Tantra e Budismo

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TANTRA E BUDISMO

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Primeira Parte: Perguntas e Dúvidas Fundamentais Sobre o Tantra2 A Autenticidade dos TantrasA Origem dos Tantras

A prática tântrica requer a convicção da autenticidade dos tantras, a compreensão correta dos seus métodos e teoria e a certeza da sua validade como processos conducentes à iluminação. De acordo com a tradição tibetana, a fonte dos tantras é o próprio Buda Shakyamuni. Contudo, muitos eruditos ocidentais e budistas disputaram essa questão. No entanto, segundo padrões científicos ocidentais, nenhum dos textos atribuídos ao Buda – nem sutras nem tantras – pode passar o teste de autenticidade. A questão é se isto é crucial aos praticantes do tantra ou outros critérios são para eles mais relevantes.Os tibetanos explicam que o Buda Shakyamuni ensinou três veículos ou caminhos de prática que conduzem aos objetivos espirituais mais elevados. O veículo modesto (pequeno veículo), Hinayana, conduz à liberação, enquanto que o grande veículo, Mahayana, conduz à iluminação. Embora Hinayana seja um termo pejorativo que aparece apenas em textos Mahayana, nós iremos aqui usá-lo sem

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quaisquer conotações negativas como termo geral amplamente reconhecido para as dezoito escolas budistas pré-Mahayana. Tantrayana, o veículo do tantra – também chamado Vajrayana, o veículo forte-como-um-diamante (veículo do diamante) – é uma subdivisão do Mahayana. O Hinayana transmite apenas os sutras, enquanto que o Mahayana transmite tanto os sutras como os tantras.Ninguém registou os discursos ou diálogos instrutivos do Buda quando ele os deu há dois mil e quinhentos anos, dado que o costume indiano desse tempo limitava o uso da escrita às transações comerciais e militares. No entanto, no ano seguinte ao falecimento do Buda, quinhentos dos seus seguidores reuniram-se em conselho no qual três dos seus principais discípulos recitaram partes diferentes das suas palavras. Subsequentemente, diferentes grupos de monges tomaram a responsabilidade de memorizar e de periodicamente recitar seções específicas delas. A responsabilidade passou de uma geração de discípulos para a seguinte. Essas palavras tornaram-se os sutras Hinayana. A reinvindicação à sua autenticidade fica exclusivamente na crença de que os três discípulos originais tinham uma perfeita

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recordação e de que todos aqueles que no conselho confirmaram as suas narrativas se lembravam das mesmas palavras. Estas duas condições são impossíveis de se estabelecer cientificamente.Mesmo se a transmissão original estivesse livre de corrupção, muitos discípulos proeminentes em gerações subsequentes não tinham memórias perfeitas. Cem anos depois do falecimento do Buda surgiram conflitos de opiniões sobre muitos dos sutras Hinayana. Em consequência disso emergiram dezoito escolas, cada uma com a sua própria versão daquilo que o Buda disse. As escolas até discordaram sobre o número de discursos e diálogos do Buda que foram recitados no primeiro conselho. De acordo com algumas versões, vários discípulos do Buda não tiveram possibilidade de estar presentes e transmitiram por via oral exclusivamente aos seus próprios estudantes os ensinamentos de que se lembravam. Os exemplos mais proeminentes dizem respeito aos textos relativos aos tópicos especiais de conhecimento (sânsc.abhidharma). Durante muitos anos, as gerações subsequentes recitaram-nos fora das reuniões oficialmente sancionadas e apenas mais tarde alguns

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conselhos adicionaram-nas à coleção Hinayana.As primeiras escrituras apareceram por escrito quatro séculos depois de Buda, em meados do primeiro século A.C. Eles eram os sutras Hinayana da escola Theravada, a linha dos idosos. Gradualmente, os sutras das outras dezassete escolas Hinayana também emergiram em forma escrita. Embora a versão Theravada fosse a primeira a aparecer em escrito e embora Theravada seja a única escola Hinayana que hoje sobrevive intacta, estes dois fatos são inconclusivos quanto à prova de que os sutras Theravada são as autênticas palavras do Buda.Os sutras Theravada estão em língua Pali, enquanto que as outras dezassete versões estão em várias línguas indianas, tais como sânscrito e o dialeto local de Magadha, a região onde o Buda viveu. Contudo, não se pode estabelecer que Shakyamuni ensinou em apenas uma ou em todos estes idiomas indianos. Assim, nenhuma versão dos sutras Hinayana pode pretender a autênticidade com base na língua.Além disso, o Buda aconselhou os seus discípulos a transmitirem os seus ensinamentos em quaisquer formas compreensíveis. Ele não queria que os seus seguidores congelassem as suas palavras numa língua sagrada arcaica

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como aquela das escrituras indianas antigas, os Vedas. Consistente com esta recomendação, diferentes partes de ensinamentos Hinayana do Buda apareceram primeiro por escrito em várias línguas indianas e em estilos de composição e de gramática dissimilares para se adequarem à época. Os sutras e os tantras Mahayana também exibem uma grande diversidade de estilo e línguagem. De um ponto de vista budista tradicional, a diversidade da línguagem prova mais a autênticidade do que a refuta.De acordo com a tradição tibetana, antes dos ensinamentos do Buda terem sido postos em escrita, os discípulos recitavam os sutras Hinayana abertamente em grandes congregações monásticas; os sutras Mahayana em grupos pequenos e privados e os tantras em extremo segredo. Os sutras Mahayana apareceram primeiro nos inícios do século II D.C., e os tantras começaram talvez a emergir tão cedo quanto um século depois, embora seja impossível qualquer datação precisa. Como notámos acima, de acordo com várias tradições Hinayana, círculos privados até transmitiram oralmente alguns dos mais famosos textos Hinayana antes das principais assembleias monásticas as terem integrado no conjunto do

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que recitavam abertamente. Portanto, a ausência de um texto na agenda do primeiro conselho não refuta a sua autênticidade.Além disso, os participantes das sessões de recitação do tantra juraram votos de silêncio para não revelar os tantras aos não iniciados. Portanto, não é de surpreender que os relatos pessoais das reuniões do tantra não tenham aparecido. Assim, é difícil provar ou refutar a transmissão pré-escrita dos tantras e a ocorrência das reuniões secretas. E mais, mesmo se aceitarmos a transmissão oral pré-escrita dos tantras, é impossível estabelecer como e quando tal transmissão começou, como é o caso com as escrituras Hinayana ausentes no primeiro conselho.Como argumentou o mestre indiano Shantideva, em Engajando no Comportamento do Bodhisattva (sânsc. Bodhicharyavatara), qualquer linha de raciocínio apresentada para provar ou desacreditar a autênticidade dos textos Mahayana aplica-se igualmente às escrituras Hinayana. Consequentemente, a autênticidade dos tantras deve apoiar-se em outros critérios que não os fatores linguísticos e a data da escrita inicial.Diferentes Pontos de Vista de Buda Shakyamuni como Professor

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Uma fonte principal de confusão ao tentarmos verificar a origem dos tantras deve-se ao fato de budologistas ocidentais, eruditos Hinayana e autoridades Mahayana considerarem diferentemente o Buda Shakyamuni. Os budologistas aceitam Shakyamuni como uma figura histórica e um grande professor, mas não o consideram como tendo possuído poderes superhumanos, como tendo até instruído não-humanos, e como tendo continuado a ensinar após a sua morte. Embora os eruditos Hinayana concedam que o Buda Shakyamuni teve poderes extraordinários e podia ensinar todos os seres, eles colocam pouca ênfase nestas qualidades. Além disso, eles dizem que a morte de Shakyamuni marcou o fim das suas atividades de ensino.Os eruditos dos sutras e dos tantras Mahayana explicam que Shakyamuni tinha-se transformado em Buda há muitos éons atrás e meramente exibiu os estágios para se tornar iluminado durante a sua vida como príncipe Siddhartha. Ele continuou a aparecer em várias manifestações e a ensinar a partir dessa altura, usando uma grande variedade de habilidades paranormais. Eles citam o Sutra Lótus, no qual Shakyamuni proclamou que iria manifestar-se

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no futuro como vários mestres espirituais, cujos ensinamentos e comentários seriam tão autênticos como foram as suas próprias palavras. Além disso, os eruditos Mahayana aceitam que os budas podem-se manifestar simultaneamente em várias formas e lugares, com cada emanação ensinando um tópico diferente. Por exemplo, quando apareceu como Shakyamuni propondoOs Sutras Prajnaparamita (perfeição da sabedoria), em Vultures Peak no norte da India, o Buda também se manifestou no sul da India como Kalachakra expondo as quatro classes dos tantras em Dhanyakataka Stupa.A visão Mahayana de como os budas ensinam estende-se para além de pessoalmente instruir discípulos. Shakyamuni, por exemplo, inspirou também outros budas e bodhisattvas (aqueles inteiramente dedicados a atingir a iluminação e a ajudar os outros) a ensinar em seu lugar, como quando Avalokiteshvara expôs O Sutra coração na presença do Buda. Ele também permitiu outros a ensinar a sua mensagem pretendida, tal como Vimalakirti em O Sutra Instruindo sobre Vimalakirti.E mais, em épocas mais tardias, Shakyamuni e outros budas e bodhisattvas, que tinham permissão para ensinar em seu lugar,

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apareceram em visões puras a discípulos altamente avançados e revelaram ensinamentos adicionais do sutra e do tantra. Por exemplo, Manjushri revelou A separação dos quatro tipos de agarramento aSachen Kunga-nyingpo, fundador da tradição Sakya tibetana, e Vajradhara apareceu repetidamente a mestres na India e no Tibete e revelou ainda outros tantras. Além disso, os budas e os bodhisattvas transportaram discípulos a outros reinos a fim de os instruir. Por exemplo, Maitreya levou o mestre indiano Asanga à sua terra pura e lá transmitiu-lhe os C inco textos.Porque as audiências para os ensinamentos do Buda consistiam de uma variedade de seres, e não só de seres humanos, alguns deles protegeram material para épocas futuras mais conducentes. Por exemplo, os nagas, metade-humanos e metade-serpentes, preservaram Os Sutras Prajnaparamita no seu reino subterrâneo, sob um lago, até que Nagarjuna, um mestre indiano, os foi adquirir novamente. Jnana Dakini, uma adepta feminina supranormal, guardou O Tantra de Vajrabhairava em Oddiyana até que o mestre indiano Lalitavajra para lá viajou a conselho de uma visão pura de Manjushri. Além disso,

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mestres indianos e tibetanos esconderam escrituras para as salvaguardar em lugares físicos ou implantando-as como potencialidades nas mentes de discípulos especiais. Gerações mais tardias de mestres descobriram-nas como textos-tesouro (terma, gter-ma). Asanga, por exemplo, enterrou A Interminável Continuidade Última (O Eterno Contínuo Último) deMaitreya e o mestre indiano Maitripa desenterrou-o muitos séculos mais tarde. Padmasambhava escondeu inumeráveis textos de tantra no Tibete, que os mestres Nyingma subsequentes descobriram nos recessos dos templos ou nas suas próprias mentes.Quando a tradição tibetana se refere a Shakyamuni como a fonte dos tantras, está-se a referir ao Buda descrito em comum pelas tradições Mahayana de sutra e tantra. Se os potenciais praticantes de tantra abordarem a questão da autenticidade com a atitude de aceitarem meramente as descrições dos budologistas ou eruditos Hinayana, então naturalmente um tal Buda não poderia ter ensinado os tantras. Contudo, isto é irrelevante a tais pessoas. Os praticantes de tantra não têm o objetivo de se transformarem no tipo de budas que os budologistas e os eruditos Hinayana

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descrevem. Através da prática tântrica, o seu objetivo é transformarem-se em Budas como descritos nos ensinamentos Mahayana de sutra e tantra. Uma vez que eles aceitam Shakyamuni como tendo sido um tal Buda, aceitam certamente que ele tenha ensinado os tantras de todas as maneiras milagrosas que a tradição relata.A Relação entre o Tantra Budista e o Tantra HinduA literatura tântrica começou a aparecer em ambas as tradições budista e hindu aproximadamente no século III D.C. na India. No entanto, são inacessíveis datas precisas e as duas tradições indubitavelmente pré-datam o aparecimento dos seus textos. Não obstante os contextos filosóficos e éticos difiram, as práticas devocionais, os exercícios de yoga e numerosos aspectos de costumes matriarcais, tribais e marginais mais antigos são proeminentes em cada uma delas. Por exemplo, ambos os sistemas incluem a visualização de figuras com múltiplas faces e braços, manipulação de energias sutis através dos nódulos energéticos (sânsc.chakras), veneração das mulheres, uso de ornamentos de osso e de instrumentos musicais, imagens de locais de cremação e matadouros, e transformação de produtos

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corporais sujos. Assim, é difícil provar que um tenha sido a fonte de uma característica específica do outro. Podemos apenas dizer que os dois foram movimentos contemporâneos. Além disso, dado que os praticantes de tantra budistas e hindus frequentavam assiduamente os mesmos lugares sagrados, é provável que cada grupo tenha influenciado o outro.Budologistas e eruditos tradicionais Tantrayana concordam que a história do budismo relata a adaptação de importantes temas budistas a vários meios culturais, mas diferem nas suas explicitações acerca do processo. Os budologistas não aceitam que o Buda tenha ensinado os tantras. Eles assumem que mestres mais tardios desenvolveram uma forma tântrica de budismo e compuseram os seus textos por forma a irem ao encontro do espírito da época na India. Por um lado, os eruditos tradicionais Tantrayana afirmam que os poderes supramundanos do Buda permitiram-lhe prever desenvolvimentos culturais e que ele pessoalmente ensinou o tantra para servir as pessoas do futuro. Assim, quando chegasse a hora certa, aqueles que secretamente transmitiam os tantras - oralmente ou enterrados nas suas continuidades mentais –

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tornaram-nos disponíveis aos praticantes receptivos. Alternativamente, o Buda revelou os tantras em visões puras a mestres altamente realizados que os registaram pela primeira vez. A explicação de cada grupo de eruditos concorda com o seu modo particular de ver o Buda e com o princípio budista geral de ensinar através de meios hábeis.A Continuidade da Luz Clara como a Fonte Mais Profunda dos TantrasEm U ma lâmpada iluminante, o mestre indiano Chandrakirti explicou que as asserções dos textos tântricos mais elevados têm diversos níveis de significado, e que alguns deles podem ser válidos apenas para grupos específicos. Por exemplo, alguns níveis são válidos exclusivamente para praticantes do tantra mais elevado e alguns são aceitáveis também aos seguidores de ensinamentos budistas supostamente inferiores. Além disso, as asserções com significados compartilhados podem ter níveis de interpretação literais e não-literais, apenas literais ou apenas não-literais. Têm significados literais se concordarem com a experiência dos grupos que as aceitam; têm significados não-literais se elas se referirem a níveis mais profundos de significado.Deixem-nos aplicar a análise de Chandrakirti à

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asserção que o Buda Shakyamuni ensinou os tantras através de meios extraordinários, tais como a revelação. Alguns budologistas podem aceitar a asserção como tendo um nível não-literal mais profundo de significado, mas rejeitariam uma interpretação literal, uma vez que a revelação está fora do reino da sua experiência pessoal. No entanto, a asserção concorda com a experiência de numerosos mestres dos sutras Mahayana, uma vez que tanto eles como muitos mestres tântricos receberam ensinamentos budistas através de revelações. Assim, os seguidores dos sutras Mahayana e dos tantras aceitam que a asserção tenha um significado literal.Chandrakirti detalhou adicionalmente que os significados não-literais das asserções do tantra mais elevado apontam para um nível último de significado a respeito da continuidade de luz clara. Numerosos textos tântricos afirmam que o Buda ensinou os seus conteúdos sob a forma de Samantabhadra, de Vajradhara ou do AdiBuda (Buda primordial) Kalachakra – três figuras búdicas que representam a continuidade de luz clara. Assim, o significado ultimo não-literal das asserções é que a fonte mais profunda dos ensinamentos do tantra é a

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continuidade de luz clara iluminadora de um Buda.De acordo com a explicação do tantra mais elevado sobre a natureza búdica, especialmente a da tradição Nyingma, a parte refinada da continuidade de luz clara de cada pessoa possui inatamente todas as qualidades iluminadoras. Consequentemente, assim como a confusão que acompanha a parte não refinada em cada indivíduo pode causar os ensinamentos enganosos de um charlatão, a parte refinada pode tornar-se fonte de ensinamentos búdicos adicionais. Assim, mesmo quando a continuidade de luz clara de alguém está ligeiramente menos refinada que totalmente refinada, e ainda flui como um tantra do caminho, se as condições adequadas internas e externas estiverem presentes, a sua parte refinada pode espontâneamente produzir novos ensinamentos tântricos. Antes de chegar a hora certa e de ocorrer um surgirmento espontâneo, os ensinamentos são transmitidos numa forma escondida, de uma vida à vida seguinte, como partes das potencialidades não realizadas da continuidade de luz clara da pessoa. Se a pessoa a quem ocorre o surgimento espontâneo aceitar a compartilhada estrutura conceptual

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Mahayana da revelação, é provável que ela descreva e experiencie subjetivamente o fenômeno em termos dessa estrutura. A descrição e a experiência serão válidas para essa pessoa.Consideremos, por um lado, o caso de budologistas que aceitam as proposições da psicologia transpessoal, por exemplo, a afirmação de que as chaves para se atingir a auto-realização estão encaixadas nas potencialidades do inconsciente de cada pessoa. Os bloqueios mentais, simbolizados nos mitos por criaturas subterrâneas tipo-dragões, tais como os nagas, guardam-nas e mantêm-nas submersas. Os métodos para a auto- realização permanecem escondidos no inconsciente até um indivíduo alcançar um nível suficiente de desenvolvimento espiritual e chegar a hora certa para a sua revelação. Uma vez que tais budologistas consideram o inconsciente como um equivalente para a continuidade de luz clara, eles podem aceitar um nível partilhado de significado com os praticantes de tantra a respeito da asserção de que o Buda ensinou os tantras, embora eles rejeitem completamente o seu significado literal. Eles poderiam aceitar o Buda como fonte dos ensinamentos de tantra

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apenas no sentido em que o Buda representa o inconsciente. Ou seja, os ensinamentos do tantra vêm do inconsciente dos vários mestres em cujas mentes eles surgiram espontâneamente.Os Critérios para se Estabelecer a Autenticidade dos TantrasA sua linhagem ininterrupta de regresso ao Buda é o critério principal para se estabelecer um ensinamento como autenticamente budista – quer se descreva o Buda conforme a budologia clássica, a psicologia transpessoal, o Hinayana, o Mahayana em geral ou conforme as perspectivas Tantrayana mais elevadas. Contudo, qualquer pessoa poderia dizer que recebeu uma transmissão tântrica do Buda numa visão pura ou que encontrou um texto-tesouro enterrado no chão ou na sua mente. Consequentemente, precisamos de outros critérios para estabelecermos a autenticidade dos tantras em geral e de qualquer um dos seus textos.Na escritura Hinayana, o Sutra Mahaparinirvana (Grande passagem para além), Shakyamuni discutiu o caso em que alguém possa alegar possuir um ensinamento autêntico fora daquilo que ele próprio tinha indicado. O Buda recomendou que os seus

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seguidores poderiam aceitá-lo como autêntico se, e só se, concordasse com o conteúdo do restante dos seus ensinamentos.Considerando acerca disto em Um Comentário sobre [“Um Comp ê ndio de] Mentes de Cogni ção Válida” [de Dignaga], o mestre indiano Dharmakirti propôs dois critérios decisivos para a autenticidade de um texto budista. O Buda ensinou uma variedade enorme de tópicos, mas apenas aqueles temas que repetidamente aparecem do princípio ao fim dos seus ensinamentos indicam o que o Buda realmente pretendia. Estes temas incluem: tomar uma direção segura (refúgio); compreender as leis da causa e efeito comportamentais; desenvolver a mais elevada disciplina ética; a concentração e consciência discriminadora de como as coisas realmente existem; e gerar o amor e a compaixão por todos. Um texto é um ensinamento budista autêntico se concordar com estes temas principais. O segundo critério para a autenticidade estabelece que a correta implementação das suas instruções por praticantes qualificados tem de trazer os mesmos resultados que o Buda repetidamente indicou algures. A prática correta tem de

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conduzir à obtenção dos objetivos últimos da liberação ou da iluminação e dos objetivos provisionais da realização espiritual ao longo do caminho.A presença de um entrelaçar dos temas principais do Buda, a experiência e as realizações dos mestres passados e presentes afirmam a autenticidade dos tantras através destes dois critérios. Estes critérios estabelecem também a validade dos tantras, porque a sua prática correta produz os resultados indicados. Além disso, nós próprios podemos provar a sua autenticidade e validade diretamente, através do correto seguimento das instruções do tantra.Os Quatro Pontos Seladores (Autenticadores) para Marcar uma Perspectiva como Baseada nas Palavras IluminadorasComo uma explicação detalhada do primeiro critério de autenticidade de Dharmakirti, referiu-se Maitreya em A Interminável Continuidade Última (O Eterno Contínuo Último), a quatro pontos seladores (autenticadores) para marcar uma perspectiva como sendo baseada nas palavras iluminadoras de um Buda. Se um corpo de ensinamentos contiver os quatro, carrega o selo de

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autenticidade como um ensinamento budista porque o seu ponto de vista filosófico é concordante com a intenção das palavras do Buda: (1) Todos os fenômenos afetados (condicionados) são não-estáticos (impermanentes). (2) Todos os fenômenos infectados (contaminados) pela confusão envolvem problemas (sofrimento). (3) Todos os fenômenos são carentes de identidades não-imputadas. (4) Uma eliminação total de todos os problemas (sânsc. nirvana) é uma pacificação total.A perspectiva tântrica budista conforma-se com os quatro pontos seladores (autenticadores): (1) Todas as coisas afetadas por causas e condições mudam de momento a momento. Mesmo com a realização da iluminação através dos métodos do tantra, a compaixão continua a conduzir um Buda a benefíciar os outros em modos sempre-mutáveis. (2) Como um método para se alcançar a iluminação, a classe mais elevada do tantra aproveita a energia das emoções perturbadoras tais como o desejo ansioso. No entanto, este método liberta completamente o praticante de emoções perturbadoras e da confusão por trás delas. Precisamos de nos libertar delas para sempre, nós próprios, porque todos os

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fenômenos infectados trazem problemas. (3) Depois de termos explorado o poder da energia subjacente às emoções perturbadoras, tais como o desejo ansioso, usamo-lo para obter uma continuidade de luz clara. Este é o nível da mente mais conducente à realização não-conceptual de que todos os fenômenos carecem de identidades não-imputadas. (4) Desta realização da vacuidade ou ausência total, pacificamos e, assim, libertamo-nos a nós próprios de sucessões de momentos adicionais de vários níveis de confusão, dos seus hábitos e dos problemas que trazem. A realização desta pacificação total é a liberação total de todos os problemas. Assim, a perspectiva tântrica qualifica-se como autenticamente budista.Desenvolvendo uma Firme Convicção na Autenticidade dos TantrasPara darmos inteiramente o nosso coração à prática do tantra como um método para atingirmos a liberação e a iluminação, precisamos de nos concentrar no tantra com a firme convicção (mopa, mos-pa) de que é um ensinamento budista autêntico. A capacidade de nos concentrarmos desse modo cresce do acreditar que um fato é verdadeiro (daypa, dad-pa). O mestre indiano Vasubandhu, em Uma casa do tesouro de tópicos especiais do

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conhecimento, e o seu irmão Asanga, em Uma antologia de tópicos especiais de conhecimento, clarificaram o significado destes dois fatores ou ações mentais, que ocorrem ao concentrarmo-nos num fato. Nenhuma das ações mentais refere-se à focalização com fé cega em algo que pode ser ou não ser verdadeiro e que não compreendemos.Acreditar que um fato sobre algo é verdadeiro inclui três aspectos.(1) Acreditar num fato com clareza é a ação mental que está livre de dúvidas acerca de um fato e que limpa a mente de emoções e atitudes perturbantes em relação ao seu objeto. Por exemplo, quando se acredita com clareza que o tantra é um ensinamento budista, estamos cientes de que o tantra usa as emoções perturbadoras, tais como o desejo ansioso, como um método para livrarmo-nos para sempre a nós próprios de emoções perturbadoras. Acreditar neste fato liberta a mente do desejo ansioso de experienciar prazer através do tantra como um fim em si mesmo. Assim, acreditar com clareza num fato sobre algo decorre do correto entendimento da informação acerca disso.(2) Acreditar num fato com base na razão é a ação mental de se considerar um fato sobre algo

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como verdadeiro, com base no pensar sobre as razões que o provam. Por exemplo, podemos estar certos de que um ensinamento deriva de uma dada fonte apenas quando identificamos corretamente essa fonte. De acordo com os tantras, apenas o Buda, como descrito nos tantras, deu esses ensinamentos. Os textos não afirmam que o Buda, como entendido pelos eruditos Hinayana ou budologistas ocidentais, os ensinou. Além disso, os tantras contêm os temas principais que o Buda repetidamente ensinou algures, especialmente os quatro pontos seladores (autenticadores), que atestam que a sua perspectiva filosófica está baseada nas palavras do Buda. Compreendendo estas razões, podemos acreditar com confiança que os tantras são autenticamente budistas.(3) Acreditar num fato com aspiração a ele é a ação mental de considerar verdadeiro tanto um fato sobre algo como a aspiração que consequentemente temos em relação ao objeto. Com base nos dois aspectos anteriores de acreditar como verdadeiro o fato de que o tantra é um ensinamento budista autêntico, pode-se também acreditar como verdadeiro o fato de que posso atingir a iluminação através dos seus métodos e que, portanto, esforçar-me-

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ei a praticá-los corretamente.Quando acreditamos firmemente dessas três maneiras que o tantra é autenticamente budista, desenvolvemos a firme convicção desse fato. Estar-se firmemente convencido de um fato é a ação mental que foca sobre um fato que validamente verificámos ser isto e não aquilo. Isso torna a nossa crença tão firme que os argumentos e as opiniões alheias não nos irão dissuadir. A firme convicção cresce da familiaridade a longo prazo com as consequências que resultam do acreditar num fato, isto é, de vermos os benefícios que colhemos da prática correta do tantra. Contudo, mesmo antes de começarmos a prática do tantra, necessitamos de uma convicção firme da sua validade. Assim, a ceremónia da preparação aos empoderamentos tântricos (iniciações) inclui nas suas primeiras etapas uma explanação do tantra pelo mestre que os confere a fim de reafirmar a convicção tenaz dos potenciais discípulos.

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Compreendendo o Tantra

Alexander Berzin, 2002

Primeira Parte: Perguntas e Dúvidas Fundamentais Sobre o Tantra3 O Uso do Ritual na Prática do TantraEmbora a prática tântrica seja extremamente avançada, muitos ocidentais recebem empoderamentos tântricos sem uma preparação adequada e começam a prática tântrica sem uma compreensão profunda. No início, a maioria vê apenas as características superfíciais do tantra, tais como a sua ênfase no ritual, a sua profusão de figuras búdicas e seu uso de imagens sugestivas de sexo e violência. Muitos acham estas características intrigantes, problemáticas ou até mesmo confusas. Para beneficiarem mais inteiramente da sua prática inicial, tais ocidentais precisam de compreender e apreciar o significado e a finalidade destes aspectos pelo menos a um nível superficial. Quando superarem o

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seu fascínio, objeção ou preocupação inicial, podem examinar com vagar os níveis mais profundos que a superfície esconde.

Formas Ocidentais e Asiáticas de Criatividade

A prática de tantra envolve tocarmos pequenos sinos e movermos as nossas mãos com determinados gestos (sânsc. mudras) ao recitarmos textos – frequentemente em tibetano, sem tradução – e imaginarmo-nos como uma figura búdica. Algumas pessoas acham tal prática fascinante e mágica, dado que se podem perder em mundos exóticos de fantasia. Outros têm problemas com ela. Trabalhando numa forma integrada com o nosso corpo, voz e imaginação é deste modo um processo artístico criativo; contudo, parece haver uma contradição. A prática tântrica é altamente estruturada e ritualística, sem improvisação aparente. Por exemplo, imaginamos que o nosso corpo tem posturas, cores e números de membros específicos, com objetos específicos em cada mão e debaixo de cada pé. Imaginamos a nossa fala na forma

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demantras – frases fixas que contêm palavras e sílabas em sânscrito. Até a nossa maneira de ajudar os outros segue um padrão determinado: nós emanamos luzes de cores específicas e figuras que têm formas particulares. Muitos ocidentais gostariam de se desenvolver espiritualmente através da descoberta e do fortalecimento da sua criatividade, mas a prática estilizada dos rituais parece antitética à imaginação. Contudo, a sua compatibilidade torna-se evidente quando se compreende a diferença entre os conceitos de creatividade ocidentais e asiáticos.

Ser-se criativo no sentido ocidental contemporâneo requer produzir-se algo novo e único – seja uma obra de arte ou uma solução a um problema. A invenção é o caminho não-questionado ao progresso. Ser-se criativo pode também constituir parte de uma busca consciente ou não pelo ideal de beleza, que os gregos antigos igualaram com a bondade e a verdade. Além disso, a maioria dos ocidentais considera a criatividade como uma expressão da sua individualidade. Assim,

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para muitos, o seguimento dos modelos prescritos de rituais antigos como um método para o auto-desenvolvimento espiritual não parece ser criativo; parece ser restritivo.

A maioria das culturas asiáticas tradicionais, por exemplo a do Tibete, vêem a criatividade a partir de uma perspectiva diferente. Ser-se criativo implica duas facetas principais: dar-se vida a formas clássicas e encaixá-las harmoniosamente dentro de contextos variáveis. Consideremos, por exemplo, a arte tibetana. Todas as pinturas de figuras búdicas seguem as linhas que indicam o tamanho, a forma, a posição e a cor de cada elemento de acordo com proporções e convenções fixas. O primeiro aspecto da criatividade está no sentimento que os artistas transmitem através da expressão das caras, da subtiliza das linhas, da finura do detalhe, da luminosidade e da matiz das cores e do uso de sombras. Assim, algumas pinturas de figuras búdicas são mais vívidas e vivas do que outras, apesar de todos os desenhos da mesma figura terem formas e proporções idênticas. O segundo

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aspecto do estilo asiático de criatividade reside na escolha dos artistas dos fundos e do modo de colocar as figuras para criar composições harmoniosas e orgânicas.

A prática de tantra com figuras búdicas é um método imaginativo de auto-desenvolvimento que é criativo e artístico numa forma asiática tradicional, mas não de uma maneira ocidental contemporânea. Assim, imaginarmo-nos como uma figura búdica ajudando os outros difere significativamente de visualizarmo-nos como um super-herói ou uma super-heroína encontrando soluções geniais elegantes para os desafios, numa nobre busca pela verdade e justiça. Em vez disso, tentamo-nos encaixar harmoniosamente nas estruturas fixas da prática ritual, tentamos criativamente dar-lhes vida e seguir as suas formas em situações variáveis para corrigirmos desequilíbrios pessoais e sociais.

Criatividade e Individualidade na Prática de Tantra

Um outro fator que possivelmente contribui para a aparente contradição entre a prática

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do ritual tântrico e o ser-se criativo é a diferença entre a visão tradicional asiática e a visão ocidental contemporânea sobre a individualidade e o papel que ela desempenha no auto-desenvolvimento. De acordo com o pensamento igualitário ocidental, todos somos iguais mas cada um de nós tem algo original dentro de nós – seja código genético ou alma – que, através do seu próprio poder, nos faz especiais. Depois de “nos termos encontrado a nós próprios,” o objetivo do auto-desenvolvimento é a realização das nossas potencialidades criativas originais enquanto indivíduos, de modo a podermos usá-las na sua totalidade a fim de darmos as nossas contribuições particulares à sociedade. Assim, os artistas ocidentais contemporâneas, quase sem exceção, assinam os seus trabalhos e procuram o aplauso público para as suas auto-expressões criativas. Os artistas tibetanos, pelo contrário, geralmente permanecem anónimos.

Do ponto de vista budista, todos nós temos os mesmos potenciais de natureza búdica. Somos indivíduos; contudo, nada existe

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dentro de nós que, através do seu próprio poder, nos faça únicos. A nossa individualidade vem da enorme multiplicidade de causas e circunstâncias externas e internas que nos afetam: no passado, presente e futuro. O benefício que poderemos dar à sociedade vem do uso criativo das nossas potencialidades dentro do contexto da natureza interdependente da vida.

Então, a realização das nossas naturezas búdicas difere grandemente de se encontrar e expressar os nossos verdadeiros eus. Dado que todos têm as mesmas qualidades da natureza búdica, não há nada de especial acerca de qualquer um. Não há nada único para se encontrar ou se expressar. Para nos desenvolvermos, tentamos simplesmente usar, através de meios hábeis, os nossos materiais universais de trabalho – os nossos corpos, habilidades comunicativas, mentes e corações – para nos adaptarmos, como qualquer um pode, às situações sempre-mutáveis que encontramos. Além disso, avançamos para a Budeidade ao imaginarmo-nos a ajudar os outros

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anonimamente – exercendo uma influência iluminadora e inspirando os outros que estão enfrentando dificuldades – , em vez de imaginarmo-nos proeminentes em primeiro plano, prontos a salvar.

Assim, o uso extensivo da prática ritual do tantra com figuras búdicas faz sentido apenas dentro do contexto da realização das potencialidades de natureza búdica, através da criatividade tradicional do estilo asiático. Damos vida à estrutura das potencialidades búdicas quando nos integramos harmoniosamente na sociedade e no ambiente, mantendo-nos na retaguarda.

Os Benefícios do Ritual Tântrico para os Ocidentais Muito Ocupados

Embora os ocidentais contemporâneos possam questionar a relevância da prática de rituais tântricos à maneira tibetana clássica como um método para se desenvolverem espiritualmente, podem contudo obter muitos benefícios temporários. Por exemplo, numerosos ocidentais levam uma vida constantemente cheia de pressão para serem originais,

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especiais e de progredirem. Necessitam de desenvolver continuamente novas idéias e melhores produtos, vendê-los e competir uns com os outros. Às vezes a tensão de terem de provar a si próprios e, ultimamente ao seu valor, conduz a sentimentos de alienação e isolamento. Quando as demandas ocidentais para a produtividade e engenho se tornam demasiado estressantes, praticar o estilo asiático da criatividade através de um ritual diário do tantra pode fornecer um contrapeso saudável. Encaixarmo-nos harmoniosamente dentro da estrutura de um ritual pode ajudar-nos a reforçar um sentimento de confortável ajustamento na família, nas amizades, na sociedade e na cultura. Além disso, mesmo que a nossa rotina diária seja repetitiva e o nosso trabalho pareça maçador, podemos aprender a dar-lhes nova vida através de uma expressão vívida dada cada dia no ritual do tantra.

E mais, muitos ocidentais correm freneticamente de uma atividade ou encontro para outros. Todos os dias usam o telefone, o email e a internet inumeráveis

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vezes, ouvem música, prestam atenção à televisão e operam uma variedade perplexa de máquinas complexas e de dispositivos eletrônicos. Sentem frequentemente que as suas vidas são fragmentadas, com as necessidades da família, do trabalho, sociais e lúdicas, empurrando-os em todas as direções. A prática de tantra pode ajudar tais pessoas a entrelaçar os aspectos aparentemente discrepantes das suas vidas ocupadas. A integração ocorre devido à harmoniosa combinação de numerosas emoções e atitudes construtivas e expressá-las como um todo integrado de maneiras físicas, verbais e visualizadas em simultâneo. Fazer isto na meditação diária reforça o reconhecimento e a convicção de que somos, por natureza, uma pessoa integrada. Gradualmente, um sentimento total de união se estende pelo dia inteiro.

Além disso, como a prática diária do tantra é estruturada e repetitiva, pode também fornecer a tais pessoas um fator estabilizador. Não importa quanto agitado cada dia possa parecer; a criação diária do espaço mental e emocional calmo do ritual tântrico faz com que as suas vidas fluam

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com fluxos estáveis de continuidade. Porque elas descobrem níveis de significação cada vez mais profundos ao irem de encontro ao desafio de interligar os elementos do ritual, evitam sentir que a repetição seja um aborrecimento. Ademais, o ritual do tantra dá-nos uma estrutura à volta da qual podemos desenvolver a disciplina que de outro modo poderia ser difícil obter. A disciplina adquirida com a repetição diária de um ritual estruturado pode também ajudar as pessoas a dar disciplina e ordem às suas vidas aparentemente caóticas.

O Ritual Tântrico como um Local para se Expressar Emoções

Muitos ocidentais contemporâneos sentem um respeito profundo por alguém ou algo, ou gratidão pelas alegrias da vida. No entanto,se elas não tiverem formas confortáveis de expressar as suas emoções que as elevam, podem achar os seus sentimentos tão amorfos que não conseguirão obter o seu alimento espiritual. O ritual de tantra pode fornecer a tais pessoas formas dentro das quais possam expressar as suas emoções

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positivas. Por exemplo, pressionar as palmas das nossas mãos uma contra a outra – a expressão ritualizada de respeito e gratidão compartilhada pelo tantra e religiões ocidentais – não reduz os sentimentos de elevação. Pelo contrário, fornece um canal muito viajado e comumente aceite para estes sentimentos fluirem do nosso coração e age como um recipiente adequado para eles. Além disso, porque o ritual do tantra tem formas holísticas de expressão das emoções que integram canais físicos, verbais e visualizados, a sua prática continuada pode ajudar pessoas emocionalmente constrangidas a superar a alienação dos seus sentimentos.

As vezes as emoções que elevam encontram uma expressão espontânea em formas de improviso. No entanto, seria entediante se precisássemos de encontrar uma maneira inovativa de expressar os nossos sentimentos cada vez que eles surgissem para que a sua expressão fosse sentida e sincera. O estilo de criatividade asiático de expressar emoções pode oferecer um equilíbrio. Quando os

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sentimentos que elevam surgirem, podemos espontânea e criativamente dar vida a formas rituais de expressá-los que encaixam harmoniosamente na nossa vida. Contudo, se nada sentirmos, então os rituais tântricos tornam-se meramente num ritual vazio. Consequentemente, os rituais do tantra incluem a meditação de pontos específicos que nos ajudam a gerar ou ter acesso a sentimentos sinceros.

Observações Finais

Participar nos rituais das religiões ocidentais tradicionais também fornece muitos dos benefícios oferecidos pela prática do ritual tântrico. No entanto, muitos ocidentais acham que, para eles, as ceremónias e os rituais das suas religiões de nascimento têm falta de vitalidade. Dado que tais pessoas têm menos associações negativas com os rituais tântricos, praticá-los pode oferecer-lhes uma via mais neutra para o desenvolvimento espiritual. Muitos descobrem que o estilo de criatividade asiático, que eles aprendem através do ritual tântrico, ajuda-os a encontrar e dar

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nova vida à fé tradicional dos seus antepassados.

Compreendendo o Tantra

Alexander Berzin, 2002

Primeira Parte: Perguntas e Dúvidas Fundamentais Sobre o Tantra4 Figuras BúdicasPara superarem o fascínio, a repulsa ou a confusão sobre a impressionante variedade de figuras búdicas usadas no tantra e sobre as suas estranhas formas, os ocidentais precisam de compreender o seu lugar e uso no caminho budista. Precisam também de diferenciá-las dos conceitos ocidentais de auto-imagens, arquétipos e objetos de

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oração. Se assim não for, podem confundir a prática do tantra com formas de psicoterapia ou de religião politeísta devocional e, assim, privarem-se dos benefícios totais da prática com figuras búdicas.

O Uso de Figuras Búdicas em Práticas Partilhadas pelo Sutra e Tantra Mahayana

Para obtermos presença mental e concentração, podemos focar, por exemplo, na consciência sensorial da sensação física da respiração, ao passar para dentro e para fora do nariz. Contudo, na prática dos sutras e tantras Mahayana, as figuras búdicas visualizadas servem, mais geralmente, como objetos de foco para a obtenção da concentração unifocada. Tal prática está de acordo com Uma antologia de tópicos especiais do conhecimento, em que Asanga definiu a concentração como o fator mental que mantém a consciência mental focalizada em objetos construtivos ou em estados mentais construtivos. O mestre Mahayana indiano definiu a concentração deste modo por causa das muitas vantagens adquiridas em

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desenvolvê-la especificamente com consciência mental.

Por exemplo, tornarmo-nos um Buda requer a concentração absorta no amor, na compaixão e na compreensão correta de como as coisas realmente existem. Se já tivermos desenvolvido a concentração através da consciência mental, podemos aplicá-la mais facilmente a estes estados mentais e emocionais do que se tivermos desenvolvido a concentração através da consciência sensorial. Além disso, dado que as figuras búdicas – especialmente a figura de Shakyamuni – representam a iluminação, focalizar nelas ajuda os praticantes a manter o objetivo da direção segura do refúgio. Ajuda-lhes também a manter a presença mental da motivação bodhichitta para conseguir a iluminação a fim de beneficiar os outros tanto quanto possível.

As práticas dos sutras e tantras Mahayana incluem ambas a visualização de figuras búdicas à nossa frente, no topo da nossa cabeça ou no nosso coração. No entanto, a prática de tantra é única no seu

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treinamento da auto-visualização como uma figura búdica. O imaginarmos a nós próprios como tendo as faculdades iluminadoras físicas, comunicativas e mentais de uma figura búdica age como uma poderosa causa para actualizarmos e alcançarmos estas qualidades.

Figuras Búdicas e Auto-Imagens

A maioria das pessoas tem uma ou mais auto-imagens com que se identificam. As imagens podem ser positivas, negativas ou neutras, exatas ou exageradas. As figuras búdicas, por outro lado, são imagens que representam apenas qualidades positivas exatas. Os praticantes do tantra, através da sua compreensão da natureza búdica, usam-nas para substituirem as suas usuais auto-imagens como uma parte integral do caminho à iluminação.

As figuras búdicas representam a totalidade de todos os potenciais da natureza búdica – ao nível da base, quando são não-refinados, ao nível do caminho, quando são parcialmente refinados e ao nível resultante da iluminação quando são totalmente refinados. Além disso, a maioria

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das figuras também representa um aspecto específico da natureza búdica ao nível da base, do caminho e resultante. Por exemplo, Avalokiteshvara representa a compaixão baseada no afeto natural do coração e Manjushri representa a sabedoria baseada na claridade inata da mente. Identificarmo-nos com a figura ajuda-nos a realçar a qualidade particular que ela representa.

Contudo, ao identificarem-se com figuras búdicas, os praticantes do tantra não ficam inchados com a ilusão de que são realmente aquilo que desejam ser. Eles baseiam as suas identificações nos potenciais das suas naturezas búdicas, que lhes permitem realizar estas qualidades por inteiro para o bem de todos. Alternativamente, eles compreendem que as figuras búdicas e as boas qualidades que elas incorporam são níveis quânticos refinados nos quais as suas próprias aparências e qualidades vibram validamente.

Por exemplo, as pessoas podem ter a auto-imagem de serem emocionalmente rígidas

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ou mentalmente lentas. Elas podem ser de fato tensas ou pouco inteligentes, mas identificarem essas qualidades como a sua auto-imagem pode facilmente deprimi-las e sufocar os seus esforços de beneficiar os outros. Por outro lado, se se imaginarem como figuras búdicas, cujos corações são ternos e cujas mentes são lúcidas, elas já não se preocuparão acerca de serem inadequadas. A visualização ajuda-lhes a ganhar acesso às qualidades positivas inatas, especialmente em momentos de necessidade.

Além disso, as pessoas geralmente consideram as suas auto-imagens como as suas identidades reais e inerentes. São quem elas realmente acreditam ser, não importa quais possam ser as circunstâncias. Os praticantes de tantra, por outro lado, não pensam nas figuras búdicas como dando-lhes as suas identidades inerentes por seus próprios poderes, independentemente da prática necessária à realizacao das qualidades que elas representam.

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Unindo-nos intimamente e transformando-nos imaginativamente numa figura búdica difere, de várias outras formas, de aperfeiçoar uma auto-imagem casualmente ou sistematicamente. Ao receberem empoderamentos antes de empreenderem a auto-transformação do tantra, os praticantes ativam e fortalecem formalmente os potenciais inatos que os permitem tornar-se como essas figuras. Eles obtêm experiências conscientes de que as figuras e suas qualidades existem inseparavelmente de eles próprios e que a vacuidade das suas continuidades mentais permite que ocorra a transformação. Os votos recebidos durante a ceremónia estabelecem, estruturam e fixam a íntima união. Além disso, o relacionamento estabelecido com o mestre tântrico empoderador fornece inspiração constante para a sustentação e estimulação dos potenciais durante todo o caminho.

Figuras Búdicas e Arquétipos

De acordo com a psicologia Jungiana, os arquétipos são símbolos para os padrões fundamentais de pensamento e de comportamento que estão presentes na

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parte coletiva do inconsciente de todos. Eles derivam da experiência coletiva da humanidade em geral ou de uma cultura ou época histórica em particular, e elas explicam [por que] as pessoas respondem às situações de maneiras similares a seus antepassados. Símbolos arquétipos, tais como o pai que ama, o velho sábio, o bravo herói ou a bruxa má, encontram expressão nos mitos e fantasias. As suas formas podem diferir de uma sociedade ou época à outra, mas os padrões de pensamento e comportamento que eles simbolizam permanecem os mesmos. A maturidade psicológica vem de se trazer o conhecimento intuitivo simbolizado pelo espectro inteiro dos arquétipos à consciência e de o incorporar harmoniosamente nas nossas vidas.

Alguns símbolos transmitem significados que são evidentes para pessoas de qualquer cultura – à primeira vista ou com uma simples explanação. Por exemplo, uma mãe alimentando uma criancinha simboliza universalmente o amor maternal. Contudo, outros símbolos não sugerem claramente aquilo que significam. Por exemplo, a

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figura de quatro-braços de Avalokiteshvara não sugere obviamente a compaixão, para pessoas de culturas não-budistas. Os significados que os arquétipos simbolizam são, na maior parte, suficientemente óbvios; enquanto que não são nada óbvios os significados simbolizados pelas figuras búdicas.

Além disso, os arquétipos são características universais do inconsciente coletivo de todos, enquanto que as figuras búdicas são características coletivas associadas com a continuidade de luz clara de todos. A continuidade de luz clara não é um equivalente para o inconsciente coletivo. Embora ambas as faculdades mentais tenham características sobre as quais não estamos normalmente conscientes, a continuidade de luz clara é o nível mais sutil da continuidade mental e dá a um indivíduo continuidade de uma vida à vida seguinte. O inconsciente coletivo, por outro lado, explica a continuidade de padrões míticos sobre gerações sucessivas. Manifesta-se em cada pessoa, mas apenas nos seres humanos, e

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não continua através de um processo de renascimento.

Além disso, as figuras búdicas não são representações concretas nem abstratas encontráveis numa continuidade de luz clara. Nem são encontráveis em qualquer outro lugar. Ao invés, as figuras búdicas representam os potenciais inatos da continuidade de luz clara de todos para fazer surgir padrões de pensamento e comportamento, quer os potenciais sejam não-realizados, realizados parcialmente ou inteiramente realizados. Elas representam os potenciais de qualidades positivas gerais, tais como a compaixão ou a sabedoria, e não o pensamento e o comportamento de específicos papéis familiares, sociais ou míticos. As figuras búdicas associadas com emoções perturbadoras, tais como a raiva, representam apenas a transformação e o uso construtivo da energia subjacente às emoções, e não as próprias emoções negativas destrutivas.

Além disso, o budismo clarifica o significado das figuras búdicas que são

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coletivas. O budismo aceita a existência dos universais e dos particulares. Os universais são abstrações metafísicas imputadas a grupos de itens similares para organizá-los em categorias delineadas por palavras e conceitos. Por exemplo, todas as pessoas têm características aparentemente similares nos seus rostos através das quais respiram. O nariz universal é uma imputação sobre estas características, permitindo que todas elas compartilhem do nome nariz. Contudo o nariz de todos é individual e o nariz de uma pessoa não é o de outra. Um nariz universal não existe em lado algum, em si próprio, como um modelo ideal, separado dos narizes particulares, nem as pessoas alcançam o nariz universal através da contemplação dos seus próprios narizes. O mesmo é verdade com as figuras búdicas e os potenciais da natureza búdica que elas representam. As figuras búdicas universais não existem enquanto seres individuais separados das continuidades de luz clara de indivíduos. Nem as pessoas ganham acesso às figuras búdicas universais através das figuras búdicas das suas

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continuidades de luz clara, como alcançar Deus através do espírito do divino dentro das suas almas.

Ademais, ao contrário dos arquétipos, as figuras búdicas não vêm ao consciente espontâneamente em sonhos, fantasias ou visões a menos que as pessoas se tenham familiarizado completamente com as suas formas durante as suas vidas ou em recentes vidas prévias. Isto mantêm-se verdade também para o bardo, os períodos entre a morte e o renascimento. O livro tibetano dos mortos descreve as figuras búdicas que aparecem durante o bardo e aconselha àqueles que se encontram no estado entre vidas que reconheçam as figuras como meras aparências produzidas pelas suas continuidades de luz clara. No entanto, as instruções dizem respeito às pessoas que praticaram o tantra durante as suas vidas. Aquelas que não têm a prática prévia do tantra normalmente experienciam as suas continuidades fazendo surgir durante o bardo outras aparências, não aquelas das figuras búdicas.

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Figuras Búdicas como Emanações dos Budas

Embora as figuras búdicas representem tanto a totalidade como os aspectos específicos das naturezas búdicas da base, do caminho e resultantes, as figuras búdicas não são meramente símbolos.Em Uma explanação extensiva da ”Lâmpada iluminante” (de Chandrakirti),Sherab-senggey, fundador do Colégio Tântrico do Sul Gelug, explicou que as figuras búdicas têm as mesmas continuidades que os budas. Isto porque são emanações das continuidades de luz clara iluminadoras dos budas. Por exemplo, embora Shakyamuni tivesse alcançado a iluminação há éons, emanou-se a si próprio como o príncipe Siddhartha e deu a aparência de se ter transformado num Buda durante a sua vida. Fê-lo para ajudar os principiantes a ganhar confiança de que a prática dos ensinamentos traz resultados. Similarmente, Shakyamuni assumiu a forma de Vajradhara quando transmitiu o Tantra Guhyasamaja e, simultaneamente, emanou-se a si mesmo como Vajrapani, o compilador dos ensinamentos. Buda deu meramente a aparência de que a figura

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búdica Vajrapani era alguém diferente de Vajradhara a fim de inspirar os principiantes a também ouvirem atentadamente os ensinamentos e a recordá-los e praticá-los conscienciosamente. Shakyamuni, Vajradhara e Vajrapani eram todos, de fato, a mesma pessoa.

Os budas emanam as figuras búdicas [a partir] das suas continuidades de luz clara para beneficiar os seres de muitas maneiras, particularmente servindo como representações dos vários fatores da natureza búdica. Ao entenderem a inseparabilidade entre as figuras búdicas e as continuidades de luz clara dos budas e dos mestres tântricos, os praticantes compreendem que as figuras búdicas, tanto imaginadas como reais, com quem se unem na meditação são emanações das suas próprias continuidades de luz clara. Assim, como cada continuidade de luz clara pode emanar uma aparência de um nariz, sem o nariz de uma pessoa ser o da outra, similarmente, cada continuidade de luz clara pode emanar figuras búdicas, embora as figuras búdicas de continuidade de luz

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clara não sejam as figuras búdicas de outra. O entendimento da inseparabilidade das figuras búdicas e das suas próprias continuidades de luz clara ajuda os praticantes a actualizar os fatores da natureza búdica que as figuras representam.

Figuras Búdicas como Objetos para Oração

Os praticantes do sutra e do tantra Mahayana rezam frequentemente a figuras búdicas, tais como Tara. As duas verdades ou fatos sobre as coisas, que o mestre indiano Nagarjuna elaborou em Versos raiz sobre o caminho do meio, explicam o fenômeno. De acordo com a comum interpretação do sutra e do tantra, a verdade convencional sobre algo é como aparece aos seres comuns. A sua verdade mais profunda é como realmente existe, um fato sobre um objeto que a sua aparência esconde.

Do ponto de vista convencional das pessoas comuns, as figuras búdicas tais como Tara parecem seres independentemente existentes com os poderes de conceder desejos aos suplicantes. Contudo, no mais

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profundo fato, não há nenhuma Tara independentemente existente: todas as Taras são emanações das continuidades de luz clara dos budas e das pessoas que rezam a Tara. Além disso, mesmo como emanações das continuidades de luz clara, as figuras búdicas não têm capacidade de causar resultados, tais como conceder desejos, através dos seus próprios poderes, dos seus próprios lados, independentemente de qualquer outra coisa. O budismo argumenta que tais capacidades são impossíveis. Não obstante, ofertas de orações a Tara pode ajudar a causar efeitos, quer entendamos ou não Tara como uma emanação do Buda ou como uma emanação das nossas próprias continuidades de luz clara, representando os seus potenciais. Isto porque o desejo forte da oração age como uma circunstância para ativar os nossos potenciais inatos.

Por exemplo, os seguidores rezam geralmente a Tara, como um ser externo para a proteção do medo. A Tara pode inspirar as pessoas a serem corajosas, mas a causa principal para superarem os seus

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medos são os potenciais das suas continuidades de luz clara para compreender como as coisas realmente existem e a coragem que isto naturalmente traz. No entanto, a inspiração (chinlab, byin-rlabs; sânsc. adhishthana, benção) é requerida para os seguidores ativarem e usarem os seus potenciais, e ela pode vir de fontes externas ou internas. Um fator importante da natureza búdica, de fato, é a capacidade de uma continuidade de luz clara de ser inspirada ou elevada.

Emanações Grosseiras e Sutis das Figuras Búdicas

Para beneficiar os outros, os budas emanam aparências múltiplas deles mesmos numa variedade de formas grosseiras e sutis. Eles assumem uma variedade de corpos sutis (sânsc. sambhogakaya) para ensinar os arya bodhisattvas – os únicos capazes de ver tais formas. Osa ryas(nobres) são seres altamente realizados com percepção e compreensão diretas, simples e não conceptuais de como as coisas existem. Os budas tomam uma variedade de corpos mais grosseiros (sânsc. nirmanakaya) a fim

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de beneficiar os seres comuns. Qualquer buda pode emanar corpos grosseiros ou sutis em formas de qualquer figura búdica ou ser comum, ou até de outro buda. O mesmo é verdade para as figuras búdicas ao aparecerem como se fossem seres iluminados individuais. No entanto, só aqueles que estão receptivos a receber a ajuda ou ensinamentos são capazes de se encontrar com budas em quaisquer formas e colher todo o benefício.

Os budas e as suas emanações de figuras búdicas residem nos seus próprios campos búdicos. Campos búdicos são reinos especiais não associados com a confusão da existência incontrolavelmente recorrente (sânsc. samsara). Eles são as terras puras onde os budas e as figuras búdicas se manifestam em formas sutis e ensinam aos arya bodhisattvas as etapas finais à iluminação. Dado que os campos búdicos estão para além da experiência comum dos budologistas e dos aderentes do Hinayana, a sua existência literal não seria, obviamente, aceitável para eles. No entanto, os praticantes do sutra e do tantra Mahayana consideram-nos como realmente

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existindo, embora ninguém os possam alcançar sem realizações pré-requisitas. Nem mesmo os grande mestres podem levar as continuidades mentais de pessoas recentemente falecidas às terras puras, a menos que os defuntos tenham acumulado os potenciais para isto a partir das suas próprias práticas.

O significado não-literal último dos campos búdicos é a continuidade de luz clara de cada ser individual. Dentro da esfera da continuidade de luz clara de cada ser, para além da confusão da existência incontrolável, residem os vários aspectos da natureza búdica, representados por figuras búdicas. Os arya bodhisattvas no caminho do tantra mais elevado – os únicos praticantes com acesso meditativo não-conceptual às suas continuidades de luz clara – ganham a realização final das suas naturezas búdicas enquanto nesse estado.

Às vezes, as figuras búdicas vêm dos seus campos búdicos em formas sutis de bodhisattvas e pedem a Shakyamuni que transmita os vários sutras e tantras, tal como Vajrapani pediu Um concerto d os

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nomes de Manjushri (E logios aos nomes de Manjushri). Como bodhisattvas, eles também podem estar presentes e compilar os discursos de Buda, tal como Vajrapani fez para o Tantra Guhyasamaja, ou dar ensinamentos em vez de Shakyamuni, como Avalokiteshvara fez comO sutra coração.Nesses casos, como explicado acima, as figuras búdicas e Shakyamuni partilham a mesma continuidade mental.

Alguns dos corpos grosseiros que os budas ou as figuras búdicas emanam dos seus campos búdicos foram pessoas históricas reais, tais como Padmasambhava, o mestre indiano responsável pela primeira propagação do budismo ao Tibete. Do ponto de vista da verdade convencional, estes grandes seres pareciam ter continuidades mentais individuais e apareceram como tais aos seres comuns, que conseguiam compreender apenas sobre eles esta verdade. Uma verdade mais profunda sobre eles era a de que as suas continuidades mentais eram uma com os budas e as figuras búdicas de quem eles eram emanações. Para budologistas e

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aderentes ao Hinayana, apenas a primeira afirmação sobre estas figuras históricas é verdadeira. Para praticantes do Mahayana, ambas as afirmações são fatos.

A prática de tantra inclui a visualização de nós próprios em formas de certas figuras históricas consideradas como emanações de figuras búdicas, tais como Padmasambhava, a sua companheira feminina Yeshey Tsogyel, ou o Segundo Karmapa, Karma Pakshi. Contudo, nem todos os mestres considerados como emanações de figuras búdicas servem como formas para a auto-visualização tântrica, como por exemplo os Dalai Lamas enquanto Avalokiteshvaras. Além disso, razões políticas podem ter motivado os tibetanos a dirigirem-se honorificamente a determinados governadores como emanações de figuras búdicas, tais como os imperadores manchurianos da China como Manjushris e os czars russos como Taras. A prática tântrica não inclui tais pessoas. Contudo, considerá-las como emanações está de acordo com o conselho geral Mahayana de evitar falar mal de qualquer um, porque nunca podemos afirmar quem

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pode ser uma emanação de um bodhisattva.

E mais, algumas emanações grosseiras de figuras búdicas, que os tibetanos consideram como tendo sido figuras históricas, seriam difíceis de confirmação por padrões ocidentais. Um exemplo proeminente é Tara. Tara apareceu como um indivíduo que durante uma vida desenvolveu, como uma mulher, a bodhichitta e transformou-se num bodhisattva. Ela fez votos de, a partir daí, continuar sempre a renascer como mulher e de atingir a iluminação numa forma feminina para incentivar as mulheres a seguir o caminho.

Figuras Búdicas como Recipientes para a Prática

As figuras búdicas são mais do que emanações que representam vários fatores da natureza búdica; elas também servem como recipientes de múltiplos propósitos. A motivação para a prática Mahayana é a de nos transformarmos em Buda para o benefício de todos. Tornármo-nos num Buda requer a realização de faculdades

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físicas, comunicativas e mentais iluminadoras. Tais faculdades necessitam do recipiente de uma forma física. Visualizarmo-nos como uma figura búdica age como uma causa para obtermos um recipiente físico – o corpo iluminador de um Buda. Serve também como um recipiente adequado às várias práticas tântricas para alcançar a iluminação, tal como visualizar os chakras e os canais do corpo sutil.

Como todos os budas, as figuras búdicas aparecem numa vasta rede de formas variadas para beneficiar os outros de várias maneiras. Por exemplo, o tantra abrange seis classes de prática de acordo com o sistema Nyingma e quatro de acordo com as escolas Kagyu, Sakya e Gelug. Além disso, cada tradição tibetana transmite vários estilos de prática para cada classe de tantra. Qualquer figura búdica pode servir como recipiente para qualquer número de práticas de qualquer número de tradições tibetanas e de qualquer número de classes de tantra. Em quaisquer dessas práticas, a mesma figura búdica pode aparecer em formas diversas, em posturas

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diversas, com cores e números de caras e membros diferentes. Os detalhes das aparências dependem do número de aspectos da natureza búdica ou da iluminação que a figura e as suas características representam. Por exemplo, Avalokiteshvara aparece em todas as classes de tantra, em todas as tradições, sozinho ou como parte de um casal, sentado ou de pé, branco ou vermelho, com uma ou onze cabeças, e com dois, quatro ou mil braços. No entanto, não obstante a forma ou a prática, Avalokiteshvara ainda serve como um recipiente para a focalização na compaixão.

Diversidade Cultural nas Figuras Búdicas

Alguns ocidentais sentem que as figuras búdicas são estranhas demais para satisfazerem as necessidades dos praticantes de tantra ocidentais. Eles gostariam [que houvesse] modificações nas suas formas. Antes de agirem precipitadamente, eles talvez pudessem beneficiar de estudos sobre os precedentes históricos.

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Quando a prática do tantra se disseminou da India à Ásia do leste e ao Tibete, algumas das figuras búdicas alteraram certamente de formas. Contudo, a maioria das mudanças foi menor. Por exemplo, as características faciais foram de encontro àquelas das raças locais e, no exemplo da China, a roupa, as posturas e os penteados também correspondiam. A alteração mais radical foi com Avalokiteshvara, que se transformou de homem em mulher na Ásia central e do leste. Uma explanação tradicional Mahayana para o fenômeno é que os budas são mestres de meios hábeis e portanto manifestam-se de formas diversas para servir sociedades variadas. Os chineses assocíam mais confortavelmente a compaixão com as mulheres do que com os homens. Os budologistas afirmam que os mestres tântricos fizeram estas modificações eles mesmos, usando meios hábeis para adaptar as formas ao gosto cultural. Os Mahayana argumentam que os mestres receberam a inspiração e a orientação, para as mudanças das próprias figuras búdicas, em visões puras e em outras revelações. Em

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qualquer caso, o ponto em comum é que o princípio budista de meios hábeis requer a modificação das formas para que se ajustem e assim beneficiem culturas diferentes.

As mudanças que ocorreram nas figuras búdicas encaixaram dentro do domínio do estilo asiático de criatividade. Deram nova vida às formas padrão e harmonizaram-nas com variados fundos culturais. Consistente com esta tendência, as figuras búdicas no ocidente podem razoavelmente adotar musculatura e características faciais ocidentais. No entanto, dado que os ocidentais estão habituados à diversidade cultural, é provavelmente desnecessário que as figuras búdicas mudem a sua roupa para a moda moderna. E mais, à luz da aceitação ocidental contemporânea da igualdade sexual, parece também improvável que mudanças de gênero necessitem de ocorrer.

Apesar das modificações, certas características das figuras búdicas permaneceram intocadas quando o tantra se disseminou de uma cultura asiática à

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outra. A mais visível é a retenção dos membros múltiplos. Avalokiteshvara ainda se manifesta com mil braços, seja num corpo masculino na India ou feminino na China. Pessoas com mil-braços são estranhas à experiência comum de qualquer cultura. Mas, como um símbolo de compaixão para ajudar outros de mil maneiras, o significado dos mil braços é compreensível a qualquer um.

Além disso, as caras e os membros múltiplos representam os múltiplos aspectos e realizações da natureza búdica ao longo do caminho. Por exemplo, é difícil manter presença mental simultânea de vinte e quarto qualidades e realizações de uma maneira abstrata. Ao representá-las graficamente com os vinte e quatro braços, é mais fácil mantê-las em mente todas de uma vez quando nos visualizarmos a nós próprios com uma variedade de braços. Eliminar as características de membros múltiplos das figuras búdicas, a fim de se fazer a sua visualização mais confortável para os ocidentais, sacrificaria esta faceta essencial da prática do tantra – o entrelaçar dos temas do sutra.

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O Possível Uso de Icones Religiosos Ocidentais como Figuras Búdicas

Quando as práticas do tantra se tornam tão intensamente publicitadas e bem conhecidas que se tornam banais, elas deixam de inspirar os praticantes. Quando isso acontece, os budas revelam novas formas de prática aos mestres tântricos em visões puras. As revelações incluem com frequência formas ligeiramente diferentes de figuras búdicas. Sua Santidade o XIV Dalai Lama explicou que o fenômeno continuará indubitavelmente no futuro. A sua predição faz sentido face à comercialização do budismo tibetano e do surgimento de produtos tal como t-shirts com a imagem de Kalachakra. As figuras búdicas e as suas práticas necessitam de permanecer privadas e especiais de modo a reterem a sua qualidade sagrada. Se os praticantes virem bebês babando o alimento nos seus t-shirts com a imagem de Kalachakra, podem começar a achar menos inspirador a auto-visualização como Kalachakras. No entanto, se novas formas de figuras búdicas surgirem no ocidente,

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que formas serão as mais úteis e inspiradoras?

Alguns ocidentais sentem que a visualização de si próprios como ícones religiosos ocidentais familiares, tais como Jesus ou Maria, em vez de como figuras indianas estranhas, pode ser um meio hábil de adaptar o tantra ao ocidente. Afinal, dizem eles, Jesus e Maria representam o amor e a compaixão tal como Avalokiteshvara e Tara. Além disso, se os budas podem emanar em quaisquer formas, certamente podem emanar como Jesus ou Maria para beneficiar os ocidentais. De novo, necessitamos de manter em mente os precedentes históricos.

Os governantes manchurianos da China tentaram unificar os mongóis e os chinêses de Han sob seu domínio, combinando o budismo tibetano com o confucionismo. Assim, por razões puramente políticas, chamaram Confúcio uma emanação de Manjushri, aprovaram a composição de rituais tântricos para fazer oferendas ao bodhisattva Confúcio e as cerimónias

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patrocinadas em Beijing, baseadas nestes textos. Contudo, os rituais não envolviam a visualização se nós próprios como a figura búdica de Confúcio/Manjushri.

No entanto, na India, algumas deidades hindus, tais como Ganesh com cabeça de elefante (deus da prosperidade) e Sarasvati (deusa da expressão musical e artística), apareceram como figuras búdicas para a auto-visualização na prática tântrica. Como mencionado acima, praticantes do tantra hindu e budista misturaram-se na India antiga e compartilhavam muitas características da prática. Não só deidades hindus apareceram como emanações do Buda na prática budista, mas também, correspondentemente, o hinduismo incluiu o Buda como uma das dez manifestações (sânsc. avatar) de Vishnu, um dos seus deuses principais. A inclusividade-plena é uma característica compartilhada pela maioria das religiões indianas.

As religiões monoteístas, por outro lado, consideram-se como guardiãs da verdade exclusiva. Os seus líderes ficariam indubitavelmente ofendidos se religiões

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não-teístas, tais como o budismo, declarassem que as suas figuras mais sagradas fossem emanações do Buda e as incorporassem nas suas práticas, particularmente em práticas que envolvam imagens sexuais. Um dos votos do bodhisattva é evitar-se fazer algo que leve os outros a depreciarem os ensinamentos do Buda. Então, adaptar Jesus e Maria para a auto-visualização do tantra pode prejudicar relações interfé.

Além disso, características associadas à imagem de Jesus, tal como a cruz e a coroa de espinhos, têm um significado profundo dentro do contexto cristão. Mesmo se o budismo ocidental as adaptasse como símbolos budistas, a maioria dos praticantes ocidentais encontraria dificuldades em desassociá-las das conotações cristãs. Porque a maioria dos símbolos envolvidos com as figuras búdicas, tais como lótus e jóias, está praticamente livre de associações para a maioria dos ocidentais, estão abertos a exprimir os seus significados pretendidos e assim mais adequados ao uso na prática do tantra. Consequentemente, se novas

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formas de figuras búdicas emergissem no futuro para rejuvenescer as práticas, elas provavelmente seguiriam o precedente e seriam variações menores de formas precedentes. Contudo, contrariamente aos produtos no mercado livre, não haverá nenhuma necessidade para novos modelos melhorados todos os anos.

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Compreendendo o Tantra

Alexander Berzin, 2002

Primeira Parte: Perguntas e Dúvidas Fundamentais Sobre o Tantra5 Imageria TântricaExaminando os Mal-Entendidos

Um dos aspectos mais perplexos e mais facilmente mal entendido do tantra é a sua imageria sugestiva de sexo, adoração ao diabo e violência. As figuras búdicas aparecem frequentemente como casais em união, muitas tendo caras demoníacas, aparecendo de pé rodeadas de flamas, e a espezinhar seres indefesos debaixo dos seus pés. Os primeiros eruditos ocidentais, vindos frequentemente de uma herança social victoriana ou missionária, ficaram horrorizados ao ver essas imagens.

Mesmo hoje em dia, algumas pessoas acreditam que os casais significam a exploração sexual das mulheres. Outros imaginam que os pares em união representam a transcendência de toda a dualidade até ao ponto em que não há nenhuma diferença entre o “bem” e o “mal”. Por conseguinte, pensam que o

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tantra é imoral e que não só aprova mas até incentiva o uso do álcool e das drogas e o comportamento hedonista, criminal e despótico. Alguns vão até ao ponto de acusar mestres tântricos bem-respeitados de conspirar para a conquista do mundo.

Os ocidentais não foram os primeiros a declarar o tantra como uma forma degenerada de budismo. Quando o tantra chegou originalmente ao Tibete, em meados do século VIII, muitos interpretaram a imageria literalmente, como concedendo licença livre ao sacrifício ritual de sexo e sangue. Subsequentemente, nos finais do século IX, um conselho religioso baniu traduções oficiais adicionais de textos tântricos e proibiu a inclusão de terminologia tântrica no seu Grande D icionário (S ânscrito-Tibetano). Um dos incentivos principais que levou os tibetanos a convidar mestres indianos para a segunda propagação do budismo no Tibete foi o de elucidar os mal entendidos sobre o sexo e a violência no tantra.

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Nem todos os ocidentais que tiveram contato inicial com o tantra acharam a sua imageria perversa. Parte deles entendeu-a mal de outros modos. Alguns, por exemplo, acharam que a imageria sexual simbolizava o processo psicológico de integração dos princípios masculinos e femininos dentro de cada pessoa. Outros, como muitos tibetanos inicialmente, acharam as imagens eróticas. Até nos dias de hoje, algumas pessoas viram-se para o tantra esperando encontrar novas e exóticas técnicas sexuais ou uma justificação espiritual para a sua obsessão pelo sexo. Outros acharam as aterrorizadoras figuras fascinantes pela sua promessa de conceder poderes extraordinários. Tais pessoas seguiram os passos de Kublai Khan, o conquistador mongol do século XIII, que adotou o tantra tibetano desejando sobretudo que o fosse ajudar obter vitória sobre os seus adversários.

Assim, os mal-entendidos sobre o tantra são um problema recorrente. A razão pela insistência do tantra na manutenção dos seus ensinamentos e imagens secretos é a de evitar tais concepções erradas e não a

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de esconder algo perverso. Apenas aqueles com suficiente preparação no estudo e meditação estão em posição de compreender o tantra dentro do seu correto contexto.

Casais em União

Trazer à consciência e integrar os princípios masculinos e femininos são partes importantes e úteis do caminho para a maturidade psicológica, como ensinado por várias escolas terapêuticas baseadas nos trabalhos de Jung. Contudo, julgar o tantra budista como a antiga fonte desta abordagem é uma interpolação. O mal entendido advém da visão de figuras búdicas como casais em união e da tradução incorreta das palavras em tibetano para casal, yab-yum, como masculino e feminino. Na verdade, as palavras significam pai e mãe. Assim como um pai e uma mãe em união são necessários para se produzir uma criança, do mesmo modo o método e a sabedoria em união são necessários para dar à luz a iluminação.

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O método, o pai, representa a bodhichitta e várias outras causas ensinadas no tantra para se obter os corpos físicos iluminadores de um Buda ou a consciência onisciente da verdade convencional de um Buda. A sabedoria, a mãe, representa a apreensão da vacuidade com vários níveis da mente, como causa para a mente iluminadora de um Buda ou para a consciência onisciente de um Buda da verdade mais profunda. Obter a união da mente e dos corpos físicos de um Buda ou a consciência onisciente de um Buda das verdades convencionais e mais profundas de todas as coisas, requer a prática da união do método e da sabedoria. Porque as culturas indianas e tibetanas tradicionais não compartilham o sentido bíblico de pudor sobre o sexo, não têm tabus sobre o uso da imageria sexual para simbolizar esta união.

Um nível de significado do pai como método é a consciência de pleno êxtase. A união do pai e da mãe significa a consciência de pleno êxtase juntamente com o entendimento da vacuidade – ou seja, o entendimento ou ou compreensão

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da vacuidade com uma consciência de pleno êxtase. Aqui, a consciência de pleno êxtase não se refere ao êxtase da liberação orgásmica como no sexo comum, mas a um estado mental de felicidade plena, conseguido através dos métodos avançados de yoga, que traz os ventos-energia (lung, rlung; sânsc. prana) para o canal-energia central. Uma sucessão prolongada de momentos de um tal estado mental é conducente ao alcance do nível mais sutil da continuidade mental, a nossa continuidade de luz clara – o nível mais eficiente de experienciação para o entendimento da vacuidade. O abraçar do pai e da mãe, então, simboliza também o aspecto de pleno êxtase da união do método e da sabedoria, mas não significa de modo algum o uso do sexo comum como um método tântrico.

Nos estágios finais do caminho da classe mais elevada do tantra, os métodos avançados de yoga, para atrair os ventos-energia para o canal central, envolvem um homem e uma mulher sentados numa postura de união. Contudo, longe de ser explorativo, é requerido que ambos os

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parceiros tenham atingido o mesmo nível avançado de desenvolvimento espiritual. Isto inclui que ambos tenham alcançado o nível de controlo das suas energias sutis e das suas mentes de modo a que, embora as pontas inferiores dos seus canais centrais estejam em contato, ambos evitem a liberação orgásmica.

Sentar-se em tal postura yóguica desempenhando complexas visualizações e meditando sobre a vacuidade é feito apenas para se elevar a prática aos níveis mais avançados. Não é feito como prática principal nem é feito regularmente, e não é certamente uma prática para os estágios iniciais do caminho.

Além disso, para se evitar toda a possibilidade de misoginia, machismo ou chauvinismo masculino, um dos votos tântricos é a constante contenção de falar mal das mulheres e de as maltratar.

Não-Dualidade

Qualquer iniciação tântrica requer a tomada de votos de contenção do comportamento destrutivo. Em todas as classes de tantra, os praticantes recebem

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os votos bodhisattva de se conterem em comportamentos que possam prejudicar os outros ou que possam danificar as suas capacidades de ajudar os outros. A base requerida é a prévia tomada de refúgio (a tomada de uma direção segura nas suas vidas) e a manutenção de algum nível de votos leigos ou monásticos, tais como a contenção em matar, roubar, mentir, ter comportamentos sexuais impróprios e tomar intoxicantes. A iniciação às duas classes mais elevadas de tantra requer também a tomada de votos tântricos, a contenção de comportamentos que possam danificar o seu progresso espiritual, tal como negligenciar a manutenção diária da presença mental na vacuidade.

Vacuidade não significa que, na verdade, tudo, incluindo a ética, não existe. Ela nunca nega as distinções convencionais entre o comportamento destrutivo e construtivo nem o funcionamento da causa e do efeito comportamental. A não-dualidade, representada pelos casais em união, significa que categorias tais como “destrutivo” e “construtivo” não existem independentemente umas das outras. São

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designadas em relação umas às outras e em relação às suas causas e efeitos. Assim, ir-se para além do dualismo não significa obter autoridade para dar rédea solta ao comportamento egoísta ou abusivo nem para revogar a responsabilidade pelas nossas ações. Significa adquirir consciência da realidade total, com a visão do interrelacionamento e da interdependência de tudo.

Além disso, quando os praticantes tântricos aceitam provar um pouco de álcool e de carne especialmente consagrada durante certos rituais, isso simboliza a purificação e o uso das energias sutis nos seus corpos para alcançar a iluminação. Tal como quando se recebe o pão e o vinho especialmente consagrados numa comunhão cristã, o ato simbólico dificilmente sanciona o abuso de álcool ou de droga.

Figuras Pacíficas e Figuras Enérgicas

As figuras búdicas podem ser pacíficas ou enérgicas, como é mostrado, ao nível mais simples, pelos seus sorrisos ou pelos seus longos dentes caninos a descoberto nas

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suas bocas. Mais detalhadamente, as figuras enérgicas têm caras aterrorizadoras, seguram um arsenal de armas e estão cercadas por chamas. As descrições delas especificam, em pavorosos pormenores, as várias formas como elas esmagam os seus inimigos. Parte da confusão que surge sobre o papel e a intenção destas figuras enérgicas vem das usuais traduções da palavra [usada] para elas,trowo (khro-bo, sânsc. kroddha), como deidades furiosas ou iradas.

Para muitos ocidentais com uma educação bíblica, a expressão deidade irada carrega a conotação de um ser todo poderoso com uma raiva vingativa e moralista. Tal ser distribui punição divina como correção aos malfeitores que desobedeceram as suas leis ou que o ofenderam de algum modo. Para algumas pessoas, uma deidade irada pode significar até o diabo ou o demónio trabalhando no lado das trevas. O conceito budista não tem nada a ver com tais noções. Embora o termo tibetano derive de uma das palavras usuais para raiva, aqui raiva tem mais a conotação de repulsa – um estado mental agitado dirigido a um objeto

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com o desejo de se livrar dele. Assim, uma tradução mais adequada para “trowo” pode ser a de uma figura enérgica.

As figuras enérgicas simbolizam os meios energéticos e fortes frequentemente necessários à remoção dos bloqueios mentais e emocionais que nos impedem de sermos perspicazes ou compassivos. Os inimigos que as figuras esmagam incluem o entorpecimento, a preguiça e o egocentrismo. As armas que eles usam incluem qualidades positivas desenvolvidas ao longo do caminho espiritual, tal como a concentração, o entusiasmo e o amor. As chamas que as cercam são os tipos diferentes de consciência profunda (yeshey, ye-shes; sânsc. jnana, sabedoria) que reduzem os obscurecimentos a cinzas. Imaginarmo-nos como uma figura enérgica ajuda-nos a utilizar a energia mental e à decisão de superarmos os “inimigos internos”.

Na perspectiva budista, a energia mais sutil da continuidade de luz clara pode ser pacífica ou enérgica. Quando associada com a confusão, as energias pacíficas e

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enérgicas e os estados emocionais subjacentes tornam-se destrutivas. Por exemplo, a energia pacífica torna-se letárgica e a enérgica torna-se irada e violenta. Quando livres da confusão, as energias podem imediatamente combinar-se com a concentração e a consciência discernente (sherab, shes-rab; sânsc.prajna, sabedoria), de modo a estarem disponíveis para o uso positivo e construtivo. Com uma energia pacífica, podemo-nos acalmar a nós e aos outros para tratarmos das dificuldades de um modo inteligente. Com a enérgica, podemo-nos reavivar, a nós e aos outros, para termos mais força, coragem e intensidade mental para superar situações perigosas.

Observações Conclusivas

A publicidade e os entretenimentos ocidentais contemporâneos adquirem, em parte, o seu sucesso do fascínio que a maioria das pessoas tem pelo sexo e a violência. Para algumas pessoas, este fascínio também as atrai ao tantra. Contudo, a sua atração pode conduzí-las a alvos mais elevados.

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Em geral, ver, ouvir ou engajar em sexo e violência excita as energias das pessoas. Os hormônios fluem e a mente torna-se intensa. A violência não precisa de ser aterrorizadora, ela pode incluir esportes extremos ou de contato. Algumas pessoas, naturalmente, experienciam aversão ou estão tão cansadas de tais coisas que nada sentem. Considerem, porém, aqueles que se tornam fascinados ou obcecados. Se a confusão acompanhar as energias despertadas pelas suas paixões, tais pessoas podem causar problemas para si ou para os outros, como por exemplo sendo rudes. Se, por outro lado, as pessoas acompanharem as energias com presença mental, concentração, e discernimento, elas podem transformar e usar as energias para alvos positivos. O tantra oferece-nos métodos hábeis para produzir esta transformação, especificamente com o interesse de ajudar os outros. Contudo, para se colher todos os benefícios da prática tântrica precisamos de uma compreensão mais profunda dos processos envolvidos.

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Votos Secundários Tântricos

Agosto de 1997Partes publicadas em

Berzin, Alexander. Taking the Kalachakra Initia-tion.

Ithaca, Snow Lion, 1997Modificado em Abril de 2002

IntroduçãoAmbos os votos-raiz tântricos comuns e aqueles específicos a Kalachakra envolvem a promessa de não cometer oito ações grossas (sbom-po, ações pesadas) que enfraquecem a prática da meditação e dificultam o progresso ao longo do caminho do anuttarayoga tantra. Os danos que infligimos são proporcionais ao número e à força dos fatores que amarram (kun-dkris) que os acompanham. Como com as quarenta e seis ações erradas que prometemos não cometer com os votos secundários de bodhisatva, cometer qualquer das oito, até com todos os quatro fatores que amarram presentes, não nos faz perder nossos votos tântricos.

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[Veja: Os Votos Secundários Do Bodhisatva   .]

As Oito Ações Grossas(1) Apropriando a consciência discernente pela força

Consciência discernente (shes-rab, Sânsc. prajna, sabedoria), aqui, é outro nome para mulheres. Dependendo no êxtase e alegria que vêm da união com uma, sem liberação orgásmica, o homem acentua a sua consciência discernente bem-aventurada da vacuidade. A mulher pode realizar o mesmo quando em união com o homem, também sem liberação orgásmica, dependendo no fato de ser mulher.

Esta ação grossa é denominada alternativamente "depender numa parceira de selar não qualificada" (phyag-rgya, Sânsc. mudra). Parceiro de selar e parceira de consciência pura (rig-ma, mulher de conhecimento) também são outros nomes para mulheres. Elas ajudam a realizar o mahamudra – o grande selo da vacuidade compreendido com atividade mental de luz clara - ou puro apercebimento [pura consciência] (rig-pa),

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o equivalente disto no sistema Nyingma de Dzogchen.

Tal como com a quinta queda-raiz de Kalachakra, considerar o sexo comum e o êxtase da liberação orgásmica como um caminho à liberação ou à iluminação destrói completamente a prática tântrica. Este tema fornece o contexto para compreender esta e a seguinte ação grossa tanto no sistema Kalachakra como nos outros sistemas de anuttarayoga. Mesmo se não estivermos ainda no estágio de já ter algum nível da bem-aventurada consciência da vacuidade – que a união sexual sem liberação orgásmica pode elevar – e mesmo se não tivermos a capacidade, obtida através do domínio dos nossos ventos-energia através de métodos de yoga, de evitar o orgasmo quando em união, não obstante, como alguém com votos tântricos, iríamos naturalmente admirar e sinceramente desejar alcançar estes estágios. Precisamos considerar as nossas vidas sexuais dentro desta perspectiva.

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Para esta resolução não enfraquecer, é importante que o nosso parceiro sexual partilhe a nossa atitude em relação ao sexo. Um/a parceiro/a não-qualificado/a é alguém que não vê o sexo de uma perspectiva tântrica. Mais especificamente, nosso parceiro/a precisa ter recebido empoderamento, estar manteendo os votos tântricos, e estar mantendo fortes ligações com as práticas. E o mais importante, ele ou ela precisam proteger de forma pura o quinto voto-raiz de Kalachakra e não considerar o sexo comum e o êxtase da liberação orgásmica como algo espiritual, ou como um caminho à liberação ou à iluminação.

Quando vemos o sexo de uma perspectiva tântrica enquanto nosso/a parceiro/a sexual apenas deseja partilhar amor e conforto, não precisamos sentir que estas duas atitudes são mutuamente exclusivas. Elevar a nossa bem-aventurada consciência do vazio através da união com um/a parceiro/a é baseado numa fundação de partilha mútua de amor e apoio. Contudo, se nosso/a parceiro/a estiver meramente obcecado/a com o apego e a avidez pelo

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prazer carnal, ou considerando o orgasmo saudável como a cura para todos os distúrbios psicológicos, facilmente nos tornaremos vítimas dessas emoções ou idéias, e perderemos a nossa perspectiva.

Se já tivermos um/a parceiro/a sexual e depois nos envolvemos com o tantra, enquanto que ele ou ela não, certamente não devemos abandonar esse parceiro nem procurar relações extra maritais com alguém que já estiver mantendo votos tântricos. Nem precisamos converter nosso/a parceiro/a ao budismo e exercer pressão sobre ele ou ela para receber a iniciação. Por outro lado, não nos aproveitamos desta pessoa para a nossa prática espiritual, sendo desonestos com os nossos sentimentos, nem fazemos sexo de má vontade, como se fosse o nosso dever, abrigando ressentimento. Olhamos para os votos e os treinamentos do bodhisatva como guia. Como noss/a parceiro/a poderia, compreensivelmente, tornar-se completamente chateado por nós, pelo tantra e pelo budismo se arrogantemente o/a denunciássemos como não-qualificado/a e não-merecedor/a de partilhar a nossa

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cama, continuamos a fazer sexo com a pessoa, motivados pelo amor e pela compaixão, para pelo menos evitarmos que isto aconteça. Assim como nas práticas de elevar o nosso estado prometido de bodhichita aspirativa,evitamos fazer com que o nosso parceiro lamente ações positivas, tais como demonstrar-nos amor e desejar fazer-nos felizes. Em vez disso, se receptivos, podemos delicadamente incentivá-lo/a a superar limitações e a realizar potenciais através de métodos eficazes, e não do sexo comum. Tentamos, deste modo, tornar as nossas duas atitudes em relação ao sexo, se não iguais, pelo menos mais compatíveis.

[Veja: Ações para Praticar o Estado Prometido de Bodhicitta

Aspirativa   .]

E mais, um/a potencial parceiro/a não deve ser obrigado a entrar em união sexual – nem através de pressão psicológica sutil nem pela força. Um exemplo do primeiro seria lisonjear a pessoa como se fosse espiritualmente avançada, dizendo que ele ou ela está a ajudar-nos, como grandes bodhisatvas tântricos, a avançar no

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caminho e a ajudar mais aos outros. Forçar pode ser batendo, abaixando a pessoa, ou humilhando-a.

Mesmo se um/a parceiro/a potencial recebeu o empoderamento, estiver mantendo os votos tântricos, e partilhando a nossa perspectiva sobre o sexo, também incorreremos esta primeira ação pesada se o/a forçarmos a sentar-se em união conosco quando as circunstâncias são impróprias. Isto pode ocorrer se a pessoa estiver doente, for casada com outra pessoa, estiver sob o cuidado de alguém, mantendo outros votos que restringem tal conduta, tímida, ou sem vontade. Todas estas recomendações também se aplicam ao nosso comportamento sexual em geral.

(2) Apropriar o néctar dela por força

Esta ação grossa é também denominada "sentar-se em união sem os três reconhecimentos". Isto significa estar em união sexual, mesmo até com alguém partilhando nossas atitudes, sem seguir os processos tântricos. Quando usamos o êxtase da união para elevar a nossa bem-aventurada consciência do vazio – quer

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com um/a parceiro/a físico/a real ou com um/a apenas visualizado/a nas nossas imaginações – distinguimos e consideramos a nossa mente, fala e corpo como estando desassociados da confusão (zag-med, não-contaminados). Chamamos a isto os três reconhecimentos (' du-shes gsum). Sem essa atitude, o êxtase da união apenas aumenta o nosso desejo e apego, em vez da nossa bem-aventurada consciência do vazio.

Primeiro, o nosso estado de mente em união é uma bem-aventurada consciência do vazio, a qualquer nível que possamos mantê-la. Não abrigamos pensamentos comuns nem preocupações, por exemplo, sobre como o nosso desempenho sexual se compara com o de outras pessoas.

Segundo, a nossa fala rotula os fenômenos como o que eles convencionalmente são quando não apreendidos por uma mente confusa, mas por aquela que é uma bem-aventurada consciência do vazio. Representamos isto usando um aspecto das nossas mentes, que a um nível mais profundo ainda está bem-aventuradamente

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ciente do vazio, para visualizar os nossos próprios órgãos sexuais e os do nosso parceiro surgindo dependentemente – de sílabas-semente – em forma de vajra e sino. Estes dois objetos rituais, usados extensivamente na prática tântrica, simbolizam a consciência bem-aventurada e a consciência discernente do vazio. Nós imaginamo-los marcados por estas sílabas como uma indicação adicional do puro rotulamento mental. Com confusão e seu conseqüente apego, rotulamos os órgãos sexuais como objetos desejáveis para obter o êxtase momentâneo da liberação orgásmica. Porém, livres da confusão, os rotulamos de uma maneira mais pura, como objetos que nos podem ajudar a elevar a nossa bem-aventurada consciência discernente do vazio.

Terceiro, os nossos corpos e os dos nosso/as parceiro/as aparecem em forma de figuras búdicas que as nossas mentes fazem surgir ao manterem, simultaneamente, a um nível mais profundo, bem-aventurada consciência discernente do vazio. Como a mente que gera esta aparência não é uma de desejo

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ansioso, esta visualização não é, de modo algum, o mesmo que fantasiar que nós e nosso/as parceiro/as somos estrelas sexy do cinema.

Devemo-nos lembrar uma vez mais que mesmo se mantivermos esta maneira pura de ver a nossa mente, fala e corpo durante a união sexual, se considerarmos o êxtase da liberação orgásmica experienciado dentro deste contexto como um meio para alcançar a liberação ou a iluminação, incorremos uma queda-raiz tântrica. Isto ocorre quer causemos a liberação orgásmica propositadamente ou quer a experienciemos involuntariamente. Além disso, mesmo quando visualizamos os nossos próprios corpos e os do nosso/a parceiro/a em formas puras como figuras búdicas, não perdemos de vista a nossa existência convencional como sendo pessoas. Assim, permanecemos sempre sensíveis aos nossos próprios sentimentos e necessidades e aos do/a nosso/a parceiro/a. Isto é pertinente quer nosso/a parceiro/a compartilhe da nossa atitude e visualização, quer não esteja envolvido na prática tântrica.

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(3) Mostrar objetos confidenciais a recipientes impróprios

Com a sétima queda-raiz tântrica comum, expomos ensinamentos confidenciais àqueles sem empoderamento. Aqui, mostramos objetos confidenciais a essas pessoas, ou àqueles com empoderamento, mas sem respeito por eles. Estes objetos incluem retratos, pinturas ou estátuas de figuras búdicas, livros contendo instruções explícitas para a prática tântrica, e os nossos vajra e sino cerimoniais. Embora não percamos os nossos votos tântricos ao deixar estes objetos em exposição pública nas nossas casas, arruinamos a nossa prática quando as pessoas nos fazem observações rudes e impudicas sobre as figuras búdicas representadas em união, zombam de nós como sendo supersticiosos ou loucos, ou usam os nossos artigos rituais como pesos para papeis. É melhor cobrir esses itens, ou mantê-los num quarto privado. Os tibetanos, por exemplo, penduram uma cortina em frente das suas pinturas de figuras búdicas – especialmente daquelas cujas formas estariam abertas a mal-entendidos pelos

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não iniciados – e só as abrem ao meditar ou fazer rituais.

[Veja: Votos-Raiz Tântricos Comuns   .]

(4) Discutir durante um banquete oferecido de tsog

Durante pujas-tsog, visualizamo-nos como figuras búdicas, com um nível mais profundo das nossas mentes estando bem-aventuradamente ciente do vazio, e fazemos oferendas especiais com o desejo de que todos as apreciem puramente e que sejam felizes. Fazemos isto para acumularmos força positiva (mérito) e consciência profunda. Quando discutimos ou brigamos durante tal ritual, esquecemo-nos das nossas visualizações e corretos estados mentais. Por conseguinte, a nossa participação no puja para melhorar os nossos caminhos espirituais torna-se ineficaz.

(5) Indicar ensinamentos discrepantes àqueles com cren ç a de fato (àqueles com fé)

Esta ação grossa também é chamada "dar falsas respostas a perguntas feitas com

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sinceridade". Quando alguém que é um recipiente apto, com empoderamento apropriado, faz uma pergunta sincera sobre práticas tântricas, se evitarmos a pergunta mudando de assunto e falando sobre algo estranho, ou respondendo num nível diferente daquele com que a pessoa perguntou, cometemos esta ação grossa. Tal comportamento evasivo é carmicamente prejudicial ao nosso próprio futuro recebimento de respostas diretas às nossas perguntas. Mesmo se alguém com fé no tantra, mas sem empoderamentos, nos fizer sinceramente uma pergunta, nós não a ignoramos. Respondemos; mas de maneira a não expor as instruções explícitas que devem ser mantidas confidencialmente.

(6) Permanecer mais do que sete dias entre sravakas

Neste contexto, sravakas (ouvintes) não se refere aos praticantes Theravada, mas a qualquer um que trivialize ou zombe do tantra. Permanecer por muito tempo entre tais pessoas desanima-nos dos nossos caminhos, especialmente se forem

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ativamente hostis à nossa prática de meditação. E mais, se as pessoas com quem vivemos estiverem apenas interessadas no seu próprio bem-estar e continuamente nos disserem que somos estúpidos em tentar ajudar os outros, as suas perspectivas auto centradas lentamente nos infetarão. Não haverá falha, contudo, se não tivermos escolha sobre com quem vivemos, tal como num acampamento de treino ou quando precisamos ficar num bloco de hospital. Porém, é crucial nessas situações – e até simplesmente quando vivemos numa sociedade que não oferece apoio nem simpatia – mantermos as nossas práticas e crenças tântricas totalmente confidenciais. Se nos sentarmos contando grânulos do rosário e recitando mantras altos, numa cela de prisão apinhada, podemos ser espancados até à morte!

(7) Falsamente suster o orgulho de ser um iogue

Isto também é chamado "gabar-se de ser um iogue, sem na verdade o ser". É uma ação grossa, prejudicial ao nosso

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progresso, imaginar e dizer que somos praticantes altamente realizados quando apenas recitamos diariamente uma sadhana por já algum tempo ou completamos um retiro de meditação durante o qual repetimos uns mantras cem mil vezes mas não tendo obtido nenhuma realização.

(8) Indicar o sagrado Dharma àqueles que não acreditam o que é fato

Com a sétima queda-raiz tântrica comum, nós expomos ensinamentos confidenciais àqueles sem empoderamento. Aqui, revelamo-los àqueles que têm o empoderamento, mas que lhes falta a fé e o respeito por eles. Algumas pessoas recebem um empoderamento a fim de se purificarem de quedas-raiz tântricas e retomarem os seus votos, ou revitalizar os seus votos se os tiverem enfraquecido. Se fizerem isto durante um empoderamento num sistema tântrico no qual não têm interesse ou crença particular, seria uma ação grossa ensinar-lhes práticas explícitas específicas a este sistema.

Três Ações Grossas Auxiliares

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Alguns textos suplementam a lista de oito votos tântricos secundários com as três ações grossas auxiliares que também dificultam a nossa prática tântrica. Por exemplo, Pabongka, (Pha-bong-kha Byams-pa bstan-'dzin 'phrin-las rgya-mtsho), o mestre Gelug do século XX, incluiu as três na lista de votos tântricos secundários quando expandiuExtensive Six-Session Yoga [Extenso Yoga de Seis Sessões] (Thun-drug rnal-'byor rgyas-pa) do Primeiro Panchen Lama com a recitação das listas dos votos.

(1) Engajar incorretamente em ritos de mandala, tal como sem um retiro

Podemos dar empoderamentos a outros ou executar a auto-iniciação (bdag-'jug) para restaurar os nossos perdidos ou enfraquecidos votos tântricos apenas se tivermos completado o retiro de meditação na correta figura búdica, repetindo os prescritos mantras centenas de milhares de vezes, e oferecido o puja de fogo conclusivo (sbyin-sreg).

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(2) Transgredir os nossos votos pratimoksha ou de bodhisatva quando não houver necessidade

A não ser que haja uma necessidade urgente de transgredi-los por forma a beneficiar outros, e não haja outra alternativa, nós protegemos os nossos votos a toda a hora.

(3) Agir contrariamente aos ensinamentos das "Cinquenta Versos/Estrofes Sobre o Guru"

Cinquenta Versos/Estrofes Sobre o Guru (Bla-ma lnga-bcu-pa, Sânsc.Gurupanchashika), pelo mestre indiano do século X Ashvaghosha II, é a fonte das instruções para o comportamento dos discípulos para com os seus mestres tântricos. Quando o tempo permite, os mentores espirituais ensinam este texto antes de darem um empoderamento.

Votos-Raiz Tântricos Comuns

Modificado em Abril de 2002, de Berzin, Alexander. Taking the Kalachakra Initia-

tion. Ithaca, Snow Lion, 1997. 

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SumárioAssim como com os votos do bodhisattva, há voto tântricos raiz e secundários , que prometemos manter até alcançarmos a iluminação e que continuam nos nossos continuums mentais nas vidas futuras. As tradições Gelug, Kagyu e Sakya oferecem estes votos em cada empoderamento (dbang, iniciação), permissão subsequente (rjes-snang, permissão), ou recolha-de-mantras (sngags-btus) para qualquer prática de uma das duas classes mais elevadas do tantra – yoga ou anuttarayoga – de acordo com o seu esquema quádruplo de classificação. A tradição Nyingma oferece-os com quaisquer dos três rituais acima descritos para qualquer prática de uma das quatro classes mais elevadas do tantra – yoga, mahayoga, anuyoga ou atiyoga (dzogchen) – de acordo com o seu esquema sêxtuplo.

[Ver: Características Fundamentais do Tantra .]

A maior parte dos pormenores da discussão sobre os votos do bodhisattva também pertence aos votos tântricos.

[Ver: Os Votos-Raiz do Bodhisattva .]

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Os votos-raiz tântricos são a abstenção de quatorze ações que, se cometidas com os quatro fatores que amarram (kun-dkris bzhi), constituem uma queda-raiz (sngags-kyi rtsa-ltung) e precipitam a perda dos votos tântricos. Sem estes votos dando forma às nossas vidas, não poderemos obter realizações ou entendimentos da prática tântrica porque a nossa prática não terá o necessário contexto de suporte. Com exceção de uma das ações de queda-raiz tântrica, abandonar a bodhichitta – o mesmo que nos votos-raiz do bodhisattva – uma transgressão de qualquer das outras treze, sem os quatro fatores que amarram estarem completos, apenas enfraquece os votos tântricos. Não os elimina dos nossos continuums mentais.

Há duas variações de votos-raiz tântricos, uma específica a Kalachakra e uma comum a todos os tantras yoga e anuttarayoga, incluindo Kalachakra. Aqui, seguiremos a explanação dos votos-raiz tântricos comuns, dada em Uma Explanação da Disciplina Ética do Mantra Secreto: Um Cacho de Fruta de Verdadeiras Realizações (gSang-sngags-kyi tshul-

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khrims-kyi rnam-bshad dngos-grub-kyi snye-ma) por Tsongkhapa (Tsong-kha-pa Blo-bzang grags-pa), o fundador da Tradição Gelug do início do século XV. Iremos suplementá-lo com UmaLâmpada para Iluminar as Práticas Intimamente Ligadas (Dam-tshig gsal-ba'i sgron-me) por Kaydrub Norzang-gyatso (mKhas-grub Nor-bzang rgya-mtsho), o mestre Gelug do final do século XV.

As Quatorze Quedas-Raiz Tântricas Comuns(1) Desrespeitar ou desprezar os nossos mestres vajra

O objeto é qualquer professor de quem tenhamos recebido empoderamento, permissão subsequente, ou recolha-de-mantras em qualquer classe de tantra, explanação parcial ou completa de qualquer dos seus textos, ou recomendações orais para qualquer das suas práticas. Desrespeitar ou desprezar esses mestres significa mostrar-lhes desprezo, criticá-los ou ridicularizá-los, ser desrespeitoso ou descortes, ou pensar ou dizer que os seus ensinamentos ou

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conselhos eram inúteis. Tendo-os anteriormente tido em alta consideração, com honra e respeito, completamos esta queda-raiz quando abandonamos essa atitude, os rejeitamos como nossos professores, e arrogantemente os consideramos com desdém. Tal ação ofensiva, então, é completamente diferente de seguir o conselho, no Kalachakra Tantra: manter uma distância respeitosa e já não mais estudar ou associarmo-nos com um mestre tântrico o qual tínhamos decidido s ser impróprio para nós, incorretamente qualificado, ou que age de uma maneira imprópria. Desprezar ou depreciar os nossos professores de tópicos que não são únicos ao tantra, tal como a compaixão ou a vacuidade, ou que nos conferem apenas a direção segura (refúgio), ou os votos pratimoksha ou do bodhisattva, não constitui tecnicamente esta primeira queda-raiz tântrica. Porém, tais ações dificultam seriamente o nosso progresso espiritual.

(2) Transgredir as palavras de um iluminado

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Os objetos desta ação são especificamente os conteúdos dos ensinamentos de um ser iluminado sobre os votos pratimoksha, do bodhisattva, ou tântricos – quer essa pessoa seja o próprio Buda ou um grande mestre mais recente. Cometer esta queda não é simplesmente transgredir um voto particular de um destes grupos , depois de tê-los – tomado, mas fazê-lo com dois fatores adicionais presentes. Estes são: reconhecer completamente que o voto se deriva de alguém que removeu todos os obscurecimentos mentais, e trivializá-los pensando ou dizendo que violá-los não traz nenhuma consequência negativa. Trivializar e transgredir proibições que nós sabemos terem sido dadas por um ser iluminado mas que não são aquelas em qualquer dos três grupos de votos que tomamos, ou conselhos que não nos apercebemos terem sido oferecidos por um ser iluminado, não constitui uma queda-raiz tântrica. Porém, cría obstáculos no nosso caminho espiritual.

(3) Por causa da raiva, censurar os nossos irmãos ou irmãs vajra

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Os irmãos e as irmãs vajra são aqueles que têm votos tântricos e que receberam um empoderamento em qualquer sistema de figura búdica de qualquer classe de tantra do mesmo mestre tântrico. Os empoderamentos não precisam ter sido recebidos ao mesmo tempo, nemprecisam ser do mesmo sistema ou classe de tantra. Esta queda ocorre quando, sabendo muito bem que certas pessoas são nossos irmãos ou irmãs vajra, nós os importunamos ou abusamos verbal e diretamente sobre falhas, defeitos, fracassos, erros, transgressões e assim por diante que eles podem ou não possuir ou ter cometido, e eles compreendem o que dizemos. A motivação tem de ser uma de hostilidade, raiva, ou o ódio. Indicar as fraquezas de tais pessoas de uma maneira amável, com o desejo de as ajudar a superá-las, não é uma falha.

(4) Abandonar o amor pelos seres sencientes

O amor é o desejo que os outros sejam felizes e tenham as causas da felicidade. A queda (deste voto) é desejar o oposto a

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qualquer ser, incluindo até o pior assassíno – ou seja, desejar que alguém seja desprovido da felicidade e das suas causas. As causas da felicidade são compreender totalmente a realidade e as leis cármicas de causa e efeito comportamental. Nós desejaríamos pelo menos que o assassino obtivesse uma compreensão suficiente destes pontos, de modo que nunca repetisse as suas atrocidades em vidas futuras e, assim, pudesse eventualmente experienciar a felicidade. Embora não seja uma queda-raiz tântrica ignorar alguém que somos capazes de ajudar, seria uma queda pensar quão maravilhoso seria se um ser em particular nunca fosse feliz.

(5) Abandonar a bodhichitta

Esta é a mesma que a décima oitava queda-raiz do bodhisattva, e é equivalente a abandonar o estado aspirativo da bodhichitta pensando que somos incapazes de alcançar a budeidade para o bem de todos os seres. Mesmo sem os quatro fatores que amarram presentes, tal pensamento faz-nos perder os votos do bodhisattva e os votos tântricos.

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(6) Desprezar princípios filosóficos tanto nossos quanto as dos outros

Isto é o mesmo que a sexta queda-raiz do bodhisattva, abandonar o sagrado Dharma, e refere-se a proclamar que qualquer dos ensinamentos textuais budistas não são as palavras de Buda . “ Principios filosóficos dos outros” refere-se aos sutras dos veículos dos shravakas, pratyekabuddhas ou bodhisattvas (Mahayana), enquanto que “os nossos” são os tantras, também dentro do grupo Mahayana.

(7) Revelar ensinamentos confidenciais àqueles que não estão maduros

Ensinamentos confidenciais (secretos) dizem respeito a práticas especificas dos estágios de geração (bskyed-rim) ou completo (rdzogs-rim) para compreender a vacuidade, que não são compartilhadas em comum com níveis menos avançados de prática. Estas (práticas) incluem detalhes de sadhanas específicas e de técnicas para uma realização profunda da vacuidade altamente bem-aventurada com atividade mental de luz clara. Pessoas não maduras para isto são aquelas que não receberam o

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apropriado nível de empoderamento, quer tivessem ou não fé nestas práticas se as soubessem. Explicar qualquer destes processos não partilhados e confidenciais em suficiente detalhe a alguém que sabemos muito bem não estar maduro de modo a que tenha bastante informação para tentar a prática, e esta pessoa compreender as instruções, constitui a queda-raiz. A única exceção é quando há uma grande necessidade de explanação explícita, por exemplo para ajudar a dispersar má informação e visões distorcidas e antagonistas sobre o tantra. Explicar a teoria do tantra geral de uma maneira erudita, não suficiente para a prática, também não é uma queda-raiz. Não obstante, enfraquece a eficácia da nossa prática tântrica. Porém, não há falha em divulgar ensinamentos confidenciais a observadores interessados durante um empoderamento tântrico.

(8) Injuriar r ou abusar os nossos agregados

Cinco agregados (Sânsc. skandha), ou fatores agregados, constituem cada

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momento da nossa experiência. Estes cinco são: (a) formas de fenomenos físicos tais comoobjetos de visão ou sons, (b) sentimentos de felicidade ou infelicidade, (c) distinguir uma coisa da outra (reconhecimento), (d) outros fatores mentais tais como o amor ou o ódio, e (e) tipos de consciência tais como a visual ou mental. Em resumo, os nossos agregados incluem o nosso corpo, mente e emoções.

[Ver: Esquema Básico dos Cinco Fatores Agregados da Experiência.]

Normalmente, estes fatores agregados estão associados com a confusão (zag-bcas) – traduzidos geralmente como estando “contaminados”. Com a prática de anuttarayoga tantra, nós removemos essa confusão sobre a realidade e, assim, transformamos totalmente os nossos agregados. Em vez de cada momento de experiência conter cinco fatores associados com a confusão, cada momento transforma-se finalmente num composto de cinco tipos de consciência profunda desassociados da confusão (zag-med ye-shes), e que são as naturezas fundamentais/subjacentes dos

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cinco agregados. Estas são a consciência profunda que é como um espelho, da equalidade das coisas, da individualidade, de como alcançar objetivos, e da esfera da realidade (Sânsc. dharmadhatu). Cada um dos cinco é representado por uma figura búdica (yi-dam): Vairochana, e assim por diante; denominados no ocidente “os cinco dhyani-Budas”.

Um empoderamento anuttarayoga planta as sementes para realizar esta transformação. Durante a prática do estágio da geração, nós cultivamos estas sementes imaginando que os nossos agregados já estão nas suas formas purificadas, visualizando-os como as suas correspondentes figuras búdicas. Durante a prática do estágio completo, nós trazemos estas sementes à maturidade engajando os nossos agregados em métodos especiais de yoga para manifestar a atividade mental de luz clara com que realizamos os cinco tipos de consciência profunda.

A oitava queda-raiz é desprezar os nossos agregados, pensando que eles não têm a capacidade de atravessar esta

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transformação, ou danificá-los propositadamente devido ao ódio ou ao desprezo. Praticar o tantra não significa negar ou rejeitar a visão dos sutras, que propõe ser uma consideração incorreta (tshul-min yid-byed) considerar o corpo como limpo e como tendo a natureza da felicidade. . É claro que os nossos corpos ficam naturalmente sujos e nos trazem sofrimentos tais como a doença e a dor física. Não obstante, nós reconhecemos no tantra que o corpo humano também tem uma natureza mais profunda, tornando-o capaz de ser usado em muitos níveis ao longo do caminho espiritual para assim beneficiar aos outros de maneira mais completa. . Quando não estamos cientes de ou não reconhecemos essa natureza mais profunda, nós odiamos os nossos corpos, pensamos que as nossas mentes não são nada boas, e consideramos as nossas emoções como más. Quando mantemos tais atitudes de baixa auto-estima ou, além disso, abusamos os nossos corpos ou mentes com comportamentos masoquistas, estilos de vida desnecessariamente perigosos ou castigadores, ou poluindo-os

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com drogas recreacionais ou narcóticas, cometemos esta queda-raiz tântrica.

(9) Rejeitar o Vazio

Aqui, o vazio (vacuidade) refere-se ao ensinamento geral de Os Sutras sobre a Consciência Discernente de Vasto Alcance (Sânsc.Prajnaparamita Sutras), em que todos os fenómenos, não só as pessoas, são vazios de modos impossíveis de existência; ou aos ensinamentos especificamente Mahayana Chittamatra ou de qualquer das escolas Madhyamaka a respeito de os fenómenos serem vazios de uma particular maneira impossível de existir. Rejeitar tais ensinamentos significa duvidá-los, não acreditar neles ou rejeitá-los com desprezo. Não importa que sistema de asserções filosóficas Mahayana mantemos ao praticar o tantra, precisamos de total confiança nos seus ensinamentos sobre o vazio. Senão, se rejeitarmos o vazio durante o curso da nossa prática, ou tentarmos qualquer procedimento fora do seu contexto, chegaremos a acreditar, por exemplo, que as nossas visualizações são concretamente reais. Tais concepções

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errôneas apenas perpetuam os sofrimentos do samsara e podem até conduzir a um desequilíbrio mental. Pode ser necessário, ao longo do caminho, elevar o nosso sistema de asserções filosóficas budistas de Chittamatra a Madhyamaka – ou, dentro da Madhyamaka, de Svatantrika a Prasangika – e, no processo, refutar os ensinamentos sobre o vazio do nosso sistema de princípios filosóficos anteriores. Porém, rejeitar uma explanação menos sofisticada não significa abandonar uma visão correta do vazio de todos os fenómenos adequada aos nossos níveis de compreensão.

(10) Ser amável com as pessoas malévolas

Pessoas malévolas são aquelas que desprezam os nossos professores pessoais, mestres espirituais em geral, ou os Budas, o Dharma ou a Sangha, ou que, além disso, fazem mal ou prejudicam qualquer deles. Embora seja impróprio abandonar o desejo de que essas pessoas sejam felizes e obtenham as causas da felicidade, cometemos uma queda-raiz agindo ou falando afetuosamente com elas. Essa ação inclui ser amigável com elas, apoiá-las

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comprando coisas produzidas por elas, os livros que escrevem, e assim por diante. Se, motivados puramente pelo amor e pela compaixão, possuirmos os meios para parar o seu comportamento destrutivo e conduzi-las para um estado mais positivo, tentaríamos certamente fazê-lo, mesmo se isso significasse recorrer a métodos que venham a usar a força. . Porém, se não tivermos estas qualificações, não incorremos falha em simplesmente boicotar essas pessoas.

(11) Não meditar continuamente no vazio

Tal como com a nona queda-raiz tântrica, o vazio pode ser compreendido de acordo com o sistema Chittamatra ou o sistema Madhyamaka. Quando obtemos um entendimento (de uma destas visões) , é uma queda-raiz deixar passar mais do que um dia e noite sem meditar nela. O costume normal é meditar sobre o vazio pelo menos três vezes durante o curso de cada dia e três vezes cada noite. Precisamos continuar essa prática até nos termos livrado de todos os obstáculos que impedem a onisciência (shes-sgrib) – ponto

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esse em que permanecemos diretamente cientes do vazio o tempo todo. Se pusermos um limite pensando que já meditamos suficientemente no vazio antes de alcançar este objetivo, poderemos nunca vir a alcançá-lo.

(12) Dissuadir r aqueles que possuem fé

Isto significa propositadamente desanimar alguém de fazer uma certa prática tântrica na qual tem fé e para a qual seja um recipiente aptos, com os corretos empoderamentos e assim por diante. Se acabarmos com o seu desejo de engajar nesta prática , esta queda-raiz estará completa. Porém, se esta pessoa ainda não estivere pronta para essa prática não haverá falha em delinear, de uma maneira realista, o que ela deve dominar em primeiro lugar, mesmo que possa parecer desanimador. Engajando os outros deste modo, levando os seus interesses a sério, em vez de os rebaixar como incapazes, na realidade aumentará sua auto-confiança para seguir em frente.

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(13) Não confiar corretamente nas substâncias que nos ligam intimamente à prática t â ntrica (dam-rdzas)

A prática do anuttarayoga tantra inclui a periódica participação em cerimonias de oferendas conhecidas como tsog pujas. Elas envolvem provar álcool e carne especialmente consagrados. Estas substâncias simbolizam os agregados, elementos corporais e, em Kalachakra, os ventos-energia - fatores normalmente perturbadores que têm uma natureza de serem capazes de dar consciência profunda quando desassociados da confusão e usados para o caminho. A queda-raiz é considerar essas substâncias nauseantes, recusá-las devido a não beber álcool ou ser vegetariano, ou alternativamente, tomá-las em grandes quantidades com entusiasmo e apego.

Se formos ex-alcoólicos e se houver o perigo de que o mero provar de uma gota de álcool possa nos levar de novo ao alcoolismo, podemos apenas imaginar provar o álcool quando estivermos num tsog com outros. Ao fazer assim, fariamos

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apenas os gestos de provar o álcool, mas sem realmente o provar. Ao oferecer tsog em casa, podemos substituir o álcool por chá ou suco.

(14) Tratar as mulheres com desprezo

O objetivo do anuttarayoga tantra é ter acesso à atividade mental de luz clara e utilizá-la para apreender o vazio para superarmos tão rapidamente quanto possível a confusão e os seus instintos - os principais fatores que impedem a liberação, a onisciência e a capacidade de beneficiar os outros por completo. Um estado bem aventurado de consciência é extremamente conducente a alcançar a atividade mental de luz clara uma vez que nos leva a níveis de consciência e energia cada vez mais profundos, mais intensos e refinados. Além disso, quando a consciência bem aventurada alcança o nível de luz clara e foca no vazio com compreensão total, ela transforma-se na ferramenta mais poderosa para remover os instintos da confusão.

Durante o processo de obter a concentração absorta, experienciamos uma

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consciência cada vez mais bem-aventurada como resultado de livrar as nossas mentes do torpor e da agitação. A mesma coisa acontece ao obtermos uma compreensão e uma realização cada vez mais profunda do vazio, como resultado de livrar as nossas mentes de emoções e atitudes perturbadoras. Combinando os dois, experienciamos níveis cada vez mais intensos e refinados de profunda felicidade à medida que obtemos uma concentração cada vez mais forte de entendimentos cada vez mais profundos do vazio.

No anuttarayoga tantra, os homens aumentam o extase da sua consciência concentrada do vazio ainda mais contando com mulheres. Esta prática envolve contar ou com mulheres reais (las-kyi phyag-rgya, Sânsc. Karmamudra), visualizadas como figuras búdicas femininas de modo a evitar confusão ou, para praticantes de faculdades mais refinadas, com mulheres que são apenas visualizadas (ye-shes phyag-rgya, Sânsc. jnanamudra). As mulheres realçam o seu êxtase [bem aventurança] através dos homens de uma forma semelhante confiando no fato de

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serem mulheres. Por conseguinte, é uma queda-raiz tântrica rebaixar, tratar com desprezo, ridicularizar, ou considerar inferior tanto uma mulher específica como as mulheres em geral, ou também uma figura búdica feminina. Quando expressamos baixa opinião e desprezo diretamente a uma mulher, com a intenção de desrespeitar o sexo feminino, e ela compreende o que dizemos, completamos esta queda-raiz. Embora seja impróprio desprezar homens, fazê-lo não é uma queda-raiz tântrica.

INTRODUÇÃO AO BUDISMO

Dharma na Vida Diária

Alexander BerzinMorelia, México, 6 de Junho de 2000

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Dharma como Medida PreventivaPediram-me para falar sobre a prática do Dharma na vida diária. Nós temos de saber o que queremos dizer com Dharma. Dharma é uma palavra sânscrita que literalmente quer dizer uma “medida preventiva”. É algo que nós fazemos de maneira a evitar problemas. Para termos qualquer interesse em praticar o Dharma, nós devemos ver que existem problemas na vida. Isso na verdade demanda muita coragem. Muitas pessoas não levam a si mesmos ou a suas vidas a sério. Elas trabalham duro o dia inteiro e depois se distraem com entretenimento e outras coisas nas noites porquê estão cansadas. Elas realmente não olham internamente para os problemas de suas vidas. Mesmo que elas olhem para seus problemas, elas não querem reconhecer que suas vidas não são satisfatórias, pois isso seria muito deprimente. Demanda coragem para realmente checar a qualidade de nossas vidas e admitir honestamente quando nós a achamos insatisfatória.

Situações Insatisfatórias e Suas Causas

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Claro que existem níveis de insatisfatoriedade. Nós poderíamos dizer “Às vezes eu tenho mal humor e às vezes as coisas vão bem, mas tudo bem. A vida é assim.” Se nós nos contentamos com isso, ótimo. Se nós temos alguma esperança de podermos tornar as coisas um pouco melhores, isso nos leva a buscar uma maneira de fazê-lo. De maneira a achar métodos para melhorar a qualidade de nossas vidas, nós precisamos identificar a causa de nossos problemas. A maioria das pessoas busca pela raiz de seus problemas fora de si. “Eu estou tendo dificuldades no meu relacionamento com você por sua causa! Você não está agindo da maneira como eu gostaria que você agisse.” Nós também podemos por a culpa de nossas dificuldade na situação política ou econômica. De acordo com algumas escolas da psicologia, nós podemos olhar para eventos traumáticos em nossa infância como aquilo que nos levou a ter os problemas presentes. É muito fácil por a culpa da nossa infelicidade nos outros. Por a culpa noutras pessoas ou fatores econômicos ou sociais não leva realmente a

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uma solução. Se nós temos esse premissa conceitual, nós talvez possamos perdoar e isso talvez traga algum benefício, mas a maioria das pessoas conclui que apenas fazer isso não lhes aliviou de seu problemas psicológicos e infelicidade.

O budismo diz que apesar de que as outras pessoas, a sociedade e assim por diante contribuam para com nossos problemas, elas não são realmente a fonte mais profunda deles. Para descobrir a fonte mais profunda de nossas dificuldades, nós precisamos olhar para dentro. Afinal de contas , se nós nos sentimos infelizes em nossa vida, isso é uma resposta à nossa situação. Diferentes pessoas respondem à mesma situação de maneira diferentes. Mesmo se apenas nos observarmos, vemos que reagimos diferentemente às dificuldade de um dia para o outro. Se a fonte dos problemas fosse apenas a situação externa, nós deveríamos reagir da mesma maneira o tempo inteiro, porém nós não o fazemos. Existem fatores que afetam como nós reagimos, tais como ter um dia bom no trabalho, mas estes são apenas

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fatores que contribuem superficialmente. Eles não vão fundo o suficiente.

Se nós olhamos, começamos a ver que nossas atitudes com relação a vida, com nós mesmos e com nossas situações contribuem muito para como nos sentimos. Por exemplo, nós não sentimos “peninha” de nós mesmos o tempo inteiro, como quando nós estamos tendo um bom dia, mas basta não termos um bom dia, que o sentimento de auto-piedade reaparece. As atitudes básicas que nós temos com relação à vida delineiam em grande parte como nós experimentamos a vida. Se nós examinamos profundamente, nós descobrimos que nossas atitudes se baseiam em confusão.

Confusão Como a Fonte dos ProblemasSe nós explorarmos a confusão, vemos que um aspecto dela é a confusão sobre causa e efeito no comportamento. Nós somos confusos sobre o que fazer ou dizer e sobre o que vai acontecer como resultado. Nós podemos estar bastante confusos sobre qual tipo de trabalho pegarmos, se devemos nos casar, se devemos ter filhos

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etc. Se nós tivermos um relacionamento com uma pessoa, qual será o resultado? Nós não sabemos. Nossas idéias sobre o que irá suceder de nossas escolhas são realmente apenas fantasias. Nós talvez achemos que se nós tivermos um relacionamento com uma determinada pessoa, nós seremos felizes para sempre, como em um conto de fadas. Se nós estivermos chateados com uma situação, nós achamos que gritar vai melhorá-la. Nós temos uma idéia muito confusa sobre como a outra pessoa vai responder as nossas ações. Achamos que se gritarmos e dissermos o que pensamos, nós nos sentiremos melhor e que tudo vai ficar bem, mas tudo não vai ficar bem. Nós queremos saber o que vai acontecer. Desesperadamente olhamos para a astrologia ou jogamos moedas para o O Livro das Mudanças, o I Ching. Por quê fazemos coisas como essas? Nós queremos estar no controle do que acontece.

O budismo fala que um nível mais profundo de confusão é a confusão sobre como nós e os outros existimos e sobre como o mundo existe. Nós estamos confusos com relação a

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toda a questão do controle. Nós cremos que é possível estar completamente no controle daquilo que acontece conosco. Por isso, nós nos frustramos. Não é possível estar sempre no controle. Isso não é a realidade. A realidade é bastante complexa. Muitas coisas influenciam aquilo que ocorre, não apenas o que nós fazemos. Não é que nós estamos totalmente sem controle ou sendo manipulados por forças externas. Nós contribuímos para o que ocorre, porém não somos o único fator que determina o que ocorre.

Por causa da nossa confusão e da nossa insegurança, geralmente agimos destrutivamente sem nem sabermos que é um comportamento destrutivo. Isso se deve a estarmos sob a influência de emoções e atitudes perturbadoras e impulsos compulsivos que surgem dos nossos hábitos. Não apenas agimos destrutivamente para com os outros; nós agimos de modo auto-destrutivo em primeiro lugar. Em outras palavras, nós criamos mais problemas para nós mesmos. Se nós quisermos ter menos problemas ou ficar completamente livre deles , ou mais

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ainda, a habilidade de ajudar os outros a sair de seus problemas também, nós devemos reconhecer a fonte das nossas limitações.

Nos Livrando da ConfusãoDigamos que nós possamos reconhecer que a fonte de nossos problemas seja a confusão. Isso não é muito difícil. Muitas pessoas chegam ao ponto de dizer “Eu estou realmente confuso(a). Eu estou embananado(a) .” Então e aí? Antes de começarmos a sair por aí, a gastar nosso dinheiro em tal curso ou em tal retiro, nós devemos considerar muito seriamente se nós realmente estamos convencidos de que é possível nos livrarmos da nossa confusão. Se nós não acharmos que é possível sair da confusão, o que estamos tentando fazer? Se nós formos apenas com a esperança de que possa ser possível nos livrarmos de nossa confusão, isso não é muito estável. É apenas uma atitude de “ Ah, como eu queria...”

Nós talvez pensemos que a liberdade poderia vir de várias maneiras. Talvez achemos que alguém virá nos salvar.

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Poderia ser uma figura superior, divina, tal como um Deus, então nos tornamos uma espécie de “crente pentecostal” budista. Alternativamente, nós podemos buscar um mestre espiritual, um parceiro ou outro alguém para nos livrar da nossa confusão. Em tais situações, é fácil nos tornarmos dependentes da outra pessoa e nos comportarmos sem maturidade. Nós freqüentemente estamos tão desesperados para achar alguém para nos salvar, que não paramos para pensar sobre a quem nós recorremos. Nós talvez escolhamos alguém que não está livre da própria confusão e que, por causa das suas próprias atitudes e emoções perturbadoras, tira vantagem da nossa ingênua dependência. Essa não é uma forma estável de prosseguir. Nós não devemos buscar por um professor espiritual ou por um relacionamento para limpar toda a nossa confusão. Nós devemos limpar a nossa própria confusão.

Uma relação com um(a) professor(a) espiritual ou com um parceiro(a) pode prover circunstâncias que ajudem, mas apenas quando o relacionamento é saudável. Quando é insalubre, só torna as

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coisas piores. Leva a mais confusão. No início, nós podemos estar em um profundo estado de negação, achando que o professor é perfeito, que o parceiro é perfeito, mas eventualmente nossa ingenuidade se desgasta. Quando nós começamos a ver as fraquezas na outra pessoa e que a outra pessoa não vai nos salvar de toda a nossa confusão, nós temos uma pane. Nos sentimos traídos. Nossa fé e confiança foram traídos. Este é um sentimento terrível! É muito importante tentar evitar isso desde o início. Nós precisamos praticar o Dharma; medidas preventivas. Nós devemos entender o que é possível e o que não é. O que está e o que não está ao alcance de um professor espiritual? Nós tomamos medidas de segurança para evitar essa pane.

Nós devemos desenvolver um estado mental que é livre de confusão. O oposto da confusão, o entendimento, irá prevenir a confusão de surgir. Nosso trabalho no Dharma é sermos introspectivos e atentos às nossas atitudes, às nossas emoções perturbadoras e aos nossos comportamentos neuróticos, compulsivos e

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impulsivos. Isso significa estar disposto a ver em nós mesmos coisas que não são tão legais, coisas que nós preferiríamos negar. Quando nós notamos coisas que estão causando nossos problemas ou são sintomas de nossos problemas, nós precisamos aplicar oponentes para superá-las. Tudo isso é baseado em estudo e meditação. Nós devemos aprender a identificar emoções e atitudes perturbadoras e de onde elas vêm.

MeditaçãoMeditação significa que nós praticamos aplicando os vários oponentes numa situação controlada de maneira que nós nos familiarizemos em como aplicá-los, para que nós possamos fazê-lo na vida real. Por exemplo, se nós ficamos zangados com os outros quando eles não agem da maneira como gostaríamos, na meditação nós pensamos sobre essas situações e tentamos olhá-las de uma perspectiva diferente. A outra pessoa está agindo de maneira discordante por diversas razões. Ele ou ela não está necessariamente nos azucrinando porquê não nos ama. Na meditação, nós tentamos dissolver tais

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atitudes: “Meu amigo não me ama mais pois ele(a) não me ligou.”

Se nós pudermos praticar através desse tipo de situação com um estado mental mais relaxado, compreensivo e paciente, então se a pessoa não nos liga por uma semana, nós não ficamos tão chateados. Quando nós começamos a ficar chateados, nós nos lembramos que essa pessoa é provavelmente muito ocupada e é egocêntrico pensar que nós somos a pessoa mais importante na vida dela. Isso nos ajuda a aliviar nossa chateação.

O Dharma é uma Ocupação em Tempo IntegralA prática do Dharma não é um hobby. Não é algo que nós fazemos por esporte ou como relaxamento. Nós não vamos até um centro de Dharma para sermos parte de um grupo ou para estarmos numa atmosfera social. Talvez seja muito legal ir lá, mas este não é o nosso propósito. Nós também não vamos a um centro de Dharma como um viciado tomando outra dose – uma dose de inspiração de um professor carismático e divertido, que faz com que nos sintamos

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bem. Se nós o fazemos, vamos para casa e logo nos sentimos entediados, precisando então de uma outra dose. O Dharma não é uma droga. Os professores não são uma droga. A prática do Dharma é um trabalho de tempo integral. Nós estamos falando sobre trabalhar nossas posturas com relação a tudo na vida. Se nós estamos trabalhando sobre desenvolver amor por todos os seres senscientes, por exemplo, nós precisamos aplicá-lo em nossa família. Muitas pessoas sentam em seus quartos meditando no amor, mas não conseguem se dar bem com seus pais ou seus parceiros. Isso é triste.

Evitando ExtremosAo tentar aplicar o Dharma em situações na vida real em casa ou no trabalho, nós devemos evitar extremos. Um pólo dos extremos é pôr toda a culpa nos outros. O outro extremo pôr toda a culpa em nós mesmos. O que acontece na vida é muito complexo. Ambas as partes contribuem: os outros contribuem, nós contribuímos. Nós podemos tentar fazer os outros mudarem seus comportamentos e posturas, mas estou certo de que todos nós sabemos por

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experiência própria que isso não é algo fácil – especialmente se nos aproximamos de uma maneira superior e sagrada, acusando o outro de ser um pecador. É muito mais fácil mudarmos a nós mesmos. Apesar de que nós podemos fazer sugestões aos outros, se eles são receptivos e se eles não vão se tornar mais agressivos por causa da nossa sugestão, o principal trabalho é sobre nós mesmo.

Ao trabalhar com nós mesmos, temos de ter cuidado com outro par de extremos: sermos totalmente preocupados com nossos sentimentos e não estarmos atentos a eles de maneira alguma. O primeiro é uma preocupação narcisista. Nós estamos preocupados apenas com o que nós sentimos. Tendemos a ignorar o que os outros estão sentindo. Tendemos a pensar que o que nós sentimos é bem mais importante do que o que as outras pessoas estão sentindo. No outro caso, podemos estar completamente fora de contato com nossos sentimentos ou não sentir nada que seja, como se nossas emoções fossem alvejadas com Novocaína. Evitar estes

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extremos requer um delicado equilíbrio. Não é tão fácil.

Se nós estamos sempre observando a nós mesmos, se cria uma uma dualidade imaginada – nós mesmos e aquilo que estamos sentindo – e então não nos interessamos em nos relacionarmos com alguém ou estar com alguém. A verdadeira arte é se relacionar e agir de uma maneira natural e sincera, enquanto que parte da nossa atenção está na nossa motivação e assim por diante. Precisamos tentar fazer isso, entretanto, sem que seja uma maneira de agir descontínua, de maneira que nós não estejamos presentes com a outra pessoa. Eu devo apontar também que se nós estivermos checando a nossa motivação e sentimentos durante o processo de nos relacionarmos com alguém, às vezes ajuda dizer para a outra pessoa. Entretanto é muito narcisista pensar que nós devemoscontar para a pessoa. Geralmente, outras pessoas não estão interessadas naquilo que estamos sentindo. É muito presunçoso achar que elas querem saber. Quando notarmos que estamos começando a agir com egoísmo,

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nós podemos simplesmente parar. Não precisamos anunciá-lo.

Outro par de extremos é pensar que nós somos de todo maus ou de todo bons. Se nós colocarmos muita ênfase nas nossas dificuldades, nossos problemas e nossas emoções perturbadoras, nós poderíamos começar a sentir que somos pessoas más. Isso muito facilmente se resulta em culpa. “Eu deveria praticar. Se não eu sou uma pessoa ruim.” Isso é uma fundação muito neurótica para a prática.

Nós também precisamos evitar o outro extremo, que é por muita ênfase nos nossos lados positivos. “Nós somos todos perfeitos. Apenas percebam suas naturezas de Buda. Tudo é maravilhoso.” Isso é muito perigoso, pois pode implicar que nós não precisamos desistir de nada, não precisamos parar nenhuma negatividade pois tudo de que precisamos é ver nossas naturezas de Buda. “Eu sou maravilhoso. Eu sou perfeito. Eu não tenho de parar meu comportamento negativo.” Precisamos de um equilíbrio. Se nos sentirmos muito para baixo, precisamos nos lembrar de nossas

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natureza de Buda; se estivermos blasé demais, devemos dar ênfase aos nossos lados negativos.

Assumindo a ResponsabilidadeBasicamente, precisamos assumir a responsabilidade por nós mesmos: por nosso desenvolvimento e por nos livrarmos de nossos problemas. Claro que precisamos de ajuda. Não é fácil fazer tudo isso sozinhos. Nós podemos receber ajuda de professores espirituais ou de nossa comunidade espiritual, pessoas que pensam como nós e que estão trabalhando consigo mesmos e não culpando uns aos outros por seus problemas. É por isso que num relacionamento é importante que se compartilhe o mesmo tipo de atitude, particularmente a de não culpar o parceiro pelos problemas que surgem. Se ambos os parceiros estão culpando um ao outro, nada vai funcionar. Se apenas um dos parceiros está trabalhando consigo mesmo e o outro está apenas culpando, as coisas também não funcionam. Se nós já estivermos numa relação em que outra pessoa está nos acusando, porém nós estamos procurando onde nós estamos

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contribuindo , não significa que nós tenhamos que terminar a relação, mas é mais difícil. Temos de tentar evitar nos tornarmos mártires nessa relação. “Eu estou suportando tudo isso! Como é difícil!” A coisa toda pode ser bem neurótica.

Recebendo InspiraçãoA forma de apoio que podemos obter de um professor espiritual, de amigos e de uma comunidade espiritual que pensa semelhante a nós é geralmente chamada de “inspiração”. Os ensinamentos budistas colocam grande ênfase em receber inspiração da Jóia Tríplice, dos professores e assim por diante. A palavra tibetana é “jinlab” (byin-rlabs), usualmente traduzida como “bênçãos”, que é uma tradução inapropriada. Nós precisamos de inspiração. Nós precisamos de algum tipo de força para seguir em frente.

O caminho do Dharma não é fácil. Diz respeito a lidar com a feiura da vida. Nós precisamos de fontes de inspiração estáveis. Se nossas fontes de inspiração são professores contando estórias de

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milagres e coisas do gênero – sobre eles mesmos ou sobre outros na história do budismo – não será uma fonte de inspiração muito estável. Certamente que pode ser muito excitante, mas temos de examinar como isso está nos afetando. Para muitas pessoas, reforça um mundo de fantasia no qual nós estamos desejando salvação por meio de milagres. Imaginamos que algum grande mágico vai nos salvar com seus poderes milagrosos ou que nós vamos de repente desenvolver a capacidade de operar milagres. Temos de ser muito cautelosos no que diz respeito a estas estórias fantásticas. Elas podem inspirar a nossa fé e assim por diante, podendo ser de ajuda, mas não são fontes de inspiração estáveis. Precisamos de uma base sólida.

Um exemplo perfeito é aquele do Buda. O Buda não tentava “inspirar” as pessoas ou impressioná-las contando estórias fantásticas. Ele não saia por aí todo presunçoso abençoando as pessoas e coisas do gênero. A analogia que o Buda usou, repetida em toda a extensão dos ensinamentos budistas, é a de que um

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Buda é como um sol. O sol não tenta aquecer as pessoas. Naturalmente, pela maneira de ser do sol, ele espontaneamente aquece a todos. Apesar de nós nos empolgarmos ao ouvir uma estória fantástica ou por sermos tocados na cabeça por uma estátua ou receber uma fita vermelha para amarrar em volta do pescoço, essas não são coisas estáveis. Um fonte estável de inspiração é a maneira espontânea e natural que o professor tem como pessoa – seu caráter, a maneira como ele ou ela é como resultado de praticar o Dharma. Isso é que é inspirador e não um papel que alguém interpreta para nos entreter. Mesmo que isso não seja tão excitante quanto uma estória fantástica, nos dará um sentido de inspiração estável.

A medida que progredimos, podemos obter inspiração de nosso próprio progresso – não de ganhar poderes miraculosos, mas de como o nosso caráter mudou. Os ensinamentos sempre enfatizam regojizarmo-nos em nossas próprias ações positivas. É muito importante se lembrar que o progresso nunca é linear. Não fica melhor a cada dia. Uma das características

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do samsara é que os humores sobem e descem até que estejamos completamente livres do samsara, o que é um estado incrivelmente avançado. Devemos esperar que às vezes nos sentiremos alegres, às vezes tristes. Às vezes conseguiremos agir de maneira positiva e outras vezes, nossos hábitos neuróticos serão sobrepujantes. Será um caminho atribulado. Milagres não acontecem, geralmente.

Os ensinamentos sobre evitar as oito preocupações mundanas enfatizam não ficar se achando o “rei da cocada preta”, se as coisas vão bem e não entrar em depressão se as coisas vão mal. Isso é a vida. Precisamos olhar para os efeitos a longo prazo, não efeitos a curto prazo. Se nós estivemos praticando por cinco anos, por exemplo, comparado com cinco anos atrás, houve muito progresso. Mesmo que as vezes nós fiquemos chateados, se notamos que somos capazes de lidar com as situações com uma mente e coração mais calmos e claros, isso indica que nós fizemos algum progresso. Isso é inspirador. Não é dramático, apesar de que gostaríamos que fosse dramático e de nós

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nos empolgarmos com performances dramáticas. É uma inspiração estável.

Sendo PráticoPrecisamos ser bastante práticos e com os pés no chão. Quando fazemos práticas de purificação como a prática de Vajrasattva, é importante não pensar nele como um “São Vajrasattva” nos purificando. Não é uma figura externa, um grande santo que irá nos salvar e nos abençoar com a purificação. Esse não é o processo de maneira alguma. Vajrasattva significa a pureza natural da mente de clara luz, que não é inerentemente maculada pela confusão. A confusão pode ser removida. É quando reconhecemos a natureza pura da mente através de nossos esforços, que podemos deixar de lado a culpa, potenciais negativos e assim por diante. Isso possibilita ao processo de purificação funcionar.

Além disso, ao realizar todas essas práticas e tentar colocar o Dharma em nossas vidas diárias, precisamos reconhecer e discernir o nível em que estamos. É crucial não ser pretensioso ou achar que nós precisamos

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estar num nível mais alto do que aquele onde estamos no presente.

Abordando o Dharma Vindo de Antecedentes Católicos

A maioria de nós aqui tem uma procedência católica. Na medida que abordamos a Dharma e começamos a estudar, não sentimos a necessidade de desistir do catolicismo e nos converter ao budismo. Entretanto, é importante não misturar as duas práticas. Nós não fazemos três prostrações ao altar antes de nos sentarmos na igreja. Da mesma forma, quando fazemos uma prática budista, nós não visualizamos a Virgem Maria, nós visualizamos figuras-de-Budas. Nós praticamos cada um individualmente. Quando vamos à igreja, simplesmente vamos à igreja; quando fazemos uma meditação budista, fazemos uma meditação budista. Existem muitas características em comum, tais como a ênfase no amor, ajudar os outros etc. Não existe conflito nesse nível básico. Se praticamos amor, caridade e a ajuda ao próximo, somos tanto bons católicos quanto bons budistas.

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Eventualmente porém, nós teremos de fazer uma escolha, mas apenas quando estamos prontos para colocar nosso total esforço em fazer um tremendo progresso espiritual. Se nós vamos subir até o último andar de um edifício, nós não podemos subir por duas escadarias ao mesmo tempo. Penso que esta é uma imagem muito útil. Se estamos trabalhando apenas no andar térreo, no lobby, ótimo. Não temos de nos preocupar com isso. Podemos nos beneficiar de ambos.

Evitando Lealdade DeslocadaAo aplicar o Dharma em nossa vidas, temos de ser cuidadosos para não rejeitarmos nossas religiões nativas como sendo ruins ou inferiores. Isso é um grande erro. Poderíamos então nos tornar budistas fanáticos e anti-católicos fanáticos, por exemplo. As pessoas fazem isso com o comunismo e com a democracia também. Um mecanismo psicológico chamado lealdade deslocada entra em cena. Existe uma tendência de querermos ser leais as nossas famílias, aos nossos antecedentes etc, então queremos ser leais ao catolicismo apesar de havermos rejeitado-

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o. Se não somos leais aos nossos antecedentes e os rejeitamos totalmente como sendo ruins, achamos que somos completamente ruins. Porque isso é extremamente inquietante, nós inconscientemente sentimos que precisamos achar algo em nosso passado ao qual possamos ser fieis.

A tendência é inconscientemente sermos leais a um certo aspecto menos benéfico de nosso passado. Por exemplo, podemos rejeitar o catolicismo, mas trazemos um forte medo dos infernos para dentro do budismo. Uma amiga minha era uma católica muito fervorosa, adotou com muita ênfase o budismo e depois teve uma crise existencial. “Eu desisti do catolicismo e agora eu vou para o inferno católico; mas se eu desistir do budismo e voltar ao catolicismo, irei para o inferno budista!” Apesar de soar engraçado, era um problema muito sério para ela.

Nós geralmente trazemos inconscientemente certas atitudes do catolicismo para a prática budista. As mais comuns são culpa e buscar por milagres e

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por outros seres que possam nos salvar. Se nós não praticamos, sentimos que deveríamos praticar, e se não o fazemos, nos sentimos culpados. Essas idéias não são de nenhuma ajuda. Precisamos reconhecer quando estamos fazendo isso. Devemos olhar para nossos antecedentes e perceber os aspectos positivos de maneira a sermos fieis às características positivas ao invés das negativas. Ao invés de pensarmos, “Eu herdei culpa e busca por milagres.” podemos pensar “Eu herdei a tradição católica do amor, caridade e ajuda aos desafortunados.”

Nós podemos fazer a mesma coisa no que tange as nossas famílias. Podemos rejeitá-los e então sermos inconscientemente leais às suas tradições negativas, ao invés de sermos conscientemente leais às positivas. Se nós reconhecermos por exemplo, que nós somos muito gratos pelo passado católico que eles nos deram, então podemos seguir nossos próprios caminhos sem conflito sobre nosso passado e sem sentimentos negativos constantemente prejudicando nosso progresso.

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É importante tentar entendermos a validade psicológica disso. Se pensarmos em nosso passado – nossas famílias, nossa religião de nascimento ou o que quer que seja – como negativos, tendemos a ter atitudes negativas com relação a nós mesmos. Por outro lado, se podemos reconhecer as coisas positivas em nossos antecedentes e nosso passado, tendemos a ter atitudes positivas com nós mesmos. Isso nos ajuda a sermos muito mais estáveis em nossa prática espiritual.

Últimas ConclusõesPrecisamos proceder devagar, passo-a-passo. Quando ouvimos ensinamentos muito avançados, vamos a iniciações tântricas e afins, apesar de grandes mestres do passado terem dito “Tão logo você ouça um ensinamento, imediatamente ponha-o em prática”, precisamos determinar se algo é muito avançado para nós ou se é algo que nós podemos colocar em prática no presente. Se for muito avançado, nós temos de discernir os passos que vamos precisar tomar para nos prepararmos de maneira a conseguirmos pô-lo em prática, e então seguir esses

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passos. Em resumo, como disse um de meus professores, Geshe Ngawang Dhargyey “Se nós praticarmos métodos fantasiosos, teremos resultados fantasiosos; se praticarmos métodos práticos, teremos resultados práticos.”

Usar Métodos Budistas Úteis no Cotidiano

Alexander Berzin Moscou, Rússia, Setembro de 2010 

tradução para o português por Antonella YllanaHoje à noite falaremos sobre como usar métodos budistas para que estes nos ajudem no cotidiano. Quando falamos sobre métodos budistas ou ensinamentos budistas, a palavra para isso em sânscrito é Dharma. Se quisermos saber o que a palavra “Dharma” realmente significa, ela quer dizer “algo que nos detém”. Dharma é algo que nos detém ou nos impede de sofrer e ter problemas.

As Quatro Verdades NobresA primeira coisa que o Buda ensinou foi aquilo que é conhecido como “as quatro verdades nobres”. O que isso significa é que há quatro fatos que qualquer pessoa

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altamente realizada e capaz de compreender a realidade entenderia como verdades. Esses quatro são:

Os verdadeiros problemas que todos nós enfrentamos.

As verdadeiras causas destes problemas.

Como seria se os problemas realmente parassem e nós não mais os tivéssemos.

A forma de entender, agir, e assim por diante, que provocaria a cessação de todos os problemas.Nossos Verdadeiros Problemas

O budismo tem muito a dizer sobre problemas e como lidar com eles. Na verdade, todos os ensinamentos budistas intencionam ajudar-nos a superar as dificuldades da vida. A abordagem é realmente muito racional e realista. Ela diz que quaisquer problemas que tenhamos, todos eles, vêm de causas. Então, temos que olhar de forma muito honesta e profunda dentro de nós mesmos para ver quais dificuldades estamos enfrentando. Para muitos de nós, este não é um processo muito fácil. É bastante doloroso realmente olhar para ver quais são as áreas difíceis

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em nossas vidas. Muitas pessoas vivem na negação. Elas não querem admitir que têm problemas – por exemplo, que estão em um relacionamento que não é saudável – mas apesar disso, elas se sentem infelizes. Porém, não podemos deixar isso apenas no nível de “eu estou infeliz”. Precisamos olhar mais profundamente para ver qual é realmente o nosso problema.

As Verdadeiras Causas de Nossos Problemas

Então, precisamos tentar descobrir quais são as causas de nossos problemas. Problemas não existem sozinhos, como se surgissem do nada. Tem que haver uma causa, e é claro que há muitos níveis de fatores envolvidos ao criar uma situação que não é satisfatória. Por exemplo, quando há conflitos de personalidade em uma relação, pode haver fatores adicionais que complicam a situação e vêm do aspecto econômico – não ter dinheiro suficiente, etc. – problemas com crianças ou problemas com outros parentes. Pode haver vários tipos de circunstâncias que contribuem para o problema. Mas o Buda disse que temos que nos aprofundar mais e mais e mais para achar qual é a causa mais

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profunda de nosso problema; e a causa mais profunda de nossos problemas é nossa confusão sobre a realidade.

Sentimos infelicidade, sentimos dor, e é claro que isso vem de alguma espécie de causa. Por exemplo, poderíamos estar agindo de uma forma inquietante – com muita raiva, por exemplo. Ninguém está feliz quando está com raiva, certo? Então, precisamos reconhecer que a raiva aqui está causando nossa infelicidade e que deveríamos, de alguma forma, nos livrar da raiva.

O problema que está nos tornando infelizes poderia ser também que nos preocupamos o tempo todo. Preocupar-se é um estado mental muito desagradável. Ninguém estará feliz enquanto estiver se preocupando, certo? Shantideva, um grande mestre indiano budista, disse que se você estiver em uma situação difícil na qual você pode fazer algo para mudá-la, por que se preocupar? Apenas mude-a. Preocupar-se não o ajudará. E se não houver nada que você possa fazer para mudá-la, por que se preocupar? Isso

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também não ajudará. A questão é que preocupar-se não traz benefício algum.

Depois, também temos outro nível de problema, que é o problema de nunca estar satisfeitos. Vivenciamos momentos de felicidade, é claro, mas infelizmente eles não duram para sempre, e sempre queremos mais. Nunca nada é satisfatório. Não estamos satisfeitos ao comer nossa comida preferida apenas uma vez, não é mesmo? Queremos comê-la sempre de novo. E se uma vez comermos demais, então a felicidade que tivemos no início se transformará em uma dor de barriga. Assim, ficamos um pouco confusos em relação a este tipo de felicidade. Ao invés de apenas desfrutar as coisas pelo que elas são e entender que não durarão para sempre e nunca nos satisfarão, nós nos apegamos a elas; e quando perdemos a nossa felicidade, nos sentimos muito infelizes.

É como estar com um querido amigo ou um ser amado, e então eles nos abandonam. É claro que eles irão embora um dia, e assim temos que desfrutar do tempo que estamos

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com eles. Esta é uma imagem muito bela que usamos às vezes. Quando uma pessoa maravilhosa que amamos muito entra em nossas vidas, é como um pássaro selvagem que chega à nossa janela. Quando o pássaro selvagem chega à nossa janela, podemos desfrutar da companhia deste pássaro, mas é claro que, depois de um tempo, este pássaro voará para longe, pois ele é livre. E se formos muito gentis, talvez o pássaro volte. No entanto, se o pegarmos e colocarmos em uma gaiola, o pássaro ficará muito infeliz e talvez até morra. Da mesma forma, essas pessoas entram em nossas vidas como este pássaro selvagem, e o melhor a fazer é desfrutar o tempo que estão conosco. Quando eles partem, por qualquer que seja a razão, por quanto tempo for – bem, isso acontece. Se estivermos relaxados e calmos em relação a isso e não fizermos exigências como: “Nunca me abandone. Não posso viver sem você.” Este tipo de coisas… Então, é possível que eles voltem. Senão, nosso apego e nossas exigências apenas os afastarão.

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Quando estamos confusos sobre a natureza de nossa felicidade e nossos prazeres comuns, é claro que temos problemas. Não podemos nem mesmo desfrutar os momentos felizes que temos porque estamos preocupados e com medo de perdê-los. Somos como um cachorro com uma tigela de comida – o cachorro está comendo a comida, mas também olhando ao redor e rosnando para ter certeza que ninguém virá e a pegará. Às vezes somos assim, não somos? Ao invés de desfrutar daquilo que temos e aceitar que, quando acabou, acabou. Mas é claro que isso não é tão simples quanto soa – talvez isso nem soe tão simples assim – mas isso requer treinamento, acostumar-se com uma forma diferente de ver as coisas na vida.

A Verdadeira Cessação de Nossos Problemas

Buda disse que é possível parar nossos problemas para sempre, e a forma de fazer isso é se livrar das suas causas. Isso é uma abordagem muito racional e muito lógica. Se você se livrar do combustível, não haverá mais fogo. E é possível, disse o Buda, livrar-se desses problemas de uma forma que eles nunca mais voltem.

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Não queremos ficar satisfeitos com uma liberdade desses problemas que apenas seja temporária, certo? É como ir dormir – quando você está dormindo, você não tem o problema de uma relação difícil. Então, esta não é a solução, pois quando você acorda, o problema ainda está lá. É como se você viajasse no feriado, mas depois tivesse que voltar para casa, e quando volta os problemas ainda estão lá. Então um feriado não é a melhor solução, aquela mais profunda e duradoura.

Buda tampouco disse que você devia aceitar seus problemas e viver com eles, pois esta também não é uma solução muito boa, não é mesmo? Pois, neste caso, nós nos sentimos impotentes – não há nada a fazer, então desistimos e nem mesmo tentamos. É muito importante tentar superar nossos problemas. Mesmo se não fizermos muitos progressos, pelo menos, sentimos que tentamos.

Métodos para Parar Nossos Problemas

Mas se realmente quisermos alcançar uma cessação verdadeira desses problemas, um fim verdadeiros para eles, então há o

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quarto fato que o Buda ensinou, que é: precisamos seguir alguma espécie de método e obter algum tipo de entendimento correto para poder nos livrar da causa mais profunda, isto é, da nossa confusão. Mas obter um bom entendimento não é suficiente se não conseguirmos nos lembrar dele o tempo todo, então temos que desenvolver a concentração. Entretanto, para ter a concentração necessária, para ser capazes de lembrar e ficar focados naquele entendimento, precisamos de autodisciplina. Então, os métodos budistas gerais que usamos para prevenir nossos problemas são: seguir algum tipo de disciplina, concentração e entendimento correto (às vezes isto é chamado de “sabedoria”).

Além disso, uma das maiores causas de nossos problemas é nosso egoísmo. Muito de nosso egoísmo é baseado na confusão sobre a realidade, porque de alguma forma parecemos pensar que somos os únicos que existimos no mundo. Mesmo se reconhecermos que os outros existem, somos claramente a pessoa mais importante no universo, o centro de nosso

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universo. Por causa de nosso equívoco, nós pensamos: “as coisas têm que ser sempre da minha maneira. Eu sempre tenho que obter aquilo que quero.” E se não for de nosso jeito, então ficamos muito infelizes.

Mas esta é uma visão muito confusa da realidade porque não há nada que seja mais especial em mim do que nos outros. Somos todos iguais no sentido de que todos querem ser felizes, ninguém que ser infeliz; todos querem obter aquilo que desejam e ninguém quer ficar sem aquilo que deseja. De alguma forma, temos que conviver uns com os outros, porque convivemos. Então, precisamos adicionar amor e compaixão, consideração pelos outros, e altruísmo, às maneiras que usamos para superar problemas ou preveni-los. Da mesma forma que gostaríamos que outros nos ajudassem, eles também gostariam que nós os ajudássemos.

Lidando com Emoções PerturbadorasÉ claro que nem todo mundo é um santo ou um bodhisattva, isso é bem verdade. Todo mundo está confuso em um ou outro nível. Por estarmos confusos, nós agimos sob a

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influência de emoções perturbadoras. Por exemplo, se eu pensar que sou o centro do universo e que sou a pessoa mais importante, então o sentimento que acompanhará isso será insegurança, certo? Quando você está confuso, você está inseguro e pensa: “Bem, eu deveria ser o mais importante, mas as pessoas não me tratam sempre desta forma.” Então, a insegurança estará presente.

Quais são as estratégias que podemos usar quando estamos inseguros – estratégias para tentar nos fazer sentir mais seguros? Uma delas é: “Se eu puder ter muitas coisas ao meu redor, de alguma forma isso me fará sentir mais seguro. Se eu conseguir ter bastante dinheiro ou bastante atenção ou bastante amor, de alguma forma isso me fará feliz.” Mas então, como nós vimos, a natureza deste tipo de felicidade é que nunca temos o suficiente, nunca estamos satisfeitos, e sempre queremos mais.

Pense nisso. Faz sentido. Será que queremos realmente que nosso amado ou nossa amada nos diga “eu te amo” apenas

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uma vez? Se eles disserem isso apenas uma vez, então, será isso suficiente – eles nunca mais terão que repetir isso para nós? Nunca nos sentiremos seguros com isso. Sempre queremos ouvir de novo e de novo e de novo, não queremos? E nunca chegamos ao ponto no qual dizemos, “Bem, você não tem mais que me dizer isso. Eu sei disso.” Então, quando falamos sobre ser gananciosos, não se trata de ser apenas gananciosos em relação a coisas materiais e dinheiro. Também somos gananciosos com amor, e a maioria de nós é especialmente gananciosa no que diz respeito à atenção. Vemos isso com crianças pequenas. Então, este é um mecanismo: se pudermos ter muitas coisas ao nosso redor, isso nos tornará seguros. E isso nunca funciona.

O próximo mecanismo é raiva e repulsa: “Se eu pudesse apenas afastar certas coisas que eu sinto que estão me ameaçando, isso me fará sentir mais seguro.” Mas nós nunca nos sentimos seguros; nós sempre nos sentimos ameaçados; e sempre estamos de guarda no caso que alguém faça algo de que não

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gostamos – então nos tornamos raivosos e o mandamos embora. Às vezes, isso pode ser bem contraproducente. Estou pensando no exemplo de um relacionamento no qual sentimos que a outra pessoa não está prestando atenção suficiente em nós, não nos dá muito de seu tempo, então gritamos com ela. Ficamos com raiva e berramos: “Você deveria prestar mais atenção em mim! Você deveria passar mais tempo comigo!” E assim por diante. Qual o resultado disso? Geralmente, eles se afastam até mais. Ou, então, nos fazem um grande favor e ficam conosco apenas mais um pouquinho, mas você pode sentir que eles não estão confortáveis com isso. Como podemos pensar que ficar com raiva de alguém fará que esta pessoa goste mais de nós? Realmente, isso é absurdo, não é? Muitos desses mecanismos que usamos com a esperança de nos tornar mais seguros apenas pioram as coisas.

Outro mecanismo que usamos é levantar paredes. Isso é baseado em ingenuidade. Nós pensamos que, se não lidarmos com o problema de alguma forma, ou ele não existe ou ele irá embora por si mesmo.

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“Não quero ouvir falar sobre isso” – este tipo de atitude, e você levanta uma parede ao seu redor. Mas é claro que este estado de ingenuidade não funciona. O problema não partirá apenas porque o ignoramos ou não o admitimos.

Então o que acontece é que, por causa dessas emoções perturbadoras, nós agimos em todos os tipos de formas destrutivas. Nós gritamos. Podemos até bater em alguém. Se você sentir, “pobre de mim, eu não tenho nada”, pode ser que você roube, pensando que isso será algo que o ajudará. Estou pensando no exemplo de quando vivi na Índia por muitos, muitos anos. A Índia é o país dos insetos – muitos, muitos, muitos insetos, todo o tipo de inseto que você puder imaginar. E você não pode matá-los todos; não há como você vencê-los. A única solução é aprender a viver com eles. Se você não gostar de ter muitos insetos em seu quarto, você dormirá com um mosquiteiro – e sempre haverá mais insetos. E aí emerge aquele impulso de comportamento destrutivo: “Tenho que me livrar deles!”

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Há muitas formas diferentes de comportamento destrutivo. Mentir, usar linguagem dura, adultério, estupro – existem todas essas coisas. E quando agimos de forma destrutiva, basicamente isso produz infelicidade – infelicidade não apenas para os outros, mas especialmente infelicidade para nós. Se você pensar sobre isso, o budismo fala com muita ênfase sobre não matar, certo? Agora, a questão aqui é que se você adquirir o hábito de matar qualquer coisa que você não gosta – como mosquitos, por exemplo – então esta será a sua primeira resposta automática, não será? E não tem a ver apenas com matar. Se houver algo de que não gostamos, nós o atacamos de uma forma muito violenta – pode ser de forma verbal, pode ser fisicamente, pode ser emocionalmente – ao invés de aprender a lidar com isso em um estado mental calmo.

É claro que às vezes talvez você tenha que matar. Por exemplo, pode haver insetos comendo a colheita; pode haver insetos com doenças, etc. O budismo não tem a ver com fanatismo. Mas você não deveria ser ingênuo em relação a isso. Tente fazê-lo

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sem raiva ou ódio, como: “Eu odeio esses mosquitos da malária!” E você não deveria ser ingênuo sobre as consequências negativas que isso terá. Apenas um simples exemplo: Se usarmos inseticidas em todos os nossos legumes e frutas – bem, nós também comemos isso, e isso pode causar doenças. Então, há efeitos colaterais negativos. A questão aqui é, voltando ao nosso ponto de partida, é que os nossos métodos são: disciplina, concentração, e entendimento correto, complementados com amor e compaixão.

Autodisciplina ÉticaComo então aplicamos essas medidas preventivas para evitar problemas na vida? O primeiro nível, a primeira coisa que fazemos, é aplicar autodisciplina ética, o que significa evitar agir de forma destrutiva. Agir de forma destrutiva é agir sob a influência dessas emoções perturbadoras – raiva, cobiça, apego, ciúme, ingenuidade, arrogância e assim por diante. Isso significa que quando sentimos que vamos agir de forma destrutiva, decidimos com muita clareza: “Não, eu não quero agir desta forma.”

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Quando sinto que tenho gritar com você por algum erro que você fez, eu sei que gritar apenas fará com que a situação fique pior. Talvez eu tenha que corrigir você ou lidar com qualquer erro que você fez, mas gritar apenas tornará tudo pior, certo? Especialmente berrar palavrões e nomes ruins para você – isso com certeza não ajudará a situação. Então, a autodisciplina ética tem a ver com perceber isso o mais cedo possível, até mesmo antes de agir de forma destrutiva, que estamos prestes a agir compulsivamente de uma forma destrutiva. Há um impulso para agir assim e nós percebemos: “Isso não ajudará de forma alguma.” E nos detemos antes de agir de acordo com nosso impulso.

Agora, não estamos dizendo aqui para você manter a raiva dentro de você, e ela comerá você por dentro, e você a segurará e a segurará até que você exploda. Este não é o método. E se você não tem sido capaz de lidar com ela, e ela apenas vai crescendo por dentro – bem, não a libere na outra pessoa. E dar um soco em uma parede – isso apenas machucará sua mão.

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Então, isso é estúpido. É melhor soltá-la de outra forma, certo?

Participante: Bata em um travesseiro.

Alex: Bata em um travesseiro ou lave o chão de sua casa – este tipo de método de “sabedoria de mãe” de lidar com raiva e frustração, e fazer trabalhos domésticos pesados ou ir dar uma corrida longa ou fazer uma ginástica intensa na academia podem ajudar a dissipar a energia da raiva frustrada.

Atenção Plena e ConcentraçãoSe nos tornarmos mais e mais habituados a este tipo de comportamento, e evitarmos agir de forma destrutiva quando sentimos vontade de fazê-lo, o que usamos aqui é o que chamamos de “atenção discriminadora (shes-rab)”. Discriminamos entre aquilo que ajuda e aquilo que prejudica. Baseados nisto, podemos ficar calmos e não apenas manter a raiva dentro de nós. Então, a coisa principal que estamos cultivando aqui é aquilo que geralmente é traduzido como “atenção plena (dran-pa)”. Isto significa “lembrar-se”. É como uma cola mental para manter a disciplina – o que eu quero fazer,

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o que eu quero ser na vida, como quero agir na minha vida – ater-se a isso e não esquecer disso. Isso é atenção plena. É a mesma palavra que diz “lembrar-se de forma ativa”.

Então, o que estamos tentando fazer é estar mais despertos. A palavra “Buda” significa realmente “alguém que está totalmente desperto.” Nós tentamos ficar despertos em relação às emoções que estamos sentindo, quais são os impulsos que compulsivamente emergem em nossas mentes para agir de tal ou tal maneira, e tentamos não ser um escravo dessas coisas, mas perceber, com entendimento, que podemos escolher como agir. Se eu estiver com mau humor, ele pode mudar; eu posso fazer algo para mudar isso.

Às vezes a solução para estar de mau humor é bastante simples. Um dos métodos mais simples é “colocar o bebê irritado na cama.” Estamos nos sentindo como um bebê que ficou acordado tempo demais e está – “buáááá” – chorando o tempo inteiro, e assim por diante. Muitas vezes, quando estamos de mau humor, estamos assim.

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Então nos deitamos e cochilamos, vamos dormir. Geralmente, quando acordamos estamos bem melhor.

Ou se você estiver tendo uma divergência com alguém, e ela está começando a ficar em um estado muito intenso – bem, você sabe que nesta situação a outra pessoa não está realmente escutando você, e também você não a está realmente escutando. É melhor parar esta conversa, dizer: “Vamos falar sobre isso mais tarde quando nós dois estivermos mais calmos”. E ir dar uma volta, ou algo assim, para nos acalmar.

Esses são métodos muito simples. O budismo realmente ensina métodos que agem bem mais profundamente do que isso, mas este é um início. Temos que começar aplicando métodos que somos realmente capazes de aplicar. Mas o princípio é o que importa, e o princípio é olhar para a causa do problema e fazer algo para superar o problema. Não seja apenas uma vítima do problema. De certa maneira, assuma o controle sobre o que está ocorrendo na sua vida.

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Agora, se pudermos desenvolver a atenção plena para nos atermos ao nosso entendimento sobre aquilo que ajuda e aquilo que prejudica em nosso comportamento, se formos capazes de prestar atenção àquilo que está acontecendo e lembrar como queremos agir e corrigir-nos se não estivermos agindo desta forma – se pudermos fazer isso em relação a como estamos agindo com nosso corpo, como estamos falando, então nós desenvolvemos a força para ser capazes de fazer isso com nossas mentes, com aquilo que estamos pensando.

Então, quando começamos a ter esta cadeia de pensamentos de preocupação, ou pensamentos de: “Coitado de mim. Ninguém me ama”, etc, etc, este tipo de coisas, nós dizemos: “Sai dessa! Eu não quero ficar nesta viagem de autopiedade, de preocupação, e assim por diante. Isso apenas me tornará infeliz.” E voltamos a trazer nossa atenção para algo mais positivo. Há muito mais coisas positivas que podemos fazer com nosso corpo, com nossa mente, do que apenas ficar sentados nos preocupando. Há muito mais coisas

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positivas que podemos pensar do que ficar pensando sobre quão terrível tudo pode ser, como quando estamos nos preocupando. Porque, veja bem, o que estamos tentando desenvolver aqui é concentração para podermos trazer nossa atenção de volta quando ela se vai.

Por exemplo, quando estamos falando com alguém e nossa mente começa a divagar – não tem que ser preocupação, pode ser, por exemplo: “Quando eles vão parar de falar?” ou “O que vou comer na hora do jantar?” Pode ser qualquer coisa, e paramos de prestar atenção à outra pessoa, ou fazemos comentários em nossa cabeça, tipo: “O que eles acabaram de dizer é estúpido.” Então, nós trazemos nossa atenção de volta e apenas focamos em escutar o que eles estão dizendo.

Esta é uma aplicação muito prática de concentração, mas ela requer disciplina; e nós desenvolvemos aquela disciplina em termos, primeiro, do nosso comportamento físico e verbal. Quando você desenvolver aquela habilidade, a habilidade de trazer a sua atenção de volta e corrigir quaisquer

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desvios, então você poderá aplicar isso em vários tipos de situação. É realmente muito, muito útil. Por exemplo, você começa a ter atenção plena em relação à postura de seu corpo. Se seus ombros estiverem tensos e para cima na atenção, e seu pescoço estiver tenso, e assim por diante – se você tiver atenção plena e notar isso, então você simplesmente baixa seus ombros e os relaxa. É apenas uma questão de prestar atenção, lembrar, e fazer algo a este respeito. Ou quando você começa a ficar muito excitado e isso é totalmente inadequado nesta situação, e você está começando a falar cada vez mais alto e de forma agressiva com alguém, você percebe isso e você simplesmente muda. Você simplesmente se acalma, como voltar a baixar seus ombros, mas você faz isso em um nível energético, um nível emocional.

Este é todo o segredo de como você aplica esses métodos do Dharma na vida. Apenas lembre-se deles e tenha suficiente disciplina para fazer isso, aplicar isso. E você o faz não porque quer ser bonzinho ou quer agradar seu professor ou algo assim. Você o faz porque quer evitar problemas,

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dificuldades, porque você sabe que se não fizer nada a respeito você ficará se sentindo miserável, e isso não é divertido, não é mesmo? Então, precisamos aplicar nossa autodisciplina na área mental em termos de concentração – até mesmo em termos de lidar com nossos sentimentos. É claro que lidar com sentimentos é mais delicado, muito mais difícil. Mas como eu disse, se você ficar muito excitado, você tem como se acalmar.

O Entendimento CorretoUma vez que desenvolver a ferramenta da concentração, pelo menos em certo nível, então você realmente desejará ser capaz de se concentrar no entendimento correto daquilo que está ocorrendo. Temos todos os tipos de confusão sobre a realidade – sobre como existimos, sobre como os outros existem, sobre como o mundo existe – e por causa desta confusão, temos todos os tipos de projeções que não são reais, certo? Podemos projetar: “Eu não valho nada. Sou um perdedor.” Ou poderíamos projetar: “Coitado de mim. Ninguém me ama.” Mas se realmente analisarmos todo mundo em nossas vidas, isso quer dizer

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que minha mãe nunca me amou, meu cachorro nunca me amou, nunca ninguém me amou. É improvável que isto seja verdade.

Então, estamos projetando essas fantasias e acreditamos que elas são verdadeiras; e isto é horrível. Acreditamos que podemos chegar atrasados, ou não ir a um encontro marcado, e que isso não importa: “Você não tem sentimentos”, certo? Então, deixamos de ter consideração para com os outros. Mas todos têm sentimentos, como também eu tenho sentimentos. Ninguém quer ser ignorado. Ninguém gosta quanto tem um encontro marcado e a outra pessoa não liga ou chega atrasada. Ninguém gosta disso. Então, o que precisamos fazer é usar a nossa concentração para acabar com essas fantasias e parar de projetar todas essas coisas sem sentido sobre, por exemplo, como o nosso comportamento imprudente não magoa os outros, porque esta é realmente a causa mais profunda de nossos problemas: “Sou o centro do universo. As coisas têm que ser sempre do meu jeito. Eu sou a pessoa mais importante.” É óbvio que isso é uma

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projeção de uma fantasia. Ninguém é o mais importante. Mas quando acreditamos que nossa fantasia é verdadeira, somos egoístas. Então, se quisermos superar o egoísmo, precisamos desconstruir esta fantasia e parar de projetá-la. Embora eu sinta que sou o centro do universo e a única pessoa que existe (pois quando fecho meus olhos há esta voz em minha cabeça, e não vejo mais ninguém, então parece que sou a única pessoa que existe), temos que nos lembrar que isto é uma ilusão e tentar não acreditar nela: “Não é assim. Apenas parece ser assim.”

Ficar com esta compreensão o tempo inteiro é o caminho verdadeiro, disse o Buda, para alcançar uma real cessação de nossos problemas. Se tivéssemos o correto entendimento o tempo inteiro, não teríamos esta confusão. E se não tivéssemos nenhuma confusão, não teríamos raiva; não teríamos apego, cobiça, etc. E se não tivéssemos nenhuma dessas emoções perturbadoras, não agiríamos de forma destrutiva. E se não agíssemos de forma destrutiva, não criaríamos todos os tipos de problemas para os outros e para

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nós mesmos. Este é o método básico budista para lidar com dificuldades em nossas vidas.

Se quisermos ter relações mais felizes, temos que reconhecer:

Sou um ser humano. Você é um ser humano. Todos nós temos os mesmos sentimentos, etc.

Todos têm seus pontos fortes. Todos têm seus pontos fracos. Eu tenho, você também tem.

Ninguém é um Príncipe ou uma Princesa Encantada em um cavalo branco.Você tem essa imagem em suas histórias? Sempre estamos procurando pelo parceiro perfeito, aquele com um cavalo branco, mas isso é um conto de fadas. Isso não existe, mas estamos projetando isso. Por acreditarmos em contos de fada, pensamos que este será o príncipe ou esta será a princesa, e quando eles não são assim ficamos com raiva deles, e às vezes até mesmo os rejeitamos. E então projetamos no próximo potencial parceiro que encontramos que ele ou ela será o príncipe ou a princesa. Mas nunca achamos o

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príncipe nem a princesa, porque isso não existe.

Então, se quisermos ter relacionamentos saudáveis, precisaremos aceitar a realidade. A realidade é, como eu disse, todos têm pontos bons, todos têm pontos fracos, e precisamos aprender a viver juntos de alguma forma, e ninguém é o centro do universo. E então há os ensinamentos gerais que você pode achar em qualquer religião ou filosofia humanista, que é ser gentil, atencioso, amoroso, ser paciente, generoso, perdoar, etc. Toda religião e toda filosofia humanista ensina a mesma coisa, também o budismo.

Os mesmo princípios se aplicam aos nossos relacionamentos de trabalho. Se você for gentil com as pessoas que trabalham com você no escritório (ou, caso esteja empregando pessoas, se for gentil com seus empregados), o trabalho acontecerá de forma mais suave. Se você estiver trabalhando em uma loja e for gentil e agradável com os clientes, toda a atmosfera será bem mais agradável, não é? E se a pessoa for honesta com seus

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negócios – não enganar os outros e assim por diante – de novo, as coisas fluem muito, mas muito melhor. Isso não quer dizer que não vamos tentar fazer lucro e ganhar a vida, mas a questão é não ser ganancioso em relação a isso.

E quando outros nos enganarem, pois nem todos agirão desta forma… Bem, o que você esperava? No entanto, do ponto de vista budista, não diríamos que se trata de pessoas más; apenas diríamos que elas estão confusas. Elas estão confusas. Elas não entendem que agir desta forma apenas criará mais e mais problemas para elas; ninguém gostará delas. Portanto, elas são um objeto de compaixão ao invés de um objeto de ódio. Se conseguirmos vê-las como um objeto de compaixão e tivermos paciência com elas, não sofreremos emocionalmente quando elas nos enganarem, e então tentaremos ser mais cuidadosos da próxima vez para não sermos enganados novamente. Mas o que é que esperamos das pessoas? Muitas pessoas são assim. Então, esta é a realidade. A projeção é que todo mundo é honesto. Nem todo mundo é honesto! Seria

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muito legal se todos fossem honestos, mas nem todo mundo o é. Então, pelo menos, nós podemos tentar se honestos.

Será que Não-budistas Podem Usar Esses Métodos?Agora, será que temos que seguir um rigoroso caminho espiritual budista de meditações e rituais, e assim por diante, para poder aplicar esses métodos? Bem, não realmente. Não temos que seguir um caminho espiritual rigoroso para poder aplicar todas essas coisas. Sua Santidade o Dalai Lama sempre fala sobre a ética secular e os valores humanos – ser amoroso, ter mais atenção plena, não ser ingênuo, não projetar fantasias, e assim por diante. Essas são diretrizes gerais que qualquer um pode seguir.

E quando falamos sobre meditação, apenas estamos falando sobre um método para nos familiarizarmos com esta forma de pensar, sentando e tentando pensar assim. Quando a nossa atenção se distrai, buscamos trazê-la de volta. Bem, você pode fazer isso sentado em meditação e focando em um Buda ou na sua respiração, mas você

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também pode fazer isso quando estiver lendo um livro, quando estiver cozinhando, quando não estiver fazendo nada. Quando está cozinhando, apenas fique focado no ato de cozinhar, e quando a sua mente for distraída por pensamentos esquisitos, apenas procure trazê-la de volta para o ato de cozinhar. Não tem que ser uma prática de meditação formal budista. Há muitas, muitas maneiras com as quais podemos nos familiarizar com essas formas mais benéficas de pensar, maneiras de agir, e assim por diante, sem que isso tenha que estar envolvido com nenhum tipo de ritual budista ou ambiente formal budista.

Isso, então, é a maneira como aplicamos o Dharma – as medidas preventivas – para nos ajudar a evitar problemas. Que perguntas vocês têm?

Perguntas e RespostasEstar Consciente do Que Está Acontecendo Interna e Externamente

Pergunta: Para evitar problemas, temos apenas que estar concentrados o tempo todo?

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Alex: Para evitar problemas, precisamos estar concentrados o tempo todo? De certa maneira, sim. Mas isto não é tudo. Também podemos estar muito concentrados em gritar e bater em alguém, por exemplo. Então, isto não é tudo. Também precisamos estar despertos no sentido de que precisamos estar conscientes do que está ocorrendo internamente – nossos pensamentos, nossos sentimentos, etc – e, ao mesmo tempo, estar conscientes e alertas em relação ao que está ocorrendo à nossa volta com outras pessoas. Quando alguém vai para casa, um membro de nossa família, um ser amado, ou qualquer pessoa… Você talvez perceba que esta pessoa está muito, muito cansada. Você tem que estar alerta em relação a isso. Não é o momento de começar uma grande discussão com ela sobre algo importante, ela está cansada. Então, é preciso sempre estar alerta, concentrado, focado no que está ocorrendo à sua volta. Qual a situação com outras pessoas, não apenas qual a minha situação.

Então, não vamos ao extremo de apenas estar conscientes em relação a nós mesmos

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e não em relação aos outros; ou para o outro extremo, que é apenas prestar atenção aos outros e não em nós mesmos. Este também é um extremo a ser evitado. Há muitas pessoas que têm esta síndrome de não ser capazes de dizer “não” e sempre estão fazendo coisas para os outros, para suas famílias ou quem quer que seja, e ficam tão completamente cansadas e exaustas que acabam tendo uma estafa ou ficam ressentidas. É importante prestar atenção também em como estamos nos sentindo e tomar conta de nossas necessidades. Quando precisamos nos repousar, nós nos repousamos. Quando precisamos dizer, “Não, sinto muito; não posso fazer isso. É demais para mim, não sou capaz disso.” Diga “não”. O ideal, quando dizemos “não” é oferecer ao outro uma alternativa, se possível. Dar uma sugestão como: “Mas talvez esta outra pessoa possa ajudá-lo.”

Em suma, apenas fique atento em relação a tudo aquilo que estiver ocorrendo, externa e internamente, e então aplique o entendimento correto e a compaixão.

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Lidando com a Raiva

Pergunta: Você falou sobre varrer o chão como método de lidar com a raiva ou outras emoções destrutivas, mas comentou que o budismo tem muitos métodos bem mais profundos. Você poderia dar pelo menos uma dica de onde podemos encontrar esses métodos?

Alex: A questão era que eu estava falando sobre alguns métodos superficiais e temporários para lidar com a raiva. Como quando você tem muita raiva reprimida, o trabalho físico duro pode ajudar, como lavar todo o chão, por exemplo. E eu sugeri que havia outros métodos mais profundos. Então, será que eu poderia indicar alguns destes para lidar com a raiva?

Bem, indo um pouco mais fundo, um nível de lidar com a raiva que sentimos por alguém, é desenvolver paciência. Mas como desenvolver paciência? Há muitos, muitos métodos, mas um método, por exemplo, é chamado de “paciência-como-alvo”: “Se eu não tivesse colocado nenhum alvo, ninguém atiraria nele.” Por exemplo, eu peço para você fazer algo para mim e

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você o faz de forma incorreta. A tendência é que eu fique com raiva de você. Ou talvez você nem tenha feito o que eu pedi. Então, de quem foi o erro? Na verdade, foi o meu erro porque eu fui preguiçoso demais para fazer a coisa eu mesmo e eu pedi que você a fizesse. Então, o que eu esperava? Quando você pede para alguém fazer algo, o que você espera? Digamos que você pede a uma criança de dois anos para trazer uma xícara de chá quente para você e ela derrama o conteúdo. É claro que ela vai derramá-lo. Então, é a mesma coisa – o que é que esperamos quando pedimos que alguém faça algo por nós?

Então, eu me dou conta que, na verdade, foi a minha preguiça que criou o problema. E não fico com raiva da outra pessoa. E estou consciente que, quando peço que você faça algo por mim, é porque tenho preguiça de fazê-lo eu mesmo. Ou tenho muita preguiça, ou não tenho tempo, ou o que quer que seja. A questão é que, se estou pedindo a outra pessoa que o faça, eu não deveria esperar que ela o fizesse com perfeição, ou da maneira como eu o faria, que no final das contas talvez

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também não fosse correta. Eu também cometo erros. E se eu fizer a coisa eu mesmo e errar, não há razão para ficar com raiva de mim mesmo. “Eu não sou perfeito, ninguém é perfeito, então é claro que eu erro.” Então, você simplesmente aceita a realidade. “Sou um ser humano; seres humanos erram; eu errei.” E se posso corrigir o erro, eu o corrijo. Não fico com raiva de mim mesmo. Não há sentido em ficar com raiva de mim mesmo. Eu apenas corrijo, se puder. Se não puder, então é isso aí, terei que deixar por isso mesmo e tentar não repetir o erro no futuro.

Um nível muito mais profundo de lidar com raiva é compreender a nossa própria realidade. Agora estou falando em um nível muito simples, mas até mesmo neste nível simples, isso ajuda. “Não sou o centro do universo”. Por que as coisas sempre deveriam ser da minha maneira? Por quê? O que tenho de tão especial para que as coisas sempre sejam da minha maneira e ninguém mais tenha razão? Com tais pensamentos, você começa a desconstruir a visão sólida do “eu” como a coisa mais importante do universo. O “eu” sólido.

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Então, é claro que você pode desconstruir mais e mais e mais. Quando você tem esta visão do “eu” sendo esta coisa sólida e que as coisas sempre têm que ser da “minha” maneira, então, é claro que você ficará com raiva quando as coisas não forem do jeito que você quer, certo?

O budismo tem muito a dizer sobre como existimos e como todo mundo existe. Nós existimos, mas não existimos dessas maneiras impossíveis que imaginamos, por exemplo, com um “eu” pequeno sentado dentro de minha cabeça falando e sendo autor daquela voz que ouço em minha cabeça. Parece que tem um pequeno “eu” falando lá dentro, reclamando: “O que é que eu deveria fazer agora? Ah, eu vou fazer isso,” e então você começa a mover seu corpo, como se o corpo fosse uma máquina. Mas isso é uma ilusão. Não podemos achar nenhum pequeno “eu” dentro de nós, não é mesmo? Mas ainda assim, eu existo, eu falo, eu faço coisas. Por isso, temos que acabar como nossa crença nessas projeções, porque parece que elas correspondem à realidade. Parece ser

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assim. É esta voz acontecendo, então tem que haver alguém lá dentro.

Então o budismo tem muito a oferecer nesta área que chamaríamos de “psicologia”.

Trabalhando com Nossos Corpos

Pergunta: Tenho duas perguntas. A primeira é: talvez você possa nos contar um pouco mais sobre trabalhar com nossos corpos. Você mencionou que precisamos relaxar nossos corpos, mas talvez precisemos fazer mais que isso. E a segunda questão é: qual a fonte de todas essas projeções? Por exemplo, esta pessoa falando em nossas cabeças, por que ela aparece?

Alex: É claro que há muitas disciplinas que podemos aplicar para ter saúde física. Existe a medicina budista, por exemplo, que você pode achar na tradição tibetana, que tem muito a ver com equilibrar as energias no corpo. Nossas energias e nossa saúde geralmente são muito afetadas pela nossa dieta e por nosso comportamento – comportamentos como ir para o frio e não se agasalhar bem, o que fará com que você

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fique doente. Estamos falando deste tipo de comportamento. Ou trabalhar demais… Este tipo de comportamento fará com que você adoeça.

Também tentamos nos manter atentos em relação ao estado de nosso corpo. Quanto mais silencioso você se tornar internamente, mais alerta você ficará não apenas em relação à condição de sua mente, mas também em relação à condição da energia em seu corpo. Quando você nota que sua energia está muito nervosa, por exemplo, você pode sentir isso se o seu pulso estiver muito rápido, e assim por diante… Há coisas muito básicas que você pode fazer, até mesmo apenas ajustando a sua dieta. Por exemplo, podemos parar de beber café e chá forte, e podemos ingerir comidas mais pesadas que tornarão as energias mais pesadas, como comidas gordurosas – queijo ou algo assim. E aqueça-se; não fique no vento ou em lugares frios. E não fique perto dessas máquinas de alta potência que fazem assim: “Bzzzzrrrrr,”… Isso perturbará a energia mais ainda. Fique em uma situação

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calma. Então, aqui está um nível de prática.

A tradição tibetana em si não enfatiza exercícios físicos ou este tipo de trabalho com o corpo da forma como você aprenderia, digamos, nas tradições budistas chinesas ou japonesas com artes marciais. Mas, com certeza, diferentes tipos de artes marciais – taichi, chikung, este tipo de coisas – podem ser muito úteis. Esses também são métodos para desenvolver concentração através da atenção plena ao seu movimento. Os exercícios físicos que os tibetanos fazem são bem mais sutis, e têm a ver com trabalhar os sistemas energéticos de uma forma diferente, não da forma das artes marciais. É um pouco diferente e tem mais a ver com yoga. Então, é assim que você pode trabalhar com o corpo.

A Fonte da Voz em Nossas Cabeças

Quanto à fonte da voz em nossas cabeças, isto envolve a natureza da mente e é um pouco mais complicado. No budismo, quando falamos sobre a mente, não estamos falando sobre uma espécie de

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coisa. Estamos falando sobre a atividade mental, e esta atividade mental está envolvida com pensar, com ver, com sentir emoções. Isso é muito, muito vasto. O que está ocorrendo naquela atividade é que há o surgimento de uma espécie de holograma mental. Por exemplo, quando vemos algo, a luz entra em contato com a retina, gera impulsos elétricos e reações químicas nos neurônios, e o resultado é o surgimento de uma espécie de holograma mental da aparência de algo. No entanto, na realidade, isso é um holograma mental. Está vindo de todos esses impulsos químicos e elétricos.

Mas os hologramas não são apenas visuais. Esses hologramas mentais poderiam ser também sons, como palavras. Não ouvimos uma frase inteira em um instante – você escuta pequenos pedaços dela, um de cada vez – e ainda assim há este holograma mental da frase inteira e você compreende o que ela diz. Da mesma forma, há hologramas mentais em forma de emoções, hologramas mentais em forma de pensamentos, e também hologramas mentais em forma de verbalização – esta

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voz. Essas coisas apenas surgem. Há alguma cognição envolvida nisso. Então, isso é ver, pensar ou sentir. É isso. E esta atividade mental ocorre sem que haja um “eu” separado dela que está observando ou controlando e fazendo com que ela aconteça. Ela simplesmente acontece. Então, parte daquele holograma mental é formada por pensamentos do “eu”, como: “Esta voz sou eu.” Quem está pensando? Eu estou pensando. Não é você que está pensando – sou eu que estou pensando. Mas trata-se apenas de uma parte de todo este processo dos hologramas.

Qual a fonte desta voz na sua cabeça? Trata-se de apenas uma das características da atividade mental. Não é necessariamente como funciona toda a atividade mental. A voz não ocorre o tempo todo, e eu duvido que uma minhoca pense com uma voz. A minhoca com certeza tem um cérebro, uma mente, vê coisas, faz coisas.

Na verdade, a coisa começa a ficar muito interessante quando pensamos sobre ela. Um holograma do som da voz é uma

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espécie de comunicação, não é? É um tipo de conceitualização que expressa ou comunica um pensamento na forma do som mental de palavras. A pergunta interessante é: alguém que é surdo e mudo de nascimento e não tem absolutamente nenhum conceito de som – será que ele tem uma voz na cabeça, ou ele pensa em termos de linguagem de sinais? Isso é uma pergunta muito interessante. Eu nunca achei uma resposta para ela.

Então, se for uma voz, ou uma linguagem de sinais, o que quer que seja, ou como pensa uma minhoca, a ilusão é que há um “eu” separado por detrás daquele que está falando, sentado na torre de controle, e a informação está chegando na tela diante dos olhos, e ele tem um microfone com o qual está falando, e então ele aperta o botão para fazer com que os braços e as pernas se movam. Isto é uma grande ilusão. Mas o que será aquela espécie de “eu” sentado na torre de controle que é o objeto de pensamentos como: “Ai, o que será que as pessoas vão pensar de mim?” e de “O que será que eu devo fazer agora?”.

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Isso é o que nos preocupa, este “eu” na torre de controle.

Quando nos damos conta que este “eu” é uma ilusão, então não há nada a se preocupar. Nós falamos, nós agimos. É claro que sou eu: eu estou falando, eu estou agindo. E se as pessoas não gostarem, tudo bem. E daí? O Buda não agradava a todos. Nem todos gostavam do Buda, então, o que espero de mim? Apenas usamos o entendimento, o amor, a compaixão, e agimos. É isso. E não nos preocupamos: “O que eles pensarão de mim?” Mas fazer isso não é tão simples quanto parece.

Controlar-nos Quando Outros Têm Raiva

Pergunta: Quando outra pessoa está com raiva de nós, como é que nos controlamos?

Alex: Basicamente, nós enxergamos que esta pessoa é como uma criança pequena. Quando uma criança de dois anos fica com raiva de nós depois de lhe dizermos “Está na hora de ir para a cama.” e a criança diz: “Eu te odeio. Você é horrível.” E então ela faz um escândalo bem grande… Será que ficamos com raiva? Bem, algumas pessoas

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ficam com raiva… Mas é apenas uma criança de dois anos, o que você esperava? Você tenta acalmar o pequeno. Seja gentil, como você seria com uma criança de dois anos. Pense nisso: como você lidaria com uma criança de dois anos? Geralmente, quando uma criança de dois anos está agindo desta forma tão horrível, se você a pega nos braços e a segura, e é carinhoso com ela, ela se acalma, não se acalma? Gritar com ela apenas a fará chorar mais. Então, as pessoas são assim. Elas são bebês grandes.

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Integrando o Dharma nas Nossas Vidas

Alexander Berzin Bok, Polónia, 13 de Dezembro de 2002

O Dharma é Para Lidar com os Problemas da VidaEsta noite, eu gostaria de falar sobre a prática de Dharma na vida diária. A palavra Dharma significa uma medida preventiva. É algo que nós fazemos para evitar problemas. A primeira coisa que precisamos fazer para envolver-nos com a prática de Dharma é reconhecer os vários tipos de problemas ou de dificuldades que temos na vida. Depois, temos de compreender que o objetivo da prática de Dharma é ajudar-nos a livrarmo-nos desses problemas.

A prática de Dharma não é só para nos sentirmos bem, para termos um passatempo agradável, para estarmos na moda, ou qualquer coisa assim. A prática de Dharma tem como objectivo ajudar-nos a livrarmo-nos dos nossos problemas. Isto significa que, a fim de praticar o Dharma

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realisticamente, precisamos compreender que não vai ser um processo agradável. Temos de encarar as coisas desagradáveis nas nossas vidas, e enfrentar nossas dificuldades – não para fugir delas mas, em vez disso, para enfrentá-las com a atitude de que agora vamos tentar lidar com elas.

Os nossos problemas podem tomar muitas formas. Todos nós reconhecemos a maioria delas – somos inseguros; temos dificuldades nos nossos relacionamentos com os outros; sentimo-nos alienados; temos dificuldades com as nossas emoções e sentimentos – coisas que todos nós temos. Temos dificuldades ao lidar com as nossas famílias e com os nossos pais; eles ficam doentes e envelhecem. Temos dificuldade em confrontar as nossas próprias doenças e envelhecimento. E, se somos jovems, temos dificuldade em decidir o que fazer com as nossas vidas, como ganhar a vida, em que direção seguir, e assim por diante. Precisamos enfrentar todas estas coisas.

Confusão

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Um dos pontos mais importantes do budismo é compreender que estes problemas, que todos nós experienciamos, surgem de causas. Não é que eles aparecem sem nenhuma causa. A fonte destes problemas está dentro de nós. Isto é uma grande realização que , para a maioria das pessoas, não é fácil aceitar, uma vez que temos a tendência de a culpar os outros, ou então situações externas, pelos nossos problemas. Pensamos, “eu sou infeliz por causa do que você fez – você não me chamou; você me abandonou; você não me ama. É tudo sua culpa.” Ou então culpamos os nossos pais – o que os nossos pais fizeram ou deixaram de fazer quando éramos crianças pequenas. Ou pomos a culpa na situação econômica, na situação política ou situação social, e assim por diante. Claro, todos estes fatores desempenham um papel na nossa experiência de vida. O budismo não nega isto. Mas a causa principal, a causa mais profunda dos nossos problemas, está dentro de nós – as nossas próprias atitudes, e, especialmente, a nossa confusão.

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Se quiséssemos encontrar um fator que define claramente a atitude budista em relação ao que significa praticar o budismo na vida diária, eu diria que é este. Quando temos dificuldades, olhamos para dentro de nós para tentar encontrar a fonte delas e, quando a identificamos, tentamos mudar a situação a partir de dentro. Quando falamos sobre olhar para dentro e encontrar a fonte dos nossos problemas, isto não significa um julgamento moral que “eu sou uma pessoa má e tenho de mudar e ser bom”. O budismo não faz julgamentos morais. Nós tentamos encontrar a fonte dos nossos problemas dentro de nos mesmos simplesmente porque sofremos e queremos nos livrar dos nossos problemas e da infelicidade, e a fonte principal deles são nossas próprias atitudes. Especificamente, o Buda disse que a causa mais profunda dos nossos problemas e do sofrimento é a nossa confusão. Assim, o que nós precisamos fazer é descobrir porque confusos sobre o que esta acontecendo e como podemos ajustar nossa percepção ganhando uma compreensão correta.

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A nossa confusão é acerca de que? É sobre várias coisas. Uma é a causa e efeito comportamental. Nós pensamos que nossas ações não vão ter efeito nenhum. Por exemplo, pensamos que “eu posso chegar atrasado, ignorar você, e assim por diante, e isso não importa.” Estamos errados; estamos confundidos. Ou então pensamos de que algo que nós fazemos ou a forma como nos comportamos vai ter um certo efeitoabsurdo e que não poderia possivelmente acontecer. Por exemplo, “eu fui agradável com você e assim você me vai gostar de mim. Eu comprei-lhe um presente agradável, então porque você não me ama?” Com pensamentos como estes, imaginamos que as nossas ações e comportamentos vão ter um efeito impossível ou então exagerramos, pensando que eles irão produzir um efeito maior do que é possível. Também podemos pensar que certas coisas irão causar certo tipo de efeito; ao passo que, de fato, elas causam exatamente o oposto. Por exemplo, queremos ser felizes e, por isso, pensamos que a maneira de fazer isto é embebedarmo-nos a toda a hora. Mas isto

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apenas produz mais problemas do que felicidade.

Outra coisa sobre a qual estamos confundidos é sobre como existimos, como os outros existem, e como o mundo existe. Por exemplo, sofremos e tornamo-nos infelizes com o envelhecimento e quando ficamos doentes. Mas, como somos seres humanos, o que é que esperamos? Os seres humanos adoecem e envelhecem, a menos que morram jovens – estas coisas não são grande surpresa. Quando começamos a ver cabelos brancos no espelho e ficamos infelizes e chocados com isso, estamos sendo irrealistas e confusos sobre como o mundo existe, sobre como nós mesmos existimos.

Suponhamos que não aceitamos nosso envelhecimento. Por causa da nossa confusão – a nossa não-aceitação desta realidade – agimos de maneira destrutiva, sob a influência de emoções e atitudes perturbadoras. Por exemplo, ao tentar compulsivamente parecer mais jovens e atrativos, estamos agindo com um desejo insaciável, tentando obter as coisas que

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creemos nos tornarão seguros – como receber a atenção e o amor dos outros, especialmente de pessoas mais novas que achamos atraentes. Por detrás desta síndrome encontra-se geralmente a confusão que sentimos que “eu sou a pessoa mais importante do mundo; eu sou o centro do universo. Por isso, todos me devem dar atenção. Não obstante a minha aparência, todos me devem achar atraente e gostar de mim”. Ficamos malucos se alguém achar que não somos atraentes ou não gostar de nós. Ficamos ainda mais perturbados se nos ignorarem – se não nos derem atenção quando queremos que nos achem atraentes, se não fisicamente, pelo menos de qualquer outro modo. Mas, já que nem todos gostaram do Buda Shakyamuni; por isso, que esperança é que há que todos vão gostar de nós!

O nosso desejo de sermos apreciados por todos é uma expectativa irrealista. Não é a realidade. Está baseado na confusão, no desejo insaciável, e na esperança que todos nos achem atraentes e nos dêm atenção. Subjacente a isto está a atitude perturbadora da ingenuidade. Pensamos

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que somos tão importantes e amáveis que todos deveriam gostar de nós, então, deve haver algo de errado com essa pessoa se ela não gostar de mim. Ou, ainda pior, começamos a duvidar de nós mesmos: “Há algo de errado comigo que faz com que esta pessoa não goste de mim,” e assim sentimo-nos mal ou culpados. Tudo isto é ingenuidade.

A coisa principal, então, é trabalharmos em nós próprios. É isto que a prática de Dharma é. Não importa qual seja a situação – se temos dificuldades, se estamos sentindo-nos inseguros, ou o que quer que seja, precisamos olhar para dentro de nós para ver o que se está a passar. Onde é que está a confusão por trás destas emoções perturbadoras que eu sinto? No entanto, se estivermos a enfrentar problemas que surgiram num relacionamento, precisamos também compreender que não somos só nós que temos confusão. Obviamente, a outra pessoa também tem confusão. O importante é que não vamos só dizer, “você tem que mudar; tudo que estou fazendo está bem e é perfeito; é você quem tem de

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mudar.” Por outro lado, também não dizemos que “eu sou o único que tem de mudar”, porque isso pode degenerar num complexo de mártir. Nós tentamos discutir abertamente as coisas com a outra pessoa – embora, naturalmente, ela precisa estar receptiva a isto. Precisamos admitir que estamos, os dois, confusos. Há um problema, em nós dois, em termos da maneira como estamos entendendo o que se passa com nosso relacionamento, então, vamos tentar eliminar a confusão em nós dois. Esta é a maneira de proseguir mais realística e mais dhármica.

Compreender o Dharma Antes de o Pôr em PráticaHá muitos tipos diferentes de prática budista. Não é suficiente meramente obtermos instruções sobre elas, como quando aprendemos a fazer um truque. É muito importante compreendermos, com qualquer prática, como é que ela nos vai ajudar a superar dificuldades. Precisamos aprender não só quando e como aplicar a prática, mas também as suposições por trás dela. Isto significa que não vamos começar com as práticas avançadas. Vamos

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começar no início e construir uma fundação, de maneira a sabermos, a partir da seqüência de como os ensinamentos de Dharma se desenvolvem, o que é que se está acontecendo com qualquer prática.

Claro, é verdade que nós lemos ensinamentos que dizem, “se receber um remédio,, não pergunte como funciona, apenas tome o remédio!” Embora seja um bom conselho, precisamos compreender que este ejemplo nos está acautelando contra um extremo. O extremo é só estudarmos e tentarmos compreender os ensinamentos, sem nunca pôr nada do que aprendemos em prática. Precisamosevitar esse extremo. Contudo, há também um outro extremo que precisamos igualmente evitar. Por ejemplo, quando ouvimos certasinstruções de Dharma a respeito de alguma prática, e então, com fé cega, apenas a praticamos, sem qualquer compreensão do que estamos fazendo ou porquê. O problema principal que vem deste extremo é que nós, na verdade, acabamos nunca compreendendo como aplicar a prática à vida diária. Se compreendessemos o propósito por atrás

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de cada prática – se compreendessemos como ela funciona e qual é o seu propósito – então não precisariamos de outra pessoa para nos dizer como aplicá-la à vida diária. Nós mesmos compreenderiamos e saberiamos como fazê-lo.

Quando falamos sobre a eliminação dos nossos problemas, nós estamos falando não só sobre eliminar nossos próprios problemas pessoais, mas também sobre livrarmo-nos das dificuldades que temos em ajudar os outros. “Eu tenho problemas em ajudar os outros por causa da preguiça ou do egoísmo, ou por estar demasiado ocupado.” Ou, “eu não compreendo qual é o seu problema e não faço idéia nenhuma do que fazer para lhe ajudar.” Essa é a grande dificuldade que nós temos, não é? Todas estas dificuldades em ajudar os outros são também devido à nossa confusão. Por exemplo, a confusão de que eu devia ser como Deus Todo Poderoso, e, tudo o que eu tenho de fazer é uma coisa, e isso irá resolver todos os seus problemas; e se isso não resolveu todos os seus problemas, há algo de errado com você. Você não fêz o que eu disse corretamente,

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por isso você é culpado. Ou, eu sou culpado, porque eu devia ter sido capaz de resolver os seus problemas e não fui, por isso não sou nada bom. Mais uma vez, é a confusão sobre a causa e o efeito.

Convicção no DharmaOutro ponto é que, para sermos capazes de pôr o Dharma em prática eficazmente na vida diária numa maneira não-neurótica, também precisamos ter a convicção que livrar-nos dos nossos problemas é realmente possível. Temos de estar convencidos que é possível livrarmo-nos da nossa confusão se seguirmos a abordagem budista básica: para nos livrarmos de algo, precisamos eliminar as causas que fazem esse algo ocorrer. Mas, naturalmente, é muito difícil ganhar uma convicção profunda e firme que é realmente possível eliminar toda a nossa confusão de maneira mais voltará, e também é muito difícil ganhar uma convicção firme que é possível alcançar a liberação e a iluminação. Isto é especialmente difícil quando nós nem sequer compreendemos o que a liberação e a iluminação realmente são. Por isto, como podemos seriamente considerar se é

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possível, ou não, as alcançar? Se não pensarmos que são de fato possíveis, não é um pouco hipócrito termos como objetivo alcançar algo que nem sequer acreditamos que realmente existe? Então a prática transforma-se numa espécie de brincadeira louca; a nossa prática de Dharma não está sendo levada a sério.

Nós temos de estar completamente convencidos, e isto requer muito estudo e compreensão, assim como reflexão e meditação profundas. Nós temos de estar convencidos não só que a liberação e a iluminação são possíveis; mas também que alcançá-las é possível para mim. E não que foi algo possível de ser alcançado apenas por Shakyamuni, e que está fora do meu alcançe. Mas, ao invés, tenho de estar convencido que alcançá-las é possível não só para mim, mas também para todos os outros. Temos de compreender o que é que precisamos fazer para nos livrar da nossa confusão. O que é que realmente nos vai livrar dela? O que realmente nos vai livrar da confusão é a compreensão correta; e, assim, temos de compreender como é que a compreensão correta pode subjugar a

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confusão e a elimina-la de tal modo que ela nunca mais voltará. Como resultado de tudo isto, nós vemos que o verdadeiro local de trabalho da prática de Dharma é a vida diária; é lidarmos com os nossos problemas, com a nossa confusão, e com as nossas dificuldades da vida, a cada instante.

A Prática de Dharma Requer a IntrospecçãoA prática de Dharma não é simplesmente um retiro da vida, como se fossemos para uma caverna de meditação agradável e tranqüila, ou até apenas para o nosso quarto, e sentarmo-nos numa almofada para evitar ter de lidar com as nossas vidas. Escapar não é o foco da prática de Dharma. Quando vamos para um lugar tranqüilo para meditar, fazêmo-lo a fim de desenvolver as habilidades que precisamos para lidar com os problemas da nossa vida. O foco principal é a vida. O foco não é ganharmos uma medalha olímpica em sentar na postura de meditação ! A prática de Dharma é aplicarmos o Dharma na nossa vida diária.

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Além disso, a prática de Dharma é introspectiva. Com ela, tentamos estar atentos aos nossos estados emocionais, às nossas motivações, às nossas atitudes, aos nossos padrões compulsivos de comportamento. Nós precisamos ter cuidado especialmente com as emoções perturbadoras. A característica definitiva de uma emoção, ou atitude, perturbadora é que, quando ela surge, ela nos faz sentir, a nós e/ou aos outros, desconfortáveis. Perdemos a nossa paz interior e ficamos descontrolados. Esta é uma definição muito útil, porque estarmos familiarizados com ela nos ajuda a reconhecer quando estamos agindo sob a sua influência. Podemos saber, se nos sentimos incômodos, que há algo perturbador acontecendo nas nossas mentes. Então,, precisamos verificar o que é que se está a passar dentro de nós e aplicar os antidotos para a corrigir.

Isto requer tornarmo-nos muito sensíveis ao que se está passando dentro de nós. E, para mudar algum estado emocional perturbador, , requer a compreensão de que se nós agirmos duma maneira perturbada e perturbadora, isso vai criar

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muita infelicidade, tanto para nós como para os outros. Nós não queremos isso; já estamos completamente fartos disso. E estando perturbados, como é que podemos ser de ajuda a quem quer que seja?

FlexibilidadeA prática de Dharma também requer familiaridade com muitas forças oponentes diferentes, e não só uma ou duas. As nossas vidas são muito complexas, e nem sempre um certo antídoto ira funcionar (para o que queremos melhorar). Práticas específicas não vão ser as mais eficazes em cada situação única. Para sermos realmente capazes de aplicar estes métodos na vida diária, requer uma grande flexibilidade e muitas maneiras diferentes de faze-lo. Se uma coisa não da certo, tentamos outra, e assim por diante.

O meu professor Tsenzhab Serkong Rinpoche costumava dizer que quando você quer fazer algo na vida, é melhor ter sempre dois ou três planos alternativos. Então, se o plano A não der certo, você não vai logo desistir. Isso é porque você tem um plano alternative, um plano B ou C. Um

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deles irá eventualmente dar resultado. Eu acho que é um conselho muito útil. É a mesma coisa com o Dharma: se o método A não suceder numa situação,teremos sempre um plano alternativo. Há outras coisas para as quais nos podemos voltar. Tudo isto é obviamente baseado no estudo, na aprendizagem de vários métodos e meditações, que então praticamos em preparação, assim como fazemos com o treinamento físico. Nós esforçamos praticando para ganhar confiança com estes métodos de modo a podermos realmente os pôr em prática na vida diária quando precisarmos deles. Isto requer considerar a prática de Dharma não como um passatempo, mas como um compromisso de tempo integral.

Evitando ExtremosTentamos praticar o Dharma com nossas famílias. Nós o aplicamos ao lidar com nossos pais, com as nossos filhos, e com os colegas de trabalho. Ao fazê-lo, precisamos evitar vários extremos. Nós já falámos um pouco sobre disto. Temosque evitar o extremo de pôr a culpa dos nossos problemas nos outros ou de pôr a culpa só

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em nós – todos nós contribuímos. Podemos tentar mudar as outras pessoas, mas é mais fácil mudarmo-nos a nós.

O autodesenvolvimento, então, é o foco; mas ao fazê-lo, temos de tentar evitar o extremo da autopreocupação narcissística. Quando so pensams em nos mesmos,, estamos sempre olhando apenas para nós próprios e não prestamos atenção a mais ninguém. Isto pode reforçar o sentimento que somos o centro do universo e que os nossos problemas são os mais importantes do mundo, que os problemas dos outros não são importantes.

Outro extremo é pensarmos que somos totalmente maus ou totalmente bons. É verdade que precisamos reconhecer os nossos lados difíceis, os lados em que precisamos trabalhar. Mas também precisamos reconhecer nossos lados positivos, nossas qualidades positivas, de modo a podermos desenvolvê-los mais e mais. Muitos de nós, ocidentais, temosbaixa auto-estima. Se focalizarmos demasiadamente nos nossos problemas e na nossa confusão, isso pode fàcilmente

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reforçar essa baixa auto-estima. E isso não é, de maneira alguma, o objetivo.

Ao observar as nossas emoções perturbadoras, precisamos equilibrar isso através de lembrar também as nossas boas qualidades. Até as pessoas mais cruéis têm algumas boas qualidades. Indubitavelmente elas tiveram a experiência de amparar um filhote de cachorro ou um gatinho em seus regaços, fazendo festinhas, e de sentir um pouco de afeto. Pelo menos essa experiência quase toda a gente teve. Assim, podemos reconhecer que somos capazes de dar algum tipo de afeto, e assim também reconhecer nossos lados positivos. A prática de Dharma não é apenas trabalhar com os nossos lados negativos; ela deve ser equilibrada. Também precisamos esforçar-nos em realçar os nossos lados positivos.

Ao fazê-lo, tentamos manter um equilíbrio entre focalisar nas nossas falhas e nas nossas boas qualidades, mas além disto, precisamos evitar mais dois extremos. Um extremo é a culpa, “Eu sou mau. Eu devia praticar (o Dharma), mas já que não

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pratico, sou ainda pior.” Esta palavra devia precisa ser eliminada da nossa maneira de ver a prática de Dharma. Nunca é uma questão de “devia.” Se queremos nos livrar dos problemas que temos e evitar ter mais no futuro, a atitude mais saudável é pensar, simplesmente, “se eu quiser livrar-me deste problema, posso faze-lo através desta prática .” Agora, entre fazer ou não fazer a prática, a escolha ê nossa. Ninguém está dizendo, “você deviafazer isto e, se você não fizer, é mau.”

Mas nós também precisamos evitar o outro extremo, que é o extremo de, “todos nós somos perfeitos; apenas veja a sua natureza búdica e tudo é perfeito.” Este é um extremo muito perigoso porque pode levar à atitude que não precisamos mudar; não precisamos parar ou de abandonar alguns dos nossos hábitos negativos porque já somos perfeitos. Precisamos evitar estes dois extremos – sentir que somos maus ou sentir que somos perfeitos. Bàsicamente,precisamos tomar responsabilidade por nós próprios. Esta é a melhor maneira de integrar o Dharma nas

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nossas vidas diárias. Tomamos responsabilidade por nós próprios, para melhorar a qualidade das nossas vidas.

InspiraçãoEnquanto estivermos trabalhando em nós mesmos, podemos ganhar inspiração dos professores espirituais, assim como da comunidade dosque estão praticando conosco. No entanto, para a maioria das pessoas, as histórias fantásticas sobre mestres de há muitos séculos atrás, que eram capazes de voar através do ar, não são uma fonte estável de inspiração dos professores. Isso é porque é muito difícil nos relacionarmos com tais coisas, e elas tendem a levar-nos para toda aquela cena da viagem mágica. Melhores são os exemplos vivos com quem temos algum contacto real, mesmo se esse contacto for pouco.

Os budas ou os professores verdadeiramente qualificados não estão tentando nos impressionar, nem estão tentando nos inspirar. O exemplo é que eles são como o sol. O sol não está tentando aquecer as pessoas; porque sua

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própria natureza é de aquecer os outros. A mesma coisa é verdade em relação aos grandes professores espirituais. Eles inspiram-nos espontânea e naturalmente com sua maneira de ser na vida, com o seu caráter, e com as suas maneiras de lidar com as coisas. Não são os truques mágicos. O que podemos ver na nossa frente é o que mais inspira.

Eu lembro-me do Dudjom Rinpoche, quejá morreu há muitos anos. Era o líder da linhagem Nyingma e foi um dos meus professores. Ele tinha uma asma terrível,. Eu também tenho asma, por isso sei o que é ter dificuldade em respirar. Eu sei como é difícil ensinar quando não se pode respirar normalmente, porque toda a energia tem de estar dirigida para dentro para obter ar suficiente. É muito difícil, nessa situação, a sua energia sair . No entanto, eu vi o Dudjom Rinpoche com muita asma e, mesmo assim, ir para o palco ensinar. Ele não ficava nem um pouco perturbado pela asma e lidava com ela de maneira incrível enquanto dava ensinamentos maravilhosos. Isto era inacreditavelmente inspirador, muito pratico, sem nenhum grande truque

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mágico. Significa lidar com as situações reais da vida, e isso é que dá inspiração.

Quando seguimos ao longo do caminho espiritual e fazemos progresso, podemos também ganhar inspiração de nós próprios. Isto também é uma fonte importante de inspiração: ganhamos inspiração com o nosso próprio progresso. Mas temos que ter muito cuidado ao fazer isto. A maioria das pessoas não consegue lidar emocionalmente com este fator, porque a tendência é ficarmos arrogantes e orgulhosos se vemosalgum progresso. Assim, temos de definir com cuidado o que queremos dizer com progresso.

Progresso no CaminhoAntes de mais nada, precisamos compreender que o progresso nunca é linear; porque vem por altos e baixos. Esta é uma das características principais do samsara, e não se limita apenas aos renascimentos mais elevados e mais baixos. Os altos e baixos também se referem à vida diária. Agora me sinto feliz; agora me sinto infeliz. Nosso humore andaaos altos e baixos. Agora me apetece

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praticar, agora não estou com vontade de praticar – isto anda aos altos e baixos a toda a hora, portanto não fiquem surpreendidos. De fato, isto vai continuar a ser assim até nos transformarmos num arhat, num ser liberado, livre do samsara. Até esse ponto, que é inacreditàvelmente avançado, o samsara vai continuar com os seus altos e baixos. Por isso não fique desanimado quando, de repente, depois de ter praticado durante muito muito tempo, se encontrar no meio de dificuldades com seu relacionamento romântico pessoal. De repente, ficamos emocionalm ente perturbados – isso acontece! Isso não significa que nós somos praticantes terríveis. É simplesmente natural, dada a realidade da nossa condição samsárica.

Milagres não acontecem normalmente na prática de Dharma. Se quisermos aplicar o Dharma à vida diária, o melhor é não esperarmos milagres, especialmente no nosso progresso. Como é que podemos realisticamente avaliar o progresso? Sua Santidade o Dalai Lama diz, não pense apenas em termos de um ou dois anos de prática de Dharma. Pense em termos de

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cinco ou dez anos de prática para verificar, “Será que agora sou uma pessoa mais calma do que era há cinco ou dez anos atrás? Sou agora capaz de lidar com situações mais difíceis sem ficar perturbado e descontrolado por causa delas?” Se nós formos capazes,[é porque fizemos algum progresso e isso dá inspiração. Ainda temos problemas, mas isso dá-nos a força para continuar. Não ficamos tão perturbados em situações difíceis quando as coisas correm mal. Somos capazes de recuperar o equilíbrio mais rapidamente.

Quando falamos de nós mesmos como uma fonte de inspiração, a coisa mais importante é que esta inspiração nos dá força para continuar no caminho. Isto porque nós estamos convencidos que estamos seguindo na direção correta. E só estaremos convencidos de estar seguindo na direção correta se tivermos uma idéia realista do que significa isto – em outras palavras, que, ao seguir nessa direção, vamos continuar aos altos e baixos.

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Encontrando Paz Interior e Realização

Sua Santidade o Décimo Quarto Dalai Lama Nottingham, England, 24 de Maio de 2008

Transcrito, traduzido em partes e ligeiramente revisado por Alexander Berzin 

Com esclarecimentos indicados em cor violeta entre chaves

A Importância de Investigarmos a Realidade de uma SituaçãoPaz interior está relacionada à tranquilidade mental. A experiência física não determina necessariamente nossa paz mental. Se temos paz mental, então o nível físico não é tão importante.

Porem será que nós desenvolvemos paz interior através de preces? Não, realmente não. Através de treinamento físico? Não. Apenas adquirindo conhecimento? Não. Tornando-nos insensíveis? Não. Mas, quando nos deparamos com uma situação difícil, se, com base na plena consciência dos benefícios e malefícios de qualquer uma das ações possíveis e suas conseqüências, encararmos a situação,

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então nossa mente não é perturbada e isso é paz interior de verdade.

Compaixão e uma abordagem realista são, pois, extremamente importantes. Quando conseqüências inesperadas surgem e com elas uma grande quantidade de medo, isso se deve a não termos sido realistas. Nós não vimos realmente todas as conseqüências e portanto, houve uma falta de consciência e entendimento. Nosso medo veio de uma falta de investigação apropriada, por isso precisamos olhar de todas as quatro direções, acima e abaixo, para termos uma imagem completa. Existe sempre uma lacuna entre realidade e aparências, logo temos que investigar de todas as direções.

Apenas olhando, não é possível ver se algo é positivo ou negativo. Entretanto, somente quando nós [investigando completamente]compreendemos a verdade sobre alguma coisa, podemos avaliar se é positiva ou negativa. Portanto, precisamos de avaliação racional das nossas situações. Se começarmos a investigar com o desejo: "Quero esse resultado, aquele resultado",

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então a nossa investigação é parcial. A tradição Nalanda da Índia diz que temos que ser sempre céticos e investigar objetivamente todos os assuntos, inclusive a religião.

A Importância de Abrirmos Nossas Mentes aos OutrosAgora, quanto à falta de paz de espírito e insatisfação, elas surgem por termos uma motivação extremamente auto centrada. Um indivíduo tem o direito de superar o sofrimento e alcançar a felicidade. Mas, se pensarmos somente em nós mesmos, a mente se torna muito negativa. Então um pequeno problema parece enorme e ficamos desequilibrados. Quando pensamos nos outros como sendo tão queridos quanto nós mesmos, a mente se torna aberta e mais ampla. Como resultado, até mesmo um problema sério não parece tão significante. Portanto, dependendo do âmbito pelo qual olhamos as coisas, há uma grande diferença emocional.

Assim, existem dois elementos que são importantes para a paz de espírito. O primeiro é a consciência da realidade. Se

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abordarmos as coisas realisticamente, não haverá conseqüências inesperadas. O segundo é compaixão, que abre a nossa assim chamada “porta interna”. Medo e suspeita nos isolam dos outros.

Não Nos Preocuparmos Com Nossa Aparência Externa

[Outra coisa que nos faz perder a paz de espírito é a preocupação com nossa aparência externa]. Quando visitei Beijing pela primeira vez, por exemplo, eu não tinha experiência alguma. Estava um pouco nervoso e ansioso. Mas então vi que algumas pessoas, quando estão muito preocupadas com sua aparência, ficam com o rosto vermelho se alguma coisa dá errado. Mas se elas estiverem abertas e não se importarem se alguma coisa der errada, então não há problema.

Por exemplo, em 1954, quando estava em Beijing, o embaixador indiano veio me ver em meus aposentos. Os chineses fizeram uma preparação enorme com flores, frutas e assim por diante, e insistiram que tivéssemos um interprete chinês. Então a conversa foi do Tibetano para o Chinês

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para o Inglês, apesar de alguns de meus funcionários saberem inglês. Em um dado momento, o arranjo de frutas tombou e os funcionários chineses, que estavam todos duros e formais antes, ficaram de quatro e engatinharam pelo chão. Se não estivessem preocupados antes com a aparência, não haveria problema. No entanto, foi muito constrangedor para eles.

Uma vez, na Cidade do México, em um encontro inter-religioso, havia um padre japonês. Ele tinha um rosário de contas na mão e o cordão arrebentou. Ele continuou passando o dedo pelo rosário embora as contas estivessem todas no chão. Tinha vergonha de catá-las do chão. Sentia-se desconfortável porque estava muito preocupado com sua aparência.

De qualquer modo, compaixão, altruísmo, veracidade, honestidade – são muito importantes para trazer calma interior e não se preocupar com sua aparência externa. Eu nunca digo que sou algo especial, mas pela minha própria experiência não tenho qualquer sentimento de preocupação sobre como me portar em

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frente a milhares de pessoas. Eu falo para milhares de pessoas em palestras como esta e para mim é como falar com apenas algumas pessoas. Se ocorrer um erro, eu vou esquecer, sem problemas. Se outros cometerem erros também, eu apenas rio.

Transformação InternaQuanto às transformações internas, uma transformação interna está falando sobre um nível emocional. Existe uma categoria de transformação interna que acontece naturalmente com a idade e outra que acontece devido a circunstâncias externas. Esses tipos de transformações acontecem automaticamente. Outras surgem através de esforço e são principalmente essas que queremos que aconteçam: uma transformação interna de acordo com nossos desejos. Este é o significado principal.

Porem, aqui não estamos falando sobre nossa próxima vida, salvação ou paraíso, mas como manter esta vida calma e feliz apesar das dificuldades e problemas. Para isso, os principais fatores com os quais temos que lidar incluem, raiva, ódio, medo,

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inveja, desconfiança, solidão, estresse e assim por diante. Todos eles relacionados com nossa atitude mental básica. Eles surgem por sermos muito auto centrados. Para nós, quando experimentamos essas coisas, o eu é o mais importante, e isso faz surgir a inveja. Por nos termos em alta estima, então a menor irritação faz surgir raiva e raiva faz surgir medo. Não nos importamos com os outros; só nos importamos conosco. E pensamos que os outros também só se preocupam consigo mesmos, e que certamente não se preocupam conosco. Por causa disso, nos sentimos solitários. Pensamos, “não posso contar com os outros”, e então nos tornamos desconfiados de quem está na nossa frente, ao nosso lado, e principalmente de quem está atrás da gente.

Basicamente, quando pensamos nisso, a natureza humana é tal que todos apreciam a simpatia. Se estendermos para amizade, a maioria das pessoas responderá positivamente. Já quanto às emoções negativas que trazem ansiedade e assim por diante, precisamos de algumas

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contramedidas pra combatê-las. Por exemplo, se estamos com muito calor, reduzimos a temperatura, ou se queremos acabar com a escuridão, não há outra maneira se não trazendo luz. Isso é verdadeiro num nível físico. A mudança pode surgir por aplicarmos uma força contraditória – isso é da natureza. Porém isso é verdade não só em um nível físico, mas também em um nível mental. Então precisamos combater nosso ponto de vista ou perspectiva com um que seja oposto[tal como opor o auto centramento e desconfiança em relação à preocupação e amizade com as outras pessoas].

Tomemos o exemplo de uma flor amarela. Se eu disser “é branca”, por algum motivo e mais tarde considerá-la amarela, são duas perspectivas contrárias. Não se sustentam simultaneamente. Assim que houver a percepção do amarelo, a percepção do branco desaparece imediatamente. Elas são diretamente opostas uma à outra. Então, uma maneira de provocar uma mudança interna é produzindo um estado mental oposto.

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Outra causa de dificuldade pode ser a mera ignorância. A contraposição a isso é o estudo, analise e investigação. Isso porque a ignorância está baseada em não vermos a realidade. Portanto, a força de contraposição para a ignorância é a analise. Similarmente, a força de contraposição para o auto-apreço é a preocupação com os outros e isso constitui o treinamento da mente [ou a limpeza de nossas atitudes].

Ética LaicaQuanto a como treinar nossas mentes (ou limpar nossas atitudes), a pergunta é se isso tem de estar relacionado à religião ou espiritualidade e eu acho que basicamente não tem nada a ver com religião.

Quanto à espiritualidade, bem, há dois tipos: uma com religião e fé, e outra sem. O tipo sem religião e fé eu chamo de “ética laica”. “Laica” não significa uma rejeição à religião, mas uma atitude igualitária frente a todas as religiões e respeito por todas elas. Por exemplo, a constituição indiana tem respeito por todas as religiões; é uma constituição laica. Portanto, mesmo sendo

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os Parsis ou a comunidade Zoroastriana muito pequenos na Índia – existem somente algumas centenas de milhares de membros, comparado a mais de um bilhão de pessoas na Índia- eles tem uma posição igual na esfera militar e política.

Quando falamos sobre a ética laica, isso também implica em ética para os não crentes. Podemos estender nossa ética e respeito mesmo para os animais, com base na ética laica. E também outra parte da espiritualidade laica ou ética é cuidarmos do meio ambiente. Então, de uma maneira laica, precisamos cultivar nossa mente; precisamos cultivar ética laica. Seis bilhões de pessoas no planeta precisam fazer isso. Os sistemas religiosos podem ajudar a fazer com que esse cultivo universal da ética laica cresça. Eles certamente não estão destinados a reduzi-la.

E então, quando falamos sobre ética secular, temos uma atitude não sectária. Se qualquer pessoa religiosa, seguindo qualquer tipo de religião trabalhar para aprofundar a ética laica, então ela certamente é uma praticamente religiosa.

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Caso contrário, mesmo que você frequente uma igreja, mesquita ou sinagoga, duvido que ela realmente seja uma verdadeira praticante religiosa.

Como Levar uma Vida Ética

Sua Santidade o XIV Dalai Lama Nottingham, Inglaterra, 25 de Maio de 2008 

Transcrito, traduzido em partes e ligeiramente revisado por Alexander Berzin 

Com esclarecimentos indicados em cor violeta entre chaves

Interesse próprio versus o Interesse do Outro como Base para um Vida Ética

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A essência do Budismo é: Se podemos ajudar os outros devemos ajudar; senão, devemos pelo menos não prejudicá-los.

Toda ação vem de uma motivação. Se prejudicamos os outros, isso vem de uma motivação, e se ajudamos, isso também vem de uma motivação. Então, para ajudar os outros, para servir os outros, precisamos de certa motivação. Para isso, precisamos de certos conceitos. Porque ajudamos e porque não prejudicamos?

Por exemplo, quando estamos para prejudicar alguém, podemos ter algum tipo de consciência que nos segura. Isso significa que temos algum tipo de determinação [não causar mal]. Um lado da nossa mente quer fazer mal, mas por causa de um determinado estado mental, já uma outra parte da mente diz que isso é errado, isso não é certo. Porque conseguimos enxergar que é errado, desenvolvemos força de vontade e nos abstemos. Em termos das duas alternativas [prejudicar e nos abstermos de prejudicar], precisamos ter a consciência de que certas ações terão conseqüências de longo prazo. Então,

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quando as vemos, conseguimos de imediato, nos abstermos.

Podemos abordar isso de duas maneiras diferentes. Na primeira, pensamos em termos do interesse próprio, e então se podemos ajudar, o fazemos; e se não podemos ajudar, nos abstemos [de prejudicar]. Em termos de nos abstermos de prejudicar outros, podemos pensar: “Se eu fizer isso, terei conseqüências negativas inclusive de ordem legal”. Abstermos-nos por essa razão é abstermo-nos por interesse próprio. Agora, em termos de pensar nos outros como nossa razão, pensaríamos: “Os outros são como eu. Eles não querem sofrimento e dor; portanto eu vou me abster de prejudicá-los.”

Quando treinamos [nossas mentes], primeiro pensamos em nós mesmos, em nossos próprios interesses, e então pensamos fortemente nos outros. Em termos de eficácia, pensarmos fortemente nos outros é mais poderoso. Em termos de pratimoksha – os votos de liberação individual, a tradição vinaya de treinamento monástico – o nível básico é

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pensarmos em nossos próprios interesses e, por causa disso, nos abstermos de fazermos mal. Isso porque estamos visando a liberação. No nível de prática de bodisattva, a principal razão de nos abstermos de prejudicar os outros é a consideração pelo outro. Talvez o segundo, nos abstermos de prejudicar, e ajudar os outros com base no altruísmo, tenha uma conexão com a responsabilidade universal da qual eu frequentemente falo.

Nossa Natureza Básica como Seres HumanosGeralmente, nós humanos somos animais sociais. Não importa quem seja, sua sobrevivência depende do resto da humanidade. Uma vez que a sobrevivência e bem estar individual depende de toda a sociedade, a necessidade de pensarmos e nos preocuparmos com o bem estar dos outros deriva de nossa própria natureza fundamental. Se olharmos para os babuínos, por exemplo, o mais velho é totalmente responsável por todo o bando. Enquanto os outros estão se alimentando, um macho babuíno mais velho está sempre ao lado, vigiando. O mais forte ajuda a

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cuidar do resto do grupo para o bem de toda a sociedade.

Em tempos pré-históricos, nós seres humanos não tínhamos educação ou tecnologia. A sociedade humana básica era simples: todos trabalhavam juntos e compartilhavam juntos. Os comunistas dizem que isso era o comunismo original: todos trabalhando e desfrutando juntos. Então, eventualmente, a educação se desenvolveu e ficamos civilizados. A mente [humana] se tornou mais sofisticada e então a ganância aumentou. Isso trouxe inveja e ódio que, com o tempo, ficaram mais fortes.

Hoje, no século vinte e um, tantas mudanças ocorreram [na sociedade humana. As diferenças entre nós se cresceram – diferenças em] educação, trabalho e nível social. Mas até diferenças de idade e raça – todas são secundárias. Num nível fundamental, ainda somos seres humanos e somos todos iguais. Isto é, no nível de várias centenas de milhares de anos atrás.

A atitude das crianças pequenas é assim. Elas não se importam com nível social,

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religião, raça, cor ou riqueza das outras crianças. Elas brincam juntas, são colegas de verdade, desde que sejam amigáveis umas com as outras. Agora, nós adultos somos supostamente mais inteligentes e altamente desenvolvidos, mas julgamos os outros baseados no seu nível social. Calculamos, “Sera que se eu sorrir, ganharei o que quero; mas se fizer cara feia perderei alguma coisa?”

Responsabilidade UniversalO sentido de responsabilidade universal ou global funciona em um nível humano. Preocupamos-nos com outros seres humanos porque: “Sou um deles; meu bem estar depende deles, não importa quais são as diferenças”. Diferenças sempre existirão; mas isso pode ajudar.

Por diversos séculos, a população do planeta era de apenas um bilhão de pessoas; agora temos mais de seis bilhões. Por causa da superpopulação, um país já não consegue prover toda comida e recursos para sua própria população. Então temos a economia global. Portanto, de acordo com a realidade atual, o mundo é

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menor e fortemente interdependente. Isso é a realidade. Além disso, existe uma questão ecológica: o aquecimento global. Isso é uma preocupação para todos os seis bilhões de habitantes desse planeta, não só para uma ou duas nações. A nova realidade precisa de um senso de responsabilidade global.

Por exemplo, antigamente, os ingleses pensavam somente em si próprios e algumas vezes exploraram outras áreas do globo. Eles não se importavam com as preocupações ou sentimentos dessas outras pessoas. Ok, isso é passado. Mas agora as coisas são diferentes; as coisas mudaram. Agora, precisamos cuidar dos outros países.

Na realidade, os imperialistas britânicos fizeram coisas boas, de fato. Eles trouxeram boa educação na língua inglesa para a Índia. A Índia tem que reconhecer isso. A Inglaterra também trouxe tecnologia, o sistema ferroviário. Essas são algumas de suas qualidades resgatadas. Quando eu vim para a Índia, alguns seguidores de Gandhi ainda eram vivos e

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eles me informaram dos métodos não violentos de Gandhi. Naquela época, eu achava que os imperialistas Britânicos eram muito maus. Mas então eu vi que existia uma magistratura indiana independente, liberdade de imprensa, liberdade de expressão e coisas do tipo. Então quando eu refleti mais profundamente, vi que essas coisas eram muito boas.

Hoje, nação a nação e continente a continente, existe uma forte interdependência. De acordo com essa realidade, nós realmente precisamos de responsabilidade global. Seus interesses próprios dependem do desenvolvimento e interesse dos outros. Então para seu próprio interesse, você tem que cuidar dos outros. No campo econômico, essa situação já existe. Mesmo havendo diferentes ideologias e mesmo que não confiemos uns nos outros, temos que interagir em nossa economia global interdependente. Portanto, responsabilidade global baseada no respeito aos interesses dos outros é muito importante.

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Precisamos considerar os outros como irmãos e irmãs e termos um sentimento de proximidade. Isso não tem nada a ver com religião. Nós realmente precisamos disso. O próprio conceito de “nós e outros” – em certo nível, claro que podemos dizer isso – mas o mundo todo precisa se considerar parte de “nós”. Os interesses de nossos vizinhos são nossos próprios interesses.

ContentamentoLevar uma vida ética como um indivíduo quer dizer não prejudicar os outros e, se possível, ajudá-los. [Fazendo isso], se tomarmos o bem estar dos outros como base para nossa própria ética – isso se torna um escopo mais amplo de ética. Nosso próprio estilo de vida deve tomar esses fatores em consideração.

Existe uma grande lacuna entre ricos e pobres, até mesmo nos Estados Unidos. Se olharmos para os Estados Unidos, o país mais rico, ainda há bolsões de pobreza lá. Uma vez quando fui a Washington DC, a capital do país mais rico, eu vi que haviam muitas áreas pobres. As necessidades básicas dessas pessoas não eram

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adequadamente atendidas.[Similarmente,] em um nível global, o norte industrializado é muito mais desenvolvido e rico [que o restante do planeta]; enquanto muitos países na metade sul do globo enfrentam até fome. Isso não é apenas moralmente errado; é uma fonte de grandes problemas. Então, certos países ricos têm que olhar e examinar seu estilo de vida; eles precisam praticar o contentamento.

Certa vez, no Japão, há quinze anos, eu expressei para as pessoas que a suposição de que a economia tem que crescer todo o ano e de que todo o ano deve haver progresso material é um grande engano. Um dia, você poderá ver sua economia se tornando limitada. Vocês devem estar preparados para, quando isso acontecer, não ser um desastre nas suas mentes. Há alguns anos, essa situação realmente aconteceu lá no Japão.

O estilo de vida de algumas pessoas é muito luxuoso. Sem roubar, sem explorar, sem trapacear, elas têm uma grande quantidade de dinheiro. Do ponto de vista

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de seu próprio interesse, não há nada de errado enquanto ganharem o dinheiro de maneira etica. Mas, do ponto de vista do interesse dos outros, apesar de não haver nada de errado com relação a si mesmos, ainda assim, eticamente, não é bom quando os outros enfrentam fome. Se todos tivessem o mesmo estilo de vida luxuoso, OK; mas até que isso seja alcançado, um estilo de vida melhor seria ter mais contentamento. Como eu expliquei no Japão, nos Estados Unidos e em outras sociedades ricas, algumas modificações no estilo de vida são necessárias.

Em muitos países, cada família tem dois ou até três carros. Imagina Índia e China, essas duas nações que juntas tem uma população de mais de dois bilhões de pessoas. Se dois bilhões de pessoas adquirissem dois bilhões de carros ou mais, seria muito difícil. Haveria um grande problema e grandes complicações com combustível, recursos materiais, naturais e assim por diante. Ficaria muito complicado.

Consideração com o Meio Ambiente

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Um aspecto adicional de uma vida ética é, portanto, a consideração com o meio ambiente, por exemplo, com o uso da água. Minha própria contribuição pode ser boba, mas há muitos anos que não tomo banho de banheira; eu só tomo banho de chuveiro. Uma banheira usa muita água. Talvez eu esteja sendo bobo, já que tomandodois banhos de chuveiro por dia, a quantidade de água que gasto é a mesma. Mas não obstante, no que diz respeito a luz elétrica, por exemplo, quando eu saio de um cômodo, eu sempre desligo as luzes. Assim, dou uma pequena contribuição à ecologia. Então, uma vida ética vem de um senso de responsabilidade global.

Como Ajudar os OutrosQuanto à como ajudar os outros, existem várias maneiras; muitas dependem das circunstancias. Quando eu era pequeno, sete ou oito anos, e estudava, meu tutor Ling Rinpoche sempre tinha um chicote. Naquela época meu irmão imediatamente mais velho e eu estudávamos juntos. Na verdade, eram dois chicotes. Um deles era amarelo – um chicote sagrado, um chicote para o sagrado Dalai Lama. Se o chicote

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sagrado fosse usado, no entanto, não acho que não teria nada de sagrado na dor! Parece um método severo, mas na realidade era muito útil.

Em última análise, se uma ação é útil ou prejudicial, depende da motivação. Com a preocupação sincera com o bem estar a longo prazo dos outros, métodos podem ser algumas vezes severos, algumas vezes delicados. Algumas vezes até uma mentirinha pode ajudar. Por exemplo, um amigo querido ou pai ou mãe em um país distante pode estar seriamente doente ou quase morrendo e você sabe. Mas você também sabe que se falar para uma pessoa que seu pai ou mãe estão pra morrer, aquela pessoa pode ficar muito triste e preocupada e pode até desmaiar. Então você fala, “ Eles estão OK”. Se você está cem por cento preocupado em não deixar a outra pessoa triste, nesse caso, apesar de uma mentira ser antiética do ponto de vista do interesse próprio, do ponto de vista do outro, pode ser adequada.

Métodos Violentos versus Não Violentos

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Então, como melhor ajudar os outros? Isso é difícil. Precisamos sabedoria; precisamos ter uma consciência clara das circunstancias; e precisamos flexibilidade para usar métodos diferentes de acordo as circunstâncias. E o mais importante, nossa motivação: precisamos ter um sentimento sincero de preocupação com os outros.

Por exemplo, se um método é violento ou não violento, depende da motivação. Contar uma mentira é, em si, violento, mas conforme a motivação pode ser um método para ajudar os outros. Então, desse ponto de vista, é um método não violento. Por outro lado, se queremos explorar os outros, e por isso lhes damos um presente, aparentemente não é violento, mas em última análise, uma vez que queremos enganar a outra pessoa e explorá-la, é um método violento. Então, ser violento ou não violento também depende da motivação. Todas as ações humanas dependem da motivação. Também depende um pouco do objetivo; mas se visamos apenas o objetivo e nossa motivação é raiva, fica difícil. Então, em última análise, a motivação é mais importante.

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Harmonia Inter-religiosaQuanto ao que você leva pra casa de nossas discussões aqui, o importante é tentar desenvolver paz interior. Precisamos pensar e desenvolver isto dentro de nós mesmos. Além disso,se tem algumas pessoas na platéia que seguem uma religião ou são crentes, uma das minhas ênfases é sempre na harmonia religiosa. Acho que todas as maiores religiões, nem tanto as menores que idolatram o sol e a lua- essas não tem muita filosofia – mas a maioria das maiores religiões tem alguma filosofia ou teologia. E porque essas religiões são baseadas numa certa filosofia, tem se mantido por milhares de anos. Mas apesar das diferentes filosofias, todas as religiões consideram a maior prática como sendo a prática do amor e da compaixão.

Com compaixão, um sentido de perdão vem imediatamente, seguidos de tolerância e contentamento. Com esses três fatores, vem a satisfação. Isso é comum a todas as religiões. Isso também é importante para estender os valores humanos básicos dos quais temos falado. Então, no que diz respeito a isso, todas as religiões ajudam,

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no sentido de que promovem o que é básico para nossa felicidade, isto é, levar uma vida ética. Portanto, como todas as religiões carregam a mesma mensagem, todas tem o mesmo potencial para ajudar a humanidade.

Em épocas diferentes e locais diferentes, ensinamentos diferentes sugiram. Isso é necessário. Esses tempos e locais diferentes e estilos de vida diferentes se desenvolveram por causa das diferenças do meio ambiente, e por causa disso, diferenças nas religiões se desenvolveram. Para cada uma dessas épocas, certas idéias religiosas eram adequadas[e, portanto, foram adotadas]. Por isso, cada uma das religiões milenares tem suas próprias tradições. Precisamos dessa variedade de tradições ricas: elas servem aos diferentes tipos de pessoas. Uma única religião não consegue servir e ser adequada a todos.

Na época do Buda, já havia muitas tradições não budistas na Índia. O Buda não tentou converter todos os indianos ao Budismo. As outras religiões eram OK. Ocasionalmente, elas discutiam entre si.

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Especialmente após o Buda, mestres discutiram uns com os outros por muitos séculos. Essas discussões, esses debates, ajudaram muito, principalmente no campo da epistemologia. Um erudito de uma tradição examina criticamente a filosofia e visões de outra religião e isso faz com que todos pensem sobre suas próprias religiões e suas próprias tradições e discussões. Então, naturalmente isso gera um progresso. Em alguns casos, talvez houvesse um pouco de violência envolvida nesses debates e discussões e isso é lamentável; mas em geral, era um desenvolvimento saudável.

A Índia, então, é um exemplo muito bom de verdadeira tolerância religiosa que vem durando séculos com uma tradição em si própria; e essa tradição ainda é viva na Índia. Esse é um bom modelo para o resto do mundo.

Na antiguidade, pessoas eram isoladas, então, tudo bem. Mas agora as circunstâncias são outras. Por exemplo, Londres – é quase uma sociedade multi religiosa. A tolerância religiosa é, então,

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muito importante. Então para aqueles de vocês que tem fé em uma religião: harmonia e tolerância sao muito importantes. Quando surgira oportunidade, contribua nesse sentido.

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Trazendo o Budismo à Terra

Alexander BerzinMunique, Alemanha, Junho de 1996

[transcrição ligeiramente editada]

Sessão 1: Abandonar as DefesasIntroduçãoEste fim de semana pediram-me para falar sobre um tópico que não é assim tão fácil de definir: “Como lidar com as nossas fantasias acerca do budismo” ou “Como encarar o budismo realisticamente” ou talvez “como trazer o budismo à terra”. Tenho de admitir que foi um pouco difícil tentar organizar, na minha mente, aquilo que exatamente deveria falar ou fazer durante este fim de semana. Poderia falar sobre a minha própria experiência, sobre as dificuldades que tive ao lidar com o budismo ou sobre as dificuldades que os meus amigos e conhecidos tiveram ao lidar com o budismo, mas talvez nada disso seja relevante face às dificuldades específicas

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que vocês possam estar a encontrar. Esse é o problema. Assim, por um lado, pode ser útil falar apenas sobre as dificuldades gerais que as pessoas têm; mas se vocês falarem sobre as coisas que gostariam de saber e se eu vos ouvir falar das coisas em que tiveram dificuldades, isso também poderia ajudar a dar forma a este curso.

Agora, eu não gostaria que o curso fosse apenas orientado para perguntas técnicas sobre este ou aquele ponto do budismo. Penso que seria mais útil para todos se falarmos sobre os problemas gerais que muitas pessoas possam partilhar ao tentarem seguir uma abordagem prática do Dharma, como por exemplo dificuldades em aceitar um professor ou em compreender a necessidade do professor, dificuldades de relacionamento com o tantra e assim por diante.

O Modo de ProsseguirDeixem-me dar-vos uma ideia do que estou a pensar, como uma pequena amostra de uma caixa de chocolates. Por exemplo, a maneira comum de se começar um ensinamento budista é estabelecer ou

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ajustar a nossa motivação. Na verdade isso não é assim tão fácil de fazer. Eu não acho que isso seja assim tão fácil de fazer porque temos que conseguir um equilíbrio delicado entre as palavras que dizemos ou pensamos e o que realmente sentimos nos nossos corpos e corações.

Penso que para muitos de nós é realmente muito difícil definir com clareza o que significa sentir algo, particularmente uma motivação. Por exemplo, poderíamos sentirmo-nos tristes – nós conhecemos o sentimento de tristeza. Mas para sentirmos uma motivação, não é assim tão fácil sabermos a que isso se refere. Eu penso que seria muito interessante lidarmos com estes tipos de questões durante este fim de semana. São questões um tanto difíceis; não são nada fáceis. Eu penso que isso seria mais benéfico do que questões tal como “quantos sinais de iluminação tem um Buda?” e eu dar-vos-ía um número – esse tipo de perguntas, não. Mas, uma vez mais, como já vos disse no começo, tive muita dificuldade ao tentar pôr tais tipos de questões numa ordem lógica. Gosto que

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as coisas sejam sistemáticas e isso não foi assim tão simples.

Isso levanta um ponto muito interessante, que eu penso ser relevante talvez a muitas pessoas. É que frequentemente temos não só preconceitos gerais, tal como tudo precisa de estar numa ordem lógica, mas, mais profundamente, gostamos de ter tudo sob controlo. Quando temos controlo sobre as coisas e tudo está “em ordem” ou pelo menos quando pensamos que temos controlo, então de algum modo sentimo-nos um pouco mais seguros. Pensamos que sabemos o que vai acontecer. Mas a vida não é assim. Não podemos ter sempre tudo sob controlo e as coisas não podem estar sempre “em ordem”. O outro lado disso é que gostamos de dar o controlo a alguém de modo a que eles nos controlem ou controlem a situação em que nos encontramos. É a mesma questão de controlo. 

Mas ninguém – nem nós nem ninguém – pode controlar o que acontece na vida. O que acontece é afetado por um milhão de fatores e não apenas por uma pessoa. Por

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isso precisamos deixar ir, no sentido de abandonar este forte agarramento a um sólido “eu” que existe independentemente de tudo, e que quer ter controlo, não obstante o que esteja a passar à sua volta. É o sólido “eu” que pensa que, tendo o controlo, vai estabelecer a sua existência segura. É como pensar: “se eu controlar as coisas, eu existo. Se eu não tiver controlo, eu não existo”. Quando seguimos um caminho budista, é necessário, em muitas maneiras, abandonar esta idéia do controlo. Isso significa também abandonar o outro lado da questão, ou seja, darmos esse controlo a outrém, especificamente ao guru, professor, de modo a que eles tenham o controlo. É a mesma questão. Estes dois lados do controlo têm que ser superados.

Penso que o que seria muito necessário neste fim de semana, dado que vamos lidar com questões muito humanas, seria falarmos uns com os outros como seres humanos. Assim eu vou falar com vocês como de um ser humano para outro. Espero estar sempre a falar como um ser humano para outro, e não como uma

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autoridade atrás de um podium como se eu tivesse todas as respostas.

Penso que em vez de tentar controlar o andamento do curso segundo uma ordem lógica, seria melhor, então, deixar o fim de semana desenrolar-se como a pintura de um quadro. Damos uma pincelada aqui e outra pincelada ali, em vez de tentar dar uma apresentação muito em ordem. Como tantos tópicos que podemos discutir durante este fim de semana vão sobrepor-se uns aos outros e interconectarem-se, penso que essa é a maneira mais sensata de prosseguirmos.  

MotivaçãoVamos voltar atrás, ao primeiro chocolate da nossa caixa de bombons. Eu ainda não acabei de mastigá-lo, por isso muitos de vocês podem também não ter acabado de o mastigar. É a questão de como sentimos uma motivação. Eu penso – dado que passei por isso no meu próprio desenvolvimento – que todos nós pensamos que os sentimentos têm de ser dramáticos para existirem. Se forem dramáticos, contam como sentimentos, eles existem; se

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não forem dramáticos, não contam e na verdade não existem. Penso que isto é condicionado um pouco pelos filmes e pela televisão. Um filme não é muito interessante se for algo apenas muito sutil, ou é? Tem de ser dramático, com uma música de fundo emocionante!

Às vezes lemos um texto budista que diz: “a nossa compaixão tem de ser tão emocionante que todos os pêlos do nosso corpo se arrepiam e lágrimas brotam dos nossos olhos”. Mas penso que seria muitíssimo difícil levarmos as nossas vidas constantemente assim. Quando pensamos em criar uma motivação, às vezes temos o sentimento de “eu devia sentir algo” – e este é um tema a que nós vamos retornar muitas vezes durante este fim de semana, a esta palavra “dever”. Pensamos “eu devia sentir algo forte. Se não, eu não estou criando realmente uma motivação se tal não acontecer”. Mas em geral, quando criamos uma motivação, dificilmente é uma sensação, pelo menos pela minha própria experiência. É geralmente muito mais sutil do que os pêlos em pé nos nossos braços. Penso talvez que falar deste modo com

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vocês seja mais útil – não falando atrás de um podium, mas, em vez disso, partilhando com vocês a minha própria experiência de fazer estas várias coisas no budismo e como tenho lidado com estes problemas típicos que a maioria de nós, como ocidentais, tem. Por isso, vamos fazer assim.

Nos ensinamentos, ouvimos sempre que precisamos tentar relacionarmo-nos com os outros como se fossem a nossa mãe: “Reconheçam todos como vossas mães”. Muitas pessoas, no entanto, têm dificuldades no seu relacionamento com as suas mães, e assim podemos substituir essa idéia ou imagem pela do nosso amigo mais próximo. Isto porque o importante não é a “mãe” mas qualquer um com quem tenhamos um tipo de ligação emocional forte e positiva.

Quando ajustamos a motivação, como por exemplo hoje à noite, o que eu tento fazer é pensar em vocês todos na audiência como se fossem os meus melhores amigos. Quando estamos com o nosso melhor amigo, com o nosso amigo mais próximo,

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nós somos sinceros. Não estamos a dar nenhuma espécie de espetáculo nem estamos a escondermo-nos atrás de nenhuma espécie de máscara ou de papel. Não é? E quando estamos com o nosso amigo mais próximo, sentimos genuinamente algo por essa pessoa. Nem sempre é dramático, mas é algo que está lá.

Quando começamos a aplicar ensinamentos como “ver todos como a nossa mãe”, no sentido de “ver todos como o nosso amigo mais próximo”, então começamos a ter realmente uma espécie de motivação. Nós temos uma motivação sincera. Queremos sinceramente fazer algo benéfico para essa pessoa. Queremos que o tempo que passamos com essa pessoa seja significativo e útil para ele ou ela – a menos que sejamos alguém muito egoísta que apenas quer explorar a outra pessoa para o seu próprio prazer ou vantagem.

A Importância de Mantermos os Nossos Olhos AbertosTambém acho que ao fazer as várias práticas budistas de igualar e trocar o eu

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pelo outro, na verdade eu não experiencio uma movimentação do meu coração quando as pratico em forma de visualizações feitas com os meus olhos fechados. Sim, eu poderia fechar os meus olhos e visualizar o meu amigo mais próximo; mas a verdade é que isso não é o mesmo que relacionar-me com pessoas que estão à minha frente, ou à frente de vocês, neste momento. Acho estas práticas muito mais significativas quando as faço com os meus olhos abertos e a olhar para as pessoas.

Quando estamos a praticar sozinhos, no entanto, isso é obviamente outra coisa. Poderemos olhar para fotografias das pessoas, se for difícil imaginá-las. Acho que isso é perfeitamente aceitável. Mas mesmo se estivermos visualizando outros, acho mais benéfico tentar visualizar pessoas individuais específicas do que apenas “todos os seres sencientes” de um modo abstrato. E tento fazer isto com os meus olhos abertos, não me fechando ao mundo à minha volta com os meus olhos fechados.

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Quando examinamos as instruções a respeito da visualização na prática tântrica – por exemplo, no estágio da geração do tantra anuttarayoga – um ponto extremamente importante é que deve ser feito com a consciência mental. Não deve ser feito com a consciência sensorial. Ser-se capaz de visualizar com consciência sensorial é algo que ocorre apenas durante o estágio completo [estágio da completude]. O estágio completo [estágio da completude] é muito avançado e requer que tenhamos realmente manipulado os ventos-energia das nossas células sensoriais, de modo a que críem as imagens da visualização. Isso significa que no estágio da geração não estamos a mudar a forma [de] como percepcionamos as coisas; estamos a mudar o modo em que conceptualizamos ou compreendemos aquilo que percepcionamos. Em vez de considerarmos aquilo que vemos como existindo nas suas formas ordinárias, nós consideramo-las como sendo deidades ou figuras búdicas, por exemplo.

Espero que vocês estejam a ficar com a idéia de que para trabalharmos com o

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Dharma de um modo significativo, precisamos de unir tudo que aprendemos desde o começo. Isso significa que quando estamos a visualizar alguém como uma deidade ou, neste exemplo particular, quando estamos a visualizar todos como sendo a nossa mãe ou o nosso amigo mais próximo, não estamos, no início, a mudar a nossa percepção sensorial da pessoa. Estamos apenas a mudar o modo em que conceptualizamos a pessoa quando a vemos.

Se no entanto virmos a pessoa e perguntarmos “o que queremos dizer com conceptualizarmos a pessoa? O que é uma cognição conceptual?” então precisamos de voltar para os ensinamentos sobre Lorig, maneiras de saber. Lá, aprendemos que uma cognição conceptual é uma [cognição] na qual misturamos o objeto à nossa frente – digamos, um objeto físico – com uma idéia de uma categoria. Pensar apenas na idéia da categoria “o melhor amigo” misturado com uma imagem mental de alguém, contudo, não tem tanta força, digamos assim, como quando pensamos nessa idéia ao vermos realmente alguém.

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Por causa disso, o que tem força, então, é a prática de meditação ser feita com os nossos olhos abertos, olhando realmente para as pessoas. Não posso enfatizar isso em demasia! Isso faz realmente muita diferença em todas as várias práticas. Os ensinamentos tibetanos Mahayana dizem muito claramente para se “fazer as meditações com os olhos abertos”. Muitas pessoas não levam isto a sério porque não é assim tão fácil de fazer. Para algumas pessoas, meditando sozinhas, com os olhos fechados, é muito conducente. Especialmente se se distraírem facilmente, então ter outras pessoas à sua volta irá distraí-las. Mas se formos um pouco mais estáveis, as práticas tornam-se muito mais significativas quando as aplicamos a pessoas [da nossa] vida, [da nossa] realidade.

O que isso significa neste exemplo particular de criar a motivação é – do meu próprio exemplo, aqui nesta sala – eu olhar para vocês à minha frente e eu considerar vocês e o modo como me relaciono com vocês como se fossem os meus amigos mais próximos. Se vocês forem realmente os

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meus amigos mais próximos – não consigo pensar numa palavra agradável para isso, mas em palavras informais – não vos posso mentir. Tenho que ser sincero. Então, naturalmente tenho a motivação de vos beneficiar. Muito bem, podemos também repetir mentalmente algumas palavras, tal como “espero que isto venha a ser verdadeiramente significativo e útil para vocês”. Mas isso, em certo sentido, é apenas tornar um pouco mais consciente aquilo que já tínhamos estabelecido quando olhamos para as pessoas à nossa volta como os nossos melhores amigos.

Quando faço isso, observo que os pêlos dos meus braços não se arrepiam. Isso é verdade. Mas no entanto há algo lá que ajuda o relacionamento entre nós. Penso que em geral esta é a maneira em que podemos criar uma espécie de sentimento para estas coisas muito simples que tomamos por garantidas: “blah blah blah. Ajustei a minha motivação”. Geralmente recitamos apenas em tibetano e, assim, para a maioria de nós, até as palavras que recitamos não têm sentido absolutamente nenhum.

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Talvez possamos praticar um pouco com estas coisas. Não quero que este fim de semana seja eu exclusivamente a falar. Dado que não somos uma multidão enorme, vamos sentar em círculo. Quando nos sentamos em fileiras, uns atrás dos outros, tendemos a experienciar a inconveniência de olharmos para a almofada ou para a parte de trás da cabeça da pessoa à nossa frente, o que é realmente estranho depois de algum tempo. Se nos sentarmos em círculo, todos podemos ver as caras uns dos outros.

O que podemos tentar fazer agora é estabelecer a nossa motivação. Dizermos “estabelecer a nossa motivação” soa incrivelmente artificial, não? Mas o que estamos a fazer, se dissermos isso por outras palavras – como sou um tradutor adoro mudar as palavras – é estarmos a “criar um ambiente” em nós. E esse é o ambiente onde estamos com o nosso amigo mais próximo. Como é estarmos com o nosso melhor amigo? Quando estamos com o nosso melhor amigo estamos completamente relaxados. Não estamos "em"; não estamos “no palco”; não temos

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que fingir sermos qualquer coisa. Não temos de desempenhar nenhum papel. Nas nossas línguas ocidentais temos uma maneira muito engraçada de expressá-lo, que não é nada budista, mas que nós dizemos, “podemos ser nós próprios” seja lá o que isso signifique.

Deitar Abaixo as BarreirasPodemos deitar abaixo todas as barreiras. Podemos abandonar todas as defesas quando estamos com o nosso melhor amigo. É possível estarmos completamente abertos a compartilhar e a estar com essa pessoa sem nos agarrarmos a ela. Há uma certa alegria que não é uma alegria dramática, mas uma alegria que está lá e não sentimos que temos de fazer o que quer que seja. Mas também temos o desejo sincero de ser útil a essa pessoa. Gostamos dela de uma maneira muito sincera e humana.

O que tentamos fazer, então, é ver todas as pessoas nesta sala dessa maneira. Estamos a misturar uma idéia com uma percepção visual. Não o façam apenas com os vossos olhos fechados, porque então há o perigo

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de não haver nenhum sentimento durante o processo. Os olhos têm de estar abertos; precisamos de realmente ver as pessoas à nossa volta de uma determinada maneira. Isto não significa que a nossa percepção visual tenha mudado de algum modo. Ficamos incrivelmente confusos com a palavra visualização e pensamos que temos de mudar a nossa percepção visual sensorial de algum modo. Não temos que fazer isso. É uma questão de cognição em geral. Que tipo de idéia temos quando vemos a outra pessoa ou que tipo de disposição temos quando a vemos?

Aprender a RelaxarPenso que devemos começar com um sentimento de relaxamento e quietude. Bem, para fazermos isto temos que baixar as defesas, não? Quando as defesas estão em baixo, podemos então ser genuinamente sinceros. Vamos tentar fazer isto enquanto olhamos uns para os outros.

[pausa]

Então adicionamos um pouco mais de sabor a isso com o pensamento “que eu possa ser útil”. Este é um sentimento de

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estarmos dispostos a ajudar e um componente importante. Não é “Oh, eu tenho que ajudar, o que devo fazer? Não sei o que fazer, sou incompetente” ou qualquer outra coisa assim. Em vez dessa negatividade, sentimos que estamos dispostos a ajudar e a abrirmo-nos.

[pausa]

Isso, penso eu, é a pista, a recomendação, para como começar a sentir coisas de uma maneira sincera. A recomendação é que primeiro temos que baixar as defesas. Às vezes temos receio de sentir algo porque na verdade não sabemos o que vai acontecer – como se fossemos perder o controlo. Esse é o grande e sólido “eu” que protegemos com as defesas. Temos que relaxar. Isso é essencial.

Relaxar não significa apenas relaxar os nossos músculos ou a nossa tensão ao nível físico, embora isso obviamente faça parte. Pelo contrário, significa estarmos mentalmente relaxados; e isso vem da compreensão, pelo menos a certo nível, dos ensinamentos sobre o vazio ou a vacuidade. O vazio significa uma ausência de modos

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impossíveis de existir no que diz respeito a nós, a todos os outros e a tudo o que está acontecendo à nossa volta. Nada nem ninguém existe “solidamente”, por si próprio, independentemente de tudo o mais, alienado do que se está a passar.

Ao nível mais simples, se pudermos relaxar a nossa consciência do “eu”, a nossa inseguranca, a nossa auto-preocupação, isto dar-nos-á uma ideia de como poderá ser ter-se algum nível desse entendimento. Assim, uma vez mais, nos ensinamentos, tudo precisa sempre de se encaixar. Podemos ter uma ideia desta questão sobre a vacuidade mesmo se não a estudarmos profundamente, porque a experienciamos a certo nível com o nosso amigo mais próximo. Se entrarmos em situações da vida ajustando a motivação deste modo, então isso funciona.

Isso significa que entramos em situações de sermos muito sinceros, em vez de darmos espetáculo. Não estamos tentando vender-nos, como quando a pedir um emprego. Não estamos a atuar numa peça de teatro. Em vez disso, estamos

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totalmente confortáveis com todo o mundo porque estamos fundamentalmente confortáveis com nós próprios. Isto tudo depende da nossa compreensão do “eu” obviamente. Conecta com a nossa compreensão de como o “eu” existe – ou seja, da vacuidade. O “eu” existe vazio de todos os modos impossíveis. “Eu” existo vazio de todas as maneiras impossíveis. E vocês também.

Esta objeção poderia ser levantada: “bem, se eu abandonar todas as minhas barreiras, não ficarei vulnerável a ser ferido?” Não penso que seja esse o caso. Se usarmos um exemplo das artes marciais, então, se estivermos tensos não podemos reagir rapidamente se alguém nos atacar. Mas se as barreiras da consciência do “eu” estiverem em baixo, então estamos totalmente atentos ao que se está a passar. Então é possível reagir muito, muito rapidamente, ao que quer que esteja a ocorrer.

Uma vez mais, é uma questão de lidarmos com este fator do medo, não é? É o medo que nós temos que superar, visto que é o

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medo que nos está a impedir de abandonar as barreiras. Temos receio que “se eu abandonar as barreiras, irei ficar magoado”. Isso é porque erguemos barreiras em primeiro lugar, e ao fazê-lo estamos, na verdade, a magoar-nos a nós próprios. Mas precisamos de aprender estes fatos através da experiência pessoal e da compreensão. Isto leva-nos a outro tópico importante, que é o tópico da “compreensão”.

Gerando Sentimentos com Base numa Compreensão InferencialMuitas pessoas “desligam-se” de algumas das abordagens que vemos no budismo, particularmente no budismo tibetano – e especialmente no budismo tibetano Gelugpa. Estou-me aqui a referir à ênfase dada na lógica e na compreensão inferencial. Mas não há nada aqui para estarmos receosos porque nós funcionamos com esse tipo de compreensão a toda a hora. A compreensão não é necessariamente um processo intelectual pesado. Ouvimos o despertador tocar de manhã e compreendemos que está na hora de acordar. Porque é que está na hora de

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acordar? Porque o despertador tocou. Há uma linha de raciocínio consciente e é também a maneira como o cérebro funciona inconscientemente. A linha lógica de raciocínio para se compreender que está na hora de acordar é: “Se o despertador toca, está na hora de acordar. O despertador tocou. Por conseguinte, está na hora de acordar”. Podemos pô-lo em um silogismo lógico como este. Não tem de ser um exercício intelectual pesado que tenhamos de atravessar a fim vermos, a partir desse sinal – que é exatamente a palavra que usamos em tibetano – desse sinal ou indicação, que está na hora de acordar. O som do despertador a tocar é o sinal em que confiamos para sabermos que está na hora de acordar.

Similarmente, vermos alguém como o nosso melhor amigo é o sinal ou a indicação de confiança que nos permite compreender que não há nenhuma necessidade de mantermos as barreiras erguidas porque não há nada a recear e não temos de manter aparências com esta pessoa. Como é que sabemos isso? Porque vimos um sinal e inferimos dele

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logicamente. O sinal é vermos essa pessoa como o nosso melhor amigo. Assim, obtemos uma compreensão inferencial e derivamo-la através de uma simples inferência, em vez de através de um processo de lógica pesado.

A capacidade de se gerar sentimentos está relacionada com a compreensão. Muitas pessoas ficam muito perplexas sobre como é que se vai de algo intelectual a algo emocional. Esse é um grande problema que muitos de nós, ocidentais, temos com a nossa forma de pensar que separa o intelecto do sentimento como se fossem duas coisas separadas e quase não relacionadas.

A maneira de superar essa dificuldade é apercebermo-nos, antes de mais, que sentir-se algo tem dois aspectos – sentir-se algo como verdadeiro, ou seja, acreditar que algo é verdadeiro, e então ter-se um sentimento emocional baseado nessa crença. Compreender algo, acreditando ser verdade, e sentir-se uma emoção sobre isso seguem-se um ao outro. É um modo

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impossível de existir que estes três não sejam relacionados uns com os outros.

Por exemplo, obtemos uma compreensão de algo confiando em algum tipo de sinal. Poderíamos expressar o processo de uma forma lógica: “Se estou com o meu melhor amigo não preciso de estar na defensiva. Esta pessoa é o meu melhor amigo. Por conseguinte, não preciso de estar na defensiva”. Porque essa compreensão é baseada num silogismo lógico, poderíamos talvez chamá-la de uma compreensão intelectual, mas isso é não compreender. A questão é que, com base nesta compreensão, acreditamos que é verdade que não precisamos de estar na defensiva com essa pessoa. Com base nessa crença, podemos baixar as defesas e sentirmo-nos mais relaxados. Se não baixarmos as defesas e não relaxarmos, o problema reside, em geral, na nossa compreensão e opinião. No entanto, pode haver naturalmente outros fatores externos que nos estejam a influenciar, tal como a tensão de outras coisas que estão a acontecer na nossa vida, naquela altura. Mas penso que vocês entendem o que eu quero dizer.

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O que precisamos de ser capazes de entender é o que significa compreender algo. Se conseguirmos entender o que significa compreender algo, então é muito mais fácil de fazermos a conexão entre sentir-se um fato como verdadeiro e sentir-se uma emoção baseada na crença desse fato. Vamos pensar no seguinte; por exemplo, o alarme do despertador a tocar. Nós compreendemos “intelectualmente”, através de um processo de inferência, que isso significa que está na hora de acordar.

Agora, tentem focalizar no sentimento de compreenderem que está na hora de acordar. Que qualidades vocês reconhecem aqui?

Participante: (tradutor) Ele aprendeu, de algum modo, que ele tem de se levantar quando o alarme do despertador soa e ele entende que se se levantar cedo vai para o emprego facilmente. Se não, chegará atrasado.

Alex: Certo, mas agora vamos profundar mais a questão. Não é apenas um sentimento de dever ou outra qualquer coisa assim. Isso é secundário. A um nível

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mais profundo, precisamos de trabalhar com as duas principais questões emocionais a respeito da crença no que compreendemos quando ouvimos o alarme tocar. A primeira é não estarmos dispostos a aceitar o que ouvimos e que compreendemos que realmente temos de nos levantar.  Essa é a primeira questão principal. A segunda é tomar a decisão de aceitar a verdade e de nos levantarmos realmente para fora da cama. Então poderia haver os aspectos secundários do porquê que tomámos essa decisão – por causa de um sentido de dever, por causa de um sentimento de culpa, ou por causa do que quer que seja. Podemos tomar a decisão por muitas razões e então segue-se o ponto que você mencionou.

Participante: (tradutor) Não é apenas um sentimento de dever que ele sente. Mas, com base na sua experiência, sabe que se se levantar bastante cedo, então ele tem tempo para ter uns minutos para relaxar e começar o dia mais facilmente.  E assim o sentimento que ele tem ao sair da cama é mais positivo.

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Alex: Isto é muito importante, porque o que está a acontecer aqui é que, com base numa compreensão, nós aceitamos a lógica de que temos que nos levantar quando o alarme soa e tomamos a decisão de nos levantar. Compreendemos que se nos levantarmos, então sair de casa vai ser um pouco mais relaxante, em vez de ficarmos estressados porque temos dois minutos para organisarmos tudo e sairmos a correr. Assim, como há certas vantagens em levantarmo-nos um pouco mais cedo e como compreendemos essas vantagens, sentimo-nos bem quando nos levantamos. Em todo o caso, a realidade é que temos mesmo que nos levantar – quer a emoção que sintamos sobre isso seja de ressentimento ou de conforto. Nós sentimos ressentimento quando pensamos nas desvantagens de nos levantarmos – não podemos continuar na nossa cama confortável e morna. E sentimo-nos bem quando pensamos nas vantagens de nos levantarmos imediatamente.

Quando examinamos a estrutura dos ensinamentos budistas, eles dão-nos sempre vantagens para cada ponto. Há

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vantagens em abandonarmos as defesas; há vantagens em vermos todos como nossas mães, em estarmos conscientes de que temos uma vida humana preciosa, em estarmos cientes da impermanência e assim por diante. Precisamos de compreender as vantagens de aceitar e de acreditar a verdade sobre algo. Tudo isto está relacionado com a compreensão. Contudo, quando tivermos compreendido algo, então ainda temos de trabalhar com a questão da sua aceitação. A emoção que sentimos será colorida pela nossa aceitação ou não da verdade da nossa compreensão e pelo modo como nós a aceitamos.

Aceitando Algo que Nós CompreendemosNa verdade, a aceitação é uma questão muito difícil. Podemos ter dificuldade em aceitar que temos que nos levantar todas as manhãs, com o nosso exemplo do despertador. Também podemos reconhecer esta dificuldade noutros exemplos da nossa vida, como quando queremos comer um bocado de chocolate. Procuramos por toda a casa e não conseguimos encontrar nenhum chocolate. Por conseguinte, a

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conclusão lógica é que não há nenhum chocolate em casa. Agora, isso pode ser bem difícil de aceitar.

Por exemplo, se estivermos do lado de fora da nossa casa com a porta trancada e procurarmos as nossas chaves em todos os bolsos e malas, elas devem estar num deles. Mas se não estiverem em nenhum desses lugares, esse é um sinal válido para concluirmos logicamente que perdemos as chaves ou que nos esquecemos de as trazer. Estamos trancados fora de casa. Isso é muito difícil de aceitar, não é? Num frenesim procuramos repetidamente as chaves. Estes são exemplos razoavelmente fáceis. Mas quando temos de aceitar que não há nenhum “eu” sólido porque procuramos em toda a parte e não conseguimos encontrá-lo – isso não é assim tão fácil.

Toda esta questão de compreendermos algo e sentí-lo na verdade emocionalmente é muito difícil por causa da forma como concebemos o processo. Temos a ideia de irmos de algo intelectual a algo emocional e de que os dois não estão nada

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relacionados um com o outro. Mas até conceber o processo como uma forma de irmos de uma compreensão, que penso ser uma maneira mais construtiva de ver, a um sentimento não é assim tão fácil, por causa dessa questão de se aceitar aquilo que compreendemos.

Ganhando a Coragem de Abandonar as Nossas DefesasAgora, a pergunta é: como é que nós aprendemos a aceitar? Voltemos atrás ao nosso exemplo mais fácil. Vocês aceitam abandonar as vossas defesas? Alguém?

Participante: Quando compreendemos que é útil, é mais fácil de aceitar. Quanto mais compreendemos que isso pode ser útil, mais fácil será aceitá-lo.

Alex: Bom, aceitamos abandonar as defesas e tentamos realmente fazer isso quando compreendemos e aceitamos como verdadeiras as vantagens de as abandonar. Mais alguém?

Participante: Para aceitar algo, você precisa de experienciá-lo. Assim, primeiro você simplesmente tenta. Talvez você

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mergulhe na água e se afunde, mas primeiro tem que ter a coragem de tentar isso, de ter essa experiência de se afundar.

Alex: Isso é verdade. Para realmente abandonarmos as defesas precisamos de ter muita coragem. E sabermos que abandoná-las é possível também requer algum tipo de compreensão no início. Essa compreensão vem da experiência de termos sido tão magoados quando não abandonámos as defesas nos nossos relacionamentos. Com base nessa experiência e depois com base naquilo que alguém nos diz, e vendo nesse alguém um exemplo vivo de como é viver-se sem defesas, obtemos a coragem de tentar fazer o mesmo.

Agora, podemos dar uma pincelada aqui na parte do quadro que é o guru porque obtemos essa inspiração ao vermos um exemplo de alguém que abandonou as defesas, que seria um professor adequado – mas atenção, há muitos que não são professores adequados. Com um professor adequado veríamos um exemplo vivo do que é ter-se abandonado as defesas. Dá-nos

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a inspiração e a coragem de nós mesmos tentá-lo.

Aprendendo a Abandonar as Nossas DefesasParticipante: (tradutor) Enquanto criança você não tem essas defesas, mas por causa de más experiências, porque você foi mal tratado, você constrói essas defesas e por isso agora, se estiver suposto a abandonar essas defesas, então este medo ainda está lá. Mas agora que tem contato com o budismo, tenta abandonar as defesas mas ainda há um medo de que os outros possam abusar da sua abertura.

Alex: Esse é exatamente o ponto onde eu queria chegar. Como é que aprendemos que abandonar as defesas é útil? Como podemos aprender a sentí-lo ou a criá-lo? Vem do fato de que quando experienciamos abandonar as barreiras, temos uma experiência direta das vantagens. É assim que aprendemos. Mas, as vantagens nem sempre surgem imediatamente. Deste modo, esta primeira forma de aprender não é assim tão fácil.

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O segundo modo em que podemos aprender é, às vezes, abandonarmos as defesas e magoarmo-nos. Isso também vem da experiência passada. Às vezes ficamos magoados; alguém tirou vantagem de nós. Então precisamos tentar compreender o que correu mal. Muitas vezes, se conseguirmos compreender o que correu mal podemos corrigi-lo. Numa dada situação, o problema surgiu porque as defesas foram abandonadas ou porque houve algo impróprio na maneira como lidámos com a situação, em termos de como nos concebemos a nós próprios?

Vamos usar um exemplo. Estávamos com alguém e a pessoa ficou irritada conosco. Poderíamos então ter abordado essa situação de duas maneiras; com ou sem as nossas defesas habituais. Poderíamos pensar, “abandonei as defesas, fiquei vulnerável e ele disse essa coisa ofensiva e eu fiquei magoada”. Poderíamos também pensar, “bom, se tivesse mantido as defesas não teria ficado magoada”.

Temos de estar muito seguros sobre isto porque na verdade é completamente

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insensata a forma como acabámos de formular isto. Como é que não teríamos ficado magoados se tivéssemos mantido as nossas defesas? Como é que isso teria sido?

Na verdade, teríamos ficado magoados quer tivéssemos mantido as defesas ou não. Tudo depende da forma em que nos concebemos a nós próprios. Se alguém nos atirar uma grande bola de lama e se ficarmos apenas parados e levarmos com ela na cara, essa é uma visão muito sólida de nós próprios. Mas se formos muito flexíveis e alguém nos atirar lama para a cara, nós movemo-nos um pouco para o lado e não deixamos que nos bata na cara. As palavras ofensivas não nos atingirão. A pessoa estava irritada e não levamos as suas palavras em termos pessoais.

Essa é a chave, ser-se flexível e não considerar como ataque pessoal essas palavras ofensivas, não as deixar atingir-nos na cara. Mas se tivermos esta maneira muito sólida de nos ver e se formos rígidos e levarmos tudo como ataque pessoal, então quando as defesas estão em baixo,

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ficamos muito vulneráveis e tudo nos atinge e bate na cara.

Mas se tivermos esse mesmo sentido sólido do EU que considera tudo como um ataque pessoal, então aumentar as defesas não nos protege de modo algum. Continuamos a considerar tudo como um ataque pessoal. Ou isso ou estamo-nos a esconder atrás das muralhas com medo e insegurança. Ficamos magoados não-conscientemente ou fazemos com que não sintamos a dor, mas por dentro estamos a sentirmo-nos magoados. É um estado de negação, mas de fato estamos muito magoados. Esse é o “eu” sólido, escondendo-se cobardemente atrás da muralha. Assim, temos de estar muito seguros sobre o que se está a passar. Qual é a causa de termos ficado magoados? A causa de termos ficado magoados não são as defesas que estavam em baixo. O que nos faz ficar magoados é a concepção incorreta de um “eu” sólido.

Participante: (tradutor) Talvez ela compreenda intelectualmente o problema e esta coisa de falar acerca da vacuidade do “eu” sólido. Mas se a situação está a

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acontecer, se o sentimento de estar magoada está presente, ela não consegue aplicar isso ao sentimento e ela não consegue então integrar esse entendimento nos seus sentimentos. Por exemplo, se ela ficar magoada, ela pode saber, “tudo bem, não há ego” mas sente-se magoada na mesma. Então, esse sentimento de estar magoada não se dissolve por pensar nele em termos de não-ego.

Alex: Isso é verdade. Há estágios no caminho. Dor e sofrimento e estas coisas não desaparecem instantaneamente. Mesmo se tivéssemos a cognição nua e não conceptual da vacuidade, isso não significaria o fim do nosso sofrimento. Essa cognição nua precisa de nos infiltrar devagarinho; tem de ir entranhando durante um longo período de tempo, com muita experiência, antes de eliminar realmente o sofrimento. Existe um grande diferença entre ser-se um arya – alguém que tem a cognição não-conceptual da vacuidade – e ser-se um arhat, alguém completamente liberto para sempre do sofrimento. A questão é que não devemos esperar mais do que aquilo que

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normalmente se segue na progressão de como cada indivíduo obtém a liberação. Vai-se por etapas; é um processo gradual.

Precisamos de nos lembrar da primeira verdade nobre. A vida é difícil! Essa é a primeira verdade nobre. Mesmo se compreendermos a vacuidade, os nossos problemas não vão acabar imediatamente. A vida é difícil! O sofrimento não desaparece num instante. É um processo longo e gradual. No princípio ficaríamos magoados mas a diferença é que não ficaríamos agarrados a esse sentimento. Se conseguíssemos fazer isso, então a mágoa passaria muito mais depressa. Essa é a diferença que se nota. Devíamos então estar satisfeitos com esse resultado e, eventualmente, com mais familiaridade, o efeito se tornaria melhor. Não devemos ficar desencorajados por isso; antes pelo contrário.

Dizer “Não”Há uma outra questão que queria explorar a respeito de abandonar as defesas. Esta é a experiência que muitas pessoas têm quando põem as defesas para baixo:

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sentem que têm sempre que dizer “sim” e que não conseguem dizer “não” a ninguém. Em vez de serem magoados diretamente pela outra pessoa, inadvertidamente não tomam cuidado das suas próprias necessidades porque nunca dizem “não”. Ficam magoados indiretamente. Vocês reconhecem isto?

Nessa situação, temos de tentar reconhecer que quando dizemos “não” e quando tomamos conta das nossas próprias necessidades, isso não é equivalente a tornar a pôr as defesas de pé. Obviamente, poderíamos tornar a pôr as defesas mas isso não significa necessariamente tornar a pôr-se as defesas. Podemos ainda estar totalmente abertos, totalmente receptivos, e simplesmente dizer “tenho muita pena mas não posso fazer isso” ou “agora preciso de descansar” e permanecemos ainda abertos. Mas, quando temos esta ideia deste “eu” sólido então o “pobre de mim, estão-se a aproveitar de mim” manifesta-se e começamos a ficar muito perturbados. Ou sentimos, “se eu disser que ‘não’ então a outra pessoa vai “me” abandonar, por isso devo manter a minha

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boca calada”. E então dirigimos toda a hostilidade, culpa e raiva internamente, a este “eu”. De novo, tudo isto anda à volta da ideia de um “eu” sólido – que é a concepção errada que precisa de ser abandonada.

Respondendo Aos que Têm as Suas Defesas Bem EstabelecidasParticipante: Eu observo, na minha vida, outra coisa que está sempre a acontecer. Eu tenho expectativas como, “se eu abandono as minhas defesas então as outras pessoas também deviam fazê-lo. Não há nada a temer, por isso porque é que elas não as abandonam?” E se elas se agarram às suas defesas, fico muito irritado.

Alex: Duas coisas vêm-me à mente quando você diz isso. A primeira é uma conversa que tive recentemente num trem com uma mulher que, quando eu disse que estava a ensinar budismo e a como superar o egoísmo, respondeu, “o que está errado com ser-se egoísta? Se todos forem egoístas e eu não o for, então estou simplesmente a ser estúpida!” Você está

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falando da mesma coisa; se todos se agarrarem às suas defesas, todos exceto eu, então estou simplesmente a ser estúpido. A resposta que lhe dei foi: “bem, por essa lógica, se todos andassem por aí a matar pessoas e você não fizesse o mesmo, você seria estúpida”. Então, obviamente, temos de ser um pouco mais objetivos sobre as vantagens e as desvantagens de matar pessoas e de nos agarrarmos às nossas defesas.

A segunda coisa que me ocorreu foi o exemplo da minha mãe. A minha mãe costumava ficar muito perturbada ao ver as notícias na televisão. Via as notícias e ouvia sobre todos os assassinatos, todos os roubos e violações que tinham acontecido nesse dia, e ficava muito irritada, “porque é que as pessoas agem desta maneira?”

Agora, penso que aqui a questão é a da moralidade excessiva. Podemos ser excessivamente moralistas e sem quaisquer reservas. A minha mãe não era assim. Mas também podemos tê-la de uma maneira muito mais sutil. Isso é o que eu penso que ela tinha, uma forma mais sutil de “eu sou

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tão maravilhosa e toda a gente é tão má”. Repito, penso que tudo isto anda à volta desta concepção errada de um “eu” sólido. Ou seja, identificamo-nos como alguém que age de uma maneira benéfica, como alguém que abandonou as defesas ou como alguém que não anda por aí a matar e a roubar. Identificamos um “eu” sólido com essas atitudes. Usamo-las para fortificar a nossa identidade numa tentativa de tornar este “eu” seguro. Então usamos todo o mecanismo da forte rejeição dos outros que não agem como nós, para tentarmos fazer com que esse “eu” se sinta menos ameaçado e ainda mais seguro.

Podemos compreender, com o exemplo seguinte, como poderíamos responder diferentemente. Por exemplo, bebemos água de um copo, deste modo. O nosso cão não bebe água dessa forma. Assim, se houver muitos cães e estiverem todos a beber água lambendo-a com as suas línguas das tigelas no chão, isso faz-nos sentir excessivamente moralistas porque nós bebemos da maneira certa e todos os cães são maus porque bebem da maneira

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errada? Não. Porque é que isso não nos faz sentir tensos?

Por outro lado, se estivermos abertos e os outros à nossa volta não estiverem, porque é que isso nos faz sentir tensos? Qual é a diferença entre isso e [o exemplo de] bebermos água de uma maneira diferente de um animal? Penso que a diferença está em termos de identificarmos um “eu” sólido com uma certa posição. Não importa a maneira como bebemos, isso é trivial. Assim, nós não nos afeta como o cão bebe. Mas este “eu” sólido – “Eu estou tentando, com tanto esforço, ser aberto e ser `bom' .....”

Agora temos que dar uma outra pequena pincelada noutra parte da nossa pintura, no que diz respeito a ficarmos perturbados quando os outros não se comportam como nós. Esta é a pincelada a respeito da questão do “dever” – “Eu devia fazer isto.”

Não Nos Importarmos com o que os Outros Dizem ou FazemParticipante: (tradutor) Ele diz que há uma outra abordagem. Se você quiser ser uma pessoa respeitada e alguém lhe disser,

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“você é um idiota”, então você fica irritado. Mas se você não quiser ser uma pessoa respeitada e alguém lhe disser dez vezes, “você é um idiota” então você não se importa com isso. E se alguém quiser sair com a sua esposa por qualquer razão e você quiser ficar com a sua esposa, então vocês começam a lutar. Mas se você pensar, “tudo bem, se a minha esposa quiser sair, não tenho problema com isso. Eu aceito isso”. Então, como você não tem o desejo de ficar com ela, você não começa uma luta.

Alex: Aqui, temos de diferenciar duas verdades. Nós chamamo-las a verdade convencional e a verdade última ou a verdade convencional e a verdade mais profunda. Do ponto de vista da verdade mais profunda, sim, nós tentamos não ser apegados às coisas, vendo que as coisas não têm uma existência sólida. Mas, do ponto de vista da verdade convencional, há “coisas a serem aceites e coisas a serem rejeitadas”. Do ponto de vista convencional, é mais benéfico estarmos abertos do que estarmos fechados e é mais benéfico proteger a nossa esposa do que

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deixar que qualquer um a viole ou a leve. Isso não contradiz a verdade mais profunda de que nós não estamos apegados. Precisamos de ter cuidado para não confundir essas duas verdades.

Exercício ConclusivoEstá na hora de acabarmos a nossa sessão desta noite. Vamos terminar com um pouco de prática experiencial, e vamos fazer isto, uma vez mais, olhando em redor e estando abertos. Queremos estar abertos, não no sentido de um “eu” sólido que abandonou as defesas e qualquer lama que seja atirada contra mim… whop! direitinho na cara. Mas pelo contrário, as defesas foram abandonadas e não há nada de sólido com que tenhamos de nos preocupar e que nos possa vir a magoar. Mas obviamente nós estamos aqui. Reagimos ao que quer que seja que se esteja a passar sem termos de estar na defensiva com um grande apego e com medo. De onde é que o medo vem? O medo vem do pensamento de que há um “eu” sólido que pode ficar magoado. Então, naturalmente, ficamos com medo.

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A verdade convencional é que, se alguém nos atirar com alguma coisa, desviamo-nos para o lado. Se esperarem demasiado de nós, dizemos “Não”. Convencionalmente, lidamos com tais coisas com uma consciência discriminadora ou com a capacidade de fazermos distinções objetivas, em vez de com julgamentos subjetivos e excessivamente moralistas.

Participante: Se você abandonar as defesas, isso está relacionado com a flexibilidade, de modo que quer oiçamos coisas boas ou ofensivas, queremos à mesma ajudar? Sermos capazes de fazer isso significa que temos flexibilidade?

Alex: Exatamente. Só quando abandonarmos as defesas é que poderemos ser verdadeiramente flexíveis e espontâneos. Se nos agarrarmos às defesas nunca poderemos responder de uma forma totalmente livre. Por isso somos muito rígidos. Andamos por aí com todas estas muralhas à nossa volta.

Participante: Arrasarmos essas muralhas significa sermos flexíveis a um certo nível. Mas não significa apenas a flexibilidade,

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pois não? Abandonarmos as muralhas não significa ser-se só flexível, pois não?

Alex: Exatamente. Não significa apenas ser-se flexível. Também significa sermos capazes de nos relacionarmos de um modo realmente adequado. Significa muitas coisas. Tudo está interligado. E poderemos ser mais sensíveis quando abandonarmos as nossas defesas. E quanto mais sensíveis formos, mais flexíveis nos tornaremos. E se formos mais sinceros, isso faz com que a outra pessoa se sinta mais relaxada conosco. São muitas coisas e todas elas estão interligadas. Se as nossas defesas estiverem em baixo e estivermos realmente a ver o que se está a passar com as pessoas, é muito mais fácil termos a consciência discriminadora e termos uma ideia clara de como agir. Diz-se que a discriminação e os meios hábeis surgem naturalmente quando as defesas estão em baixo.

Mesmo se não pudermos criar este tipo de sentimento das muralhas estarem em baixo com base na compreensão da vacuidade, podemos criá-lo com base no entendimento

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de que todos são os nossos melhores amigos. Porquê? Porque vários métodos de viajar podem-nos levar ao mesmo destino, várias causas podem conduzir ao mesmo resultado que queremos alcançar, como abandonarmos as nossas defesas. Isso vem dos ensinamentos sobre a vacuidade da causa e do efeito. Assim, há muitas formas diferentes de se alcançar uma compreensão e há muitos níveis diferentes de compreensão, e todos eles podem ser úteis.

Então, vamos tentar criar essa abertura com base na compaixão; vendo todos como se fossem o nosso amigo mais próximo. E depois, se também conseguirmos criar essa abertura com base numa compreensão correta da vacuidade, isso será ainda mais útil. As duas estão sempre conectadas – a compaixão e a sabedoria. Lembram-se? É a imagem das duas asas.

Tomando Responsibilidade pelos OutrosParticipante: (tradutor) Mas se você vir o outro como o seu melhor amigo, então isso significa que você tem de tomar toda a

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responsabilidade por ele e, por isso, desse ponto de vista, ela tem medo.

Alex: Porque é que temos medo? Por causa de um “eu” sólido – “Eu vou falhar”. Então isso significa que temos que dar outra pincelada no nosso quadro, para incluirmos também o lado da vacuidade da causa e efeito. O exemplo padrão que o Buda usou foi o de um balde de água, que não se enche pela primeira nem pela última gota de água; enche-se pela combinação de todas as gotas. Quando tentamos ajudar alguém a superar o seu sofrimento, não é totalmente dependente apenas do que fazemos. Isso seria uma inflação exagerada do “eu”. O resultado vem da combinação de muitas, muitas, muitas causas.

Por um lado, não dizemos que somos unicamente responsáveis no sentido de que se eles não melhorarem então somos culpados de termos falhado. Mas por outro lado, não vamos também ao outro extremo, que é não fazermos nada. Contribuímos o melhor que podemos. Mas se irão ou não superar o seu sofrimento, não sabemos,

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porque a maior parte depende do que eles fazem.

Uma vez mais, este é um tópico que nos permite dar umas pinceladas na pintura que estamos fazendo, mas amanhã iremos aprofundar isto mais e mais – toda esta ideia de “eu devia”. “Eu devia fazer isto. Eu devia ajudar-lhes. Eu devia resolver todos os seus problemas e assim por diante. E se o que eu fizer não resultar e não eu conseguir resolver os seus problemas, então sou culpado de ter feito algo de errado”.

E isso conduz-nos naturalmente à discussão de Deus, de onde vem esta nossa forma de pensar no “dever”. Imaginamos que deveríamos ser onipotentes, tal como Deus, e deveríamos conseguir realizar tudo o que queremos, através apenas do nosso próprio poder. Falaremos sobre isso amanhã.

Assim, vamos terminar com alguns minutos, estando abertos sem nenhum medo, e depois com o desejo “seria maravilhoso se todos nós pudéssemos estar abertos e sem medo. Possamos todos ser

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assim. Que eu possa ajudar todos a tornarem-se assim”.

Lembrem-se de que temos que nos interrogar, a nós próprios, do que temos medo, porque temos medo e, é claro, quem é que tem medo.

Sessão 2: Direção Segura (Refúgio)Derrubando as Barreiras em Relação à AprendizagemComo discutimos ontem, o que estamos tentando fazer é tornarmo-nos abertos a ser prestáveis aos outros – relacionando-nos com eles diretamente, com as nossas barreiras em baixo. As barreiras têm que estar em baixo não só em relação a pessoas, mas também em relação a aprendizagem. É um tipo de processo semelhante. Devem estar em baixo para podermos estar abertos e aplicar a nós próprios, pessoalmente, as coisas que aprendemos, em vez de erguermos uma muralha ou outro tipo de barreira criada com a nossa intelectualidade. Ou seja,

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podemos construir uma muralha para proteger um “eu” interior aparentemente sólido, e pensar “estou a ouvir estas coisas apenas como um exercício em intelectualidade, de modo a aprender algo curioso ou interessante. Porque se eu tiver que tocar em algo profundo dentro de mim, isso será demasiado ameaçador, e então irei erguer as muralhas”. Também precisamos de derrubar essas barreiras.

Deste modo, tentamos estar abertos a aprender e a fazer uma espécie de auto-transformação, de modo a que possamos ser, deste modo, prestáveis a outros em relação aos quais estamos abertos a um nível pessoal. Como descrevemos ontem, podemos desenvolver esta espécie de sentimento do coração primeiramente olhando para os outros à nossa volta, para as outras pessoas nesta sala ou para os retratos dos budas nas paredes, e então, depois de termos derrubado as muralhas, sentindo a motivação de estarmos abertos a transformar as partes mais profundas de nós próprios e as nossas relações com os outros.

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Vamos fazer isto por um momento. E por favor façam-no com a intenção de estarem atentos e concentrados. Nós não queremos apenas sentarmo-nos e deixar as nossas mentes vaguear por todo o lado.

[pausa]

Usando a “Prática” Budista como Uma MuralhaQuando nos aproximamos do budismo, estamos basicamente trabalhando em algum nível de auto-transformação. A auto-transformação é algo que pode meter medo. Ontem, falámos um pouco sobre o medo. A fim de evitarmos ter que mudar, nós construímos muralhas. Então, com as as nossas muralhas, aproximamo-nos do budismo como uma espécie de diversão, como uma espécie de um esporte ou de um passatempo. Vemos a prática budista como algo que é completamente alheio às nossas vidas.

É muito interessante quando perguntamos a pessoas que já estão envolvidas com o budismo há algum tempo “qual é a sua prática?” muito frequentemente dizem que a sua prática é algum tipo de ritual diário,

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que haviam recebido numa iniciação tântrica. Têm de recitar algo todos os dias e isso é a sua prática. Talvez até a vejam de uma maneira cristã: “Tenho que recitar as minhas orações todos os dias”. E, de fato, muitas pessoas chamam a estes textos rituais as suas “orações”. Como, neste fim de semana, temos usado a metáfora da pintura de um quadro, podemos adicionar aqui algumas pinceladas no lado da pintura que está a lidar com o sentimento do “dever” – “Eu devo recitar as minhas orações porque quero ser uma boa pessoa, porque prometi fazê-lo….” Então começamos a ficar envolvidos com a ideia de Deus e do guru.

Agora começamos a dar pequenas pinceladas sobre muitas partes da pintura. Mesmo se não estivermos a fazer nenhuma espécie de ritual tântrico como aquele, talvez estejamos a fazer prostrações ou outro tipo de prática da mesma maneira. Como já disse, é muito fácil fazê-las como um esporte; algo que é completamente separado da nossa realidade interna. Ou seja, dizemos que fazemos a nossa “prática” como um dever – “algo

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que devo fazer porque disse que o iria fazer” – ou como alguma espécie de esporte que não está realmente relacionada com as nossas vidas – “e essa é a minha prática!”

Esse é um grande erro quando abordamos o budismo. Muitas pessoas já estão envolvidas com o budismo há muitos, muitos anos nesse nível e, no entanto, por causa dessa visão errada, retiram apenas um benefício mínimo. Pode haver algum benefício, é certo; e eu não estou a negar isso. Mas não é tão grande como poderia ser. Quando nós ou alguém – geralmente é alguém – diz “a minha prática é a compaixão, a vacuidade, a impermanência e assim por diante” algumas pessoas têm reações muito estranhas. Se estivermos, como nossa prática, fazendo rituais e alguém nos disser isso a nós, podemos pensar que essa pessoa está a ser pretensiosa e muito orgulhosa e, em certo sentido, a deitar-nos abaixo e a criticar-nos por estarmos a fazer práticas rituais. Num certo sentido, vemos isso quase como uma ameaça.

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Voltamos uma vez mais à concepção errada de um EU sólido que está dentro das muralhas, recitando todas estas várias fórmulas rituais, quase como um modo de tornar estas muralhas mais fortes. Estamos fazendo isso de modo a que, estando dentro das muralhas, nós não temos que nos confrontar com nós mesmos e com as nossas vidas. Mantemo-nos muito, muito ocupados com rituais de modo a evitarmos lidar com os outros ou com nós próprios. Vocês sabem como algumas pessoas ligam o rádio ou põem música a tocar, mal acordam de manhã, e mantêm-no a tocar o dia inteiro, ou têm a televisão ligada em casa durante todo o dia. Muitas pessoas agora andam por aí o dia inteiro com os fones de ouvido e walkman com música bem alta nos seus ouvidos. Embora não estejam conscientes, o efeito disso é que nunca têm que pensar ou estar sozinhos com eles mesmos. É uma forma estranha de trabalhar com a solidão mas, de qualquer forma, como pessoas com um estilo de vida ocidental, nós sabemos o que isso significa. De fato, o que esses hábitos fazem é distraírem-nos e, por conseguinte,

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evitamos examinar seriamente as nossas mentes e as nossas vidas.

É muito fácil seguirmos o mesmo tipo de padrão com a prática budista. Fazemos um ritual ou dizemos um mantra o dia inteiro, que é semelhante a ouvirmos música durante todo o dia. Não está tocando realmente na nossa parte mais profunda. Ou seja, estamos usando essa prática como outra muralha; é outra camada de uma grande muralha à nossa volta. Mesmo se nos tornarmos muito sofisticados na nossa prática – digamos que passamos os dias visualizando mandalas, deidades e coisas assim – é muito fácil usar-se isso como outra muralha de modo a não termos que nos relacionar com a vida. Penso que é muito importante não termos, como estrutura básica da nossa prática, uma coisa extra alheia às nossas vidas, que fazemos todos os dias durante uma hora. As nossas vidas têm que ser a nossa prática.

A Primeira Verdade Nobre – Sofrimentos Verdadeiros

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Para fazermos das nossas vidas a nossa prática, precisamos de voltar à estrutura básica dos ensinamentos do Buda, que são as quatro verdades nobres, os quatro fatos da vida. É necessário levá-los a sério. A primeira destas verdades, como a formulámos ontem à noite, é “a vida é difícil.” Você pode dizer, “tudo é sofrimento” mas isso é uma maneira muito incômoda de fraseá-la. É muito mais relevante dizer que “a vida é difícil”.

A questão é que é necessário enfrentar esse fato e aceitar que a vida édifícil. Às vezes, estamos num estado de negação sobre isso. Ou, erguendo as muralhas, dizemos apenas com palavras teóricas “sim, há todo este sofrimento” mas não aplicamos este fato a nós próprios nem o vemos como verdadeiro nas nossas próprias vidas. Estamos demasiadamente preocupados com as nossas tentativas de encontrar a felicidade. Discutiremos toda esta questão da felicidade e se é aceitável sermos felizes, enquanto praticantes budistas, hoje à tarde ou amanhã. Essa é outra questão muito delicada para os praticantes ocidentais, que temos muita

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dificuldade em reconciliar. Mas, vamos deixá-la por enquanto.

Muitas pessoas, particularmente as mulheres, mas não apenas elas, encontram-se em situações difíceis na vida, por exemplo, terem que tomar conta das crianças e cuidar da casa, além de terem também que trabalhar. Às vezes encontram muita dificuldade com os seus maridos ou os homens nas suas vidas, porque eles não as ajudam ou não se apercebem da dificuldade da situação. Frequentemente, os homens têm muita dificuldade em se relacionarem com a situação das mulheres, porque a forma típica masculina de responder é “diz-me, qual é o problema?” e depois ele quer resolvê-lo do mesmo modo como arranjar um cano entupido. Isso não é o que a mulher está realmente procurando nessa situação. Frequentemente, o que ela está procurando é apenas o reconhecimento da dificuldade e receber empatia, não no sentido de “Oh, coitadinha de você” mas empatia no sentido de suporte emocional e compreensão. Esta é uma verdadeira

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prática de generosidade, o primeiro paramita ou atitude de vasto alcançe.

Outra questão muito relevante é a do mestre indiano Shantideva, que disse, e eu estou a parafraseá-lo, “vocês não podem realmente contar com os seres comuns para nada, porque são infantis e imaturos e deixam-vos sempre desiludidos”. Obrigado, Shantideva. Isso é relevante em muitas situações domésticas, porque o marido frequentemente não consegue dar o tipo de apoio que a mulher realmente deseja. É relevante para a nossa discussão da Primeira Verdade Nobre porque a situação da mulher que cuida do lar e das crianças é apenas um exemplo de que “a vida é difícil”. A vida também é difícil para os homens, que sentem a responsabilidade de fazer tudo por forma a dar segurança financeira à familia e, de algum modo, de proteger tudo e todos. Isso também é difícil.

Quando falamos sobre esta Primeira Verdade Nobre, como poderemos nós falar sobre ela sem estarmos num estado de negação e de tal modo que pareça

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realmente relevante para nós? Penso que o que precisamos é de satisfazer, de algum modo, este ímpeto para conseguir alguma espécie de apoio emocional e compreensão de que a nossa vida é de fato difícil e que a vida em geral é difícil.

Voltando-nos para as Três Jóias em Busca de ApoioA pergunta é: para quem é que nos viramos para essa compreensão, empatia e apoio? Se nos voltarmos para seres comuns, eles têm os seus próprios problemas e é difícil obtermos suporte deles. Isto traz-nos ao tópico do refúgio. Eu não gosto muito de “refúgio” como vocábulo, porque penso que é muito passivo. Penso sempre nisto como um processo mais ativo de dar uma direção segura e positiva à nossa vida. Se nos quiséssemos dirigir a algo que realmente nos pudesse dar suporte e empatia, então como budistas, dentro do contexto do refúgio, viramo-nos para as três jóias – os Budas, seus ensinamentos e realizações – ou seja, o Dharma – e a comunidade Sangha.

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No ocidente, começámos a usar a palavra sangha de uma maneira totalmente não-budista, como equivalente de uma congregação de uma igreja. Usamo-la como se significasse o conjunto das outras pessoas que vão a um centro budista. Esse não é o significado original. Não obstante, embora os outros membros da nossa comunidade budista não sejam objetos de refúgio, no entanto podemos obter uma certa quantidade de companheirismo e o reconhecimento deles dentro deste contexto de que a vida é difícil – a MINHA vida é difícil, e não apenas a vida em geral é difícil.

E também, a Segunda, Terceira e Quarta Verdades Nobres são parecidas com a maneira tipicamente masculina de resolver coisas: “Vamos encontrar a causa e depois resolver o problema”, como desentupir um cano entupido. Mas precisamos de fazer isso dentro do contexto desta abordagem mais feminina, ou seja, do reconhecimento e da confirmação de que a vida é difícil. É difícil. Quer sejamos homens ou mulheres, precisamos de uma combinação de ambos. Não devemos pensar que o

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género determina um ponto de vista exclusivo.

Como é que obtemos esse apoio? Por um lado parece muito agradável voltarmo-nos para os outros membros da nossa comunidade budista. Mas frequentemente vemos que as pessoas da nossa comunidade não são muito maduras e que nós, consequentemente, tendemos a ser julgadores; tendemos a ser fechados uns com os outros. Em muitas das comunidades budistas ocidentais, as pessoas têm defesas muito fortes porque pensam que têm de apresentar uma imagem de santas e espiritualmente avançadas. Assim, frequentemente, reunimo-nos para assistir a uma palestra, para praticar qualquer espécie de ritual ou para meditarmos juntos. Depois, vamo-nos todos embora, pensando que sentarmo-nos juntos a meditar ou a recitar mantras é o que significa praticar em grupo; do mesmo modo que pensamos que isso é o que significa praticar individualmente. De fato, o verdadeiro foco para a prática budista em grupo é sermos amigáveis uns com os outros, sermos prestáveis uns aos outros,

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tentarmos compreender os outros, sermos abertos e amáveis. Se estivermos focalizando nisto como uma prática de grupo então, de fato, podemos obter uma espécie de apoio emocional uns dos outros relativamente ao fato de que a vida é difícil e que estamos todos a trabalhar em nós próprios dentro dos confins desta verdade. Contudo, nós somos seres comuns e às vezes é muito difícil darmos realmente esse nível de suporte a outra pessoa.

Se olharmos para o verdadeiro Refúgio de Sangha, isso refere-se aos seres arya, aqueles que tiveram a cognição não-conceptual da vacuidade. Isso faz muita diferença, não? Embora tais pessoas ainda não se tenham libertado a si próprias do sofrimento, elas estarão muito menos dominadas pelos seus egos, de modo que terão a capacidade de nos apoiar muito mais facilmente. Mas não temos muitos aryas à nossa volta, pois não?

Então, talvez possamo-nos virar para o refúgio do Buda para obtermos esse tipo de apoio. Nós sentimos “o Buda compreende-me; o Buda compreende as dificuldades da

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minha vida”. Isso dá-nos certamente algum conforto. É reminiscente da função no cristianismo que é demonstrada pela afirmação “Jesus ama-me”. Se Jesus me ama, então eu não posso ser tão horrível. Quanto mais acreditamos que Jesus realmente nos ama, mais reforçamos o nosso valor como seres humanos, o que nos dá então força para lidarmos com as nossas vidas. De certa forma, não é suficiente acreditarmos no fato de que o meu cão me ama!

Podemos transferir este tipo de atitude cristã para o Buda: “o Buda ama-me, o Buda compreende-me”. Isso dá-nos uma espécie de conforto e de apoio. Agora podemos dar mais uma pincelada na parte do quadro que estamos a pintar que é a parte do professor espiritual – um professor espiritual adequado e não qualquer um. Lembro-me muito bem de Serkong Rinpoche, o meu professor principal. Uma das suas qualidades proeminentes era a de que levava todos a sério. Não importava quão absurdos fossem os pedidos que as pessoas lhe fizessem – como um hippie muito estranho que veio da

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rua e disse: “ensina-me os seis Yogas de Naropa”; não importava quão estranha fosse essa pessoa, ele levava-a a sério. Ele dizia, “Oh, isso é maravilhoso! Você está mesmo interessado neste ensinamento maravilhoso e se você genuinamente quiser aprender, bem, terá de começar a preparar-se a si mesmo interiormente”. Depois ensinava-lhe algo que estava adequado ao seu nível. Isso funcionou muito bem com essa pessoa, porque se o professor os levasse a sério, então eles podiam começar também a levar-se a si próprios a sério.

Podemos ver que “o meu professor compreende-me e ama-me” funcionaria de uma maneira paralela àquela de “o Buda compreende-me e ama-me”. Mas nós nem sempre temos um contato pessoal próximo com o professor – e o mesmo passa-se com o Buda. E ás vezes os professores com quem temos contato não são idealmente qualificados. No entanto, olhamos para eles porque nos parece um pouco teórico e distante demais dizer que “o Buda compreende-me” ou que “o Buda me ama”.

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Assim, temos de nos voltar para outro nível de refúgio. Podemos tomar uma direção segura não só no Buda, Dharma e Sangha como uma espécie de inspiração que faz com que continuemos no caminho espiritual; podemos também tomar refúgio e direção segura no estágio resultante que nós próprios iremos alcançar ao seguir esse caminho. Isso significa que, no fim, temos de obter esse conforto e compreensão de nós mesmos, porque nós, todos nós, temos as capacidades e os potenciais completos dentro do contexto da natureza búdica, para alcançar esse estado de liberação e iluminação do Buda, Dharma e Sangha. Temos também todos os potenciais para dar essa compreensão e suporte não só a nós próprios como também aos outros. Penso que este é realmente um ponto muito importante. Achei-o muito importante no meu próprio desenvolvimento.

Shantideva disse – e minha mãe também – “se você quiser fazer algo bem feito, faça você mesmo. Se pedir a alguém que o faça, ninguém vai fazê-lo da maneira que você quer que seja feito”. O mesmo é verdade

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em relação ao desenvolvimento dessa compreensão, desse reconhecimento e conforto que necessitamos a fim de obtermos suporte face ao fato de que a vida é difícil. É mais seguro darmos esse suporte a nós mesmos através da compreensão de nós próprios, da própria aceitação da nossa situação da vida, e da nossa própria bondade para conosco relativamente a estas circunstâncias – sendo não-julgadores durante todo o processo.

Não Sendo Juizes para Nós PrópriosSe formos julgadores, estamos apenas a dar mais outra pincelada na pintura de “eu devia fazer isto e não devia fazer aquilo; eu quero ser bom e não quero ser mau”. Se tivermos essa atitude, então estamos na verdade olhando para nós dizendo, “a minha vida é difícil porque eu sou ‘mau’. Há algo de errado comigo”. Se olharmos para as nossas vidas de uma forma julgadora de “eu quer ser boa, eu não quero ser má” então julgamo-nos em termos da nossa vida: “A minha vida é difícil. Devo estar fazendo algo de errado. Sou mau”. Em vez de darmos apoio

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emocional a nós próprios, acabamos por nos repreender e por apontar o dedo a nós próprios de uma maneira julgadora. Isso não nos dá apoio nenhum; isso só nos faz sentir pior.

No entanto, darmos simpatia a nós próprios não significa tratarmo-nos como uns bebês e depois não fazermos nada sobre a nossa situação. Obviamente, quando uma mulher pretende simpatia e compreensão do seu marido, não é só isso que ela quer. Também seria bom se ele lavasse os pratos! Do mesmo modo, podemos pretender que alguém nos faça festinhas na cabeça como a um cão, mas também queremos ajuda genuína. A mesma coisa é verdade em relação a virarmo-nos para nós próprios. Por uma lado, precisamos de ser compreensivos e afetuosos conosco, mas depois também temos de desentupir o cano entupido e de fazer algo para satisfazer as nossas necessidades mais profundas.

Tudo isto é muito complexo. É uma matéria muito delicada. Pensem no exemplo das pessoas que não tiveram infâncias muito

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agradáveis nem pais muito compreensivos. Frequentemente, tais pessoas estão procurando substitutos para os pais, quer seja uma mãe ou um pai. Entram em relacionamentos e então, sem estarem conscientes disso, projetam a mãe ou o pai na outra pessoa e exigem que a outra pessoa lhes dê o tipo de compreensão que não tiveram quando crianças.

Como lidamos com alguém com este tipo de problema? Estes relacionamentos são muito neuróticos. Podemos dizer: “tente ver o padrão não-consciente do que você está fazendo; veja como você é estúpido, veja quantos problemas está causando a você mesmo e deixe de o fazer!” É como quando um cão suja o assoalho e algumas pessoas põem o nariz do cão na sujeira e dizem: “veja a porcaria que você fêz! Deixe de fazer isso!”. Mas isso não resulta. Talvez resulte com o cão, mas não irá resultar conosco, porque isso apenas reforça o sentimento de que somos uma má pessoa e gera sentimentos de culpa e de ânsia, “eu quero ser uma boa menina; quero ser um bom menino”. Todas estas coisas

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julgadoras andam à volta desta idéia de um EU sólido.

Reconhecendo os Nossos DireitosSe olharmos para métodos psicológicos um pouco mais sofisticados, o que seria muito útil era dizermos a essas pessoas que reconhecemos que elas tinham o direito de ter tido pais afetuosos e compreensivos. Todos temos direito a isso e é pena que elas não o tenham tido. O psicólogo diz que reconhece isso de modo a que as próprias pessoas possam também elas reconhecer e aceitar isso. O paralelo seria reconhecermos, a nível interior, que a vida é difícil e, em particular, que a nossa vida é difícil e que nós temos o direito de ser felizes. Temos o direito de tornarmo-nos num Buda, porque possuímos a natureza búdica.

Com base nesse reconhecimento, o que geralmente descobrimos é que a necessidade de termos tido bons pais no passado transforma-se. Essa necessidade é satisfeita ao sermos um bom pai ou uma boa mãe de alguém. Descobri, através da minha própria experiência, que isso dá

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realmente resultado. Reconhecendo que a nossa vida é difícil e, num certo sentido, dando a nós próprios apoio emocional através desse reconhecimento, então o que irá ser realmente mais terapêutico em todo este processo de lidarmos com as dificuldades das nossas vidas é darmos esse reconhecimento e compreensão aos outros. Quanto mais dermos aos outros de uma forma muito sincera, mais seremos capazes de lidar com as dificuldades das nossas próprias vidas e, de fato, apercebemo-nos que essas dificuldades tornam-se muito menos intensas. Isso é muito diferente de sermos um trabalhador social compulsivamente benfeitor que está sempre tentando fazer coisas para os outros sem nunca enfrentar a sua própria vida. Geralmente a sua vida pessoal é uma confusão. Tudo isto está relacionado com o modo como, no fim, tomamos refúgio em nós próprios.

Passemos uns momentos admitindo a nós próprios a dificuldade das nossas vidas – sem fazermos julgamentos de valor acerca delas. Tentem simplesmente reconhecê-la. Obviamente que reconhecê-la significa

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enfrentá-la. Não com as muralhas erguidas. Não com qualquer tipo de prática estranha sobre a qual dizemos “isto é o meu budismo”. Isso significa também fazê-lo de tal forma que não venhamos a sentir pena de nós próprios. Assim como a mãe exausta não quer que o marido diga “Oh, coitadinha de você…” e sinta pena dela, nós também não queremos ter essa atitude para conosco.

Este tipo de reconhecimento de que estamos a falar é algo muito delicado. É como “estarmos presentes” – se conseguirmos imaginar esta maneira estranha de conceptualizar – estarmos simplesmente “presentes” conosco. Se estivermos muito doentes, não queremos que alguém venha e diga “Oh, coitadinho de você” e nos trate desse modo. O que realmente ajudaria seria alguém que não ficasse assustado com a nossa doença e que tivesse a capacidade de se sentar ao nosso lado, de nos dar a mão e de nos fazer companhia. Embora a sua conceptualização seja completamente oposta à compreensão da vacuidade, ao nível emocional o que precisamos de fazer é darmo-nos a nossa

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própria mão, sem receio e sem sentirmos que temos de dramatizar a nossa simpatia ou os nossos sentimentos de auto-piedade. Tentemos fazê-lo.

[pausa]

Alimentando o DemónioPodemos achar difícil fazermos esta prática de um modo abstrato como acabámos de fazer e, assim, podemos fazer esta prática na forma de “alimentar o demónio”. Podemos examinar os problemas diferentes que estamos a ter como uma espécie de demónio dentro de nós. Podemos então começar a fazer uma ideia da aparência deste demónio e das suas qualidades – este demónio que quer, por exemplo, simpatia: “A minha vida é tão difícil. Tenho tantas responsabilidades. Tenho tantas coisas por fazer. Não tenho tempo que chegue, não tenho energia, não tenho suporte nenhum…”

Primeiro, perguntamo-nos qual é a aparência desse demónio? Quando tivermos uma imagem da aparência desse demónio, mandamos esse demónio para fora de nós e mandamos-lhe sentar-se

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numa almofada à nossa frente. Depois, perguntamos a esse demónio: “o que é que você quer?” Podemos sentarmo-nos na almofada e responder a essa pergunta ou fazer isso apenas na nossa imaginação: “Quero compreensão. Quero apoio. Quero reconhecimento das dificuldades que tenho na vida”. Então, da posição donde estamos sentados, imaginamos que vamos alimentar o demónio. Damos ao demónio o apoio, a compreensão, o reconhecimento ausente de juízos de valor – damos-lhe o que quer que ele queira.

Ao fazê-lo, descobrimos que é um método muito mais eficaz de darmos apoio a nós próprios do que simplesmente sentarmo-nos a meditar, tentando fazê-lo de um modo abstrato. Alimentar o demónio também é muito útil no sentido em que começamos a treinar a darmos essa compreensão a outras pessoas também. Lentamente, começamos a aperceber que dar compreensão e ajuda aos outros e ser uma boa mãe para alguém também é um processo terapêutico para nós. Funciona da mesma maneira. Assim como darmos compreensão ao demónio é terapêutico

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para nós, assim tambem, darmos apoio a outra pessoa é igualmente terapêutico para nós.

Vamos, apenas por alguns momentos, dar essa compreensão e reconhecimento ao demónio – que a vida também é díficil para o demónio e que isso é o que me está a roer por dentro. Façam este processo, começando do início, vendo essa necessidade dentro de nós, e depois exteriorizando e alimentando-a. Dêem ao demónio dentro de vocês o que ele precise e o que ele queira.

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Agora, olhem para algumas das pessoas nas vossas vidas e dêem-lhes essa mesma compreensão e aceitação da dificuldade da vida delas. Se estiverem doentes ou velhas ou tiverem demasiado trabalho ou o que quer que seja, reconheçam isso, aceitem isso, e dêem-lhes apoio. Isto inclui as pessoas que têm dificuldades emocionais – alguém que esteja sempre irritado ou alguém que esteja sempre agindo horrivelmente com as pessoas. Reconheçam que a sua vida também é

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difícil. Alimentem essa pessoa, assim como alimentaram o demónio. Imaginem que temos uma fonte infinita daquilo que a outra pessoa quer, assim como temos uma fonte infinita daquilo que o demónio quer.

Deixando simplesmente essa fonte infinita de compreensão e aceitação passar através de nós para a outra pessoa, podemos experienciar a nossa generosidade de uma maneira não-perturbadora. Se ficarmos perturbados com isso, sentimos “Oh, eu tenho que fazer algo sobre esta situação difícil, mas na verdade não posso fazer nada. Não tenho poder nenhum; não tenho esperança. Toda esta situação é tão horrível!”; e então ficamos emocionalmente muito perturbados com tudo isso. Pelo contrário, deixamos simplesmente a generosidade percorrer através de nós como se fosse uma corrente infinita de água refrescante.

Isso é um pouco o que é simbolizado quando imaginamos que os néctares dos budas fluem para nós nessas visualizações. É um tipo de coisa semelhante mas a um nível mais simples. Podemos emitir essa

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corrente para fora tanto quanto for preciso. Não há nenhum problema da corrente secar; ela simplesmente flui em direção aos outros de uma maneira muito refrescante e inspiradora. É sem esforço; ela simplesmente flui. Como é que fazemos com que ela flua? Derrubamos as muralhas! Não há nada a recear nem nada a perder.

Sessão 3: O Não-Apercebimento da RealidadeA Segunda Verdade Nobre – Verdadeiras Causas do SofrimentoAssim como examinámos a Primeira Verdade Nobre, com aceitação e de uma maneira mais pessoal, precisamos também de examinar as outras três Verdades Nobres da mesma forma, de modo a que nossa prática budista nos toque pessoalmente de uma maneira muito mais significativa e transformadora.

Depois de termos reconhecido as dificuldades das nossas vidas e, em determinado sentido, dado um certo apoio

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emocional a nós próprios, vamos examinar a Segunda Verdade Nobre, as causas do sofrimento. Precisamos de saber qual a causa do entupimento do cano que não está a funcionar, por forma a podermos repará-lo. É muito importante, quando procuramos as causas dos nossos problemas, fazê-lo de uma maneira pessoal, do ponto de vista do caminho do meio. Ou seja, não queremos pôr a culpa apenas em coisas externas: “eu sou assim porque a minha mãe fez-me isto e aquilo quando eu tinha três anos de idade e a sociedade fez isto e a economia fez aquilo”. Por outro lado, não queremos negar esses fatores totalmente, dizendo “é tudo por minha causa” e colocando toda a culpa sobre nós de uma maneira pesada.

Quando falamos sobre a nossa própria ignorância como a causa mais profunda dos nossos sofrimentos e problemas, então é muito fácil distorcer essa verdade, pensando: “eu sou estúpido; sou mau; não sou nada bom. Por isso eu sou culpado”. Tudo isto vem porque pensamos em termos de um EU sólido que é sempre um estúpido que faz tudo errado – o mau. Eu prefiro usar “nós não estamos cientes da

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realidade”, em vez de “nós somos ignorantes”. Isto talvez nos possa ajudar a reduzir o tom julgador da Segunda Verdade Nobre, as causas verdadeiras das nossas dificuldades na vida.

Para aprofundarmos mais e mais, de uma forma mais saudável, a nossa visão das verdadeiras causas das dificuldades das nossas vidas, temos de combinar a Segunda Verdade Nobre com a compreensão da vacuidade. Não há nenhum EU sólido cá dentro, que é o estúpido que criou esta confusão – o EU sólido que estragou tudo e que é realmente um idiota. Geralmente usamos palavras muito mais fortes nas nossas mentes.

Embora possamos descobrir a fonte das dificuldades das nossas vidas na nossa própria falta de apercebimento, isso não nega o surgimento dependente. Nenhum dos nossos problemas foi causado por uma só coisa – como no exemplo do balde que não fica cheio nem pela primeira nem pela última gota de água. Do mesmo modo, nenhum dos problemas da nossa vida é causado por uma só coisa, com uma linha

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grande e sólida à sua volta, e nada mais afetou a situação. Não é assim. Tudo surge dependentemente de muitos fatores; por isso há uma combinação da nossa confusão e falta de compreensão juntamente com a sociedade e a economia e o que a minha mãe fez. E todas essas gotas juntas encheram o balde da nossa vida difícil.

Quando dizemos que a causa raiz do sofrimento é falta de apercebimento, o que nos estamos a referir é que o não-apercebimento – o não entendimento da realidade ou o seu incorreto entendimento – é a causa mais profunda do nosso sofrimento e, se quisermos mudar a situação, é disto que realmente temos de nos livrar porque as outras causas e condições ou vêm desse não-apercebimento ou são algo que é impossível mudarmos. Não podemos mudar algo que as nossas mães fizeram quando tínhamos três anos de idade. Isso já passou, já acabou; isso é história. É muito importante trabalharmos com a Segunda Verdade Nobre deste modo não-julgador, aplicando os ensinamentos da vacuidade e do surgimento dependente.

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Vocês entendem a ideia geral? O processo é muito semelhante àquele que já percorremos em relação à Primeira Verdade Nobre. Olhamos cá para dentro e vemos que “certo, estou confuso e não sei o que estou fazendo na vida”, mas tentamos reconhecer isto sem nos auto-criticarmos. É uma coisa delicada. É como se nos tivessemos cortado ao descascar vegetais; podemos aceitar que nos cortámos sem fazermos juizos de valor acerca disso: “Oh, sou tão estúpido, sou tão mau…” Se calhar não fomos cuidadosos ou o que quer que seja, mas aconteceu. Essas coisas acontecem. Nós simplesmente aceitamos isso. Além disso, não nos cortámos só por não termos prestado atenção. Isso aconteceu dependentemente também da circunstância da faca estar muito afiada. Se a faca não estivesse tão afiada, não nos teríamos cortado. Aconteceu também dependente do fato de que estávamos com fome e temos um corpo humano que tem de ser alimentado diariamente. Se não tivéssemos isso, repito, o acidente não teria acontecido.

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O mesmo é verdade em relação a todos os problemas da nossa vida. Eles surgem de uma combinação de todas estas coisas, como no exemplo do fato de que nós não somos maus lá porque nos cortámos. Uma vez mais, podemos fazer isto usando o método de alimentar o demónio. Quando formos capazes de fortalecer este aspecto não-julgador para conosco sobre as causas dos problemas da nossa vida, então poderemos também fazer isso com os outros. Vamos tentá-lo.

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A Terceira Verdade Nobre – O Verdadeiro Parar do SofrimentoCom a Terceira Verdade Nobre, estamos a lidar com a possibilidade de acabarmos verdadeiramente com os nossos problemas. Isso é o que a palavra cessação significa – nós podemos acabar com os nossos problemas, nós podemos livrar-nos deles. Em inglês, a palavra cessaçãonão tem muito significado para a grande maioria das pessoas. É uma palavra demasiadamente grande e raramente usada. Não é uma palavra comum, de modo

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que a maioria de nós não sabe o que ela significa. A minha mãe certamente não saberia o significado dessa palavra, nem nunca a usou durante a sua vida. Assim, vamos chamar a Terceira Verdade Nobre o “verdadeiro parar”.

A questão aqui não é só de termos uma paragem dos nossos problemas, mas também das causas dos nossos problemas. E não estamos apenas a falar sobre um problema específico, porque obviamente todos os problemas específicos irão acabar. Quando cozinhamos uma refeição e a comemos, o problema específico da nossa fome naquela altura irá acabar. No entanto, um problema maior é o de voltarmos a ficar com fome outra vez. Por conseguinte, queremos obter uma paragem do problema recorrente e das causas recorrentes desse problema. A causa da minha fome esta noite irá, é claro, desaparecer quando eu jantar. Contudo, a minha fome não irá acabar de uma vez por todas quando, hoje à noite, eu tiver acabado de jantar. Não estamos a falar àcerca da eliminação da causa de um problema particular, como o de estarmos

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com fome neste momento. Estamos a falar sobre a eliminação do contínuo surgimento da causa. Essa é aqui a questão principal.

A questão é: “acredito que é realmente possível livrar-me do fluxo incontrolavelmente recorrente da continuidade da causa dos meus problemas? E, se acredito que isso é possível, como é que realmente me livro dele?” Ou seja, é realmente possível obter a liberação e alcançar a iluminação?

Estas são questões muito difíceis. Se não estivermos convencidos, pelo menos a um certo nível, de que é possível obter para sempre a liberação dos nossos problemas, então o que é que estamos a fazer no budismo? Estamos a ter por finalidade o quê? Estamos apenas objetivando para a realização de uma fantasia que não acreditamos ser possível de alcançar? Se for esse o caso, então, transformarmo-nos num Buda e tornarmo-nos liberados não passa de uma simples fantasia de uma criança. E estaremos a enganar-nos a nós próprios, desperdiçando o nosso tempo ao tentar alcançar algo que não acreditamos

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ser possível alcançar. Esta é uma questão séria.

Infelizmente, a linha de raciocínio para compreendermos como é possível obter a liberação e a iluminação é muito difícil. Está relacionada com a apresentação da filosofia Prasangika de que uma verdadeira paragem é equivalente ao vazio. É realmente muito difícil de compreender. Por conseguinte, o que é que isso significa para nós, agora? O que isso significa, no contexto deste curso de fim de semana, é que não vamos compreender imediatamente como é que a liberação é possível. Vai ser um processo longo; mas, a não ser que compreendamos que é possível, não iremos ficar convencidos disso. Se não estivermos convencidos disso, não iremos senti-lo, como já discutimos ontem – através do processo de como aceitamos algo depois de o termos compreendido. O que isso significa é que temos de temporariamente aceitar este ponto com base na fé – que a liberação e a iluminação são possíveis. Esta é uma forma temporária de trabalharmos com isto.

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Então isto é “fé cega”? “Eu acredito! Aleluia!?” Como é que acreditamos nisto? Algumas pessoas podem responder: “eu posso acreditar nisso porque o meu guru é um Buda. Eu vejo nele a iluminação, por isso é possível”. Isso não é muito estável para a maioria das pessoas porque podemos ver várias falhas em muitos professores espirituais muitíssimo avançados. Às vezes, erram. Temos de diferenciar entre – e mais adiante falaremos disso – toda a discussão de “o guru é um Buda do seu próprio lado” ou “será que ser o guru um Buda é algo que surge dependentemente do relacionamento entre o estudante e o professor?” Obviamente é o segundo caso. As coisas surgem dependentemente de um ponto de vista. Ser-se um Buda não é um absoluto, estabelecido do lado do próprio professor, como um fato a ser levado literalmente. O que acontece na prática é que descobrimos que muitos destes professores que nós pensávamos que eram tão maravilhosos cometem erros. E depois ficamos decepcionados e desiludidos e podemos

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começar a pensar que a iluminação não é possível.

Aplicando a Abordagem dos Estágios Graduais do Lam-rim à Crença de que a Liberação é PossívelPodemos usar a estrutura básica do Lam-rim, os estágios graduais do caminho, para nos ajudar a lidar com este dilema de acreditar que a liberação e a iluminação são possíveis. A versão do Lam-rim de Atisha apresenta três níveis de motivação – três alvos, três objetivos. O mais elevado é a iluminação e o médio é a liberação. Também há um nível inicial de motivação, que é renascer-se num dos melhores estados de renascimento. Se quisermos colocar esse alvo inicial numa linguagem um pouco mais simples sem termos de lidar diretamente com o renascimento, basicamente é a motivação de melhorar o samsara – de melhorar a nossa existência samsárica. Antes de podermos pensar em melhorar as nossas vidas futuras, precisamos de primeiro pensar em melhorar esta vida.

[Ver: “ Dharma-Lite” contra o ”Dharma a sério”.]

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Aqui, o que é importante é sermos honestos conosco e não sermos espiritualmente pretensiosos. Na verdade, eu penso que, entre os praticantes budistas, muito poucas pessoas podem sinceramente dizer que têm como objetivo a liberação e a iluminação. Se realmente tivermos a liberação como objetivo, isso significaria que teríamos uma renúncia perfeita. A maioria das pessoas nem sequer quer ouvir falar sobre a renúncia, muito menos obtê-la!

O que estamos a renunciar não é o chocolate ou a televisão. O que estamos a renunciar é a causa dos nossos problemas que basicamente são, ao nível inicial, os traços negativos da nossa personalidade e o comportamento destrutivo que deles emerge. É isso o que precisamos de abandonar: a nossa raiva, o nosso egoísmo, a nossa avidez, as nossas defesas. A maioria de nós não está disposta a abandonar nada disto. Queremos adicionar mais coisas no topo das nossas vidas – felicidade e todas essas outras coisas agradáveis – mas sem termos de abrir mão de coisa alguma. Assim, sem a renúncia,

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quando dizemos “estou apontando para a iluminação, estou apontando para a liberação” não estamos a ser muito sinceros.

É aqui que temos mais uma pincelada a dar nesta questão do “dever”. O que a maioria de nós pensa é: “Eu DEVIA ter como objetivo a iluminação porque, se não o fizer, então sou um mau praticante e o meu guru não vai gostar de mim”. Isso é um pouco infantil, não é? O que precisamos de tentar compreender é que o escopo inicial, o primeiro nível de motivação de termos como objetivo melhorar o nosso samsara, é perfeitamente legítimo. É aceitável estarmos no primeiro nível. De fato, estarmos no primeiro nível é uma grande realização. A maioria das pessoas nem se preocupa em tentar melhorar esta vida, muito menos vidas futuras. E, aqui, não estamos a falar em melhorar a vida economicamente, mas em termos do nosso desenvolvimento interno. A maioria das pessoas deste mundo não está interessada nisso. Apontar para isso é aceitável e, nessa base, podemos começar a prática de Dharma e podemos tentar compreender,

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num longo período de tempo, que é possível obtermos a liberação e a iluminação, porque pode ser difícil tornarmo-nos realmente convencidos disso.

Ou seja, é mais honesto pensar: “eu realmente não posso dizer que tenho como objetivo a liberação e a iluminação neste momento, porque não estou realmente convencido de que é possível alcançá-las e não quero trabalhar apenas para um conto de fadas. Por conseguinte, o meu objetivo é tentar compreender que isso é possível, porque então poderei trabalhar sinceramente para isso. Entretanto, vou trabalhar ao nível de tentar melhorar a minha situação samsárica, a situação difícil da minha vida e, a respeito disto, tenho alguma confiança de que é possível pelo menos enfraquecer as causas dos meus problemas e eliminar determinadas coisas que são um pouco mais fáceis do que eliminar a minha confusão”. Esta forma de pensar permite-nos realmente trabalhar com um professor espiritual de uma maneira que penso ser mais saudável.

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Agora, não é importante que o professor seja ou não realmente liberado ou iluminado. Essa já não é a questão vital. Em vez disso, a questão é que essa pessoa é muito mais desenvolvida do que nós, alguém que, na maior parte das vezes, realmente diminuiu a sua confusão, raiva e assim por diante. Precisamos de pensar: “mesmo se às vezes essa pessoa possa errar e agir de um modo emocionalmente um pouco perturbado, isso é aceitável. Mais tarde, quando eu estiver mais avançado no caminho, lidarei por forma a me relacionar com isso em termos de `o meu professor está tentando ensinar-me algo' e tais coisas. Vou lidar com essa questão mais tarde. Agora, neste nível, é suficiente que eu possa reconhecer que ele é um ser muito desenvolvido. Se o meu professor é perfeito ou não, isso na verdade não me importa agora. Ele pode inspirar-me a progredir pelo seu modo de ser”.

Embora isto não seja explicado deste modo nos ensinamentos budistas, penso que, como pessoas ocidentais, é muito útil usarmos isto como um estágio no nosso desenvolvimento espiritual, porque, como

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ocidentais, muito frequentemente vemos as coisas em termos de preto e branco. Ou seja, ou o professor é um Buda perfeito ou pensamos: “nem pensar no caminho espiritual, porque eu o vi cometer um erro”. Para evitarmos esse extremo, e também o extremo de dizermos que estamos trabalhando para a liberação e a iluminação quando na verdade não estamos, penso que esta etapa intermediária é muito útil.

Descobri, na minha própria prática pessoal que não importa se os meus professores são realmente Budas ou não, ou se têm todas as qualidades do Buda ou não. Podem andar através de paredes, voar pelo ar e multiplicar-se em dez mil milhões de formas? Eu realmente não me importo. Não me faz diferença nenhuma. Mas o fato de que são muito mais desenvolvidos do que eu, pelo que posso observar e com o que me posso relacionar, como eles lidam com as pessoas, como lidam com a vida e assim por diante, isso mostra-me que eles são muito mais evoluídos do que eu. Isso dá-me a convicção de que é possível conseguir o mesmo.

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Este é um nível por onde podemos começar a trabalhar. Penso que ele é muito mais acessível. Convencermo-nos de que este nível de travar as causas dos nossos problemas é possível – mesmo que não seja a verdadeira paragem para se alcançar a liberação – é suficiente para nos permitir funcionar como uma pessoa dentro do escopo inicial de motivação. Este é um nível perfeitamente legítimo de estarmos na nossa prática espiritual e um nível necessário no início. Ou seja, quando vemos um professor de alto nível, começamos a ficar convencidos de que é possível conseguirmos pelo menos algum nível de paragem das causas dos problemas, mesmo que não seja uma verdadeira cessação com a qual alcançamos a liberação. Termos convicção na possibilidade deste nível de paragem das causas dos problemas dá-nos a confiança de sermos capazes de funcionar sinceramente como uma pessoa dentro deste nível de motivação inicial. Este é um estágio muito necessário. Não só é aceitável, mas é um estágio necessário que

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precisamos de atravessar a fim de termos um desenvolvimento espiritual estável.

Então, no início, o que precisamos é de evitar saltar diretamente para o nível mais elevado de motivação, para não ficarmos desiludidos e cairmos para o chão. Este é um padrão ocidental muito típico do encontro de um estudante com o budismo. Evitamos essa situação não sendo pretensiosos e trabalhando primeiro para melhorar o nosso samsara que, apesar de tudo, é geralmente o motivo por que as pessoas sinceras ingressam no budismo – nós não estamos apenas praticando o budismo como uma espécie de esporte. Este é o primeiro nível de participação sincera no budismo.

Então, chegamos à Quarta Verdade Nobre: a fim de causar esta auto-transformação, nós próprios temos de fazer algo. Precisamos de ser ativos; ela não vai simplesmente acontecer de repente, sem causa alguma, sem nenhum esforço. Na verdade, temos de nos transformar a nós próprios.

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Sessão 4: As Implicações de se Tomar RefúgioRefúgio como Orientação Básica das Nossas VidasTemos falado sobre vários problemas que às vezes enfrentamos no budismo, em particular sobre a dificuldade que frequentemente muitos de nós temos em realmente aplicar os ensinamentos budistas às nossas vidas. Outra area que é importante examinar, a fim de lidarmos com este problema, é o tópico do refúgio. Há muitas coisas nos estágios iniciais do caminho budista que muitas vezes trivializamos ou evitamos examinar. Para muitas pessoas, o refúgio é uma delas. Isso é muito triste porque, quando o refúgio se torna algo trivial e sem sentido para nós, privamo-nos do alicerce de toda a prática budista.

Tomar refúgio não é apenas a repetição de uma fórmula e cortar-se um bocadinho de cabelo, como algumas tradições fazem, e talvez receber-se um nome budista – isso não é a essência do refúgio. Ao invés, é

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uma mudança fundamental de atitude para toda a vida. É um estado mental com que ativamente damos uma direção segura à nossa vida, no sentido de trabalharmos em nós próprios – tentando desenvolvermo-nos para tornar o nosso samsara um pouco melhor, como já discutimos, ou para alcançar a liberação, ou para alcançar a iluminação de modo a podermos ajudar os outros tão inteiramente quanto possível. Não é que, com o refúgio, nos estejamos a comprometer a ser leais a uma espécie de culto. E por culto, eu não quero apenas dizer um culto organizado; poderia também ser um culto da personalidade de algum professor. Pelo contrário, a tomada de refúgio envolve uma nova orientação que damos às nossas vidas de modo que, quando essa orientação se torna estável em nós, sabemos o que estamos a fazer com as nossas vidas, para onde as nossas vidas estão a ir e qual é a finalidade das nossas vidas. É crescer.

Quando temos uma ideia de para onde estamos a ir na vida – do que estamos fazendo na vida – todos os ensinamentos ficam então baseados neste alicerce.

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Especificamente, olhamos para os ensinamentos e o exemplo do Buda para dar-nos essa direção segura e positiva. Não é necessário dar-vos agora um longo ensinamento sobre o refúgio, mas penso que a atitude que desenvolvemos em relação aos ensinamentos quando temos essa direção segura do refúgio nas nossas vidas é muito útil. O que isso significa é que vemos todos os ensinamentos como sendo relevantes à diminuição ou eliminação do sofrimento e a sermos capazes de ajudar os outros. Levamos os ensinamentos muito seriamente e temos confiança que o Buda os ensinou, ou mais tarde um discípulo os ensinou, unicamente com a finalidade de nos ajudar a eliminar o sofrimento e a tornarmo-nos mais prestáveis aos outros. Essa é a finalidade de todos os ensinamentos. Tentamos compreender o que em cada ensinamento nos ajuda a atingir esses objetivos.

Examinando a Finalidade Mais Profunda da Prática RitualVamos usar o exemplo destes vários rituais a que geralmente chamamos a nossa prática budista. Todas estas práticas com

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deidades – os rituais, pujas e assim por diante – são ensinamentos do Buda. Isso significa que nos devem ajudar a eliminar problemas e a ajudar os outros. Como fazem isso? Ter-se refúgio significa que levamos esses rituais a sério e que realmente os analisamos para tentarmos compreender como é que esses rituais atingem esses objetivos. E depois, então, aplicamo-los para essa finalidade. Tentamos abordar essas práticas rituais dessa maneira.

A resposta de como eles nos ajudam a atingir a liberação e a iluminação pode não ser assim tão óbvia. Contudo, isso apenas significa que é um desafio. Se não tivermos esta atitude de dar a direção segura do refúgio às nossas vidas, então todas estas várias práticas rituais serão irrelevantes para a nossa vida – não nos tocam realmente e assim têm pouco ou nenhum efeito. De fato, ter-se esse tipo de atitude em relação a estas práticas, pensando, “são apenas uma espécie de rituais orientais exóticos talvez divertidos de fazer, quando estamos bem dispostos, mas que em outros momentos são um pouco impositivos e de

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aborrecimento”; quando temos essa atitude, nada vem deles. Não têm nenhum efeito positivo. O que isso indica, subjacente a esta falta de qualquer efeito positivo, é que nós, na verdade, não estamos a levar os ensinamentos muito a sério. Na verdade, não temos essa atitude de abertura e de respeito pelo Buda ou pelo fato que ele ensinou práticas que nos vão ser úteis. Ele não ensinou apenas coisas que são divertidas ou incrivelmente enfadonhas, que temos de as fazer porque pensamos que devemos, para evitarmos sentimentos de culpa ou a fim de sermos “bons”.

Estas questões persistem não só nestes tipos de práticas rituais, como em tudo nos ensinamentos. Ouvimos várias coisas muito estranhas nos ensinamentos budistas. Às vezes a estranheza é causada por problemas de tradução. Há muitos exemplos disso onde a palavra, que usamos para traduzir para línguas ocidentais, apenas nos dá uma interpretação totalmente incorreta. Os meus exemplos favoritos são: virtude e não-virtude, mérito, pecado, etc. Tudo isso é terminologia

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cristã; não é budista. Tudo isso anda à volta da ideia do DEVER: “Eu devo fazer isto e não devo fazer aquilo; se fizer isto, sou bom e se não fizer aquilo, sou mau”. Tudo isto está relacionado com um contexto julgador, com Deus como juiz. Esse não é, de modo nenhum, o contexto budista.

Quando temos confusão e dificuldades com os ensinamentos, o que precisamos verificar em primeiro lugar é um possível problema vindo da tradução. Esta é uma etapa muito necessária. Mas como já disse, há muitas coisas estranhas nos ensinamentos, como ensinamentos sobre os reinos do inferno, por exemplo, ou sobre o monte Meru e esses tipos de coisas. Podemos encará-las e dizer: “isto é estúpido e eu não gosto disto”; ou podemos tentar compreender: “qual é a intenção por trás disso que os torna num mecanismo que nos ajuda a obter um renascimento melhor, a liberação ou a iluminação?”. Se tivéssemos uma direção firme de refúgio nas nossas vidas, tentaríamos compreender todos estes ensinamentos e não apenas ignorá-los.

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Ensinando EstóriasEu recordo os ensinamentos sobre o carma. Serkong Rinpoche costumava ensinar o carma com exemplos clássicos, tais como o exemplo da pessoa que tinha um elefante que defecava ouro. Sempre que tentava livrar-se desse elefante, porque atraía multidões enormes e grande agitação, nunca conseguia livrar-se dele. O elefante voltava sempre. Como pessoas ocidentais, ouvimos uma estória destas e dizemos: “Ora! Isso é ridículo!” Sentimo-nos também um pouco vergonhosos. Não gostaríamos de mostrar aos nossos pais um livro sobre o que estamos a estudar, contendo coisas deste tipo. Eles poderiam pensar que nós estamos a ficar malucos. Quando disse isso a Serkong Rinpoche, a sua resposta foi muito interessante. Disse ele: “se o Buda quisesse ter feito uma boa estória, ele teria feito uma estória melhor do que essa”.

Podemos compreender de duas maneiras o que disse Rinpoche. Uma é a de interpretar a estória como sendo totalmente literal, e tenho a certeza que há muitas pessoas das culturas asiáticas tradicionais que interpretam estas estórias literalmente.

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Contudo, não acho que esse seja o único significado que podemos derivar da resposta de Serkong Rinpoche. A outra maneira de o entender é que a estória não foi contada apenas para entretenimento, uma vez que o Buda poderia entreter-nos muito melhor do que isso. Mas a estória pretende dar-nos uma lição. No ocidente, também temos uma tradição oral como essa; há uns tipos de estórias chamadas fábulas, lendas, mitos e contos de fadas que são contadas para todas as idades. Há uma lição a aprender em cada estória, geralmente sobre causa e efeito, e este é um método de ensino muito válido e eficaz. Não precisamos de ensinar apenas em termos de simples listas. Podemos também ensinar através deste tipo de estórias.

Se o nosso refúgio for muito forte, então, quando lermos todas estas coisas fantásticas nos textos, como “há milhões de Budas em milhões de campos búdicos e em cada poro minúsculo de cada Buda há milhões de outros campos búdicos”, tentamos compreender qual é o objetivo. “Sem dúvida que é o de me ajudar a mim e não apenas o de ajudar alguma pessoa

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estúpida noutro país que acreditaria nessas coisas. O objetivo é ajudar-me a superar os problemas da minha vida, para ajudar-me a ser mais prestável aos outros. Como é que esta estória me pode ajudar a conseguir isso? Qual é a lição a ser aprendida?” Com esta atitude podemos começar a nos relacionar pessoalmente com todos os ensinamentos muito mais facilmente.

Unindo as Peças do Quebra-CabeçaÉ muito importante compreender o método de ensino budista básico. O método básico dá ao estudante peças do puzzle. Depois, a responsibilidade de as organisar é do estudante. E um professor hábil não nos dá as peças todas do puzzle de uma vez. Nós temos de pedir mais. Se não pedirmos mais, isso significa que não estamos realmente interessados, que não estamos realmente motivados. Assim, se o professor nos tivesse dado mais, teria sido um desperdício.

A apresentação dos ensinamentos dessa maneira ajuda o estudante a desenvolver o entusiasmo, a paciência, o trabalho duro – todas essas coisas que permitem os

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ensinamentos criar raizes em nós. O processo budista de ensinar não é o de simplesmente fazer uma cópia de um documento num computador e de transferí-la para uma disquete vazia. Não é simplesmente transferir informação de um professor para um discípulo. Todo o processo de ensino pretende desenvolver as nossas personalidades enquanto estudantes.

Precisamos, então, de abordar os ensinamentos dessa maneira e de não sermos impacientes, lamentando-nos “você não explicou tudo” ou “não está claro”, e assim por diante. Precisamos de recolher as várias peças do puzzle e de trabalhar com elas – tentando uni-las. Entender o que elas realmente significam e como estão relacionadas com a vida . O refúgio ajuda-nos a estarmos abertos ao desenvolvimento dessa atitude sobre o processo de aprendizagem. Este é um dos objetivos do refúgio.

Fontes Provisórias e Definitivas de Refúgio

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A outra questão sobre o refúgio é: para aonde nos viramos quando a vida é difícil e as coisas nos estão a correr mal? Algumas pessoas, quando acontece qualquer coisa desagradável ou quando começam a sentirem-se nervosas, vão ao frigorífico. Ou voltam-se para o álcool ou para as drogas, para o sexo ou para os esportes. Há tantas coisas onde as pessoas tomam refúgio. É muito interessante examinarmos este aspecto do refúgio em nós. Quando as coisas estão bem difíceis, viramo-nos para quê ou para quem? Para um amigo? Para uma bebida? Podemos dizer, “eu DEVIA voltar-me para o Buda, Dharma e Sangha”. Mas isso torna-se um pouco incômodo, porque essa atitude facilmente degenera em “Deus ajude-me – Buda ajude-me”.

Os ensinamentos falam sobre a tomada de refúgio provisória e definitiva. Deixem-me usar o meu próprio exemplo. Quando estou nervoso ou agitado sobre algo, a minha tendência é ir ao frigorífico. Como qualquer coisa de que gosto e isso ajuda-me um bocado. Lembrem-se que falámos sobre a Primeira Verdade Nobre: a vida é difícil. É necessário termos uma certa

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aceitação disso. Eu sei que comigo, quando os meus ventos-energia estão a começar a ficar um pouco nervosos ou a perder o equilíbrio, se eu comer alguma coisa, especialmente pão integral, isso acalma esses ventos e dá-me um pouco mais de estabilidade. É como tomar uma aspirina quando não nos sentimos bem; eu sei que isso não é a solução definitiva dos meus problemas. Sei disso muito bem. Digo a mim mesmo, “bem, eu sei que isto me vai ajudar apenas a um nível superficial, mas tenho a direção mais profunda para onde me viro para me ajudar com o problema”.

Naturalmente, temos aqui de exercitar um certo discernimento, porque se a ajuda provisória de lidar com problemas fosse a única variável envolvida, poderíamos dizer: “se eu consumir heroína, isso também é a minha aspirina provisória e eu estou ciente da solução mais profunda”. Há uma diferença entre comer uma barra de chocolate e consumir heroína. Precisamos de certificar-nos de que qualquer refúgio provisório que tomamos não seja algo de brutalmente prejudicial para nós ou para os outros. Não deve ser como: “sair e

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disparar num coelho dá-me uma boa sensação, por isso quando ficar nervoso vou sair e matar algo”.

Assim, precisamos de trabalhar um pouco em termos de “para onde me volto em horas de necessidade?” em vez de “eu DEVIA voltar-me para o Buda, Dharma e Sangha, por isso vou sentar-me aqui a meditar. E se em vez disso eu comer uns bolinhos, isso significa que sou uma pessoa má ou um mau budista”. É aceitável tomar essa aspirina, comer esses bolinhos ou esse chocolate ou o que quer que seja – falar com alguém ao telefone – isso é perfeitamente aceitável, desde que estejamos conscientes de que essa não é a solução definitiva. Se virmos isso como a solução mais profunda, então ficaremos decepcionados quando não resultar. Qualquer conforto que nos dê não pode possivelmente ser duradouro. É superficial. Afinal, a vida é difícil. Estes são alguns aspectos sobre o refúgio.

Têm algumas perguntas?

Ética Bíblica

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Participante: [trad.] Se ele tivesse o desejo de disparar num coelho, então viria também a ideia “eu não devia disparar em coelhos”. Essa ideia do “dever” surge de novo.

Alex: Talvez precisemos de deixar de dar apenas umas pequenas pinceladas nesta parte da pintura que é o “devia” e o “não devia” e irmos ao fundo desta questão.

A discussão de “devia” e “não devia” anda à volta de várias coisas: da ética e de toda a abordagem à ética, e também dos ensinamentos sobre a vacuidade.

A ética bíblica, por exemplo, é um sistema que está baseado numa autoridade superior que estabeleceu determinadas regras e leis, e assim a ética em tal sistema basicamente consiste em ser-se obediente. Uma pessoa ética, neste contexto, é uma pessoa obediente que obedece a estas regras superiores. Se as obedecermos, somos bons. Se as desobedecermos, somos maus e vamos ser castigados. Esta autoridade superior tem uma certa reação emocional básica com relação a nós, assim, se obedecermos a esta autoridade superior,

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essa autoridade superior vai gostar de nós e vai recompensar-nos. Se desobedecermos, essa autoridade superior não vai gostar de nós, vai deixar de nos amar e vai-nos castigar. Essa é a qualidade emocional deste tipo de ética.

Podemos falar sobre isso em termos de Deus, ou podemos falar sobre isso em termos dos nossos pais. Também projetamos isso nos nossos pais, que estão sempre a dizer-nos “seja uma boa menina; seja um bom menino; não seja mau”. Se desobedecermos, então, somos maus e sentimos que já não nos amam e por isso queremos agradar-lhes. A nossa conduta ética é baseada em querermos agradar a esta autoridade superior que estabeleceu as regras.

Assim, para a maioria de nós que cresceu em culturas que seguem a Bíblia, toda a nossa ética está baseada no “devia” e “não devia”. Queremos saber “o que é que devo fazer?” de modo a que gostem de nós, a sermos recompensados, e a que as coisas nos corram bem. Embora talvez, a um certo nível, o que estou a explicar seja um pouco

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simplista de mais, é incrível quanto agimos desta maneira. Quando ingressamos numa situação nova, queremos saber o que DEVEMOS fazer. Queremos que alguém nos diga quais são as regras. Desde que saibamos quais são elas, sabemos a que obedecer e então sentimo-nos bem e confortáveis. Então tudo está em ordem e sentimos que estamos controlando tudo.

A Questão do ControloEste ponto toca na questão de “estar em controlo”. Quando conhecemos todas as leis e sabemos que precisamos de as seguir, então sentimos que se nós de fato as seguirmos, estaremos “controlando” da situação. Sentimos que sabemos o que vai acontecer, e por isso estarmos a par de todas as regras faz-nos sentir um pouco mais seguros. Quando abordamos a vida em termos desta atitude de querer estar em controlo, desta atitude de obediência, destas regras e de tudo estar em ordem, então, num certo sentido, estamos baseando a nossa conduta na emoção de querermos ser bons e de querermos agradar.

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Este tipo de abordagem está muito baseado no conceito de um EU sólido e de um VOCÊ sólido, que estabelece as regras. Deste modo, estamos sempre preocupados com este EU que vai ser rejeitado ou abandonado – expulso do Jardim do Paraído – se formos maus. Por causa dessa preocupação com o EU sólido, temos todo este medo e todas estas questões sobre o controlo que vêm à superfície – esta preocupação sobre estar em controlo. Sentimos que a única alternativa é o caos absoluto e isso é semelhante a este medo de que, se abandonarmos as muralhas, será caótico e não teremos defesas nenhumas. Tendemos, como nosso forte legado cultural no ocidente, a ter este tipo de atitude em relação à ética, baseado no “devia” e “não devia” e cumprir as regras.

Então, se temos esta atitude, tendemos a ver os ensinamentos budistas e a abordá-los da mesma maneira. Vemos a ética budista também em termos de regras sobre o que eu “devia” e “não devia” fazer: “Não devo matar. Devo fazer a minha prática de recitação diária. Se não, sou mau e os meus gurus vão deixar de me amar.

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Ficarão desagradados e já não me vão amar”.

Alguém mencionou durante o nosso intervalo para o almoço, que às vezes é realmente muito difícil seguirmos os ensinamentos que o nosso guru nos dá. Mas, no entanto, nós queremos ser um bom discípulo; queremos ser apreciados e agradar ao nosso professor. Assim, em vez de seguirmos o que o nosso professor nos ensinou, adotamos uma espécie de mentalidade de culto com esse professor, baseada no pensamento: “o meu professor é melhor do que qualquer outro”. Achamos, talvez sem estarmos conscientes, que isso irá agradar ao nosso professor. Em vez de sermos leais ao nosso professor pondo os ensinamentos em prática, pensamos que ser leal significa adorá-lo. Assim, sobrepomos a ideia de “devia” e “não devia” à da idolatração ao nosso professor, como num culto. Fazemos isto porque é muito difícil seguir o Dharma que o nosso professor nos está a ensinar.

Ética Budista

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A ética ocidental é, na verdade, uma combinação da abordagem bíblica e da abordagem da Grécia Antiga. Na versão grega, em vez das leis serem dadas por uma autoridade superior do céu, as leis são feitas por uma legislatura de cidadãos. Os cidadãos reúnem-se e fazem as leis para o bem da sociedade. Então, uma vez mais, é uma questão de “obedece e as coisas vão bem; desobedece e você vai para a cadeia e é punido como um mau cidadão da sociedade”.

A sociedade ocidental, então, combina éticas bíblicas e civis de uma maneira interessante, mas nenhuma delas é relevante à ética budista. Na ética budista, o objetivo principal não é descobrir quais são as leis e, depois de as sabermos, apenas obedecê-las e nada mais. Essa não é a orientação de modo nenhum. Basicamente, o Buda não disse o que é que “devemos” ou “não devemos” fazer. O Buda disse, “se você agir deste modo, surge este resultado. Se você agir daquela forma, o resultado será aquele”. Ou seja, cabe-nos a nós decidir o que queremos fazer. A escolha do que fazer é nossa. Se

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continuarmos a bater com as nossas cabeças na parede, vamo-nos magoar. Se deixarmos de bater as nossas cabeças na parede, seremos mais felizes. Não estava dizendo, “você deve parar de bater com sua cabeça na parede”. Estava apenas dizendo o que acontece quando você bate na parede e quando você não bate na parede.

Assim, a responsibilidade é nossa, como indivíduos, de discernir e de fazer essa escolha. Se quisermos deixar de sofrer e de criar problemas a nós mesmos, então modificamos o nosso comportamento desta ou dessa maneira. Se não nos importarmos… bem, isso é conosco. Não mudamos. Não é uma questão de bem ou mal. É apenas: “Se você quer continuar a sofrer, essa escolha é sua – é seu privilégio. Se você quiser deixar de sofrer, você precisa modificar o seu comportamento”. Isso não nega que, na sociedade, é necessário termos determinadas leis. Ainda temos de pôr criminosos na prisão de modo a não continuarem a andar por aí a matar pessoas. A ética budista não contradiz isso.

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Para desenvolvimento pessoal, então, desenvolvemo-nos nós próprios, desenvolvendo a chamada “ consciência discernente” ou “sabedoria.” Precisamos de discernir entre o que é útil e o que é prejudicial para nós e para os outros. É mais difícil saber o que irá prejudicar os outros, por isso a ênfase está em evitar o que nos irá prejudicar. Por exemplo, podemos dar uma rosa a alguém com a intenção de fazê-lo feliz e ele apanhar um ataque de alergia. É muito difícil sabermos o que irá realmente ajudar a outra pessoa. Assim, a ênfase aqui está em discernir entre o que é prejudicial e o que é benéfico para nós – isto é mais fácil de se diferenciar. Não é uma questão do “eu devo fazer isto e não devofazer aquilo”. Mas, em vez de entendermos isto, abordamos frequentemente os nossos professores em termos de “diz-me o que devo fazer. Como devo praticar? O que devo fazer?” Isso não é útil.

Como Lidar com o Medo da PuniçãoParticipante: Mas quando descubro este aspecto sobre a verdade cármica da causa e efeito, eu ainda tenho um sentimento de

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medo quando faço uma ação nociva – tenho medo do castigo. Realmente, gostaria de ser capaz de poder escolher livremente o que eu faço, sem medo. Gostaria de fazer essa escolha de um modo saudável em vez de tentar livrar-me do comportamento nocivo devido ao medo. É infantil e não gosto disso. Assim, como é que eu posso exercitar-me, treinar-me, para me livrar deste medo e deste sentimento de culpa?

Alex: O medo é baseado no agarramento a um EU sólido. Pensamos que há este EU sólido e queremos aprovação para esse “eu” sólido e temos medo da desaprovação e da punição. Nós temos medo. Podemos ter essa concepção errada apenas a respeito do “eu” ou podemos complicá-la ainda mais com a crença em figuras de autoridade solidamente existentes a quem este eu sólido quer agradar e de quem quer obter aprovação. Isso apenas complica ainda mais as coisas, visto que temos medo de ser abandonados por essas figuras de autoridade solidamente existentes.

Eu sei que não é justa a forma com que estou explicando isto, porque na verdade

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nós precisamos de penetrar muito mais profundamente na discussão da vacuidade, de modo a não reagirmos a este ensinamento profundo no budismo pensando, uma vez mais, que “eu sou mau; eu sou estúpido porque não compreendo” ou indo ao outro extremo de dizer “eu não existo”. Assim, deixem-me explicar um pouco mais.

Aparências EnganadorasBasicamente, a mente faz com que as coisas apareçam de uma forma que não corresponde à realidade. Isto acontece automaticamente. Todos nós experienciamos uma voz falando dentro das nossas cabeças e as nossas mentes fazem isso parecer como se houvesse alguém falando lá dentro. Parece que há um autor da voz que está falando lá dentro, dizendo: “o que é que eu devo fazer agora? Oh, não! Isto vai acontecer”. Aparece dessa forma e nós pensamos que o autor dessa voz é o EU, um EU que existe solidamente.

Quando falamos sobre as chamadas “aparências engadoras”, estamos falando sobre o tipo normal de aparências que

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todos nós temos, como esta. As nossas mentes fazem parecer como se houvesse uma pequena pessoa, “eu”, cá dentro, que está sentada atrás da cabine de controlo nas nossas cabeças. Toda esta informação entra pelos olhos e pelos ouvidos, e então esse pequeno eu diz, “Oh, o que devo fazer? Talvez deva fazer isto, talvez deva fazer aquilo. Oh, eu vou fazer isto…” e carrega num botão que faz com que depois o corpo diga isto ou faça aquilo.

É esta concepção de um sólido eu que nós acreditamos ser verdadeira. É simplesmente a maneira como a mente, enganadoramente, está fazendo as coisas parecerem e essa é a base para o medo e para todo este síndrome de “eu devo fazer isto”, “o que é que eu devo fazer?”, “eu quero ser bom” e “não quero ser mau”. Mas, a verdade é que não há nenhuma pequena figura sólida dentro das nossas cabeças. Onde é que está? – esse que está tão preocupado acerca do que eu devo fazer e que está com tanto medo de fazer a coisa errada. Quando nos agarramos à ideia de que existimos realmente como esse tal “eu” – e esta palavraagarrar não é

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assim tão fácil de compreender – nós adquirimos esse medo.

AgarramentoVamos explorar esta palavra agarramento. A imagem que me vem sempre à mente é a de um rato se afogando numa poça de água e agarrando-se a qualquer coisa que esteja flutuando na proximidade para se não afogar. Quando falamos sobre o agarramento, há uma situação desesperada e temos uma quantidade tremenda de insegurança e de confusão. Assim, agarramo-nos a qualquer coisa, como esse rato que se está afogando, de forma a estabilizar a situação de qualquer jeito. Por exemplo, quando estamos numa situação difícil com alguém, agarramo-nos a qualquer coisa que eles fazem, e pensamos: “Ah! Isso significa que você não me ama genuinamente” ou “isso significa que você não gosta nada de mim”.

Ou estamos num relacionamento difícil e a outra pessoa está sempre descarregando sobre nós e está sempre a fazer-nos coisas ridículas e muito negativas. Mas no fundo, não queremos admitir que temos medo de

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ser abandonados e, assim, agarramo-nos a algo. Digamos que fazemos sexo e mesmo se a pessoa nos estiver usando apenas para a sua própria satisfação sexual, agarramo-nos a isso e pensamos, “fazer sexo comigo pelo menos indica que no fundo esta pessoa me ama”. E nós agarramo-nos firmemente a isso, como um rato afogando-se, porque se não o agarrarmos ficamos com medo de nos afogar, de sermos abandonados.

A vida é semelhante a isto. É aterrorizadora. Nós não sabemos o que fazer. É desconcertante. Queremos algo estável e, assim, agarramo-nos a qualquer mito que depois projetamos. Agarramo-nos a algo, acreditando que nos fará sentir mais estáveis e seguros, algo que nos dará um sentimento de uma verdadeira existência sólida. Agarramo-nos, por exemplo, à voz das nossas cabeças e pensamos, “ sou eu”! Ou podemos agarrarmo-nos a qualquer coisa: ao nosso corpo, à nossa profissão, ao nosso carro, ao nosso cão ou ao que quer que seja. É um processo muito complexo e aqui não temos tempo para entrar nele. No entanto,

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consciente ou não, o sentimento profundo de que eu me irei afogar se não me agarrar a algo está lá.

Temos uma atitude semelhante em relação às leis; agarramo-nos ao quedevemos fazer e ao que não devemos fazer, porque sentimos que se não tivermos essa estrutura e se não estivermos sob controlo, então vamo-nos afogar. A realidade é que nós podemos nadar; a opção de nadar está aberta e nós podemos nadar. Não temos de nos agarrar a coisa nenhuma. Podemos lidar com a vida de uma maneira muito espontânea e aberta. Naturalmente, isto é com a sabedoria, discernindo entre o que é útil e o que é prejudicial. Mas esse conhecimento do que é útil e do que é prejudicial não é o conhecimento de algo como um conjunto de regras sólidas e escritas na pedra.

Pensamento Conceptual VerbalA mente trabalha conceptualmente para algumas pessoas com o som das palavras. Tudo bem. Essa é a maneira que é. Não é nada de especial; não é uma grande coisa que faz a terra estremecer. Embora pareça

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que há uma pequena figura que está cá dentro falando essas palavras, lá dentro não há nada disso. O som das palavras nas nossas cabeças é apenas a maneira como a mente funciona. Funciona com pensamentos conceptuais que têm geralmente o som das palavras associadas a isso.

Ainda podemos tomar decisões, e até fazermos isso com base nos pensamentos com palavras, mas sem os associar a esta ideia de um eu sólido que está dentro das nossas cabeças falando e preocupando-se com “o que devo eu fazer?” e que está com tanto medo de tomar a decisão errada. Façam apenas! Mas façam-na discernindo entre o que é útil e o que é prejudicial. Naturalmente, não queremos fazer algo que seja prejudicial, mas precisamos tentar não exagerarmos o nosso papel e não pensarmos que: “ eu sou totalmente responsável por tudo que acontece”. Não somos. Podemos contribuir para uma situação, mas não somos a única causa. Podemos recear causar danos, mas não ter medo disso.

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Poderíamos vigorosamente não querer causar mal mas isso é diferente de temê-lo. É uma intenção forte: “Não quero causar mal; vou tentar não causar mal. Não quero causar danos a outros ou a mim”. Não há nenhum pequeno eu sólido cá dentro tremendo de medo sobre tudo isto. Mas, ao apercebermo-nos disso, temos de ter o cuidado de não negar o eu convencional: “Eu estou aqui e estou fazendo isto e não quero fazer aquilo” e assim por diante. “Eu não quero experienciar o sofrimento”. O eu convencional existe apenas como aquilo a que a palavra eu se refere, nomeado com base na continuidade de momentos da nossa experiência individual.

Em breve, embora não seja fácil, a única maneira de superar o medo é através da compreensão da vacuidade. Por um lado, não há nada nem ninguém a recear. Por outro lado, temos de ter o cuidado de não nos negarmos completamente, como se não existíssemos de todo. É muito necessário seguirmos o caminho do meio, que não nos leva ao extremo do medo nem ao extremo do “não importa o que eu faço, porque na verdade eu não existo”. Quando estivermos

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muito preocupados sobre “o que devo fazer?” e “ eu quero ser bom, não quero ser mau”, quando estamos experienciando isso, precisamos tentar reconhecer que isso vem desta concepção errada de que há um pequeno sólido eu cá dentro que é uma criança pequena, lamentando-se “o que devo eu fazer”?

O Método de Ensino do BudaUm exemplo do método de ensino do Buda, baseado nesta compreensão sobre o “eu”: uma vez uma mãe veio ao Buda com o seu bebê morto. Pediu ao Buda, dizendo: “por favor, Buda, traz o meu bebê de volta à vida.” O Buda respondeu, “primeiro traz-me uma semente de mostarda da casa de uma família onde a morte nunca visitou e então falaremos sobre isso”. A mãe visitou casa após casa, e logo se apercebeu que a morte tinha vindo a todas as casas e a todas as famílias. Desse modo, ela conseguiu aceitar a morte da sua criança. Ela própria compreendeu. O Buda não disse “você não me deve fazer tal pergunta. Ela é estúpida, porque toda a gente morre. Lembre-se da impermanência e da morte. Você é má por dizer isso.” E não disse:

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“Oh, não se preocupe porque o seu bebê foi para o céu ou para um campo búdico”. Pelo contrário, o Buda estabeleceu as circunstâncias para a própria mãe compreender a morte da sua criança.

Do mesmo modo, quando nós próprios unimos as peças do puzzle do Dharma, isso cria uma impressão muito mais profunda. Se formos perguntar ao professor “o que devo fazer? Dá-me a resposta para eu não ter de pensar por mim e para não ter de tomar nenhumas decisões por mim próprio, porque tenho medo de tomar a decisão errada”, isso põe em perigo todo o processo de crescimento espiritual que estamos procurando no budismo. Em vez disso, como já tenho dito, precisamos, nós próprios, de ter cuidado com o que fazemos e de assumir a responsabilidade pelas nossas ações e pelo processo de adquirirmos a compreensão. Ser prudente e ser cuidadoso não são uma função do medo. Ser cuidadoso é uma função do interesse e do cuidado acerca das consequências das nossas ações, em nós e nos outros. A natureza desse cuidado é a da compaixão, ou seja, do desejo de

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estarmos livres de sofrimento. Ter cuidado é também uma afirmação da existência do “eu” convencional – mas não do sólido “eu” que irá experienciar os resultados do que escolhemos fazer.

Sessão 5: Estabelecendo Relacionamentos Saudáveis com Professores EspirituaisLidando com Situações ProblemáticasEstávamos falando sobre esta questão do que devemos ou não fazer, sobre o medo que isso causa e assim por diante. Vimos que toda esta questão anda à volta de uma concepção errada sobre nós. Precisamos de diferenciar claramente entre a existência convencional e usual, de nós próprios e de tudo que nos rodeia, e a existência sólida que na verdade não existe. Lembrem-se de que quando estamos falando sobre a vacuidade, estamos falando sobre a ausência de modos impossíveis de existir, que não existem de forma alguma.

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Como é que as coisas realmente existem? No budismo, dizemos que tudo existe em virtude do seu surgimento ser dependente de muitos, muitos fatores – causas, partes, rótulos mentais e conceitos para as coisas, e assim por diante. Fiquemos apenas ao nível das coisas que vão surgindo e existindo na dependência de causas e condições. Deste ponto de vista, podemos dizer que as coisas não são sólidas – sólidas no sentido de surgirem concretamente de só uma única causa – mas pelo contrário, tudo é complexo e, assim, tudo surge de interações muito complexas.

Por exemplo, quando enfrentamos situações, as coisas não são a preto e branco: “Você deve fazer isto e não deve fazer aquilo”; e, por causa disso, há apenas um modo correto de agir e qualquer outro modo é errado. Na verdade, qualquer situação problemática em que nos possamos encontrar é muito complexa, e a solução a que chegamos irá depender de muitos, muitos fatores. Assim, decidir o que fazer requer uma grande sensibilidade e entendimento. Quando começamos a superar este síndrome do “devo” e “não

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devo” e de seguir a lei indiscriminadamente, isso não significa que não tem importância aquilo que decidimos ou fazemos, porque tudo isso está [apenas] na nossa imaginação. O que isso significa é que em vez de sermos rígidos na nossa capacidade de resolver situações problemáticas: [como por exemplo] “o livro das regras está aqui, por isso deixa-me só ver as regras e seguí-las” – que seria o modo rígido e sólido de reagirmos em termos de “devo” e “não devo” – , nós usamos o nosso discernimento, a nossa sabedoria e toda a nossa experiência para encontrarmos a solução adequada à situação. Isso requer muita flexibilidade. Ao tentarmos resolver um problema, quantos mais fatores tivermos em consideração, mais possibilidades teremos de sabiamente o resolver. Quando não consideramos muitos fatores, chegamos a uma solução que na verdade não vai resolver o problema.

Por isso, quando dizemos que as coisas não são pretas nem brancas, isso não nega o fato de que podemos ter uma solução eficaz ou ineficaz para um problema. É

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importante termos isto em mente. Também temos de nos lembrar que não somos Deus. Não podemos resolver todos os problema estalando os nossos dedos.

Têm perguntas sobre estas questões, antes de continuarmos?

Acumulando Força Positiva para Compreender a VacuidadeParticipante: É possível compreender a vacuidade ou o vazio por nós próprios durante uma sessão de meditação? E como alcançar isso? Ou será só possível se formos apresentados ao vazio por um professor?

Alex: Tsongkhapa não era um homem estúpido. Trabalhou muito árduamente e teve com certeza uma compreensão muito mais exata do vazio do que a maioria de nós tem. No entanto, viu que para obter uma correta compreensão não conceptual do vazio, o que precisava fazer era acumular mais potencial positivo, que é geralmente traduzido como “mérito”. Num estágio muito avançado do caminho decidiu que era necessário fazer três milhões e meio de prostrações e, esqueço-me agora

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do número exato, mas também milhões de oferendas de mandala. Depois de ter feito tudo isso, ele foi capaz de correta e não conceptualmente compreender o vazio. Esse, penso eu, é um ensinamento muito importante. Quer estejamos sentados sozinhos tentando compreender o vazio, quer um professor apareça e diga “deixem-me apresentá-los um ao outro: Alex, este é o Vazio; Vazio, este é o Alex”, se não tivermos esse potencial positivo, que é aquilo que chamamos de “mérito”, nada irá acontecer.

Ouvimos sempre falar sobre a necessidade de acumular as duas coleções de mérito e insight; eu prefiro chamá-las “reservas” ou “redes” de “potencial positivo” ou de “força positiva” e de “consciência profunda”. Penso que, independentemente do que quer que lhes chamemos, acumularmos as duas é extremamente importante e algo que, pela minha própria experiência, sei que é muito verdadeiro. Quando estamos tentando compreender ou conseguir algo, ou seja o que for, seja na meditação, escrevendo um livro, resolver um problema, ou o que quer que seja, às

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vezes chegamos a um ponto em que atingimos uma espécie de bloqueio mental. Não conseguimos avançar. Alcançamos um ponto sem saída ou perdemos o interesse. O problema é que agora a nossa energia está demasiado fraca para ir mais além. Para continuarmos, necessitamos de alguma energia positiva, alguma força ou potencial positivo. É disso que o mérito está falando. Não é que precisemos de colecionar mais pontos como se necessitássemos de mais pontos para ganhar um jogo. Em tais situações em que estamos bloqueados, o que ajuda é pormos de lado o que estamos fazendo e irmos fazer algo positivo – por exemplo, irmos ajudar os outros.

Isso pode ser feito de várias formas. A maneira mais simples, que uso frequentemente quando não consigo compreender algo e quero conseguir compreender e clarificar a minha mente muito depressa – digamos, quando estou a escrever e não consigo pensar na palavra adequada ou como expressar algo claramente – é parar e repetir o mantra de Manjushri com as visualizações

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apropriadas. Acho que isso é muito útil. Se nos forçarmos – “Eu tenho de compreender; tenho de compreender!” – sem fazermos algo como repetir mantras, então, perdoem-me a imagem, é um pouco como estarmos com prisão de ventre e fazermos um esforço enorme para defecar, quando nos sentamos na sanita. Não vai sair nada. Isso apenas se torna muito desconfortável.

Então, a fim de podermos obter claridade, o que é realmente importante é relaxarmos, e este tipo de prática de mantra é muito eficaz para isso. Especialmente quando quero ter a minha mente muito clara e alerta e por isso estabeleço uma muito forte intenção e desejo que seja desse modo, então o mantra torna-se ainda mais eficaz. E torna-se ainda mais eficaz do que isso, quando acompanho a minha recitação com visualizações que ajudam a focalizar a minha mente de uma forma mais aguda. Nessa situação, o que estamos fazendo é adicionar algo à fórmula. Estamos adicionando a força e o potencial positivos dessa recitação do mantra para nos ajudar

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a superar um bloqueio mental. Para mim, resulta. É muito eficaz na maioria das vezes. Então, se estivermos muito receptivos, a solução aparece sem forçá-la.

Essa é uma situação onde precisamos de uma solução imediata, como quando numa tradução não consigo encontrar a palavra certa. Há outras situações em que a nossa energia se está tornando um pouco lenta. O que descubro através da minha própria experiência é que quando ando às voltas a viajar e a ensinar, vejo isto como uma espécie de retiro de bodhichitta, e isso ajuda. Eu poderia ver isso como, “isto é uma distração terrível da minha escrita” e de um certo modo, ficar irritado por estar desperdiçando o meu tempo longe da minha secretária e do meu computador. Ou posso olhar para isso como uma coisa muito positiva que me vai ajudar a escrever com mais clareza.

Estou apenas usando exemplos da minha própria vida, mas esta abordagem pode ser aplicada à vida de qualquer pessoa – quer estejamos trabalhando com qualquer tipo de situação em casa, na família, ou

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qualquer tipo de relacionamento em que tenhamos qualquer espécie de bloqueio. Se saírmos e fizermos um trabalho voluntário positivo num hospital, ou qualquer coisa que seja adequada à nossa situação, isso irá fazer uma grande diferença na acumulação de força e potencial positivos.

Esta abordagem de acumulação de reservas de potencial positivo não se limita apenas a quando temos bloqueios mentais. Por exemplo, a minha escrita estava correndo muito bem antes de ter começado esta digressão de palestras. Estava sem nenhuns bloqueios. Mas num certo sentido queria que corresse ainda melhor; queria ter ainda mais energia. Não acho que Tsongkhapa tivesse chegado a um bloqueio e não conseguisse compreender nada. Pelo contrário, acho que viu que, para experienciar algo brilhante, para realmente obter a correta cognição não-conceptual do vazio, necessitaria ainda de mais energia positiva.

A nossa construção de potenciais positivos não requer necessariamente um retiro de bodhichitta onde andemos por aí, como

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faço quando deixo a minha escrita para trás e viajo para ensinar. Podemos juntar os dois – meditando e ajudando os outros. Lá porque temos um bloqueio, isso não significa que deixemos de meditar sobre o vazio, mas sim que teremos de adicionar alguma espécie de energia mais positiva. Podemos fazer isso entre as nossas meditações. Penso que isso é realmente muito importante. Não é suficiente apenas nos sentarmos a meditar, realmente não é. Também temos que ser mesmo ativos, acumulando mesmo mais e mais força positiva e fazendo mesmo coisas para ajudar os outros.

A Importância do Professor EspiritualIsso traz-nos ao tópico do professor espiritual. Qual é o papel do professor neste processo? É óbvio, temos o exemplo dos pratyekabuddhas. Não nos devemos esquecer dos pratyekabuddhas. O seu tipo de percurso é um dos que Buda ensinou. Eles estão lá na árvore do refúgio. Os pratyekabuddhas são aqueles praticantes que vivem durante as idades das trevas quando não há Budas nem professores disponíveis. A fim de meditarem e

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progredirem, têm de confiar apenas nos seus instintos a respeito do Dharma, instintos fortalecidos nas suas vidas passadas em que encontraram os ensinamentos dos Budas.

Os pratyekabuddhas são muito corajosos, se pensarmos sobre isso. São muito dignos de respeito. Não devemos pensar: “Oh, eles são essas pessoas incrivelmente egoístas que vão para as cavernas sozinhos”. Mas agora que temos Budas e professores por aí, a pergunta é: “precisamos de estar dependentes deles ou não, e o que realmente significa depender deles?” Eu penso que este tópico do professor espiritual é algo muito difícil de compreender.

Há muitas coisas que se podem dizer, sob muitos pontos de vista diferentes, acerca do relacionamento professor-discípulo, e não é necessário nesta ocasião abordarmos todas elas. A um nível muito prático, eu penso que uma das coisas que é muito importante acerca do professor espiritual, dentro do contexto de que o professor seja corretamente qualificado e não apenas um

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brincalhão qualquer que ande por aí dizendo ser professor; é que o professor torna os ensinamentos humanos – “reais” talvez seja uma palavra carregada de mais. O professor torna o Dharma humano. Se não tivermos um professor e se aprendermos apenas a partir dos livros, então a imagem ou a ideia que temos do que significa compreender esses ensinamentos e transpô-los para a vida, seria totalmente baseada nas nossas imaginações. Ou seja, nós não teríamos um exemplo vivo do que realmente significa compreender não só os ensinamentos, como transpô-los para a vida. Ver um exemplo vivo é o que nos dá a maior inspiração para tentarmos compreender e interiorizar os próprios ensinamentos.

Há dois fatores que estão envolvidos na aprendizagem dos ensinamentos. Um é a obtenção da exata compreensão técnica de um ensinamento específico, como o vazio. Isto é uma coisa; e um professor pode responder a perguntas, o que um livro não pode fazer. Mas, além de ter o rigor técnico da compreensão, o professor dá-nos um exemplo vivo da transposição dessa

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compreensão para a vida. Isso, penso eu, é muito, muito importante.

Olhamos para alguém como Sua Santidade o Dalai Lama e podemos certamente dizer que ele tem uma compreensão do vazio e uma realização da bodhichitta altamente desenvolvidas. Sob qualquer ponto de vista, estaríamos de acordo com isso. Seria infantil irmos, com um cartão de marcar pontos, tentar testar se ele está neste ou naquele estágio de bodhisattva. Quem é que se importa com isso? Mas nós podemos ver, da forma como ele age, que a compreensão do Dharma não se traduz em ser-se uma espécie de pessoa despassarada, com a sua cabeça nas nuvens, que não consegue funcionar na vida. Do exemplo de Sua Santidade, é muito claro o que realmente significa ter-se essa combinação de sabedoria e compaixão. Esse é certamente um aspecto muito importante quando falamos sobre a nossa introdução ao Dharma ou, especificamente, ao vazio.

Introdução ao Dharma

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Na introdução ao Dharma, há muitos níveis. Num deles o professor estabelece um tipo de situação em que somos emocionalmente movidos de modo a que, através de um choque, saiamos da nossa estagnação para obtermos uma compreensão. Esse é mais ou menos o estilo Zen que alguns professores tibetanos possuem, mas não são assim tantos. Geshe Wangyal, que era um professor mongol calmuque nos Estados Unidos, usou muito habilmente esse método. Morreu há muitos anos, mas costumava pôr os seus estudantes a construirem coisas, como uma casa para ele e um templo para todos. Uma vez, um dos seus estudantes estava trabalhando arduamente na construção de uma casa para o Geshe-la, trabalhando no telhado. Um dia, Geshe-la subiu ao telhado, foi ter com ele e disse-lhe: “O que é que você está fazendo?! Você está fazendo tudo mal! Você está arruinando tudo! Saia já daqui!!” E o estudante disse: “O que você quer dizer com isso, que estou fazendo tudo errado?! Estou fazendo exatamente da maneira que você me disse para fazer e tenho estado a fazer assim há meses e

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meses!” Geshe Wangyal respondeu imediatamente: “Ah-ah! Esse é o “eu” a refutar”.

O professor pode criar uma situação dessas para nos introduzir ao vazio, no sentido de criar uma situação em que podemos ver emocionalmente e obter um insight. No entanto, fazer-se isso bem requer uma grande habilidade. Assim, há esse nível de introdução a qualquer tópico do Dharma. Um livro não pode fazer isso.

A segunda forma de introdução é-nos dada através de uma explanação muito clara. Um livro não poderia fazer isso. A explanação muito clara de um professor pode ser escrita num livro. Mas, não obstante a extensão da sua clareza, se tivermos alguma espécie de bloqueio mental, não estaremos em condições de compreender. E há assim um outro método: o do professor que nos deixa, nós próprios, resolver o puzzle do Dharma, dando-nos uma peça de cada vez, em vez de nos darem o Dharma a comer como se fôssemos bebês.

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Ainda um outro método de ser introduzido [ao Dharma] é através do exemplo de se ver um professor que o compreenda. Em todo o caso, mesmo se lêssemos num livro uma explanação clara, alguém teve de escrever esse livro. Assim, esteve lá necessariamente um professor, quer nos tenhamos encontrado com esse professor ou não. Num certo sentido encontramo-nos com o professor, mesmo que ele tenha morrido há muito tempo, porque lendo o livro nos encontramos com as palavras do professor. A menos que sejamos um pratyekabuddha, não temos de voltar a inventar a roda; não temos de chegar a essa compreensão sozinhos. Ela vem de alguém, de um professor.

A esse respeito, um professor é muito importante. Na verdade, precisamos de uma combinação de todos esses [métodos]. Precisamos de um professor que nos possa transmitir informações corretas e claras, que seja realmente um exemplo vivo do que estamos tentando aprender e que nos possa inspirar. Também precisamos de um professor com capacidade de criar determinadas circunstâncias que sejam

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conducentes à nossa obtenção de insights e que nos dê, do puzzle do Dharma, uma peça de cada vez, e apenas da maneira certa para nós.

Relacionamentos Pessoais mas ImpessoaisPodemos falar sobre muitas coisas acerca do relacionamento espiritual entre professor-estudante, mas uma questão que vem sempre à superfície com as pessoas do Ocidente é que queremos uma atenção pessoal. Temos um sentido muito forte de individualidade. Todos pensamos: “eu sou especial e deveria receber uma atenção especial”. O modelo, naturalmente, é o de irmos a um psicólogo ou a alguém como tal, pagarmos com o nosso dinheiro e recebermos um tratamento individualizado. Bem, isso nem sempre está disponível num contexto budista. É engraçado. Andamos procurando o “MEU professor que vai ser especial para MIM” e, no entanto, temos uma imagem tipo Hollywood de como esse relacionamento será. Não queremos que seja como o de Milarepa e Marpa: não queremos um professor que nos faça trabalhar demasiado.

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Por exemplo, o relacionamento de Serkong Rinpoche comigo: eu tive o grande e incrível privilégio de ter sido chegado a ele, e de o ter servido durante cerca de nove anos, como seu discípulo pessoal e seu intérprete, secretário de inglês, organisador das suas excursões ao estrangeiro, etc. Tive este tipo de relacionamento com ele até à sua morte, em 1983. No entanto, todo esse relacionamento foi “um relacionamento pessoal mas impessoal”. Ele nunca, nunca me fez uma pergunta sobre a minha vida pessoal – nunca. Nunca me perguntou acerca da minha família ou sobre qualquer outra coisa assim. E eu nunca senti a necessidade de lhe falar da minha vida pessoal. Porém, tivemos um relacionamento muito íntimo em termos de lida constante com o momento presente.

Deste modo, trabalhámos juntos mas de uma maneira muito especial, que eu chamaria “impessoalmente pessoal”, no sentido em que não éramos como dois grandes egos dizendo: “vamos trabalhar juntos – EU e VOCÊ”. E não era o tipo de relacionamento pessoal vamos partilhar a

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nossa escova de dentes, onde eu digo tudo sobre mim e você diz-me tudo sobre você. Isso seria como mostrarmos a alguém a nossa roupa interior suja. Nesse sentido, o relacionamento era impessoal. Mas também era pessoal no sentido em que ele compreendia o meu caráter e a minha personalidade, e trabalhámos juntos respeitando isso. Eu compreendia a sua idade e também as suas necessidades e exigências, e por isso nesse sentido era pessoal, embora impessoal.

Penso que uma das grandes bases para o sucesso desse relacionamento foi um grande respeito mútuo, com ambas as partes trabalhando em conjunto como adultos maduros. Como adulto, não me aproximei a ele de uma forma imatura, procurando aprovação ou querendo que ele se tornasse responsável pela minha vida – dando-lhe o controlo. Mas isso não significa que tenha caído no outro extremo, que seria: “Eu quero estar sob controlo próprio, e você não me pode dizer o que fazer”. Consultei-o sobre escolhas difíceis da minha vida, mas tomei as minhas próprias decisões não obstante o ter consultado. Em

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vez de ser como uma criança perguntando “o que devo fazer?” – o que nos leva de novo a essa questão do “dever” – eu perguntava se seria mais benéfico fazer isto ou fazer aquilo.

Por exemplo, no final da nossa segunda digressão mundial juntos, eu perguntei-lhe: “seria melhor para mim ficar nos Estados Unidos e passar mais uns tempos com a minha família, ou seria melhor regressar à India consigo e assistir ao primeiro Festival de Oração de Monlam, que Sua Santidade o Dalai Lama está conduzindo no sul da India? O que seria mais benéfico?” Eu fazia este tipo de perguntas quando não conseguia tomar eu mesmo a decisão. Rinpoche recomendou que eu fosse ao Festival de Oração, pois iria ser um acontecimento histórico muito significativo e eu segui o seu conselho. Mas não me deu ordens, às quais eu tivesse respondido dizendo: “Sim, senhor!” Não lhe estava pedindo ordens. Ele apresentava a situação com um pouco mais de clareza e numa perspectiva mais abrangente, de modo a que eu pudesse decidir através da minha própria sabedoria. Em outras situações,

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quando eu tinha uma ideia do que seria melhor fazer, perguntava-lhe se via quaisquer problemas em eu fazer isso.

Isso, penso eu, é muito importante no relacionamento com um professor. Se tivermos a expectativa de que o relacionamento irá ser muito individual e muito pessoal, então, num certo sentido, temos dado a nós mesmos um pouco mais importância do que talvez merecemos. Estamos dando a nós mesmos uma grande auto-importância se tivermos fazendo essa exigência de atenção pessoal. E se estivermos fazendo essa exigência, é fácil cairmos na armadilha de nos vermos como uma criança, e vermos o professor como nosso pai; ou nos vermos como um adolescente e vermos o professor como uma estrela pop. As nossas fantasias poderiam também incluir um romance com o professor.

A Analogia da Abelha e das FloresNa verdade, saber como abordar o nosso relacionamento com um professor espiritual, de uma forma pessoal mas impessoal, não é muito fácil. E a

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importância de o fazer não é limitada apenas ao nosso relacionamento com o nosso professor espiritual. Seria útil se esta abordagem fosse característica das nossas relações com todos. Shantideva escreveu que o mais útil, nos nossos relacionamentos com os outros, seria sermos como uma abelha que vai de flor em flor lidando apenas com a essência da flor, sem ficar presa em nenhuma delas.

Mais uma vez, lembro-me do exemplo de Serkong Rinpoche. Não teve nenhum amigo especial. Em vez disso, quem quer que fosse que estivesse com ele nessa altura era o seu melhor amigo. Ser-se assim é uma função daquela abertura que examinámos durante a primeira sessão: estarmos com todos como se fossem o nosso melhor amigo. Quando estamos com alguém dessa forma, os nossos corações estão totalmente abertos a essa pessoa. Somos totalmente íntimos com essa pessoa, no sentido em que [nos] estamos comunicando verdadeiramente de coração a coração. Mas, não é necessário eu lhe mostrar a minha roupa interior suja e ela me mostrar a sua roupa interior suja. Não é

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necessário entrarmos em todos esses tipos de detalhes pessoais, relativamente aos quais queremos, em certo sentido, que alguém nos faça umas festinhas na cabeça.

Se entrássemos em todos esses detalhes, seria como se estivéssemos empurrando a nossa própria bagunça para outra pessoa, de modo a que também ficasse enredada nela. Todos nós temos a nossa própria pequena bagunça pessoal com que temos de lidar nas nossas vidas, mas não nos devemos tornar um peso para a outra pessoa e no nosso relacionamento com ela. Podemos nos relacionar com as pessoas estando totalmente abertos; e elas são como o nosso melhor amigo. Podemos realmente entrar em contacto com o coração de alguém, mas sem ficarmos enredados, de modo a podermos estar igualmente abertos a todos desta forma, como a abelha que vai de flor em flor – intimamente envolvidos com os nossos corações, mas sem ficarmos presos.

Esse é o tipo de relacionamento que também teríamos com o professor. Quando estamos com o professor, há uma abertura

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muito direta na comunicação, mas depois saímos e entra a pessoa seguinte. Se tivermos um tipo de atitude “EU QUERO O MEU GURU!” tornamo-nos muito ciumentos e possessivos e isso é uma absoluta tortura: “Há um grupo sempre em volta do professor e eu não faço parte dele” e… oh, que sofrimento! Mas todos nós temos que lavar a nossa própria roupa suja. Temos que tratar da nossa bagunça. Não há nenhuma necessidade de esperar que o professor trate dela.

Evitando a Extrema Despersonalização dos OutrosQuando estamos lidando ou relacionando com alguém desta forma pessoal mas impessoal, quer seja com um professor ou um amigo, existem dois níveis: o nível mais profundo e o nível convencional, relativo. Ao nível mais profundo, somos todos iguais e ninguém é especial, e isso conduz-nos ao aspecto impessoal de todos os relacionamentos. Contudo, ao nível convencional as pessoas são individualizadas e isso conduz-nos ao aspecto pessoal.

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É muito importante não cairmos no extremo de apenas nos relacionarmos com alguém ao nível mais profundo. Devemos tentar ver sempre a pessoa como um indivíduo. Ou seja, se eu me relacionar com você de uma forma demasiadamente impessoal, então, num certo sentido, não me estaria relacionando com você – mesmo se a relação fosse de coração para coração. Precisamos de evitar sentir: “você é o fluxo mental número 14762 e esta outra pessoa é o fluxo mental 14763, e eu posso estar igualmente aberto e ser emocionalmente íntimo com qualquer fluxo mental de qualquer número”. Isso seria um erro. Seria levar-se o tópico do Dharma acerca de “todos os seres sencientes” ao extremo de despersonalizar todo o mundo. Precisamos sempre de nos lembrar que a outra pessoa, por seu lado, está olhando para nós de uma maneira muito pessoal. Nós temos de trabalhar com isso.

Deixem-me dar o exemplo da morte de minha mãe ocorrida no ano passado. Quando ela morreu, inicialmente eu fazia orações e várias práticas para ela, mas de uma maneira impessoal, vendo-a como o

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fluxo mental número tal e tal. Para evitar a dor do apego, via-a não apenas como minha mãe, mas como alguém indo de muitas vidas passadas para muitas vidas futuras, tal como todos os outros. Afinal, o budismo ensina que todos, a certa altura, foram nossas mães. Assim, a minha forma de me relacionar com ela no estado intermediário do bardo era bastante abstrata.

Assim, depois de ter discutido a minha experiência com um amigo próximo, compreendi que seria muito mais útil ver a situação sob o ponto de vista da minha mãe no bardo, em vez de sob o meu próprio ponto de vista como um praticante de Dharma que por acaso tem alguma compreensão das vidas passadas e presentes, identidades não-sólidas e assim por diante. Do ponto de vista da minha mãe no bardo, ela tinha ainda apego à sua antiga identidade como Rosa Berzin e continuava a me ver como seu filho.

Mudei imediatamente a prática que estava fazendo a fim de lhe ajudar nesse período intermédio do bardo, e falei diretamente com ela. Naquela altura eu estava

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ensinando no Chile, e como estava de partida para o Tahiti convidei-a para estar comigo em cada uma das sessões. Também fiz o tipo de orações e de coisas que ela gostava, e de que se sentia confortável. Ou seja, eu estava tentando detectar o medo que ela pudesse estar sentindo e estava tentando acalmá-la com algo que era adequado a ela.

Por exemplo, a minha mãe gostava da recitação de mantras budistas. Fazia-lhe sentir muito calma. E assim, apesar disso não ser exatamente o tipo de coisa que eu acharia útil se estivesse no bardo, comecei a recitar de uma forma que sabia que ela a acharia muito calmante. E senti que, fazendo isso, me estava conectando com ela. Eu adaptei o que estava fazendo para ela. Levei a sério a sua experiência [acerca] do nível relativo da sua própria realidade. Isso é que é importante. Se a minha mãe tivesse achado a recitação de alguma oração cristã ou judaica mais calmante, eu teria feito isso. Mas a minha mãe gostava de ouvir mantras recitados muito lentamente. Como já vos disse, senti uma

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mudança muito grande quando comecei a fazer isso.

Antes disso, na verdade, eu não me estava conectando com ela como um indivíduo, quando estava sendo abstrato, dizendo apenas: “que você possa ser feliz e possamos estar conectados em todas as vidas, que você possa ter sempre uma preciosa vida humana, e que eu lhe possa conduzir à iluminação em todas as vidas”, e todos esses tipos de fórmulas abstratas e pensamentos agradáveis. Mas eu achei que esta outra maneira era muito mais eficaz. Senti que estava realmente trabalhando para a beneficiar, embora naturalmente tivesse continuado a fazer as minhas orações mais gerais. Em resumo, quando nos relacionamos com alguém de uma maneira pessoal mas impessoal, como estava descrevendo, isso não significa que nós neguemos o fato de nos relacionarmos com essa pessoa enquanto indivíduo e de respeitarmos as suas próprias experiências individuais acerca de si mesmas.

Para pôr isto em termos mais específicos; “Estou totalmente aberto a você e a ser

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muito pessoal, mas sem apego – sem entrar na minha e na sua bagunça pessoal. Mas dentro desse contexto geral, sou sensível à sua individualidade e à sua visão de si próprio, a fim de me poder relacionar com você de uma maneira comunicante”. Isso, então, nos conduz ao tópico do uso dos cinco tipos de consciência profunda no relacionamento com os outros, mas vamos deixar isso para outra altura.

Eu chamo a atenção para tudo isto por muitas razões, mas especialmente por causa de uma grande dificuldade que enfrentamos na prática budista Mahayana quando fazemos bodhichitta, compaixão e todos estes tipos de meditação ao nível de “que todos os seres sencientes possam ser felizes”, tentando pensar de um modo abstrato sobre todos os seres sencientes. É muito difícil habilmente transpor “todos os seres sencientes” para o contexto individual da pessoa diretamente à nossa frente – você ou você. Se estivermos praticando apenas ao nível de “todos os seres sencientes”, então poderíamos por vezes usar isso como uma desculpa para

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não nos envolvermos pessoalmente com ninguém.

Agora, num certo sentido, se o envolvimento pessoal significar o agarramento e todo o lixo que o acompanha, então necessitamos de algum método que nos ajude a evitar tudo isso. Mas, quando tivermos lidado pelo menos com o nível grosseiro do apego, da raiva e de todas essas outras coisas – o que não é uma aquisição assim tão fácil – necessitamos de ter um envolvimento pessoal, mas o tipo de envolvimento que é mesmo pessoal mas impessoal, ou seja, individual mas sem apego.

Tudo o que estivemos a discutir até agora em termos de relacionamento com o professor espiritual não é dependente da questão de vermos o professor como um Buda ou não. Mesmo se não estivermos vendo o professor como um Buda, é necessário o que descrevi a fim de termos com esse professor um tipo de relacionamento significativo e bem sucedido. Certamente que dentro do contexto de vermos o professor como um

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Buda, nós ainda temos de abordar esse relacionamento como um adulto e de ver o professor como um adulto e não como nosso pai, estrela pop ou como todas essas coisas estranhas que tendemos a projetar neles como alguém que devia ter esse relacionamento especial conosco porque nós somos muito especiais.

Que perguntas têm vocês?

Medo de um Relacionamento Profundo com um ProfessorParticipante: Eu tento me ver como uma pessoa anónima num grande grupo de estudantes que têm muitos professores. Eu prefiro dizer que tenho muitos professores, em vez de ter um relacionamento pessoal com um professor específico.

Alex: Aqui pode haver alguns problemas. Um dos problemas pode ser o medo do comprometimento e o medo da intimidade, que nos leva a pensar: “Na verdade eu não me quero abrir com um professor, pois perderia o controlo”. Obviamente, sermos capazes de superar este medo com sucesso requer alguma compreensão do vazio. Não temos nada a temer ao nos abrirmos a um

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professor, pois ao fazê-lo não é que haja um coitado de “mim” indefeso que vai ficar magoado. Ou, “vou ser abandonado e ficar desapontado”. E também não é que eu me vá abrir e não haja lá nada de nada e depois vou ficar perdido e vai ser um caos total. Abrirmo-nos a um professor requer alguma sutileza na nossa compreensão sobre como existimos. Para que o relacionamento com um professor seja bem sucedido, tem de ser adulto, com um sentido do “eu” convencional bem estabelecido e capaz de discernir entre o útil e o prejudicial, e entre o apropriado e o impróprio. Senão, um relacionamento imaturo poderá ser excepcionalmente desastroso.

Prosseguindo Lentamente no Estabelecimento de uma Relação com um Professor EspiritualParticipante: [tradutor] Antes de tomarmos refúgio com um determinado professor, necessitamos de o examinar corretamente, mas ela pensa que neste momento, com uma mente impura, como poderá ela examinar corretamente um professor? E

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como poderá verificar se o professor é um Buda ou não?

Alex: Quando dizemos que precisamos de ter maturidade para que o relacionamento com um professor espiritual funcione realmente bem, isso não significa que enquanto ainda formos imaturos não nos viremos para um professor. Não significa que temos de esperar até termos maturidade para nos podermos relacionar com um professor. Se esse fosse o caso, poderíamos ter de esperar durante muito, muito tempo. Um professor hábil pode nos ajudar a nos tornarmos mais maduros. Um professor incompetente, por outro lado, pode tirar vantagem e nos abusar da nossa imaturidade. Assim, ao nos aproximarmos a um possível professor, precisamos de admitir que não sabemos se essa pessoa é mesmo qualificada ou não. Precisamos de prosseguir muito lentamente e com cuidado.

O relacionamento com um professor espiritual é algo que geralmente precisa de ser desenvolvido lentamente, durante muito tempo, e passar por vários estágios.

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Até vermos o professor como um Buda, o que nunca acontece nos estágios iniciais, passamos por vários estágios de desenvolvimento. Não quero, neste momento, entrar nesse tópico muito detalhadamente, porque levaria muito tempo a apresentá-lo. Mas esse tipo de relacionamento, em que vemos o nosso professor como um Buda, só é realmente relevante quando estivermos em estágios muito avançados do anuttarayoga, que é a classe mais adiantada da prática do tantra.

Na sua Grande Apresentação dos Estágios Graduais do Caminho, Lam-rim Chen-mo, Tsongkhapa escreveu que o relacionamento adequado com um professor espiritual é a raiz do caminho, e ele esboçou esse relacionamento em termos de se ver o guru como um Buda. Mas precisamos de entender o contexto em que ele escreveu aquilo e porque o disse. É claro, Tsongkhapa estava escrevendo e apresentando este ponto aos monges que estavam envolvidos na prática do tantra. Podemos inferir isso porque a tomada de refúgio aparece depois na sua apresentação do caminho. Como

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poderíamos nós ter um relacionamento com um professor em que o vemos como um Buda, se não tomámos refúgio e ainda não sabemos o que é um Buda? É óbvio que esta orientação de se ver o guru como um Buda destina-se a alguém que já tomou refúgio e já está envolvido no tantra, porque vêm dos tantras todas as citações que Tsongkhapa usa como suporte à visão do guru como um Buda. Assim, é óbvio que isto é um tópico principalmente tântrico. Para aqueles de nós que não estão no contexto de serem monges ou monjas já envolvidos na prática mais adiantada do tantra, isso nos dá então uma indicação de que não podemos considerar como garantido este tipo de coisas, como o refúgio. Nós temos de começar a partir de um estágio mais básico.

Especialmente como ocidentais, quando começamos a estudar com um professor, a questão do professor ser um Buda ou não, na verdade não é relevante. Primeiro precisamos de examinar se ele é um bom professor. Explica com clareza? O que explica ele? O que ele explica está de acordo com os textos clássicos? Está de

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acordo com a minha [experiência de] vida? Seria como testaríamos qualquer tipo de professor – digamos, por exemplo, se fôssemos aprender uma língua: ensina eficazmente?

Também registamos o tipo de sentimento geral que temos quando estamos com essa pessoa. Através desse sentimento podemos ficar com uma ideia de que tipo de relacionamento poderemos ter com ela. É alguém que nos inspira ou alguém que nos deixa na mesma? É alguém que realmente comunica conosco ou alguém com quem não conseguimos relacionar? É possível sentir isso. Não requer clarividência nem sequer um grande nível de maturidade.

Então começamos a examinar com um pouco de mais cuidado coisas como a ética dessa pessoa: é uma pessoa ética? É alguém que se irrita facilmente e com frequência? É muito possessivo com relação aos seus estudantes e tenta controlar as suas vidas? Depois podemos perguntar a terceiros, para descobrirmos a maneira como este professor age com os outros estudantes. Estas são algumas das

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maneiras de examinar um professor, até para a simples decisão de se queremos estudar com ele ou não.

Assim, estarmos dispostos a um relacionamento com essa pessoa que vemos como um Buda é algo muito diferente e muito avançado, mas que na verdade não é muito relevante a nível inicial. Se formos alguém que já tomou refúgio e que já percorreu os estágios básicos do caminho e que já está envolvido na classe mais elevada do tantra, se formos alguém assim e tivermos um forte relacionamento com um professor, então podemos ver o professor como um Buda dentro do contexto do que isso significa. Então, se recuarmos outra vez ao início do caminho atravessando todos os estágios, como no exemplo do monge que, em preparação para o recebimento de uma iniciação tântrica, escuta o Lam-rim chen-mo de Tsongkhapa para rever todos os estágios graduais do caminho, então esse relacionamento com o professor como um Buda será a raiz do sucesso no prosseguimento de todo o caminho. Nesse caso, faz uma grande diferença.

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Não Perder a Nossa Faculdade CríticaPrecisamos de compreender as coisas dentro do seu próprio contexto. Não é fácil. Mas, especialmente no início, eu penso que é essencial não perdermos a atitude crítica em relação ao professor. Mais tarde, quando estivermos relacionando com um professor como se ele fosse um Buda, então esse é um contrato especial que temos com esse professor e isso requer uma tremenda maturidade emocional. O que nós estamos dizendo com este tipo de contrato é, basicamente, “você é um Buda e isso significa que, faça o que fizer, irei vê-lo como um Buda que me está tentando ensinar algo”. Lembrem-se, a existência das coisas não é estabelecida do seu próprio lado, independentemente de todas as outras coisas. Assim, a existência deste tipo de relacionamento com o professor é estabelecida com relação à situação de “você me está ajudando a crescer”.

Assim, estamos basicamente dizendo mentalmente ao nosso professor: “não me importa qual a sua motivação nem se, na verdade, é objetivamente iluminado ou não. Em vez disso, vou usar a oportunidade

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deste relacionamento para crescer e aprender constantemente. Se me disser que eu faça algo de estúpido, não vou responder ‘você é estúpido’ e ficar irritado com você. Pelo contrário, vou pensar que me disse que eu fizesse algo de estúpido para que eu aprendesse a lição de usar o meu próprio discernimento e decidir por mim mesmo não fazer isso”. Por outras palavras, o que quer que eles façam, nós interpretamos como um ensinamento e tentamos aprender algo com isso. Não importa o que se está passando do lado deles.

Sem dúvida, isto é o que significa quando se diz que nós precisamos de ver todos como um Buda. Vemos tudo como uma lição. Assim, podemos aprender com uma criança. Quando uma criança age de uma forma travessa ou tola, podemos aprender a não agir desse modo. A criança é o nosso professor. Até um cão nos pode ensinar. Qualquer pessoa nos pode ensinar. Isso de não ficarmos irritados e não sermos julgadores, requer um grande nível de maturidade emocional, não é? É uma

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prática muito avançada. Não é algo que possamos fazer como principiantes.

Obviamente, temos de examinar muito bem se podemos participar ou não neste tipo de contrato com este professor, de nos relacionarmos a esse nível. O professor é qualificado? Nós somos qualificados? Poderíamos até ter esse tipo de relacionamento com um professor com quem não temos muito contato pessoal. Quando assistimos apenas a ensinamentos gerais que um grande professor dá a grandes multidões, podemos fazer a mesma coisa: “Irei aprender com o que quer que seja que você diga ou faça”. Mas lembrem-se, isto não é o relacionamento de um soldado com um general do exército: “Sim, senhor! Que devo fazer? Diga-me. Dê-me uma ordem. Sim, senhor! Eu farei isso”. Não é assim de forma alguma.

Sessão 6: Duas Questões Adicionais – Tornando-nos Budistas e FelicidadeConversão ao Budismo

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Temos estado falando sobre algumas das várias dificuldades que muitas pessoas têm trabalhando com o budismo. Vimos que é muito importante termos uma atitude realista. Em relação a isto, um dos conselhos que Sua Santidade o Dalai Lama repetidamente dá a ocidentais é o de terem muito cuidado em mudarem de religião. O seu conselho levanta a seguinte questão: quando nós seguimos o caminho budista, isso significa que mudámos de religião, que nos convertemos e que em vez de usarmos uma cruz ao pescoço agora usamos uma corda vermelha?

Eu penso que não é muito útil pensarmos na nossa dedicação ao percurso budista em termos de conversão. Sem dúvida que se dissermos que nos convertemos ao budismo, isso alienará fortemente os que são da nossa tradição de nascimento, seja ela cristã ou judaica, e especialmente se for islâmica. A conversão fora das nossas religiões de nascimento não encontra um grande entusiasmo da parte das nossas famílias ou das nossas sociedades, pois não? Vêem-na como uma rejeição pessoal delas. Assim, Sua Santidade diz sempre

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que temos de ser cuidadosos e muito delicados sobre toda esta questão, e eu penso que podemos compreender isto sob um ponto de vista psicológico, além do ponto de vista social da família e da sociedade.

Na vida, é muito importante sermos capazes de integrar toda a nossa vida de modo a que todas as suas partes se encaixem harmoniosamente umas nas outras. Desta forma, tornamo-nos confortáveis com toda a história da nossa vida. Termos uma visão integrada da nossa vida permite-nos ser mais equilibrados na vida. Às vezes, quando as pessoas se convertem a outra religião, o que acontece é que têm uma atitude muito negativa em relação ao que estavam praticando anteriormente. Um dos mecanismos descritos pela psicologia é útil para compreendermos isto. Trata-se da necessidade elementar que as pessoas têm de ser leais aos seus antepassados, à sua família ou à sua cultura de modo a terem um sentido de auto-dignidade. Frequentemente, não é consciente esta necessidade ou ímpeto de sermos leais a

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fim de provarmos a nossa auto-dignidade. O que acontece é que se negarmos os aspectos positivos do nosso passado – digamos, religião, família ou nacionalidade – então, sem estarmos conscientes disso, continuamos a ter o ímpeto de ser leal a esse passado e, assim, sem estarmos conscientes disso, nos tornamos leais aos seus aspectos negativos. Esta é uma forma destrutiva de lealdade.

Formas Destrutivas de LealdadeUm bom exemplo de uma forma destrutiva de lealdade é a experiência tida por algumas pessoas da antiga Alemanha Oriental. Com a integração da Alemanha Oriental na Alemanha Ocidental quase toda a cultura política da Alemanha Oriental foi negada e identificada como “errada” e negativa. O que aconteceu foi que tudo desse anterior sistema foi atirado para o lixo e as pessoas ficaram com uma espécie de um sentimento horrível, de que tinham sido estúpidas e desperdiçado toda a sua vida em algo negativo – especialmente aquelas que tinham sido politicamente ativas no apoio ao Estado. Obviamente isso

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provoca, como consequência, um estado psicológico muito difícil.

A seguir o que aconteceu foi que algumas pessoas do leste, embora não conscientes disso, sentiram a necessidade de serem leais ao seu passado a fim de manterem algum sentido de auto-dignidade, e assim se tornaram leais a aspectos negativos, como o totalitarismo. Daí surgir o fenómeno dos skinheads e dos neo-nazis. O neo-nazismo contém um ódio muito forte aos estrangeiros e uma glorificação de si e da sua raça. Este tipo de lealdade à intolerância aos estrangeiros era característica da sociedade Alemã Oriental. Por outro lado, se as pessoas conseguirem reconhecer os aspectos positivos do seu passado e neles se concentrarem, isso lhes permitirá serem leais a eles, e contribuirá para uma muito melhor integração da totalidade das suas vidas. E havia muitos aspectos positivos na sociedade Alemã Oriental. Um deles era o dos relacionamentos afetuosos de coração a coração que algumas pessoas possuiam, incluindo a capacidade de criarem empatia e de confiarem umas nas outras. Como

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todas elas estavam a ser externamente controladas de uma forma muito severa, então, quando estavam entre amigos dentro de um ambiente seguro, tinham a capacidade de estabelecer esse tipo de relacionamento afetuoso. Era muito positivo.

O mesmo problema de formas destrutivas de lealdade surge frequentemente quando mudamos de religião. Se pensássemos apenas “a religião que tive anteriormente era estúpida e horrível”, e depois mergulhássemos em algo novo como o budismo, então, não conscientes disso, teríamos a tendência uma vez mais para sermos leais ao nosso passado. Nesses casos, nós permanecemos leais a coisas negativas em vez de positivas. Por exemplo, se o nosso background fosse cristão, talvez notássemos que nos tinhamos tornado muito dogmáticos ou muito sérios, com medo dos infernos e com o que devíamos ou não fazer, e por vezes poderíamos também nos tornar muito sectários. Para evitarmos isso é muito importante reconhecermos as coisas positivas da nossa religião de nascimento,

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da religião da nossa família e também as coisas positivas da nossa cultura – os aspectos positivos de se ser alemão, italiano, americano, brasileiro e assim por diante.

Há obviamente muitíssimas coisas positivas num background cristão, com toda a sua ênfase no amor e caridade, particularmente ajudando os pobres, os necessitados e os doentes. Isto é muitíssimo positivo. Não há nada de contraditório entre isso e a prática budista. Num certo sentido, podemos ser cristãos e budistas, porque não há nenhuma necessidade de se atirar para fora esses aspectos positivos do nosso background cristão. Quer nos consideremos budistas ou não, eu realmente não acho que isso seja um problema com o budismo. Nunca foi um problema, como o foi na Europa medieval, onde tinham de identificar a sua religião perante uma Inquisição. Essa não é a maneira budista.

A Posição dos Budistas Leigos na Tradicional Sociedade Indiana

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Eu penso que podemos ver isto a partir do exemplo da antiga India. Na antiga India onde o budismo se desenvolveu, não havia uma distinção muito clara entre budistas e hindus. Temos a incorreta ideia de que o budismo na India não tinha castas e que Buda era contra o sistema de castas. Mas, na verdade, isso só dizia respeito à comunidade monástica. Para os monges e monjas não havia castas, mas isso não se verificava com os seguidores leigos do Buda. Nós vemos algumas inscrições nas ruínas das paredes de antigos mosteiros budistas: “esta quantidade de dinheiro foi doada ao mosteiro pelo brâmane tal e tal”. Essas inscrições incluiam sempre a casta da pessoa leiga, que tinha oferecido a doação. Isso é uma indicação clara de que os budistas leigos não formavam uma comunidade separada dos hindus; eles faziam parte da sociedade hindu. Isso significava que na India não havia cerimónias separadas de casamentos budistas e esse tipo de coisas. Na verdade, os budistas leigos indianos seguiam os costumes hindus para tal.

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Havia vantagens e desvantagens nisso. A vantagem era que na India todos faziam parte de uma sociedade integrada e cada pessoa seguia a sua própria escola e professor espirituais. Assim, se seguíssemos uma escola budista ou esta ou aquela forma de hinduísmo, isso na verdade não faria muita diferença, pois a própria sociedade incluia harmoniosamente todos, sem ninguém ter que dizer “eu sou hindu” ou “eu sou “budista” dessa maneira tão forte. Naturalmente, se fôssemos para monge ou monja, isso seria obviamente um forte comprometimento de nos juntarmos a uma comunidade separada. Isso seria diferente. Estamos falando sobre a posição das pessoas leigas na India tradicional.

A desvantagem era que quando os mosteiros budistas deixavam de funcionar na India, a maioria dos budistas era muito facilmente absorvida pelo hinduísmo, especialmente em virtude de o hinduísmo ter reconhecido Buda como uma forma de Vishnu, o seu Deus. Era então muito fácil ser devoto a Buda e um bom hindu.

Seguir o Budismo e Ir à Igreja

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Precisamos obviamente de um equilíbrio para não cairmos no extremo de banalizar o budismo ou no extremo de: “converti-me ao budismo e estou proibido de continuar a ir à igreja”. A verdadeira pergunta é: “o que significa a cerimónia da tomada de refúgio? Significa que agora me tornei budista, tal como o batismo numa conversão cristã?” Não acho que seja o equivalente a um batismo. E não acho que seja útil olharmos para isso dessa maneira.

Eu acredito que o caminho espiritual que seguimos precisa de ser algo muito privado. Andarmos por aí com sujas cordas vermelhas à volta do pescoço, especialmente se tivermos uma coleção de trinta, nos faz parecer muito estranhos – um pouco como um africano de Ubangi com um monte de argolas de metal à volta do pescoço. Se quisermos ter essas cordas, podemos mantê-las recolhidas, só para nós, por exemplo nas nossas carteiras ou outra coisa assim. Não é necessário anunciarmos o que estamos fazendo. Não há nenhuma razão para acharmos que é proibido irmos à igreja ou que isso seja uma ameaça ao nosso comprometimento ao budismo.

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Frequentemente as pessoas, quando se voltam para o budismo, tornam-se defensivas porque no início estão inseguras e ainda não se encontram confortáveis. Assim, para justificarmos a nossa escolha de percurso espiritual, psicologicamente sentimos que não podemos ir à igreja nem pensar em nada de positivo sobre o nosso passado. Esse é um grande erro. Obviamente, se estivermos seguindo genuinamente o caminho espiritual budista, precisaremos de colocar aí todas as nossas energias. Contudo, isso não contraria a prática do amor cristão e a de sermos inspirado por grandes figuras cristãs, como a Madre Teresa, e tentarmos servir os pobres como ela o fez. Não é nada contraditório ao caminho budista. Como poderia ser?

Se estivermos praticando meditação e vários outros tipos de treinamento budista, não há nenhuma razão para que isso nos faça sentir mal em ir à igreja, se surgir um motivo que nos leve a fazer isso. Não há nenhum problema. E quando nessa situação formos à igreja, não é útil estarmos lá sentados com sentimentos de

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ameaça por esse fato, de modo que tenhamos de dizer mantras todo o tempo. Se formos à igreja como praticantes budistas, não há nada de errado em participar. O que é importante é a nossa atitude durante toda a experiência de estarmos na igreja.

Agora, obviamente, em qualquer forma de religião organizada, vamos encontrar coisas que são atrativas e coisas que não são muito atrativas. Assim, se estivermos numa situação onde a nossa família nos diz “é um feriado especial; vem à igreja – é Natal” ou o que quer que seja, então dizermos “não vou à igreja convosco porque sou budista” iria ofendê-los muito. Levariam isso como uma rejeição pessoal. Por isso é melhor irmos à missa de Natal com as nossas famílias. Em vez de focalizarmos em coisas do cristianismo que talvez nos possam ter irritado e que talvez tivéssemos, no passado, sido críticos em relação a elas, enfoquem em coisas positivas, porque há coisas positivas. Desta forma, psicológica e mentalmente, o resultado é que nos sentiremos como uma pessoa muito mais integrada. Fizemos as

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pazes com a nossa história pessoal. Isso é realmente muito útil.

FelicidadeFazer as pazes conosco leva-nos ao tópico de: “que lugar tem a felicidade no budismo?” Eu penso que uma questão muito importante para muitos recém chegados ao budismo, especialmente se tiverem vindo de uma religião enfatizando que todos somos uns pecadores, é a seguinte: “posso ser feliz?” Nos ensinamentos budistas ouvimos que tudo é sofrimento e que podemos morrer a qualquer momento, por isso não devemos desperdiçar tempo nenhum. E assim, muitas vezes temos o sentimento de que não nos é permitido ir ao cinema, relaxar ou divertirmo-nos. Isso é um grande mal entendido. Primeiro temos de examinar a definição de felicidade e compreender o que ela é. Algumas pessoas nem sequer sabem se são felizes ou o que é a felicidade. Têm de perguntar a alguém: “o que acham, eu pareço ser uma pessoa feliz?”

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No budismo, há várias definições de felicidade. A definição principal é que a felicidade é o sentimento que amadurece da ação construtiva e positiva. É o amadurecimento do carma positivo. Se essa for a definição da felicidade, então obviamente no budismo nós queremos ser construtivos de modo a que possamos experienciar a felicidade como consequência. Com a prática budista, estamos especificamente tentando ser positivos e construtivos; consequentemente, é obvio que iremos experienciar a felicidade como consequência e que “temos autorização” para experienciá-la. O budismo não diz que não é permitido ser feliz. Se a felicidade não fosse permitida no budismo, então os budistas andariam por aí sendo destrutivos a toda a hora, porque isso faria com que eles nunca fossem felizes!

E há um ensinamento básico no budismo segundo o qual todos querem ser felizes e ninguém quer ser infeliz. Se esse é o caso e, com amor, estivermos desejando que todos sejam felizes, e também estivermos trabalhando para levar a felicidade a todos,

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é óbvio que também estamos desejando ser felizes e também estamos trabalhando para trazer a felicidade a nós mesmos.

A felicidade também é definida como o sentimento que, quando surge, nós gostaríamos que continuasse; e que, quando acaba, gostaríamos que voltasse, mas sem apego. Basicamente, a felicidade sabe bem.

Confusão sobre a FelicidadeA confusão relativamente à questão da felicidade parece surgir sob dois aspectos. Um é que nós pensamos frequentemente que para experienciar a felicidade, o sentimento tenha de ser dramático. O outro aspecto é a confusão sobre a forma que teria a felicidade de tomar para ser qualificada como tal. Este segundo aspecto relaciona-se à seguinte pergunta: qual é a verdadeira fonte da felicidade?

Primeiro, a felicidade não tem de ser dramática para que conte como sendo felicidade. Frequentemente, pensamos que um sentimento tem de ser muito forte para que ele realmente exista. Temos uma atitude tipo Hollywood relativamente às

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coisas. Se uma emoção positiva tiver um baixo nível de intensidade, não fará um bom filme; não fará um bom espetáculo. Assim, tem de ser muito forte, talvez até com uma música de fundo dramática. Esse não é o caso. Como já tenho dito, a felicidade é o sentimento que experienciamos como agradável e gostaríamos que continuasse – é muito agradável. A felicidade não tem de ser um destes tipos de coisas “Fantástico! Incrível!”, demonstrativas e entusiásticas, geralmente mais comuns na America Latina ou na Itália. Também pode ser uma coisa britânica, mais controlada.

Quanto ao segundo aspecto, lembrem-se, quando falamos sobre o sentimento de um nível de felicidade ou infelicidade, esse sentimento é a forma como experienciamos o amadurecimento do nosso carma – é a forma como experienciamos as coisas na nossa vida. Então, a pergunta é: em que tipo de forma experienciamos essa felicidade? A forma que a nossa felicidade toma tem algo a ver com o estarmos entretidos, divertidos, distraídos da monotonia das nossas vidas? Temos de

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estar divertidos para que um sentimento conte como sendo felicidade? E a um nível ainda mais básico, fazermos algo para nos divertirmos é uma verdadeira fonte de felicidade?

Divertimento“Divertimento” é uma palavra muito interessante. É muito díficil de definir. Uma vez estava, na Holanda, com o meu professor Serkong Rinpoche, e as pessoas com quem estávamos tinham um barco privado muito grande – um iate. Um dia, ofereceram-se para nos levar a dar uma volta no seu barco e “passarmos um bom tempo”. O barco estava num lago muito, muito pequeno – um barco muito grande num lago muito pequeno. Nesse pequeno lago havia também muitos mais, barcos grandes e barcos pequenos. Saímos nesse barco e andámos em círculo nesse lago com todos os outros barcos, o que me fez lembrar os parques de diversão para crianças, com pequenos carros andando em círculos. Era tal e qual. Passado um pouco, Serkong Rinpoche voltou-se para mim e perguntou-me em tibetano: “é a isto que eles chamam ‘divertimento’?”

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A minha questão é que; se virmos a felicidade em termos de causa e efeito, qual é a causa de ser feliz? Do ponto de vista budista, a causa da felicidade é o comportamento construtivo. Não é sairmos e fazermos algo frívolo para nos “divertir” que irá então nos fazer felizes. Podemos sair e fazermos algo que, de acordo com a sociedade, seja considerado “divertimento”, como irmos dar uma volta de barco, irmos ver um filme, irmos a uma festa ou qualquer coisa assim, e estarmos completamente tristes. Por outro lado, podíamos estar sentados trabalhando no nosso escritório e estarmos muito felizes e contentes. Assim, se tivermos acumulado as causas da felicidade, que é o comportamento construtivo, então iremos experienciar a felicidade em qualquer tipo de situação e não necessariamente apenas em situações que são chamadas tradicionalmente de “divertimento”.

Quando temos de escolher o que fazer ou como passar o nosso tempo, podemos decidir entre trabalhar, relaxar, praticar um esporte, nadar ou o que quer que seja. Mas penso que é importante termos nas

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nossas mentes uma clara compreensão a respeito da fonte de felicidade nessa atividade. Poderíamos escolher nadar ou trabalhar de acordo com o critério “eu quero fazer isto para ser feliz”, mas penso que há outros critérios que poderíamos usar. Os outros critérios seriam: “eu tenho andado a trabalhar demasiado. Eu estou muito cansado e, de modo a ser mais útil, na minha vida, a mim e aos outros, será muito mais produtivo relaxar agora. Já não é produtivo continuar a trabalhar”. Usando uma metáfora; o cavalo tem de ir ao pasto comer; não pode correr eternamente.

A vida é difícil, e essa é a Primeira Nobre Verdade. É difícil ter-se um corpo destes. Não é capaz de trabalhar vinte e quatro horas por dia eternamente. Nós temos que relaxar; temos que dormir; temos que comer. Não há nenhuma necessidade de nos sentirmos culpados acerca disso. Já lidámos com a questão da culpa quando falámos sobre a aceitação do fato de que a vida é difícil. É um fato que a vida está cheia de toda a espécie de problemas. Se conseguirmos aceitar esse fato, então não viremos a nos sentir culpados acerca disso.

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Mas se tivermos a ideia de que “agora tenho de me divertir” e nos forçarmos a nos divertir e a ser felizes, isso geralmente não resulta. Se não tivermos a expectativa de que irmos ao cinema, à natação ou a um restaurante nos vai fazer felizes, ou a expectativa de que divertirmo-nos desta forma significa que somos felizes, então não ficaremos decepcionados. Mas é muito possível que estas atividades nos possam ajudar a recarregar as nossas baterias, no sentido de nos relaxar e dar mais energia. Isso podem elas fazer – mas apenas às vezes, pois não há nenhuma garantia. Ao fazermos essas coisas, ficarmos felizes ou não é outra questão. E se experienciarmos algum nível de felicidade durante a atividade, não terá de ser nenhuma experiência latina, superintensa e superfogosa.

Isto é verdade não só com relação à ida ao cinema ou à natação; também é muito útil termos isso presente nas nossas mentes ao nível dos nossos relacionamentos com as outras pessoas – amizades e assim por diante. Algumas pessoas pensam que quando vão visitar um amigo têm de “fazer

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algo” juntas: têm de sair juntas, divertindo-se fazendo algo. Na verdade, não conseguem apreciar um baixo nível de felicidade e o contentamento por estarem simplesmente com esse amigo, não se importando com o que façam. Poderiam até ir juntas ao supermercado comprar comida ou lavar a roupa. Eu acho isto muito útil não só para abandonarmos expectativas estranhas sobre o que é a felicidade, como também sentimentos de culpa acerca disso.

Reconhecer o Nível da Felicidade que Estamos SentindoVamos fazer um pouco de auto-observação. Vamos sentar e simplesmente experienciar o estar aqui, tentando observar o sentimento que temos. Aqui, “sentir” é definido de acordo com a definição budista do segundo dos cinco agregados – ou seja, sentir é a maneira como experienciamos aquilo que estamos vendo, aquilo que estamos ouvindo, aquilo que estamos pensando, etc., em termos da variável feliz, infeliz ou neutro. Tentem apenas reconhecer e identificar isso. Não estamos falando sobre o sentir frio ou calor, ou o sentir alguma sensação física como prazer

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ou dor. É o nível de felicidade ou de infelicidade que acompanha qualquer atividade física ou mental, no sentido de experienciá-lo como agradável ou não agradável.

Por exemplo, eu acho agradável olhar para as flores deste vaso. Olhem para as flores. Como é que vocês se sentem? Como é que vocês experienciam isso? Tentem identificar e reconhecer o sentimento de algum nível de felicidade que vocês experienciam quando olham para as flores, para os quadros da parede ou quando olham lá para fora e vêem árvores – que nível de felicidade sentem? Tentamos reconhecer que, de fato, nós temos muita felicidade. Não é uma experiência de superfelicidade à brasileira, mas está lá.

Por favor, observem em vocês o sentimento que têm. E tenham presente que a felicidade é esse sentimento que, quando surge, gostaríamos que continuasse e que, se acabasse, gostaríamos que voltasse. E a infelicidade é esse sentimento que, quando nós o experienciamos, queremos que ele acabe; queremos que se vá embora.

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[pausa]

Eu penso que esta prática não tem de ser um exercício formal de meditação. Pelo contrário, é algo que podemos fazer em qualquer momento, a fim de gradualmente nos tornarmos mais conscientes de que na maior parte do tempo nós, na verdade, estamos felizes. Não é o caso “eu não tenho nenhum sentimento” que é o que alguns de nós talvez pensem.

Têm alguns comentários?

Participante: (tradutor) A transição entre escutar você primeiro, que é um processo muito ativo, e depois sentir de repente o que está acontecendo, foi dificil. Ele sentiu-se um pouco surpreso com essa observação. Esta manhã quando ele atravessou um parque, teve um sentimento muito claro; teve o sentimento de que “está tudo bem e eu sou muito feliz”, e isso aconteceu muito naturalmente.

Alex: Eu penso que é uma questão muito importante reconhecermos que estamos constantemente tendo sentimentos, quer estejamos fazendo algo que achamos muito

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relaxante, quer fazendo algo que é muito intensivo. Às vezes, estamos demasiadamente com os nossos pensamentos e não nos apercebemos que, na verdade, há uma certa qualidade no modo como experienciamos tudo, e que essa qualidade está nesta dimensão de feliz ou infeliz. Está ocorrendo a todo o momento. A importância disto é que muitas vezes caímos no extremo do “pobre de mim, não sou feliz e quero divertir-me, não quero estar aqui neste escritório enfadonho” e em todo este tipo de lamentações. Mas contudo podemos estar num terrível engarrafamento de tráfego e experienciar um calmo sentimento interior de felicidade e contentamento. Lembrem-se de que a felicidade não tem de ser intensa.

Participante: Não há aqui uma diferença aqui entre o que se está passando na sua cabeça e o que se está passando no seu coração? Para os seus sentimentos, os tibetanos apontam sempre para o coração.

Alex: Os tibetanos apontam também para aí para os pensamentos. Sob o ponto de vista tibetano, todos os aspectos do nosso

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experienciar das coisas, sejam intelectuais, emocionais ou sensoriais, vêm de um lugar que localizam no coração. Na verdade, não interessa onde estão localizados. Eles são vistos como um todo, e não como uma dicotomia ou separação entre corpo e mente, ou entre intelecto e sentimentos, como frequentemente é considerado no Ocidente. Assim, podemos estar felizes estando intelectualmente muito envolvidos em algo. Como digo, é muito importante reconhecermos isto, especialmente nos relacionamentos com os outros. Às vezes pensamos “eu tenho de estar apaixonado para ser realmente feliz” – como numa espécie de experienciação adolescente. De fato, quando se está num relacionamento amoroso com alguém, esse sentimento de felicidade pode ter um nível baixo de intensidade, mas ainda ser contudo muito agradável.

Sessão 7: A Prática TântricaTantra é uma Prática Avançada

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Nesta nossa última sessão vamos falar um pouco sobre o tantra. Nós também precisamos de trazer o tantra à terra.

Ao aproximarem-se dos ensinamentos tântricos do budismo tibetano, as pessoas do Ocidente caem frequentemente em um de dois extremos. Um extremo é o de terem medo deles e de não quererem ter nenhum envolvimento com o tantra. O outro extremo é o de quererem mergulhar imediatamente para dentro do tantra. Estes dois extremos têm as suas falhas.

O tantra é uma prática extremamente avançada. Não é algo de que se deva ter medo nem algo onde se deva ingressar prematuramente. A nível do sutra, nas nossas iniciais práticas budistas, o que fazemos é aprender a desenvolver muitas qualidades diferentes que nos ajudarão a melhorar o samsara, a alcançar a liberação ou a nos tornarmos um Buda a fim de podermos ajudar os outros tão inteiramente quanto possível. Atingir estes objetivos requer o desenvolvimento da concentração, do amor e da compaixão, uma compreensão correta e profunda da

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impermanência, da vacuidade, da renúncia, e assim por diante. Tudo isto é absolutamente necessário pois são as causas da obtenção desses objetivos. Embora possamos descrever o tantra de muitas formas diferentes, um aspecto da prática tântrica é que [ela] é um método de unir e praticar tudo isto simultaneamente.

[Ver: Compreender o Tantra.]

Não podemos obviamente praticar todas estas coisas simultaneamente se as não tivermos anteriormente desenvolvido uma a uma. Entrarmos diretamente na prática tântrica sem termos previamente desenvolvido estas qualidades irá simplesmente degenerar numa prática ritual sem nenhum conteúdo ou profundidade. Para realmente obtermos qualquer benefício profundo de um ritual, temos de o ver como uma estrutura unificadora de todas as qualidades que nós temos vindo a desenvolver.

Precisamos por exemplo de dar uma direção segura e positiva de refúgio nas nossas vidas. O que estamos fazendo com a prática de um ritual tântrico? Apenas isso:

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estamos indo nesta direção segura, tentando através do ritual o desenvolvimento de nós próprios. Não estamos fazendo o ritual como um divertimento ou como uma distração, como ir à Disneyland, ou como um escape para as nossas vidas quotidianas. Pelo contrário, estamos usando a prática ritual como uma forma de ajudar o nosso auto-desenvolvimento a fim de alcançarmos os vários objetivos budistas. Estes objetivos são as Três Jóias de Refúgio: o que Buda ensinou, o que ele conseguiu por completo, e o que o altamente realizado Sangha conseguiu em parte.

A Necessidade da RenúnciaA renúncia é outra parte extremamente necessária de qualquer prática tântrica e, deste modo, necessitamos também de salientar aquilo a que ela se refere. A renúncia tem dois aspectos. Um é a forte determinação de nos livrarmos dos nossos problemas. Esse aspecto permite-nos usar a prática tântrica como um método para nos libertarmos dos nossos problemas através da obtenção da iluminação. Se não tivermos esse aspecto de renúncia, essa

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determinação de estarmos livres, seremos incapazes de aplicar as práticas a nós próprios como uma parte integral do nosso percurso espiritual.

O outro aspecto da renúncia é a disposição de abrir mão não só do nosso sofrimento, como também das causas do nosso sofrimento. Isso é muito importante. Se não estivermos dispostos a abdicar das causas do nosso sofrimento, não haverá outra forma de nos livrarmos desse sofrimento, não importa o quanto pretendemos nos livrar dele. Infelizmente, a causa do nosso sofrimento não é apenas algo trivial, como ir ao cinema ou comer chocolate ou até fazer sexo. É algo que é totalmente abrangente na nossa vida. A um certo nível, são todos os traços negativos da nossa personalidade – toda a nossa raiva, apego, arrogância, ciúme e assim por diante. Se formos um pouco mais fundo, inclui a nossa insegurança, a nossa ansiedade e preocupação. E se formos ainda mais fundo, é a nossa confusão – são todos os conceitos errados que temos acerca de nós e acerca de tudo na vida.

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Ainda mais profundo do que isso, o que precisamos realmente de nos livrar é do nosso habitual tipo de mente, que faz com que as coisas pareçam de uma maneira que não está de acordo com a realidade. Com base nestas chamadas “aparências impuras”, o nosso não-apercebimento de que elas são enganadoras e falsas faz-nos então acreditar que elas são verdadeiras. Todos os nossos problemas vêm daí.

Não é a mente em si que é o problema; é este funcionamento ou esta atividade mental que provoca o surgimento destas aparências enganadoras e a nossa errada crença de que estas aparências são verdadeiras. Por conseguinte, a causa dos nossos problemas também não são as próprias aparências que a mente produz. É um grande erro pensar-se que o problema está nas próprias aparências. Pensar-se dessa forma é uma falha que vem da má interpretação da palavra tibetananangwa, que pode significar “aparências” ou “produtor de aparências”.

Quando falamos sobre a libertação de “aparências comuns” ou “aparências

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duplas”, não estamos falando sobre um substantivo; não estamos falando sobre aparências “aí fora”. Estamos falando sobre um modo de estar ciente de algo; estamos falando sobre um verbo. Especificamente, estamos falando sobre a função da mente que faz com que as coisas apareçam de uma maneira que não está de acordo com a realidade. É disso que nos estamos tentando livrar; é disso que estamos tentando conseguir uma verdadeira paragem. E, infelizmente, a vida é difícil – as nossas mentes fazem constantemente as coisas aparecerem [em termos] irracionais, sem começo.

Por exemplo, mesmo se tivermos algum entendimento sobre a impermanência e de nenhum self sólido, quando nos levantamos de manhã e nos vemos ao espelho, as nossas mentes fazem parecer como se fôssemos idênticos à mesma pessoa que éramos na noite anterior. Parece que somos permanentes. Ou acabámos de magoar o pé e a nossa mente faz com que pareça que existe um “eu” separado do pé: “Eu magoei o MEU pé”. As nossas mentes conceituais, baseadas na nossa linguagem,

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fazem com que as coisas pareçam ser dessa maneira.

O que precisamos é de estar dispostos a abandonar todo este processo mental que faz com que as coisas pareçam ser dessa maneira – e ao qual, infelizmente, estamos incrivelmente habituados – e toda a confusão, problemas, preocupações e assim por diante que derivam dele. Se não estivermos dispostos a abrir mão disso, como poderemos transformar, através do tantra, o nosso self, a nossa auto-imagem e todo este tipo de coisas?

Sem estarmos dispostos a abandonar a nossa habitual auto-imagem, que é a auto-imagem de um “eu” sólido com uma espécie de identidade sólida, e depois imaginarmo-nos como uma espécie de deidade, isso será o caminho para a esquizofrenia em vez do caminho para a liberação. Nós teríamos ainda essa ideia louca, completamente irritadiça e apegada de nós próprios. Depois iríamos adicionar ao topo dela esse exagero que é “eu sou uma deidade”. Então poderíamos ter facilmente a loucura de dizer, por exemplo:

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“estou com raiva: este é o meu aspecto como deidade irada”. Ou fazemos sexo com qualquer pessoa que encontramos, porque: “eu sou uma deidade com uma consorte, e esta é uma avançada prática tântrica de fazer sexo com todos”. Tudo isto é um grande perigo que pode acontecer se nos metermos no tantra sem termos como base esta determinação de sermos livres – esta renúncia da nossa habitual auto-imagem.

E para renunciar a essa auto-imagem é absolutamente necessário ter uma compreensão correta do vazio; porque de outro modo, como poderíamos transformar o conceito de nós próprios? Sem uma compreensão correta, podemos ficar completamente loucos, pensando de uma maneira muito estranha “ tudo à minha volta é uma perfeita mandala e toda gente é Buda”, e depois somos atropelados por um carro porque não prestámos atenção quando atravessámos a rua.

Além disso, é absolutamente necessário ter-se amor, compaixão e bodhichitta. Nós estamos fazendo todas estas práticas para ajudarmos os outros e devido ao nosso

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interesse pelos outros. A bodhichitta, como um método para lidarmos com o mundo e com os outros, leva-nos realmente a aplicar tudo isto. Sem bodhichitta, é muito fácil cairmos sozinhos numa Disneyland budista, num estranho reino imaginário.

Quando estamos fazendo as práticas tântricas, imaginamos que temos todos aqueles braços e pés e que estamos rodeados por cinco luzes coloridas, etc. Cada uma dessas coisas é uma representação de vários entendimentos, de várias qualidades, como o amor, a compaixão, os cinco tipos de consciência profunda e assim por diante. Imaginando essas coisas sob uma forma gráfica, tal como os braços e os pés múltiplos, ajudar-nos-á a gerá-los todos em simultâneo. É neste sentido que o tantra é uma prática muito avançada e requer uma forte preparação para sermos capazes de o praticar corretamente.

A Necessidade das Práticas PreliminaresQuando falamos sobre outros tipos de preparação, como prostrações e repetição [do mantra] de cem-sílabas de Vajrasattva,

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isso está para lá do que acabámos de falar. Isso ajuda-nos a acumular o potencial positivo para o sucesso da nossa prática tântrica e para nos purificar do potencial negativo que impediria que tal acontecesse. Mas, por si só, fazermos estas práticas preliminares, sem também termos juntamente com elas esses fatores do amor, da compaixão, da concentração, da vacuidade etc., não será o suficiente para se obter sucesso. Poderíamos, por exemplo, estar fazendo cem mil prostrações tendo como motivação uma razão muito neurótica; tal como agradar a nosso professor, juntarmo-nos ao clube de “pessoas especiais”, como castigo por sermos uma “má” pessoa ou coisas assim.

Estas práticas preliminares necessitam de ser feitas não só com base em todos estes vários aspectos do Dharma, tais como o amor e a compaixão, como necessitam também de ter como objetivo a promoção do nosso desenvolvimento nesses aspectos. Isto é semelhante ao que já discutimos em termos de como progredir na nossa compreensão da vacuidade ou do que quer que seja, e como para isso é necessário

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acumular muito potencial positivo e eliminar alguns bloqueios mentais. Estas práticas, como as prostrações, ajudam-nos a criar energia positiva para conseguirmos unir todos os aspectos do Dharma. Se tivermos falta destes aspectos que necessitamos unir, em si, a energia positiva das práticas preliminares não será suficiente.

A forma de se acumular o potencial positivo e de se eliminar os obstáculos pode ser estruturada em termos tradicionais, mas não tem de o ser. Poderia ser o cuidado com as nossas crianças ou o trabalho num hospital – qualquer coisa construtiva ou positiva que fazemos frequentemente. Eis um exemplo tradicional: Buda teve um discípulo muito difícil que não tinha grande capacidade intelectual. Como prática preliminar para essa pessoa, Buda mandou-o varrer o templo durante muitos anos com a recitação: “sujeira, vá-se lá embora; sujeira, vá-se lá embora”. Esta era a prática preliminar para essa pessoa. Buda não o mandou fazer prostrações. Assim, necessitamos de ser um pouco flexíveis e

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compreender que o mais importante é o próprio processo de acumulação e de purificação. A estrutura desse processo pode ser feita especificamente para cada indivíduo.

O Professor Espiritual e a Tomada de VotosPor outro lado, não há nenhuma necessidade de se ter medo do tantra e sentir que “eu não me quero meter nisso de forma alguma”. Mas temos de ter cuidado sobre isso e praticar corretamente. Para isso, a relação com o professor espiritual é muito importante porque, como estávamos mencionando, quando vemos o professor como uma dessas deidades, como uma dessas formas búdicas, isso também funciona de outra maneira: permite-nos ver essas figuras búdicas como humanas. Ou seja, aprendemos o que na verdade significa transpor para a vida humana toda a prática tântrica. Isto é muito importante. Se assim não for, podemos ficar com umas ideias muito estranhas acerca do que significa a visualização de nós próprios nessas formas, durante todo o dia.

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Outra coisa muito importante com relação ao tantra é a tomada de certos grupos de votos – os votos leigos, os votos bodhisattva e, nas duas classes mais elevadas do tantra, os votos tântricos. Mas temos de ter cuidado a fim de evitarmos a tomada de votos sob o ponto de vista de que existimos como um “eu” sólido e que “eu devo fazer isto e não devo fazer aquilo”. Assim, a compreensão da vacuidade é muito importante para a nossa capacidade da tomada de votos de uma forma não neurótica, por forma a não carregarmos sentimentos de culpa sobre o que fizemos no passado ou o que possamos vir a fazer no futuro, ou sentimentos de que estamos perdendo o controlo devido a termos tomado esses votos, ou “agora eu dei o controlo a outra pessoa e me tornei num escravo do professor”. Se assim pensarmos, em termos da questão do controlo, podemos então vir a ficar com tanto medo de tomar votos que acabamos por não nos envolver no tantra.

Para superarmos tudo isso e para sermos capazes de tomar e manter os votos de uma forma não neurótica, necessitamos uma vez

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mais da compreensão da vacuidade. Repito e torno a repetir, para praticarmos o tantra, NECESSITAMOS de renúncia, bodhichitta e compreensão da vacuidade. Se estivermos corretamente preparados, o tantra é então extremamente importante porque nos permite unir tudo. É correto sermos muito cautelosos e cuidadosos e não mergulharmos para o tantra antes de estarmos preparados, mas precisamos também de evitar pensar que: “eu nunca irei estar preparado e por isso não me quero meter nisto”. Na nossa abordagem, precisamos de uma espécie de caminho do meio.

Quando é que a Nossa Compreensão é Suficiente?Quando é que sabemos que “agora eu tenho uma compreensão suficiente da vacuidade, da bodhichitta e da renúncia para me envolver com o tantra?” Isso não é assim tão fácil. Antes do mais, nós conhecemo-nos melhor do que qualquer outra pessoa. Dizer que “o guru sabe” e assim por diante, é realmente romantizar toda esta situação. Torna-se num método para fugirmos à tomada de

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responsabilidade pelas nossas vidas, o que é muito imaturo. Obviamente, se tivermos uma relação próxima com um professor espiritual, a discussão com o professor pode ser útil. Precisamos de evitar pensar, de uma forma arrogante, que “eu não tenho que consultar o meu professor”. Mas nem todos temos uma relação pessoal e próxima com um professor, e por isso não é assim tão fácil. Eu penso que temos de olhar para dentro de nós, sermos honestos conosco e não nos distrairmos com jogos de auto-engano: “sou muito avançado”, etc.

Penso que a coisa principal a focalizar em nós próprios – e penso que só nós podemos julgar isso – é na intensidade da nossa compaixão, que irá então determinar a intensidade da nossa bodhichitta. Ou seja, estou realmente preocupado com as outras pessoas e em ser capaz de as ajudar? Se isso for bastante forte, pode nos conduzir a uma firme renúncia e a uma firme bodhichitta. “Tenho de abrir mão a todas as causas que me estão impedindo de ajudar os outros, e tenho de desenvolver todas as boas qualidades de modo a ser capaz de os ajudar tanto quanto possível”.

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A única forma possível de abrir mão às causas das nossas limitações e de desenvolver todas as nossas boas qualidades é através da obtenção da compreensão correta e completa da vacuidade e do não-agarramento ao conceito sólido do “EU – eu sou tão horrível, não consigo fazer nada” ou “eu sou tão maravilhoso, sou a oferenda de Deus ao mundo, não preciso de aprender nada”. É compreender a causa e efeito.

Quando compreendemos a vacuidade, respeitamos naturalmente a causa e efeito – como desenvolver as qualidades para ajudar os outros. Com esta forte determinação em ajudar os outros (eu tenho que abandonar as causas do meu sofrimento. Eu quero fazê-lo. Não é que eu ‘deva’ abandoná-las, mas quero e sinto mesmo a necessidade de fazer isso.), somos motivados ou movidos, de uma maneira altruísta, a fazer isso. E nos apercebemos que necessitamos de seguir a causa e efeito para sermos realmente capazes de ajudar os outros. Precisamos de reunir todas as qualidades para sermos capazes de melhor ajudar os outros, e isso só pode ser através

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de um processo de causa e efeito, que apenas pode funcionar com base na vacuidade.

Com base nessa motivação e compreensão, precisamos depois examinar o que se está passando com a prática do tantra, e o que é o tantra. Precisamos de ter confiança que o tantra oferece os métodos mais poderosos para nos livrarmos do que nos está impedindo de ajudar os outros e para desenvolvermos as qualidades com as quais podemos ajudar os outros, tanto quanto possível. Ou seja, precisamos de ter confiança de que a prática do tantra é a maneira mais eficiente de realizar os objetivos da iluminação e de sermos capazes de melhor ajudar os outros.

Quando temos a motivação correta e alguma compreensão da vacuidade, assim como também uma apreciação e uma compreensão do processo da prática tântrica, de tal modo que já temos nela alguma confiança e alguma ideia do que estamos fazendo com ela, então estamos prontos a entrar na prática tântrica. Então estamos realmente atraídos a ela de uma

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forma muito positiva e construtiva e iremos usá-la de uma forma positiva e construtiva.

SumárioResumindo, penso que nós somos os melhores juizes de nós próprios a respeito da sinceridade do nosso desejo em ajudar os outros; ou será que as nossas palavras são ocas? Se praticarmos o tantra antes de estarmos prontos, há uma enorme quantidade de perigos. Na verdade, podemos ficar psicologicamente arruinados se estivermos meramente praticando algum ritual vazio, por algum motivo neurótico. Por um lado, tal prática incorreta pode facilmente funcionar como base para uma enorme sobrestimação de nós próprios com estranhas fantasias, arrogância e assim por diante; e, por outro lado, desilusão por a prática ritual não estar na verdade a alcançar coisa alguma. Quando estamos fazendo uma certa prática ritual diária apenas para manter o compromisso, e ficamos desiludidos por não sabermos pô-la em prática na nossa vida, então a nossa prática diária torna-se uma completa aflição porque a vemos como uma obrigação, um dever: “Eu tenho

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de fazê-la”. Depressa começa a criar-se uma aversão e ela se torna muito desagradável. Se estivermos preparados corretamente e tivermos a atitude correta em relação ao tantra, então a prática tântrica torna-se extremamente benéfica. Mas isso requer a efetiva união de todo o Dharma.

Precisamos também de ter em mente que, quando estivermos envolvidos com a prática tântrica, a nossa prática irá se desenvolver. Precisamos de evitar colocar uma linha sólida à sua volta pensando que a nossa prática será a mesma coisa enfadonha dia após dia: “eu estou recitando este ritual e poderia recitá-lo de trás para a frente”. A prática desenvolve-se com o tempo. É um processo, mais do uma tarefa fastidiosa de recitar a mesma coisa para o resto da eternidade. Embora a ética, a renúncia, bodhichitta, concentração e a compreensão da vacuidade sejam coisas que queremos ter para sempre, o nível da nossa aquisição irá desenvolver-se à medida que nós usamos a prática ritual para as unir.

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Mas tenham sempre presente que, assim como uma característica do samsara é o andar sempre aos altos e baixos, a nossa prática tântrica também irá andar aos altos e baixos. Nunca se desenvolve de uma forma linear, melhorando diariamente. Precisamos de paciência e de perseverança.

Que perguntas têm vocês?

IniciaçõesParticipante: [trad.] No Ocidente, acontece muitas vezes que você recebe iniciações e depois tem de fazer rituais sem ter estes entendimentos; e o fato de você precisar de ter estes entendimentos não lhe é explicado antes de receber a iniciação.

Alex: Sim, infelizmente isso acontece com demasiada frequência. Repare, um dos problemas é que todas estas iniciações estão a ser dadas, e nós, como ocidentais, as recebemos como: “agora eu devo fazer isto e não devo fazer aquilo”. Um tibetano não as aborda dessa maneira. Quando estas iniciações são dadas, a atitude da maioria do tibetano comum é: “ estou assistindo para plantar sementes ou

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instintos no meu fluxo mental para as vidas futuras”. A maioria não tem nenhuma intenção de praticar tantra durante esta vida.

Mas eu estou a falar acerca do comum tibetano leigo. Eles levam às iniciações os seus bebês e até os seus cães. Acreditam que qualquer um, incluindo o bebê e o cão, tem, ao assistir à iniciação e para as vidas futuras, sementes implantadas nos seus fluxos mentais. É assim que eles vêem as iniciações. Mas nós, como ocidentais, na verdade não pensamos dessa maneira. Vamos às iniciações e mesmo se não tivermos nenhuma ideia do que se passou durante a cerimónia, depois dizemos: “Ó meu Deus! Eu fiz este compromisso e agora DEVO fazer isto e se não o fizer vou parar ao inferno de Vajra!!”

Isso é um grande mal-entendido sobre a vacuidade e o surgimento dependente. As coisas não acontecem de um só lado. O recebimento de uma iniciação é dependente tanto do que está fazendo a pessoa que está dando a iniciação, como do que está fazendo a pessoa que a está

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recebendo. Por exemplo, para recebermos realmente uma iniciação, precisamos de fazer os votos muito conscientemente, com todo o entendimento do que estamos fazendo. Se não fizermos isso, então não somos diferentes do que o cão que lá estava.

Uma pergunta interessante é: o cão fica ou não com instintos implantados por estar lá? Da literatura clássica, parece que o cão fica, porque o cão experiencia o estar lá. Assim, há alguma espécie de impressão no seu fluxo mental, mesmo que seja muito fraca. Nós também podemos estar presentes e ter uma certa impressão de lá estar. No Ocidente, nós chamamos a isso fazer uma iniciação como uma “benção”. Mas fazê-lo desta forma não significa que realmente recebemos a iniciação e que a partir de agora temos dela todos os compromissos e votos. A menos que tivéssemos muito conscientemente aceitado os compromissos e os votos; nós não os temos.

Não há nada de errado em receber uma iniciação como um tibetano comum a

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receberia – como uma espécie de evento que inspira e cria uma impressão que no futuro será algo que poderemos usar em benefício dos outros e de nós próprios. Precisamos de evitar sermos pretenciosos, pensando que agora somos praticantes tântricos muito avançados, quando apenas assistimos à iniciação a um nível superficial e não nos comprometemos conscientemente a nada. Temos de estar dispostos a aceitar que: “eu assisti a nível de cão e isso é aceitável”.

Não obstante, assistir a uma iniciação a nível de cão pode ser muito útil e inspirador – tudo bem. Mas é a nossa vaidade que faz com que não queiramos aceitar que dela só pode vir este nível de benefício. Obviamente, podemos ficar confusos e pensar: “se eu andar por aí a coletar tantas iniciações quanto possível, eu vou ser uma pessoa muito avançada”. Isso também é um pouco frívolo, não é? Mesmo se compulsivamente coletarmos iniciações porque as achamos úteis e inspiradoras, é importante não nos considerarmos uns grandes praticantes tântricos. A humildade é sempre essencial

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em todos os aspectos da prática do Dharma.

Vamos terminar nesta nota. Que o potencial positivo e a compreensão que veio da nossa discussão sobre estas coisas possam agir como causas para obtermos a iluminação em benefício de todos.

O Apelo do Budismo no Mundo Moderno

Singapura, 10 de Agosto de 1988 

Trecho revisto de Berzin, Alexander e Chodron, Thubten. Glimpse

of Reality. Singapura: Amitabha Buddhist Centre, 1999

Pergunta: Este ano você fez deu ensinamentos em vinte e seis países. Por favor, compartilhe conosco as suas observações de como o budismo se está espandindo para novos lugares.

Resposta: Agora, o budismo está se espandindo rapidamente pelo mundo. Existem centros budistas em muitos países europeus, na América do Norte, América

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do Sul, África do Sul, Australásia e assim por diante. Na Europa, encontramos budistas não só nos países ocidentais capitalistas, como também nos países socialistas do leste. Por exemplo, a Polônia tem cerca de cinco mil budistas ativos.

O budismo tem um grande apelo no mundo moderno, pois é plausível e tem bases científicas. Buda disse: “Não acredite em nada do que eu digo apenas por respeito a mim, mas teste por si mesmo, analise como se você estivesse comprando ouro”. Nos dias de hoje as pessoas gostam desta abordagem não dogmática.

Existem muitos diálogos entre cientistas e líderes budistas, tal como Sua Santidade o Dalai Lama. Juntos, eles estão discutindo e investigando o que é a realidade. Buda disse que todos os problemas advêm da não compreensão da realidade e da confusão com relação a isso. Se estivéssemos cientes de quem somos e de como o mundo e nós existimos, não criaríamos problemas devido à confusão. O budismo tem uma postura extremamente aberta ao examinar o que é verdadeiro. Por

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exemplo, Sua Santidade o Dalai Lama tem dito que se os cientistas pudessem provar que algo que Buda ou seus seguidores ensinaram estivesse incorreto ou fosse apenas superstição, ele ficaria feliz e disposto a retirá-lo do budismo. Esta abordagem é muito atrativa para o povo ocidental.

Dado que os doutos mestres do passado adaptaram o budismo à cultura de cada sociedade por onde ele se espalhou, é natural que os professores de hoje tenham a necessidade de apresentar o budismo de maneiras ligeiramente diferentes nos diferentes países modernos. Em geral, o budismo realça uma explicação racional. Porém, neste contexto, diferentes questões e abordagens precisam de maior ênfase, dependendo dos traços culturais predominantes.

Buda ensinou uma grande variedade de métodos, simplesmente devido à grande variedade de pessoas. Nem todos pensamos da mesma maneira. Considerem o exemplo da comida. Se numa cidade só houvesse disponível um tipo de comida, ele

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não seria atrativo para todos. Se, por outro lado, houvesse tipos de comidas diferentes, com sabores variados, todos poderiam encontrar algo atrativo. Da mesma forma, Buda ensinou uma grande variedade de métodos para o desenvolvimento e crescimento dos diferentes tipos de pessoas, para serem usados de acordo com as suas preferências. Afinal de contas, o objetivo do budismo é a superação de todos os nossos problemas e limitações e a realização de todos os nossos potenciais, de maneira a que nos possamos desenvolver a tal ponto que nos seja possível ajudar o máximo a todos.

Em alguns países ocidentais que enfatizam a psicologia, tais como a Suiça e os Estados Unidos, os professores [de Dharma] geralmente apresentam o budismo numa perspectiva psicológica. Noutros países, onde as pessoas preferem uma abordagem devocional, tais como muitos países do sul da Europa e da América Latina, os professores tendem a apresentar o budismo de uma maneira devocional. Lá, as pessoas gostam muito de cantar, e assim podem fazê-lo na prática budista. Contudo,

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as pessoas dos países do norte europeu não apreciam muito cantar. Aqui, os professores tendem a enfatizar uma abordagem intelectual do budismo.

No leste europeu, muitas pessoas encontram-se numa situação muito triste. Os ensinamentos budistas fazem um apelo muito grande entre elas, pois muitas acham as suas vidas vazias. Quer trabalhem muito ou não nos seus empregos, não parece fazer nenhuma diferença. Elas não vêem resultados. O budismo, pelo contrário, ensina-lhes métodos para trabalharem em si próprias, trazendo de fato resultados que fazem alguma diferença na qualidades de suas vidas. Isto torna as pessoas incrivelmente apreciadoras, de tal modo que se dedicam com grande entusiasmo às práticas, tais como fazer milhares de prostrações.

Deste modo, o budismo adapta-se em cada sociedade à cultura e à mentalidade das pessoas, preservando os principais ensinamentos de Buda. Os ensinamentos principais não são modificados – o objetivo é o de superarmos as nossas limitações e

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problemas, e realizarmos os nossos potenciais. Se os praticantes fazem isso com maior ênfase numa abordagem psicológica, intelectual, científica ou devocional, depende da cultura.

Pergunta: Em geral, como está o budismo se adaptando ao século XX?

Resposta: O budismo está-se adaptando dando ênfase a uma abordagem racional e científica aos seus ensinamentos. O budismo oferece uma explicação clara de como surgem as experiências da vida e de como lidar com elas da melhor forma possível. Depois, diz-nos para não que aceitemos nada cegamente; pense por si mesmo, faça o teste e veja se de fato isso faz sentido. Assemelha-se à ciência, pedindo-nos para verificar os resultados de uma experiência, repetindo-a por nós próprios e apenas então aceitarmos como fatos os resultados. As pessoas modernas não gostam de comprar nada sem examiná-lo; elas não comprariam um carro sem testá-lo. Da mesma forma, não se iriam virar para outra religião ou filosofia de vida sem previamente as experimentar a fim de

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constatar se elas realmente fazem sentido. É isso o que torna o budismo tão atraente para tantas pessoas do século XX. O budismo está aberto à investigação científica e convida as pessoas para o examinarem desta maneira.

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O Que é Meditação?

Alexander Berzin Moscou, Rússia, junho de 2010

IntroduçãoQuando escutamos a palavra “meditação”, muitas pessoas têm várias ideias sobre isso. Para alguns, isso traz a imagem de uma prática mística na qual, de alguma forma, a pessoa vai para um plano diferente dentro de sua mente. Para outros, talvez isso evoque a ideia de certo tipo de disciplina que apenas é praticado na Ásia por certas pessoas. Porém, se quisermos investigar melhor a meditação, temos que perguntar – e, é claro, também responder – três questões: O que é meditação? Por que eu quero meditar? E como realmente faço isso?

O Que é Meditação?

A primeira questão é: O que é meditação? Meditação é um método para nos treinar a ter um estado mental mais benéfico ou uma postura mental mais saudável. Isso é alcançado ao gerar repetidamente um específico estado mental, para nos acostumarmos a ele e para que este se

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torne um hábito. É claro que há muitos diferentes estados e posturas mentais que são benéficos. Um destes estados mentais poderia ser estar mais relaxado, menos tenso e preocupado; outro poderia ser um estado mental mais focado, ou mais tranquilo, sem tagarelices e preocupações constantes. Outro ainda poderia ser um estado mental com mais entendimento sobre nós mesmos, sobre a vida, e assim por diante; e outro poderia ser um estado com mais amor e compaixão pelos outros. Assim sendo, há muitos diferentes tipos de estados mentais benéficos que poderíamos alcançar através da meditação.

Qual o Propósito da Meditação?

A segunda questão é: Por que eu teria vontade de gerar tais estados mentais? Para responder a esta pergunta, temos que olhar para dois fatores: primeiro, o que estou buscando? Segundo, de uma perspectiva emocional, por que eu gostaria de alcançar tal objetivo?

Por exemplo, por que eu gostaria de ter uma mente mais calma e clara? Uma razão óbvia seria porque a nossa mente não é

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calma e ela nos torna muito perturbados. Isso nos causa uma grande infelicidade e nos impede de alcançar o melhor desempenho em nossas vidas. Nossa mente perturbada pode também estar afetando a nossa saúde de forma negativa, causando ou agravando problemas em nossas famílias e comprometendo nossas outras relações; ela pode estar criando dificuldades para nós em nosso local de trabalho. Então, neste exemplo, nosso objetivo é superar um tipo de deficiência, um tipo de problema que temos, tanto mental quanto emocional. E nós tomamos a decisão de tomar a responsabilidade de superar este problema de uma forma metódica, através da prática da meditação.

Qual tipo de estado emocional nos levaria a começar uma prática de meditação? Bem, pode ser que estejamos totalmente fartos e enojados por causa deste nosso difícil estado mental. Então, nós dizemos a nós mesmos: “Agora chega! Eu tenho que sair desta situação. Tenho que fazer algo a este respeito.” Se, por acaso, nosso objetivo for ajudar mais aos nossos entes queridos, então o estado emocional seria, além deste

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estado de descontentamento, um sentimento de amor e compaixão. A combinação de todas essas emoções nos leva a achar algum método que nos possibilitará ajudá-los de forma mais efetiva. No entanto, é muito importante ter um entendimento realista da meditação. É irrealista pensar que apenas a meditação resolverá nossos problemas. A meditação é uma ferramenta; é um método. Quando queremos alcançar um resultado e temos uma emoção positiva nos levando rumo a este objetivo, temos que compreender que um resultado não é alcançado por uma causa apenas. Muitas, muitas causas e condições têm que congregar para produzir um resultado. Por exemplo, se eu tenho uma pressão alta e hipertensão, é claro que a meditação será uma ajuda. A meditação diária pode me ajudar a me preocupar menos. Mas apenas a meditação não baixará a minha pressão. Ela pode ajudar, mas talvez eu também tenha que mudar a minha dieta, fazer mais exercícios físicos, e talvez eu tenha que tomar remédios também. Muitos fatores aplicados

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juntos trarão o resultado desejado de baixar a minha pressão.

Os métodos usados na meditação podem, é claro, também ser usados para fortalecer um estado mental negativo. Por exemplo, eu posso meditar sobre o quão terrível é meu inimigo. Mas geralmente a meditação não é usada desta forma. A meditação geralmente é usada como um método para fortalecer um estado mental positivo que será benéfico para nós e para os outros.

Como Meditamos?

A terceira questão é: como meditamos? Há vários métodos que são usados, dependendo do estado mental que queremos desenvolver. Mas uma coisa que todos os métodos têm em comum é a necessidade daprática. “Prática” significa repetir um tipo de exercício de novo, e de novo, e de novo. Se quisermos treinar nossos corpos, precisaremos praticar alguma atividade física com regularidade; da mesma forma, temos que praticar com nossas mentes.

Desenvolvendo Novos Estados Mentais Através da Meditação

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Meditação é lidar com nosso estado mental. Por isso, faz sentido usar um método mental para gerar uma mudança positiva. Poderíamos usar métodos físicos para tentar mudar nosso estado mental; por exemplo, sentar em várias posturas de yoga ou praticar várias artes marciais, como Tai Chi. Por si só, elas não são meditação. Esses métodos físicos podem ajudar a gerar certo estado mental, mas a meditação é algo que se faz apenas com a mente. No entanto, é claro, vocês podem meditarenquanto estiverem fazendo posturas de yoga ou enquanto estiver fazendo Tai Chi. Mas a atividade física e a atividade mental são duas coisas diferentes: uma fazemos com nossos corpos e a outra fazemos com nossas mentes.

Para gerar o resultado desejado, é possível que tenhamos que usar muitas causas diferentes, tanto físicas quanto mentais. Talvez tenhamos que trabalhar com o corpo físico, por exemplo, mudando a nossa dieta, que pode afetar nosso estado mental. Mas a meditação é trabalhar com a mente em si. Assim sendo, se quisermos atingir

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certo objetivo, então teremos que investigar o que precisamos mudar em nossas vidas, a nível físico e mental, para atingir esta meta. Pode ser que precisemos começar uma prática de meditação, mudar nossa dieta, aumentar o exercício físico, ou talvez todas essas opções.

Quando feitas de forma apropriada, nossas sessões de meditação começam a afetar nossos cotidianos entre as sessões. Se praticarmos um específico estado mental durante nossas sessões de meditação, que seja um estado mais calmo, mais focado ou mais amoroso, a ideia não é apenas conseguir gerar este estado mental enquanto estivermos sentados em meditação silenciosa. A meta principal é fortalecer este estado positivo de forma tão meticulosa que ele se torne um hábito, um hábito que possamos aplicar sempre que dele precisarmos, a qualquer hora do dia. No final das contas, ele se torna algo que é simplesmente natural, está presente o tempo todo: nós nos tornamos mais amorosos, compreensivos, focados, e calmos.

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Se descobrirmos que não estamos neste tipo de estado mental, apenas temos que lembrar a nós mesmos: “seja mais amoroso”. E como este estado se tornou tão familiar a nós através da prática, conseguimos instantaneamente ir para este estado mental. Por exemplo, quando percebemos que estamos perdendo a paciência com alguém, imediatamente notamos isso e nos lembramos, consciente ou inconscientemente: “ Não quero ser assim!”. Então, como em um estalar de dedos, mais ou menos como quando reiniciamos nosso computador quando surge uma mensagem de erro, fechamos esta “sessão” de falta de paciência e regeneramos nossa postura em relação à pessoa, tornando-nos mais amorosos.

Gerar esses estados mentais, como a gentileza amorosa, não é apenas uma questão de disciplina. Por exemplo, para sermos mais amorosos, temos que ter certa compreensão do porquê de termos que ser mais amorosos. Podemos nos lembrar que somos todos interconectados uns com os outros, ao pensarmos: “você é um ser humano, exatamente como eu; você tem

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sentimentos, exatamente como eu; você quer ser amado e não ignorado ou detestado – exatamente como eu. Estamos todos juntos neste planeta e temos que conviver uns com os outros.”

O próximo exemplo pode ajudar. Imaginem que estão em um elevador com dez pessoas e, de repente, o elevador para e vocês estão presos nele por alguns dias. Como vocês se relacionariam com as outras pessoas no elevador? Vocês estão lá – estão todos presos juntos. Vocês estão todos na mesma situação. De alguma forma, vocês têm que conviver uns com os outros. Se vocês começarem a brigar uns com os outros nesse pequeno espaço, será um desastre, não é mesmo? Ao invés disso, vocês têm que cooperar uns com os outros e ter paciência com todos. Vocês têm que trabalhar juntos para tentar sair desta situação. Ou seja, talvez ajude pensar neste planeta como se ele fosse um elevador bem grande!

É em meditações detalhadas deste tipo que podemos gerar um estado mental amoroso e tolerante para com os outros. É muito

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duro gerar qualquer sentimento real apenas sentado em meditação e simplesmente dizendo a si mesmo: “eu serei mais amoroso”. Então, quando perguntamos como meditar, um dos métodos é fortalecer um estado mental específico, como este exemplo de ser mais amoroso e tolerante. Aprendemos a usar um cenário mental, como a cena do nosso elevador. Nós pensamos sobre ele até que o entendamos e que ele faça sentido para nós. E então, sentados em meditação silenciosa, imaginando outras pessoas ao nosso redor, pessoas que conhecemos, ou desconhecidos, tentamos gerar um estado mental de amor e compaixão.

Aquietando a MenteOutro método de meditação é aquietar a mente para chegarmos a um estado mais natural da mente. Há um ponto muito importante para entender aqui: Quando estivermos tentando aquietar a mente, não se trata de buscar ter uma mente “em branco”, como um rádio que está desligado. Este não é em absoluto o objetivo. Se este fosse o caso, vocês poderiam ir dormir. O objetivo é aquietar

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todos os estados mentaisperturbadores. Algumas emoções podem ser bem perturbadoras, como ficar nervoso, preocupado ou com medo. Precisamos calmar todas essas emoções que nos perturbam.

Quando calmamos a nossa mente, queremos alcançar um estado mental que é muito claro e alerta, um estado mental no qual ou somos capazes de gerar amor e compreensão, ou somos capazes de expressar a delicadeza natural e humana que todos nós temos. Isso requer um relaxamento muito, mas muito profundo – não apenas um relaxamento dos músculos no corpo, que obviamente é necessário. Mas também um relaxamento da tensão ou rigidez mental e emocional que nos impede de sentir qualquer coisa – mais especificamente, que nos impede de sentir a delicadeza e clareza naturais da mente. Não se trata de um exercício para apenas desligar e se tornar um robô sem quaisquer pensamentos. Algumas pessoas também pensam que a meditação é parar de pensar. Isto é um mal-entendido. Ao invés de parar todos os pensamentos, a meditação

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deveria parar todos os pensamentos irrelevantes e desnecessários, como pensamentos distraídos sobre o futuro (O que será que eu vou comer no jantar?), e pensamentos negativos ou inúteis (Você foi ruim comigo ontem. Você é uma pessoa horrível.). Tudo isso faz parte da categoria de distrações mentais e pensamentos perturbadores.

Ter uma mente quieta, porém, é uma ferramenta; não é apenas a meta final. No entanto, se tivermos uma mente mais quieta, mais relaxada, mais clara e mais aberta, então poderemos usá-la de forma construtiva. Podemos usá-la para nos ajudar no cotidiano, é claro; mas também podemos usar este tipo de mente ao sentarmos em meditação para tentar ganhar uma melhor compreensão em relação à atual situação de nossas vidas. Com uma mente livre de emoções perturbadoras e pensamentos irrelevantes, podemos pensar com muito mais clareza sobre temas importantes como: O que eu tenho feito com a minha vida? Ou então: o que está ocorrendo com esta relação importante? Ela é saudável? Ela não é

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saudável? Podemos ser analíticos. Isso se chama introspeção – ser mais introspetivo em relação ao que está ocorrendo dentro de nós, o que está acontecendo em nossas vidas. Para compreender esse tipo de questões e ser introspetivos de uma forma produtiva, precisamos de clareza. Precisamos de uma mente calma e quieta. A meditação é uma ferramenta que pode nos trazer para este estado.

Estados Mentais Conceituais e Não ConceituaisMuitos textos de meditação nos instruem a nos livrar de pensamentos conceituais e sossegar em um estado não conceitual. Antes de tudo, [é preciso saber que] esta instrução não se aplica a todas as meditações. Ela se refere especificamente a uma meditação avançada que visa focar na realidade. Ainda assim, há uma forma de conceitualidade da qual todos os tipos de meditação precisam se livrar. Mas para compreender as diferentes formas de conceitualidade discutidas nos textos de meditação, temos que compreender o que queremos dizer com a palavra “conceitual”.

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Algumas pessoas pensam que “ser conceitual” se refere aos pensamentos normais e verbais do cotidiano que passam por nossas mentes – a assim chamada “voz em nossas cabeças”- e que se tornar não conceitual simplesmente significa aquietar esta voz. Mas aquietar esta voz é apenas o início. Já discutimos isso no contexto de aquietar pensamentos estranhos e perturbadores para ter uma mente mais clara e mais calma. Outros pensam que para realmente compreender algo, temos que compreendê-lo de forma não conceitual, e que o pensamento conceitual e o entendimento correto se excluem mutuamente. Este também não é o caso.

Para desvendar as complexidades relativas à conceitualidade, temos que primeiro diferenciar o ato de verbalizar algo em nossos pensamentos do ato de entender algo. Podemos verbalizar algo em nossos pensamentos com ou sem entendimento da coisa em questão. Por exemplo, podemos recitar uma oração mentalmente em uma língua estrangeira entendendo ou não entendendo o que aquilo significa. Da mesma forma, podemos entender algo e ser

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ou não ser capazes de explicar isto mentalmente em palavras, por exemplo, como é a sensação de estar apaixonado.

No entanto, a questão entre a cognição conceitual e não conceitual na meditação não é uma questão de compreender ou não compreender algo. Tanto na meditação como no cotidiano, sempre temos que manter um entendimento, seja ele conceitual ou não, quer o verbalizemos mentalmente ou não. Às vezes a verbalização é uma ajuda; às vezes não é nada útil e nem mesmo necessária. Por exemplo, amarrar os sapatos: nós entendemos como amarrar nossos sapatos. Vocês realmente precisam verbalizar o que fazem com este ou aquele cadarço quando o amarram? Não precisam. Na verdade, eu acho que a maioria de nós teria uma grande dificuldade para descrever em palavras como amarramos os nossos sapatos. Ainda assim, temos o entendimento. Sem entendimento, vocês não podem fazer nada na vida, não é mesmo? Vocês não podem nem mesmo abrir uma porta.

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Vista a partir de muitas diferentes perspectivas, a verbalização de fato é útil; precisamos da verbalização para sermos capazes de nos comunicar com os outros. No entanto, a verbalização em nosso pensar não é absolutamente necessária, a verbalização em si é neutra. Temos algumas meditações úteis que envolvem verbalização. Por exemplo, repetir mentalmente mantras é uma forma de verbalização que gera e mantém certo tipo de ritmo ou vibração na mente. O ritmo regular do mantra é muito útil; ele nos ajuda a ficar focados em certo estado mental. Por exemplo, quando estiver gerando compaixão e amor, se estiverem recitando um mantra como OM MANI PEME HUNG, será um pouco mais fácil ficarem focados no estado amoroso, embora seja claro que é possível ficar focado em um estado amoroso sem dizer nada a nível mental. Assim sendo, a verbalização em si não é o problema. Por outro lado, é claro, nós certamente precisamos aquietar nossas mentes quando estas estão apenas tagarelando com palavreado inútil.

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Então, se a questão da conceitualidade não é uma questão que diz respeito à verbalização ou ao entendimento, qual é a questão? O que é a mente conceitual e o que a instrução de meditação quer dizer quando nos indica que precisamos nos livrar dela? Será que esta instrução se refere a todos os estágios e níveis de meditação, tanto quanto ao cotidiano? É importante esclarecer esses pontos.

A mente conceitual significa o pensar em termos de categorias, o que, em termos simples, significa pensar em coisas colocando-as em “caixinhas”, como “bom” ou “ruim”, “preto” ou “branco”, “cachorro” ou “gato”. Agora, com certeza, quando vamos fazer compras, temos que ser capazes de diferenciar entre uma maçã e uma laranja, ou entre uma fruta verde ou uma fruta madura. Nesses casos do cotidiano, pensar em categorias não é um problema. Mas há outros tipos de categorias que são um problema. Um deles é aquilo que chamamos de “preconceito”.

Um exemplo de preconceito é: “Eu sei que você sempre será ruim comigo. Você é uma

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pessoa terrível porque no passado você fez isso e aquilo. E agora eu predigo que, não importa o que acontecer, você continuará a ser uma pessoa terrível.” Nós pré-julgamos que aquela pessoa é horrível e continuará a ser horrível conosco – isso é um preconceito. Em nossos pensamentos, nós colocamos aquela pessoa na categoria ou na caixinha chamada “pessoa horrível”. E é claro que, se pensarmos desta forma, e projetarmos em alguém o pensamento: “Ele é mau; ele sempre é terrível comigo.”, então haverá um grande bloqueio entre nós e aquela pessoa. O nosso preconceito afeta como nos relacionamos com ela. Ou seja, o preconceito é um estado mental no qual nós categorizamos; colocamos as coisas em caixinhas mentais.

Há muitos e muitos níveis de não conceitualidade, mas um deles é simplesmente estar aberto a uma situação quando ela surge. Isso não quer dizer que temos que nos livrar de todo entendimento conceitual. Por exemplo, se há um cachorro que mordeu muitas pessoas, então pensamos no cachorro em termos da categoria “um cachorro que morde” e isso

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nos faz ser cuidadosos perto deste cachorro. Temos uma precaução razoável perto deste animal, mas não temos o preconceito: “Este cachorro com certeza vai me morder, então não tentarei nem mesmo chegar perto dele.” Há um gentil equilíbrio entre aceitar a situação que está surgindo, enquanto, ao mesmo tempo, não temos preconceitos que nos impedem de vivenciar a situação plenamente.

Portanto, o nível de não conceitualidade que é necessário em todas as meditações é uma mente livre de preconceitos. Uma das instruções mais comuns é meditar sem expectativas e sem quaisquer preocupações. Preconceitos relativos a uma sessão de meditação poderiam ser, por exemplo, a expectativa de que a sessão de meditação será uma maravilha, ou a preocupação de que nossas pernas doerão, ou o pensamento: “eu não serei bem-sucedido”. Estes pensamentos de expectativa e preocupação são preconceitos, não importa se os verbalizamos ou não. Tais pensamentos colocam nossa meditação que está por vir

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dentro da caixinha mental, ou da categoria, de “uma experiência fantástica” ou “uma experiência dolorosa”. Uma abordagem não conceitual seria simplesmente aceitar o que quer que aconteça e lidar com isso de acordo com as instruções de meditação, sem julgar a situação.

Situações Propícias à MeditaçãoTambém precisamos de uma situação propícia à meditação. Algumas pessoas pensam que a situação propícia tem que ser algo que eu chamaria de “cenário hollywoodiano”. As pessoas pensam que elas precisam de um quarto especial com velas e certo tipo de música e incenso; elas pensam que precisam de um set de filmagem completo no estilo de Hollywood. Se vocês quiserem ter este tipo de entorno, tudo bem; mas com certeza, ele não é necessário. Nós precisamos demonstrar respeito para conosco e aquilo que estamos fazendo com a meditação, então, o que geralmente é recomendado é que o local físico seja arrumado e limpo. Geralmente, faz parte da prática limpar o quarto no qual se meditará. Arrumem o quarto, não tenham roupas espalhadas pelo chão, etc.

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Se o ambiente ao nosso redor é ordenado, isso ajuda a mente a se ordenar. Se o ambiente for caótico, isso afetará a mente de forma negativa.

Também ajuda muito, especialmente no início, se o ambiente for silencioso. Na tradição budista, nós com certeza não meditamos com música. A música é uma fonte externa que tocamos para tentar nos acalmar. Porém, ao invés de confiar em uma fonte externa de tranquilidade, nós queremos ser capazes de gerar a paz internamente. A música também pode ser bastante hipnótica, e não queremos estar em transe. Nós não precisamos nos tranquilizar, como se estivéssemos em uma sala de espera de um dentista, com música suave tocando para nos acalmar. Este não é um bom ambiente para meditação.

No que diz respeito à postura de meditação, se olharmos para as diferentes tradições asiáticas, há muitas diferentes maneiras de sentar para meditar. Os tibetanos e indianos sentam com as pernas cruzadas, os japoneses se ajoelham com as pernas dobradas embaixo deles e os pés

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voltados para trás; as pessoas na Tailândia se sentam com as duas pernas dobradas para um lado. O mais importante é sentar em uma posição confortável. Se precisarem sentar em uma cadeira, tudo bem. Em exercícios muito avançados de meditação, nos quais trabalhamos com os sistemas energéticos do corpo, a postura é importante. Mas em geral, temos que ser capazes de meditar em qualquer tipo de situação. Talvez vocês estejam acostumados a sentar com as pernas cruzadas em uma almofada, mas se estiverem em um avião ou um trem e não puderem sentar com as pernas cruzadas, então simplesmente meditem sentados normalmente no assento.

Especialmente para os meditadores com menos experiência, é importante que o ambiente seja silencioso. Para muitos de nós, não é tão fácil achar um local que seja silencioso, especialmente na cidade. Assim, muitas pessoas meditam cedo de manhã ou à noite quando já é tarde e há menos barulho. Eventualmente, quando nos tornamos suficientemente avançados, então o barulho não nos perturba mais;

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mas no início é muito fácil ser distraído pelo barulho externo.

Em geral, é importante determinar para nós mesmos, pessoalmente, qual hora do dia é melhor para meditar. Por exemplo, muitas pessoas acham que a energia delas diminui depois de comer, elas ficam cansadas, então, esta não é a melhor hora para meditar. Algumas pessoas se sentem muito vivazes e alertas quando despertam de manhã, mas outras ficam sonolentas a maior parte da manhã. Algumas pessoas são mais alertas à noite, mas outras lutam para ficar despertas se tentam meditar antes de ir dormir, o que não é producente. Portanto, é importante avaliar por si mesmos qual hora do dia se aplica melhor para vocês.

Também temos que descobrir o que é melhor para a nossa pessoa em termos de postura. Se estivermos sentados com as pernas cruzadas, por exemplo, então, sempre é recomendado que tenhamos uma almofada sob nossas nádegas. Mas há muitas pessoas que não usam almofadas. E se vocês usarem uma almofada, vocês têm

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que ver que tipo de almofada lhes é útil, grossa ou fina, dura ou mole. Vocês têm que achar um tipo de almofada e um tipo de postura que minimizem as possibilidades de suas pernas ficarem dormentes e ajudem a evitar que a sua inteira sessão seja cheia de dor e desconforto. A sessão de meditação não deve se tornar uma sessão de tortura na qual estamos sentados nos sentindo muito mal porque nossos joelhos doem e mal podemos esperar até que acabe. Portanto, o tipo de almofada que usamos é muito importante; pode fazer uma grande diferença. E quando envelhecermos e não pudermos mais sentar de pernas cruzadas, não há problemas em sentar em uma cadeira, mas as nossas costas devem permanecer retas.

Também a quantidade de tempo que meditamos variará de acordo com nosso progresso. No início, sempre é recomendado meditarmos por períodos muito curtos – três a cinco minutos – pois será muito difícil nos concentrarmos e ficarmos focados por mais tempo que isso. É melhor ter um período curto no qual

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estamos mais focados que um longo período no qual estamos divagando mentalmente, sonhando acordados, ou adormecendo.

Se estivermos fazendo certo tipo de meditação zen, então manter a postura e não se mover é muito importante. Em outros tipos de meditação, se vocês precisarem mover suas pernas, vocês podem mover suas pernas – não é um problema. Em todos esses tipos de práticas espirituais, é muito importante estar relaxado; não se forcem nem sejam duros demais consigo mesmos. É claro que é bom demonstrar respeito para com aquilo que estamos fazendo, mas não deveríamos tornar isso uma situação dramática, como por exemplo: “Sou um ser sagrado sentado aqui e preciso ser perfeito. ”

Um dos princípios mais importantes a ser lembrados é que sempre há altos e baixos. Alguns dias nossa meditação irá bem, outros dias será pior. Alguns dias sentiremos vontade de meditar; outros dias não sentiremos. Nossa meditação nunca será melhor e melhor e melhor. O

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progresso não é linear; sempre haverá altos e baixos. Talvez, após alguns anos, vocês serão capazes de observar uma tendência geral de que a sua meditação está melhorando, mas sempre haverá dias melhores que outros. Como dizia um de meus professores: “Não é nada de especial”. Está indo bem – não é nada de especial. Não está indo bem – não é nada de especial. Vocês apenas continuam. O mais importante é perseverar. Meditem todos os dias. Como praticar o piano, vocês também têm que fazê-lo todos os dias. E se vocês fizerem por apenas alguns minutos a cada vez, tudo bem. Façam uma pausa, e depois voltem a meditar por alguns minutos. Façam outra pequena pausa e mais alguns minutos de meditação. É melhor praticar assim do que sentar por uma hora em uma sessão de tortura.

A Meditação na RespiraçãoMuitas pessoas querem saber: como começo a meditar? Para a maioria das pessoas em muitas tradições, a maneira de começar é focar na respiração. Quando vocês meditam na respiração, vocês apenas respiram normalmente: não rápido demais,

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nem devagar demais; não profundamente demais, nem superficialmente demais. Apenas respirem normalmente através do nariz. Com certeza, não é para hiperventilarem. Se respirarem profundamente demais, ficarão muito, muito tontos e isto não é nem um pouco útil.

Vocês podem focar na respiração em dois lugares: ou na sensação da respiração entrando e saindo do nariz, ou na sensação do ventre encolhendo e dilatando. Se a mente estiver divagando muito e vocês estiverem nas nuvens – o que chamamos de “spaced out” em inglês * (nota da tradutora: “fora de órbita” em português) – então, focar na área do ventre ao redor do umbigo entrando e saindo ajudará a ancorá-los. Por outro lado, se vocês ficarem muito sonolentos e entorpecidos, então focar na sensação da respiração entrando e saindo do nariz ajudará a elevar a energia. Assim sendo, avaliem o que é necessário para vocês a cada momento. A questão principal é focar na respiração de formaconsciente. Vocês não desligam a mente; estão conscientes da sensação

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provocada pela respiração, sem se perderem em constantes comentários dentro de suas mentes.

O trabalho real consiste em reconhecer o mais rápido possível quando a sua atenção vai embora e então trazê-la de volta. Caso vocês comecem a ficar entorpecidos e sonolentos, vocês têm que se despertar. Este é o trabalho envolvido aqui. E não devemos nos enganar: este trabalho não é fácil, pois temos a tendência a nos apegar muito a nossos pensamentos e nossas divagações mentais, e esquecemos que precisamos trazer a atenção de volta. Especialmente, se há alguma emoção perturbadora envolvida com um pensamento, como pensar em alguém a quem estamos muito apegados, alguém de quem sentimos falta, ou alguém de quem temos muita raiva, então será ainda mais difícil trazer a atenção de volta. Mas a respiração está sempre presente; ela é estável e podemos sempre voltar a trazer nossa atenção para ela.

Focar na respiração traz muitos outros benefícios. A respiração é muito conectada

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ao corpo. Se somos um tipo de pessoa que se preocupa demais com os seus pensamentos ou alguém que tem “a cabeça nas nuvens”, então focar na respiração, independente de focarmos no ventre ou nas narinas, nos ajudará a nos ancorar, nos trazer mais de volta ao corpo, e à realidade. Focar na respiração também é muito útil se tivermos dor. De fato, as meditações da respiração têm sido adotadas em alguns hospitais, especialmente nos Estados Unidos, para as pessoas lidarem melhor com a dor. Pensem nisso: quando um bebê está chorando, e a mãe segura o bebê perto de seu peito, o bebê sente que a respiração da mãe está entrando e saindo, o que é muito relaxante. Da mesma forma, se focarmos em nossa própria respiração, isso pode ajudar a nos acalmar, especialmente se tivermos muita dor. E a respiração não apenas alivia a dor física; ela também pode aliviar ou diminuir a dor emocional.

Depois, vocês têm que saber o que fazer com seus olhos. Em algumas tradições, medita-se com os olhos fechados. A vantagem é que se tem menos distrações. A

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desvantagem é que é mais fácil adormecer com os olhos fechados. Outra desvantagem de meditar com os olhos fechados é que isso faz com que vocês criem o hábito de ter que fechar os olhos para se acalmar ou meditar. Frequentemente, é muito difícil fazer isso na vida real. Os tibetanos meditam com os olhos abertos, não muito abertos e olhando em volta, mas apenas mantendo um olhar gentil e desfocado, direcionado ao chão. Novamente aqui, temos que avaliar o que é melhor para nós.

Gerar Amor pelos OutrosUma vez que tivermos aquietado nossas mentes com uma meditação na respiração, podemos usar o estado silencioso e alerta da mente. Podemos usá-lo para ser mais conscientes de nosso estado emocional, mas também podemos usá-lo, por exemplo, para gerar mais amor pelos outros. Para gerar amor, vocês têm que trabalhar progressivamente até alcançar um estado de amor. No início, não dá para apenas pensar: “Agora eu amo a todos” e aí realmente sentir isso. Não há poder por detrás de um pensamento desses. Portanto, vocês usam um processo de pensamento

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para chegar a um sentimento de amor, como, por exemplo: “Todos os seres vivos são interconectados; estamos todos juntos aqui. Todos somos iguais: todos queremos ser felizes, ninguém quer ser infeliz; todo mundo quer ser amado, ninguém quer ser detestado ou ignorado. Todos os seres são exatamente como eu.”

Já que somos todos juntos e interconectados, o amor é o seguinte sentimento: “Que todos sejam felizes e possuam as causas da felicidade. Que maravilha seria se todo mundo fosse feliz, se ninguém tivesse problemas”. Ao nos desenvolvermos rumo a este estado mental e este coração do amor, então podemos imaginar uma luz amarela e cálida como a luz do sol, resplandecendo a partir de nós, com amor, e tocando a todos. Se a nossa atenção divagar, nós a trazemos de volta para o sentimento: “Que todos sejam felizes”.

Criando Hábitos Benéficos para o CotidianoSe nós nos acostumarmos a esses tipos de meditação, desenvolveremos ferramentas que poderemos usar em nossos cotidianos.

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Focar simplesmente na nossa respiração não será a única atividade de nossos cotidianos. Esta não é a meta final, não é mesmo? No entanto, a capacidade desenvolvida por nós, a habilidade de sempre voltar a trazer a atenção para um foco – com certeza, nós poderemos usá-la no cotidiano. Por exemplo, se estivermos conversando com alguém e nossas mentes começarem a vagar, e pensarmos: “Quando ela vai se calar?” e fizermos todos os tipos de julgamentos e comentários em nossas mentes sobre aquilo que ela está dizendo, assim que reconhecermos o que está acontecendo, teremos que aquietar tudo isso e apenas voltar a nossa atenção para a pessoa e aquilo que ela estiver dizendo. Estamos usando as habilidades que praticamos na meditação para gerar a compreensão: “Este é um ser humano. Esta pessoa quer ser amada. Ela quer ser ouvida quando está falando comigo. Ela quer ser levada a sério, exatamente como eu.”

Portanto, a meta é sermos capazes de aplicar as capacidades que desenvolvemos na meditação nas experiências de nosso cotidiano. Não estamos buscando ganhar a

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medalha de ouro olímpica por sermos capazes de sentar em perfeita meditação; este não é o objetivo! Ao invés disso, queremos meditar para que a prática de meditação nos ajude em nossas vidas, tanto pessoalmente quanto em nossas interações com outros. E para fazer isso, temos que desenvolver mais hábitos benéficos. Este é o objetivo real, o cerne de toda meditação.

Perguntas Básicas sobre o Desapego, a Não-Violência e a

Compaixão

Singapura, 10 de Agosto de 1988

Fragmento revisto deBerzin, Alexander e Chodron, Thubten. Glimpse

of Reality.Singapura: Amitabha Buddhist Centre, 1999.

Pergunta: Qual é o significado de desapego?

Resposta: O significado budista de desapego é ligeiramente diferente daquele que a palavra geralmente significa em

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inglês [ou português]. Desapego, no budismo, está ligado à renúncia. A palavra “renúncia” em inglês [ou português] também gera confusão, pois implica que tenhamos de desistir de tudo e ir viver para uma caverna. Apesar de existirem exemplos de pessoas como Milarepa, que de fato desistiu de tudo e foi morar para uma caverna, para descrever o que elas fizeram usamos uma palavra diferente, não a palavra que é traduzida como “renúncia” ou “desapego”. A palavra que tem sido traduzida como “renúncia” quer dizer na verdade “a determinação de ser livre”. Temos uma forte determinação: “Eu tenho de me livrar dos meus próprios problemas e dificuldades. Minha mente está totalmente firme nesse objetivo”. Queremos desistir dos jogos dos nossos egos, pois estamos determinados a nos livrar de todos os problemas que eles nos causam. Isso não significa que nós tenhamos de desistir de uma casa confortável ou das coisas que gostamos. Em vez disso, estamos tentando eliminar os problemas que temos em relação a esses objetos. Isso leva-nos ao desapego.

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Ser desapegado não significa que não podemos apreciar nada ou gozar o prazer da companhia de alguém. Na verdade, refere-se ao fato de que se nos apegarmos fortemente a qualquer coisa ou pessoa isso nos causará problemas. Tornamo-nos dependentes dessa coisa ou pessoa e pensamos: “se eu perder isso ou não puder tê-lo para sempre, ficarei infeliz”. Desapego significa: “se eu conseguir a comida que eu gosto, ótimo. Mas se a não conseguir, tudo bem. Não é o fim do mundo”. Não há apego por aquilo.

Na psicologia moderna, a palavra “apego” tem uma conotação positiva em certos contextos. Diz respeito aos laços que surgem entre uma criança e seus pais. Os psicólogos dizem que se uma criança não tiver um apego inicial aos pais, haverá dificuldades no desenvolvimento da criança. Uma vez mais, é complicado encontrar a palavra adequada em inglês [ou português] para transmitir o significado budista, uma vez que no budismo a conotação de apego é muito específica. Quando os ensinamentos budistas se referem à necessidade de desenvolver o

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desapego, isso não significa que não queiramos desenvolver um laço entre pais e filhos. O que queremos dizer com “desapego” é deixarmos de estar aferrados ou sedentos por algo ou alguém.

Pergunta: Há alguma diferença entre uma ação sem apego e uma ação moralmente positiva?

Resposta: Antes de responder a isso, apenas como uma adenda, eu prefiro a palavra “construtiva” em vez de “virtuosa”. “Virtuoso” e “não-virtuoso” implica um julgamento moral, que não é a intenção do budismo. Não há um julgamento moral. Nem há uma recompensa ou punição. Em vez disso, certas ações são construtivas e outras são destrutivas. Se alguém andar aos tiros sobre pessoas, isso é destrutivo. Se alguém bater nos outros membros da família, isso é destrutivo. Todos concordam com isso. Não há um julgamento moral envolvido. Se nós formos gentis e úteis aos outros, isso é muito construtivo ou positivo.

Quando ajudamos os outros, podemos fazê-lo com base no apego ou no desapego. Ajudar alguém com base no apego seria

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por exemplo: “Eu vou ajudá-la pois quero que você me ame. Eu quero sentir que precisam de mim”. Nós diríamos que essa ação de ajudar ainda é positiva, mas que a motivação não é a melhor.

Na discussão do carma, fazemos uma diferenciação entre a motivação e a ação. Nós podemos fazer uma boa ação com uma motivação muito pobre. A ação positiva irá resultar em alguma felicidade, enquanto que a motivação pobre vai resultar em algum sofrimento. O oposto também poderia ser verdade: a ação é negativa (por exemplo, nós batemos no nosso filho), mas a motivação era positiva – foi para salvar a vida dele. Por exemplo, se o nosso garotinho está prestes a correr em direção à rua e nós dissermos gentilmente “Oh querido, não corra para a rua”, isso não irá pará-lo. Se nós agarrarmos o nosso filho e lhe dermos uma palmada no seu rabinho, ele poderá chorar e até ficar ressentido, então há um resultado negativo dessa ação. Porém, a motivação foi positiva e o resultado positivo é muito maior do que o negativo, pois o garoto foi salvo. Além

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disso, o nosso filho aprecia o fato de nos preocuparmos com ele.

O mesmo pode ser verdade acerca de uma ação construtiva: ela pode ser motivada pelo desapego, que é sempre melhor, mas também pode ser feita com apego.

Pergunta: A compaixão implica que devemos ser sempre passivos e complacentes, ou os métodos que fazem uso da força são permitidos de vez em quando?

Resposta: A compaixão não deve ser uma “compaixão idiota”, na qual nós damos a todos, tudo o que eles desejam. Se um bêbado quiser uísque ou se um assassino quiser uma arma, certamente que não seria compassivo atender aos seus desejos. A nossa compaixão e generosidade devem ser conciliadas com o discernimento e a sabedoria.

Às vezes é necessário agir à base da força para disciplinarmos uma criança ou para evitarmos uma situação terrível. Sempre que possível, é melhor agirmos de uma maneira não-violenta para evitar ou

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corrigir uma situação perigosa. No entanto, se isso não funcionar e virmos que a única maneira de eliminar de imediato o perigo tenha que ser com base na força, então, se assim não agíssemos, isso seria considerado como se não estivéssemos dispostos a ajudar. Contudo, precisamos de agir de uma maneira que não cause grande mal aos outros.

Numa entrevista, perguntaram a Sua Santidade o Dalai Lama algo semelhante e ele deu um exemplo: um homem vai até um rio, extremamente difícil e perigoso, para atravessá-lo nadando. Estão por perto duas pessoas olhando, e ambas sabem que se o homem entrar no rio, irá se afogar na correnteza. Uma das pessoas olha placidamente e não faz nada – acha que deve ser não-violenta, o que implica que não deve interferir. A segunda grita ao homem, dizendo para não entrar na água. A correnteza é muito perigosa. O homem responde: “eu não me importo. Eu vou entrar de qualquer maneira”. Eles discutem e finalmente, para evitar que o homem se afogue, a pessoa na margem atinge-o com uma pedra e ele cai

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inconsciente. Nesta situação, a pessoa que simplesmente fica sentada e está disposta a ver o homem entrar na água e se afogar é aquela que comete um ato de violência. A pessoa não-violenta é aquela que de fato evita que o homem morra, mesmo tendo que recorrer a um método com base na força.

Abordagens ao Dharma: Intelectual, Emocional e

Devocional

Alexander Berzin, Outubro de 2001

Três AbordagensNo ocidente, algumas pessoas aproximam-se ao Dharma:

para satisfazer o seu desejo por exotismo;

por curas milagrosas;

para seguir novas tendências;

para se intoxicarem, como um drogado, com o carisma de um professor

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divertido, como se fossem “ viciados no Dharma”;

por um interesse sincero no que o Dharma tem a oferecer, mesmo que se tivessem aproximado numa das maneiras acima descritas.

Mesmo que de início desejemos simplesmente obter informações, existem três abordagens diferentes ao Dharma:

1. intelectual;

2. emocional;

3. devocional.

Qual ou quais delas nós seguimos, depende:

do nosso professor espiritual;

do que e como ele ou ela ensina;

da cultura;

da inclinação individual.

Cada uma das três abordagens pode ser madura ou imatura, sob o ponto de vista do Dharma.

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IntelectualAqueles que têm uma abordagem intelectual imatura são geralmente fascinados com a beleza dos sistemas budistas. Eles querem aprender os fatos e as minúcias da filosofia e psicologia para, em certo sentido, neles se intoxicarem, porém não integram os ensinamentos em si próprios nem sentem coisa alguma. Essas pessoas são geralmente do tipo insensível ou possuem bloqueios emocionais.

Aqueles que têm uma abordagem intelectual madura aprendem as minúcias e os detalhes do Dharma para que possam ter uma maior compreensão dos ensinamentos, por forma a integrá-los e a aplicá-los corretamente.

EmocionalCom uma abordagem emocional imatura, as pessoas pretendem apenas meditar para se acalmarem ou se sentirem bem, tal como através da meditação sobre o amor para com todos. Tipicamente, essas pessoas apenas pretendem olhar para as partes “agradáveis” do Dharma, não para o sofrimento, piores renascimentos, imundice

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das entranhas do corpo, e assim por diante. Elas não querem reconhecer as atitudes e emoções perturbadoras, nem querem trabalhar para delas se livrarem, e têm pouco entendimento dos ensinamentos. Tais pessoas tendem a ser demasiadamente emocionais e sensíveis.

Aqueles com uma abordagem emocional madura trabalham com as suas emoções por forma a se livrarem das emoções perturbadoras e a melhorarem as emoções positivas.

DevocionalCom uma abordagem devocional imatura, nós pensaríamos sobre o quão maravilhosos são os Budas, as figuras búdicas e os professores, e o quão inferior nós somos. Assim, as pessoas com esta abordagem rezam a eles pedindo ajuda, como se eles fossem “santos” budistas, e não querem assumir responsabilidades pela sua própria evolução.

Aqueles com uma abordagem devocional madura participam na prática de rituais para obterem inspiração no trabalho em si próprios.

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Equilibrando as Três AbordagensNós devemos equilibrar todas as três abordagens, por forma a entendermos o Dharma, sentirmos algo a nível emocional e obtermos inspiração.

Por exemplo, as pessoas emocionais devem aprender a abordagem intelectual. Para fazerem isso, precisam entender que, por exemplo, quando não estão com vontade de amar os outros, seguindo uma linha de raciocínio e trabalhando na compreensão elas podem sentir amor.

As pessoas intelectuais precisam aprender a abordagem emocional. Para fazerem isso, precisam entender que a sua rigidez mental as deixa frias e isso não só faz com que os outros se sintam desconfortáveis, como até mesmo elas próprias. Assim, elas precisam de se aquietar para terem acesso à sua ternura natural.

As pessoas não devocionais devem aprender a abordagem devocional. Para fazerem isso, elas precisam de entender que é necessário gerar energia mesmo quando estão sem vontade.

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Por outro lado, as pessoas devocionais precisam de crescer intelectualmente. Para fazerem isso, têm de entender que quando não conseguem compreender o que está ocorrendo na vida, elas precisam mais do que o conforto e o alto astral dos rituais.

As Três Abordagens e os RituaisPara tipos emocionais, os rituais dão expressão e forma ao sentimento.

Para tipos intelectuais, os rituais oferecem regularidade e um senso de continuidade. Também, a prática de rituais antes de se obter entendimento diminui a arrogância, tal como a recitação de uma prática de saddhana tântrica em tibetano quando não se entende a língua. Essa arrogância geralmente toma a forma de “Eu não vou praticar nada, a não ser que você me explique e que eu entenda”.

O Relacionamento com um Professor EspiritualNuma maneira madura ou imatura, talvez tenhamos cada uma das três abordagens para com os nossos professores espirituais.

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Numa maneira imatura, tipos intelectuais debatem com seus professores, tipos emocionais apaixonam-se por eles e tipos devocionais tornam-se escravos sem vontade, querendo que os seus professores lhes digam o que pensar e o que fazer.

Numa maneira madura, tipos intelectuais acham os seus professores intelectualmente estimulantes e desafiadores, tipos emocionais acham-nos comoventes e tipos devocionais acham-nos inspiradores.

As pessoas maduras podem ter um equilíbrio de todas as três abordagens, tanto na prática do “ Dharma-Lite” (Dharma leve e provisório) apenas para esta vida, como na prática do “Dharma a Sério” (Dharma tradicional autêntico) para a liberação dos renascimentos e iluminação.

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“Dharma-Lite” Versus “Dharma a Sério”

Alexander Berzin Março de 2002

A Importância do RenascimentoO budismo tibetano segue a tradição indiana e todas as tradições indianas tomam como garantida a crença no renascimento. Mesmo que os seguidores tradicionais do budismo não tenham uma profunda compreensão daquilo que renasce ou como o renascimento funciona, ainda assim eles cresceram com a ideia do renascimento como uma herança cultural. Eles apenas precisam de refinar as suas compreensões, mas não precisam de ser convencidos da existência do renascimento. Assim, os textos sobre os estágios graduais do caminho (lam-rim) nem sequer mencionam o tópico sobre como obter a convicção da existência do renascimento.

Sem o renascimento, não faz sentido a discussão sobre a mente não ter início nem fim. Sem [a existência de] uma mente sem início nem fim, a apresentação do carma

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cai por terra. Isso acontece porque muito frequentemente as consequências cármicas das nossas ações não se manifestam na mesma vida em que cometemos essas ações. Da mesma forma, sem a apresentação cármica de causa e efeito ao longo de muitas vidas, a discussão sobre a originação dependente e a vacuidade de causa e efeito caem por terra.

Além disso, com relação aos três objetivos de motivação do lam-rim, como podemos nós sinceramente procurar melhorar as nossas vidas futuras se não acreditarmos na existência delas? Como podemos sinceramente pretender obter a liberação dos incontroláveis renascimentos recorrentes (samsara) se não acreditarmos no renascimento? Como podemos sinceramente ter como objetivo a iluminação e a capacidade de ajudar os outros a obterem a liberação do renascimento sem acreditarmos que o renascimento é um fato?

Com relação à meditação sobre bodhichitta, como podemos sinceramente reconhecer todos os seres como tendo sido

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nossas mães em vidas anteriores, sem acreditarmos nas vidas anteriores? Com relação ao anuttarayoga tantra, como podemos sinceramente meditar na analogia com a morte, bardo e renascimento para nos purificarmos [e, assim, deixarmos] de os experienciar incontrolavelmente, se não acreditarmos que o bardo e o renascimento ocorrem?

Por isso, temos evidências claras de que o renascimento é fundamental para uma vasta e crucial parte dos ensinamentos do Dharma.

Dharma-Lite e Dharma a SérioA maioria dos ocidentais vêm ao Dharma sem previamente acreditarem no renascimento. Muitos abordam o estudo e a prática do Dharma como um método de melhorar a qualidade desta vida, especialmente em termos de superação de problemas psicológicos e emocionais. Essa atitude reduz o Dharma a uma forma asiática de psicoterapia.

Eu uso o termo Dharma-Lite para essa abordagem ao Dharma budista, por analogia à “Coca Cola-Lite”. É uma versão

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mais fraca, não tão forte quanto o “Dharma a Sério”. À abordagem tradicional ao Dharma – que inclui não só a discussão do renascimento, como também a apresentação dos infernos e dos seis reinos da existência – eu dei-lhe o nome deDharma a Sério.

Duas Maneiras de Praticar o Dharma-LiteExistem duas maneiras de praticar o Dharma-Lite.

1. Podemos praticá-lo reconhecendo a importância do renascimento no budismo e com a intenção sincera de estudarmos os corretos ensinamentos sobre ele. Assim, procuramos melhorar esta vida atual com os métodos do Dharma simplesmente como um degrau para podermos melhorar os nossos renascimentos futuros e obter a liberação e a iluminação. Desta forma, o Dharma-Lite torna-se num passo preliminar aos estágios graduais para a iluminação; um passo anterior ao escopo inicial. Tal abordagem é completamente justa para

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com a tradição budista. Ela não chama o Dharma-Lite de “Dharma a Sério”.

2. Podemos praticá-lo reconhecendo que o Dharma-Lite não só é o Dharma a Sério, como também a forma mais correta e habilidosa que o budismo ocidental pode tomar. Tal abordagem desvaloriza e é grosseiramente injusta para com a tradição budista verdadeira. Leva facilmente a uma atitude de arrogância cultural.

Deste modo, devemos proceder com grande cuidado se percebermos que, no nosso nível atual de desenvolvimento e compreensão espiritual, o Dharma-Lite é a “bebida” para nós.

Sumário Esquemático do Dharma-LiteO budismo torna-se Dharma-Lite quando:

o objetivo é melhorar apenas esta vida;

o estudante tem pouco ou nenhum entendimento dos ensinamentos budistas sobre o renascimento;

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consequentemente, o estudante não acredita nem tem interesse em vidas futuras;

mesmo se o estudante acreditar no renascimento, ele ou ela não aceita a existência dos seis reinos do renascimento;

o professor(a) do Dharma evita falar sobre o renascimento ou, mesmo falando sobre o renascimento, evita falar sobre os infernos. O professor(a) reduz os seis reinos às experiências psicológicas humanas.Sumário Esquemático sobre o Dharma a SérioO Dharma a Sério é a autêntica prática tradicional do budismo, na qual:

o estudante pelo menos reconhece a importância do renascimento no caminho espiritual e tem o desejo sincero de obter uma compreensão correta sobre ele;

o estudante tem como objetivo a liberação dos incontroláveis renascimentos recorrentes ou a iluminação e a capacidade de ajudar todos os outros a obterem a liberação;

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mesmo se o estudante procurar melhorar as suas vidas futuras, isso será simplesmente como um passo provisório no caminho para obter a liberação ou a iluminação;

mesmo que o estudante procure melhorar esta vida, isso será simplesmente como um passo provisório no caminho para melhorar as vidas futuras e obter a liberação ou a iluminação. 

Perguntas Básicas sobre Carma e Renascimento

Singapura, 10 de Agosto de 1988

Trecho revisado deBerzin, Alexander e Chodron, Thubten. Glimpse

of Reality. Singapura: Amitabha Buddhist Centre, 1999.

Pergunta: A teoria do carma é empírica e científica ou é aceita com base na fé?

Resposta: A idéia de carma faz sentido de diversas maneiras, mas há um certo mal entendido sobre o que o carma é. Algumas

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pessoas pensam que carma significa sina ou predestinação. Se alguem é atropelado por um carro ou perde muito dinheiro nos negócios, dizem: “Bem, que azar, esse é o carma dela”. Essa não é a idéia budista de carma. De fato, essa é mais a idéia da vontade de Deus – algo que nós nem entendemos nem temos qualquer controle sobre.

No budismo, o carma se refere aos impulsos. Baseados em nossas ações prévias, impulsos surgem em nós, nos fazendo agir de determinadas maneiras no presente. Carma se refere aos impulsos que aparecem na mente de alguém para investir em ações, ou no dia anterior delas falirem ou antes delas subirem de valor. Ou, alguém pode ter o impulso de atravessar a rua justo no instante que esse alguém será atropelado por um carro; nem cinco minutos antes nem cinco minutos depois. O surgimento do impulso naquele momento exato é o resultado de alguma ação ou ações que a pessoa fez. Em uma vida passada, por exemplo, alguém talvez tenha torturado ou matado alguém. Tal comportamento destrutivo resulta na

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experiência de uma vida também encurtada para a pessoa criminosa, geralmente numa vida próxima. Assim o impulso de atravessar a rua surgiu justamente no momento de ser atingido por um carro.

Uma pessoa pode ter o impulso de gritar ou de magoar outra pessoa. O impulso surge de hábitos construídos por comportamentos similares anteriores. Gritar ou magoar os outros cria um potencial, uma tendência e um hábito para esse tipo de comportamento, de maneira que no futuro, nós facilmente o faremos de novo. Gritar com raiva cria ainda mais um potencial, uma tendência e um hábito de novamente fazermos uma cena de raiva.

Fumar um cigarro é um outro exemplo. Fumar um cigarro age como um potencial de fumar outro. Também cria uma tendência e um hábito de fumar. Conseqüentemente, quando as circunstâncias são propícias – seja nessa vida, quando alguém nos oferece um cigarro, ou numa vida futura quando, enquanto crianças, nós vermos as pessoas

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fumando- o impulso de fumar vem à nossa mente e nós o fazemos. O carma explica de onde este impulso de fumar vem. Fumar cria não só o impulso mental de repetir a ação, mas também influencía os impulsos físicos dentro do corpo, por exemplo, ter um câncer por fumar. A idéia de carma faz muito sentido, pois explica de onde vêm os nossos impulsos.

Pergunta: Pode a receptividade e o entendimento de alguém pelo budismo ser predeterminado pelo carma?

Resposta: Existe uma grande diferença entre algo ser predeterminado e algo ser explicável. Nossa receptividade e entendimento do budismo podem ser explicados pelo carma. Isso é, como resultado de nosso estudo e prática em vidas passadas, nós agora somos mais receptivos aos ensinamentos. Se nós tivemos um bom entendimento dos ensinamentos no passado, então instintivamente nós iremos ter um bom entendimento de novo nesta vida. Ou, se nós tivemos muita confusão em nossas

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vidas passadas, esta confusão seria trazida para esta vida.

Entretanto, de acordo com o budismo, as coisas não são predeterminadas. Não há uma sina ou um destino. Quando o carma é explicado como impulsos, isso implica que impulsos são coisas das quais nós podemos escolher entre agir de acordo com elas ou não. Baseado em ações que nós fizemos nesta e em vidas passadas, nós podemos explicar ou prever o que poderia ocorrer no futuro. Nós sabemos que ações construtivas trazem resultados felizes e ações destrutivas trazem conseqüências indesejadas. Ainda assim, a maneira como uma ação carmica específica amadurece, vai depender de muitos fatores, e dessa forma, muitas coisas podem influenciá-la. Uma analogia seria: se nós jogamos uma bola para cima, nós podemos predizer que ela irá cair. Similarmente, com base em ações prévias, nós podemos predizer o que irá acontecer no futuro. Se, entretanto, nós pegarmos a bola, ela não irá cair. Da mesma forma, apesar de nós podermos predizer, a partir de ações passadas, o que virá no futuro, não é absoluto, fatídico, e

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encravado em pedra que apenas aquele resultado irá acontecer. Outras tendências, ações, circunstâncias e assim por diante podem influenciar o amadurecimento do carma.

Quando um impulso de fazer uma ação surge em nossas mentes, nós temos uma escolha. Nós não somos como criancinhas, que agem por qualquer impulso que surja em suas cabeças. Afinal de contas, nós aprendemos a usar o banheiro; nós não agimos imediatamente ao surgimento de qualquer impulso. O mesmo é verdade para o impulso de dizer algo que iria magoar alguém, ou de fazer algo cruel. Quando um impulso tal aparece em nossas mentes, nós podemos escolher: “Irei agir de acordo com ele ou irei refrear-me de agir com base nele?” Essa habilidade de refletir e discriminar entre ações contrutivas e destrutivas, é o que distingue os seres humanos dos animais. Essa é uma grande vantagem em ser humano.

Dessa forma, nós podemos escolher o que nós iremos fazer, baseado em termos espaço suficiente em nossas mentes para

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estarmos atentos ao [constante] surgir dos impulsos. Grande parte do treinamento budista está envolvido com o desenvolver da atenção. Na medida que nós desaceleramos, nós nos tornamos mais conscientes daquilo que estamos pensando e do que estamos na iminência de dizer ou fazer. A meditação na respiração, na qual nós observamos o entrar e sair da respiração, nos dá o espaço para sermos capazes de notar os impulsos quando eles surgem. Nós começamos a observar: “Eu tenho esse impulso de dizer algo que irá magoar alguém. Se eu o disser, vai me causar dificuldades. Logo, eu não vou dizer isso.” Nós podemos escolher. Se não estivermos atentos, nós temos enchurrada tal de pensamentos e impulsos, que nós não usamos a oportunidade para escolher sabiamente. Simplesmente agimos por impulso e isso geralmente trás problemas para as nossas vidas.

Assim, nós não podemos dizer que tudo – como o nosso entendimento ou nossa receptividade ao Dharma – é predeterminado. Nós podemos predizê-lo,

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mas nós também temos o espaço aberto para sermos capazes de mudar.

Pergunta: As pessoas de outras crenças religiosas também experimentam o carma?

Resposta: Sim. A pessoa não precisa acreditar em carma para poder experienciá-lo. Se nós dermos uma topada, nós não temos de crer em causa e efeito para experimentar a dor. Mesmo se nós achamos que veneno é uma bebida deliciosa, quando nós o bebemos, ficamos doentes. Da mesma forma, se nós agimos de determinada maneira, o resultado daquela ação virá, caso creiamos em causa e efeito ou não.

Pergunta: Eu sou a continuação de alguém que viveu antes? A teoria de renascimento do budismo é metafísica ou científica? Você disse que o budismo é racional e científico. Isso se aplica ao renascimento também?

Resposta: Existem diversos pontos aqui. Um deles é: como nós provamos algo científicamente? Isso trás o assunto: como nós conhecemos validamente as coisas? De acordo com os ensinamentos budistas, as

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coisas podem ser validamente conhecidas de duas maneiras: através da percepção simples, e através da inferência. Ao fazermos uma experiência em um laboratório, nós podemos validar a existência de algo através de uma percepção simples; nós o conhecemos simplesmente através dos nossos sentidos. Algumas coisas, entretanto, não podem ser conhecidas por nós neste momento através de uma percepção simples. Nós devemos contar com a lógica, a razão e a inferência. O renascimento é muito difícil de provar por meio da percepção sensorial direta, apesar de haver a estória de um professor budista há muito tempo atrás na Índia que morreu, renasceu e depois disse “Cá estou eu de volta”, de maneira a demonstrar ao rei que o renascimento existe. Existem muitos exemplos de pessoas que se lembram de suas vidas passadas e que podem identificar tanto seus pertences pessoais ou indivíduos que elas conheciam antes.

Deixando de lado essas estórias, existe também a pura e simples lógica do renascimento. S.S., o Dalai Lama, disse que

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se certos pontos não corresponderem à realidade, ele está disposto a que eles sejam eliminados do budismo. Isso se aplica ao renascimento também. Na realidade, ele fez esta afirmação originalmente neste contexto. Se os cientistas puderem provar que o renascimento não existe, então nós devemos desistir de crer que seja verdade. Entretanto, se os cientistas não puderem provar que este é falso, então já que eles seguem a lógica e os métodos científicos, que está aberto a entender novas coisas, eles devem investigar se ele de fato existe. Para provar que o renascimento não existe, eles teriam que encontrar a sua não-existência. Apenas dizer, “O renascimento não existe, pois eu não o vejo com meus olhos”, não é achar a não-existência do renascimento. Muitas coisas existem que nós não podemos ver com nossos olhos.

Se os cientistas não podem provar a não-existência do renascimento, isso então os compele a investigar se o renascimento existe de fato. O método científico é postular uma teoria baseada em uma determinada informação e então checar se

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ela pode ser validada. Assim, nós olhamos para as informações. Por exemplo, nós notamos que recém-nascidos não nascem como fitas-cassete virgens. Eles têm certos hábitos e características de personalidade observáveis mesmo quando eles são muito jovens. De onde elas vêm?

Não faz sentido dizer que elas vêm apenas das continuidades anteriores das substâncias físicas dos pais; do espermatozóide e do óvulo. Nem todo espermatozóide e óvulo que se juntam, se implantam no útero para se tornarem um feto. O que cria a diferença entre quando eles se tornam um bebê e quando não se tornam? O que está de fato causando os vários hábitos e instintos na criança? Nós podemos dizer que são o DNA e os genes. Este é o lado físico. Ninguém está negando que este é o aspecto físico de como um bebê se forma. Apesar disso, como fica o lado da experiência? Como podemos explicar o que seja a mente?

A palavra inglesa “mind” [ou mente, em português], não tem o mesmo significado que os termos em sânscrito e tibetano que

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ela deveria traduzir. Nas línguas originais, mente se refere à atividade mental ou eventos mentais, ao invés de algo que está executando esta atividade. A atividade ou evento é o surgimento cognitivo de certas coisas – pensamentos, paisagens, sons, emoções, sentimentos e assim por diante – e um envolvimento cognitivo com elas – vê-las, ouví-las, entendê-las e até mesmo não entendê-las. Esses dois traços característicos da mente são usualmente traduzidos como “claridade” e “apercebimento”, mas estes termos em inglês [bem como em português] também são capciosos.

De onde surge essa atividade mental do surgimento e do envolvimento com objetos cognitivos num indivíduo? Aqui, não estamos falando sobre de onde vem o corpo, pois é obvio que vem dos pais. Nós não estamos falando sobre inteligência e afins, pois nós também podemos usar o argumento de que há uma base genética para isso. Entretanto, dizer que a preferência de alguém por sorvete de chocolate vem dos genes da pessoa é exagerar demais.

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Nós podemos dizer que alguns de nossos interesses podem ser influenciados por nossas famílias ou pela situação socio-econômica em que nos encontramos. Esses fatores definitivamente têm uma influência, mas é dificil de explicar absolutamente tudo que nós fazemos desta maneira. Por exemplo, por que eu me tornei interessado em yoga quando criança? Ninguém em minha família ou na sociedade à minha volta estava. Haviam alguns livros disponíveis na área onde eu morava, então pode-se dizer que houve alguma influência da sociedade, mas por que eu me interessei especificamente por aquele livro de hatha yoga? Por que eu o peguei? Essa é uma outra questão.

Colocando tudo isso de lado, vamos retornar para a questão principal: de onde vem a atividade do surgimento de objetos cognitivos e um envolvimento cognitivo com eles? De onde vem essa habilidade de perceber? De onde vem a centelha de vida? O que faz com que essa combinação de um esperma e um óvulo de fato tenha vida? O que o faz se tornar um ser humano? O que é que permite o surgimento de coisas como

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pensamentos e paisagens e o que causa o envolvimento cognitivo com eles, que é o lado experiencial da atividade química e elétrica do cérebro?

É difícil dizer que a atividade mental de um recém-nascido vem dos pais, pois se viesse, como é que vem dos pais ? Tem de haver algum mecanismo envolvido [para que isso aconteça]. Essa centelha de vida, caracterizada pela consciência das coisas, vem dos pais da mesma maneira que um esperma ou óvulo vem? Ela vem com o orgasmo? Com a ovulação? Ela é o esperma? O óvulo? Se nós não conseguirmos chegar a uma indicação lógica, científica de quando é que vem dos pais, então temos de procurar por uma outra solução.

Olhando pela lógica pura e simples, nós vemos que todos os fenômenos funcionais vêm de suas próprias continuidades, de momentos prévios de algo na mesma categoria de fenômeno. Por exemplo, um fenômeno físico, seja matéria ou energia, vem do momento anterior daquela matéria ou energia. É um contínuo.

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Tomem a raiva como um exemplo. Nós podemos falar da energia física que nós sentimos quando estamos com raiva, isso é uma coisa. Entretanto, considerem a atividade mental de experienciar a raiva – experimentar o surgir da emoção e a percepção consciente ou inconsciente dela. O momento presente de experiência de raiva de um indivíduo, possui seus próprios momentos prévios de continuidade dentro desta vida, mas de onde ela [a experiência de raiva] veio antes disto? De duas, uma: ou ela vem dos pais – e não parece haver nenhum mecanismo para descrever como isto acontece – ou vem de um Deus criador. Porem, para certas pessoas, as inconsistencias logicas desta explicacao (de como um ser omnipotente pode ser o criador de tudo) também trazem problemas. Para evita-los, alternativamente, podemos dizer o primeiro momento de ira na via de alguien vem de seu próprio momento anterior de continuidade. A teoria do renascimento explica exatamente isso.

Nós podemos tentar entender o renascimento com a analogia de um filme.

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Assim como um filme é uma continuidade dos quadros filmados [preservados numa película], nossos contínuos mentais ou fluxos mentais são continuidades de momentos sempre mutantes de consciência dos fenômenos, numa mesma vida e de uma vida para outra. Não há uma entidade sólida, passível de ser achada, tal como um “eu” ou “ minha mente”, que renasce. O renascimento não é como a analogia de uma pequena estátua em cima de uma esteira rolante, indo de uma vida para a próxima. Ao invés disso, é como um filme, algo que está em constante mudança. Cada quadro é diferente, mas há uma continuidade nele. Um quadro está relacionado com o próximo. Similarmente, há uma continuidade sempre mutante de momentos de consciência dos fenômenos, mesmo se alguns desses momentos são inconscientes. Ademais, assim como todos os filmes não são o mesmo filme, apesar de serem todos filmes; da mesma forma todos os contínuos mentais ou “mentes” não são uma mente. Existe um sem número de fluxos individuais de continuidade de consciência dos fenômenos.

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Esses são todos argumentos que nós começamos a investigar de um ponto de vista científico e racional. Se uma teoria faz sentido em termos de lógica, então nós podemos olhar mais seriamente para o fato de existirem pessoas que lembram de suas vidas passadas. Dessa maneira, nós examinamos a existência do renascimento com uma abordagem científica.

Pergunta: O budismo diz que não há uma alma ou um eu. O que é então que renasce?

Resposta: Novamente, a analogia do renascimento não é aquela de alguma alma, como uma pequena estátua ou uma pessoa concretas, se movendo em uma esteira rolante de uma vida para outra. A esteira rolante representa o tempo, e a imagem que isto implica é a de alguma coisa sólida, uma personalidade fixa ou uma alma chamada de “eu” viajando através do tempo: “Agora eu sou jovem, agora eu sou velho, agora eu estou nessa vida, agora eu estou naquela vida.” Este não é o conceito budista de renascimento. Ao invés disso, a analogia é semelhante àquela de um filme. Há uma continuidade

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com um filme; os quadros formam a continuidade.

O budismo também não diz que eu me torno você, ou que nós somos todos um. Se todos nós somos um, e eu sou você, então se ambos estivermos com fome, você pode esperar no carro enquanto eu vou comer. Não é desse jeito. Cada um de nós tem seu próprio fluxo de continuidade individual. A seqüência no meu filme não vai se tornar o seu filme, mas nossas vidas procedem como filmes no sentido de que elas não são concretas nem fixas. A vida segue em frente, de um quadro para o outro. Ela segue uma seqüência, de acordo com o carma, formando assim uma continuidade.

Pergunta: Como é que os vários impulsos são armazenados na mente e como eles surgem?

Resposta: Isso é um pouco complexo. Nós agimos de uma determinada maneira, por exemplo fumamos um cigarro. Porque há alguma energia envolvida no ato de fumar um cigarro, esta ação atua como um potêncial ou força para fumarmos um outro. Existe uma energia grosseira, que

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acaba quando a ação acaba, mas também há uma energia sutil, que é a energia potencial para repetir a ação. Esta energia sutil do potencial de fumar, é carregada juntamente com a energia suprasutil, que acompanha a mente suprasutil que vai de uma vida para outra. Em termos bem simples, a mente suprasutil se refere ao nível mais sutil da atividade de claridade e apercebimento, enquanto a energia suprasutil se refere à sutilíssima energia de suporte vital que sustém essa atividade. Juntas, elas formam o que poderíamos chamar de “a centelha de vida”. Elas são aquilo que vai de uma vida para outra. Potenciais carmicos são carregados junto com a “centelha de vida.”

Tendências e hábitos também são levados juntos, porém eles não são físicos. O que é um hábito? Por exemplo, nós temos o hábito de tomar chá. Nós tomamos chá esta manhã e na manhã de ontem e nos dias anteriores. O hábito não é uma chícara de chá física; não é a nossa mente dizendo “Beba chá.” É meramente uma seqüência de eventos similares – tomar chá várias vezes. Baseado nesta seqüência, como um

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modo de dizer, nós dizemos ou “imputamos” que há um hábito de tomar chá. Nós rotulamos a seqüência de “o hábito de tomar chá”. Um hábito não é algo físico, mas sim uma abstração construída a partir de um modo de dizer sobre uma seqüência de eventos similares. Baseado nisso, nós podemos predizer que algo similar vai acontecer no futuro.

É similar a quando nós falamos de hábitos, instintos ou tendências sendo levados para o futuro. Nada fisico está sendo levado. Entretanto, com base nos momentos de um contínuo mental, podemos dizer que existem instâncias similares nesse momento ou naquele momento, por isso haveram instâncias similares no futuro.

Pergunta: Se a vida envolve a transferência de consciência, existe algum começo?

Resposta: O budismo ensina que não há começo. Um começo é ilógico. A continuidade da matéria, da energia e das mentes individuais é sem início. Se houvesse um início, de onde este início veio? O que havia antes deste início?

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Algumas pessoas dizem, “Nós precisamos de um começo. Assim, Deus criou tudo.” Elas defendem [a existência de] um Deus criador, que recebe vários nomes nas diferentes religiões. A pergunta que um budista faria é: “De onde Deus vem? Deus tem um início”? [De duas, uma:] ou elas teriam que responder que Deus é sem início, neste momento o debatedor budista diria, “Ah ha, aqui está tempo sem começo”, ou elas teriam de apontar para algo ou alguém que criou Deus, o que contradiz a sua própria filosofia.

Um ateu diz: “Não há nenhum Deus. Tudo veio do nada. O universo evoluiu a partir do nada. Nossos contínuos mentais vieram do nada”. Então perguntamos: “De onde vem este nada?” Eles respondem: “ Este nada sempre nos cerca. Sempre houve o nada. Este nada não teve um início.” Então mais uma vez, nós voltamos para a ausência de início. Qualquer que seja a resposta dada, nós retornamos para esta ausência de começo.

Se ausência de início é a única conclusão lógica a que podemos chegar, então nós

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examinamos: “É possivel que algo funcional venha do nada? Como pode o nada produzir algo?” Isso não faz nenhum sentido; as coisas precisam ter causas. Será que a outra explicação, a de haver um criador, faz sentido? Teriamos que examinar esta afirmacao mais detalhadamente. Por exemplo, se um ser onipotente ou até se um Big Bang puramente físico criou tudo, então a criação aconteceu num dado momento, devido à influência de uma motivação, objetivo ou circunstância? Se sim, então aquilo que influenciou a criação de tudo existia antes desta, e isso não faz sentido. Se um criador tem compaixao mas nao tem um principio, como e que este criador poderia ter criado a compaixao?  A compaixao tambem ja existia.

A terceira alternativa a considerar é: será que as coisas sem início podem continuar? Essa é uma abordagem mais científica, que está de acordo com a idéia de que a matéria não é nem criada nem destruída, apenas transformada. O mesmo vale para contínuos mentais individuais. Não há um início, e tudo se transforma de forma

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dependente, devido a causas e circunstâncias.

Pergunta: O Buda disse aos seus seguidores que ele não é Deus. Se este é o caso, então qual é o papel das preces no budismo?

Resposta: A questão principal no que tange prece é a pergunta “É possível para alguém eliminar nosso sofrimento e nossos problemas?” O Buda disse que ninguém pode eliminar todos os nossos problemas, da mesma maneira que alguém pode segurar um coelho pelas orelhas e tirá-lo de uma situação difícil. Isso é impossível. Nós temos de ter responsabilidade por aquilo que acontece conosco. Assim, se nós desejamos criar as causas da felicidade e evitar as causas dos problemas, devemos seguir uma ética e moralidade puras. Se nós quisermos que nossas vidas melhorem, cabe a nós mudarmos nossos comportamentos e posturas, de maneira a afetar o que irá acontecer no futuro.

Quando nós rezamos no budismo, nós não pedimos: “Buda por favor, que eu possa ter uma Mercedes!” Ninguém lá no céu pode

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nos dar isso. Ao invés disso, ao rezarmos, nós estamos desenvolvendo um forte desejo para que algo aconteça. Nossas atitudes e ações fazem com que isto aconteça; não obstante, os Budas e bodhisattvas podem nos inspirar.

Às vezes, o termo “inspirar” é traduzido como “abençoar”, mas essa é uma tradução muito pobre. Budas e bodhisattvas podem nos inspirar com os seus exemplos. Eles podem nos ensinar ou nos mostrar o caminho, mas nós é que temos de trilhá-lo. Já diz o ditado, “Você pode levar o cavalo até a água, mas não pode beber pelo cavalo.” O cavalo tem de beber por si mesmo. Da mesma forma, nós temos de seguir o caminho nós mesmos e obter as realizações que dão fim aos nossos problemas. Nós não podemos passar esta responsabilidade para um ser externo onipotente, pensando; “Você é todo poderoso, faça isso por mim. Eu me entrego em suas mãos.” Ao contrário, no budismo nós buscamos os Budas por inspiração para levantar nosso entusiasmo com os seus exemplos. Através dos seus ensinamentos e inspiração, eles nos ajudam

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e nos guiam. Entretanto, nós devemos desenvolver o potencial por parte de nós mesmos para recebermos inspiração deles. Nós temos de fazer o trabalho básico nós mesmos.

Grande parte do mal entendido sobre o budismo surge, devido a uma má tradução dos termos e conceitos budistas para o inglês e outras línguas estrangeiras. Por exemplo, muitos dos termos de traduções usados para traduzir o budismo para o inglês, foram cunhados pelos compiladores dos dicionários budistas no último século [século dezenove], ou até mesmo antes. Estes primeiros eruditos geralmente provinham de antecedentes vitorianos ou missionários, e eles escolheram termos de um vocabulário de suas próprias educações. Muitas das palavras que eles selecionaram, entretanto, não transmitem de forma acurada os significados intencionados pelo budismo. Quando nós lemos essas palavras, nós achamos que elas querem dizer a mesma coisa que significam num ambiente cristão ou vitoriano, quando na realidade não querem.

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Como exemplos, temos as palavras “abençoar,” “pecado,” “virtuoso,” “não virtuoso,” “confissão”, e assim por diante. No cristianismo, elas têm uma implicação de algum tipo de julgamento moral, recompensa ou punição. Entretanto, o conceito budista não é esse, de maneira nenhuma. É semelhante com a palavra “benção”. Essas palavras vêm de um cenário cultural diferente. Dessa forma, no estudo do budismo, é muito importante retirar o máximo possível o revestimento cultural das palavras que os tradutores anteriores usaram. Eles foram grandes pioneiros dos estudos budistas e nós precisamos ser gratos por seus tremendos esforços. Agora, entretanto, precisamos mais uma vez retornar para as línguas originais dos textos e entender os conceitos budistas por suas definições naquelas línguas e colocá-los em palavras e frases num inglês que corresponda aos seus significados.

Pergunta: O que o budismo diz sobre a teoria da evolução de Darwin?

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Resposta: A teoria de Darwin aborda a evolução de possíveis corpos nos quais contínuos mentais podem renascer, em diferentes épocas da história da Terra. Ela não descreve a evolução de corpos que um contínuo mental individual irá usar em vidas posteriores. Existe uma grande diferença entre as formas de vida físicas nesse planeta e a continuidade dos fluxos mentais que renascem nelas [nas formas de via].

Algumas explicações sobre a evolução nos textos budistas podem parecer um pouco estranhas para nós. Elas falam de seres que estavam em uma situação melhor que a nossa no passado e então se deterioraram. Se isso é verdade ou não, necessita-se de uma investigação. Nem tudo que o Buda e seus seguidores ensinavam pode ser corroborado pela ciência, e aquilo que não pode, S.S. Dalai Lama está disposto a deixar de lado. Os mestres podem ter dado explicações aparentemente estranhas por razões específicas e não pretendiam que elas fossem tomadas literalmente. Elas podem

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indicar várias verdades sociais ou psicológicas.

Não obstante, dentro do contexto da evolução em si, antes haviam dinossauros e agora eles estão extintos. Não há mais carma ou impulsos remanescentes para os seres renascerem como dinossauros neste planeta no presente. Existem bases físicas diferentes, que estão disponíveis para os fluxos mentais tomarem como corpo atualmente. Não é contraditório às explicações budistas, que as bases físicas disponíveis para se renascer mudem com o tempo.

Durante uma discussão que S.S. Dalai Lama teve com cientistas, lhe foi perguntado se computadores poderiam se tornar seres senscientes: os computadores poderiam algum dia ter mentes? Ele respondeu de uma maneira interessante, dizendo que se um computador ou um robô chegar num ponto tal, que seja suficientemente sofisticado para servir como a base para um contínuo mental, não há razão porquê um fluxo mental não poderia se conectar com uma máquina

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puramente inorgânica, como a base física para uma de suas vidas. Isso é muito mais fantástico que Darwin!

Isso não quer dizer que um computador é uma mente. Não quer dizer que nós podemos criar uma mente artificialmente num computador. Entretanto, se um computador for sofisticado o bastante, um fluxo mental poderia se conectar com ele e usá-lo como sua base física.

Tal pensamento de grande abrangência faz com que as pessoas da era moderna fiquem empolgadas e interessadas no budismo. Os budistas são corajosos e dispostos a entrar nestas discussões com os cientistas e a enfrentar as várias questões populares do mundo moderno. Nesse sentido, o budismo está vivo e vibrante. O budismo não apenas tem a sabedoria ancestral de linhagens intactas remontando ao Buda, mas também está vivo e lida com os problemas do presente e do futuros.

Pergunta: O que acontece com o fluxo mental quando uma pessoa se torna um Buda?

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Resposta: Antes de responder esta pergunta, eu devo explicar que o Buda ensinou muitas pessoas. Nem todo mundo é igual. Nós temos diferentes disposições e capacidades. O Buda era extremamente habilidoso e deu uma variedade de ensinamentos de maneira que cada pessoa poderia achar uma abordagem apropriada para seu carater e disposição. Dessa forma, as principais tradições dos ensinamentos budistas são o Hinayana, para praticantes de mentes modestas, e o Mahayana, para praticantes de mente vasta. Das dezoito escolas Hinayana que existiam nos tempos antigos, a Theravada é a única que existe ainda hoje.

Se o Buda tivesse de dizer a alguém que é modesto em sua aspiração e objetivo, que os fluxos mentais de todos duram para sempre, a pessoa poderia ficar desencorajada. Algumas pessoas estão sobrecarregadas com seus próprios problemas, sendo assim, o Buda disse para elas: “Você pode se livrar dos seus problemas, se tornar um ser liberto – umarhat – e alcançar o nirvana. Quando você morre, você atinge oparinirvana.

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Neste momento, seu fluxo mental acaba, da mesma forma que uma vela se acaba quando a cera se exaure.” Para esta pessoa, tal explicação será muito encorajadora, pois ela deseja escapar do ciclo de problemas e renascimentos recorrentes constantes, e não tem que se incomodar mais. Assim, é efetivo para este tipo de pessoa. Por favor, note entretanto que o Buda não ensinou que no final todos os fluxos mentais se tornam um, como fluxos de água que se fundem com o oceano. Esta é a explicação do hinduísmo.

Para uma pessoa de mente vasta, o Buda diria: “Eu dei a explanação prévia para beneficiar aqueles que são modestos. Entretanto, eu não quis dizer aquilo que eu expliquei literalmente, porquê, na verdade, o fluxo mental segue para sempre. Depois de você ter eliminado seus problemas e atingido o nirvana, a qualidade da sua mente muda. Sua mente não continua da mesma maneira problemática como era antes.” Assim, para pessoas que têm um objetivo abrangente de atingir a iluminação, o Buda explicou que de fato o fluxo mental dura para sempre – sem

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começo nem fim. Quando seres iluminados deixam seus corpos presentes, seus fluxos mentais ainda seguem em frente.

Existe uma diferença entre arhats, seres liberados que atingiram o nirvana, e Budas, que são completamente iluminados. Enquanto os arhats estão livres de seus problemas, seus sofrimentos e das causas desses sofrimentos, os Budas superaram todas as suas limitações e realizaram todos os seus potenciais, de maneira a beneficiar a todos da maneira mais eficiente possível.

Pergunta: O estado de nirvana é permanente? Quando nós atingimos a iluminação, nós atingimos um estado de eqüanimidade, que não é nem feliz nem triste. Isso não é um tanto entediante?

Resposta: Nós precisamos ser cuidadosos sobre como nós usamos a palavra “permanente.” Às vezes, ela tem o significado de ser estático e nunca mudar. O outro significado de “permanente” é durar para sempre. Quando nós atingimos o nirvana, nós nos livramos de todos os nossos problemas. Este estado dura para sempre – uma vez que os problemas se

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foram, eles vão e não retornam. A situação na qual todas as limitações se vão também não muda; esse sempre será o caso. Entretanto, nós não devemos ter a idéia de que porquê o nirvana é permanente, ele é no final das contas sólido e concreto e que nós não fazemos nada nele. Este não é o caso. Quando nós atingirmos o nirvana, nós podemos continuar a ajudar os outros e a fazer coisas. O nirvana não é permanente no sentido de que toda atividade pára e nada acontece. Nós precisamos ser um pouco mais precisos sobre o uso da palavra “permanente”, e estarmos conscientes de suas conotações. O estado de nirvana em si não muda; o feito de ter removido nossas limitações não muda, dura para sempre. A pessoa que atinge tal estado, entretanto, continua a agir.

"Eqüanimidade" também tem várias conotações. Pode significar um sentimento neutro de não se estar nem feliz nem triste, mas isto não é a experiência dos Budas. Alguns dos deuses superiores ficam absortos em profundos transes meditativos que estão além de sentimentos de felicidade ou tristeza; eles experimentam

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um sentimento completamente neutro nesses transes. Os Budas se livram de tais sentimentos neutros também, já que eles são associados com a confusão. Quando nos livramos de todos os problemas e limitações, nós liberamos uma quantidade tremenda de energia, que antes estava atada por neuroses, ansiedades e preocupações. Nós experimentamos a liberação de toda esta energia desassociada de qualquer confusão, como [imbuída de] extrema bem-aventurança. Isso é completamente diferente de felicidade ordinária associada com a confusão, e não é de maneira nenhuma neutra ou tediosa.

Outro uso da palavra eqüanimidade se refere ao fato dos Budas terem eqüanimidade com relação a todos. Aqui, “ eqüanimidade” não significa indiferença, mas sim ter uma igual atitude de cuidado e zelo por todos. Os Budas não favorecem uns e ignoram ou desgostam de outros.

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A Visão Budista sobre Outras Religiões

Trecho revisto de Berzin, Alexander e Chodron, Thubten. Glimpse

of Reality. Singapura: Amitabha Buddhist Center, 1999.

Pergunta: Como vê o budismo a existência de outras religiões?

Resposta: Já que nem todos têm as mesmas inclinações e interesses, Buda ensinou vários métodos para diferentes pessoas. Citando este exemplo, Sua Santidade o Dalai Lama disse que é maravilhoso que no mundo existam tantas religiões diferentes. Assim como uma comida não é atrativa para todos, também uma religião ou um grupo de crenças não irá satisfazer as necessidades de todos. Deste modo, é extremamente benéfico que uma variedade de diferentes religiões estejam disponíveis para serem escolhidas. Ele as acolhe e se alegra disso.

Nos dias de hoje, há um crescente diálogo, baseado no respeito mútuo, entre os mestres budistas e os líderes de outras religiões. Dalai Lama, por exemplo,

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encontra-se frequentemente com o Papa. Em Assis, na Itália, em Outubro de 1986, o Papa convidou os líderes de todas as religiões do mundo para uma grande assembleia. Nela estiveram presentes cerca de cento e cinquenta representantes. Dalai Lama estava sentado próximo do Papa e teve a honra de fazer o primeiro discurso. Na conferência, os líderes espirituais discutiram tópicos comuns a todas as religiões, tais como a moralidade, o amor e a compaixão. As pessoas ficaram muito encorajadas pela cooperação, harmonia e respeito mútuo que os vários líderes religiosos sentiam uns pelos outros.

Claro que existirão diferenças se discutirmos metafísica e teologia. Não há maneira de se escapar às diferenças. Contudo, isso não significa que tenhamos necessidade de fazer o debate com a atitude de que “o meu pai é mais forte que o seu pai”. Isso seria muito infantil. É mais benéfico olhar para os aspectos que existem em comum. Todas as religiões do mundo estão procurando melhorar a situação da humanidade e tornar a vida melhor, ensinando as pessoas a seguirem

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um comportamento ético. Todas elas nos ensinam a não ficarmos totalmente presos pelo lado material da vida, mas pelo menos mantermos um equilíbrio entre a procura do progresso material e do progresso espiritual.

Seria muito benéfico se todas as religiões trabalhassem em conjunto para melhorarem a situação do mundo. Precisamos não apenas de progresso material, como também de progresso espiritual. Se apenas enfatizarmos o aspecto material da vida, então a construção de uma bomba mais poderosa para matar toda a gente seria um objetivo desejável. Se, por outro lado, pensarmos de uma maneira humanística ou espiritual, ficaremos conscientes do medo e de outros problemas que surgem da acumulação de armas de destruição maciça. Se apenas nos desenvolvermos espiritualmente e não tivermos em conta o lado material, então passaremos fome e isso também não será nada bom. Nós precisamos de um equilíbrio.

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Um dos aspectos da interação entre as religiões mundiais é que elas estão compartilhando umas com as outras algumas das suas especialidades. Consideremos, por exemplo, a interação entre os budistas e os cristãos. Muitos cristãos contemplativos estão interessados em aprender os métodos de concentração e meditação budistas. Vários sacerdotes, abades, monges e freiras católicos têm ido a Dharamsala, na Índia, para aprenderem esses métodos, a fim de os levarem para as suas próprias tradições. Vários budistas ensinaram em seminários católicos. Eu também já fui ocasionalmente convidado para ali ensinar como meditar, como desenvolver a concentração e o amor. O cristianismo ensina-nos a amar a todos, mas não explica em pormenor como fazê-lo. O budismo é rico em métodos para desenvolver o amor. A religião cristã, nos seus níveis mais altos, está aberta a aprender estes métodos budistas. Isso não significa que os cristãos se vão todos tornar budistas – ninguém está convertendo ninguém. Esses métodos podem ser adaptados dentro das suas próprias

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religiões, para ajudá-los a serem melhores cristãos.

Da mesma forma, muitos budistas estão interessados em aprender serviços sociais com o cristianismo. Muitas tradições cristãs salientam que os seus monges e freiras se envolvem com o ensino, o trabalho hospitalar, o cuidado com idosos, orfãos e assim por diante. Apesar de alguns países budistas terem desenvolvido esses serviços sociais, nem todos contudo o fizeram por várias razões sociais e geográficas. Os budistas podem aprender o serviço social com os cristãos. Sua Santidade o Dalai Lama é muito aberto a isso. Isso não significa que os budistas se estejam tornando cristãos. Existem certos aspectos da experiência dos cristãos a partir dos quais os budistas podem aprender; existem também coisas da experiência dos budistas a partir das quais os cristãos podem aprender. Desta maneira, existe um fórum aberto entre as religiões do mundo, baseado no respeito mútuo.

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Geralmente é ao nível mais alto das interações entre religiões que as pessoas são abertas e sem preconceitos. É nos níveis mais baixos que as pessoas se tornam inseguras e desenvolvem uma mentalidade de time de futebol: “Este é o meu time de futebol e as outras religiões são times de futebol oponentes!” Com tal postura, nós competimos e lutamos. Isso é muito triste, quer ocorra entre as diferentes religiões ou entre as várias tradições budistas. Buda ensinou muitas variedades de métodos e todas elas funcionam harmoniosamente para ajudar uma vasta gama de diferentes tipos de pessoas. Assim, é importante respeitar todas as tradições, tanto dentro do budismo como entre as religiões do mundo.

Estados Extra-Corpóreos no Budismo – Tsenzhab Serkong

Rinpoche I

Tsenzhab Serkong Rinpoche I Traduzido e editado por Alexander Berzin e

Sharpa Tulku, 1976

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A literatura e tradição oral budistas registram muitos exemplos da consciência viajando com uma forma sutil fora do corpo grosseiro. Tais fenómenos foram também observados no ocidente e frequentemente designados por "viagem astral do corpo". Embora seja difícil correlacionar experiências e identificar casos individuais de uma cultura para uma outra dentro do esquema de classificação dessa outra cultura, não obstante, pode ser útil esboçar algumas variedades desse fenómeno, como verificado nas tradições budistas da Índia e do Tibete.

Corpo IlusórioAtravés da prática intensiva e profunda da meditação, é possível conseguirmos um corpo ilusório (sgyu-lus). Este é o resultado da prática extremamente avançada do estágio completo (rdzogs-rim, estágio da completude) da classe mais elevada do tantra, o anuttarayoga. É com este corpo que adquirimos a compreensão não-conceptual da vacuidade com a mente mais sutil de luz clara. Desta forma, é possível viajarmos vastamente para além dos

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limites do nosso corpo físico, trabalhando para benefício dos outros.

A fim de alcançarmos um corpo ilusório, é necessário conseguirmos antecipadamente a renúncia do sofrimento, uma orientação bodhichitta para atingir a Budeidade a fim de podermos ajudar todos os outros a conseguir o mesmo, e uma correta compreensão conceptual da vacuidade. Além disso, o praticante [já] deve ter alcançado a concentração absorta unifocada (ting-nge-`dzin, sânsc. samadhi), ter recebido as iniciações tântricas apropriadas de um mestre tântrico totalmente qualificado, ter mantido puramente todos os votos e ter alcançado proficiência no estágio da geração (bskyed-rim) e nas práticas iniciais do estágio completo do anuttarayoga tantra.

O Corpo OníricoCom muita meditação, também podemos obter a faculdade de usar um corpo onírico (rmi-lam-gyi lus). Esta forma é particularmente apropriada para a prática da atenção unifocada, uma vez que, enquanto adormecidos, não temos as

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distrações das consciências sensoriais. Por conseguinte, os praticantes cultivam-na frequentemente a fim de obterem um adicional progresso nos seus estudos. Tendo obtido controlo sobre o estado onírico e dominado este tipo de emanação, podemos preparar os livros no nosso quarto e memorizá-los enquanto adormecidos. Porém, como o corpo onírico é incapaz de ter contato com objetos concretos e não pode virar as páginas, é necessário arranjar diversas cópias dos livros de modo a que não haja necessidade de mudar de página.

Além disso, o corpo onírico e o corpo ilusório estão ligados ao corpo grosseiro meramente pelo carma. Não há nenhuma ligação física entre os dois.

Distúrbios do Corpo SutilO que é conhecido como corpo sutil (lus phra-mo) não é um corpo que pode deixar a nossa forma física grosseira. Em vez disso, é o sistema de energia sutil dentro dos nossos corpos grosseiros. É a rede dos canais invisíveis de energia (rtsa, sânsc . nadi), dos nós de energia (rtsa-

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`khor,sânsc. chakra), das gotas de energia criativa (thig-le, sânsc . bindu) neles situadas, e dos ventos de energia (rlung, sânsc. prana) que correm através deles. Partes deste sistema estão envolvidas no funcionamento normal da percepção dos sentidos. Com absorta concentração e treinamento avançado de yoga, é possível fazermos um uso especial deste sistema para obtermos poderes extra-físicos e extra-sensoriais, tais como telepatia e clarividência. No entanto, há também muitas doenças que resultam de distúrbios e desequilíbrios dos ventos de energia. Tais desordens podem produzir alucinações e percepções anormais, tal como a sensação de se estar fora do próprio corpo.

Os Efeitos Colaterais das Práticas de VisualizaçãoAlém disso, existem muitos tipos de meditação em que cultivamos e exploramos os poderes da imaginação a fim de progredirmos espiritualmente. Por exemplo, aprendendo a visualizar todos os seres como esqueletos, podemos diminuir a nossa atração compulsiva e o nosso desejo

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obsessivo pelo corpo e, assim, eliminar o sofrimento e a ansiedade do desejo ardente. Podemos treinar a nossa mente a visualizar simultaneamente todas as direções e até a ver os órgãos internos do corpo. Com a mestria de tais práticas, é possível termos essa alargada percepção mesmo fora das nossas sessões de meditação. Conseguindo ver tudo ao nosso redor, podemo-nos sentir como se estivéssemos para além dos limites do nosso próprio corpo.

Corpos com Estados Mistos de ExistênciaDevido ao carma precedente, registra-se que uma pessoa pode renascer como alguém meio-humano, meio-espírito. Alguém nessa situação pode verificar que quando o seu corpo humano está inconsciente ou de alguma forma inativo, a parte “como espírito” da sua natureza viajará juntamente com a sua consciência. Houve também casos conhecidos de pessoas que eram meio-humanas e meio-celestiais (deuses). Aqui, um ser celestial tomou um corpo humano grosseiro, mas sob certas condições atuou à parte dessa

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forma. Os casos acima descritos envolvem a consciência de apenas um ser vivo que pode ter aspectos, contudo, de dois estados diferentes de existência.

Entrando na Cidadela de um Outro CorpoÉ também possível que uma experiência extra-corpórea envolva mais do que um ser. Existem certas meditações tântricas avançadas do anuttarayoga denominadas "entrar na cidadela" de um outro corpo (grong-`jug). Com concentração absorta, pode-se projetar a mente para dentro do corpo de alguém que acabou de morrer ou de alguém que esteja inconsciente. Como isso podia ser facilmente usado e abusado com fins nocivos, a tradição oral direta da sua prática foi interrompida no século XI, antes que fosse levada da Índia para o Tibete.

PossessãoÉ também possível que o nosso corpo ou mente seja possuído por um ser do reino dos espíritos. Isto pode ocorrer por razões benéficas, como no caso dos oráculos em transe, ou por razões nocivas, como com

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um encosto (espíritos famintos). Na literatura budista também há referências de seres que morreram e renasceram como espíritos ou criaturas do inferno e que, nestes estados, comunicaram com os seus anteriores familiares e amigos. Isto é baseado em fortes conexões cármicas, como é o reconhecimento, por exemplo, de um asno como a reencarnação do seu falecido tio.

Experiência Extra-Corpórea Devida à Prática de Meditação AnteriorNão importa o tipo de fenómeno extra-corpóreo que alguém não treinado em meditação possa experienciar, pois isso é o resultado das suas anteriores ações nesta vida ou em vidas anteriores. Pessoas diferentes têm experiências diferentes, e até um indivíduo raramente experienciará a mesma coisa duas vezes. Isto é devido aos diferentes carmas e instintos das vidas anteriores.

Se previamente alguém tenha treinado a mente com meditações budistas avançadas envolvendo visualizações ou os corpos ilusórios, oníricos ou sutis, poderá nascer

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com fortes instintos para essas práticas. Assim, sem qualquer esforço, o fenómeno extra-corpóreo poderá ocorrer. Em tais situações, esse alguém também demonstraria uma forte inclinação para as outras meditações e introvisões em cujo contexto seriam feitas essas práticas avançadas. Por outras palavras, teria instintos para todo o conjunto da prática e não só para os seus pontos avançados. Assim, desde a infância, teria também um sentimento intuitivo para a causa e efeito, renascimento, renúncia, compaixão, vacuidade e assim por diante. Pelo menos teria uma crença instintiva sobre vidas passadas e futuras. Para tais pessoas, valeria a pena ser encontrado um mestre espiritual totalmente qualificado a fim de ser recebido o treinamento apropriado de meditação para o desenvolvimento dos seus potenciais.

Experiências Extra-Corpóreas Causadas por DistúrbiosSe alguém não tiver qualquer inclinação para as meditações básicas, podem haver outras causas cármicas para as suas experiências extracorpóreas. Se a

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experiência for precedida por uma sensação de aperto e ânsia no plexo solar, descargas de energia do coração à cabeça, zumbidos ou silvos nos ouvidos, ranger de dentes, períodos de inconsciência e assim por diante, isto pode ser sinal de um distúrbio no sistema de energia do corpo sutil. Com estes sintomas, não é aconselhável o engajamento nos estados de percepção anormal que este tipo de distúrbios vai produzir. Um sério desequilíbrio de energia no corpo, particularmente quando centrado na região do coração, pode conduzir a uma paranóia extrema, à insanidade e mesmo à morte. Deve consultar-se um médico tibetano para tratamento.

Pode acontecer que espíritos ou forças nocivas estejam fazendo com que a pessoa tenha percepções alteradas ou perca o controlo da sua consciência. Esta é também uma situação perigosa e deve ser cuidada por um lama, por um médico [medicina tibetana] ou por um oráculo que seja perito nos rituais de exorcismo. Se a sensação extracorpórea for uma alucinação causada por uma droga, esta também não deve ser

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engajada. Podem ocorrer efeitos a longo prazo causados por uma exposição prolongada à distorção da consciência.

ConclusãoEm resumo, se, sem prática de meditação e treinamento específico, alguém tiver uma experiência extracorpórea descontrolada, não deve tratá-la levianamente ou como uma curiosidade divertida. A causa pode ser uma das explicações acima, uma combinação de fatores ou algo completamente diferente. Qualquer que seja a causa, se alguém se alarmar quando a sua consciência sai do corpo físico, a conexão entre ambos é muito facilmente cortada. A literatura budista registra muitos casos de tais mortes. Por conseguinte, é extremamente importante não se fazer experiências com tais estados extracorpóreos isoladamente. No entanto, com uma correta orientação, boa motivação e intensa prática de meditação, esses estados podem ser aproveitados para aumentar os nossos potenciais com vista a ajudarmos a nós e aos outros para benefício de todos.

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