, op. cit., p. 278).

A teorizao do ps-modernismo, proposta por Hassan, foi sucedida pelo manifesto arquitetnico de Robert Venturi, entre outros autores, em 1972. Learning from Las Vegas (Aprendendo com Las Vegas), importante obra desse arquiteto americano, ao revelar os valores ps-modernos na arquitetura, colocou em questo a finalidade desse campo profissional, sua relao com o mercado, e tambm apresentou o

26 termo para designar as novas formas do espao construdo. Segundo Venturi, o

arquiteto no deveria ter pretenses utpicas de tentar alcanar transformaes sociais e, sim, deveria se adequar ao que j existe e tentar fazer o melhor que puder. Ele foi um importante crtico da arquitetura modernista. O crtico americano Frederic Jameson (1997), apesar de no gostar do termo ps-modernidade para explicar as mudanas em curso no mundo, acabou por utilizlo, por pensar que, ainda que seja polmico dizer que a modernidade tenha chegado ao fim, aps a Segunda Guerra Mundial houve, de fato, uma mudana qualitativa em todos os aspectos das relaes polticas, sociais, culturais e econmicas. Em uma de suas obras mais importantes, Ps-modernismo: a lgica cultural do Capitalismo tardio, Jameson (1997), baseado na obra de Ernest Mandel, tentou demonstrar que o capitalismo, em seu terceiro e atual estgio, apropria-se da cultura, reificando-a e a utilizando como a sua verdadeira face. Justificou isso, valendo-se do jargo marxista: base e superestrutura se fundiram, gerando uma nova condio para a existncia da sociedade. Apesar de ter reivindicado uma anlise totalizante da condio psmoderna, uma vez que marxista, ele concordou que existem, nesse perodo, caractersticas tais como o carter fragmentrio das coisas e das relaes, o descentramento do sujeito, novas percepes do tempo e do espao e o jogo aleatrio dos significantes. Nesse sentido, tentou demonstrar que as artes visuais desse perodo, diferentemente de pretenderem representar, ou estarem no lugar de alguma coisa, de fato presentificam, ou seja, substituem a representao artstica das coisas, pela presena delas mesmas. Nelas, haveria uma justaposio de significantes, que estariam juntos pelo critrio da aleatoriedade ou, pelo menos, por uma no declarada inteno, e no pretenderiam narrar nada. Os contedos dessas imagens somente remeteriam a outras imagens. Seria o presente espacializado, destitudo de passado e de futuro. Segundo ele, a videoarte e a arquitetura seriam expresses mximas de linguagens artsticas ps-modernistas, num perodo em que a arte e o mercado estabeleceram uma grande relao de reciprocidade e simbiose.O que ocorreu que a produo esttica hoje est integrada produo das mercadorias em geral: a urgncia desvairada da economia em produzir novas sries de produtos que cada vez mais paream novidades (de roupas a avies), com um ritmo de turn over cada vez maior, atribui uma posio e uma funo estrutural cada vez mais essenciais inovao esttica e ao experimentalismo. Tais necessidades econmicas so identificadas pelos

27vrios tipos de apoio institucional disponveis para a arte mais nova, de fundaes e bolsas at museus e outras formas de patrocnio. De todas as artes, a arquitetura a que est constitutivamente mais prxima do econmico, com que tem, na forma de encomendas e no valor de terrenos, uma relao virtualmente imediata. No de surpreender, ento, que tenha havido um extraordinrio florescimento da nova arquitetura ps-moderna apoiado no patrocnio de empresas multinacionais, cuja expanso e desenvolvimento so estritamente contemporneos aos da arquitetura. (JAMESON, op. cit., p. 30-31).

Para Jameson, o ps-modernismo como estratgia cultural, expressa e revela, na verdade, a condio de ps-modernidade em que o capitalismo reina sozinho. Para ele, um termo quase sinnimo do outro. Nessa obra polmica e intrigante, ele, ao discutir os elementos e caractersticas dessa poca, ao mesmo tempo, fez uma crtica visceral apatia que dominava o cenrio intelectual e poltico internacional, que segundo ele, dominava o mundo no momento da publicao de seu livro.A concepo de ps-modernismo aqui esboada uma concepo histrica e no meramente estilstica. preciso insistir na diferena radical entre uma viso do ps-modernismo como um estilo (opcional) entre muitos outros disponveis e uma viso que procura apreend-lo como a dominante cultural da lgica do capitalismo tardio. Essas duas abordagens, na verdade, acabam gerando duas maneiras muito diferentes de conceituar o fenmeno como um todo: por um lado, julgamento moral (no importa se positivo ou negativo) e, por outro, tentativa genuinamente dialtica de se pensar nosso tempo presente na histria. Da avaliao moral positiva do ps-modernismo pouco precisa ser dito: a celebrao complacente (ainda que delirante) dos seguidores do camp desse novo mundo esttico (incluindo suas dimenses econmicas e sociais, saudadas com igual entusiasmo sob o slogan da sociedade ps-industrial) , certamente, inaceitvel, ainda que possa ser menos bvio que as fantasias correntes a respeito da natureza salvacionista da alta tecnologia, dos chips aos robs fantasias compartilhadas no s por governos de direita e de esquerda como tambm por muitos intelectuais -, so essencialmente iguais s apologias vulgares do ps-modernismo. Mas, nesse caso, segue-se que devemos rejeitar tambm as condenaes moralistas do ps-modernismo e de sua trivialidade essencial por justaposio seriedade utpica dos altos modernismos: so julgamentos que vm tanto da direita radical como da esquerda. E no restam dvidas de que a lgica do simulacro, com sua transformao de novas realidades em imagens de televiso, faz muito mais do que meramente replicar a lgica do capitalismo tardio: ela a refora e a intensifica. Ao mesmo tempo, para os grupos polticos que procuram intervir ativamente na histria e modificar seu momentum passivo (com vistas a canaliz-lo no sentido de uma transformao socialista da sociedade ou a desvi-lo para o restabelecimento regressivo de uma fantasia de um passado mais simples), s pode haver muita coisa deplorvel e repreensvel em uma forma cultural de vcio de imagem que, ao transformar o passado em uma miragem visual, em esteretipos, ou textos, abole, efetivamente, qualquer sentido prtico do futuro e de um projeto coletivo, e abandona a tarefa de pensar o futuro s fantasias de pura catstrofe e cataclismos inexplicveis, que vo de vises de terrorismo no nvel social a vises de cncer no nvel pessoal. Entretanto, se o ps-modernismo um fenmeno histrico, ento a tentativa de

28conceitu-lo em termos de moral, ou de julgamentos moralizantes, tem que ser identificada como um erro categorial. Isso torna-se mais bvio ao questionarmos a posio do crtico cultural moralista; este, como todos ns, est to profundamente imerso no espao ps-moderno, to profundamente tingido e contaminado por suas novas categorias crticas que o luxo da crtica ideolgica mais antiga, a indignada denncia moral do outro, torna-se invivel. (JAMESON, op.cit., p. 72-73).

Outro crtico americano, chamado de conservador por alguns crticos e artistas, James Gardner (1996), estabeleceu uma anlise da produo contempornea de arte, tentando demonstrar que, muitos dos exemplos de produo artstica desse perodo, no deveriam constar como pertencentes esfera da Esttica. Esses exemplos deveriam, sim, ser analisados por meio de abordagens psicanalticas, psiquitricas, de marketing, ou por outro campo qualquer do conhecimento, porque ele no as considerou como trabalhos de arte. Pode-se imaginar a quantidade de vozes que se levantaram contra essa viso da arte contempornea ou, ps-moderna. Em seu livro Cultura ou Lixo - um ttulo bastante sugestivo sobre o que o leitor ler, caso resolva abri-lo Gardner resolveu investigar o que os artistas contemporneos da dcada de 1980 e 1990 vinham fazendo, dentro do fenmeno chamado de psmodernismo. De fato, o seu interesse recaiu sobre o tipo de produo de arte contempornea a que ele chamou de ambiciosa e sem importncia, no querendo dizer com isso, que todo tipo de arte contempornea sem importncia . Segundo ele, a ambio daquela produo, era mais de natureza poltica, psicolgica, pornogrfica, do que artstica.O paradoxo do Ps-Modernismo que ele permanece muito mais ligado ao Modernismo do que os modernistas jamais estiveram. A maioria dos modernistas nunca quis ser modernista: queria, isso sim, fazer a arte ao seu jeito, at que algum os informou que faziam arte moderna. Com os psmodernistas acontece o contrrio: para quase todos importante ser psmoderno e assegurar que podem se definir assim em relao ao Modernismo. O Ps-modernismo, para usar um termo tcnico, pura negatividade. Com poucas excees, a premissa e o contedo do trabalho de muitos ps-modernos so a sua rejeio ao Modernismo. Cada um deles parece querer anunciar que precisamente esse o seu objetivo. (GARDNER, op.cit., p. 92).

No Brasil, o crtico Affonso Romano de SantAnna, leitor de Gardner, se tornou o inimigo pblico nmero um de muitos artistas e crticos contemporneos brasileiros. Essa situao se deve sua argumentao e aos qualificativos que usou para denominar grande parte da produo de arte contempornea. semelhana de outros iconoclastas,

29 ele usou a figura do artista Marcel Duchamp, como emblema do embuste que , de forma geral, a arte ps-moderna. Ele comeou a sua corrosiva crtica j no ttulo de seu livro, Desconstruir Duchamp (2003), que se constituiu por ser uma coletnea de artigos publicados, primeiramente, no jornal O Globo, de dezembro de 2001 a janeiro de 2003. Durante esse perodo, ele atacou, recorrentemente, no s a Duchamp, mas a outros artistas reconhecidos. Para a arte contempornea, Marcel Duchamp, nascido no sculo XIX e morto em 1968, uma referncia inegvel. Inaugurador de operaes como os ready-made objetos prontos, retirados do cotidiano e descaracterizados de suas funes pelo artista, para ganharem um novo status, de arte -, ele foi um artista sui generis, porque pode ser aproximado de diferentes movimentos de sua poca, como por exemplo, o Dadasmo e o Surrealismo, sem que se possa rotul-lo de uma coisa ou de outra. Graas ao expediente de atacar, recorrentemente, o sistema de arte vigente e de aproximar a arte da vida comum, ele tornou-se referncia de artistas conceituais, de body artistas, entre outros que passaram a figurar no panorama artstico, aps a Segunda Guerra Mundial. A palavra ps-modernidade, em termos gerais, se refere ao conjunto de mudanas da condio humana, aps a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, abrange outras instncias da sociedade e no somente o campo artstico. O ps-modernismo veio diminuir a linha que separa a arte erudita da cultura de massa. A ps-modernidade, por sua vez, para mostrar que a crena moderna no progresso da humanidade e nos projetos utpicos, concebidos pelo racionalismo dominante, no tm mais lugar: foram atropelados pelos desgnios do mercado. Segundo Lyotard, o capitalismo, sistema econmico que venceu outras formas de produo e trocas sociais, como o socialismo, no passa de uma representao. Esse sistema tira a sua fora da idia de infinitude. Pode aparecer na experincia humana como o desejo por dinheiro, o desejo por poder ou pela novidade. [...] esses desejos so a traduo antropolgica de algo que ontologicamente a instanciao da infinitude na vontade. (ANDERSON, op. cit., p. 40). Desse modo, Lyotard, aproximando-se da psicanlise, entendia que categorias analticas como classes sociais, no poderiam dar conta de explicar diferenas ou semelhanas de atitudes, comportamentos e posicionamentos que se do de forma transversal na sociedade. Lyotard disse que a ps-modernidade se alinhava com uma sociedade psindustrial. Nessa perspectiva, o filsofo Jean Baudrillard, nascido em 1929, tambm argumentou que a estruturao da anlise sobre as bases dessa sociedade, no poderia

30 mais levar em considerao categorias como classe social. Seu interesse se voltou para a indstria cultural e o consumo de massa. A criao do que Baudrillard chamou de hiper-realidade, em que os mass media estabeleceram uma realidade virtual que superou e substituiu o real, fez com que as classes sociais perdessem identificao e os indivduos fossem cooptados pela sociedade do espetculo, lembrando-se, aqui, de Guy Debord. As guerras cirrgicas do Oriente Mdio, perpetradas pelos EUA, que puderam ser assistidas em tempo real, diariamente, como se assiste a um videogame ou a uma telenovela, foram exemplos de eventos espetaculares editados de acordo com um posicionamento ideolgico particular. Em exemplos como esses, o aspecto que mais caracteriza a modernidade, qual seja, a razo instrumental, foi motivo de assombro para muitos e, at, de admirao para outros. De fato, Baudrillard no gosta que lhe chamem de ps-moderno, porque no pensa que o termo seja digno de ser um conceito terico. Falando sobre arte, ele teceu o raciocnio de que ela se banalizou e no pode mais transformar a realidade. (GIRON, 2007). Outro importante crtico da modernidade, Jacques Derrida, nascido em 1930 e morto em 2004, tambm atacou o principal conceito da modernidade: a razo. Para ele, os princpios de dualidade e centralidade, presentes no pensamento ocidental, levaram s construes culturais dominantes. A linguagem a base da cultura e, portanto, esse filsofo tratou de estabelecer um mtodo que desse conta de desconstruir as estruturas lingsticas que levantaram o edifcio do pensamento ocidental. Dessa forma, tudo poderia ser lido como um texto e caberia ao pesquisador, o uso do mtodo desconstrutivo, para desvelar a lgica interna e os sentidos ocultos contidos nas coisas. (ROHMANN, op. cit., p. 101-102). Considerado como a ltima voz em defesa da modernidade e da racionalidade, pela conseqente defesa da razo, o filsofo Jurgen Habermas, pertencente Escola de Frankfurt1, nascido em 1929, advertiu quanto aos perigos de se fazer uma crtica ferrenha modernidade, porque isso poderia levar ao irracionalismo. Mesmo que tenha tomado a defesa da modernidade como uma condio necessria civilizao, reconheceu que alguns de seus aspectos foram malficos para a sociedade. A principalEscola associada Teoria Crtica, fundada por pensadores alemes, em 1920. Os nomes de seus integrantes mais conhecidos so Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Erich Fromm, Theodor Adorno, Max Horkheimer e Jugen Habermas. Apesar das diferenas de pensamento entre eles, desenvolveram crtica sobre economia, psicologia, histria e antropologia. Seus principais aportes tericos vieram do marxismo e de Freud.1

31 proposio formulada por Habermas (1983), para a superao dos erros que a razo havia acarretado, estava no estabelecimento do que chamou de ao comunicativa. Por meio desse expediente, os indivduos estabeleceriam um dilogo que os levasse verdade intersubjetiva e justia, livres das coeres e arbitrariedades do mundo normativo tcnico-cientfico, que havia colonizado o mundo da vida em que h a reproduo simblica. Dessa forma, o racionalismo sedimentado pelo Iluminismo seria sobrepujado, o que levaria a humanidade a um novo patamar de racionalidade, cumprindo-se, assim, o projeto iniciado na modernidade. Os conceitos de verdade e razo seriam construdos de forma consensual. Portanto, ele estabeleceu uma crtica filosofia ps-moderna, defendida por Lyotard, Derrida e Baudrillard, que no previa um lugar para a razo emancipadora da humanidade, visto que isso era considerado uma falcia, de seus pontos de vista. Apesar da profuso de posicionamentos de diferentes autores sobre o que os termos ps-modernidade, ps-modernismo, modernidade e modernismo podem implicar, o que se pode perceber hoje, que h a difuso de sentimentos de nopertencimento, de incertezas, de angstia, de permanncias precrias ou transitrias, de alterao das percepes de espao e de tempo do fim das relaes estabelecidas em bases conflitantes com a condio de ser-no-mundo e ser-com-outros, de outros tempos. E de outros espaos. Neste ponto, faz-se necessria uma digresso e um retorno aos principais conceitos sobre o que seja a modernidade, de importantes autores, de diferentes matrizes epistemolgico-filosficas. A exemplo do que tem sido feito at aqui para os termos ps-modernismo, modernismo e ps-modernidade, essa uma tentativa de se compreender as principais questes envolvidas no debate sobre a modernidade, uma vez que ela a base da condio ps-moderna. No ser necessrio fazer uma volta aos primrdios da humanidade, para se tentar entender a presente poca. Parece ser importante, no entanto, a retomada de alguns aspectos do que se convencionou chamar de modernidade, entendida como um processo ou mentalidade, inaugurada pela Idade Moderna. Se a modernidade existe, ou existiu e j acabou, importante tentar circunscrev-la. As confuses, sobre esse assunto, so muitas e, por isso, bom que se ressalve, no h consenso entre diferentes autores sobre o que ela significa e sobre quando comeou exatamente, conforme explica Angela Ales Bello (2004, p. 17).

32A Idade que comea a partir dos sculos 15 e 16 chamada Moderna, pois os homens da poca consideraram a si mesmos como os modernos. Com efeito, a palavra latina modos significa hora, agora. Os modernos afirmavam a si mesmos como os detentores de uma cultura nova que retomava a cultura grega. Quando se conclui a Idade Moderna? Esse um problema historiogrfico muito importante. Ns dizemos que o fim deste perodo dado por uma conveno, como sendo na metade do sculo 19. Todavia, h uma grande discusso historiogrfica acerca desta data. A poca sucessiva foi definida pelos historiadores com o termo contemporneo. Os termos contemporneos e moderno parecem significar a mesma coisa, sendo que, na verdade, o uso destes dois termos com uma significao diferente respondeu tentativa de dividir a poca moderna em duas partes: a moderna e a contempornea. De modo que, por exemplo, nos currculos universitrios do curso de Filosofia, existem quatro disciplinas dedicadas Histria da Filosofia: Antiga, Medieval, Moderna e Contempornea. 2

De fato, a falta de consenso sobre o incio da modernidade evidencia o no reconhecimento, por parte de alguns autores, do pensamento e da fundamentao para essa nova cosmoviso, que foi legada por filsofos como Descartes, por exemplo. Esses autores entendem o incio de um projeto propriamente moderno situado no sculo XVIII, ou melhor, a partir das proposies Iluministas e no a partir do Renascimento. Os iluministas foram aqueles que pensaram e agiram sob o primado da razo, acreditando que, graas a ela, a humanidade chegaria a uma ordem social mais harmoniosa e libertadora. A Idade Moderna trouxe o rompimento com formas de pensar medievais e apresentou uma ruptura conhecida como Humanismo. Segundo Paulo Csar da Costa Gomes (2000, p. 307-309), do Humanismo derivaram dois tipos de atitudes, que tiveram diferentes caminhos e repercusses importantes, para a filosofia e para a cincia.A primeira representada por Descartes, que utiliza a prova da existncia das coisas atravs de um mtodo lgico, o que, para estes autores (Ley e Samuels), exprime uma perspectiva niilista e mesmo desumana. A partir da, a cincia perde cada vez mais seu carter humanista, eliminando todos os elementos humanos com exceo da racionalidade. A preocupao racionalista coloca o homem no centro de seus interesses, mas o faz atravs da naturalizao dos valores humanos e utilizando um mtodo que impe a racionalidade como nico valor do ser humano. Esta concepo, largamente difundida pelo positivismo, chega a afirmar que uma cincia verdadeiramente objetiva deve eliminar todos os elementos antropomrficos. [...] Uma segunda atitude nascida do fim da Idade Mdia recolocou o homem no centro de suas preocupaes. Um homem considerado em toda a sua2

Para se criar um pouco mais de dissenso, poderia se acrescentar que o que se entende por moderno e contemporneo, no campo da Arte, uma coisa bem diferente do que est sendo explicado pela filsofa citada, para a periodizao da Histria da Filosofia. Em Arte, chama-se de moderno, ou melhor, modernismo, o perodo que vai do meio do sculo XIX , at a Segunda Grande Guerra. O que vier aps isto, contemporneo. Obviamente, que, com respeito a essa periodizao, tambm h controvrsia entre vrios autores.

33complexidade cultural e antropolgica, o que faz aparecer novos pontos de vista para compreender o sentido da arte, da literatura, da cincia, da teologia e de todo o conjunto que expressa o campo da atividade humana. O essencial desta nova abordagem buscar um sentido interior na cultura humana, estando consciente de que, em sendo homem, seu ponto de vista parcial e antropomrfico.

Assim, explicou Gomes, aconteceu a ciso entre o dito conhecimento cientfico e as chamadas humanidades. Poderia ser dito tambm, que foi a partir dessa origem, que houve a separao entre as cincias modernas e a filosofia. Uma das grandes contribuies do Humanismo, mais propriamente afeito segunda atitude descrita acima, diz respeito ao valor atribudo alteridade e ao entendimento que o homem um produtor de cultura, o que possibilitou uma maior coeso do corpo social, desde as sociedades pr-modernas. Mas a outra atitude, derivada do Humanismo, gerou a noo de que aquele que observa o mundo tem um status superior ao do que observado, ou seja, o que Descartes inaugurou com o seu Cogito foi a afirmao de que o homem o centro do universo e graas conscincia da existncia desse eu uno, ntegro e individual, que possvel conhecer o mundo e tudo o que h nele, por meio de um mtodo lgico. Provavelmente, foi em parte por conta desse fundamento, que as Cincias europias, de modo geral, se fixaram em um ponto de vista etnocntrico, a partir do Renascimento. Mas nem Descartes havia abandonado a Deus, quando o homem passou a ser o centro das atenes. Vale a pena ler a longa passagem que o sociolgo Norbert Elias (1994 (a), p. 82-84) fez, e que foi aqui reduzida, para explicar o raciocnio de Descartes, sobre o Cogito ergo sum penso, logo existo e suas implicaes para o futuro.Para compreender essa concepo fundamental, devemos ao menos recordar em linhas gerais o processo de pensamento, o perodo de dvida e incerteza pelo que ele (Descartes) passou antes de encontrar terra firme sob seus ps, na nova certeza de que o fato indubitvel da reflexo do sujeito tambm colocava fora de dvida a existncia de seu eu. Descartes indagou-se, primeiramente, se havia alguma coisa de que se tivesse certeza absoluta, alguma coisa de que no fosse possvel duvidar em nenhuma circunstncia. Na vida social, reconheceu, era preciso aceitar muitas idias como se constitussem um Evangelho, embora delas no se pudesse ter tanta certeza. Assim, ele resolveu partir em busca daquilo que fosse absolutamente seguro e descartar todas as concepes sobre as quais pudesse haver a mais nfima dvida. Tudo o que aprendi, disse a si mesmo, tudo aquilo que sei, aprendi-o atravs ou a partir das percepes sensoriais. Mas ser realmente possvel confiar nos prprios sentidos? Posso ter certeza de estar sentado aqui, junto a minha estufa aquecida, usando meu robe e segurando este pedao de papel em minha mo? Posso ter plena certeza de que estas so minhas mos e meu corpo? Claro, estou vendo minhas mos; sinto meu corpo.Mas, disse a voz dissidente da dvida, acaso no existem pessoas

34que acreditam ser reis, quando, na realidade, so indigentes? [...] E, ao se sentir assim compelido a rejeitar, uma a uma, todas as idias de si mesmo e do mundo, tachadas de duvidosas e indignas de confiana, ele finalmente sucumbiu, como outras pessoas sob a incessante presso da dvida, ao mais tenebroso desespero. [...] Por mais que a dvida pudesse hav-lo corrodo e ameaado destruir todas as certezas, havia, segundo descobriu, um fato de que era impossvel duvidar: Poderia eu, perguntou-se, acabar me convencendo de que eu mesmo no existo? No, eu existo. Pois posso convencer-me de que sou capaz de pensar em alguma coisa e duvidar dela. A chegamos ao cerne dessa forma peculiar de autoconscincia: as percepes sensoriais, e, portanto, o conhecimento dos objetos fsicos, inclusive o prprio corpo, tudo era duvidoso e ilusrio. Mas no se podia duvidar, concluiu Descartes, de que se duvidava. No me possvel pensar que no penso. E o pensar s possvel se eu existir. A concepo do eu humano com que a deparamos e as questes que ela implica so muito mais do que os jogos mentais de determinado filsofo. So altamente caractersticas da passagem de uma concepo dos seres humanos e do mundo, solidamente alicerada na religio para concepes secularizadas, passagem essa que se fazia sentir na poca de Descartes. Essa secularizao do pensamento e da ao humanos certamente no foi obra de um ou vrios indivduos. Ligou-se a mudanas especficas que afetaram todas as relaes da vida e do poder nas sociedades ocidentais.

No mesmo perodo histrico em que esse posicionamento filosfico se estabeleceu - acarretando profundas mudanas na mentalidade dos sculos vindouros, desembocando na apologia da razo instrumental e na clssica oposio sujeito x objeto presente nas cincias positivistas - importantes formas de relaes sociais, econmicas e culturais se espraiaram pelo mundo, rompendo com as formas presentes nas chamadas sociedades pr-modernas. Tentar compreend-las, torna-se de fundamental relevncia para o estabelecimento das diferenas ou continuidades, entre a modernidade e a psmodernidade, se que essa ltima existe. Umas das principais rupturas que a modernidade causou no Ocidente, com o fim da Idade Mdia, diz respeito ao entendimento de que no era mais imperativo que o homem buscasse a explicao do que lhe acontecia em sua existncia cotidiana, em uma dimenso extrafsica. O seu destino, paulatinamente, deixou de depender de Deus. A faculdade da razo poderia suprir tal instncia. O aprofundamento dessa crena, algum poderia dizer, simplesmente fez com que uma doxa fosse trocada por outra, chegando ao seu pice no sculo XIX, com as cincias de abordagens positivistas. E a que reside uma das principais crticas dos pensadores filiados ps-modernidade, que se dirige aos filiados simpticos modernidade: a de que a razo, eleita pela modernidade, seja a nica maneira de expressar o que caracteriza o ser humano, e que por meio dela, poder-se-ia chegar verdade universal. A ordem, o equilbrio, a civilizao, o

35 progresso so noes sadas diretamente deste sistema moderno que se proclama como a nica via de acesso a um mundo verdadeiramente humano (GOMES, op.cit., p. 25). Mas nem s de razo viveu a modernidade. Segundo Gomes, deve-se entender a modernidade pela dualidade entre o primado da razo e as caractersticas acima mencionadas por um lado e, por outro, composta por diversas foras antagnicas que no aceitavam os mtodos racionalizantes da cincia. Se esta dualidade constituinte da modernidade, a ps-modernidade j se encontraria inserida nela e, portanto, no se justificaria a concepo de que a ps-modernidade fosse uma ruptura. Ao contrrio, ela se caracterizaria como um desdobramento da modernidade ou como uma exacerbao de algumas de suas caractersticas ou possibilidades. primeira parte dessa dualidade, corresponde a busca por explicaes racionais, por meio de um mtodo lgico, rigoroso, cientfico e incontestvel, que leve verdade dos fenmenos observados. segunda, uma valorizao do particular e da compreenso do sentido do mundo, levando em conta as subjetividades e as interpretaes. Associadas modernidade, levadas ao mximo pelos Iluministas, esto as seguintes noes: mobilidade; crena na igualdade dos homens; atribuio de um carter positivo s cincias, como forma de melhorar a vida das pessoas; confiana no conhecimento e no saber; realizao da integrao do homem natureza por meio da razo. Por outro lado, tambm podem ser somadas a essas, as noes de pertencimento do homem natureza, pela via do sentimento, da identidade, da empatia, da expresso, e do individualismo. Essa segunda forma de entendimento da modernidade se alinha com o Romantismo, movimento esttico iniciado no final do sculo XVIII e que durou at o sculo XIX, em que se estabeleceu uma oposio ao racionalismo e uma adeso ao lirismo, subjetividade, ao eu, emoo, ao esprito romntico. Tomado em uma perspectiva mais ampla do que a artstica, o Romantismo pode ser entendido como uma postura filosfica idealista que abrangeu diferentes reas da produo intelectual. Pensar a realidade social, a partir do ponto de vista ps-moderno, pode remeter a imagens de descontinuidades, fragmentao, heterogeneidade e complexidades que no existiam no perodo precedente. No entanto, a imagem do perodo moderno como um momento histrico, em que prevaleceu uma forma homognea de desenvolvimento, pode estar equivocada. Anthony Giddens (1991, p. 15) alertou sobre este ponto e, ao mesmo tempo, mostrou para qual dos lados, no debate sobre modernidade e psmodernidade, tendeu o seu pensamento.

36Deslocar a narrativa evolucionria, ou desconstruir seu enredo, no apenas ajuda a elucidar a tarefa de analisar a modernidade, como tambm muda o foco de parte do debate sobre o assim chamado ps-moderno. [...] Desconstruir o evolucionismo social significa aceitar que a histria no pode ser vista como uma unidade, ou como refletindo certos princpios unificadores de organizao e transformao. Mas isto no implica que tudo caos ou que um nmero infinito de histrias puramente idiossincrticas pode ser escrito. H episdios precisos de transio histrica, por exemplo, cujo carter pode ser identificado e sobre os quais podem ser feitas generalizaes.

Mesmo que a modernidade tenha rompido com todos os tipos tradicionais de ordem social de uma maneira que no tem precedentes (GIDDENS, op. cit., p. 14), existiram algumas continuidades remanescentes da era pr-moderna - ainda que devam ser vistas, em condies de modernidade, como elementos pontuais e subordinadas a uma lgica completamente diferente da ordem pr-existente - como, por exemplo, as cidades. De forma geral, as instituies que se firmaram sob a nova condio, se diferenciaram completamente das que existiam na ordem anterior. O Estado-nao, a transformao do trabalho, as formas de explorao do meio ambiente progressiva e abrangente o desenvolvimento de tecnologias mais eficientes produo e aos deslocamentos de pessoas e produtos, as formas de controle das relaes sociais, o interesse e a preocupao com o conhecimento cientfico obtido, agora, a partir de instituies seculares foram exemplos de como as sociedades ocidentais mudaram a face do mundo. Esses elementos, oriundos da modernidade, permearam as relaes sociais, trazendo aspectos positivos e negativos, ao mesmo tempo. fato que muitas das novidades que se estabeleceram com essa nova ordem, trouxeram alvio e esperana de uma vida melhor para muitas pessoas. No entanto, por outro lado, promoveram formas de violncia vida e ao planeta, como nunca havia sido possvel s sociedades prmodernas. A crena nos aspectos benficos da modernidade impregnou a anlise dos fundadores da sociologia. Os socilogos Marx, Durkheim e Weber - de forma geral e cada um enfatizando determinados aspectos acreditaram nesse perodo, como necessrio a um devir redentor da humanidade. Max Weber, entre os trs, foi o mais ctico e pessimista, por ter acreditado que a burocracia, derivada da expanso das relaes sociais, sufocaria o homem. Nenhum deles previu, no entanto, o que Giddens chamou de industrializao da guerra. Em sua anlise, no livro As conseqncias da Modernidade, esse autor colocou o poder militar como uma das quatro dimenses institucionais da modernidade, ao lado

37 do capitalismo, do industrialismo e da vigilncia. Lembrou que o sculo XX foi o sculo da guerra, e fez a estimativa de 100 milhes de mortos em conflitos militares, ao redor do mundo (GIDDENS, op. cit., p. 19) . De fato, esse terrvel flagelo j estava presente no sculo XVI, quando europeus chegaram no continente americano, para trucidar por volta de 150 milhes de nativos, no decorrer de apenas um sculo. E no corpo-a-corpo, com a tecnologia de facas, machados, lanas e, talvez, algumas pistolas ou garruchas arcaicas. Sobre este aspecto, h uma interessante passagem no filme As invases brbaras3. De qualquer forma, no sculo XVI ou no XX, a violenta expanso dos Estados-Nao foi uma das conseqncias da modernidade. A diferena entre essas duas formas de fazer guerras, separadas pelos avanos tecnolgicos e pelos sculos, resulta de uma das principais caractersticas da modernidade, mencionada na anlise de Giddens: o distanciamento tempo/espao, causado pelo dinamismo da modernidade. O conceito de desencaixe dos sistemas sociais, gerado a partir de fatores da separao do tempo e do espao e do deslocamento das relaes sociais de contextos locais de interao, um dos pilares da Teoria da Estruturao, proposta por ele. Ao construir este conceito, ele se convenceu de que as teorias sociolgicas que prezam termos como diferenciao ou especializao funcional, para explicar a transio do mundo tradicional para o mundo moderno e o fenmeno da vinculao do tempo e do espao pelos sistemas sociais, no so producentes. Ele sugere que a imagem evocada pelo desencaixe mais apta a capturar os alinhamentos em mudana de tempo e espao que so de importncia fundamental para a mudana social em geral e para a natureza da modernidade, em particular (GIDDENS, op. cit., p. 30). O conceito de desencaixe constitudo por dois mecanismos. As fichas simblicas e os sistemas peritos. O primeiro desses mecanismos, as fichas simblicas, dizem respeito s formas simblicas de circulao, firmadas e revalidadas por sistemas sociais, indivduos ou3

LES INVASIONS BARBARES. Direo: Denys Arcand. Produo: Daniel Louis e Denise Robert. Intrpretes: Rmy Girard, Stphane Rousseau, Dorothe Berryman, Louise Portal, Dominique Michel, Yves Jacques, Pierre Curzi, Marie-Jose Croze, Marina Hands, Toni Cecchinato, Mitsou Glinas Johanne-Marie Tremblay, Denis Bouchard, Micheline Lanctt, Markita Boies, Izabelle Blais, Denys Arcand. Edio: Isabelle Dedieu. Direo de Fotografia: Guy Dufaux. Roteiro: Denys Arcand. Msica: Pierre Aviat. Canad: Astral Films / Centre National de la Cinmatographie / Cinmaginaire Inc. / Le Studio Canal+ / Harold Greenbury Fund / Productions Barbares Inc. / Pyramid Productions / Socit Radio-Canada / Tlfilm Canada/ Socit de Dveloppement des Enterprises Culturelles, 2003. 1 DVD (99 min.), cor, drama.

38 grupos. Um dos exemplos de fichas simblicas, segundo o autor, o dinheiro. O dinheiro tem um valor nominal e serve para estar no lugar de coisas ou de mercadorias, ou de outros valores. Para que tenha validade, deve ser aceito na base da confiana no sistema financeiro, pelas sociedades por onde circula. Quando exemplificou o que seriam as fichas simblicas, Giddens retomou a discusso estabelecida por socilogos como Marx, Georg Simmel, Talcott Parsons e Niklas Luhmann, e economistas como Keynes, que apesar de seus diferentes enfoques, entenderam o importante carter social do dinheiro. Alguns deles comentaram as implicaes entre dinheiro e tempo, enquanto outros, como Simmel, o relacionaram com o espao. Giddens argumentou que o dinheiro - diferente de ser entendido como um fluxo, derivado da relao tempo/espao um meio de vincular tempo-espao associando instantaneidade e adiamento, presena e ausncia (GIDDENS, op. cit., p. 33). O que ele quis enfatizar foi a capacidade de desencaixe que o dinheiro tem, - assim como a de outras fichas simblicas - porque desloca no tempo e no espao as relaes sociais. Os sistemas peritos so o universo onde circulam os conhecimentos tcnicos, os saberes cientficos, as profisses autnomas. Procura-se por eles, quando se precisa da ajuda de advogados, engenheiros, arquitetos, mdicos, encanadores, mecnicos, ou quando se transita por lugares, nos quais deve haver uma ordenao espacial, como as ruas e as avenidas para os carros, por exemplo. As sociedades esto imersas em sistemas peritos. Talvez, seja por isso que elas, em geral, so to rigorosas no julgamento que fazem dos erros e, diga-se de passagem, muitas vezes m f de tcnicos, profissionais e instituies, cometidos no bojo destes sistemas. A queda de prdios ou avies, as imprudncias mdicas, as improbidades administrativas, as falhas de projetos, as incorrees de orientaes profissionais so exemplos de eventos gerados pelos sistemas peritos. A