Tarcísio Sardinha - UFC

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Tarcísio Sardinha Músico

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Revist{ntrevista ER O'casc .

Entrevista com Tarcísio de Lima Carvalho, dia 11 de novembro de 2010

Allan - A música esteve presente na suavida em todos os momentos. Ainda muitonovo, por curiosidade de ver os outros to-cando, você quis aprender a tocar. De repen-te, quando menos esperou, você já era ummúsico profissional. Na pré-entrevista, vocêreconhece que não escolheu a música comoprofissão, mas ela o escolheu. Como foi paravocê quando se deu conta de que aquela ati-tude, a princípio despretensiosa, de apren-der a tocar iria direcionar o rumo da sua vida,dando os primeiros passos para você se tor-nar o músico que você é hoje?

Sardinha - Foi naquele dia do festival daFM do Povo (pertencente ao Grupo de Co-municação O Povo, a rádio FM do Povo foifundada em 1980. No primeiro ano, já era arádio mais ouvida em Fortaleza. Atualmen-te, é a FM Mix 95,5) no anfiteatro da Voltada Jurema (o nome oficial é anfiteatro FlávioPonte. Inaugurado em 1981, situa-se na orlade Fortaleza e tornou-se espaço bastante fre-quentado por quem queria ir a shows mu-sicais), em 1981. Foi quando conheci outrosmúsicos do cenário de Fortaleza. Foi ali queeu vi que estava dentro do meio musical. Apartir dali que comecei já a receber convitesde outros grupos, de outros cantores. Já es-tava profissional.

Allan - Foi instantâneo esse amor pelamúsica?

Sardinha - Rapaz, eu não escolhi a músi-ca. Quando peguei num violão pela primeiravez - parece mentira - com três meses, eujá estava praticamente profissional. Existe otermo profissional (de duas formas) ... Profis-sional é o cara que vive da música. E existetambém o profissional (como) aquele que jáestá apto a exercer a profissão. Existem es-ses dois lados. Com três meses que eu pe-guei um instrumento pela primeira vez, eujá estava apto a trabalhar como músico. Foitão rápido! Quando dei por mim, eu já estavatrabalhando.

Allan - Mas foi surpresa para você essahabilidade de pegar muito fácil o instrumen-to?

Sardinha - Não. Porque quando a genteé dessa idade, jovem, não sente isso. A coi-sa vai acontecendo e você não vê. Não temcomo ver isso. Você vai tocando, tocando,tocando ... Eu chegava do colégio 11 horas damanhã e não ia nem almoçar. Ia direto para

o instrumento. É "o verme", como se diz,né? (Risos). Você nem sente ... É coisa quevai acontecendo mesmo. Eu sempre fui umaluno regular. Nunca fui um excelente aluno,nem também fui um péssimo aluno. Só que,quando a música chegou, foi muito cedo, ea música para mim falou mais alto. Já desdepequeno, desde o ginásio, já era mais paramúsica do que para o colégio. Que negóciodoido ... Já tocava muito e me profissionalizeimuito cedo também.

Caio - Tarcísio, você subiu pela primeiravez num palco aos 13 anos de idade. Aos 15anos, você já era músico profissional e foiconsiderado o melhor cavaquinista do Nor-deste. Como é que era lidar com o fato de sertão respeitado pelos músicos profissionaisda época e ser tão jovem ao mesmo tempo?A falta de maturidade o prejudicou em algummomento naquela época?

Sardinha - Não, não. Muito pelo contrá-rio. Eu sempre fui muito bem acolhido pe-los músicos mais antigos. Sempre estive nasrodas com os mais antigos. Isso se refletiuna minha vida toda até há pouco tempo. Porexemplo, os meus ídolos daquela época,nunca pensei que fosse trabalhar com eles.Eu era fã do Fagner (Raimundo Fagner, can-tor, compositor e instrumentista cearense,nascido em 1949), hoje ele é meu amigo.Gravei aquele disco dele com o 8aleiro (ZecaBaleiro, cantor e compositor maranhense,nascido em 1966). Assim como o Fagner, o8elchior (cantor e compositor cearense, nas-cido em 1946), o Ednardo (cantor e compo-sitor cearense, nascido em 1945), e outrosmais. E o Altamiro Carrilho (músico, compo-sitor e aclamado flautista brasileiro, nascidoem 1924. Já gravou mais de cem discos eestá entre os maiores nomes da história dochorinho). Comecei a to.car ouvindo discosdo meu avô (com músicas do) Altamiro Car-rilho tocando flauta. Isso na década de 1970.Altamiro Carrilho para mim era um deus. E eununca pensei que iria tocar com ele. Hoje émeu amigo, já toquei com ele, já gravei comele ... Sempre trabalhei com pessoas mais ve-lhas do que eu porque comecei muito cedo.Mas (isso) só fez me ajudar. Na primeira vezem que fui tocar num grupo de choro, queera só "coroa", os caras nunca pensaram queeu ia "dar no couro". Eu era bem novo mes-mo em relação a eles, diferença de 30 anos

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o nome de Sardinhafoi sugerido por Natália.Ele havia tocado no ani-versário de 15 anos dela.Mas o entrevistado tam-bém era conhecido pelorestante da turma, porquea filha dele, Bárbara Sena,é também estudante deComunicação Social.

Quando a produçãoentrou em contato comSardinha para marcar aprimeira pré-entrevista,o músico pensou queteria de passar por umaseleção para ser um dosentrevistados desta edi-ção da revista, quando,na verdade, já era um dosescolhidos pela turma.

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No total, a produçãoconversou com as irmãsKátia e Cristina de Lima,a mãe Simone de Lima,a esposa Diana Sena, afilha Bárbara Sena e osjornalistas Flávio Paiva,Tarcísio Matos e NelsonAugusto.

A produção pediupara Sardinha sugerir umlocal onde a entrevistapudesse ser realizada. Omúsico logo indicou o Es-toril, na Praia de Iracema.No entanto, o local nãoestava recebendo visitasdo público.

ou mais. Eu aprendi muito com meus ami-gos mais velhos e é o que acontece comigohoje. Quem me conhece sabe que eu tenhomuitos alunos. Essa nova geração do chori-nho de Fortaleza - que a minha formação éde choro - não tem ninguém que não tenhapassado por mim. Esses meus alunos todostocam comigo, trabalham comigo.

Natália - E, quando você estava no palco,como você fazia para manter a tranquilida-de? Porque tem a pressão de você não podererrar ...

Sardinha - ...Tem. Dependendo da situ-ação, o nervosismo existe. Na primeira vezem que toquei no José de Alencar (TheatroJosé de Alencar, em funcionamento desde1910, é um tradicional equipamento cultu-ral de Fortaleza) num show meu mesmo, foino lançamento de um disco (meu). Quandoé um trabalho seu mesmo, a responsabilida-de aumenta. Eu nunca tinha ficado nervosono palco. Eram dois músicos tocando. Era oshow do Manassés (Manassés de Sousa, vio-lonista cearense de Maranguape) e o meu namesma noite. Nesse dia, eu, sinceramente,nunca vi aquilo na minha vida, nunca me es-queci daquilo. Eu toquei uma música todinhame tremendo. Todo me tremendo. Tremendoa perna e... Eu não sei como consegui tocar.Foi a primeira vez em que toquei num showmeu mesmo. As pessoas foram ali para vermeu show. Geralmente, não (tenho esse tipo

de problema). Eu sou muito tranquilo em pal-co. Mas nesse dia ... Nunca contei isso paraninguém, estou contando agora para vocês.Nesse dia, eu só fui parar de tremer lá para aterceira música.

Paulo - Tarcísio, como foi o início do seucontato com os outros instrumentos, já quedesde cedo você se considera um multi-ins-trumentista?

Sardinha - Eu comecei com o violão.Logo depois veio o cavaquinho. Depois docavaquinho, eu já comecei a tocar num gru-po de baile (grupos de baile, no meio musi-cal, são bandas que tocam em festas, comoformaturas e casamentos). Foi aí que veioa paixão pela guitarra. Usei cabelão, toqueirock, tudo o que você imaginar, eu fiz. De-pois da guitarra, o bandolim. Um negócioengraçado, para você ver como é esse ne-gócio de música quando você não tem paraonde correr mesmo. Eu tinha um grupo debaile (Banda Nova), a gente tinha teclado etudo. A sede - a gente chamava de sede doconjunto - era a minha casa. Tinha dois tecla-dos, tinha bateria, tinha todos os instrumen-tos de baile. Eu morava numa casa que erade dois andares. Os quartos eram em cima ea aparelhagem ficava em baixo. Eu não sabianem onde era um dó num piano. Depois queo conjunto acabou, (depois de) vários anos,eu não tinha nada de piano. Tinha uma se-nhora (que morava) em frente à minha casaque uma neta dela tocava piano, e ela (aneta) faleceu. Não sei por que despertei paraesse piano. Era um piano mesmo, um móvel,armário. Comprei o piano da mulher, boteina sala. Eu me acordava de madrugada, às 4horas da manhã, e descia para estudar piano.Sozinho. Com três meses - a mesma coisado violão - eu estava trabalhando, tocandopiano. Você acredita nisso? Eu trabalhei numrestaurante tocando piano. Eu não sou umpianista, mas toco. Tudo o que eu sabia doviolão, passei para o piano. Formação de

IIEu não escolhi amúsica. Quando

peguei num violãopela primeira vez -

parece mentira - comtrês meses, eu já

estava praticamenteprofissiona I".

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acordes e tal ... E montei um repertório. Sóisso que eu fiz. E fui trabalhar. Essa daqui é aturma que diz: eu sou o músico profissionalmesmo, no sentido de que vive da música,o famoso operário da música. Aquela coisade você viver de música mesmo. Tem muitagente que toca (e não é músico profissional)- e não é uma questão de tocar bem ou mal.É o lance de você viver da música, e semprevivi da música. É a profissão que veio paramim mesmo, não tem para onde correr.

Hoje, viver da música todo mundo sabeque é uma coisa difícil. Mas, ao mesmo tem-po, é uma profissão que - é como a de vocês- é muito abrangente. Vocês podem ir paraum lado, podem ir para o outro, televisão,jornal, rádio ...Tem muito campo para vocêcorrer. A minha é do mesmo jeito. Posso to-car de batizado até enterro. O que é que eufaço, além de ser músico, de acompanharcantor, de tocar sozinho, de tocar em bai-les, em teatro e todo canto? Sou professorde música, também dou aula, trabalho emestúdio, a gente vai se virando. Tem várioscantos /para trabalhar). Trabalho com jingle(música simples e publicitária feita para umproduto ou empresa) também, produzo dis-cos ... A vantagem da profissão é essa. A di-ficuldade da música é somente porque nãotem estabilidade, ainda. Está mudando. Apartir de 2011, não sei se vocês estão saben-do, a música vai ser obrigatória nas escolas.Vai ter mais trabalho para a gente.

Érico - Dentro dessa questão ainda domulti-instrumentista. Além da técnica paraaprender vários instrumentos, para dominarvários instrumentos, como é que você traba-lha a sensibilidade para cada som, essa dife-rença de instrumentos?

Sardinha - Muito boa sua pergunta. Oviolão é meu instrumento primeiro, o queeu toco mais. Eu me dou melhor com ele.

Cheguei a estudar violão clássico um tempoem João Pessoa (capital do Estado da Paraíba),com uns 20 e poucos anos. Fui estudarexatamente para isso, para melhorar minhatécnica, estudar um pouco de teoria - queaté então (eu) não tinha estudado. Naquelaépoca em que comecei a tocar, que foi peladécada de 70, ninguém tinha (onde estudar),internet nem pensar, nem livros tinhamaqui. O curso de música da UniversidadeEstadual (Universidade Estadual do Ceará- Uece, em funcionamento desde 1977)era no Conservatório Alberto Nepomuceno(o conservatório foi fundado em 1938. Atéhoje oferece cursos de música próprios ede extensão das universidades públicas doCeará), e não existia nenhum instrumento,exceto piano. Não era minha onda pianonaquela época em que eu comecei. Eu sótinha violão.

Fiz vestibular para música em 1983 e nãopassei por causa de uma questão de Quími-ca. Eu trabalhava na noite, trabalhava tododia, tocava de segunda a domingo. Só fol-gava de segunda, aliás. (Tocava) de terça adomingo. Eu me recordo que fui fazer vesti-bular lá de onde eu tocava. Saí de lá 5 horasda manhã, ou 5h30, mais ou menos. Eu toca-va até de manhã, na Beira-Mar. Então, fui fa-zer vestibular. Eu sempre fui muito bom emmatemática e estava bem nas provas todas.Estudei em colégio de Estado e praticamen-te não existia Química. Impressionante isso!Não tinha Química. O nome da matéria eraCiência. Não tinha porra nenhuma, não tinhaQuímica, não tinha nada! Química orgânica,nem pensar. Então, na Uece, é o seguinte -eu não sei como é hoje - mas na minha épo-ca (década de 1980) você tinha de fazer 30%da prova. Você tinha de fazer 13 questões,e eu fiz 12. Não passei por causa de umaquestão. Eu tenho lá em casa o livrinho da

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A en e sta aco -e-ceu no estúdio de rádiodo Curso de Com n-cação Social da UFC. Oestúdio fica no segundoandar do prédio do curso.Por medo, Sardinha nãoquis subir de elevador,preferiu as escadas. Nadescida, também foi pe-las escadas.

Sardinha tambémtem medo de lugares fe-chados. No shopping, elenunca põe o carro no esta-cionamento subterrâneo.Não anda de elevador,não usa ônibus e prefereandar de carro quandoele mesmo dirige.

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Na pré-entrevista,quando dissemos a Sar-dinha que seriam dezentrevistadores, ele ficouassustado e disse: "O quevocês vão fazer comigo?"No dia da entrevista,quando viu todo mundo,disse: "O negócio é sé-rio!"

Antes de dar início àentrevista, Sardinha disseque sempre carrega umviolão para todo lugaraonde vai. Ele disse queo instrumento é uma es-pécie de membro externode seu corpo.

Uece ainda! Eu poderia ter feito (o vestibu-lar) de novo, esperava um semestre ou umano. Só que a minha vida era muito atarefa-da. Sempre foi. Eu tocava demais, bicho! Eutrabalhava demais, a noite toda. Trabalhavatodo dia. Ainda hoje é (atarefada), mas hojea gente já pode escolher os trabalhos da gen-te. Naquela época não, era ralação mesmo.Hoje estou perdendo muita coisa, deixandode fazer muita coisa ... Eu não digo isso comtristeza não, digo até com alegria. Eu tenhovários professores do curso de Música daUece que são meus alunos, e todos eles sãoloucos que eu vá para lá dar aula, mas eu nãovou. Eu não dou aula lá na Uece porque nãosou formado. Só por isso. Todo mundo sabeque a minha praia é mais é choro, a minhaformação é de choro, eu vim do choro. Mui-tos professores e alunos me consideram opapa do choro. A turma sabe disso. Na Uece,agora, estão fazendo um grupo de choro.Perdi muita coisa mesmo em não ter termi-nado meu curso.

Caio - Em relação ainda a esse ponto dosinstrumentos musicais. O senhor falou quenão se considera um violonista, mas sim ummúsico. Eu queria saber, na sua visão, qual éa diferença entre o violonista e o músico.

Sardinha - Por exemplo, o Nonato Luiz (êum renomado compositor e violonista cea-rense, dono de uma obra musical com cercade 540 composições) é um excelente violo-nista, meu amigo, meu parceiro. É violonis-ta porque se dedica só ao violão o dia todo.(Ele) estuda (violão) no mínimo 6 horas pordia. Não tem perigo de em um dia ele nãotocar 6 horas. Tocar não, estudar. Tocar, eutoco até mais que isso por dia. Há dias emque toco 25 horas. Ele estuda mesmo! O queé o estudar? É você pegar aquela frase, repe-tir milhões de vezes. Ver aquela técnica damão direita, da mão esquerda, estudar ... Eleé o violonista, que se dedica profundamenteao violão. Eu não. Por que eu digo que souum músico? Porque você pode ser músico semtocar nenhum instrumento. Você (pode) não to-car nenhum instrumento e ser músico. Músicoé uma coisa, instrumentista é outra coisa, bemdiferente. Não sou um violonista porque, em-bora eu toque violão há muito tempo e estu-de o violão também, não (estudo) só o violão.O negócio de eu tocar vários instrumentos éoutra coisa também, porque não decidi tocarvários instrumentos. Foi a mesma coisa doviolão, foi coisa que veio mesmo. Veio e tivefacilidade. Então, por que não?

Antigamente, por incrível que pareça, aspessoas condenavam isso (de tocar váriosinstrumentos). Ainda hoje, muita gente con-dena. Os mais conservadores condenam."Poxa, tu vai tocar um bocado de instrumen-

to, acaba tocando nenhum." Tem esse papo.Mas isso não existe. Hoje em dia, não existemais isso. É o contrário. Para quem trabalhacom música, o cara que toca só um instru-mento "tá lascado". O cara quer um músicoque toque, pelo menos, dois instrumentos.Daí pega três, quatro músicos e resolve a"parada todinha" na banda. Se você tocar(só) um instrumento, você não trabalha pra-ticamente. O cara encontra um (músico quetoca) contrabaixo que diz: "Rapaz, eu só tococontrabaixo." Poxa, aí fica difícil demais. Já édifícil para o músico, para ele vai ficar maisdifícil ainda. Então, eu comecei a tocar váriosinstrumentos também por isso. Mas tambémpelo amor à música. Por exemplo, o choro.Quais são os instrumentos de corda quecompõem o choro? O violão de seis cordas,o (violão de) sete cordas, o cavaquinho e obandolim. Esses instrumentos, já saí tocan-do. Um é parecido com o outro.

Renata - Eu queria retornar a uma ques-tão que você falou de ficar nervoso quandofaz shows. A relação sua com a bebida é des-de muito cedo. Você começou a beber parasuperar esse...

Sardinha - ...Não! Eu comecei a beberporque é bom para caramba! (risos)

Renata - Então não teve nenhuma rela-ção?

Sardinha - O mundo todo bebe e adorabeber. O problema é o hábito. Você quandopega o hábito é um perigo. O meio em quea gente vive é muito fácil (beber). A bebida

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está presente em todo canto na vida do artis-ta. Principalmente como eu, que toco em res-taurante, em bares também, que (o músico)não paga bebida. É uma coisa muito fácil. Ocara chega: "Poxa, um uisquinho ali?" Tantofaz tomar três, como dez! (Dizem:) "A bebidaé um estimulante." Mas como no meu caso,que hoje estou sem beber, a gente sabe hojeque isso é mentiroso. É como qualquer tipode droga, é "mó" mentira do mundo. Vocêacha que: "Aí, porra, bicho! Que legal!" Ocara com um "baseado": "Massa! Eu vou fa-zer aquele negócio ali melhor." Que (melhor)porra nenhuma! "Mó" mentira do mundoisso aí. A gente quando é adolescente, jo-vem, infelizmente não percebe essas coisas.A gente vai na onda dos amigos. Começa abeber uma cervejinha, depois está bebendouísque, cachaça ... A convivência com a bebi-da é que, infelizmente, (é muito intensa) noslocais em que a gente trabalha ... Agora, nãoculpo só isso não. Nos locais onde a gentetrabalha, tem a coisa da facilidade à bebida,mas também bebe quem quer. Tem muitagente que toca em bares e não bebe.

Renata - Mas, Sardinha, com relação àsuperação da timidez. Você era uma pessoamuito tímida. Como foi para superar?

Sardinha - Ah, não. Eu nunca fui tímidopara tocar. Eu sou uma pessoa tímida - hojenem tanto. (risos) Mas para tocar nunca fuitímido. Como comecei muito cedo, eu sem-pre fui uma pessoa muito segura no quefaço, inclusive é uma virtude que meus ami-gos da produção dizem. Eu passo, inclusive,essa segurança para eles, para os que tocamcomigo. Tenho essa facilidade. Meus ami-gos me dizem isso: "Rapaz, quando o Sardi-nha não tá. bicho, é mó merda." Eu não seicomo, mas (isso) existe mesmo. Mas isso detimidez, não. O negócio da bebida nunca foi(para evitar timidez no palco). Cansei de to-car sem beber. Eu bebia porque gostava debeber mesmo. É estimulante, é muito bom.E Deus me livre de não voltar a beber. Fe-izmente, hoje em dia, tenho consciência do

que é a bebida.João - Alguma vez a bebida chegou a te

ajudar a compor, a criar?Sardinha - Com toda a certeza. Não

adianta você mentir para ninguém. Eu fizuma música, que é uma das (minhas) mú-sicas mais conhecidas ... Conhecidas assim,que a música instrumental não é conhecidaporra nenhuma. Ela já foi gravada em seisdiscos, por seis intérpretes diferentes, já ga-nhou (o prêmio) Nelsons.com, como a me-hor música instrumental de choro de 2000 enão sei quanto. É uma música chamada "Fimde Tarde" ("Fim de Tarde" recebeu o Prêmio

elsons.com da Música Cearense 2000 na

categoria "Música de Choro". A escolha foirealizada por votação no site www.nelsons.com.br, idealizado e mantido pelo jornalis-ta cearense Nelson Augusto. A premiaçãoocorreu em junho de 2001 no Theatro Joséde Alencar). É um choro-canção. Inclusiveo Dalwton Moura (jornalista cearense) colo-cou uma letra muito bonita. Essa música eufiz na Praia da Redonda (praia localizada nomunicípio de Icapuí, no litoral leste do Ceará,a cerca de 200 km de Fortaleza) "cheio dopau", não vou mentir. Estava com os amigosbebendo e fiz a música num pôr-da-sol. E as-sim fiz outras também. Como eu bebia mui-to, muitas delas (músicas) foram feitas porefeito de bebida.

Cleisyane - A gente já falou da sua for-mação musical, de ser formado no choro.Mas eu queria saber quais foram as suas in-fluências, tanto em casa, teve seu avô quetocava ...

Sardinha - Meu avô tocava, mas nuncanem vi ele tocando. A minha influência domeu avô foi porque na casa dele onde come-cei a ouvir choro. Todo domingo, eu ia paracasa dele, no Montese (tradicional bairro re-sidencial de Fortaleza). Ia com meu pai paralá, (quando) pequeno, eu não tocava nadaainda, tinha uns seis anos. Chegava lá, meupai ia tomar a cerveja dele com o pai delee ouvir choro. Naquele negócio, ia entrandoAltamiro Carrilho, Jacob do 8andolim (mú-sico, compositor e bandolinista brasileirode choro - 1918/1969)... Eu não sabia nemquem era, nem imaginava que ia tocar uminstrumento. Quando comecei a tocar, de-pois de alguns anos, me lembrei dele e fuibuscar os discos lá. De tanto ouvir, acho quefoi isso, comecei a me interessar, um negó-cio meio inconsciente. Porque não é normaluma criança de dez anos de idade gostar dechorinho. Depois, logicamente, eu estudeide tudo.

Terminando sua pergunta, a grande influ-

"Essa daqui é aturma que diz:, .eu sou o rnusico

profissional mesmo,no sentido de quevive da música, o

famoso operário damúsica".

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o nosso en re rs a-do nasceu no Maranhão,mas se considera cearen-se, porque viveu lá ape-nas os primeiros quatroanos de vida, dos quaisnem sequer recorda.

A mãe contou queSardinha dava muito tra-balho no colégio. Ela erasempre chamada peladireção porque o filhogostava muito de brigar,inclusive com os profes-sores. Cristina, uma dasirmãs, disse que Sardinhajá colocou um professorna lata de lixo.

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Durante a entrevista,o celular de Sardinha to-cou três vezes. Das trêschamadas, duas foram dafilha Bárbara, acertandocom ele detalhes sobreum festival de músicaonde iriam tocar no finalde semana.

Em vários momen-tos da entrevista, Sardi-nha dedilhava o violãoenquanto respondia àsperguntas. Por vezes, oentrevistado parecia ner-voso e tocava o violãocomo uma espécie derefúgio.

ência minha foi o Baden Powell (violonistabrasileiro - 1937/2000), foi onde mudou mi-nha vida. Não só a minha, mas de, pratica-mente, todos os violonistas da minha gera-ção. Porque o Baden é de uma geração dofinal (da década) de 50, e a minha geração édo final (da década) de 70 para cá. Aqui noCeará, o que é que a gente tinha? Já que agente não tinha livro, partitura, nem coisa ne-nhuma, não tinha internet, tinha disco. Sem-pre tinha algum amigo, pai do amigo, quetinha disco de chorinho que tinha música doBaden. Quando ouvi o Baden pela primeiravez... Até então, o violonista que eu escutavaera o Dilermando Reis (violonista brasileiro- 1916/1977), que foi outra influência minha.Eu toco muita coisa do Dilermando Reis. OBaden já foi aquele violonista que abriu mi-nha cabeça porque o Baden conviveu exata-mente na época da Bossa Nova (movimen-to da música popular brasileira surgido nofinal da década de 1950 que se tornou umdos gêneros musicais brasileiros mais co-nhecidos em todo o mundo). A Bossa Novafoi a grande luz para todo mundo. Existe amúsica (brasileira) antes e depois da BossaNova. Foi onde apareceu harmonia sem seraquela harmonia tradicional. Comecei a ouviroutros acordes, a tocar outras coisas, a se-guir a Bossa Nova ... Depois do Baden - tudoé um processo crescente - outro violonistaque também (me influenciou), que cheguei aconhecer, é mais ou menos da minha idade,foi o Rafael Rabello, o grande Rafael Rabello(violonista brasileiro - 1962/1995). Para mim,não existiu e nem vai existir um violonistacomo o Rafael Rabello. Sou louco pelo Rafa-el Rabello, porque ele tem tudo o que vocêprecisa num instrumentista.

Caio - O que é que você precisa?Sardinha - Ele tem técnica, muita execu-

ção e o principal de tudo, que é muita pe-gada, muita garra, muita sensibilidade e o"Iance" dele mesmo. Ele tocando é diferentede todo mundo. É só dele aquilo ali. É umnegócio impressionante.

Caio - Mas você não acha que você temisso também não?

Sardinha - Já me disseram que eu tenhoalgumas coisas dele, sim. Mas não dá parachegar lá ainda não ... (Risos)

Caio - Você falou da sua facilidade deaprender. Você é um músico autodidata,você aprendeu música sozinho. Para ser au-todidata, em qualquer coisa que seja, vocêtem de ter talento, vontade de aprender e pa-ciência. Talento e vontade de aprender vocêtinha quando era jovem. Mas em algum mo-mento faltou paciência para você?

Sardinha - Não, não. Nunca fui, nem sou,uma pessoa muito impaciente, dá para ver.Sou uma pessoa muito calma, mas, ao mes-mo tempo, sou (impaciente), porque eu souuma pessoa que fala rápido, sou apressadoe tudo. Quando vou dar aula, sou outra pes-soa, completamente diferente. Sou calmo,falo lento, passo bem as coisas. Talvez, se eufosse mais paciente, mais calmo, eu tivesseaprendido até mais. O grande erro - quer di-zer, erro assim, porque as pessoas são comosão, não adianta você ser como você não é.Eu nunca fui um músico estudioso. Eu sinto amaior pena disso, mas ninguém pode mudarisso. Hoje leio partitura, tenho conhecimen-to harmônico até mais ou menos, conheçomuita coisa mesmo. Isso tudo que eu sei, eupraticamente nunca estudei. O cara pega olivro: "Vou estudar tantos dias por semana,vou estudar hoje, vou estudar amanhã ..."Não. Livro para mim é só "pá, pá" (folheandoas páginas), pronto, morreu.

Cleisyane - Sardinha, mas você foi buscar

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110 mundo todo bebee adora beber. (...) Omeio em que a gente

vive é muito fácil(beber). A bebidaestá presente em

todo cantona vidado artista".

essa teoria. Qual a importância dessa teoriapara o músico?

Sardinha - É como você se alfabetizar. Eunão era alfabetizado musicalmente. Quemnão lê partitura não é alfabetizado musical-mente. O maestro Eleazar de Carvalho (foium importante regente da música eruditano Brasil. Nasceu no município cearense deIguatu.) foi quem me disse pela primeira vezque eu tenho ouvido absoluto (no caso deSardinha, ouvido absoluto refere-se à suacapacidade de identificar as notas musicaisao ouvir qualquer som). Eu nem sabia o queera ouvido absoluto. Foi em João Pessoa, eleera maestro da orquestra (Orquestra Sinfônicada Paraíba, fundada em 1945). Eu morava nacasa do meu irmão (o futuro maestro GladsonCarvalho), ele era músico da orquestra, toca-va viola e era copista e arquivista. A orques-tra da Paraíba era a terceira maior do País...

Mas a pergunta dela, eu me lembrei ago-ra, da importância do estudo, da teoria. Vocêimagine - na minha época, principalmente,que hoje é muito bom. Você pega a internete apertou o botão e tem áudio e tem tudoescrito. E meus alunos ainda é uma preguiça.Por isso que eu dou carão para caramba nosmeus alunos. (risos) Hoje em dia, você com-pra o livro pela internet. "Eu quero o livro doPixinguinha (Alfredo da Rocha Viana Filho,conhecido como Pixinguinha, foi um flau-tista, saxofonista, compositor e arranjadorbrasileiro - 1897/1973), quero tocar a músicado Pixinguinha". Olha como é que vem hoje:vem o álbum do Pixinguinha, com a melodia,com a harmonia e ainda vem o CD, papai! Eno CD, o detalhe, para um lado você tira aflauta, para o outro ... É bom demais! Na mi-nha época, não tinha nada, só tinha o discoe era na agulhazinha, era voltando a agulhapara tirar as notas. É por isso que hoje (osalunos são preguiçosos) - acho que é porisso, só pode ser. Vou contar um segredo ...Segredo não, porque muita gente sabe dis-

so. Eu escrevo uma música sem pegar numinstrumento. Acredita nisso? Você toca vio-lão e diz: "Eu queria acompanhar essa mú-sica, mas não sei essa harmonia". (Eu digo:)"Tu bota a música." A gente pode fazer atéagora se você quiser (risos), mas precisa teralguém que toque aí para fazer a prova. Euescrevo ela (a música) sem pegar no instru-mento, já no tom que está lá e tudo. Quem émúsico aqui sabe disso. Faço isso com facili-dade. Eu acho que isso se deve à minha for-ma de aprender, que foi assim, foi voltandona agulha, ralando mesmo. Chegava do colé-gio, eu tirava nem a farda. Mamãe brigando,e eu nada. Era música tocando e eu tirandonota por nota. É uma vantagem muito boadesse aprendizado. É mais demorado, mas avantagem é que você aprende bem certinhomesmo, você pega todas as nuances, a res-piração do cara e tudo. Agora hoje é muitobom. (Procura na) internet e ó: as melodiastodas escritas - para quem lê, né? A impor-tância do que você falou é da alfabetizaçãomesmo, porque na época em que fui apren-der isso (a me "alfabetizar musicelmente"i,foi para ver se diminuía meu sofrimento naagulhinha. Fui aprender um pouquinho deteoria para poder pegar a partitura e apren-der mais rápido. A teoria existe para isso. Éalfabetização.

Caio - Em relação ao sucesso que vocêfalou. Você é conhecido por ser um músicoimprescindível em shows de Chico Pessoa(cantor e compositor paraibano, radicadodesde 1982 em Fortaleza, onde desenvol-veu a carreira artística) e Fausto Nilo (can-tor, compositor, arquiteto e poeta cearense,nascido em 1944). Além disso, você já tocouao lado de Sílvio Caldas (cantor e composi-tor brasileiro, dito como o maior responsá-vel pela consolidação da seresta na músicapopular brasileira - 1908/1988), Eliane (Elia-ne Lima, cantora e compositora cearense,conhecida como "a rainha do torrá"), BetoBarbosa (Raimundo Roberto Morhy Barbosa,cantor e compositor paraense, famoso apóso "estouro" da lambada no fim da década de1980) e Falcão (Marcondes Falcão Maia, can-tor e compositor cearense e ícone do estilo"breqe"). Todos esses artistas têm em co-mum o fato de serem relativamente visíveisna mídia, e você já mantém uma imagemmais reservada. Por que você acha que issoacontece?

Sardinha - Porque eu prefiro assim, eugosto assim.

Renata - Então, você foge dessa ...Sardinha - ...Não, não fujo. Vou dizer uma

coisa para vocês que às vezes muita genteme pergunta. Deixa eu ver aqui como é queposso explicar. (fica pensativo). Por exem-

TARCíSIO SARDINHA I 59

Certa vez, gravandoem estúdio, Sardinha dor-miu e continuou tocando.Depois, quando foi escu-tar o disco, a gravadorapercebeu um ruído estra-nho, era o ronco de Sardi-nha, Quanto a isso, a mãediz: "Eu acho que isso écoisa de louco, coisa dealma",

Dona Simone se con-sidera uma mãe bestapor ter colecionado emuma pasta fotografias ereportagens sobre Sardi-nha, que saíam no jornal.Ela entregou a pasta paraBárbara, pois tem medode acabar perdendo

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Sardinha sempre tevevontade de ter um bar emcasa para reunir os ami-gos. Um dia, comprouvários engradados decerveja e montou um barno quintal de casa, o localera chamado de "O Quin-tal do Sardinha".

Lá pelo meio da en-trevista, algumas per-guntas começaram a serde feitas de forma muitofragmentada. O professorRonaldo Salgado logopassou um recado paraos alunos com a seguintefrase: "Tá começando afarofar!" João foi o últimoa ler o bilhete e o guardoude recordação.

pio, a relação entre um time de futebol euma banda. Geralmente, técnico é aquelejogador que sempre prepara o terreno paratodo mundo. Sou mais ou menos isso. Souo cara que dá a bola para o outro fazer gol. Egosto de ser assim, porque eu acho (essa po-sição) uma das peças mais importantes quetem em um grupo. Ela é pouco vista, mas setirá-Ia, não acontece nada.

Caio - Mas você tem essa vontade de sera estrela do time, o mais visto?

Sardinha - Não, tenho não. Eu até sou àsvezes quando estou tocando no meu show,mas quando é o show dos outros, não. Dei-xo que eles brilhem. Porém, de alguma for-ma, estou brilhando também no meu lugar.Quem perceber, percebe; quem não perce-ber ... Azar de quem não perceber, não é? (ri-sos de todos)

Cleisyane - Sardinha, de onde veio o ape-lido Sardinha?

Sardinha - No primeiro grupo (Pixingui-nha) que eu toquei de choro tinha um flau-tista, sargento da Base Aérea de Fortaleza,que veio transferido de São Paulo para For-taleza. O meu' irmão (Gladson Carvalho) iaservir na Base Aérea. Quando ele chegou lá,conheceu esse sargento, que tocava flauta etinha um grupo de chorinho em São Paulo. Osargento disse para o meu irmão que estavamontando um grupo de chorinho aqui, masque o cavaquinista do grupo estava doente.Meu irmão disse que eu tocava cavaquinho.Ele disse para o sargento: "Ele é novinho,mas toca muito bem". O cara mandou eu irlá, mas sem acreditar que eu ia estar apto atocar no grupo dele, porque todos já eramprofissionais. Resumindo a história, eu fui nacasa dele para fazer esse exame de admissão.Ele fez um almoço na casa dele, e fui commeu pai, eu já bebia naquela época, tinha 16anos. Encerrando a história, o cara me ado-rou, e fiquei no grupo dele nesse mesmo dia.Eu era bem magrinho, bem magrinho mes-mo. Bom, existe um músico, chamado Garo-to, que é autor de "Gente Humilde" (cançãoconhecida na voz de Chico Buarque). Vocêsconhecem Gente Humilde? (Sardinha tocano violão um trecho de Gente Humilde, deGaroto) Ele era um excelente músico é eraum garoto, tocava vários instrumentos. Osargento, então, fez uma alusão (ao músico,Garoto), porque me achou parecido com ele,e eu era magrinho com o bigodinho fininhoe também já tocava vários instrumentos. Eledisse: "Isso é uma Sardinha". Por isso, elecolocou meu apelido com o sobrenome doGaroto, que já era famoso na época. O nomedo Garoto era Aníbal Augusto Sardinha. Apartir daí ficou Sardinha.

Thaís - Você falou que já tocou com Do-

minguinhos (José Domingos de Moraes, can-tor, compositor e exímio sanfoneiro pernam-bucano. É um dos maiores nomes do baião),Beto Barbosa, Sebastião Tapajós (violonista ecompositor paraense, de formação clássica).Dá para notar que você não tem preconceitocom os ritmos, mas você sofre preconceitopor causa do seu estilo musical?

Sardinha - Não, não. Já houve muitomais preconceito com o músico e com a mú-sica, mas ainda hoje existe, por esse lanceda bebida. Antigamente, o cara não podiaser músico. Se fosse, era considerado ca-chaceiro, porque realmente era isso mes-mo. Era uma questão cultural. Antigamente,na época da Chiquinha Gonzaga ... (primeiramulher no Brasil a tocar chorinho e a regeruma orquestra. Chiquinha Gonzaga viveu noRio de Janeiro de 1847 a 1935) Uma mulhertocar? Nem pensar! Mas as coisas mudam.Já mudou muito o preconceito com a músicae com o músico. Até porque hoje é uma pro-fissão. Eu vivo e mantenho a minha famíliasó com isso aqui (aponta para o violão) e nãoé de hoje não, é há mais de 20 anos.

Caio - A Thaís falou com relação ao pre-conceito com os estilos que você toca e como seu estilo, o choro. Mas em relação a vocênão ter formação superior em música, vocêjá sofreu algum tipo de privação?

Sardinha - Não. Eu não sei nem se é pre-conceito. É porque é uma questão de nor-mas, de lei mesmo. Por exemplo, na Uece,os próprios professores gostariam que eufosse colega deles. Dizem que precisam daminha experiência para passar muita coisapara os alunos. Tem aluno da Uece que mepaga para estudar comigo, mesmo tendo aUece. Eles acham que encontram em mimalguém para passar alguma coisa que elesprecisam.

Renata - O que seria isso que você tem eos alunos buscam?

Sardinha - Esse lado da música popularbrasileira, porque lá não tem. A maioria dosconservatórios e das universidades sempretrabalha mais aquela coisa erudita, no senti-do da palavra. A parte popular está entrandoagora de leve nas universidades. Na décadade 90, isso nem existia. O Márcio Resende(flautista e saxofonista carioca, radicado noCeará desde 1998), um amigo meu que tocasax, flauta e é professor da Uece, estudou12 anos nos Estados Unidos, fez mestradoe uma parte do PhD lá. Ele é professor daUece e foi uma vitória para a universidade.Ele é um músico muito bom, que tem for-mação jazzístisca, toca música erudita, tocajazz e música popular. Esse é o tipo de pro-fessor que é legal ter na universidade. Sótem ele com esse perfil (na Uece), os outros

REVISTA ENTREVISTA I 60

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são todos de formação erudita. Os alunos demúsica que querem estudar música popularvão estudar com quem? (Por isso) eles têmde pagar o Sardinha ou outro músico paraestudar música popular, infelizmente. Se eutivesse formação, eu ensinaria mesmo, como maior prazer.

Thaís - Sardinha, como você percebe aquestão do incentivo do governo ao músi-co?

Sardinha - Não tem, não existe nenhum.O que ainda existe são órgãos como o Bancodo Nordeste (o Banco do Nordeste do Brasilcriou, em 2005, o "Programa BNB de Cul-tura': que destina recursos para o financia-mento de ações culturais na área de abran-gência da instituição), que a gente ainda fazum "showzinho", mas eu acho que aindanão representa nada. É mais para promovereles mesmos do que o próprio artista. Elesdão um cachê miserável para o músico, masvocê vai (seapresentar) porque quer mostrarseu trabalho. Incentivo mesmo do governo,não tem muita coisa. (Mas) está bem melhor,tem uns projetos de incentivo à cultura, mastêm muitas pessoas concorrendo para pou-cas vagas, para ser contemplado e fazer umdisco, por exemplo. Eu não vou nem atrásdisso.

João - Você sempre sobreviveu e susten-tou a família, como você já falou, através damúsica, mas teve algum período da sua vidade dificuldade que você desejou ter feito ou-tra coisa?

Sardinha - Dificuldade sempre teve e ain-da há. A nossa vida é uma eterna luta. A gen-te vive correndo atrás das coisas, mas nuncapensei nisso não. Eu particularmente não te-nho nada. Esse negócio de ter dinheiro guar-dado não é muito de mim. Ao mesmo tempo,eu brinco com os meus amigos que eu tenhoumas dez casas de praia e umas dez casasna serra. Se eu tenho muitos amigos, (risos)para que vou comprar uma casa para mim?Eu digo para os meus amigos: "Rapaz, meempresta tua casa aí." Eu vou mesmo. Foraa brincadeira, nunca pensei nisso. Mas (se)eu tivesse feito outra coisa, não é que eu ga-nhe muito não, mas acho que não ganharia oque ganho hoje e não teria a realização queeu tenho com o que faço. (pausa) Eu tenhocerteza disso. Por eu já ter 30 anos (de mú-sica), não falta trabalho, porque já estou nomercado. O problema da profissão é a ins-tabilidade mesmo. Mas não reclamo da mi-nha vida, porque a gente toca, tem trabalhotodo dia, de todo canto está vindo dinheiro:do estudo, é tocando com outros, é dandoaula. A verdade a gente fala, mas não é daboca para fora, o importante é você fazer oque você gosta mesmo, porque o que vier é

lucro. Fazer o que você gosta é bom demais.Outra coisa, eu ainda tenho um privilégio:não tenho patrão. (risos de todos) Eu tenhomeu estúdio, posso chegar às 1O horas, nãotem problema.

Caio - No meio musical, além dessa faltade estabilidade, muitas vezes tem o proble-ma da disputa de ego entre os artistas. Algu-ma vez isso aconteceu com você?

Sardinha - Eu só disputo mesmo no bo-

"Cheqava do colégio,eu tirava nem a farda.Mamãe brigando, eeu nada. Era músicatocando e eu tirando

nota por nota. (...)Você aprende bem

certinho"

TARCíSIO SARDINHA I 61

Sardinha coloca seubom humor em tudo oque faz. Algumas de suascomposições têm nomesbem engraçados, comoos das músicas "Sardinhaao Leite" e "Jumento comcoalhada".

Essas e outras com-posições de Sardinha po-dem ser ouvidas na pági-na da Internet do músicoem: http://www.myspa-ce. comltarcisiosardinha.

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o jornalista e amigode Sardinha Nelson Au-gusto contou que umavez Fagner perguntouse Sardinha conhecia al-guém para acompanharuma portuguesa que sócanta fado. Sardinha dis-se: "Depois da músicabrasileira, isso é minhapraia".

A verdade é que Sar-dinha estava querendoganhar um dinheiro extra.E embora o fado não fos-se a praia dele, como ha-via dito, ele tirou de letrapor conta de seu ouvidoabsoluto.

tão (futebol de botão). (risos) Eu não dispu-to com ninguém em nada. Agora eu tenhomuitos amigos que ainda hoje vivem dispu-tando. Mas isso é da pessoa. Ela tanto po-dia estar na música como em qualquer ou-tra coisa que ia ser assim. Por que tem unsque fazem e outros não? Não é por causa daprofissão. Eu tenho amigo que dou trabalhopara ele, e ele está do outro lado falando malde mim. Desse jeito é doença. Você podeperceber que esses não fazem porra nenhu-ma da vida. Ora, se eu vou estar disputandocom ninguém, meu amigo! Tem músico quequando vê alguém tocando tão bem quantoele, evita, se afasta. E às vezes sai até falandomal da pessoa. Ora, eu sou o contrário. Seeu sei que alguém toca bem, eu vou é atrásdela para eu aprender, lógico. Todo mundoaprende com todo mundo. Eu sou uma pes-soa muito querida no meio musical, porqueeu sou uma pessoa que toca com todo mun-do. Eu acho que sou um dos únicos músicosaqui, que me dou com os outros músicostodos. Onde foi que você viu alguém quetoca falar mal de mim? Até tem, porque todomundo fala mal de todo mundo. Mas eu medou bem com todo mundo, com todo estilode música.

Cleisyane - Você enfrentou algumas difi-culdades na sua carreira de músico, como naépoca em que você quebrou o braço jogan-

, do bola, teve de se submeter a uma cirurgia eteve um choque anafilático. A sua irmã Cris-tina (Cristina de Lima Carvalho, irmã maisvelha de Sardinha) falou que você ainda tevede ouvir do médico a possibilidade de nãopoder mais tocar. IS$o o incentivou a se re-cuperar mais rápido?

Sardinha -Isso foi na primeira vez em quequebrei o braço, porque eu quebrei duas ve-zes o braço no mesmo local com 20 anos dediferença. (Nessa época), eu tinha 15 anos.

JJO sargento colocoumeu apelido como sobrenome do

Garoto, que já erafamoso. O nome do

Garoto era AníbalAugusto Sardinha.

A partir daí ficouSardinha".

Na verdade, foi uma maldade de um amigomeu. Eu era muito magrinho, ligeirinho ecorria muito. Eu ia fazer o gol para terminar apartida. Meu amigo veio e me deu uma carga.Voei para cima da parede. Isso foi em janeirode 1980. (Meses depois) eu tinha o festival daCreditus (antiga operadora financeira, patro-cinadora do festival que levava seu nome),no teatro do SESC (Serviço Social do Comér-cio, fundado em 1946), para tocar. Toqueiuma viola de 12 cordas, e me lembro comose fosse hoje. Eu tocava com ela em pé as-sim (Sardinha mostra o jeito que ele tinha detocar: sentado e com a viola em pé no colo).Ainda hoje, esse braço aqui (Sardinha mos-tra o braço direito) não estica porque não fizfisioterapia, detesto tudo o que é negócio deformalidade, eu detesto. Esse aqui ainda con-tinua normal (ele mostra o braço esquerdo).Passei uns três meses com a tipóia, quandofui tirá-Ia, o braço não saiu mais do canto eficou assim (mostra como o antebraço ficoujunto do braço, impedindo que ele deixasseo braço reto). O médico disse que eu ia ter defazer fisioterapia, mas sou muito "organiza-do" para fazer fisioterapia (Sardinha brinca).Meu avô disse: "Não, rapaz, deixa comigo".E arranjou sebo de carneiro. (Meu avô) es-quentava sebo de carneiro e todo dia quandoeu ia para a casa dele, ele passava (no meubraço). Foi assim a minha fisioterapia. Compouco tempo, o meu braço, aos poucos, foibaixando, baixando, baixando. Daí passaram-se vários meses, e o braço baixou. Quando eufui tocar no festival, o braço ainda não tinhabaixado todo, então não dava para tocar como violão aqui (mostra o violão deitado no coloe o braço por cima dele).

Caio - Mas essa foi a primeira queda. 20anos depois você caiu de novo, de cima deum palco ...

Sardinha - ...0 Rodger Rogério (cantor ecompositor cearense da geração do "Pessoaldo Ceará': nos anos 1970), meu amigo, in-ventou de "botar" um barzinho para ele naAldeota (bairro nobre de Fortaleza). O FaustoNilo ligou para mim e disse: "Rapaz, vamoslá para o barzinho do Rodger tomar uns ne-gócios lá?". Eu fui, peguei o Aroldo (AroldoAraújo, músico, arranjador e amigo de Sar-dinha) na casa dele. No bar do Rodger tinhaum palco de madeira de uns dois metros,mais ou menos. Atrás do palco tinha muitaplanta. Eu pensei que era uma parede (ri-sos). Eu sentei, afastei a cadeira e caí. "Bolei"com toda a linha e tudo, como se diz. Isso jádepois de 20 anos. Esse braço aqui (apontapara o braço direito) já tinha uma platina. Efoi outro sofrimento.

Caio - Você teve de parar de tocar poralgum tempo (três meses). Como foi nessa

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época?Sardinha - Foi muito interessante. Na

época eu tive de passar três meses sem to-car mesmo. O médico disse que o ideal eraeu operar de novo. Se eu não operasse, iriademorar mais (para eu me recuperar). poissó o gesso e a atadura não podiam resol-ver. Eu já estava com uns trabalhos, já estavaproduzindo um disco de um compositor daParaíba. (Além disso). tem uns amigos, quesão amigos mesmos e me ajudaram muito,como o Adelson Viana (acordeonista, te-cladista, compositor, arranjador e produtormusical de Fortaleza). meu amigo e parcei-ro, (ele) é maestro do Fagner. Ele me passoualguns trabalhos que tinha dele para eu fazer.A sorte é que sou canhoto. Fiquei em casatrabalhando, fazendo arranjo e produzindodiscos em estúdios. Nesse disco que produ-zi na Paraíba, teve um dia que fiquei puto,porque eu nunca vi isso na minha vida, euproduzir um disco e não tocar? É inédito uminstrumentista não tocar no disco que estáproduzindo. Fiz o arranjo todo do disco, pro-duzi todo e não tocar? O cliente estava putocom esse negócio. Ele dizia: "Poxa, tu nãovai tocar no meu disco?" Mas, no final, aindatoquei uma música. Quando o disco estavatodo mixado, ele fez uma música que consi-derava linda e não queria deixar de fora. Aíeu toquei, pois já estava melhor. Eu tenhoesse disco lá em casa, o nome do composi-tor é Marcos Santos.

Caio - Sardinha, mas não deu medo? Von-tade de repensar o modo de vida que vocêestava tendo? Eu digo em relação à músicamesmo. Você se acidentou, parou de tocar eainda trabalhava ...

Sardinha - ...Às vezes, tudo que vem navida da gente é lição. Isso foi uma lição tãogrande. Eu descobri outras coisas que eu po-deria fazer e eu não fazia.

Cleisyane - O que, por exemplo?Sardinha - Por exemplo, eu passei um

tem pão tocando teclado só com uma mão.Sempre gostei de "tomar uma", então minhacasa sempre foi uma casa de festa. Minhacasa era de quintal grande, então sempre re-cebi muita gente, músicos e tal. (Na época).eu só tocava piano, teclado ... Violão e outrosinstrumentos de corda não tinha como tocar.Para fazer os meus arranjos, eu podia fazersem instrumento, lógico, mas com instru-mento é bom, porque você tira uma dúvida,não é? Foi aí que eu me lembrei: "Poxa, bicho,vou arranjar um tecladinho para mim". Arran-jei um tecladinho pequenininho para mim.No primeiro mês (com o braço quebrado).era dor para "cararnba", era só choro, por-que estava quebrado e eu não queria operar.Era uma tala com gesso que o médico tinha

botado em mim, que ia aos poucos voltandoo osso para o lugar. Então, esse negócio (dobar) foi muito bom para mim. A turma co-meçou a ir lá para casa aos sábados. Pegueiuma prática tão grande de tocar teclado comuma mão, que era impressionante. Eu, quenão sou pianista mesmo, tocava tudo só comuma mão, eu me divertia. Além disso, me-lhorou o meu lado de arranjador também. Eudigo que "há malas que vão para Belérn". (ri-sos) Porque desenvolvi outras coisas que eunão tinha até então. Porque eu fui obrigado,lógico. Mas graças a Deus eu trabalhei atébem. Produzi até mais disco do que (antes).porque alguns amigos passaram trabalhopara mim e também eu estava mais em casa,mais quieto e escrevendo arranjos.

Cleisyane - Sardinha, estamos entrandoagora no segundo momento da pauta. Euqueria saber como foi o relacionamento coma sua família, o apoio que eles deram tantona carreira de músico, quanto nos momen-tos difíceis.

Sardinha - Meu pai é separado da mi-nha mãe, mas ele é louco por música, tocaum pouquinho de violão também. Naquelaépoca, década de 1980, acho que nenhumpai iria gostar se um filho assumisse umaprofissão de músico. Todo pai quer o me-lhor para o seu filho. Hoje as pessoas têma cabeça mais aberta. Em primeiro lugar, eunão vou saber o que é o melhor para o meufilho, quem sabe é ele. A gente orienta, mas"não, eu quero fazer é isso", dizem os filhos.Eu acho que (o meu pai). no fundo mesmo,não (era) o que ele queria não. Assim mesmofoi comigo e com meu irmão também. Nãoé que eles foram contra, mas nunca (a fa-vor). O meu irmão mais velho sofreu mais doque eu, porque já foi mais para trás, na dé-cada de 1970. Naquela época, o meu irmãofoi para o SESI (Serviço Social da Indústria,fundado em 1946). onde tinha o local paraestudar (música) aqui em Fortaleza. Eu melembro quando meu irmão disse: "Vou es-tudar (para ser músico)." O sonho do meu

"Eu vivo e mantenhoa minha família, . .so com ISSO aqui(aponta para o

violão) e não é dehoje não, é há mais

de vinte anos".

TARCíSIO SARDINHA I 63

Há algumas placassobre o ouvido absolutode Sardinha. Uma delasdiz que, certa vez, eleestava no interior com oamigo Zé do Norte e cho-via muito por lá. Sardinhapercebeu que o som dagoteira era um ré menor.

Zé do Norte não acre-ditou e pediu para Sardi-nha explicar. Ao que res-pondeu: "Esse pim, pim(imitando o som) é umré menor e pode ver queessa bacia está amassadaporque o ré menor estádesafinado".

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Sardinha participa doprograma Brasileirinhoda Rádio Universitária FM107,9 apresentado porNelson Augusto. O pro-grama é de choro e vai aoar aos domingos, às 10horas da manhã. Além detocar, ele faz comentáriossobre o time do coração:o Ceará.

Amigos e familiaresressaltaram o prazer deSardinha com banho demar, frio e cachaça. Dianadiz que o marido "é umpeixinho", por gostar tan-to de praia e de banho.

irmão era estudar para entrar na orquestra daParaíba, em João Pessoa, porque aqui nãotinha orquestra, como não tem ainda. Hojeele é maestro da orquestra filarmônica, umaorquestra mantida por ele. No Estado nãoexiste até hoje porra nenhuma. O que existeé uma camerata com 15 músicos, que cha-mam de orquestra, a Eleazar de Carvalho (AOrquestra de Câmara Eleazar de Carvalhofoi fundada em 22 de dezembro de 1996eé formada por dezessete músicos). Para seruma orquestra tem de ter 120 músicos. Ain-da hoje nós temos esse problema aqui noCeará. Em João Pessoa, tem três ou quatroorquestras e aqui não tem porra nenhuma!É uma vergonha para uma capital como For-taleza, a quarta capital do País, não ter umaorquestra sinfônica!

Renata - Mas essa posição do teu pai coma profissão de músico te distanciou dele?

Sardinha - Não, não. Comigo não tevemuito isso, foi mais com meu irmão. Quan-do comecei a me profissionalizar, foi mais nadécada de 1980. Já era mais flexível a coisa.Eu saia para os cantos, e (meu pai) nem sabiaàs vezes. Eu ia tocar profissionalmente, e elebebia, e eu roubava o carro dele para ir traba-lhar. (risos) Naquela época, na noite, era difí-cil, porque eu não tinha carro e era "de me-nor". Eu só tinha uma bicicletinha. Rapaz, eusó andava de bicicleta, de calçãozinho curtoe de noite eu me arrumava para ir trabalhar.Passava o dia brincando de bila, bola e pião,porque na minha época era isso, não era

computador, não. Era triângulo, pião e arraiao dia todo, eu era moleque mesmo. Agora,eu posso dizer uma coisa, eu tive infância.Moleque, que subia nos muros, na copa dasárvores do outros, roubando manga, mole-que mesmo!

Renata - Mesmo você começando a tocarcedo?

Sardinha - Mesmo assim. Nunca deixeina minha vida ... Ainda hoje eu sou um "fule-ragem", não está vendo não? (muitos risos)Um moleque fuleragem, rapaz! Continuo domesmo jeito ainda, não perdi nada, não. Erade dia brincando com os meus amiguinhos,brincando de figurinha de álbum de Copa doMundo e à noite eu botava minha calça, pe-gava meu cavaquinho e ia tocar. (pausa) Eusempre fui um menino e um homem ao mes-mo tempo. O meu pai se separou da minhamãe, e quem sustentava a casa era eu. Meuirmão foi embora para João Pessoa, minhairmã mais velha (Cristina, tradutora formadaem Letras/Inglês) ganhava pouco pela Prefei-tura (de Fortaleza). Eu quando comecei comesse grupo de choro, com 16 anos de idade,eu ganhava quatro vezes o que a minha irmãganhava na Prefeitura. O que ela ganhava emum mês todo, eu ganhava em um fim de se-mana. Era por isso que eu ajudava em casa.

Caio - Você tem 21 anos de casado coma Diana Sena. Ela contou para gente que co-nheceu você num show, no antigo Oasis, egostou de você da primeira vez que o viu. Sóque parece que não foi o mesmo, você nãopensou a mesma coisa dela ...

Sardinha - ...Eu era tímido mesmo. Esseaí é o lado da timidez. Eu tinha uma banda,aquela banda de baile. A gente tocava ondehoje é o Oasis (clube de shows em Fortaleza,localizado na A v. Santos Dumont. Na época,chamava-se "Clube 66'l Ela era amiga danamorada do cantor. E uma vez ela foi paralá com o cantor e a namorada do cantor. Agente se conheceu lá. Começou o negóciode paquera e tal. Olha a coincidência! Depois,sabe quando foi que eu comecei a namorá-Ia? No show do Dominguinhos. A minha ban-da foi fazer o baile que o Dominguinhos iafazer o show principal.

Caio - Sardinha, mas a Diana falou paragente que ela custou até...

Sardinha - ...É. Ela teve de quebrar umaperna para eu poder ... (ficar com ela) (risosde todos). Nesse show do Dominguinhos, elachegou com a perna quebrada. Eu tive penadela. (risos de todos). Eu caí na armadilhadela.

Paulo - O namoro foi bastante curto, né...Sardinha - ...Ah, rapaz. Depois que a gen-

te começou a namorar ... Seis meses ... namo-ro, noivado e casamento.

REVISTA ENTREVISTA I 64

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Caio - Por que foi tão rápido?Sardinha - Não sei. .. As coisas são assim

mesmo. Quando o negócio tem de ser... Ti-nha de ser.

Natália - Mas houve resistência da suafamília?

Sardinha - Nãaaaaoooo. Não, não, não.Tudo normal. Direitinho mesmo. Casamosdireitinho. No civil, na igreja, tudo legal.

Natália - Vocês tiveram alguma dificulda-de, já que foi tudo muito rápido ...?

Sardinha - ...Não, porque a gente resol-veu mesmo. É porque a gente se gosta etudo, queria viver a vida da gente mesmo.(Sardinha percebe que Cleisyane queria fa-zer uma pergunta).

Sardinha - O que é (pergunta paraCleisyane)?

Cleisyane - Não, não, pode continuar.Sardinha - Tu ia perguntar o negócio da

casa, era? (Como Cleisyane fez parte da pro-dução da entrevista, tomou conhecimentoda história sobre o casamento)

Cleisyane - É.Sardinha - Pois é (ri). É o seguinte. (A

gente) num tinha porra nenhuma. Casar, ca-sar. .. Rapaz, quando o cabra é doido, é doidomesmo. O pai dela (da Diana) resolveu daro quarto. Beleza! Naquela época, eu ganha-va muito mesmo. Talvez mais do que hoje,por incrível que pareça. A gente tocava mui-to. Naquela época, o músico passava o anotodinho esperando pelo carnaval, porquese ganhava muito bem. Hoje também, masnão é tanto como naquela época. Ganhavamuito mesmo. Eu tinha uma tia que moravana Cidade dos Funcionários (bairro da zonasul de Fortaleza), e ela tinha uma vizinha quemorava em São Paulo, que estava há poucotempo no Ceará, mas aconteceu algum pro-blema na vida dela, que ela teve de ir emborade novo para São Paulo. Ela estava venden-do a casa e toda a mobília de uma vez e nãotinha como levar, então teve de vender tudobarato para caramba. E eu doido já para com-prar. Eu já estava com um carnaval fechado.Com o dinheiro, dava para comprar tudo:máquina de lavar, geladeira ... Tudo do bome do melhor. As coisas estavam tão baratasque, se dessem hoje dez mil reais, ela esta-va vendendo tudo por um quarto disso, porexemplo. Era coisa que eu não podia perder.Qualquer pessoa pegava. Só que minha tiaera muito amiga da vizinha, e ela (a tia) pediu(para vender) para mim. A mulher foi embo-ra, eu dei três cheques a ela, pré-datados, efiquei com as coisas. Foi tudo ligeiro demais.Já casei com tudo dentro de casa. Recém-casado e já ter tudo ... Foi só com o carnavalque eu mobiliei a casa todinha.

Caio - A sua filha, Bárbara Sena, contou

para gente que a relação dela com você mu-dou depois que ela começou a estudar mú-sica. Ela disse que vocês ficaram mais próxi-mos e começaram a se entender mais. Vocêtambém acha isso?

Sardinha - ...Com certeza. Eu acho que émais da parte dela, porque a música acalmamuito as pessoas (diz rindo). (risos de todos).A Bárbara é muito esquentada. É como eu.Ela tem muito de mim. É tudo igual. É uma"xerox". Igualzinha, até esse negócio deaprender a tocar foi igual a mim ... Mas é queaproxima (amúsica) mesmo .. Eé muito bom.A gente passa o dia todinho em casa e tocan-do música. "Pai, esse acorde aqui, como éque é? Pai, não sei o que" ... é o dia todo. Jáo outro (refere-se ao filho mais novo, JoãoHenrique) não quer nada com música.

Cleisyane - ...E você apostava nele, né?Sardinha - Eu pensava que ele ia tocar. O

João tem muito ouvido, tem uma sensibilida-de danada para música. Agora, ele é como euera. Eu não gostava de estudar. Eu fui aquelealuno (pausa) relapso. Não gosto muito demétodo. Não sou nada metódico. Meu irmãoé metódico para caramba. Eu sou o contrá-rio. Negócio meu é tudo na prática. Mas aí oJoão toca o que quiser. De pequeninho, vocêvê a tendência. Ritmo e tudo. "Esse meninovai tocar". Mas que nada. A Bárbara, bicho,desafinaaaaada para caramba. Ela fica putaquando eu digo isso para ela. "Pai, não digaisso por aí não". A Bárbara não afinava. "Bár-bara, dá o tom". Não afinava. Rapaz, nuncapensei que ela fosse tocar não, sinceramen-te. E, hoje, ela me malha por aí. "Ah, vocênão acreditava em mim".

Tatiane - Quando a gente entrevistou aBárbara, ela falou que, apesar do interessepor música, você sempre a estimulou a fazeroutra coisa além disso. Por que esse estímu-lo, já que você sempre sobreviveu de música?

"Naquela época,década de 1980,

acho que nenhumpai iria gostar se umfilho assumisse umaprofissão de músico.

Todo pai quer omelhor para o seu

filho."

TARCíSIO SARDINHA I 65

Da nova geração dafamília, saíram dois mú-sicos: Bárbara, filha deSardinha, é integrante dogrupo de choro Fulô deAraçá, e Saulo de Lima,sobrinho, é advogado,mas vive de música.

Na infância, dona Si-mone diz que Sardinhae o irmão Gladson erambem diferentes. Gladsonera grande e forte, masvivia apanhando dos co-legas e chorando na rua.Já o Tarcísio, pequeno emagrinho, saía para de-fender o irmão.

Page 17: Tarcísio Sardinha - UFC

o período em queSardinha participava daBanda ova, os ensaiosaconteciam em um quartoque ficava bem na entra-da de casa. Simone contaque a casa era cheia deinstrumentos por causadisso. "Era uma barulhei-ra danada, mas era bom",disse.

Segundo Cristina, osom era tão bom que sepensava que os meninosestavam dublando umdisco. Além de Sardinha(guitarra). faziam parteda banda Aroldo Araújo(baixista). l.uizinho Du-arte (baterista). Silvinha(cantora) e Zé do Norte(acordeonista).

Sardinha - Porque eu acho que a pessoanão precisa viver só de música. Acho quea pessoa pode fazer qualquer outra coisa efazer música também. Não lamento isso teracontecido comigo, mas com certeza eu gos-taria de ter feito outra coisa e também músi-ca. Acho que se os meus pais tivessem tidoesse cuidado comigo, eu teria feito outra coi-sa também. Tenho certeza que, pelo músicoque eu sou, eu tenho aptidão para música.Não estou reclamando de ter só a música,não. Eu posso fazer o que quiser hoje. Eu te-nho tempo para isso, posso fazer um curso,qualquer coisa. Agora não tenho mais é saco.Eu com 46 anos! "Rapaz, porque tu não fazvestibular para música? Daqui a quatro anos,tu tá formado. Tu pode fazer curso para serprofessor da Uece". Bicho, Ó, ser professorda Uece não é tudo, não. Se me chamarempara dar aula lá, vou com maior prazer. Maseu ser o rei da cocada da Uece? Não. Paramim, a Uece é que tem de ter interesse como professor, não sou eu não. Eu gostaria dedar aula para lá sabe para quê? Para pegarum número maior de alunos que precisasseda minha experiência. Só isso. Eu lá vou fazerum pré-vestibular de novo. Eu lá tenho maissaco para estudar nada. Tenho pensado emoutras coisas, sabe? Sei que para começar enão terminar e não valer, é melhor não fazer,né?!

Paulo - Sardinha, a música é algo bastan-te presente no seu cotidiano, além do traba-lho. Na sua casa, tem muitos instrumentos ...

Sardinha - ...Tem um negócio engraçado:eu não escuto música em casa... Nem someu tenho. Agora, é no carro onde eu escutomúsica. Até como forma de trabalho. Traba-lho no carro com música. Eu tenho uma mú-sica para fazer um arranjo, já vou escutandono carro. Quando eu parar o carro, vou pe-gar a caneta e já sei o que vou fazer. É tudono carro. Porque em casa... Eu escuto músi-ca tantas horas do dia, em todo canto, que,quando chego em casa, estou a fim de veré "Nas garras da patrulha" (programa humo-rístico da emissora local, TV Diário) (risos),qualquer coisa ...

Paulo - Mas você, mesmo em casa, estásempre tocando. Você já chegou a incomo-dar alguém. por estar sempre tocando e termuitos instrumentos em casa?

Sardinha - Rapaz, a pessoa se acostuma.Eu trouxe o ,violão para cá, nem toquei por-ra nenhuma, mas é porque é mania. (risos).Eu trouxe só para isso mesmo (para ficarsegurando). (risos). Eu não me vejo sem oviolão. É muito difícil, sabe? É porque semo violão é um negócio que parece que estáfaltando uma peça da roupa ... Mas em casaé toda hora tocando. No banheiro, eu tenho

um violão fixo. Sai de lá não. A Bárbara estáindo no mesmo caminho. Já peguei váriasvezes ela com violão no banheiro. (Risos detodos). O banheiro é o melhor lugar para setocar violão na casa, por causa da acústica.É bom demais. Parece que está ligado, quevocê está com o fone de ouvido.

Caio - Sardinha, nós entrevistamos al-guns dos seus amigos e todos eles dizemque você tem um valor inestimável por sermuito companheiro e muito solícito. Eu pe-guei um depoimento da entrevista com Flá-vio Paiva (cearense, Flávio é jornalista, es-critor e compositor de músicas infantis), emque ele fala as seguintes palavras para você:"Eu o considero um irmão, desses irmãosque a gente vai encontrando pela vida. Pormuitos motivos eu o considero assim: o Sar-dinha é uma pessoa de coração muito bom,crédula, aberta e que está sempre ao seulado, disposta ao que a amizade puder pro-duzir. Esse é um aspecto que eu acho muitoimportante nele. É uma pessoa que eu tenhomuita admiração tanto pelo talento artísticocomo pelo talento humano. Eu tenho muitocarinho pelo Sardinha". A partir dessas pa-lavras, o que você acha que contribuiu paraformar essa imagem tão boa que você temdiante dos amigos?

Sardinha - (Silêncio). Isso é o que muitagente diz de mim. (começa a tocar o violão).Ah, é da pessoa mesmo. Eu sou assim mes-mo. Meu jeito natural de ser mesmo. Eu mesinto muito bem em servir, em todos os as-pectos e musicalmente também. Eu acho queé a minha função tocando. Acho que tem deter uma pessoa dessas no grupo. Já pensouse só tiver todo mundo querendo aparecer,solando (faz um som com a boca para imitaruma desordem musical de instrumentos).Ninguém vai entender nada. Tem de ter al-guém de base. Às vezes, a pessoa não temhumildade por nem saber mesmo. Por isso,eu prefiro ficar na minha. Agora tem um de-

"Eu sempre fui.um menino e umhomem ao mesmo

tempo. O meupai se separou da

minha mãe, e quemsustentava a casa era

eu."

REVISTA ENTREVISTA I 66

Page 18: Tarcísio Sardinha - UFC

talhe, papa: a hora em que me solicitam,eu vou. Eu prefiro assim, aparecer na horaem que for solicitado. Acho que é mais legal,como em tudo na vida. Acho que a melhorcoisa é você estar preparado. Na hora, vocêvai e faz um solo. Aí eu "quebro o pau". Masnão precisa ficar todo tempo.

Cleisyane - Nesse meio musical, tiverammuitas histórias engraçadas na sua vida. Napré-entrevista, você estava até contandopara mim e para o Paulo, a história de umshow que você fez no interior e houve até umtiroteio ... Mas você não chegou a concluir ahistória. Como foi?

Sardinha - (Toca enquanto a pergunta éfeita). O engraçado foi a forma como a gentefugiu desse negócio. Uma cidade do interior,não lembro nem qual era a cidade, peque-nininha. Já faltavam cinco minutos para as4 horas. Já ia encerrar o show. E tinha umpolicial à paisana querendo aparecer. Lá nãotinha palco, era aquele negócio apertadinho.O palco no chão, só com uma correntezinha.Corrente que dá duas desse negócio aqui(aponta para a bancada que o separava dosentrevistadores, a uma distância de cerca de50 centímetros). E do lado (do palco), tinhaum bar com um balcão maior do que esseaqui. Estávamos tocando eu, Aroldo Araújo,Zé do Norte (compositor e acordeonista) eEliane. Sei que esse cara, rapaz, começou aatirar dentro desse clube, todo mundo cor-rendo. Tirei o cabo da guitarra, pulei o bal-cão. Naquela época, eu era magrinho. Seique todo mundo sumiu. Em questão de me-nos de um minuto não tinha mais ninguémno palco. E eu fiquei preocupado com o Zédo Norte, porque o Zé do Norte estava coma sanfona e é pesada. Ora, ele já estava noônibus. (risos de todos). Ele estava dentrodo ônibus. A gente foi mais rápido que todomundo, pensando que tinha sido. Ora, o caraestava era no ônibus. Já estava para sair dacidade. Eu e o Aroldo trancados, uma por-

"Eu não me vejosem o violão. E

muito difícil, sabe?,E porque sem o

violão é um negócioque parece que está

faltando uma peça da"roupa ...

rada de mulher, tinha umas 20 mulheres nobar. As mulheres tudo chorando, e eu e oAroldo com a guitarra e o baixo. Engraçadademais essa história!

Tatiane - A gente ficou sabendo também,na pré-entrevista, que você toca até dormin-do. Como é essa história?

Sardinha - Às vezes, o cara toma umase outras ... (toca o violão). Você já ouviu seuronco alguma vez? (pergunta para Tatiane).Não sei nem se você ronca. (risos de todos).O pior é que eu sou uma pessoa que roncavárias vezes. Eu toco e durmo e ronco e dur-mo e sei que estou roncando. O pior é o se-guinte: não perco nada, não erro uma corda.Todo mundo sabe disso. Eu sou famoso porisso. Toco dormindo mesmo.

Tatiane - Mas isso já aconteceu em al-gum show?

Sardinha - Não, show não, é mais assimem negócio de noite, de barzinho. Porqueshow é tão pequeno, tão dirigido, uma ho-rinha só. Em barzinho, você toca três horasnum bar e tomando uísque. Aí pinta o can-saço de um dia todo de trabalho misturadocom a bebida, e dá sono mesmo. (risos).

Paulo - Conversando com o TarcísioMatos (jornalista, compositor e amigo deSardinha), ele contou que, além de ser umgrande piadista, você cria muitos bordões efrases de efeito. Ele disse que chegou a usaralgumas de suas expressões para produzir oMução (personagem do humorista e radialis-ta Rodrigo Vieira Emerenciano, famoso por"pegadinhas" e bordões em seu programade rádio, que é transmitido em várias emis-soras nordestinas). De onde vem tanta cria-tividade?

Sardinha - (Volta a tocar o violão). É aconvivência mesmo com as pessoas, comvários músicos. A gente pega de um e de ou-tro, e mistura. É da vida mesmo. É brincadei-ra mesmo. Eu sou um personagem do Tarcí-sio. Eu não sei se vocês já viram no jornal OPovo as crônicas dele - ele inventa a históriae diz que sou eu. Muita coisa boa já saiu.

Thaís - Na pré-entrevista, soubemos quevocê já morou na Praia de Iracema (praia ebairro boêmio de Fortaleza) e recebia mui-tos amigos. A Praia de Iracema foi inspira-ção para muitas músicas? Você tem saudadedesse tempo?

Sardinha - Muito, muito. (Volta a tocar oviolão). Foi uma época muito boa na minhavida. De trabalho também. Trabalhava mui-to quando morava lá (continua tocando). Foionde eu comecei a compor música. Toma-va banho todo dia na Praia de Iracema. Erauma vida de boêmio mesmo, de música. Nãoexistia coisa melhor. Eu morava naquela úl-tima rua ali atrás da igrejinha de São Pedra,

TARCíSIO SARDINHA I 67

Diana sempre ia paraa casa de Sardinha assistiraos ensaios da banda. Amãe lembra que Sardinhadizia assim: "Mãe, lá estáaquela moça de novo, co-loca ela pra fora".

Com nove anos,quando Sardinha se irrita-va com alguma bronca damãe, ele dizia que ia ern-bora de casa. Então, pe·gava um calção, a escovade dentes e um paninho,dava a volta no quartel-rão e depois voltava paracasa. Simone diz que riamuito disso,

Page 19: Tarcísio Sardinha - UFC

Agora que Sardinhavive uma vida mais sau-dável, alguns amigosgostam de brincar quan-do eles se reúnem paratocar. Quando Sardinhachega, alguns dizem:"Eita, chegou o Sardinha.Traz a salada".

o namoro de Sardi-nha e Diana foi bastantecurto. A família chegou apensar que ela estivessegrávida. Mas, segundoDiana, o motivo do casa-mento rápido foi um só:paixão.

naquela última rua ... Rua dos Pacajus. Sócom poucos passos, e estava dentro d'água.Vizinho a minha casa, eu tinha um estúdio degravação, onde eu trabalhava. (Além disso),eu tocava em todos os bares lá. Tocava noCais Bar, no Compasso e no Portal (antigosbares da Praia de Iracema. Hoje, nenhumdeles está aberto). Eu trabalhava todo dia.Tocava direto ali, e ficava no estúdio, pro-duzindo discos, dirigindo e tal. De manhã,acordava cedinho, banho de mar, ia para oestúdio gravar e tal. À noite, "cervejinha", to-cando. Tudo de bom.

Renata - Quanto ao bar Sardinha? Teveduas edições. Na verdade, Quintal do Sar-dinha. Você fechou e depois abriu de novo.O Quintal foi uma tentativa de unir o útil aoagradável, de juntar os amigos com a ques-tão financeira também?

Sardinha - No meu caso, não era muito aquestão financeira não. A questão financeiratá sempre envolvida, mas não tinha como ga-nhar dinheiro ali. Era mais pelo lance culturalmesmo, de juntar a galera. Na verdade, aindahoje tenho sonho de fazer isso. Vocês iam vercomo o negócio era sério. Muito bom, muitagente boa teve lá, muitos artistas famosos. Éum espaço mais para as pessoas que gostamda boa música e querem ouvir uma música dequalidade. Na minha casa, no meu barzinho.Lá não tinha som. As pessoas não davam umpio. Já estava começando a ficar point. Tur-ma vinha de fora e "Vamos lá no bar do Sar-dinha". Só acabou mesmo por causa de umvizinho que começou a reclamar. Não tinhanem som. O violão tocava como está aqui.Tudo desligado. Não tinha caixa de som, nãotinha nada. (Começa a tocar). E todo mundoque estava no bar cantava. Qualquer pessoaque fosse conhecida cantava. Era maravilho-so. Não era uma coisa que eu montei um bare tinha de ficar dentro do bar não. Eu nãodeixei de trabalhar. Quando eram 4 horas datarde já estava aberto. Quando eu ia tocar,(às) 9 horas, eu me mandava. Como eu tinhamuitos amigos, os próprios amigos músicosficavam tomando de conta do bar. E a minhamulher também estava lá. Também botei (o

bar) porque minha mulher sempre foi paraesse lado de cozinha. Gostava de cozinhar.Sempre trabalhou muito com isso. Tanto quehoje ela está gerenciando uma casa noturna.(Volta a dedilhar o violão).

Allan - Sardinha, naquela época, a Praiade Iracema era um polo de produção cultu-ral. E você participava muito ...

Sardinha - ...Ativamente. No Cais Bar, euera uma espécie de diretor musical do bar.Contratava os músicos, agendava os showspara galera e talo..

Allan - Eu quero saber como você vê hojeporque, por exemplo, aquela região está bas-tante degradada. Como é isso de você veraquele espaço que antigamente era sinôni-mo de muita diversão para você e de produ-ção, e hoje ...

Sardinha - ...A gente foi "chutado" dali,todo mundo. (toca o violão). Todo mundoque digo são os donos dos bares. Ali foi des-caso mesmo dos órgãos, dos governantes,principalmente da Prefeitura (de Fortaleza).Acho que o maior responsável é a Prefeitu-ra. Imagina se eu sou o prefeito da cidadee deixo o negócio ficar daquele jeito! Umaprostituição da porra, todo mundo cheirandocola, porra! Isso não existe. Um lugar mara-vilhoso daquele ali. Que dificuldade de tirar opovo daquele lugar? Fecharam os olhos paraaquilo acolá. Aquilo é um ponto turístico.Não tem justificativa. "Ah, porque ninguémconsegue acabar com os mendigos que es-tão ali". Como é que não conseguem, cara?É triste. E outra coisa, na minha cabeça (voltaa tocar) aquilo ali não volta mais. O dono doCais Bar (Joaquim Ernesto) é muito meu ami-go. Ele fez até alguns movimentos para po-der voltar o Cais Bar, mas, bicho, afundou aPraia de Iracema total. Acabaram com tudo,inclusive com os prédios. Está tudo acabado!É um negócio triste. O "cabra" tem é medode andar acolá. Para voltar, tem de aconteceruma reviravolta grande, uma reforma muitogrande. O cara tem de interditar tudo e fazertudo de novo. E jogar uma mídia em cima. Játentaram, mas não conseguiram.

Por exemplo, aquele trecho do Dragão doMar (Centro Dragão do Mar de Arte e Cul-tura, equipamento cultural do Governo doEstado do Ceará inaugurado em 1999, loca-tizsdo na Praia de Iracema. Hoje, é um re-duto da vida noturna de Fortaleza) era pior(do) que tá agora o Cais Bar. Aquilo ali eraabandonado. Era um lugar só de marginal.Onde é o Dragão do Mar, onde estão aque-les bares ali ... Ninguém andava. Se andasseacolá, o "cabra" era morto. E não ajeitaram,pintaram aquelas casas, ajeitaram tudo? Gra-ças ao Dragão do Mar também. Mas ali noCais Bar vai ter de ser feita uma estrutura. É

REVISTA ENTREVISTA I 68

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difícil. Voltar como era antes ... Vocês não co-nheceram, era um negócio impressionante!O Cais Bar naquela época, quando você vi-nha de qualquer parte do Brasil, no avião, játinha uma mensagenzinha: "Visite o Cais Bar.A melhor feijoada com chorinho da cidade".Chorinho com feijoada lá, eu que levei. .. Eraum negócio fantástico. Tinha gente de todaparte do mundo. O pessoal pirava. Era loucu-ra mesmo! Era o bar que mais vendia cervejano Brasil, pelo tamanho dele. A Brahma todomês dava 50 mil em cerveja, porque vendiamuito.

Cleisyane - Mudando de assunto, a suamãe, dona Simone e suas irmãs, Kátia (Kátiade Lima Carvalho) e Cristina, disseram quevocê já recusou convites para lecionar forado País. Isso foi pelo medo que você tem deviajar?

Sardinha - Não, não.Cleisyane - E por que foi?Sardinha - Já fui. Inclusive para França.

Se fosse há um tempo ... Mas hoje em dia nãotenho mais interesse de sair daqui não (co-meça a tocar). Eu acho que para mim o maisimportante é a qualidade de vida. Saio daminha casa na hora em que quero, vou parapraia, vou aonde eu quero. Em cinco minu-tos, estou num canto. Eu já tive vários convi-tes para morar no Rio. Agora mesmo, no anopassado, pintou convite para eu tocar coma Alcione (Alcione Dias Nazareth, cantora,instrumentista e compositora maranhense),para ficar tocando com ela. Me chamarampara tocar vários instrumentos. Como é umacantora de samba, para tocar com ela precisaum cara que toque violão de seis cordas ecavaquinho. Então para mim dava certinho epara ela (também). Seria ótimo, mas, se fos-se para ficar morando aqui. Mas para morarfora, não vale a pena. Eu toco com Domingui-nhos, com todos os artistas aqui, se quiser, éaqui. .. (risos). O Dominguinhos tem a bandadele lá em São Paulo. Agora aqui a banda

dele sou eu mais uns dois amigos. Acabouesse negócio de sair daqui e ir não sei paraonde. Não vou deixar minha casa aqui, meusamigos, minha vida toda que eu construíaqui e começar tudo de novo. Por causa dequê? O dinheiro é o mesmo. O dinheiro queeu vou ganhar no Rio de Janeiro ou em SãoPaulo é quase a mesma coisa que eu ganhoaqui. Só tem uma diferença. Aqui, a minhaqualidade de vida é bem melhor. Eu duvidoque, no Rio de Janeiro, eu possa ter o carroque eu tenho aqui, ir para praia na hora emque eu quero. Tem de ralar para caramba lá,papai. O custo de vida é maior. Aqui, eu vouna minha mãe tomar um cafezinho. É aquelenegocio de tá em casa, né?

Caio - Sardinha, nas pré-entrevistas que agente fez, as pessoas falaram que você temfobia de lugares fechados. Por exemplo, vocênão anda num banco de trás de um carro ...

Sardinha - ...E isso foi do ano passado.Esse negócio eu não tinha não.

Caio - Eu queria saber justamente isso.De onde veio isso ...?

Sardinha - ...Psicológico. Eu evito. Às ve-zes, eu ando. Se tem um carro de duas por-tas, não ando. Em um carro de duas portas,não me bote no banco de trás, porque não

"Das coisasmateriais, eu não

tenho muito interesseem guardar. Que

negócio de guardardinheiro! (...) Vou

levar da vida a minhamúsica."

TARCíSIO SARDINHA I 69

o dia do casarnen-to civil, os dois estavamembriagados. O juiz es-queceu o casal. Mesmoassim resolveram esperá-10 no cartório. Esperaramdormindo. Diana dormiusentada e Sardinha, maisfolgado, deitou-se nobanco.

Diana disse quequando abriu o olho eviu Sardinha deitado nobanco, quase morreu devergonha. Ela diz que, senaquele dia não desistiu,"não dava para desistirdele nunca mais".

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Dos cinco filhos de Si-mone, três são músicos:Sardinha, Gladson Carva-lho, maestro da Orques-tra Filarmônica do Ceará,e Patrícia Lima, pianista.Nenhum dos três teve au-las de música na infânciaou na adolescência.

Sardinha convidou aequipe de produção paraassistir a um show doFausto Nilo, no TheatroJosé de Alencar, durantea produção da entrevista.Quando acabou a apre-sentação, ele nos levouaté o camarim. Na desci-da das escadas, as calçasde Sardinha caíram e elefez logo o alarme: "Valha,minha nossa senhora, ascalças caíram. Perdi maisde 25 quilos ...",

tem nem perigo de eu ir. Agora um carro dequatro portas, eu vou, porque qualquer coisaa gente baixa o vidro, né? (risos de todos). Emelevador, eu ando, mas tem de ser um bemnovinho, de um prédio legal. Nesses elevado-res "fuleragem" não ando. E avião não tenho(fobia) (volta a tocar). Não gosto, mas ando.Agora em ônibus, já está com muitos anosque não ando. Só se for o jeito. Em últimocaso. (volta a tocar).

Paulo - Você, que foi um cara que teveuma vida boêmia, sempre gostou de beber.Nos últimos tempos, você está tentando daruma regrada por problemas de saúde. Vocêsente falta da vida que você levava antes?

Sardinha - (Continua tocando). Não, mi-nha vida é a mesma. Ando nos mesmos lu-gares, só não estou bebendo. Parei de beberpor dois motivos: primeiro, o mais importan-te, eu tenho um problema muito grande quesó bebo comendo. Eu não consigo beber semcomer. Bicho, eu estava com 112 quilos. Ago-ra vou me cuidar. Mas sabe como é difícil ocara emagrecer! Pense num negócio difícil! Eutive um problema de pressão agora há poucotempo. Chega uma hora em que o organismoda gente pede. Já não está mais aceitandoaquilo ali, tem de parar ou morre. Um dia agente tem de parar e mudar a vida da gentemesmo ... Então, eu aproveitei que estava sembeber: "PÔ, vou fazer uma dieta". O que meengordava muito era o tira-gosto. Bebida etira-gosto. Se eu tirar bebida e tira-gosto ... Emduas semanas, eu "quebrei" oito quilos semfazer nada. Eu não levanto uma caneta. Nuncafui de malhar. Aí, eu peguei ar. "Vou em fren-te". Então passei 3 meses sem beber e perdi25 quilos. Não estou mais jantando "comidade panela". E não fui a médico nenhum. Paravocê ver, tudo é só você querer. Agora estoucom 80 e poucos quilos.

Tatiane - Sardinha, o Tom Jobim (AntônioCarfos Brasileiro de Almeida Jobim, compo-sitor, maestro, pianista, cantor, arranjadore violonista carioca - 1927/1994) disse certavez: "A gente só leva da vida a vida que a gen-te leva". O que você acha que vai levar da suavida?

Sardinha - Vou levar da vida, primeira-mente, muitos amigos, tenho muitos amigos,mas muitos amigos mesmo, de na hora queprecisa chega junto. E, graças a Deus, (falatocando o violão) tem muita coisa que voudeixar também, as minhas composições, sãomuitas não, mas para quem trabalha commúsica instrumental, já tenho mais ou menosumas 80 músicas entre música instrumentale parcerias. Tem muita música cantada tam-bém, mas com parceiros, letristas, daqui deFortaleza. Das coisas materiais, eu não tenhomuito interesse em guardar. Que negócio de

guardar dinheiro! Fica é para os outros fi-carem brigando. Vou levar da vida a minhamúsica.

Cleisyane - Durante a produção da entre-vista, conversamos com pessoas da famíliae também com amigos. E todos ressaltaramseu companheirismo. Flávio Paiva até se re-feriu a você como um artesão de amizades,porque você sabe cativar as pessoas e culti-var as relações de maneira desinteressada.Alguns de seus muitos amigos já partiram.Acredito que o mais recente foi o Zé Renato(amigo de Sardinha, o violonista cearense fa-leceu em abril de 2010). Esses amigos, peloque a gente pôde perceber, complementamo personagem e o humano Sardinha. Querosaber não apenas o significado deles na suavida, mas também o que se perde no mo-mento em que um deles dá adeus. (a per-gunta foi lida).

Sardinha - Para mim, o significado deamigo é tudo. Tudo mesmo. Às vezes, euacho que a gente se identifica mais com osamigos do que com a própria família. Tenhoprimos que não vejo há 30 anos e amigosque eu não consigo passar uma semanasem ver. Tenho amigos muito bons. Eu sin-to muito quando vai um amigo meu. Teveum que morreu agora depois do Zé Renato,que é o Alex Holanda (compositor e arranja-dor cearense, faleceu em outubro de 2010aos 47 anos), percussionista, pessoa que jávinha com problemas há muito tempo, masé uma pessoa humana muito boa também.Chato! Agora é o seguinte: inclusive é umacoisa que vou dizer aqui e que serve paratodo mundo. Eu procuro dizer isso prosmeus filhos. A vida muda muito, a cada diavão mudando as coisas da vida. A gente temde procurar conviver com isso. Isso é muitoimportante. Conviver com perda. Aprendera conviver para gente aguentar mais o tran-co. Digo isso todos os dias para os meus fi-lhos porque sei que um dia eu vou. Esperoir primeiro que eles. O normal da vida é isso.Foda é quando o cara perde um filho. É delascar. O cara com quase 50 anos, aí mor-re um filho com 20 (anos). É de lascar. Mastem de aprender a conviver com essas coi-sas. Acontece com muita gente. A gente temde ver, como o Zé Renato e o Alex Holanda,eu sempre procuro lembrar o lado bom docara, os bons momentos com ele (Zé Rena-to) e a saudade faz parte. Muito triste, mas ...Por isso que é bom a gente passar por essavida limpo. Limpo que eu digo é não desejarmal ao próximo. Se você não desejar mal aopróximo, querer o bem das pessoas, só issojá basta. Tá limpo, como o Zé... O cara vai,mas vai ficar uma lembrança boa. Chato équando o cara vai ... "Aquele cara ali, bicho,

REVISTA ENTREVISTA I 70

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ô cara chato". Eu tenho um grande amigoque se chama Luiz Sérgio Bezerra de Morais(compositor cearense, do município de Vár-zea Alegre, que faleceu no fim da década de1980). Nunca me esqueço dele. Um grandemúsico. Foi ele que me colocou no meio mu-sical. Um cara que nunca me esqueço dele.Era uma amizade muito boa. É como o FlávioPaiva falou, tenho muita facilidade de fazeramizades com as pessoas. Meus amigos sãoamigos mesmo. Gosto muito dos meus ami-gos mesmo. Espero viver muito ainda e fa-zer muita coisa, muita música, sem bebida,para não morrer (risos de todos). Senão nãovai longe. Tenho de viver e magro (enfatiza)(risos de todos). Tenho de lutar contra a ba-lança todo dia.

TARCíSIO SARDINHA I 71

A produção conver-sou com Sardinha sobrea possibilidade de ele to-car no lançamento destaedição da Revista Entre-vista. Ele se empolgou egarantiu que tocaria.

Quando terminou aentrevista, Tatiane disseser muito fã de Sardinhae pediu para ele dar umapalhinha para a turma de"Coração Condenado",composição de Faus-to Nilo, Gracco e StélioVale.