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VIVIANE BASCHIROTTO
TATIANA BLASS: PALAVRAS E FORMAS, RUÍNAS E
METAMORFOSES
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais do Centro de Artes
da Universidade do Estado de
Santa Catarina, como requisito
parcial para obtenção do grau de
Mestre em Artes Visuais.
Orientadora Profª Dra. Rosângela
Miranda Cherem
FLORIANÓPOLIS – SC
2015
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC
B298t
Baschirotto, Viviane
Tatiana Blass: palavras e formas, ruínas e metamorfoses /
Viviane Baschirotto. - 2015.
311 p. il.; 21 cm
Orientadora: Rosângela Miranda Cherem
Bibliografia: p. 169-178
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de
Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais, Florianópolis,2015.
1. Artes plásticas – escultura. 2. Escultura - Brasil. 3. Artistas - Brasil. 4. Performance (Arte). I. Cherem,
Rosângela Miranda. II. Universidade do Estado de Santa
Catarina. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. III.
Título.
CDD: 730 – 20.ed.
VIVIANE BASCHIROTTO
TATIANA BLASS: PALAVRAS E FORMAS, RUÍNAS E
METAMORFOSES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa
Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em
Artes Visuais.
Banca examinadora:
Orientador:
__________________________________________________
Profª Dra. Rosângela Miranda Cherem (CEART/UDESC)
Membro:
__________________________________________________
Profª Dra. Maria Raquel da Silva Stolf (CEART/UDESC)
Membro:
___________________________________________________
Profª Dra. Daniela Pinheiro Machado Kern (IA/UFRGS)
Florianópolis, 19/05/2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço à professora Rosângela Miranda Cherem pela
orientação, atenção e incentivo.
Às professoras Maria Raquel da Silva Stolf e Daniela Pinheiro
Machado Kern por terem contribuído com este trabalho e
aceitado fazer parte da banca.
A todos os professores do curso pelas boas aulas, em especial,
à professora Sandra Makowiecky por ter agregado grande
conhecimento em minha formação.
À Tatiana Blass pela atenção em responder às dúvidas e por
produzir as obras que geraram esta dissertação.
Aos meus amigos e colegas de turma, em especial, à minha
companheira de viagem Mônica, à minha colega de quarto
Clediane e à minha amiga Fernanda pelas trocas de
experiências e dúvidas.
Ao meu esposo Alexandre pela revisão deste texto, com tantas
vírgulas fora de lugar e claro, por sua infinita paciência,
incentivo, amor, amizade e carinho.
Aos meus pais e irmãos pelo apoio e incentivo, em especial, à
minha irmã Jucieli pelo exemplo de dedicação.
Aos meus felinos Dibs, Dugu, Lobinho e Menina pela
companhia na hora da escrita.
À UDESC e ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
pela oportunidade.
À FAPESC pela bolsa que me possibilitou a dedicação integral
ao projeto.
RESUMO
Cada artista possui um gesto que permanece consigo em sua
produção, como uma maneira de fazer, como algo que se repete
como uma combinação única de obstinação e premeditação
recorrentes em suas obras. Esta dissertação tem por objetivo
reconhecer a singularidade dos gestos artísticos da artista
brasileira Tatiana Blass (São Paulo, 1979). No primeiro
capítulo, considera a decadência e ruína por meio do recurso da
cera como material escultórico, assinalando uma persistência
na representação do animal frente ao ser humano. No segundo
capítulo, aborda a presença e a ausência da palavra, destacando
a produção de discursos e silêncios em seus vídeos e obras com
suportes biplanares. No terceiro capítulo, reflete sobre a
metamorfose e fantasmagoria das formas e matérias que se
transformam em suas pinturas e esculturas. O gesto que
persiste e insiste no universo desta artista consiste na
desconstrução da forma e dos objetos para uma posterior
construção da obra de arte.
Palavras-chave: Tatiana Blass. Palavra. Forma. Ruína.
Metamorfose.
ABSTRACT
Each artist has a gesture that remains with him or her in his or
her production, as a way to create, like something that recurs as
a unique combination of obstinacy and premeditation which is
regular in his or her work. This dissertation has the objective of
recognizing the singularity of the artistic gestures of the
Brazilian artist Tatiana Blass (São Paulo, 1979). In the first
chapter, it considers the decadence and downfall through wax
resource as sculptural material, marking some persistence in
the animal representation before the human being. In the
second chapter, it approaches the presence and the absence of
the word, highlighting the production of speeches and silences
in her videos and works with biplane support. In the third
chapter, it reflects about the metamorphosis and
phantasmagoria of the shapes and matters that turn into her
aintings and sculptures. The persistent and insistent gesture in
the universe of this artist consists of the deconstruction of the
shape and the objects to an afterthought building of the work of
art.
Keywords: Tatiana Blass. Word. Shape. Downfall.
Metamorphosis.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – LUZ QUE CEGA SENTADO. TATIANA
BLASS .................................................................................... 15
FIGURA 2 – COLUNA [AGACHADO]. TATIANA BLASS
................................................................................................. 18
FIGURA 3 – THE BUSS DRIVER. GEORGE SEGALL ...... 20
FIGURA 4 – L’EVIDENCE ÉTERNELLE. RENÉ
MAGRITTE ............................................................................ 22
FIGURA 5 – CENÁRIO DE MATIAS................................... 25
FIGURA 6 – FIM DE PARTIDA ........................................... 25
FIGURA 7 – FIM DE PARTIDA. TATIANA BLASS .......... 28
FIGURA 8 – FIM DE PARTIDA. TATIANA BLASS .......... 28
FIGURA 9 – SUA ATÉ SUMIR, SUA CARNE. TATIANA
BLASS .................................................................................... 34
FIGURA 10 – SUA ATÉ SUMIR, SUA CARNE. TATIANA
BLASS .................................................................................... 34
FIGURA 11 – TEATRO PARA CACHORROS E AVIÕES #1.
TATIANA BLASS .................................................................. 36
FIGURA 12 – FIM DE PARTIDA. TATIANA BLASS ........ 37
FIGURA 13 – ENTERRO EM ORNANS. GUSTAVE
COURBET .............................................................................. 40
FIGURA 14 – CACHORRO DE ORNANS. GUSTAVE
COURBET .............................................................................. 40
FIGURA 15 – AUTORRETRATO. GUSTAVE COURBET 41
FIGURA 16 – PÁGINAS 6 E 7 DO CATÁLOGO TEATRO
DA DESPEDIDA .................................................................... 44
FIGURA 17 – TEATRO DA DESPEDIDA #1. TATIANA
BLASS .................................................................................... 44
FIGURA 18 – ELETRICAL ROOM. TATIANA BLASS ..... 47
FIGURA 19 – ELETRICAL ROOM. TATIANA BLASS ..... 47
FIGURA 20 – HARD WATER. TATIANA BLASS ............. 51
FIGURA 21 – PENÉLOPE. TATIANA BLASS .................... 54
FIGURA 22 – PENÉLOPE. TATIANA BLASS .................... 56
FIGURA 23 – PENÉLOPE. TATIANA BLASS .................... 56
FIGURA 24 – VARREDURA. EDITH DERDYK ................ 59
FIGURA 25 – VARREDURA. EDITH DERDYK ................ 59
FIGURA 26 – METADE DA FALA NO CHÃO – PIANO
SURDO. TATIANA BLASS .................................................. 61
FIGURA 27 – PLIGHT. JOSEPH BEUYS ........................... 63
FIGURA 28 – APITO. TATIANA BLASS ............................ 64
FIGURA 29 – EXECUÇÃO AO PIANO DE TACET 4’33”.
JOHN CAGE ........................................................................... 66
FIGURA 30 – ENTREVISTA 1.2. TATIANA BLASS ......... 67
FIGURA 31 – ENTREVISTA 1.3. TATIANA BLASS ......... 71
FIGURA 32 – THE DESSERT: HARMONY IN RED. HENRI
MATISSE ................................................................................ 75
FIGURA 33 – METADE DA FALA NO CHÃO.
CLARINETE. TATIANA BLASS ......................................... 77
FIGURA 34 – CAUDA CADEIRA. TATIANA BLASS ...... 77
FIGURA 35 – VAGA. TATIANA BLASS ........................... 80
FIGURA 36 – CATEDRAL #2. FELIPE COHEN ................. 82
FIGURA 37 – VOLTANDO PRA CASA. TATIANA BLASS
................................................................................................. 84
FIGURA 38 – SÉRIE TRÁGICA. FLÁVIO DE CARVALHO
................................................................................................. 87
FIGURA 39 – RETRATO MÁRIO DE ANDRADE. FLÁVIO
DE CARVALHO ................................................................... 87
FIGURA 40 – TEATRO #5. TATIANA BLASS .................. 89
FIGURA 41 – TUDO TE É FALSO E INÚTIL II. IBERÊ
CAMARGO ........................................................................... 91
FIGURA 42 – FIM DE PARTIDA. TATIANA BLASS ........ 95
FIGURA 43 – BILDERATLAS MNEMOSYNE. ABY
WARBURG ........................................................................... 95
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................... 15
2 DECADÊNCIA, RUÍNA E HUMANIDADE NAS
ESCULTURAS/PERFORMANCES ...................................... 23
2.1 O corpo em ruína ............................................................... 29
2.2 A cena em Fim de Partida ................................................ 40
2.3 A persistência do animal ................................................... 55
3 PRESENÇA E AUSÊNCIA DA PALAVRA NOS VÍDEOS
E SUPORTES BIPLANARES ................................................ 73
3.1 A presença da palavra ....................................................... 78
3.2 Os discursos de Penélope .................................................. 88
3.3 Ausência do som e da palavra: silêncio .......................... 100
4 METAMORFOSE E FANTASMAGORIA DAS FORMAS
NAS ESCULTURAS E PINTURAS .................................... 115
4.1 As metamorfoses e usos da matéria ................................ 121
4.2 A metamorfose como um acontecimento ........................ 128
4.3 A obra fantasmagórica .................................................... 138
4.4 Das formas, palavras, metamorfoses e ruínas que se
repetem, os fantasmas de Tatiana Blass ................................ 152
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................. 163
6 REFERÊNCIAS ................................................................. 169
7 APÊNDICES ...................................................................... 179
Apêndice A. Cronologia ........................................................ 179
Apêndice B. Entrevista com Tatiana Blass ........................... 195
Apêndice C. Fotos do ateliê da artista ................................... 221
Apêndice D. Visita a exposições ........................................... 225
Apêndice E. Lista de catálogos ............................................. 228
8 ANEXOS ............................................................................ 231
Anexo A. Paisagem de Papel. Tiago Mesquita ..................... 231
Anexo B. Por um belo desconcertante. Luiz Camillo Osorio 234
Anexo C. Tatiana Blass: sobre dificuldade ou a necessidade do
inverso. Cauê Alves ............................................................... 238
Anexo D. Zona Morta. Thaísa Palhares ................................ 242
Anexo E. Um sol partido ao meio. Rodrigo Moura .............. 244
Anexo F. Desenhando com tesouras a linha do horizonte.
David Barro ........................................................................... 249
Anexo G. Não são assim que as coisas são: obscurantismo e
razão na obra de Tatiana Blass. Tiago Mesquita ................... 263
Anexo H. O labor de Penélope. Douglas de Freitas .............. 270
Anexo I. Fim (?) de Partida. Paulo Venancio Filho .............. 274
Anexo J. Advertência ao público. José Augusto Ribeiro ...... 277
Anexo K. Read between the lines. Fernando AQ Mota ....... 282
Anexo L. Electrical Room. Nora Burnett Abrams ................ 285
Anexo M. Cão Cego. Solange Farkas ................................... 288
Anexo N. Cão Cego. Tatiana Blass ....................................... 289
Anexo O. Cão Cego. Entrevista ............................................ 290
Anexo P. Diálogos Possíveis. Antonio Carlos Portela .......... 294
Anexo Q. Fim de Partida. Mauro Saraiva ............................. 296
Anexo R. Entrevista. Paulo Venancio Filho ......................... 297
Anexo S. O gosto da fissura. Tatiana Blass .......................... 300
Anexo T. Quase figura, quase forma. Lorenzo Mammì ........ 302
Anexo U. A família mobília. Tatiana Blass .......................... 311
15
INTRODUÇÃO
Tatiana Blass (1979, nasceu, vive e trabalha
em São Paulo) iniciou sua produção principalmente
por pinturas de caráter abstrato que destacavam
cores e formas, com cortes e recortes e forte uso da
colagem. Com o passar dos anos, as técnicas foram
sendo ampliadas e atualmente a artista transita por
diversas linguagens da arte, como pintura,
escultura, instalação, vídeo arte, performance,
desenho e gravura. As matérias também se
diversificaram, além da tinta agora em suas obras
figuram bronze, cera e metais, entre outros
materiais. Sua formação em Artes Plásticas na
Universidade Estadual Paulista – UNESP fez com
que o repertório da história da arte fizesse parte de
seu processo de produção. Alguns artistas como
Nuno Ramos, Paulo Pasta, Matthew Barney e Urs
Fischer são apontados pela artista, em entrevista
anexada, como influências para seu trabalho. Esses
artistas e as possíveis relações com as obras de
Tatiana Blass foram abordados no projeto de
monografia da Pós-Graduação Latu Sensu em
História da Arte, com conclusão em 2014, sob o
título de Tatiana Blass e o gesto na matéria. A
monografia em questão pensou assuntos
relacionados às questões matéricas, sendo
abordados os diferentes meios e materiais que a
artista utilizada em suas obras, como o bronze, a
cera, a tinta a óleo, o mármore e as apropriações de
objetos, a sua trajetória enquanto artista e como
chegou a produzir nesses materiais.
16
Estudar e pesquisar esta artista no mestrado
é um interesse que emerge a partir deste projeto
anterior, sendo que o objetivo da atual pesquisa é
estudar a artista considerando a singularidade de
seu gesto. A partir do conceito pensado por Giorgio
Agamben em seu texto O autor como um gesto do
livro Profanações, pode-se pensar o gesto artístico
como um dispositivo que captura um sentido que
sempre retorna nas obras de um artista, como algo
que permanece na obra como um sintoma em sua
produção. CHEREM (2012, p.26) escreve sobre:
“Eis o gesto artístico como um feito que, diferente
do hábito consciente ou impremeditado, do
movimento ordinário ou extraordinário, da intenção
ou do estilo, pode ser considerado como o ato de
produzir uma alteração e suspender o
estabelecido”. O gesto, apesar de sua recorrência,
não faz com que o artista se torne acadêmico dele
mesmo, mas sim encontre sempre sua diferença. O
gesto de Tatiana Blass é desconstruir para depois
construir. É possível encontrar esse gesto em
qualquer uma de suas obras. Em suas obras de cera
a obra está pronta enquanto acontece a
desconstrução da figura do homem, por meio de
um processo de derretimento. Nas pinturas, as
figuras, animais e personagens estão com suas
formas indefinidas, desconstruídas, e adicionando
camadas uma por cima das outras, na
desconstrução da forma se encontra a construção de
sua obra. Em seus objetos, instalações, esculturas
de diversos materiais, pode-se reconhecer o gesto
avassalador de desfuncionalizar um objeto para que
17
a obra de arte se faça emergir. O gesto da artista
relaciona-se a dar visibilidade à ruína como um
processo de decadência orgânica e de mostrar a
perecibilidade das coisas do mundo,
desfuncionalizando a matéria para que a obra de
arte aconteça.
No primeiro capítulo será abordada a
persistência do gesto da decadência e ruína do
corpo nas obras de cera da artista como em Luz que
cega – sentado e Coluna [Agachado]
estabelecendo relações de proximidade com o
artista George Segall e de distanciamento de René
Magritte. Também permeia este capítulo uma
relação entre a obra literária e teatral de Fim de
Partida de Samuel Beckett com a obra Fim de
Partida de Tatiana Blass. Adiante ainda, no
primeiro capítulo, serão abordadas as relações do
ser humano frente a figura do animal que interroga
sua própria humanidade com obras de Tatiana
Blass como Sua até sumir, sua carne, Teatro para
cachorros e aviões #1 e um detalhe da obra Fim de
Partida, desenvolvendo relações com obras de
Gustave Courbet onde o cão aparece com
frequência. O texto tem como base principal os
livros de Eliane Robert Moraes O corpo impossível
e de Jacques Derrida O animal que logo sou.
No segundo capítulo destaca-se a presença e
a ausência da palavra que se faz por meio de seus
textos, prosas e construções de literatura
combinadas com as obras visuais e o silêncio no
momento enquanto cala os instrumentos musicais.
O gesto da literatura se faz presente em obras e
18
montagens de exposições como em Teatro da
despedida #1, Eletrical Room, Hard Water e
Penélope, que são relacionadas com obras de Edith
Derdyk. As obras Metade da fala no chão – piano
surdo, Apito e Entrevista #1.2 são pensadas frente a
obras dos atistas Joseph Beuys e John Cage pela
presença do gesto do silêncio. O capítulo é
principalmente pautado pelos textos Falar, não é
ver e A solidão essencial de Maurice Blanchot e
Isto não é um cachimbo de Michel Foucault.
No terceiro e último capítulo será abordado
o gesto da metamorfose das formas e das
fantasmagorias que podem ser encontradas em suas
obras. As obras Entrevista 1.3, Metade da fala no
chão – clarinete, Cauda Cadeira e Vaga são
relacionadas com obra de Felipe Cohen e pensadas
a partir do conceito de arquidesenho desenvolvido
no livro A pintura como modelo de Yve-Alain Bois
bem como um acontecimento a partir do
pensamento de Gilles Deleuze no livro A dobra:
Leibniz e o barroco. Também permeia este capítulo
a persistência da fantasmagoria, que é tratada nas
obras Voltando pra casa e Teatro #5, relacionadas
com obras dos artistas Flávio de Carvalho e Iberê
Camargo. Ao final do capítulo, o conceito de
fantasmagoria é pautado pelo livro A imagem
Sobrevivente de Georges Didi-Hubermann, que traz
uma reflexão a cerca do trabalho desenvolvido por
Aby Warburg.
As relações que são feitas ao longo desta
dissertação não foram apontadas por Tatiana Blass
como referência para seus trabalhos ou como
19
influências diretas, mas o texto se propõe a mostrar
possíveis relações com obras e artistas de diferentes
momentos da arte moderna e contemporânea, e que
fazem parte do repertório visual da história da arte
que a artista provavelmente teve contato em seus
anos de estudos em Artes Plásticas e nos cursos
livres que fez ao longo da carreira, como alguns
apontados em entrevista anexada. Nessa premissa,
as recorrências e detalhes de suas obras são
articuladas de forma anacrônica com outros artistas
de diferentes períodos da história da arte.
Tatiana Blass ganhou destaque nacional e
internacional ao participar da 29ª Bienal de São
Paulo em 2010 com a obra Metade da fala no chão
– piano surdo, que será abordada nos capítulos dois
e três, onde um piano de cauda é “calado” através
de cera líquida derramada em seu interior enquanto
o músico toca músicas de Chopin. Esta obra foi
mais uma de sua série onde cala e inutiliza
instrumentos musicais. Entre eles estão também
baterias, trombone e trompete. Fruto do Prêmio
Pipa, ganho um ano antes, em 2012 passa três
meses em uma residência artística em Londres e lá
produz o vídeo Hard Water, que será abordado no
capítulo dois. No vídeo, duas atrizes têm suas
roupas presas a fios ligados a carretéis instalados
nas paredes, e enquanto tentam movimentarem-se,
os fios embaralham-se cada vez mais. O diálogo
entre as duas atrizes foi pensado também por
Tatiana Blass que, entre outras de suas
características, trabalha com textos próprios e
construções literárias.
20
Em 2014, lançou seu primeiro livro infanto-
juvenil pela Cosac & Naify intitulado A Família
Mobília. Sua produção atual é marcada por maior
melancolia, trabalhando muitas vezes com temas
fortes, como a morte. Embora este seja um tema
espinhoso, é trabalhado com sutileza e poesia pela
artista. Suas pinturas ganharam formas menos
definidas, que se confundem com o fundo
enevoado de suas paisagens. Teatro e encenações
impossíveis são tratados com leveza, cachorros e
aviões convivem no mesmo palco em Teatro para
cachorros e aviões #1, um carro é “atolado” em
concreto na rampa da galeria em Vaga, e o que
parece ser um corpo estendido no chão coberto por
um lençol, não passa de uma ilusão em Para o
morto.
Do ponto de vista da História e da Crítica de
Arte no Brasil, pouco se aprofundou sobre as
questões artísticas que Tatiana Blass vem
levantando. Predominam pequenos textos críticos
normalmente em releases sobre exposições e se
encontram referenciados em anexo a esta
dissertação como fortuna crítica da artista. Alguns
foram compilados em um catálogo publicado em
2009, mas desde então a artista vem modificando
algumas formas de construção de suas obras.
Estudar e pesquisar a artista significa tentar
entender como algumas questões tão recorrentes na
arte como a ruína, a metamorfose, a palavra e o
silêncio estão chegando até nós nos dias de hoje
por meio da poética da artista. A dissertação fará
uma abordagem a respeito dessas questões que se
21
repetem e que são encontradas nas obras da Tatiana
Blass e de outros artistas, não necessariamente
apontados por ela como uma influência para seus
trabalhos, mas como uma reflexão sobre as
temáticas e questões que se repetem ao longo da
história da arte.
22
23
I CAPÍTULO
DECADÊNCIA, RUÍNA E HUMANIDADE
NAS ESCULTURAS/PERFORMANCES
“Vai, pássaro encantado, abre a
porta e voa à minha amada.
Aninha-te em seu peito, e conta a
ela que sigo: vivo, mas putrefeito.”
(BECKETT, 2010, p.126)
O gesto de Tatiana Blass relaciona-se ao ato
de desconstruir para depois construir novamente.
Seus homens em cera derretem, definham e
mostram sua fragilidade. E tornam-se obra de arte a
partir de sua desconstrução. São mutilados em um
processo lento e contínuo, como se o que
importasse não fosse o resultado final, o ser
humano disforme, mas seu processo de
transformação. A jornada então valeria mais que o
ponto de chegada?
Já na primeira metade do século XX, o
homem viu-se diante das duas grandes Guerras
Mundiais e essa experiência, com grande avanço
bélico e tecnológico, mudou a forma como o ser
humano foi sendo abordado na arte, sendo que nas
formas humanas foram ficando cada vez mais
desconstruídas e fragmentadas. O cubismo surge
como um dos movimentos que mais chamam
atenção pelo início da desconstrução da forma. O
homem foi pensado diante da máquina e sua
humanidade foi questionada também frente ao
animal. O corpo dilacerado pela experiência da
24
guerra sobrevive como um sintoma na arte
contemporânea e Tatiana Blass encontra-se na
esteira da desconstrução do corpo ao trabalhar a
decomposição da forma orgânica.
Sua produção é marcada por caminhos
variados e um deles envolve a cera como material
escultórico. O contato com a fundição de outras
obras em bronze fez com que a artista apreendesse
a técnica da cera perdida ou técnica perdida, que é
utilizada na fundição de esculturas. De 2009 em
diante foram feitas muitas obras em cera, esculturas
de homens e animais, e a inserção da cera líquida
em outros trabalhos, como na obra Metade da fala
no chão – piano surdo de 2010, apresentada na 29ª
Bienal de São Paulo, quando cera líquida é jogada
em um piano de cauda enquanto o músico toca
Chopin. Importante ressaltar que suas esculturas
são produzidas por terceiros, por uma empresa de
fundição e a artista acompanha todo o processo.
Na obra Luz que cega – sentado (figura 1)
de 2011, um homem de cera sentado em uma
cadeira, de frente para seu encosto e com o tronco
apoiado nele, derrete lentamente por meio de um
refletor de luz próximo de suas costas, que estão
expostas a ele. A exposição do homem de cera ao
refletor faz com que lentamente a cera derreta e
desconstrua o personagem. O homem comum
vestido com camisa, calça e tênis, vai sendo
dilacerado aos poucos pela luz do refletor, uma
força externa a ele, capaz de aquecer a sua matéria
e a transformar de estado sólido para líquido. Há
uma situação de dualidade com relação à luz, pois
25
ao mesmo tempo em que ilumina e destaca a figura,
destrói e ensaia o desaparecimento da figura. Com
seu derretimento a representação mimética vai
dando espaço a uma desfiguração do sujeito. O que
resta são vestígios do homem que um dia existiu.
O derretimento da cera faz com que outro
elemento apareça na obra, uma coluna vertebral
produzida em bronze. Não obstante, há uma relação
de dualidade também na duração dos materiais
utilizados, a cera e o bronze, nessa junção de um
material duro e outro maleável. O esqueleto do ser
humano é a matéria mais rígida do corpo e aquilo
que o sustenta. Também é uma das matérias do
corpo humano que mais se alongam ao perecer
depois da morte. Os ossos carregam os resíduos do
corpo humano, daquilo que um dia foi e não será
mais. O esqueleto à mostra traz à tona um corpo
que lentamente vai ficando descarnado. A espinha
dorsal é o que faz o ser humano manter-se ereto, é
fundamental para sua movimentação e
funcionamento do corpo. A espinha dorsal do
personagem é de material mais rígido e que não vai
se modificar com a luz do refletor. Irá resistir até o
fim, e com o derretimento lento da cera, mantém
seus restos de pé.
26
Figura 1 - Tatiana Blass. Luz que cega – sentado. 2011. Cera
microcristalina, bronze fundido, cadeira e refletor.
150x150x150cm. Prêmio PIPA, MAM-RJ. Fotos Rafael
Adorján.
Fonte: http://www.tatianablass.com.br
O corpo apresentado em deterioração sugere
o vestígio do ser humano. Jean-Luc Nancy (2012),
em seu texto O vestígio da arte, aborda o conceito
27
de vestígio na arte contemporânea. O autor lembra
a definição de arte de Hegel: “a arte é a
apresentação sensível da Ideia” (NANCY, 2012,
p.295). A arte seria a visibilidade sensível daquilo
que estaria invisível, a idealização que se torna
presente. O que temos que procurar na obra de arte
é aquilo que não está dado no início, o que não é o
óbvio. Tatiana Blass possui uma preocupação em
não trabalhar em algo que se feche em si mesmo.
Este é um traço notável que se encontra em Luz que
cega – sentado, uma obra que quer significar, que
pode significar diversas questões, como destruição,
desconstrução, vestígio de si mesma. A obra remete
à questão de pulsão de morte, encontrando-se na
ordem do inelutável, sendo que sua destruição é
inerente à sua existência.
Tatiana Blass enfatiza, em entrevista
anexada a esta dissertação, que assim que suas
obras em cera são postas no local, ela não possui
mais um controle sobre o que irá acontecer
exatamente. Afirma que a escultura em cera posta
no local expositivo não está pronta, apenas se torna
obra quando seu derretimento inicia-se. Suscita um
paradoxo de sua existência, que para existir precisa
se desconstruir, pensando sua destruição e
construção que se faz lentamente. Há apenas o
controle da luz que é ligada cada dia de exposição,
mas a forma que a personagem de cera toma é algo
inesperado. Stéphane Huchet, em seu texto A
instalação em situação, reflete sobre o surgimento
do termo, das características que envolvem uma
instalação, e um de seus aspectos diz respeito à
28
encenação, quando afirma que: “A instalação,
portanto, é um cenário que constrói um dispositivo
que é um mundo e pretende ser um mundo
enquanto tal, isto é, um conjunto que provoca uma
cesura, um corte com relação ao resto (do mundo)”
(HUCHET, 2006, p. 25). Os cenários que a artista
cria são como uma separação do resto da realidade,
são ficções realizadas na sala de exposição, onde o
mundo real do espectador pode adentrar ao mundo
da ilusão criada pela instação-performance que a
artista cria. Seria um teatro para pensar, uma
teatralização da proposta artística, como afirma o
autor. A instalação não seria apenas uma
encenação, “mas também um convite a um
exercício de leitura de ideias.” (HUCHET, 2006,
p.29). As obras de Tatiana Blass são, portanto, um
convite para se pensar a ruína, a decadência e a
humanidade de seus personagens.
A obra em cera, de material de fácil
modificação, é construída de tal forma que favorece
sua própria destruição. O homem sentado
posiciona-se de costas para o refletor que o irá
modificar, deixando partes de si para trás, virando-
se de costas para aquilo que o modifica. O refletor
que joga a luz que ilumina o personagem e que o
destaca na sala expositiva é também aquilo que
causará sua lenta decadência. O refletor cega, como
diz o título da obra, cega com luz. O vestígio está
na ordem do sensível. Nancy (2012) também reflete
sobre o rastro, que seria “o traçado ou o traçamento
(do) sensível, enquanto seu próprio sentido.”
(NANCY, 2012, p.303). Lembra a planta do pé, de
29
forma simbólica, que deixa seu rastro enquanto pisa
no chão. O vestígio seria a pegada do ser passante,
o que resta da arte quando tudo ao redor dela
desapareceu. O passo de Luz que cega – sentado é
seu derretimento, essa é sua marca, seu rastro. A
obra em seu derretimento torna-se vestígio desse
passo e o vestígio está na ordem do sensível. É a
obra de arte, aquilo que fica, que deixou um sopro,
um vestígio.
2.1 O CORPOR EM RUÍNA
Tatiana Blass utiliza poucos materiais e
retrata um ser humano em tamanho real de cera,
mas este vai se desfazendo lentamente, em um
processo de desconstrução da forma, em ruína. De
certa maneira a artista começa sua obra com o ideal
clássico de beleza, em harmonia, equilíbrio e
serenidade. Mas, à medida que o refletor vai
expondo outras partes da obra, feitas de metal, e vai
desfigurando esse personagem, o ideal clássico
também se desconstrói, pois o que se vê agora é o
desarmônico, é o feio, como a fruta perecendo e o
ser definhando. A artista expõe o interior do ser e
quase humaniza esse personagem construído de
cera. Apoiado somente em uma cadeira, o ser
definha até se desfigurar e não poder ser mais visto
como uma representação do ser humano, pois
torna-se líquido, se esvai por entre a cadeira, se
perpetua no chão, tornando-se sólido novamente e
30
tomando outra forma, uma forma vestigial. A
artista em suas obras de cera trabalha com a morte,
com o inelutável, a finitude, o tempo e com aquilo
que o ser humano não pode evitar: seu
desaparecimento físico do mundo, a morte. Traz à
tona um tema que vem do mal e do feio, mas
concebe a obra de tal maneira que ela se torna bela.
A artista trabalha com o corpo em ruína e faz com
que seja um belo poético.
A obra Coluna [Agachado] (figura 2) de
2013 apresenta novamente um homem feito de
cera, mas desta vez o corpo em ruína não se faz por
meio de um refletor, e sim de uma chapa de latão
aquecida. O corpo agachado inicialmente toca a
chapa de latão somente por sua cabeça, mas no
decorrer do processo de derretimento, é engolido
por completo pela chapa de latão.
Figura 2 - Tatiana Blass. Coluna [Agachado]. 2013. Cera
microcristalina, bronze fundido, chapa de latão e resistência
elétrica. Aprox.50x200x200cm. ArtBo, Bogotá, Colômbia.
Fonte: http://www.tatianablass.com.br
A placa de latão que derrete o corpo, o
reflete também. Pode-se estabelecer uma relação
com o mito de Narciso. Filho de Liríope, conta a
mitologia que Narciso apaixona-se por sua beleza
31
ao se refletir nas águas calmas de uma fonte. O
jovem deixa de se alimentar e dormir e vai
definhando, fixando seu olhar em seu reflexo nas
águas. Assim como Narciso foi decaindo sua
existência ao se refletir nas águas, o corpo de
Coluna [Agachado] é engolido por si mesmo
refletido na placa de latão.
Giorgio Agamben (2007), em seu texto O
ser especial do livro Profanações, lembra que os
filósofos medievais foram fascinados pelo espelho
e que este poderia ser capaz de colher suas formas.
O autor reflete sobre o ser especial refletido no
espelho, se a imagem no espelho ocupa o lugar que
é do espelho ou quando o lugar da imagem não é o
espelho, pois não fica presa a ele: a imagem
refletida é sempre outra. O espelho seria o lugar
onde cada um descobre que possui uma imagem,
esta separada de si, que não a pertence. Pode-se
pensar então na água que reflete Narciso e na chapa
de latão que reflete o homem de Coluna
[Agachado] em dispositivos que os capturam. O
corpo do homem está prostrado diante daquilo que
olha. O reflexo de si é o que o leva à ruína, o traga
para a chapa de latão quente que o destrói
lentamente levando a seu declínio. Existe uma
condição de passividade em relação a essa ruína: o
corpo de Coluna [Agachado], de certa forma, está
paralisado diante de si mesmo, e com uma
prostração melancólica, é levado à decadência por
aquilo que o reflete.
32
Tanto em Luz que cega – sentado como em
Coluna [Agachado] a ruína e a morte do corpo
estão presentes, mas ao mesmo tempo são tratadas
com beleza, com poesia pela artista. Mesmo em
decomposição, o corpo nunca é aniquilado
totalmente, restam sempre sulcos, partes de si,
resíduos, vestígios, traços de sua existência. A
dualidade da matéria nas obras de Tatiana Blass se
faz presente também na duração dos materiais. A
carne, feita de cera, permanece perecível, se
deteriora, enquanto o material ordinário, a cadeira,
a chapa de latão, a coluna de bronze e o refletor,
sobrevivem. Do estado sólido para o líquido, o
corpo de desfaz aos poucos, a carne de cera se
esvai pela cadeira e pela chapa de metal, se espalha
pelo chão e desfigura o corpo que inicialmente era
limpo, sereno e puro. A morbidade, mesmo que
presente, é tratada com sutileza pela artista e sua
poética delicada traz à tona um tema tão intenso
como a ruína do corpo em decadência.
Na história da arte moderna e
contemporânea, um artista que se interessou em
trabalhar o corpo foi o americano George Segal
(1924-2000). O artista inicialmente foi considerado
da vertente da arte pop por trabalhar com questões
do cotidiano, mas seu trabalho não se encerrou
nessa nomenclatura. Por alguns anos ministrou
aulas de artes e inglês e foi durante uma de suas
aulas em 1961 que um aluno da turma de adultos
trouxe uma caixa seca de ataduras de gesso. George
Segal levou a caixa para casa e experimentou usar
o gesso em seu próprio corpo, sendo que a partir
33
desse momento que o artista passou a utilizar o
gesso como material escultórico.
George Segall fez inúmeras esculturas com
ataduras de gesso moldadas no próprio corpo de
seus modelos. Interessava a ele a construção de
cenas do cotidiano, dos corpos habitando um
espaço. Na figura 3 vê-se a obra The bus driver (o
motorista de ônibus em tradução livre), onde um
homem de gesso está sentado dentro de parte de um
ônibus. Segurando um volante, o homem sério
parece concentrado em sua tarefa e olha fixamente
para frente. Segundo as informações sobre a obra
no site da coleção de obras do MOMA (Museum
Of Modern Art) de Nova York, George Segal criou
a obra The bus driver depois de pegar uma linha de
ônibus tarde da noite na volta para casa, onde
deparou-se com um motorista arrogante e sombrio.
Dias depois teria se deparado com os restos de um
ônibus e então decidiu criar a obra, que teve como
modelo seu cunhado.
34
Figura 3 - George Segal. The bus driver. 1962. Gesso sobre
gaze, peças de ônibus (caixa de moeda, volante, bando do
condutor, trilhos e painel) sobre blocos de madeira e concreto.
Dimensões aproximadas: 226 x 131 x 195 cm.
Fonte: www.moma.org
35
Em suas obras de gesso, onde colocava
personagens inseridos em cenas do cotidiano, o
artista preocupava-se em retratar as pessoas, seus
gestos, a posição do corpo executando determinada
tarefa, retratando sempre em tamanho natural,
assim como faz Tatiana Blass. Embora as obras da
artista encontram-se sempre na condição de ruína,
algo próprio de seu gesto, inicialmente suas obras
são limpas e imaculadas e na ação dos refletores ou
chapas de metal é que a decadência da matéria
acontece. A primeira imagem da esquerda para a
direita na figura de Coluna [Agachado] de Tatiana
Blass, onde o corpo ainda está completo, poderia
ser uma imagem das obras de George Segal, na
limpeza das formas e na pureza das cores, pois
tanto o gesso como a cera possui uma tonalidade
parecida, são cores claras, sem pinturas e outras
cores, que deixam transparecer a forma dos corpos
apresentados pelos artistas. Outra semelhança entre
George Segal e Tatiana Blass é que ambos criam
seus personagens e os instalam em um lugar, seja
em uma exposição dentro de uma galeria, ou no
caso de George Segal, em alguns momentos
inseridos no cotidiano da cidade, os dois criam
cenas em que os personagens causam uma dúvida
pelo desconhecido, uma denegação por parte do
observador, que se reconhece nas obras dos artistas,
pois as esculturas são feitas à semelhança do corpo
humano, em sua estatura e detalhes.
Em seu livro O corpo impossível, Eliane
Robert Moraes (2012) aborda a consciência
moderna, sobre como o corpo vem sendo
36
representado na arte e na literatura e reflete sobre
algumas palavras que fazem parte do vocabulário
modernista:
Fragmentar, decompor, dispersar: o
vocabulário que define a postura
modernista é exatamente o mesmo
que serve para designar a ideia de
caos, supondo a desintegração de
uma ordem existente, e implicando
igualmente as noções de
desprendimento e de desligamento
de um todo. (...) À fragmentação da
consciência correspondeu imediata
fragmentação do corpo humano.
(MORAES, 2012, p.59)
A autora ainda reflete que, em um mundo
onde o corpo pode ser tomado como uma unidade
material mais próxima ao homem, ele foi
imediatamente atacado e fragmentado na arte.
Relembra que a estética modernista tinha como
objetivo destruir o realismo do corpo. Tatiana Blass
é herdeira dessa estética modernista, e decompõe os
corpos lentamente, tornando suas partes
irreconhecíveis, dando a ver apenas do que se
constitui: de um corpo humano mas que,
claramente, encontra-se em decadência e ruína.
Moraes (2012) relembra que a geração
surrealista operava um desejo de decomposição e
fragmentação, sendo esta última observada na obra
de René Magritte L’évidence éternelle (figura 4).
Na obra, o corpo de uma mulher encontra-se
fragmentado em cinco partes, a primeira com seus
37
pés e tornozelos, a segunda com os joelhos e parte
das cochas, a terceira com o sexo e barriga, a quarta
com o tronco e os seios e a quinta com o pescoço e
a cabeça. Todas as telas possuem tamanhos
distintos, conferindo um movimento de ruptura de
uma parte até a outra.
O corpo da mulher que Magritte representa
é limpo e sereno. É pensado de forma diferente de
como as obras de Tatiana Blass se apresentam.
Magritte fragmenta o corpo quase como se o corpo
fosse um objeto, cabendo uma parte em cada tela, e
de forma tranquila a personagem fita o espectador.
Nas obras em cera da artista encontra-se o caos
modernista da decomposição e ruína, de um corpo
dilacerado. Em Magritte o corpo é mutilado, mas
ao mesmo tempo, parece não estar, pois todas as
suas partes são vistas e reconhecidas, como se o
corpo pudesse ser montado novamente, diferente
das obras em cera de Tatiana Blass, onde o corpo
que se dissolve deixa de mostrar os membros e
partes do corpo com nitidez, formando uma grande
mistura, uma grande massa sendo derretida, que
não poderá ser desfeita, é um corpo que ao passo
do derretimento não será mais reconhecido como
tal. O corpo em pedaços de Magritte dá a ver o
corpo despedaçado, mas de uma forma menos
violenta do que mais tarde outros artistas o
apresentariam, como nas obras de cera de Tatiana
Blass.
38
Figura 4 - René Magritte. L’évidence éternelle. 1930. Óleo
sobre cinco telas. Menil Collection, Houston.
Fonte: www.moma.org
39
Moraes (2012) afirma que a anatomia
modernista desfigurava a forma humana, e não a
fixava de forma estável. O corpo apresentado por
Magritte é um corpo esquartejado, mas sem os
vestígios da violência, não há sangue, não há
fluidos, ao contrário da carne de cera de Tatiana
Blass, que torna-se um monte disforme e no chão
forma uma poça. O corpo, como apresentado por
Magritte e Tatiana Blass, não é nada mais que sua
matéria, ou seja, seu corpo: “Esvaziando o homem
de toda concepção ideal e de toda transcendência
psicológica, só lhes restará o corpo – ou melhor,
esse ‘quase nada’ revelado em certas partes do
corpo como, por exemplo, o dedão do pé.”
(MORAES, 2012, p.145).
A violência do corpo em decadência e ruína
traz a tona o tema da morte, como se as obras de
Tatiana Blass fossem memento mori, expressão em
latim que lembra que a morte um dia chegará para
todos. A morte não é nada além daquilo que é
inelutável, daquilo que não se pode evitar, da
condição de ruína do ser humano. As obras em cera
da artista trazem à tona o ciclo de vida e de morte.
O corpo diante da morte passa a ser tomado como
uma matéria, perecível e reciclável. O corpo de
cera em decadência perpassa a morte, que faz parte
da vida de todo ser humano, e que em algum
momento teve que lidar com a morte de outrem e
que lidará com a própria morte, desígnio este
intrínseco ao ser humano. Destino trágico e corpo
em ruína também são apresentados na obra Fim de
Partida tratada a seguir, onde a desfiguração da
40
aparência do homem se faz presente, trazendo à
tona mais um retrato da condição humana.
2.2 A CENA EM FIM DE PARTIDA
“O fim está no começo e no
entanto continua-se.”
(BECKETT, 2010, p.113)
Um dos autores que Tatiana Blass costuma
ler é Samuel Beckett1. O universo que o autor cria
com seus fracassos humanos, solidões e maneiras
de pensar sobre a condição humana fazem parte do
imaginário da obra Fim de Partida de Tatiana
Blass. Baseada na peça de Beckett de mesmo nome
e escrita em 1957, foi montada nas artes visuais
pela artista. As relações que permeiam a peça
teatral e a peça visual serão tratadas a seguir. O fim
da vida de seus personagens, sua decadência, ruína
e humanidade estão presentes tanto na peça original
quanto na montagem artística.
1 Samuel Beckett (1906, Dublin – 1989, Paris), graduado em
Literatura, escritor amplamente reconhecido, foi um dos
nomes centrais do modernismo europeu. Em 1928 mudou-se
para Paris para lecionar e conheceu James Joyce, uma
importante referência. Possuía um rigor na montagem de suas
peças, dificilmente negociava mudança com os atores. Entre
todas as peças e novelas que escreveu, destacam-se Molloy,
Malone morre, que enfocava a solidão do homem, e também
O inominável, que lhe valeram o Nobel de Literatura em
1969. Fim de Partida é do ano de 1957, e é mais um de seus
textos que exibem as falhas e os fracassos do ser humano.
41
Na peça Fim de Partida quatro personagens
encontram-se no interior de uma casa. Hamm,
personagem central, é cego, possui problemas de
locomoção, está sentado em uma cadeira no centro
do palco. Clov, empregado de Hamm, demonstra
ao longo do texto que também sofre com problemas
da velhice, contracena com uma escada, que
desloca para vários lados e transita entre a sala e a
cozinha. Nagg, pai de Hamm, e Nell, mãe de
Hamm, estão alojados em dois latões ora cobertos,
ora abertos, e os dois personagens foram mutilados
pela guerra. Poucos elementos compõem o espaço,
que conta ainda com um cachorro de três patas, que
Clov estava fazendo para Hamm, mas que este
prefere não esperar seu término para tê-lo em suas
mãos. Montagens da peça no teatro podem ser
obervadas nas figuras 5 e 6, que mostram o cenário
com poucos elementos e seus personagens.
A peça de Beckett possui diálogos
principalmente entre Hamm e Clov, onde o fim da
vida é lembrado com frequência. São diálogos que
permeiam a morte de uma vizinha, lembram o
estado de saúde das personagens, contam histórias
de suas lembranças dentro do cotidiano enfadonho
e repetitivo que se mostra a sala da casa de Hamm.
“Hamm: Você não está cheio disso? Clov: Estou!
Do quê? Hamm: Desse...dessa...disso. Clov: Desde
sempre.” (BECKETT, 2010, p.41). Estar cheio
dessa vida, desse cotidiano, de pedir repetidamente
à Clov seu remédio e não o obter são sempre as
queixas de Hamm. A peça retrata o fim da vida
encenado de forma repetitiva. Fábio de Souza
42
Andrade faz a tradução e apresentação da edição de
Fim de Partida de 2010 e afirma:
As personagens de Fim de Partida estão às
voltas com a tarefa de acabar de existir,
virtualmente infinita e de conclusão
impossível. O cenário é um interior
cinzento, austero, batizado de abrigo, em
que seus quatro habitantes vivem como se
fossem os últimos sobreviventes de uma
humanidade devastada, últimos resquícios
de uma natureza que se esgota. A
proximidade enganosa do fim está não
apenas na escassez de meios – tudo na peça
(remédios, provisões, bicicletas) está se
acabando – mas também na decrepitude
física dos personagens (um cego paralítico,
um coxo, dois mutilados) e na rotina vazia
que custa a preencher o tempo da espera,
completamente desprovido de esperança.
(ANDRADE, 2010, p. 14-15)
A peça possui uma melancolia na existência
dos personagens que lentamente esperam por sua
morte, sua ruína. Hamm vê o fim da vida
aproximando-se, e em uma cena com Clov
pergunta-lhe a respeito de como está sua visão e
sua locomoção, ao passo que Clov responde com
um: “Vou e venho” (BECKETT, 2010, p.77),
Hamm lhe responde então:
Um dia você ficará cego, como eu. Estará
sentado num lugar qualquer, pequeno ponto
perdido no nada, para sempre, no escuro,
como eu. Um dia você dirá, estou cansado,
vou me sentar, e sentará. Então você dirá,
43
tenho fome, vou me levantar e conseguir o
que comer. Mas você não levantará. E você
dirá, fiz mal em sentar, mas já que sentei,
ficarei sentado mais um pouco, depois
levanto e busco o que comer. Mas você não
levantará e nem conseguirá o que comer.
Ficará um tempo olhando a parede, então
você dirá, vou fechar os olhos, cochilar
talvez, depois vou me sentir melhor, e você
os fechará. E quando reabrir os olhos não
haverá mais parede. Estará rodeado pelo
vazio do infinito, nem todos os mortos de
todos os tempos, ainda que ressuscitassem,
o preencheriam, e então você será como um
pedregulho perdido na estepe.
(BECKETT,2010, p. 77-78)
Figura 5 - Cenário de Matias para uma nova encenação de
Fim de Partida dirigida por Roger Blin (Paris, 1968).
Fonte: BECKETT, Samuel. Fim de Partida. São Paulo:
Cosac Naify, 2010.
44
Figura 6 - Fim de Partida, sob direção de Michael Blake,
com Magee, McGowran, Sydney Bromley e Elvi Halle
(Paris, 1964).
Fonte: BECKETT, Samuel. Fim de Partida. São Paulo:
Cosac Naify, 2010.
Neste trecho Hamm descreve sua cegueira,
como uma vasta escuridão. Como lhe parece ser os
dias, cansado de todos os afazeres, desgostoso das
atividades banais do cotidiano. O corpo cansado
chegará a um momento onde se encontrará perdido
na imensidão, no nada, como na estepe, uma região
de vasta planície da Rússia. O ambiente
acinzentado e as condições do tempo e da natureza
descritos por Clov trazem ainda mais a certeza de
um ambiente de melancolia, solidão e agruras em
que vivem as personagens. “Clov: Como tudo está?
45
Em uma palavra? É isso que quer saber? Só um
segundo. (Dirige a luneta para o exterior, olha,
abaixa a luneta, volta-se para Hamm) Cadavérico.”
(BECKETT, 2010, p.70). As personagens
encontram-se como na descrição anterior de Hamm
a respeito de sua cegueira, perdidos no meio da
estepe, como se a região onde moram não possuísse
muitos habitantes. Vivem isolados em uma casa
com poucas janelas, onde o interior entra em
contato com o exterior somente pela luneta de
Clov, e mesmo o exterior mantém o mesmo aspecto
interno cadavérico como afirma Clov.
Na peça há ainda a relação de submissão de
Clov à Hamm, onde Clov tenta diversas vezes
deixar Hamm, mas sua dependência não o deixa
sair. “Hamm: Por que você não me mata? Clov:
Não sei a combinação da despensa” (BECKETT,
2010, p.45). Clov vive em uma condição de
passividade diante da situação, obedecendo à
Hamm e permanecendo a seu lado. Nagg e Nell
entram pouco nas cenas, com lembranças
fragmentárias e Nagg aceita escutar as histórias do
filho Hamm por um biscoito. Uma preocupação
com um possível rato na cozinha também
permeiam uma parte da peça que traz à tona “(...) a
vida em suas manifestações mais baixas, paródicas
e elementares (uma pulga, um rato, um cachorro de
pelúcia de três patas e sem sexo) (...) uma alegoria
da convivência entre o corpo e a mente às portas da
morte (...).” (ANDRADE, 2010, p.16).
46
Tatiana Blass se apropria desse universo da
peça de Beckett para criar sua obra encenando-a
nas artes visuais. O uso da cera foi constante na
produção da artista por um período de dois a três
anos, onde criou personagens próprios, homens que
derretiam encostados a placas de metal ou sob a
mira de refletores, bem como representações de
cachorros nessas situações de ruína. A obra Fim de
Partida foi sua primeira produção com o material
da cera, e que depois se desdobraram em outras
obras como Luz que cega – sentado e Coluna
[Agachado] como visto no início deste capítulo.
Em Fim de Partida (figura 7) Tatiana Blass
posiciona as personagens feitas de cera em cima de
um palco. Hamm, Clov, Nagg e Nell são
representados cada um a sua maneira pela artista.
Hamm está sentado em uma cadeira de rodas, ao
centro, com um véu sobre sua cabeça. Clov está
representado junto à escada, esta utilizada tantas
vezes na peça de Beckett. Nagg e Nell estão dentro
de seus latões. O cachorro de três patas também
está no cenário. Há alguns outros objetos e, na
parede à direita, há uma pintura recente da artista.
47
Figura 7 - Tatiana Blass. Fim de Partida. 2010.
Cera microcristalina, refletores, palco e objetos de cena.
5,00x8,00x4,40m.
Fonte: http://www.tatianablass.com.br
A artista preocupou-se em colocá-los no
palco, ficando clara a representação da peça. Em
entrevista concedida em 2013, perguntada sobre
sua alusão à peça de Samuel Beckett, a artista
responde:
Na verdade a obra Fim de Partida não é
exatamente uma alusão, eu encaro mesmo
como uma encenação da peça. Eu peguei
48
tudo como é a peça, toda descrição dos
personagens, todo o figurino, os objetos de
cena, tudo como é a peça mesmo, e para
mim aquilo foi uma encenação da peça do
Beckett. (BLASS. In: BASCHIROTTO,
2014, p.56)
Figura 8 - Tatiana Blass. Fim de Partida. 2010.
Cera microcristalina, refletores, palco e objetos de cena.
5,00x8,00x4,40m.
Fonte: http://www.tatianablass.com.br
E a respeito de como foi a experiência de
realizar uma peça teatral nas artes visuais, Tatiana
Blass responde:
Para mim, Beckett, Odisseia ou Chopin, são
coisas tão estabelecidas na história da
cultura que elas são coisas. Como eu me
aproprio ao usar uma cadeira eu me
49
aproprio ao usar o Beckett, que já possui
uma força e uma presença tão forte que são
coisas no mundo. Então é com essa
liberdade que eu me apropriei de algo
existente. A princípio eu até havia pensado
em fazer uma peça em que os atores
derretem com a ação do refletor e, no
momento, pensei em eu mesma escrever
esse texto, mas depois vi que não faria
sentido, porque as pessoas teriam que ler o
texto para saber do que se tratava, pois seria
algo totalmente novo. E o Fim de Partida é
algo que se as pessoas não conhecem a
peça, conhecem um pouco do universo que
é o Beckett. Acredito que a peça casou
muito com a ideia inicial, porque é um fim
continuado, um fim que nunca termina.
Então tem muita relação com essa ação que
está sempre em processo, você nunca vê
nem o começo, nem o fim, é sempre esse
indo embora, mas que nunca chega ao fim,
um fim infinito. (BLASS. In:
BASCHIROTTO, 2014, p. 56-57)
Apropriando-se da peça de Beckett, a artista
transforma e transfigura os personagens de carne e
osso em personagens de cera. Diferente de Beckett,
as personagens de cera de Tatiana Blass encenam a
peça muda. O texto é eliminado, ficando apenas a
presença de seu índice por meio das personagens.
A ruína dos personagens por si só permeia a obra
do escritor, mas a artista adiciona um dado
avassalador de sua ruína, pois os personagens estão
derretendo e desfazendo-se enquanto encenam,
enquanto a obra acontece. Presos em seus lugares,
as personagens de cera desfazem-se do estado
50
sólido ao líquido por meio de refletores instalados
no teto. As luzes mais uma vez são paradoxais na
peça representada, pois ao mesmo tempo em que
iluminam o ambiente e destacam cada personagem,
também os leva à sua ruína e destruição da forma.
Diferente da encenação teatral tradicional, a
peça de Beckett por meio de Tatiana Blass, dura em
torno de dois meses, tempo de permanência da
exposição no espaço. A artista afirma que a
escultura em cera posta no local expositivo não está
pronta. Apenas torna-se obra quando seu
derretimento inicia-se. Na figura 8 é possível
perceber o derretimento lento que se faz em Nell. A
obra em cera, de material de fácil modificação, é
construída de tal forma que favorece sua própria
destruição. Sobre a obra a artista comenta:
Essa obra durou em torno de dois meses,
ficou no período da exposição. O museu
onde foi realizada ficava aberto algumas
horas por dia e a noite o refletor era
desligado, então o derretimento começava
de novo todos os dias. Esse trabalho foi
como uma continuidade de Fim de Partida,
que tinha a história dos atores que iam
derretendo, de criar essa ação continuada.
(BLASS. In: BASCHIROTTO, 2014, p.56)
A relação do material usado pela artista para
encenar a peça de Beckett parte da questão da
finitude, do derretimento que acontece lentamente,
assim como a existência humana. No fim da vida,
as personagens de Beckett estão envoltas em sua
sobrevivência, em viver um dia de cada vez. Vão
51
esvaindo lentamente a cada dia como o material da
cera utilizado, que derrete lentamente cada
personagem enquanto acontece a exposição. O
tempo é uma das questões também abordadas por
Beckett e que Tatiana Blass utiliza com o uso da
cera. O tempo da vida torna-se o tempo da cera. Há
uma especificidade no tempo de uma peça
encenada de maneira tradicional com atores e o
tempo diferenciado da peça encenada pelos
personagens de cera. O tempo do derretimento é
mais lento do que o tempo da encenação, mas é
mais curto do que o tempo da existência do ser
humano. O tempo pensado por Beckett ganha uma
dimensão especial na representação de cera pela
artista que afirma que não possui controle sobre
como a peça vai acabar, apenas dá o início com a
ligação dos refletores. A obra prolonga-se até o fim
da exposição, que pode também ser o fim desse
jogo, desse ciclo, o fim de partida proposto por
Beckett que leva à ruína.
A finitude do ser humano na peça de
Beckett é representada por Tatiana Blass pelo
derretimento da cera, por esse esvaecimento. O
derretimento aparece como ruína, como
desaparecimento da vida. Prolongada por um
tempo, a vida mantém sua sobrevivência, mas uma
sobrevivência disforme, como a mutilação existente
em cada personagem. A deformação presente na
descrição das personagens de Beckett e que
aparecem ao longo de seu texto, como as
dificuldades de locomoção de Clov e Hamm, a
cegueira de Hamm, a mutilação dos corpos de
52
Nagg e Nell, aparecem como metamorfoses do
corpo, representadas por essa deformação causada
na cera por meio do calor gerado pelos refletores.
Cada personagem é afetado e acaba por deformar-
se e desfigurar-se. O cachorro de três patas, que se
assemelha aos personagens humanos, também é
representado pela artista, e ele é o único que não
derrete, é um corpo que permanece mutilado desde
o início da peça. A ruína é um resto daquilo que já
existiu e possui diversas camadas de histórias, que
são também futuro.
O aparecimento do fracasso nos textos de
Beckett agora se faz presente na obra em cera, que
fracassa ao tentar manter-se inteira, em um jogo de
paralisia e mobilidade. Personagens quase
paralisados movem-se lentamente através de seu
derretimento. Ainda sobre a apropriação da peça de
Beckett para as artes visuais, a artista comenta:
Não penso tanto sobre o que Fim de Partida
suscita como discurso, mas o que suscita
como ficção, como imagem, como matéria.
Os personagens estão mudos, o texto está
calcificado no cenário, aparece como um
discurso paralisado, esgotado pelo tempo.
Um tempo condensado pela cena
construída, como se a peça inteira
acontecesse de uma só vez ou fosse a sobra
de uma ação que já se realizou. Da mesma
maneira é um tempo esgarçado, esticado,
mais lento do que conseguimos apreender,
já que os personagens ocorrerão por
semanas. (BLASS, 2011)
53
Os momentos da vida que antecedem seu
fim pensados por Beckett agora são encenados por
Tatiana Blass, que trabalha não só com esse fim
continuado, mas com a ruína que leva à morte.
Sobre a presença do tema da morte em seus
trabalhos a artista afirma:
Mas acho que a história da morte é algo
muito presente mesmo, mas no sentido não
tanto da morte como algo da morte real
mesmo. Acho que tem muita relação
também com essa ideia de fim continuado
nos trabalhos, que na verdade não é somente
uma morte, mas há também. (BLASS. In:
BASCHIROTTO, 2014, p. 57)
A morte não é nada além daquilo que é
inelutável, aquilo que não se pode evitar, a
condição de ruína do ser humano. Flávio de
Carvalho escrevendo sobre as ruínas do mundo
afirma que as pinturas não naturalistas ou
expressionistas, “possuem as recordações mais
dramáticas da alma do homem, estão
completamente fora da ideia cronológica de tempo,
as formas pintadas são animistas.” (CARVALHO,
2005, p. 44). Pode-se pensar as figuras em ruínas
de Tatiana Blass como essas formas, possuem os
resíduos do mundo, pois representam o ser humano
que um dia existiu mas encontra-se em ruínas.
O resíduo possui uma força, uma
animosidade, e através dele podemos sentir e
compreender mais sobre uma época. “A aparência
estática do resíduo pertence mais à ideia
cronológica de tempo, do tempo em que
54
percebemos, pois que o resíduo tem uma
animosidade frequentemente muito mais forte e
muito mais movimentada que a do observador.”
(CARVALHO, 2005, p.48). Os resíduos de Fim de
Partida podem ser os resíduos e a ruína de diversos
seres humanos que um dia encontraram-se
próximos da morte. Em um primeiro tempo o que
aparece são as ruínas do mundo do tempo de
Beckett e mais tarde encontram-se as ruínas do
mundo atual, representado por Tatiana Blass. São
dois tempos que se cruzam, as ruínas de Beckett
com as ruínas da artista, o tempo e as ruínas do
mundo em movimento, com a animosidade de seus
tempos diversos. “(...) porque o resíduo não
recebeu o contato de um só homem isolado a um
dado momento, mas sim o de uma história.”
(CARVALHO, 2005, p.47). A morte permeia o ser
humano desde sua existência, é intrínseca a ele,
assim como aos personagens de Beckett, que vivem
o cotidiano repetitivo e melancólico à espera de seu
fim e aos personagens representados por Tatiana
Blass, que para existirem necessitam ser destruídos
lentamente. Dar a ver a esse aspecto da morte é
perceber que a existência da humanidade sempre
permeou seu fim. E o fim pensado por Beckett é
carregado de outros fins, não somente a possível
reflexão sobre sua própria morte, mas o fim de
Hamm, Clov, Nagg e Nell, contém o fim de toda
humanidade.
Os ossos exprimem a história biográfica do
ser humano. Pode-se pensar que a cera derretida dá
a ver e revela também as personagens e suas
55
tragédias. Clov derrete em sua escada, Hamm em
sua cadeira, Nagg e Nell em seus latões. Cada qual
em seus lugares dão a composição construída por
Beckett, cada um com suas limitações. No caso das
personagens em cera não há esqueleto ou caveira
que permaneça, mas a cera, que se transforma
facilmente, também se torna vestígio daquilo que
em algum momento foram as personagens. Para os
alegoristas barrocos, as caveiras eram vistas como
imagens da vaidade, da futilidade, daquilo que era
transitório na existência humana. A história era
vista como um processo de declínio, como na peça
de Beckett, onde as personagens estão à espera de
seu fim e onde as figuras de Tatiana Blass
encontram-se em ruína. Pode-se pensar em Fim de
Partida, tanto a peça encenada por pessoas quanto
por obras de cera como um pensamento sobre a
natureza transitória. Pode ser vista como alegoria
humana, que lembra como o fim está próximo.
2.3 A PERSISTÊNCIA DO ANIMAL
Tatiana Blass, por vezes, retrata o homem
em situações de decadência e ruína, como abordado
anteriormente em suas esculturas de cera que
mostram corpos derretendo. O imaginário
melancólico de Samuel Beckett que permeia Fim
de Partida agrega ainda mais decadência aos
personagens que se encontram em decadência. As
obras da artista trazem elementos que parecem
estar fora do lugar, ao mesmo tempo em que as
ilusões, as ficções imaginadas são plausibilidades
56
do pensamento da artista. Chama atenção em suas
obras a persistência do animal, retratado em
dezenas de suas obras, entre pinturas e
esculturas/performances de cera.
O cavalo era representado com maior
frequência no início da carreira em suas esculturas
e gravuras, por vezes fragmentado como em Páreo
de 2006 onde se vê as patas feitas de mármore
branco descendo uma grande escadaria, mas em
nenhum momento o cavalo encontrava-se
definhando ou derretendo. Mais recentemente, a
recorrência têm sido de outro animal, o cachorro,
que aparece se dissolvendo tanto no escorrido de
suas pinturas quanto em suas obras tridimensionais.
Perguntada em entrevista no fim de 2013 sobre a
presença do animal em suas obras a artista afirma:
[...] na verdade eu não tenho muito
uma relação pessoal minha com o
cachorro. Escolhi por ser uma
figura muito próxima ao homem
[...] os cachorros surgiram muito
com essa coisa do ator impossível,
como nas pinturas que estão nos
palcos. Mas não há nenhuma
história pessoal, foi mais por ser o
animal mais próximo do homem,
quase tão humano, e que as pessoas
fazem o máximo para humanizar.
(BLASS. In: BASCHIROTTO,
2014, p.56)
Na obra Sua até sumir, sua carne (figuras 9
e 10) de 2010, um cachorro agachado é colocado
no chão e o refletor, posicionado em suas costas,
57
começa derretendo sua carne de cera lentamente,
revelando ossos que vão ficando cada vez mais
aparentes enquanto a exposição acontece e a luz do
refletor derrete o animal. A ruína, neste caso, pode
ser pensada como um olhar histórico que se cruza,
pois os ossos que ali estão pertenceram a um
animal que existiu de fato, mas que acabou
emprestando sua história contida em seus ossos
para a criação de uma obra de arte e, de certa
forma, permanecendo vivo por mais tempo, mas
não escapando novamente de seu destino de
destruição. O cachorro prostrado é entregue a uma
força externa que o leva ao desaparecimento e
desconstrução da forma. Sobram os ossos, os ossos
do mundo.
O animal em decadência dá a ver a ruína do
ser humano, sua decomposição após a morte, seus
restos de ossos. Jacques Derrida em seu livro O
animal que logo sou, publicação consequente de
um colóquio em Cerisy no ano de 1997, reflete
sobre a condição do animal em relação ao ser
humano, e a animalidade do próprio homem.
Derrida afirma que Bentham2 propôs mudar a
forma da questão do animal. Que a questão não é
saber se o animal pode pensar, raciocinar ou falar.
“A questão prévia e decisiva seria a de saber se os
animais podem sofrer. “Can they suffer?”. Eles
podem sofrer?, perguntava simplesmente e tão
profundamente Bentham.” (DERRIDA, 2002,
p.54). Em Sua até sumir, sua carne, a artista coloca
2 Jeremy Bentham (1748-1832), filósofo inglês.
58
o personagem cachorro na mesma condição em que
coloca o personagem humano em Luz que cega –
sentado e em Coluna [Agachado]. A decadência e
a ruína que sofre o personagem humano sofre
igualmente o personagem animal. Ambos são
colocados em um patamar de igualdade,
definhando até seu desaparecimento. A questão é se
o animal de Sua até sumir, sua carne também
sofre, se esse corpo em decomposição, a
representação de um cachorro, se esta
representação do animal dá a ver um sofrimento. Se
há sofrimento, tanto do personagem homem como
do personagem animal, esse sofrimento é traduzido
na forma de uma prostração condescendente.
Compartilhamos a mortalidade com os animais,
pois a finitude não é qualidade apenas humana:
“Aí reside, como a maneira mais
radical de pensar a finitude que
compartilhamos com os animais, a
mortalidade que pertence à finitude
propriamente dita da vida, à
experiência da compaixão, à
possibilidade de compartilhar a
possibilidade desse não-poder, a
possibilidade dessa
impossibilidade, a angústia dessa
vulnerabilidade e a vulnerabilidade
dessa angústia.” (DERRIDA, 2002,
p.55)
Com uma afirmativa que diz que sim o
animal sofre, e que compartilha do sofrimento, da
morte e finitude humana, a questão muda. Derrida
afirma que o animal nos olha, interroga a nossa
59
própria humanidade, e assim ficamos nus diante
dele, e que seu pensamento começa aí. Reflete
sobre a nudez diante do animal, da vergonha de
ficar nu diante de seu gato que o observa. Afirma
que o animal não está nu, pois não tem a
consciência de estar nu, declara que o que distingue
o ser humano dos animais é o fato de o animal estar
nu sem o saber, sem ter a consciência de estar nu,
sem se sentir nu, sendo o vestir algo próprio ao
homem.
Figura 9 - Tatiana Blass. Sua até sumir. Sua carne. 2010.
Parafina, ossos e refletor. 150x150x100cm.
Fonte: Catálogo Tatiana Blass 2010 Figura 10 - Tatiana Blass. Sua até sumir. Sua carne. 2010.
Parafina, ossos e refletor. 150x150x100cm.
60
Fonte: Catálogo Tatiana Blass 2010
Diante do gato que me olha nu,
teria eu vergonha como um animal,
que não tem o sentido da nudez?
Ou, ao contrário, vergonha como
um homem que guarda o sentido da
nudez? Quem sou eu então? Quem
61
é este que eu sou? A quem
perguntar, senão ao outro? E talvez
o próprio gato? (DERRIDA, 2002,
p.18)
Em Sua até sumir, sua carne, o cachorro
definha em sua nudez e, nas representações
humanas em outras obras da artista, o ser humano
encontra-se sempre vestido, como se precisasse
estar vestido, pois isso é algo próprio de si. Ambos
derretem, definham até a morte, e estão vestidos, o
ser humano com roupas e o cachorro com o
desconhecimento de estar nu.
Tatiana Blass humaniza o cachorro em
algumas situações, como na obra Teatro para
cachorros e aviões #1 (figura 11) de 2009, onde
cria uma cena impossível de dois cachorros e dois
aviões contracenando em um palco. No quadro de
cores opacas e tinta escorrida, o animal e a máquina
tomam o lugar do homem na representação,
tornando uma cena que poderia ser absolutamente
corriqueira em algo incomum. Cachorros e aviões
em movimento dividem a cena em um palco. Um
avião menor sobrevoa e quase some na escuridão
do fundo. O avião maior pousado no chão possui
uma cortina de tinta escorrida por cima de si, e os
pequenos rastros de tinta fazem perceber que não
está pousado, mas pousando. Os cachorros também
sofrem a ação da tinta escorrida por sobre si, e um
deles, mais próximo ao avião, por pouco não se
mistura com o amarelado do fundo. Outras
manchas escuras na tela poderiam ser mais
62
cachorros ou aviões que foram sendo apagados
pelas camdas de tinta.
Figura 11 - Tatiana Blass. Teatro para cachorros e aviões #1.
Acrílica sobre tela. 150 x 220cm. 2009.
Fonte: www.tatianablass.com.br
Os personagens impossíveis de uma cena
teatral imaginada pela artista encontram-se sempre
na condição de desaparecimento, mesmo na
pintura, pois é preciso atenção para reconhecer
cada personagem que se mescla com o fundo ou
possui uma cortina de tinta escorrida por sobre si.
As camadas de pintura, apesar de estarem secas
também propõem uma ação de desconstrução, pois
o escorrido da pintura sugere um movimento
incessante, como acontecem nas obras de cera, que
estão em constante desconstrução. Tanto nas
pinturas quanto em suas obras em cera, o gesto de
desconstrução da artista pode ser encontrado.
63
Em um espetáculo teatral, o que se espera
de seus personagens é a fala, o diálogo em si. Os
personagens de Tatiana Blass estão mudos,
primeiro porque são pintura, devaneios sobre a tela,
segundo porque são animais e máquinas que não
possuem a condição da fala. O homem, por sua vez,
possui o poder da linguagem, e com ela nomina
todas as coisas. DERRIDA (2002, p.62) afirma
que: “Os homens seriam em princípio esses
viventes que se deram a palavra para falar de uma
só voz do animal e para designar nele o único que
teria ficado sem resposta, sem palavra para
responder.” O animal estaria então privado de seu
direito de resposta por meio da linguagem, pois não
a possui. A própria designação animal foi cunhada
pelo ser humano. “O animal, que palavra! É uma
palavra, o animal, é uma denominação que os
homens instituíram, um nome que eles se deram o
direito e a autoridade de dar a outro vivente.”
(DERRIDA, 2002, p.48). Privados da palavra, em
sua mudez, os cachorros de Tatiana Blass seguem
encenando um teatro improvável. A condição de
estranhamento da obra traz à luz a própria condição
da fala humana. O teatro de cachorros e aviões faz
refletir a própria humanidade.
Outro cachorro que constrói uma cena nas
obras da artista se encontra na obra Fim de Partida.
Abordada anteriormente em outros aspectos, Fim
de Partida possui o personagem cachorro (figura
12), que é uma espécie de brinquedo feito por Clov
para Ham. Como na peça de Beckett, o personagem
64
Ham não quer esperar Clov terminar o cachorro,
ele o ganha mesmo faltando uma pata. O cachorro
então faz parte dos personagens mutilados da cena
de Fim de Partida, como todos os humanos que
possuem cada um sua impossibilidade. Mas o
cachorro de Fim de Partida é o único personagem
que não derrete em cena.
Figura 12 - Tatiana Blass. Fim de Partida (Detalhe). 2010.
Cera microcristalina, refletores, palco e objetos de cena.
5,00x8,00x4,40m.
Fonte: http://www.tatianablass.com.br
O cão de Fim de Partida pode aparecer
como um duplo de seus personagens, pois se
encontra mutilado como todos os personagens
humanos, sendo como uma cópia do corpo
humano, em formato de cachorro. Como a própria
artista afirmou em entrevista no trecho citado
65
anteriormente, o cão foi seu animal escolhido não
por uma afinidade pessoal, mas por ser o animal
que mais se aproxima do ser humano em seu dia-a-
dia, que é mais humanizado na sociedade. O animal
em um estado metafórico manifesta a condição
humana apresentada na peça de Beckett e
posteriormente na obra da artista. MORAES (2012,
p.129-130) afirma: “[...] não é o animal que
empresta suas formas para a encenação das paixões
humanas, mas, pelo contrário, é o homem que,
alargando suas fronteiras, toma posse dos
psiquismos bestiais.” O cachorro ser o duplo dos
personagens de Fim de Partida é apropriado, pois o
cão é um animal domesticado e não apresenta mais
a monstruosidade e os comportamentos selvagens
de outros animais que gozam de sua liberdade e
animalidade por completo. O homem, portanto,
assim como o cão, foi domesticado com a
civilização e perdeu sua animalidade. O cachorro,
na cultura ocidental, é tratado como parte das
famílias, tornando-se mesmo o duplo do ser
humano, sendo tratado, em alguns casos, como um.
O homem seria então, um animal domesticado,
assim como o cão.
O cachorro não é mais visto como uma fera,
ou um monstro. MORAES (2012) aponta que a
aranha, o gorila e o hipopótamo podem ser vistos
como animais ferozes que revelam uma semelhança
com os monstros imaginários, pois sua ferocidade e
aparência acompanha esse imaginário do monstro,
causando espanto e medo.
66
(...) os monstros imaginários
figuram quase sempre como um
prolongamento das formas
naturais; na sua origem não só as
espécies mais aberrantes do reino
animal que desmentem a perfeição
da fauna “acadêmica”, mas
também os homens mutilados e
deformados, que desmentem o
ideal humano. (MORAES, 2012,
p.132-133)
O cachorro mutilado também dá a ver a
imperfeição do animal e, constituído como o duplo
do próprio homem, traz à tona a imperfeição da
natureza e coloca o observador em uma condição
de estranhamento. Na história da arte ocidental
encontram-se diferentes exemplos de artistas que
representaram e tiveram um animal que retornava
em suas obras como vestígio de um sintoma que
sempre se repetia. Na arte moderna há, por
exemplo, Joseph Beyus e a presença da lebre em
seus trabalhos, ou mesmo Marc Chagall e o bode, e
Gustave Courbet e a presença do cachorro, este
último abordado a seguir como o duplo do ser
humano, o animal que o acompanha.
Gustave Courbet (1819-1877), pintor
francês, foi um dos realistas mais conhecidos. O
artista não produzia pinturas religiosas, mitológicas
ou históricas, mas se preocupava em representar o
cotidiano. “O artista moderno deve confiar em sua
experiência direta; deve ser um realista. (“Não
posso pintar um anjo, pois nunca vi nenhum”,
disse)” (JANSON;JANSON, 1996, p.328). Courbet
67
se distanciou do clássico e do romântico, mas não
nega as influências que outros artistas como
Caravaggio e Rambrandt tiveram para ele. Seu
realismo não era a imitação da natureza, ou sua
representação mimética, era encarar a realidade de
frente. Segundo ARGAN (2001), sua realidade é o
conjunto de imagens captadas pelo olho. E a partir
dessa realidade captada, o artista a resignifica,
transformando-a. O que Coubert trouxe de
diferente para a arte não foi um novo estilo, mas
um novo tema, onde, a partir do artista, as
representações do cotidiano se tornaram cada vez
mais presentes.
Courbet segundo MALPAS (2001, p.9)
estava convicto de que o tema das pinturas deveria
ser as coisas como elas são e que isso deveria
sustentá-la. O artista colocou em prática esse
pensamento em diversas obras, como em Bonjour
Monsieur Courbet de 1854, onde representa a si
mesmo caminhando pelo campo com uma mochila
de pintor nas costas e encontra seu cliente e um
criado no caminho acompanhados de um cachorro.
Também na obra Enterro em Ornans (figura 13) de
1849-1850, onde apresenta um ritual cotidiano
ocidental, onde coloca em prática seu ideal realista,
até mesmo com seus títulos literais. Na pintura, o
enterro acontece em sua cidade natal Ornans, com
personagens reais da cidade, como sapateiros,
comerciantes, funcionários da igreja, membros do
clérigo e membros da família de Courbet. Cada
pessoa foi ao ateliê do artista para posar para ele e
em meio a clérigos, homens notáveis e senhoras, o
68
cachorro de Courbet aparece em cena no ritual.
Próximo à cova, o cão de Courbet aparece de pé,
olhando para o lado oposto ao enterro como
também outros personagens que olham em direções
opostas, possivelmente por conta do mau cheiro
que exala o defunto que está sendo enterrado. O
cão é colocado em pé de igualdade com os
humanos, aparece como mais um personagem que
acompanha o enterro. A obra de Courbet poderia
ser descrita como uma vânitas, que lembra que um
dia todos perecerão, e o cão próximo à cova faz
lembrar novamente que a morte não é uma
condição exclusivamente humana, pois
compartilhamos a mortalidade com todos os seres
vivos.
O cachorro branco com manchas pretas se
posiciona próximo a um homem em destaque e as
senhoras, e se coloca em primeiro plano na pintura.
O mesmo cachorro é representado na obra
Cachorro de Ornans (figura 14) de 1856, anos
mais tarde da primeira representação. Como se
tivesse sido feita uma colagem de imagens, o
cachorro de Enterro em Ornans é duplicado
sozinho em outra tela, ganhando ainda mais
destaque. Desta vez, é colocado em meio a uma
paisagem onde não se avista nenhum outro ser.
69
Figura 13 - Gustave Courbet. Enterro em Ornans. 1849-1850.
Óleo sobre tela. 3,15 x 6,68m. Acervo Musée d’Orsay, Paris.
Fonte: www.gustavecourbet.org.
Os cachorros inseridos nas pinturas
acompanham o realismo de Courbet, e são
acrescentados em cenas cotidianas. Em algumas
pinturas acompanham seus donos em passeios, em
outras estão caçando lebres, e em outras estão
posando ao lado das figuras, como na obra
Autorretrato (Courbet com seu cachorro preto)
(figura 15) de 1842, onde Courbet se retrata ao lado
de seu cão. Sentados no chão em meio a uma
paisagem, Courbet está ao lado de seu cachorro,
que o acompanha. Segurando com uma das mãos
um cachimbo, deixou recostado a seu lado sua
bengala e um livro. Ambos olham em direção ao
observador, e o cão aparece como o duplo do
artista, pois da maneira como o cão e o próprio
Courbet se representou, ambos se parecem. Os
cabelos soltos e negros de Courbet aparecem como
uma repetição da pelagem das orelhas do cachorro
70
sentado junto a si. O cão interroga sua própria
humanidade e permanece a seu lado como um
duplo de si mesmo.
Figura 14 - Gustave Courbet. Cachorro de Ornans. 1856.
Óleo sobre tela. Acervo particular.
Fonte: www.gustavecourbet.org.
As obras de Tatiana Blass apresentam o
cachorro em um cotidiano imaginado, em meio a
um palco contracenando com aviões ou se
desintegrando ao ser derretido. Courbet apresenta o
cachorro em cenas do cotidiano, que acompanha
seu dono a um enterro, que está ocupado com a
caça, que posa ao lado de seu dono. Mas assim
como o cão que faz parte da cena de Fim de
Partida de Tatiana Blass, o cão de Autorretrato
(Courbet com seu cachorro preto) é o duplo de seu
personagem. Em Courbet o animal não está em
71
decadência ou ruína, não derrete, mas se posiciona
como personagem principal, assim como nas obras
de Tatiana Blass e ambos se mostram como o duplo
dos personagens humanos. O animal interroga a
humanidade e o cão preto sentado ao lado de
Courbet lembra que o animal pode ser pensado
como o duplo da representação humana. Courbet
pensa no cão como uma personagem, até mesmo
um protagonista, coloca o personagem cachorro em
igualdade com o personagem humano, algo que
retorna mais tarde em Tatiana Blass e permanece
em repetição.
Figura 15 - Gustave Courbet. Autorretrato (Courbet com seu
cachorro preto). 1841. Óleo sobre tela. 46,3 x 55,5cm. Acervo
do Museé Du Petit Palais, Paris.
Fonte: www.gustavecourbet.org.
72
O cão de três patas da artista revela a
decadência e o fim da vida de seus personagens
humanos, e o cão de Enterro em Ornans apresenta
a cova, lembrando que um dia todos perecerão. O
cão de Tatiana Blass repete a sina de
desaparecimento da qual os seres humanos sofrem
e o cão de Courbet repete as ações dos humanos ao
se aproximar da cova e acompanhar o enterro ou
mesmo ao se posicionar ao lado de seu dono, como
se fosse o seu eu duplicado. Os cães de Courbet
como os de Tatiana Blass lembram que a
perecibilidade e a ruína não fazem parte apenas da
condição existencial humana e que o homem
compartilha sua fragilidade carnal e sua decadência
com os animais.
73
II CAPÍTULO
PRESENÇA E AUSÊNCIA DA PALAVRA
NOS VÍDEOS E SUPORTES BIPLANARES
Ao longo de sua trajetória, Tatiana Blass foi
despertando e aperfeiçoando a escrita em suas
obras. Escreveu diferentes diálogos para seus
vídeos, pequenas prosas para acompanhar as
pinturas em algumas exposições e se apropriou da
moderna literatura de Samuel Beckett, como
abordado no capítulo anterior. Recentemente
lançou um livro infanto-juvenil pela editora Cosac
& Naify intitulado A Família Mobília, onde texto e
ilustrações são da artista.
O uso das palavras na história da arte
ganhou maior destaque com a arte moderna e
contemporânea. A arte conceitual fez uso
recorrente das palavras em suas obras e na arte
contemporânea encontram-se artistas que utilizam
com frequência textos e livros célebres como ponto
de partida em trabalhos visuais. Na poética de
Tatiana Blass as palavras adicionam mais uma
camada de leitura, nas pinturas são complementos
que carregam ficções, nos vídeos dialogam com as
situações, e mesmo na ausência das palavras,
notamos sua força mesmo na inexistência.
A presença da palavra nas obras da artista se
faz por diferentes vieses. Um deles é
acompanhando suas pinturas, como na obra Teatro
da despedida #1 (figura 16 e 17) que fez parte da
exposição Teatro para cachorros e aviões na
74
Galeria Millan em 2010, onde se mesclavam
pinturas e pequenos textos. A obra é mais uma
pintura onde cachorros e aviões convivem em uma
encenação impossível, de mesmo período da
produção de Teatro para cachorros e aviões #1,
abordada no primeiro capítulo desta dissertação. Na
exposição em que Teatro da despedida #1, um
pequeno texto foi apresentado a seu lado:
Figura 16 - Páginas 6 e 7 do Catálogo da exposição Teatro da
Despedida.
2010. Fonte: arquivo pessoal.
Seu tormento vinha do segredo que
alojava. A voz o sufocava, a
palavra saía como um grunhido,
quase só som, sem beira de sentido.
O problema era que sabia de tudo...
Tão melhor que não soubesse!
75
Conviver com aquelas palavras
escondidas era como um barulho
que coçava... e quando lembrava,
doía. Às vezes chegava a arder.
(BLASS, 2010, p.7)
Figura 17 - Tatiana Blass. Teatro da despedida #1. 2009.
Acrílica sobre tel a. 80x100cm.
Fonte: www.tatianablass.com.br
O texto fala sobre o segredo que alguém
possui e que dói guardar só para si, que seria
melhor não conhecer aquelas palavras, que
repetidas em sua mente causam dor. A artista
trabalha com poesia em prosa, e cria uma ficção
com seu pequeno texto, cria um personagem que
possui um segredo e está refletindo sobre ele. Na
pintura trabalha o visual e com o texto uma
76
narrativa, criando um jogo visual. Afirma que a
relação entre obra visual e obra textual é autônoma,
sendo que se “se você visse a pintura sem ler o
texto ou o texto sem ter a pintura, os dois
sobreviveriam bem. O texto surge muito quando
penso em mais uma camada de literatura, mais uma
camada de ficção.” (BLASS. In: BASCHIROTTO,
2014, p.58). Maurice Blanchot (2001) em seu texto
Falar, não é ver afirma que o olhar e a palavra se
distinguem no que dão a ver. Com o olhar vemos
um conjunto, mas com o limite de uma linha de
horizonte. Com a linguagem é possível ver de todos
os lados, como em um campo de visão estendido,
ampliado.
Com a linguagem é como se
pudéssemos ver a coisa por todos
os lados. (...) Então começa a
perversão. A palavra não se
apresenta mais como uma palavra,
mas como uma visão liberta das
limitações da visão. Não uma
maneira de dizer, mas uma maneira
transcendente de ver.
(BLANCHOT, 2001, p.68)
Com a pintura de Teatro da despedida #1 o
observador pode ver somente um plano, o plano da
pintura, da imagem, e com o texto é possível ver
por todos os lados, sem barreiras, como se a
palavra contasse muito mais da imagem do que a
própria imagem. “A palavra (pelo menos a que
interessa: a escrita) desnuda, sem mesmo retirar o
77
véu, e às vezes, ao contrário (perigosamente),
encobrindo – de uma maneira que não cobre nem
descobre.” (BLANCHOT, 2001, p.69). A palavra
pode desnudar mas, ao mesmo tempo, tornar
enigma. Qual seria o segredo de que escreve
Tatiana Blass, que palavras coçam e não podem ser
ditas? Seria possível uma relação do texto com a
imagem de um cachorro e um avião contracenando
em um palco? Estariam o cachorro e o avião
encenando este pequeno teatro da despedida? O
texto em Teatro da despedida #1 acompanhado de
seu título agregam ainda mais possibilidades de
leituras e enigmas que a obra pode suscitar.
Na pintura a artista constrói uma situação
que mais parece ter saído de um sonho, um
cachorro, um avião voando, a tinta escorrida em
devaneios. Seria o fragmento de um sonho?
Aqueles sonhos singulares que não podem ser
compreendidos?
Não é assim que acontece nos
sonhos? O sonho revela
descobrindo. (...) Ver no sonho, é
estar fascinado e o fascínio produz-
se quando, longe de apreender a
distância, somos possuídos pela
distância, investidos por ela. Na
visão, não somente tocamos a coisa
graças a uma distância que nos
alivia, mas a tocamos sem ficarmos
estorvados por ela. No fascínio,
talvez já estejamos fora do visível-
invisível. (BLANCHOT, 2001,
p.69)
78
Em um sonho um teatro da despedida pode
se realizar com um cachorro e um avião e a relação
desses personagens com um segredo que é
guardado por um deles. No sonho todos os
devaneios são possíveis e passíveis de acontecer.
No momento do fascínio, quando se está longe de
si, os delírios tornam-se plausíveis.
3.1 A PRESENÇA DA PALAVRA
A palavra em situação bastante elementar
está presente nas obras de Tatiana Blass. Em
diversos vídeos, como parte fundamental de suas
obras, os diálogos incluem informações sobre a
situação pela qual passam suas personagens,
adicionando camadas de ficção às imagens
fílmicas. A seguir serão abordados dois de seus
vídeos, Eletrical Room e Hard Water.
A obra Eletrical Room (figura 18 e 19) foi
produzida no ano de 2013 no Museum of
Contemporary Art Denver. A obra consiste em uma
instalação composta por duas partes, na primeira
uma pilha com diversos equipamentos
audiovisuais, entre eles dez telas onde rodam
vídeos simultâneos de personagens conversando
entre si; na segunda parte, os fios que saem desses
aparelhos atravessam a parede para outra sala e se
estendem por todo espaço expositivo, plugados nas
tomadas espalhadas no chão, nas paredes e no teto.
79
Assim como na obra Penélope, que será abordada a
seguir, Eletrical Room pode ser descrita de trás
para frente, pois não possui um começo e nem um
fim determinado, ela pode começar pelas telas e
passar para os fios, ou pode partir dos fios e chegar
às telas.
A instalação ocupa todo o espaço expositivo
e, como na figura 19, parece ser como um iceberg,
onde os televisores seriam a ponta de gelo que
aparece flutuando na água, uma pequena parte do
que esta nas águas mais profundas, neste caso os
fios. Em Eletrical Room os aparelhos se
posicionam amontoados de um lado da parede e os
fios que dão energia a eles atravessam essa parede e
se localizam na outra sala. Alguns dos aparelhos
empilhados estão ligados e neles aparecem as
imagens de atores travando um diálogo. Os atores
falam em português e há um dos personagens que
traduz todas as falas para o inglês, trazendo
também a questão da linguagem, da tradução e
discurso para compreensão do outro. Os dez
personagens são identificados como criança,
homem 1, homem 2, homem 3, mulher 1, mulher 2,
mulher 3, tradutora e velho. O diálogo permeia
barulhos irritantes que trazem incômodos aos
outros personagens, como uma mulher que fica
espirrando e assoando o nariz, e outra que fica
fazendo barulhos repetitivos com a boca.
Figura 18 - Tatiana Blass. Eletrical Room. 2013. 10 vídeos,
equipamentos audio-visuais, fios elétricos e tomadas.
Dimensões variadas. Museum of Contemporany Art Denver.
80
Fonte: www.tatianablass.com.br
Figura 19. Tatiana Blass. Eletrical Room. 2013. 10 vídeos,
equipamentos audio-visuais, fios elétricos e tomadas.
Dimensões variadas. Museum of Contemporany Art Denver.
Fonte: www.tatianablass.com.br
O vídeo começa com um homem no alto à
esquerda chamando a atenção da mulher a seu lado
81
sobre o ‘barulhinho com a boca’ que o incomoda. A
criança então diz: “Por que tem que ficar quieto?”
(BLASS, 2013), ao que outra mulher responde:
“Qual o problema do silêncio?”. A criança conclui
então que ficar em silêncio é chato. Seguindo o
diálogo, em certo momento o personagem do
velho, que está de costas para o observador, reflete
sobre o tempo: “O tempo que passa me parece
mesmo incoerente. Uma prisão com grades de
borracha, flexíveis, elásticas, que se abrem ao
menor esforço. O preso sou eu, ainda assim me
falta força pra empurrá-las” (BLASS, 2013). Em
seguida o mesmo homem que começou o vídeo
reclamando dos barulhinhos, afirma que não é
possível entender o que o velho acabou de falar, e
sugere que ele deveria se expressar de forma mais
clara e objetiva. Logo após, a mulher ao lado do
velho afirma que entendeu o que ele quis dizer, mas
que não pode transferir para suas palavras o que ele
falou:
Sei bem o que ele falou, mas eu
não detive o sentido. Então o que
eu entendi eu não posso repetir,
transferir para a minha fala. Parece
que o que eu absorvo é
rapidamente dispersado como se
fosse um entendimento inalado e
quando aspirado, solta por todo
canto, sobrando só uma
generalidade de sentido (BLASS,
2013)
A mesma personagem segue falando sobre a
atenção que teria que ser dispensada na fala do
82
velho e afirma que a fala foi murmurada de forma
tediosa por ele:
A atenção volta-se a si mesma. Eu
ouço a sua voz como um
murmúrio, uma sonoridade pouco
persuasiva, tediosa, que não ecoa
nem rebate. Eu ouço a sua voz, mas
ela não se torna nutriente nem
dejeto, apenas segue e dispersa,
sílaba por sílaba, sem pronúncia,
arredia à absorção, bloqueada à
captura, um comentário de silêncio.
(BLASS, 2013)
A fala desta personagem gera uma discussão
com o velho, que afirma que a personagem estava
mais preocupada em falar coisas sem sentido sobre
o que não entendeu e não prestou atenção em sua
fala, em vez de falar sobre o que entendeu.
Questiona também se é tão difícil ouvir, ao que ela
rebate perguntando por que é tão ruim falar sobre
sua incapacidade de ouvir. Em seguida outros
personagens discutem sobre a habilidade de ouvir,
de como é difícil apreender a fala do outro e sobre
julgar a fala do outro. Uma fumaça começa a tomar
conta do lugar onde se encontram os personagens e
a mulher gripada volta a tossir ainda mais. Depois a
mulher gripada começa a contar, de forma
descomedida, a história de como pegou gripe e
outros fatos corriqueiros de seu dia a dia quando a
tradutora pede que ela pare de falar repetindo a
palavra stop. Outros personagens pedem para ela
83
parar e afirmam que tudo aquilo soa como uma
avalanche. Ao passo que o homem ao alto à direita
afirma: “Foi o que deu pra ficar de tudo isso, um
falatório disforme” (BLASS, 2013). O vídeo
termina com os personagens quietos fazendo
somente os mesmos barulhinhos inconvenientes do
início.
O diálogo traçado suscita questões sobre a
convivência e tolerância com o outro, sobre como a
percepção que se tem da outra pessoa pode afetar a
si mesmo, sobre a alteridade. Como podem ser
compreendidas e entendidas a fala do outro.
Maurice Blanchot (2011) em seu texto A solidão
essencial afirma que escrever é tirar a palavra do
curso do mundo e interpelar o outro, relacionar a ti:
Escrever é quebrar o vínculo que
une a palavra ao eu, quebrar a
relação que, fazendo-me falar para
‘ti’, dá-me a palavra no
entendimento que essa palavra
recebe de ti, porquanto ela te
interpela, é a interpretação que
começa em mim porque termina
em ti. (BLANCHOT, 2011, p.17)
Escrever e falar consiste em colocar as
palavras em jogo, assim como seu entendimento.
Mas não somente da fala, mas também do silêncio
se trata a obra de Tatiana Blass. Seria o silêncio
84
algo tão precioso para alguns e algo tão chato para
outros? Curioso é que nem todos os personagens
emitem sons ou travam o diálogo, o homem abaixo
recostado e o cachorro também logo abaixo ficam
em silêncio por todo período. A relação barulho
versus silêncio entra em conflito e ao mesmo tempo
em consonância na obra. O barulho existe por meio
da fala, do diálogo que os atores travam entre si. E
o silêncio parece ocupar a sala ao lado, onde se
encontram os fios. Em uma sala o barulho, na outra
o silêncio, a ausência de, apenas os fios, como
alimentadores da energia do diálogo, fazem com
que os aparelhos permaneçam ligados e o diálogo
aconteça, como catalisadores de palavras. Tatiana
Blass amarra e desamarra o diálogo de Eletrical
Room, ora ele está solto, parecendo sem sentido,
ora trava uma conversa acirrada baseada na
primeira fala do velho, quando colocou em jogo a
questão do tempo, afirmando que se sentia
prisioneiro em uma prisão de grades de borracha. A
partir desse momento o diálogo se estende na
direção do entendimento desta primeira fala.
Em outro vídeo da artista, em Hard Water
(figura 20) de 2012, duas atrizes estão em uma sala
branca sentadas em cadeiras. As duas estão com as
roupas presas em fios de diversos carretéis
colocados nas paredes e no chão. O diálogo se dá
no movimento das duas atrizes e enquanto se
movem acabam por desenrolar os carretéis e
ficando presas no emaranhado de fios. O vídeo foi
realizado em uma residência artística no Gasworks,
na cidade de Londres, resultado da premiação que a
85
artista recebeu ao ganhar o Prêmio Pipa 2011. O
título Hard Water, (Água Dura em tradução livre),
faz menção à água de Londres, que possui uma
considerável concentração de calcário e o diálogo
permeia uma cacofonia na repetição da palavra
what (o que) logo no início, como se cada vez que a
palavra é repedida, ecoasse o som de uma gota de
água caindo no chão. A repetição acaba por ficar
cada vez mais frequente, e as atrizes repetem what
como se estivessem latindo uma para outra. Ao se
acalmarem, a atriz da direita do vídeo levanta-se e
começa a se movimentar pela sala, desenrolando os
carretéis e embaralhando os fios onde está presa.
Com o passar dos minutos, movimentar-se se torna
tarefa difícil de ser executada. A atriz da esquerda
que a princípio parecia não ter vontade de se mexer,
agora se vê incomodada pela movimentação da
atriz da direita, que acaba por puxar e deslocar a da
esquerda mexendo e desenrolando os fios. A atriz
da direita então derruba sua cadeira e assusta a atriz
da esquerda, que se irrita com a movimentação da
outra pessoa. As duas dialogam sobre a
incapacidade de livrarem-se dos fios e por não
saberem o que está acontecendo. O vídeo acaba
com a impossibilidade da movimentação.
Blanchot (2001) reflete sobre a palavra
encontrar, cujo significado, segundo o autor, quer
dizer tornear, dar a volta, rodear. Encontrar poderia
ser a definição da movimentação das duas atrizes,
que estão em busca de uma saída, girando em torno
dos fios. “Encontrar é quase exatamente a mesma
palavra que buscar, que diz: ‘dar a volta em’.
86
(...)Encontrar, buscar, girar, ir em volta: sim, são
palavras indicando movimentos, mas sempre
circulares.” (BLANCHOT, 2001, p.64). As duas
atrizes buscam livrarem-se dos fios ao mesmo
tempo em que giram em torno de si mesmas e dos
carretéis, complicando ainda mais a situação.
Encontrar uma saída neste caso torna-se tarefa
complicada, uma vez que, a cada passo e cada
movimento das personagens, os fios embaralham
cada vez mais. A busca é para Blanchot (2001) da
mesma espécie que o erro, que não abre nenhum
caminho, para o autor, errar é abandonar-se ao
destino. “Errar é provavelmente isto: ir ao
desencontro.” (BLANCHOT, 2001, p.65). É o
movimento que as duas personagens fazem,
desencontrando-se a todo o momento.
Figura 20 - Tatiana Blass. Hard Water. 2012. Video
performance. 10 min 57seg
Fonte: www.tatianablass.com.br
As duas atrizes presas em linhas e carretéis
estão dentro de uma sala branca, isoladas de tudo,
87
estão exiladas do mundo, como se existisse um
mundo paralelo onde uma cena como esta poderia
ser possível, a de duas mulheres sentadas como se
estivessem em uma sala de espera e de repente
veem-se presas a um emaranhado de fios. Para
Blanchot (2001) o exílio é uma exclusão: “(...) a
exclusão acontece no interior de um mundo
fechado onde, pelo jogo de quatro cantos que o
reparte sem parar, o ser do exílio vive, no entanto,
como que do lado de fora.” (BLANCHOT, 2001,
p.65). Como se esta cena inventada pela artista
pudesse ser uma plausibilidade do cotidiano.
Outra via para se pensar as obras em vídeo
de Tatiana Blass é a partir do texto de Michel
Foucault Isto não é um cachimbo de 1968, que
discute a respeito de duas obras de Renné Magritte:
A traição das imagens de 1926 e Os dois mistérios
de 1966. As obras dialogam sobre a representação e
também sobre a relação entre o texto verbal e o
visual. Foucault discute a respeito do caligrama
desfeito de Magritte, a contradição entre a imagem
e a escrita que, afirma sobre A traição das imagens
que é “inevitável ligar o texto ao desenho”
(FOUCAULT, 2006, p.249), assim como nos
vídeos de Tatiana Blass, onde o texto assume parte
do sentido da obra. Magritte desfaz o caligrama e
Tatiana Blass o refaz, forma e texto combinam-se e
fazem a obra. Os caligramas são normalmente
textos poéticos que com palavras formam uma
figura. Hard Water não é exatamente um caligrama,
mas poderia ser lido como um, como se o diálogo
das duas atrizes também contribuíssem para a
88
forma que se toma no vídeo. Quando se sentem
incomodadas por estarem presas, ou quando uma se
incomoda com a outra por esta estar se mexendo na
sala e embolando os fios, os diálogos permeiam os
movimentos e acabam por fazer parte da forma
final em que se encontram as duas atrizes.
3.2 OS DISCURSOS DE PENÉLOPE
Na obra Penélope (figuras 21, 22 e 23),
abrem-se várias camadas de ficções e
possibilidades ligadas a seu nome, ao uso do
espaço, à trajetória da artista a as possíveis
interpretações da obra. Penélope foi uma instalação
feita especificamente para a Capela Morumbi em
São Paulo no ano de 2011, quando foi convidada
para fazer um trabalho pensando o espaço da
Capela. O modo como a artista responde ao convite
abre diferentes caminhos para pensar sua obra. Seu
desejo era ocupá-la tanto por dentro quanto por
fora, pois constatou que as últimas exposições na
Capela acabavam ficando apenas em seu interior.
Sendo o espaço da Capela para exposições
específicas para o lugar, a artista o utilizou por
completo, trazendo algo singular para o espaço,
adicionando mais uma camada a ele. Na parte
interna, que pode ser observada na figura 18, a obra
consiste em um tapete vermelho de fios de lã e
chenille que está disposto desde a entrada da
89
Capela até o altar, onde está preso a um tear. Do
tear o tapete se desfaz em um emaranhado de fios
que saem pelos buracos na parede já existentes na
Capela resultado da técnica de construção em taipa-
de-pilão. Os fios que saem da edificação se
espalham por todo jardim e tomam o espaço da
vegetação existente, como se pode perceber na
figura 22. A descrição poderia ser feita de outra
forma, tomando como ponto de partida os fios
emaranhados no jardim, que entram na Capela e,
depois do tear, se transformam em tapete, pois a
obra não tem começo nem fim, não tem seu ponto
de partida definido, podendo o espectador tomá-lo
por sua perspectiva.
A exposição é um lugar de múltiplos
discursos, e o artista os rearranja a sua maneira,
como acontece nas várias camadas de pensamento
a respeito de Penélope. Ao ser produzida em uma
Capela, a obra ganha desde sua concepção um
discurso próprio do lugar, e com a obra instalada,
são agregados outros elementos que compõem um
discurso final, que também não se encontra
fechado. Cada obra possui diferentes camadas, e
cabe ao olho que a observa dialetizar e percebê-las,
e Penélope suscita diferentes camadas de ficções
quantos forem os olhares dirigidos a ela.
A obra está ligada diretamente à simbologia
de uma Capela, pois o tapete vermelho é um
elemento próprio religioso. “Eu fui chamada pela
Capela Morumbi e lá há sempre trabalhos de site-
specific e então eu queria usar algum elemento
90
próprio de uma capela, por isso escolhi o tapete
vermelho, e a partir disso a ideia foi se
desenvolvendo.” (BLASS. In: BASCHIROTTTO,
2014, p.57). No texto de apresentação da obra,
Douglas de Freitas observa que o tapete vermelho
não se conecta somente à simbologia da religião,
mas que vai além colocando em questão as relações
de poder:
A cor púrpura, muito valorizada na
Antiguidade e Idade Média, é um
vermelho escuro que tende ao roxo,
obtida através de algumas espécies
de moluscos. Eram necessárias
grandes quantidades desses
moluscos e grande mão de obra
para realizar a extração da
substância utilizada para o
tingimento, o que tornava o tecido
extremamente caro. Devido ao alto
custo, o vermelho era tipicamente
usado pela realeza e membros da
Igreja, e com o tempo tornou-se
símbolo do poder real e
eclesiástico. (FREITAS, 2011)
91
Figura 21 - Tatiana Blass. Penélope. 2011. Tapete, tear, fios
de lã e chenille. Capela do Morumbi. Fotos de Everton
Balardin.
Fonte: www.tatianablass.com.br
A religião, seu discurso de poder, as
relações que os engendram são uma das camadas
que a obra suscita. De certa maneira, o tapete
vermelho, e as relações de poder ligadas a ele,
92
tomam conta também do jardim, pois ele se estende
para fora da Capela. O tear manual de pedal
colocado no altar é o elemento que faz a ligação
entre o que está sendo feito e desfeito, entre a parte
interna e externa. Pode-se pensar o tear como uma
analogia a celebração religiosa, onde a figura do
padre ou pastor é a ligação, a conexão entre o
humano e o divino, entre aquilo que se vê e aquilo
que somente a imaginação alcança. O tear faz o
papel de conectar as duas partes da obra. É um
ponto determinante, pois a partir dele o tapete é
desfeito ou construído.
A parte externa da obra, observada na figura
22, são fios que saem dos furos da Capela por todos
os lados e tomam conta da paisagem. A artista
comenta de onde surgiu a ideia para a parte externa
da obra: “Nesse período eu havia viajado para
Minas Gerais e lá existem vários lugares com um
cipó-chumbo, que é um parasita. Ele é um monte
de fios que vai se trançando nas árvores, como um
cipó mesmo, e chega a matar as árvores.” (BLASS.
In: BASCHIROTTO, 2014, p.57-58). O cipó-
chumbo é uma planta parasita, precisando então de
outra planta para conseguir seu alimento. Seu caule
se desenvolve e se enrola na planta hospedeira, e
cria raízes que retiram a seiva do hospedeiro para
sua alimentação. O cipó-chumbo sufoca a planta
hospedeira, podendo matá-la. Em Penélope, os fios
vermelhos tomam conta de toda vegetação externa
na Capela, também a sufocando. Os fios agem
como o parasita cipó-chumbo, tomando conta de
seu hospedeiro. Depois de cinco meses de
93
exposição, a natureza sufocada volta a tomar o seu
espaço, e os fios vermelhos colocados por sobre a
vegetação, iniciam o seu desaparecimento, como
pode ser observado na figura 23.
Figura 22 - Tatiana Blass. Penélope. 2011. Tapete, tear, fios
de lã e chenille. Capela do Morumbi. Fotos de Everton
Fonte: www.tatianablass.com.br
Figura 23 - Tatiana Blass. Penélope. 2011. Tapete, tear, fios
de lã e chenille. Capela do Morumbi. Antes e depois: antes
em setembro de 2011 e depois em março de 2012. Fotos de
Everton Balardin.
Fonte: www.tatianablass.com.br
94
Penélope é um amarrar e desamarrar, é
construção e desconstrução, suscita uma dualidade,
sempre presente nas obras da artista, como em suas
obras de cera, onde a personagem, para existir, é
preciso se desconstruir, derretendo-se. Uma camada
de ficção foi adicionada em Penélope com seu
título. A personagem Penélope faz parte do livro
Odisseia de Homero. Conta Homero que Penélope
era esposa de Odisseu, e que depois de um ano de
casados, Odisseu partiu de Ítaca para a Guerra de
Troia. Penélope começa a ser assediada para casar-
se novamente, pois se passam os anos e Odisseu
não retorna para casa. Penélope assegura então que
tecerá um tapete, e que quando este tapete estiver
pronto se casará novamente. Penélope passa a tecer
seu tapete, mas durante o dia o faz e durante a noite
o desfaz, e assim ganha tempo para o regresso de
Odisseu, que demora mais de vinte anos para
retornar para Ítaca.
O mito de Penélope agregou um forte
significado à obra e a artista afirma que o trabalho
partiu do lugar da Capela e que o mito de Penélope
foi agregado depois:
Eu havia feito o trabalho e não
sabia que título dar e então a
produtora da exposição contou o
mito da Penélope, pois pensava que
havia relação. Então resolvi dar o
título, mas na verdade às vezes eu
acho que até atrapalha um pouco,
pode parecer que é uma ilustração
do mito, pois a referência é muito
forte. O trabalho veio de outro
95
lugar, era para adicionar mais um
sentido e não pra ilustrar uma
história. (BLASS. In:
BASCHIROTTO, 2014, p.57)
Embora o título possa ter tomado uma força
maior do que a esperada, a obra visual se relaciona
com o mito em sua construção e desconstrução. A
obra visual não tem intenção de ilustrar a obra
literária, mas a partir do momento que faz menção
direta à ela em seu título, a obra agrega mais uma
camada de ficção ligada ao mito de Penélope.
Depois do conhecimento do título da obra é
inerente associá-lo ao mito.
A relação da artista com a literatura pôde ser
observada no Capítulo I, quando a artista se
apropria da peça de Samuel Beckett para criar a
obra visual de mesmo nome. Em Penélope, a
literatura se faz presente não só à referência ao
mito, mas também ao ato de tecer. A relação entre
tecer e texto é estreita. Na etimologia da palavra,
segundo o dicionário Houasiss (2004), tecer tem
origem no latim, de texo, fazer tecido, entrelaçar.
Para BLANCHOT (2001) para encerrar uma
palavra em si mesma basta fechar-se em sua
etimologia, pois as palavras são muito mais do que
seus primeiros significados, estão em suspenso.
“Mas, a palavra tem seu próprio caminho; ela cria
um percurso; nós não somos desviados em seu
âmago, no máximo em seu uso.” (BLANCHOT,
2011, P.66). Também lembra que as palavras em
96
seus significados se cruzam: “Em cada palavra,
todas as palavras” (BLANCHOT, 2001, p.67).
Tecer um texto é escrevê-lo, dar vida e forma a ele,
como faz a artista em sua obra, quando tece uma
história, cruzando as palavras tecer e texto. Em
Penélope a obra está paralisada em sua tessitura,
como se a história precisasse ser interrompida, tal
qual o mito de Penélope, onde a personagem quer,
de alguma forma, congelar o tempo até que
Odisseu retorne para casa. A obra de também
suspende esse tempo da tessitura, a obra está
parada, mas, ao mesmo tempo, sugere seu
movimento de construção e desconstrução.
Penélope suscita diversas questões que a
compõem. Os modos de exibir e ver a obra
compõem seu discurso. O espaço da obra de arte, o
lugar onde está inserida, a contaminação que sofre
desse espaço e lugar, as camadas de literatura e
ficções existentes na obra, fazem parte do que é a
obra, e o modo como a obra é posta e exibida
define também como é vista. Tatiana Blass partiu
do lugar, criando uma obra específica para a
Capela, agregou um elemento próprio, um tapete
vermelho, um cipó-chumbo que toma conta da
paisagem e um elemento depois da obra pronta, seu
título. Existe uma dualidade na forma como é
instalada no local, pois não se sabe se o tapete está
sendo construído o sendo desfeito a partir do tear.
Em Penélope o fim e o começo são uma coisa só. A
obra é um amarrar e desamarrar.
97
A paulistana Edith Derdyk (1955) vem
pensando sobre o desenho e suas linhas a algum
tempo. Sua poética percorre um estreito caminho
entre artes plásticas e linguagem, entre a obra
visual e a escrita. Desenho e escrita se aproximam
em suas obras, pois pode se pensar a escrita como
um desenho. Quando escrevemos estamos
desenhando as letras, apesar de este ser um ato
automático para os adultos, as crianças quando
estão sendo alfabetizadas aprendem as letras por
vezes as encarando como desenhos. O texto não é
nada mais do que a junção de traços e linhas.
Todavia se texto é desenho então é possível pensar
na linha como texto e também como tessitura.
Sobre a aproximação entre palavra e imagem a
artista comenta em entrevista:
O trânsito entre a palavra e a
imagem é uma questão
presente desde o início da
civilização humana, calcado nas
origens da linguagem. O espaço de
fluxo entre a natureza da palavra e
a natureza da imagem me estimula,
provoca, instiga, justamente porque
tenho afinidade tanto com o
desenho quanto com a escrita,
universos que se entrelaçam
estruturalmente. (DERDYK, 2013)
Edith Derdyk pensa o texto como linhas que
se cruzam, que se agrupam paralelamente, que
estão nos papéis no plano bidimensional e que
98
invadem o plano tridimensional em suas
instalações. Na obra Varredura (figura 24) a artista
estica linhas no ar de uma parede a outra, criando
um conjunto de linhas tensionadas no espaço. As
linhas que antes tinham morada apenas nos papéis
tomam vida e invadem o espaço. Depois da
exposição acabada, a artista faz outra intervenção
nas linhas e as corta ao meio, gerando o resultado
que pode ser visto na figura 25. As linhas
tridimensionais se agrupam da mesma maneira que
as linhas no plano bidimensional, mas agora se
rompem e criam um ponto de tensão.
Edith Derdyk trabalha com a linha reta,
tensionada de uma ponta a outra, como se
estendesse as linhas de seus livros para o espaço, e
mesmo no ar sem margens ou o tamanho do livro
ou caderno para balizarem, elas continuam retas,
apenas tomam uma dimensão aumentada. Tatiana
Blass utiliza as linhas de forma orgânica em
Penélope, espalhadas pelo jardim, enosadas, que se
cruzam entre si e tomam conta do espaço. Também
em Eletrical Room e Hard Water as linhas são
sinuosas, percorrem o espaço de uma maneira
diferente que Varredura, pois sua sinuosidade faz
com que as linhas possam ter vida própria,
especialmente em Hard Water, onde se encontram
em movimento pela ação das duas atrizes.
99
Figura 24 - Edith Derdyk. Varredura. 2014. Centro Cultural
São Paulo. Imagens Katia Kuwabara.
Fonte: www.facebook.com.br/edithderdyk.
Figura 25 - Edith Derdyk. Varredura. 2014. Centro Cultural
São Paulo. Imagens Katia Kuwabara.
Fonte: www.facebook.com.br/edithderdyk.
100
BLANCHOT (2001, p.66) afirma que “a
palavra tem seu próprio caminho; ela cria um
percurso; nós não somos desviados em seu âmago,
no máximo em seu uso.” Se a palavra tem seu
próprio caminho, a tessitura dessa palavra também
o tem, então as linhas de Edith Derdyk e Tatiana
Blass fazem seu próprio percurso invadindo os
espaços expositivos. Embora existam diferenças
entre os trabalhos de uma artista e outra, a linha é
um cruzamento de um ponto ao outro, é ela o ponto
de ligação de duas partes. No caso de Varredura
liga o espaço expositivo de uma ponta a outra,
criando um novo espaço entre um bloco e outro, no
caso de Eletrical Room liga uma sala à outra, os
televisores à seus conectores, em Hard Water
prende as atrizes nas paredes e em Penélope liga o
espaço interno e externo da instalação. As linhas
são esta fonte de ligação, então no entre, são os
desdobramentos de narrativas e tanto Edith Derdyk
quanto Tatiana Blass escrevem em prosa com suas
linhas contínuas.
3.3 AUSÊNCIA DO SOM E DA PALAVRA:
SILÊNCIO
O silêncio é parte constitutiva das obras de
Tatiana Blass. Em conjunto com a palavra, a
literatura, a ruína, encontra-se o silêncio nas bordas
de cada uma. O silêncio é um intervalo, como um
101
vazio preenchido. É um vazio cheio, cheio de
silêncio. Na obra Metade da fala no chão – piano
surdo (figura 26), um músico executa cinco
músicas de Chopin em um piano de cauda enquanto
cera líquida é jogada nas estruturas do piano. A
medida que a cera vai sendo depositada no piano,
ela se transforma do estado líquido para o sólido
em poucos instantes e isto faz com que os
mecanismos do piano se paralisem. O pianista
perde gradativamente as notas para tocar e as
músicas ficam cada vez mais difíceis de executar.
Quando chega o momento em que se torna
impossível executar as músicas, o pianista se
levanta e sai de cena. Mais baldes de cera líquida
são jogados então por sobre as teclas. Ao fim da
escultura/performance, a cera tomou conta de todo
o piano em suas engrenagens, nas teclas e banha o
chão, fazendo uma poça de cera. Esta obra foi
executada duas vezes. Uma para a gravação de
vídeo, que é o registro oficial do trabalho, que foi
executado em um teatro sem plateia. A outra foi ao
vivo na 29ª Bienal de São Paulo, dentro de seu
pavilhão, com os espectadores acompanhando a
ação. Em entrevista em anexo a esta dissertação, a
artista comenta o fato de não ver o trabalho como
uma destruição do piano, mas sim como a
construção de outra coisa, uma obra de arte no
caso.
102
Figura 26 - Tatiana Blass. Metade da fala no chão – piano
surdo. 2010. Piano de cauda, cera microcristalina,vaselina,
pianista
Fonte: http://www.tatianablass.com.br
Na série Metade da fala no chão, a artista
cala instrumentos musicais, ou com cera líquida, ou
com uma prolongação do próprio instrumento. Em
Piano surdo, o instrumento em ruína se cala com a
cera. Seu som se esvai perante o material que
congela seus movimentos. As músicas que foram
tocadas tornam-se apenas lembrança para aqueles
que as escutaram. “A chamada lembrança de um
acontecimento: isso foi uma vez e agora nunca
mais.” (BLANCHOT, 2011, p. 22). O piano que um
dia foi utilizado para levar melodia aos ouvidos,
agora paralisa e se cala diante da impossibilidade
da cera. O ato de calar o som é um ato de silêncio
forçado, é uma ruína inventada.
103
O silêncio paralisante de Piano surdo faz
refletir sobre qual seria essa metade da fala no chão
de que fala o título da obra, seria um piano surdo
ou um piano mudo? Seu título sugere que é um
piano que não escuta, e por isso não transmitiria a
fala, a melodia? O que seria uma fala no chão?
Uma fala pela metade? Uma fala sem sentido? Uma
fala calada? Amordaçada? Uma fala que se escuta
apenas na mente? Uma fala esvaída em cera que
escorre por entre o piano e se prostra no chão,
caída, em forma de poça? Certamente uma fala
interrompida. E é de interrupções que se faz o
silêncio. O silêncio se esgueira por entre as falas,
encontra seu espaço no entre, no espaço do meio,
como o personagem de João Guimarães Rosa
(2005) em seu texto A terceira margem do rio,
onde um homem permanece no rio em silêncio,
longe de tudo e de todos, vivendo nessa terceira
margem, no entre, sozinho, isolado em uma canoa
rio abaixo, rio acima, calado, como coloca o autor:
“E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma.
Nós, também, não falávamos mais nele. Só se
pensava. Não, de nosso pai não se podia ter
esquecimento [...]” (ROSA, 2005, p.80)
O silêncio vive em um lugar que existe na
inversão, pela ausência da fala, como o escuro, que
existe pela ausência da luz. O silêncio é como o
escuro que não se vê, o negativo daquilo que se
escuta. Não quer dizer que seja melhor ou pior, mas
que existe pela ausência do outro. O silêncio é um
grande quarto escuro onde a mente repousa e
espera ser chamada novamente. Existe quando a
104
fala se cansa, quando o barulho cessa, quando o
instrumento pára, quando tudo ao redor dá espaço
para que o nada habite o ambiente, para que o nada
se instaure e se possa mergulhar nele. O silêncio é
um deserto, imenso e cheio de alucinações.
Uma obra com a qual se pode estabelecer
uma conexão pela questão formal de utilização de
um instrumento musical, também o piano, por ser
uma obra referencial histórica da arte, e pelo fato
de trabalhar diretamente sobre o silêncio, é a obra
Plight (figura 27) de Joseph Beuys (1921-1986)
produzida pelo artista um ano antes de sua morte. O
título em tradução livre significa “apuro” e a obra
se encontra instalada no Centre Pompidou em
Paris. Consiste em uma sala com as paredes
forradas de rolos de feltro cinza com um piano ao
centro e, em cima, um quadro e um termômetro. O
feltro foi um material muito recorrente nas obras de
Beuys, pois o artista possui uma experiência
pessoal com o material de um episódio durante a
Segunda Guerra Mundial em que estava em um
avião que foi abatido. Na ocasião estava sem
paraquedas e foi resgatado e mantido vivo,
besuntado em gordura e enrolado em feltro para se
manter aquecido. “Gordura e feltro permaneceram
como seus principais materiais [...]” (ARCHER,
2008, p.114).
Plight é uma obra que evoca o silêncio, pois
ao entrar na sala onde está instalada, o espectador
pouco escuta do que há do lado de fora dela, o
feltro faz com que os ruídos se tornem mínimos
105
nesse espaço. O pequeno e discreto termômetro em
cima do piano indica a temperatura do ambiente e
as mínimas variações que acontecem quando uma
pessoa adentra a sala. O quadro negro em cima do
piano tem linhas desenhadas, como que esperando
que uma partitura seja posta nas linhas e uma
melodia seja tocada. Mas o piano permanece
calado, nessa sala silenciosamente acústica, onde o
visitante é levado a um espaço da mudez do piano,
da ausência da fala e do som, de calmaria e
comedimento.
Figura 27 – Joseph Beuys. Plight. 1985. 284 rolos de feltro,
piano, quadro negro, termômetro médico
Fonte: www.centrepompidou.fr
106
Tatiana Blass cala o piano por meio da cera, em
uma cena trágica. Beuys cala o piano apenas o
fechando e fazendo com que a sala envolvida em
feltro abafe qualquer ruído que possa sair dele e
revela discretamente um quadro negro sem
partituras. Ambas as obras apontam o silêncio,
Tatiana Blass mostra o instrumento em seus
últimos momentos de funcionalidade, enquanto
Beuys utiliza o piano como um objeto mudo desde
o princípio. As obras indicam a interrupção do som
e do ruído, em Piano Surdo pela cera que inutiliza
o objeto como instrumento e em Plight pelo feltro,
que cerceia qualquer ruído que possa ser originado
naquela sala. O silêncio então existe quando o
barulho acaba, ele encontra seu espaço e habita o
lugar, na passagem de uma fala para a outra, no
abafamento de qualquer ruído, na interrupção da
música, na paralização de um apito.
Outra obra de Tatiana Blass, que trabalha com o
silêncio, é Apito (figura 28) de 2014. De porte
pequeno, o apito que era para ser um objeto banal
se torna uma escultura com o acréscimo da
extensão de bronze. Nesta obra, o som parece se
congelar como bronze. O metal saindo em diagonal
do apito leva a crer que o som que saía do objeto
foi paralisado e materializado, calando-se. O som
de Apito é mudo, é um som que se materializou e
passou a não emitir mais seu ruído. Pelo tamanho
da parte de bronze pode-se pensar que o apito que
foi dado e depois materializado foi um apito curto,
um leve soprar, que começou fraco e terminou
forte. Seu formato sugere uma continuidade, que
107
foi interrompida pelo silenciar do bronze. Mas para
que serve um apito? Para sinalizar? Para alertar? O
que o apito estava alertando quando foi
materializado? Não saberemos, pois o instante
pausado congelou com ele seu grito abafado. O
som do apito congelado em bronze torna-se
silêncio, e a duração de um silêncio é relativa, pode
durar um segundo em tempo real, mas parecer uma
eternidade para aquele que espera uma resposta. O
silêncio cria distâncias atemporais.
Figura 28 - Tatiana Blass. Apito. 2014. Apito e bronze
fundido. 6 x 27 x 6 cm. Edição 1/10 + 1 PA.
Fonte: www.tatianablass.com.br
Sobre silêncio, tempo e ruídos fala também
Tacet 4’33” do compositor americano John Cage
(1912-1992). A obra é uma composição musical
onde a partitura foi desenhada para que o músico
faça três movimentos mas não toque o instrumento,
108
não soe nenhuma nota. O músico deveria entrar no
palco como de costume, posicionar-se para tocar o
instrumento mas apenas executar três movimentos
durante os quatro minutos e meio de duração.
Passado o tempo o músico se retira. A composição
foi apresentada inicialmente no piano, como pode
ser visto na figura 29, mas foi feita para ser
utilizada em qualquer outro instrumento. Com
4’33” John Cage transita entre as fronteiras da
música e da arte, e a execução de sua partitura hoje
poderia ser vista como uma performance, dada sua
teatralidade, que se assemelha com Piano Surdo na
cena construída. A partitura de John Cage traz uma
concepção de silêncio que não é vazio, mas cheio,
pois enquanto o músico fica em silêncio, são
percebidos outra série de ruídos no ambiente
gerados pela plateia, em uma concepção de que o
silêncio na verdade faz com que outros sons
apareçam, seria o silêncio com as suas variações. O
silêncio na obra de John Cage não é oposto ao som,
mas convive com ele.
4’33” se aproxima de Apito quando pensa o
silêncio preenchido. Se na obra de John Cage
escuta-se o ruído da plateia, na obra de Tatiana
Blass é quase possível escutar o som do apito em
nossas mentes, como se ela completasse aquele
ruído que agora se encontra congelado. Mas
enquanto Apito materializa o ruído e o faz calar,
4’33” materializa o silêncio, colocando-o em sua
partitura como parte constituinte de sua música.
Nas obras de Tatiana Blass se encontra a ausência
da presença sonora, ou o som esvaindo-se e ruindo
109
com a cera. Em John Cage há a presença da
ausência, é o ruído considerado como constituinte,
não precisa haver uma melodia com as sete notas
musicais para que haja música. Se fossem assim
pensadas as obras de Tatiana Blass, como presenças
de ausência, também em Piano Surdo a cera
escorrendo por entre o piano e o levando à ruína
poderia ser considerada como um prolongamento
das melodias antes tocadas pelo músico. Seriam
como uma continuação da música pelos ruídos dos
baldes de cera líquida sendo jogados, até o fim das
ações quando as últimas pequenas gotas estivessem
caindo no chão.
Figura 29 – John Cage. Execução ao piano de Tacet 4’33”
por Armin Fuchs. 1952.
Fonte: www.youtube.com/watch?v=gN2zcLBr_VM
110
Silêncio como vazio, ou silêncio como
preenchimento? Existem tantos tipos de silêncio,
como bem observou o músico Alberto Heller em
sua tese de doutorado a respeito de John Cage e o
silêncio:
Ainda não sabendo se há ou não
fala silenciosa, talvez o mais
acertado seja
começar não pelo silêncio da fala,
mas pela fala sobre o silêncio. Ou
sobre os silêncios. Sim, porque há
vários: há o silêncio da falta e da
completude, da presença e da
ausência, do vazio e do pleno, do
não querer falar e do não poder
falar, do bloqueio e do indizível, da
mudez e da surdez, do calar
(tacerere / Schweigen) e da
quietude (silere / Stille) – enfim,
infinitos silêncios que se cruzam e
se entrecruzam. (HELLER, 2008,
p.10)
E será mesmo que o silêncio absoluto
existe? Quando nos calamos, paramos de emitir
sons e ruídos, mas e em nossas mentes? Muitas
vezes nem dormindo nos calamos, pois temos os
sonhos mais criativos, mais inimagináveis. É nosso
corpo que está em silêncio, não nossas mentes.
Tatiana Blass na Série Entrevista traz mais uma
forma de calar os ruídos que são emitidos durante a
fala. É uma série de obras em pintura e escultura
recentes da artista que traz cenas de personagens
dando entrevistas para a televisão, conversando
111
com repórteres, nunca sozinhos, sempre
acompanhados. Na obra Entrevista #1.2 (figura 30),
duas cabeças humanas estão presas a uma câmera
filmadora. O que seria o cameraman, captando as
imagens, está com a região dos olhos e testa
saltados, como se tivessem sido tragados pela
câmera, puxados por uma força que existe dentro
dela. Por sua vez, o personagem que faria a
reportagem e que falaria diante da câmera tem a
região da boca e maxilar tragados por ela.
Figura 30 - Tatiana Blass. Entrevista #1.2. 2013. Ferro
fundido. 25x70x30cm.
Fonte: www.tatianablass.com.br
Ainda sobre o silêncio, Blanchot afirma que
“[...] a palavra é palavra contra um fundo de
silêncio, mas o silêncio é ainda apenas o nome na
linguagem, uma maneira de dizer [...]”
112
(BLANCHOT, 2001, p.71-72). Em Entrevista #1.2
a palavra é captada pela câmera, se torna muda. A
palavra não poderá ser mais pronunciada em voz
alta na metamorfose das formas. Ao fundir uma
forma com a outra, as duas se anulam, a fala e a
câmera, que como captadora da imagem e da
palavra agora capta a forma, capta o silêncio, que
como refletiu Blanchot, é mais uma forma de dizer.
O que os olhos do personagem que olha pela fresta
da câmera enxergou antes de ter seus olhos
fundidos com ela? Seria algo tão paralisante, algo
tão atraente a ponto de os olhos grudarem-se no
aparelho que ele conduzia? Não estariam todas as
pessoas com os olhos grudados em seus aparelhos
eletrônicos na era da tecnologia? E o que a
personagem que teve a fala interrompida, tragada
pela câmera iria falar? Pois onde deveria ser
captada a imagem, a boca está devorada pela
câmera. Olhos e boca estão paralisados, mas os
ouvidos permanecem perfeitos, com as personagens
possuindo a qualidade da escuta. E o que vão
escutar agora? Talvez a inversão de papéis, pois
aquele que deveria falar agora irá ver e aquele que
deveria ver agora ainda pode falar.
Na obra, os olhos do cameraman e a boca
do entrevistado se fundem com o objeto da câmera,
acontece novamente a interrupção da fala e a ruína
das personagens. Esse silêncio paralisante faz parte
de muitos trabalhos da artista, desde seus vídeos,
como abordados anteriormente, como em Eletrical
Room, a pausa da fala incomoda alguns
personagens, pois o silêncio seria algo difícil de se
113
fazer, ou quando um silêncio desconcertante faz
parte de Hard Water. O vazio e o intervalo são
partes constitutivas das literaturas, fábulas,
personagens e histórias que a artista cria e precisam
existir para que o cheio também possa se fazer
presente, para que a fala encontre o seu lugar.
Escreveu a artista para a exposição Teatro da
despedida:
Logo soube: o silêncio refrata o
entendimento. Como soluço detido,
quando se engole em falso, quase
podre, o nome veio. Sem saúde e
sem pudor. Saiu junto a um bafo
azedo, sem espera. Pior ainda,
junto a um arroto que deveria ser
engolido, mas se soltou com um
barulho involuntário,
completamente inconveniente.
Disso veio a agonia de retroceder
no tempo, apagar aquele instante
para que ninguém tivesse flagrado
aquele ato repugnante. Devia ter
segurado um pouco mais para não
deixar sair daquele jeito. Assim,
ridículo e repulsivo, aquele nome
pôde ser ouvido. (BLASS, 2010,
p.11)
O silêncio que despedaça o entendimento,
que deveria existir onde o grunhido e a fala
encontram o seu lugar, entre um pensamento e
outro, e se esconde na fala que sai desajeitada.
Reflete Banchot que o silêncio “esta não-palavra
114
pertence à linguagem e, no entanto, cada vez que
falamos essencialmente, põe-nos fora da
linguagem, assim como não estamos jamais tão
próximos de falar quanto na palavra que dela nos
desencaminha.” (BLANCHOT, 2001, p.72). O
silêncio poderia ser então um estado iminente antes
da fala? Talvez faça parte dela, como elemento
imprescindível, como pausa entre uma palavra e
outra, entre um sussurro ou um grunhido como
acontece nos vídeos da artista. Mas e quando o
silêncio vem com um som abafado? Seria como em
Metade da fala no chão – piano surdo, quando o
som é cada vez mais aniquilado pela cera que vai
percorrendo e entrando no piano, cada vez mais
profundamente, que chega a calar suas notas. E
quando a obra sugere que o som foi interrompido
bruscamente? Seria o caso de Entrevista 1.2,
quando a fala é suplantada por uma matéria que
aparenta ser mole, gelatinosa, mas na verdade é
feita de bronze. Mas e se o som fosse
materializado, que aspecto teria? Talvez fosse como
ondas sonoras e Apito o seu início. O silêncio nas
obras da artista é materializado, é dominador de
situações, é forçado e é essencial à fala, ao texto. É
pausa necessária. É um silêncio que não apenas
cala, mas que abre espaço para imaginar.
115
III CAPÍTULO
METAMORFOSE E FANTASMAGORIA DAS
FORMAS NAS ESCULTURAS E PINTURAS
O que poderia ser considerada uma
metamorfose dentro da arte? Talvez uma
transformação da forma. Mas somente isso? Quem
sabe também uma mistura de diferentes materiais?
Ou uma nova forma de enxergar um objeto? Ou
ainda um acontecimento? Nas obras de Tatiana
Blass a metamorfose das formas se faz presente em
diferentes aspectos. Se apresenta na modificação
dos usos dos objetos do cotidiano, como os
instrumentos musicais, ou com os diferentes tipos
de materiais que a artista utiliza e que acabam por
modificar as formas, ou ainda com a cera que
derrete e se transforma nas obras abordadas no
primeiro capítulo. São diferentes tipos de
metamorfoses que as obras da artista sofrem, e
quando muda a situação, muda-se também o estado
metamórfico. Segundo o dicionário Houaiss (2009,
p.1282), metamorfose é a “mudança completa de
forma, natureza ou estrutura; transformação,
transmutação” e, na natureza, o dicionário utiliza o
exemplo da lagarta que se transforma em borboleta,
neste caso, uma mutação da forma física, como
acontece em algumas obras da artista.
Em constante transformação enquanto a
obra e a exposição acontecem, as obras em cera
116
como Luz que cega – sentado (figura 1), Coluna –
Agachado (figura 2) e Fim de Partida (figura 7),
abordadas no Capítulo I, se metamorfoseiam de
uma figuração que inicialmente as coloca como
pessoas, mas passado os dias a cera que escorre vai
configurando outras formatos para suas
fisionomias. Como se essas obras fossem como o
texto de Nuno Ramos O velho em questão, onde há
um ser que a princípio parece espectral e que pode
se transformar em qualquer coisa que toque,
embora seu maior desejo seja no fim da vida virar
uma pedra. Na metamorfose das formas, a
personagem se encontra entre homem e animal, um
ser bestial com alma humana. “Vem mais uma noite
e entre todos os animais que sou eu sou aquele
animal que dorme, nunca lembro do sonho mas sei
que durei mais um dia. Toco então o elemento em
que me transformo, às vezes porque quero, às vezes
não.” (RAMOS, 2001, p.22).
Em determinado momento, enquanto é lobo
e ataca um velho, a personagem assume a forma do
velho em questão e sendo ele, incorpora suas
lembranças. Passado algum tempo, se prepara para
um dia tocar a pedra que quer ser. Como no ciclo
da vida de cada ser humano, que um dia irá virar
um pedaço de massa sem vida, silenciosa. As obras
de cera de Tatiana Blass também se
metamorfoseiam enquanto vivem, como a
personagem de Nuno Ramos, e se transformam ao
longo de sua existência para em algum momento
serem interrompidos os refletores e a exposição
acabar, fechando seu ciclo de existência.
117
Uma obra da artista onde também se pode
encontrar a transformação das formas é Entrevista
1.3 (figura 31), da mesma Série Entrevista que foi
abordada no Capítulo II. Neste trabalho, o que
parece ser uma cabeça está presa na parede na
altura aproximada de uma cabeça humana, cinco
microfones estão presos à ela de uma forma que
parece violenta, pois desfiguraram o rosto da
personagem. Dos microfones saem seus fios, cabos
de ligação, que estão presos na parede abaixo,
distribuídos de maneira disforme. Mais uma vez
aqui o que seria dito é calado pelos microfones
pressionados no rosto. O que remete a um rosto
humano, com a adição dos microfones lembra um
ser monstruoso, talvez um polvo marinho, mas um
polvo cuja as garras são feitas de microfones e fios.
Seria um polvo impossível. Um monstro metade
humano, metade máquina. Na metamorfose entre a
cabeça humana e os microfones o que se encontra é
uma forma bestial, uma forma composta por duas
partes distintas, que ao se fixarem dão vida a uma
aparência desconhecida. Seria essa forma um
odradek, tal como Kafka descreve, um ser sem
forma apropriada?
Poderíamos ficar tentados a
acreditar que essa estrutura algum
dia teve uma forma adequada a
determinada função, e que agora
está quebrada. No entanto não
parece ser o caso; pelo menos não
há nenhum indício nesse sentido;
118
não há remendos nem fraturas
visíveis; o conjunto parece
inutilizável, mas a seu modo
completo. Nada mais podemos
dizer, porque Odradek é
extraordinariamente móvel e não se
deixa capturar. (KAFKA, In:
BORGES, 2007, p.159-160)
O odradek parece não ter função, pois está
quebrado, não é nomeado e nem se conhece sua
forma. Não se sabe para que serve o ser odradek. É
um ser que não possui um equivalente, é
inclassificável, assim como a obra de arte. Suscita a
pergunta: O que é isso? Assim como a obra
Entrevista 1.3, que na junção de duas formas
conhecidas que são uma cabeça humana e
microfones, faz com que o observador se pergunte
o que é isso? É um humano? Um polvo? O que é
aquilo, microfones? Por que estão juntos? Para qual
finalidade? Na metamorfose que sofre aquele rosto
humano desfigurado com a adição violenta dos
microfones, o odradek de Tatiana Blass transforma-
se em um ser cujo nome não conhecemos, cuja
função é ignorada e a forma não pode ser
definitivamente nominada e descrita.
119
Figura 31 - Tatiana Blass. Entrevista 1.3. 2013. Ferro fundido
e cabos de ferro. Aproximadamente 180 x 80 x 50 cm.
Fonte: www.tatianablass.com.br
De transformação também trata o livro
Metamorfoses de Ovídio, onde cada poema seu
conta uma história onde os personagens de alguma
maneira se modificam. O escritor narra suas
metamorfoses desde o início do livro quando
120
escreve sobre a criação do mundo: “Portanto, a
fértil mãe, a extensa terra. Do recente dilúvio
repassada, E pelo aéreo lume escandecida,
Inúmeras espécies foi brotando: Deu ser a algumas
com a forma antiga. Noutras enfim criou não vistos
monstros.” (OVÍDIO, 2006, p.33). Até o fim de seu
livro as metamorfoses aparecem e não seria
diferente na narração da história de Cadmo e
Hermíone, quando conta que Cadmo sai da cidade
que construiu, vaga por um longo tempo e acaba
por parar em Ilíria e lá exclama:
Ah! Sagrada talvez era a serpente.
Que no bosque matei quando
expelido. De Sidônia me vi por lei
paterna! Sacro seria o monstro, em
cujos dentes pela terra espalhei
semente infensa! Pois se dos numes
o furor se apura. Tanto, e tanto em
vingá-lo, imploro aos numes. Que
em comprida serpente me
transformem. (OVÍDIO, 2006,
p.55).
Cadmo demonstra sua vontade em se tornar
serpente, seu desejo é atendido e nela ele começa a
se transformar. Vê nascer a escama, a cauda e cai
de peito na terra. Na metamorfose ainda restam-lhe
braços e ainda pode dizer algumas palavras antes
que sua língua se fende, pois “Falecem-lhe as
palavras” como conta Ovídio (2006, p.56). Sua
esposa Hermíone o vê nessa situação e se
desespera, clama por ser transformada na mesma
121
forma horrenda. Mas Cadmo a lambe a face, e
como pode, abraça seu peito. Todos ficam
aterrados, mas ainda não com medo, pois Cadmo
ainda não tem dentes ferozes e veneno. Ao fim do
conto ele se transforma totalmente e de homem
passa a ser serpente.
As transformações que sofre Cadmo de
homem a serpente perdendo seus membros,
acrescentando escamas e o desaparecimento
gradativo da fala é similar às transformações sobre
o rosto de Entrevista 1.3, pois o ser que a artista
constrói também perde sua fala e também não
possui seus membros, como se fossem substituídos
pelos fios do microfone. Mas em vez de se
transformar de homem para animal como acontece
com Cadmo, a cabeça que a artista apresenta se
funde em uma mistura do homem com o objeto,
nesse odradek, nesse ser que não se sabe nomear.
4.1 AS METAMORFOSES E USOS DA
MATÉRIA
Nas formas metamorfoseadas de Tatiana
Blass juntam-se diferentes meios e matérias que se
combinam para formar as obras. Em Entrevista 1.3
se fazem presentes na escultura de ferro fundido
com a adição de fios de microfone, e até mesmo os
microfones de ferro, que lembram os originais. A
obra se torna uma instalação a partir do momento
122
em que ocupa o espaço, mas rompe os limites não
apenas da escultura, sendo uma instalação, mas a
própria obra posta presa na parede remete a uma
pintura. Outro exemplo que mistura diferentes
linguagens da arte é Metade da fala no chão –
piano surdo (figura 26), obra abordada no capítulo
anterior, que faz uma combinação de escultura,
performance, instalação e vídeo. Montada duas
vezes, como já mencionado no capítulo anterior, a
primeira versão, produzida em um teatro, é
registrada em vídeo que permanece na exposição
da 29ª Bienal de São Paulo, junto ao segundo
piano, que foi acompanhada a performance pelo
público. A obra também é uma performance,
pressupondo a ação e a cena construída, pois o
público pôde acompanhar na abertura da exposição
o pianista executando as músicas e a equipe
aplicando a cera líquida. Piano Surdo ainda pode
ser vista como uma escultura, dada sua
tridimensionalidade, mas também uma instalação,
pois conversa com o espaço e o utiliza para sua
realização, considerando que a cera está também no
chão, abaixo do piano.
Tatiana Blass designa suas obras em cera
como esculturas-performances e abre uma fenda
para se pensar a respeito dessa junção de
linguagens. O artista brasileiro Tunga (1952),
abordou esta junção criando o termo instauração,
onde “o conceito visava inicialmente substituir o
uso impróprio dos termos ‘instalação’ e
performance.” (LAGNADO, 2001, p.371). O
artista reflete sobre a nomeação e o discurso, que
123
criam conflitos de interpretações. Lisete Lagnado
em seu texto A Instauração: um conceito entre
instalação e performance lembra que as expressões
“escultura de ação” ou “pintura viva” são
expressões recentes que sugerem uma mudança na
percepção da estrutura do sujeito-objeto e afirma
que:
Para um futuro próximo, o
problema colocado pela
instauração diz respeito às
condições de existência de um
artista que expõe os resíduos de
uma passagem transitória sobre a
matéria. [...] os efeitos da
temporalidade sobre a arte nunca
assumiram uma expressão tão
direta: intensificar a duração
apenas enquanto ela está durando.
(LAGNADO, 2001, p.376)
Essa mistura de diferentes formas de se
fazer arte como quando trabalha com suas
esculturas/performances ou com instauração, para
usar o termo cunhado por Tunga, não foi inventada
por Tatiana Blass, ela é consequência da arte
moderna, da qual a artista é herdeira. E talvez quem
primeiro deu-se conta dessa mistura de técnicas e
sua não-hierarquização foi o francês Henri Matisse
(1869-1954). Pode-se pensar nessa junção de
diferentes técnicas feitas por Tatiana Blass como
uma herança do que Yve-Alain Bois definiu como
arquidesenho em seu texto A pintura como modelo,
onde reflete sobre a consciência que Matisse
124
possuía sobre essa não diferenciação. O artista cria
uma nova equação para a relação entre desenho e
cor. Desenho e pintura andam juntos, não há
diferença entre um e outro. Matisse afirma:
Quando uso tinta, tenho uma
percepção da quantidade –
superfície de cor – que é necessária
para mim, e modifico seu contorno
a fim de determinar claramente, e
de maneira definitiva, meus
sentimentos (Chamemos a primeira
ação de ‘pintar’, e a segunda de
‘desenhar’). No meu caso, pintar e
desenhar são uma coisa só. Escolho
a quantidade de superfície colorida
e faço com que ela se ajuste ao
meu sentimento do desenho [...].
(BOIS, 2009, p.68)
No caso da obra The dessert: hamnony in
red (figura 32), Matisse utiliza a cor vermelha em
todo o ambiente. A obra é um híbrido entre
desenho e pintura, pois não se sabe delimitar
exatamente os objetos. A estampa da parede é a
mesma da toalha de mesa, e o observador fica sem
saber o que é mesa e o que é parede. O ambiente
todo se funde em função do vermelho que toma
conta da sala de jantar e abre apenas uma fenda no
canto esquerdo quando se avista uma paisagem,
onde não está claro se é possível vê-la porque ali se
encontra uma janela aberta ou se é um quadro
pendurado na parede. Esta obra se encaixa no
conceito de arquidesenho, quando desenho e
125
pintura convivem na mesma obra e quando não há
hierarquia entre as técnicas.
Figura 32. Henri Matisse. The dessert: harmony in red. 1908.
Óleo sobre tela. 180 x 220 cm
Fonte: www.henrimatisse.org
Esse pensamento sobre o arquidesenho que
Bois reflete é na verdade inspirado no conceito de
arquiescrita cunhado por Jacques Derrida em seu
livro Da gramatologia, onde o autor retira toda a
ordem e hierarquia do discurso e escrita. Bois então
apoiado nesse raciocínio origina o termo
arquidesenho para refletir sobre as questões que
Matisse levantou na arte, quando ignorou a
separação entre a concepção e execução e entre
desenho e cor. O desenho e a pintura seriam um
espelhamento de uma técnica na outra. A cor não
126
está hierarquizada, o artista consegue fazer essa
ruptura entre desenho e cor, onde ambos misturam-
se. O artista cria uma nova equação para a relação
entre desenho e cor, na quantidade-qualidade.
Matisse faz esse salto primeiro com suas
xilogravuras, com contornos espessos e grandes
áreas de branco. Depois preocupa-se em conseguir
a mesma qualidade em suas pinturas como em The
dessert: the harmony in red.
Bois afirma: “Matisse, para a opinião geral
o maior colorista do século, frequentemente
considerasse seus desenhos mais bem-sucedidos do
que sua pintura: [...] o arquidesenho atua de
maneira mais direta no desenho, desnudando a
disposição do espaço.” (BOIS, 2009, p.76). O autor
ainda afirma que durante muito tempo a cor era
apenas o complemento do desenho, quando os
artistas começavam por ele e depois acrescentavam
a cor. Matisse executa seus desenhos pensando na
cor, mesmo a branca do fundo, no espaço que
ocupa e cria suas pinturas também com o desenho,
com contornos espessos. A própria pintura em
Matisse é um contorno. Mas o artista, segundo o
autor, não acreditava que existia uma hierarquia a
ser resolvida, para ele, ela nunca existiu.
[...] quando se tornou impossível
distinguir entre o limite e a divisão
que ele forma na superfície,
impossível contrapor um contorno
do que ele contém, quando o
desenho passou a ‘dominar’, a
ponto de o próprio espaço tornar-se
o principal determinante das
127
relações de cor – foi então que
Matisse pôde começar a enaltecer a
cor. (BOIS, 2009, p.80)
O arquidesenho então é a não-hierarquia
entre desenho e cor, uma questão da qual muitos
artistas que vieram depois de Matisse
internalizaram em seus trabalhos. Tatiana Blass é
mais uma herdeira desse pensamento da mistura
das técnicas, de tratá-las não mais como uma
melhor que a outra, mas trabalhar em conjunto,
com diferentes meios e materiais para que a obra
seja executada da melhor forma possível.
Importante ressaltar que que outros teóricos
pensaram a artista frente à Matisse, como pode see
observado em fortuna crítica sobre a artista ao final
deste trabalho. Mas nenhum texto faz essa
observação com relação ao arquidesenho, com a
junção de diferentes técnicas, essa não
hierarquização.
A metamorfose então pode ser uma questão
matérica, onde uma técnica imbrincada na outra se
transforma em outra coisa, em um arquidesenho na
junção do desenho e da pintura ou em uma
instauração na combinação de instalação e
performance. Matisse enalteceu desenho e cor, para
andarem lado a lado, e por mais inconscientes que
os artistas contemporâneos sejam a respeito do que
o artista levantou na arte, hoje há uma recorrência
na mistura dos materiais, uma junção de
linguagens, metamorfoses e hibridação de técnicas,
que também se faz presente nas obras de Tatiana
Blass.
128
4.2 A METAMORFOSE COMO UM
ACONTECIMENTO
Assim como Piano Surdo (figura 26) e
Apito (figura 27), abordadas no Capítulo II, outras
obras fazem parte da série Metade da fala no chão
de Tatiana Blass que conta em sua maioria com
instrumentos musicais que são calados, desde o
piano até uma bateria ou uma tuba. Alguns
instrumentos são calados com a cera, outros com
tubos de latão e ainda com bronze fundido como é
o caso da obra Clarinete (figura 33).
Figura 33 - Tatiana Blass. Metade da fala no chão – Clarinete.
2012. Clarinete e bronze fundido. 10 x 180 x 30cm.
Fonte: www.tatianablass.com.br
Nesta obra um clarinete é inutilizado como
um instrumento musical por meio de sua junção
129
com o ferro fundido, que parece perpassar por entre
o tubo do instrumento e vazar em algumas partes
ao longo de sua extensão para desembocar na
abertura de onde o som deveria sair, agora ocupado
com um material escuro endurecido após um
aparente processo de derretimento. O instrumento
parece ter sido dissolvido em algumas partes, como
se fosse mais uma de suas obras em cera, mas dessa
vez ao contrário do derretimento acontecendo,
vemos um resultado final de um derretimento falso
na junção do ferro fundido com o clarinete. O
instrumento que se transformou, deu lugar a um
novo formato, a uma forma que carrega a junção de
dois materiais diferentes, um instrumento musical e
um material em uma forma bruta, o ferro fundido,
mas que com a sugestão de um derretimento que
teria acontecido, torna-se uma forma orgânica que
perpassa o objeto.
O gesto de metamorfosear os objetos não é
uma característica que se encontra apenas nas obras
mais recentes da artista. No início de sua produção
artística, Tatiana Blass trabalhou com um
derretimento simulado em Cauda Cadeira (figura
34). Nesta obra uma cadeira aparece em uma sala
expositiva com uma parte de seu assento faltando,
como se tivesse sido abocanhado e, como uma
extensão de si, um aparente escorrido cor de rosa
claro vai do assento até o chão. Em Cauda
Cadeira, assim como em Clarinete, o derretimento
e dissolução do material se faz presente (mas como
já observado, com certa diferença da cera nas obras
da artista) pois ambas possuem um escorrido que
130
não é maleável, que se faz de uma ilusão. Como se
a cadeira feita de madeira pudesse estar derretendo,
sendo feita de um material flexível e, além disso,
sua cor rosa laqueada desse um tom onírico à obra,
como se ela tivesse saído de um conto de Lewis
Carroll, o escritor de Alice no país das maravilhas.
Os objetos derretidos ou que sugerem um
derretimento fazem parte das ficções imaginadas
pela artista e traem os olhos do observador com as
ilusões de sua dissolução.
Seriam essas ilusões acontecimentos?
Talvez as conjunções de materiais que tanto fazem
parte das obras da artista. No livro A dobra:
Leibniz e o barroco Gilles Deleuze reflete sobre o
que é um acontecimento em um de seus capítulos e
afirma que “o acontecimento produz-se em um
caos, em uma multiplicidade caótica.” (DELEUZE,
2011, p.134). Seriam os derretimentos de Tatiana
Blass fruto de um caos então? Deleuze trata do
caos como uma abstração e se pergunta como o
caos se torna alguma coisa, que seria quando algo
acontece. E aponta algumas condições para o
acontecimento, uma delas seria a extensão. “Há
extensão quando um elemento estende-se sobre os
seguintes, de tal maneira que ele é um todo, e os
seguintes, suas partes.” (DELEUZE, 2011, p.135).
Talvez os objetos metamorfoseados da artista
possam ser vistos como extensões, onde um
material se funde com outro e se torna ele mesmo,
onde o ferro fundido encontra o clarinete, ou onde a
cadeira estende-se por si mesma em seu
derretimento impossível. “As extensões não param
131
de se deslocar, ganhando e perdendo partes levadas
pelo movimento.” (DELEUZE, 2001, p.139). Estão
em constante movimento.
Figura 34 - Tatiana Blass. Cauda Cadeira. 2005. Cadeira de
madeira e madeira laqueada.
100 x 150 x 200 cm.
Fonte: www.tatianblass.com.br
O acontecimento seria ainda como o gesto
de produzir uma vibração em tal potência, como
uma onda sonora, como um material que se dilui e
se transforma em outro, como uma extensão, como
132
os materiais de Clarinete e Cauda Cadeira, que
diluem e se transformam, deixam de ser um
instrumento musical e uma cadeira e passam a ser
um outro objeto, uma escultura. A vibração produz
novos encontros e aproximações com diferentes
materiais ou pensamentos. Deleuze ainda aponta
outra condição para o acontecimento que seria as
séries extensivas vistas como intenções e
intensidades, como na transformação dos materiais
nas obras de cera da artista, que se modificam por
meio da intenção da luz acesa e dependem de sua
intensidade para acontecerem, como um desígnio.
E mais um componente do acontecimento seria o
indivíduo, fundamental na apreensão dos
elementos: “Se denominamos elemento o que tem
partes e é uma parte mas também o que tem
propriedades intrínsecas, dizemos que o indivíduo é
uma ‘concrescência’ de elementos” (DELEUZE,
2001, p.136). O indivíduo faria parte então de uma
quase anomalia, de uma afluência entre a obra e o
indivíduo.
Em clave semelhante, o acontecimento faz a
junção de componentes díspares. CHEREM (2010,
p.126) escreve:
Daí decorre o entendimento de que
a arte se constitui como território
que abriga tudo aquilo que é tecido
pelo pensamento, aceitando as
combinações paradoxais de
probabilidades e possibilidades,
através das quais tanto
comparecem as noções operatórias
situadas no domínio do plausível,
133
da exatidão e precisão documental,
como os procedimentos para onde
conflui a escala ficcional.
Essa lógica de combinações de partes
distintas e em movimento acontece em Vaga
(figura 35) onde um carro é atolado ao concreto da
rampa de estacionamento em frente à Galeria
Millan em São Paulo. Vaga fez parte da exposição
individual da artista em 2012 na galeria que a
representa. Intitulada Acidente, a exposição ainda
contava com pinturas e esculturas da artista no
interior da galeria. Em Vaga, o carro atolado na
rampa parece ter subido no concreto ainda mole,
como se o carro tivesse sido submergido em parte
deste concreto. Mas assim como o escorrido de
ferro fundido de Clarinete e a madeira de Cauda
Cadeira, o concreto de Vaga permanece rígido e
com uma limpeza a sua volta, em uma fundição da
calçada com o carro impecável, onde não se nota
seus resquícios.
Nesta obra a artista tira um automóvel de
circulação, em um estado de paralização no
concreto. A obra suscita diferentes questões,
algumas como a relação da duração, a permanência
da obra, que durou o tempo em que a exposição
aconteceu, outras com relação ao que pode
significar um carro atolado em uma cidade como
São Paulo, onde o trânsito carregado faz parte da
vida de seus moradores, ou ainda sobre um tempo
paralisado, sobre um objeto neutralizado, como o
carro, que não cumpre mais sua função, assim
como todos os objetos que foram
134
desfuncionalizados pela artista, como os nesta
seção abordados, o clarinete e uma cadeira. Os
objetos são encontrados em uma situação incomum
a seu uso e são produzidos intencionalmente como
extensões um do outro na junção de suas matérias.
Figura 35 - Tatiana Blass. Vaga. 2012. Carro Mazda e Fulget.
150 x 300 x 500 cm.
Fonte: www.tatianablass.com.br
Outro componente do acontecimento de
Deleuze seriam ainda os objetos eternos como
possibilidades que se realizam nos fluxos, como
questões que se repetem, como o derretimento e
dissolução das coisas em Tatiana Blass. Seria o
acontecimento como fluxo, um mesmo rio, mesma
coisa e ocasião. Como um fluxo da poética da
artista, de seu gesto, que retorna. Ainda para
Deleuze o acontecimento é “ao mesmo tempo
135
público e privado, potencial e atual, entra no devir
de outro acontecimento e é sujeito do seu próprio
devir.” (DELEUZE, 2001, p.137). O acontecimento
presente denota o futuro, como em Vaga, onde a
obra poderia ser o momento de uma paralização de
um acontecimento, pois o carro poderia estar
submergindo ainda mais do que está no tempo
presente.
O acontecimento se produz em um campo
de problemas, agrega elementos díspares mas os
tornam coisas plausíveis, seria um modo de
articular, de produzir sentido. “Há concerto esta
noite. É o acontecimento. Vibrações sonoras
estendem-se, movimentos periódicos percorrem o
extenso com seus harmônicos ou submúltiplos.”
(DELEUZE, 2011, p.141). Um concerto é um
acontecimento pois em seu arranjo encontram-se
diferentes instrumentos que juntos formam o todo.
Seria também o calar do som da série Metade da
fala no chão um acontecimento? A ausência do
timbre, da intensidade do som, poderiam ser
também acontecimento? Na junção das formas
metamorfoseadas das obras com materiais
improváveis que se encontram como um piano e a
cera líquida, o clarinete e o ferro fundido, a cadeira
e seu escorrido laqueado e o carro e o concreto, o
acontecimento se encontra em sua junção, na
formação de inflexões, de linhas curvas e orgânicas
e formam as obras de arte.
Uma obra que poderia ser pensada como o
resultado das vibrações de um acontecimento é
Catedral #2 (figura 36), de Felipe Cohen (1976). O
136
artista traz um pregador de roupas aberto e no
espaço onde estaria vazio entre uma forma vertical
e outra há mármore travertino preenchendo o
espaço. A obra, de pequena envergadura, suscita
questões sobre o preenchimento do vazio, sobre
positivo e negativo, dentro e fora e entre outras
coisas sobre a apropriação de objetos do cotidiano,
como mesmo faz Tatiana Blass ao utilizar
instrumentos musicais, apitos, microfones, cadeira
e até um carro para construir suas obras.
O artista esteve na mesma exposição
coletiva com Tatiana Blass intitulada Quase
Figura, Quase Forma na Galeria Estação em 2014
com curadoria de Lorenzo Mammì. Na exposição
em questão, apresentou duas obras bidimensionais
e duas tridimensionais. Eram duas colagens com
papel e duas esculturas com junções de diferentes
matérias, uma com uma lâmpada que descia do teto
até chegar quase ao chão, onde se fundia com uma
taça (Anunciação), e a outra foi Catedral #2. Tanto
as obras de Felipe Cohen quanto Vaga de Tatiana
Blass podem ser pensadas como um acontecimento
que se deu por meio de combinações peculiares de
materiais não usuais.
137
Figura 36. Felipe Cohen. Catedral #2. Pregador de madeira e
travertino romano. 16,5 x 9,5 x 2 cm.
Fonte: www.galeriamillan.com.br
Ambos se apossam de objetos de uso banal
e agregam outros materiais que são, por vezes,
muito distintos uns dos outros, como é o caso de
Catedral #2 onde a madeira do pregador é colocada
junto com o mármore que o preenche, ou com Vaga
onde o carro é, de certa forma, também preenchido
até certo momento pelo concreto. A dualidade da
matéria agrega sentidos e torna o acontecimento
um campo de problemas, onde a junção de
138
diferentes materiais se torna plausível nas ficções
dos artistas. Tanto em Tatiana Blass como em
Felipe Cohen as obras são feitas a partir da criação
de objetos incomuns à obra de arte tradicional,
evidente que não são os únicos e nem os primeiros,
mas entre os dois há percepções e conjunções
semelhantes no tratamento das obras, na utilização
de materiais distintos e nas proposições inusitadas
ao observador. Ambos são produtores de
acontecimentos, de vibrações e intenções
transformadas em obras de arte.
4.3 A OBRA FANTASMAGÓRICA
Na metamorfose das formas das obras de
Tatiana Blass é possível encontrar humanos que se
unem a microfones ou câmera filmadora, objetos
que perdem sua utilidade por meio da cera derretida
e ganham novos significados. Mas também em suas
pinturas os corpos humanos e de animais parecem
estar, assim como a cera, escorrendo, esvaindo e
sumindo aos poucos nas camadas de tinta que são
acrescentadas durante o processo de criação da
obra. São pequenos detalhes que dão a ver uma
fantasmagoria nas personagens. Como na obra
Voltando pra casa (figura 37), uma pintura de
tamanho maior do que as obras recorrentes da
artista, tamanho este que talvez se fez necessário
para haver a distância que existe entre as duas
personagens.
139
Como o título dá uma indicação, a obra
pode talvez contar uma história sobre duas pessoas
que estão retornando pra casa. Onde poderiam
estar? Em um ponto de ônibus? Em um salão no
fim de uma festa? Na própria casa? Talvez em um
vagão de trem, ou em um ônibus retornando para
suas casas. Na obra a personagem da esquerda
parece ser um homem, que está de pé, pálido,
vestindo um paletó e camisa, com a cabeça
inclinada fitando a outra personagem, que parece
ser uma mulher. Seria ela um fantasma? Talvez o
homem se pergunte. Pois a mulher parece sumir
aos poucos no meio do empaste da tinta. Suas
feições não podem ser vistas com tanta nitidez e
uma parte de si está atrás de um bloco verde de
pintura, talvez uma janela, onde ela estaria metade
para fora, metade para dentro. A mulher com
aspecto cadavérico olha fixamente para frente e,
séria, não esboça grandes emoções. Sua cabeça está
cortada da metade da testa para cima, e não
conseguimos ver o restante de seu corpo. Esse
trem, vazio, e apenas com esses dois passageiros,
as cores pálidas, escuras, dão a perceber uma noite
escura, talvez adentrando a madrugada. O trem
fazendo o seu último horário, e esses dois
passageiros, a mulher, que parece um ser espetral e
o homem, que a observa fixamente sem parecer
entender o que está vendo, fazem companhia uma
silenciosa um para o outro.
Voltando pra casa poderia ser mais uma
pintura que retrata o cotidiano, duas pessoas
retornando do trabalho cansados, pálidos. Mas a
140
pintura da artista dá a ver algo além de uma
representação de um cotidiano enfadonho, mostra
um dado de fantasmagoria para o observador atento
aos detalhes. Observar com atenção uma obra é
perceber as relações, as ficções possíveis em seus
detalhes. Desde o tamanho dela, que diz também
sobre o que está sendo colocado, até mesmo olhar
com atenção para perceber pequenas nuances de
cores, de blocos pictóricos que podem trazer algo
de inesperado.
Figura 37 - Tatiana Blass. Voltando pra casa. 2014. Óleo
sobre tela. 100 x 235cm.
Fonte: www.tatianablass.com.br
Didi-Huberman (2013), no apêndice de seu
livro Diante da Imagem, reflete sobre a questão do
detalhe e do trecho, é preciso ver em detalhe. O ato
de ver aproxima, antecipa e imita o saber. Ver em
detalhe no sentido filosófico envolve se aproximar
para dividir e ver em pedaços. Depois voltar a olhar
os pedaços para ver o todo. Em Voltando para casa
o detalhe estaria no tom de fantasmagoria que a
obra possui, que apesar de sutil, pode ser
141
encontrado, não apenas nessa obra, mas em outras
da artista, com seus personagens se dissipando, ou
pela ação de um refletor que derrete a cera, ou pelo
escorrido da tinta e suas camadas, que parecem
também lentamente desconstruir os personagens.
“O detalhe seria – com suas três operações:
aproximação, divisão e soma [...]” (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p.298). No caso da
observação de Voltando para casa seria pensar nas
aproximações que podem ser feitas, depois olhar
cada parte em separado e por fim voltar a somá-las
para ver o todo. Didi-Huberman (2013) afirma que
Lacan ao tratar do detalhe diz que este é uma
alienação. “[...] é uma escolha lógica, uma
alternativa na qual somos forçados a perder
alguma coisa, de qualquer maneira” (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p.303). Ou seja, na verdade o
detalhe é sempre visto e a pintura ou obra como um
todo é algo que escapa. Como na obra de Tatiana
Blass, que captou o instante em que o homem está
de pé, possivelmente porque acaba de se levantar
para sair do trem, e fita a mulher. A cena
apresentada pela artista é um único instante da
viagem que os dois personagens estão fazendo, é
um detalhe de todo o trajeto. Uma escolha do
momento a ser apresentado. O autor ainda nos
convida a apreciar os detalhes que estão além do
que é dado, o detalhe do invisível, como o detalhe
fantasmagórico da obra da artista, que permanece
como um sintoma em suas obras.
Os fantasmas são seres espectrais de
pessoas e animais que estão mortos, não vivem
142
como os vivos, mas fazem suas aparições para eles.
Mas e quando um aspecto fantasmal encontra
forma num ser ainda vivente? E quando a morte
parece iminente no caminhar das horas? A obra de
Tatiana Blass pode ser relacionada com a Série
Trágica (figura 38) do artista Flávio de Carvalho
(1899-1973), quando este faz uma série de
desenhos de sua mãe agonizando no leito de morte.
O artista é uma importante referência da arte no
Brasil, Tatiana Blass não o cita como alguém que
foi importante para sua carreira, mas certamente
por seu referencial teórico conhece e teve contato
com as obras do artista. Na Série Trágica a
fantasmagoria aparece no momento exato da morte,
quando se está entre viver e morrer, quando o corpo
está no caminho do meio do corpo vivo e da forma
espectral. Os desenhos de Flávio de Carvalho dão a
ver a tragédia humana, a morte. E, à medida que o
artista segue em seus desenhos, a forma humana
vai se esvaindo, tornando-se uma forma cada vez
mais translúcida com o papel, fantasmagórica. “Em
sua obra, seja pictórica ou arquitetônica, os
desenhos ou a parte mais experimental, o enfoque é
constantemente no indivíduo e em suas emoções
originárias: o sentimento do medo, de dor, de
prazer, de alegria e de angústia diante da vida e da
morte.” (OSORIO, 2009, p.12).
A mulher de sua Série Trágica agoniza e se
esvai no engendramento do artista, vai tendo cada
vez menos traços para sua representação e quando
eles são marcados, parecem indicar um sofrimento
maior. Os desenhos do artista lembram o ser
143
fantasmal de Tatiana Blass, que parece estar
sumindo do vagão de trem, uma personagem que se
encontra pela metade, assim como a mulher que vai
definhando e está entre a vida e a morte. Mas ao
contrário da personagem de Flávio de Carvalho, o
ser espectral da artista não parece estar sofrendo,
pois não esboça grande expressão facial, olhando
fixamente para frente e séria. O oposto do corpo
agonizante que o artista coloca em seus nove
desenhos, que dão a ver o sofrimento e angústia,
como se a mulher também estivesse sendo
derretida, como a cera que se transforma em
líquido de Tatiana Blass.
Foram muitos os artistas que trataram do
tema da morte ou das questões que os cercam.
Sobre as representações de Flávio de Carvalho
sobre a morte, Osorio comenta: “O trato com o
elemento mórbido, com a morte, não é encarado na
sua obra como negação da vida, uma angústia
imobilizadora e esterilizante, mas como algo que
lhe imprime uma urgência existencial, uma vontade
singular de testar limites e pô-los em xeque.
(OSORIO, 2009, p.12). O artista traz a morte com
expressões de dor, agonia, sofrimento, enquanto
nas obras de Tatiana Blass a violência é silenciosa,
com homens derretendo e seres pintados esvaindo-
se em estado de apatia.
144
Figura 38 – Flávio de Carvalho. Série Trágica. 1947.
Carvão sobre papel. 9 desenhos cada um com 69,4 x
50,4cm.
Fonte: www.mac.usp.br
Flávio de Carvalho possui uma
expressividade em seu gesto, e como tal manifestou
ela não somente em sua Série Trágica que, apesar
de utilizar poucos traços e presar pela simplicidade,
trás um dado de violência desconcertante. O artista
também em suas pinturas possui uma
fantasmagoria, uma presença espectral como no
retrato que fez de Mário de Andrade (figura 39). A
obra de pinceladas largas e soltas carrega consigo
uma fantasmagoria que, segundo OSORIO (2009,
p.28), assustou até mesmo o próprio retratado, que
145
afirmou que Flávio de Carvalho trouxe à tona em
seu retrato aquilo que ele quer esconder dos outros,
seu lado tenebroso. A pintura traz o retrato de
Mário de Andrade sentado, de terno azul, olhando
para o observador com a boca entreaberta
parecendo querer dizer algo.
Figura 39 – Flávio de Carvalho. Retrato de Mário de
Andrade. 1939. Óleo sobre tela. 111 x 80 cm.
Fonte: OSORIO, 2009.
146
Aqui, como com o ser espectral de Tatiana
Blass, a tinta empastada e borrada propositalmente
não deixa que os contornos se sobressaiam e o
corpo parece estar ligeiramente se misturando com
o fundo, como o ser fantasmal em Voltando pra
casa que se funde com o bloco verde de tinta. O
fato de a pintura ser sido feita com pinceladas
agitadas faz com que a metade direita do rosto do
retratado fique com manchas avermelhadas,
sugerindo até uma leve desfiguração da forma. O
retrato sombrio traz então seu lado fantasmal na
metamorfose da tinta de pinceladas largas.
Se em Retrato de Mário de Andrade Flávio
de Carvalho encontrou o lado tenebroso de seu
retratado, se pode pensar o mesmo a respeito dois
personagens da sombria pintura Teatro #5 (figura
40) de Tatiana Blass. Nela estão dois personagens,
um de pé, outro sentado. A pessoa de pé pode ser
um homem e está vestido com uma cor escura, que
se mistura com o fundo e a pessoa sentada, uma
mulher, pois parece estar trajando um vestido ou
uma espécie de túnica vermelha. Ainda aos pés do
homem parece haver um objeto, que não se
consegue identificar completamente, talvez um
pedaço à mostra do banco onde a mulher se senta.
Se os dois personagens estão encenando um teatro
como o título sugere, eles o fazem em um palco
escuro, onde o cenário parece conter paredes verdes
que se misturam com o chão, posicionadas em dois
planos. O primeiro seria a parte esquerda do
quadro, onde há apenas o cenário, e o segundo
onde estão os personagens, ao lado direito e onde
147
na parede há uma fenda, de onde as personagens
parecem ter surgido. O homem está parado, imóvel
com os braços colados ao corpo e olha para sua
frente. A mulher, por sua vez, sentada um pouco à
frente e ao lado do homem, está sentada com as
mãos pousadas no colo, e que poderia estar
segurando um pequeno pano. Sua cabeça também
olha para frente e seu cabelo não pode ser visto,
como se estivesse fundido com o fundo em uma
mancha maior de uma mistura do verde do fundo
com o avermelhado de sua roupa. Os rostos e
expressões de ambos não podem ser vistos com
clareza, uma vez mais que suas formas se
dissolvem com o fundo.
Em Teatro #5 a fenda de onde o homem está
saindo ou onde se encontra parado, poderia ser uma
ligação entre o que é terreno e o que é sobrenatural,
como um portal fantasmal, de onde esses dois seres
espectrais pudessem ter saído. As formas difusas do
homem e da mulher e os borrões que os formam
dão um aspecto soturno à obra. O homem e a
mulher parecem ser assombrados por eles mesmos,
como se um pudesse amedrontar o outro. E embora
estejam em par, parecem solitários, como no conto
O homem da multidão de Edgar Allan Poe, onde o
narrador persegue noite a dentro um homem que
chama sua atenção enquanto caminha no meio de
uma rua movimentada. O homem observado está
em busca a todo momento de grupos de pessoas
para se misturar, mas parece não interagir com
nenhuma delas. O narrador o persegue até o dia
clarear e percebe que o homem na multidão se nega
148
a ficar sozinho mas não se deixa ler. Começa seu
texto com o seguinte parágrafo:
Foi dito, acertadamente, a respeito
de um certo livro alemão, que “er
lasst sich nicht lesen” – “ele não se
deixa ler”. Há certos segredos que
não se deixam contar. Os homens
morrem à noite em seus leitos,
apertando as mãos de
fantasmagóricos confessores e
olhando-os lastimosamente nos
olhos – morrem com o coração em
desespero e a garganta em
convulsão, em virtude do caráter
hediondo de mistérios que não se
dão a revelar. (POE, 2010, p.91)
Figura 40. Tatiana Blass. Teatro #5. 2014. Óleo sobre tela.
110 x 140 cm.
Fonte: www.tatianablass.com.br
149
Há então os homens que não se deixam ler
pelo outro, como parece ser o caso dos personagens
de Teatro #5, que parecem ser independentes um do
outro, como se cada um encenasse uma peça em
paralelo, como se pudessem habitar outra dimensão
e conviver no mesmo espaço, ao mesmo tempo,
sem notarem a presença um do outro. Como dois
seres fantasmais habitando o mesmo espaço, que
possuem algo de tenebroso dentro de si que não se
deixam revelar.
Outro artista, que colocou em suas obras o
horror que os seres humanos podem ter dentro de
si, foi o artista Iberê Camargo (1914-1994), que no
fim de sua vida trabalhou com cores escuras, com
figuras muitas vezes quase pretas e retratou a
fantasmagoria do ser humano, como na obra Tudo
te é falso e inútil II (figura 41). A pintura mostra
uma figura humana sentada, provavelmente nua
com o rosto inclinado para o chão, em uma
paisagem bucólica ao lado de uma bicicleta e de
uma forma vertical que não pode ser identificada.
De tonalidade escura, a obra vai do azul ao preto
com alguns pontos de luz no ventre e no rosto da
pessoa. O título sugere um descontentamento, um
sentimento lúgubre e a figura central da obra, de
ombros caídos, parece estar prostrada diante de
uma decepção. Seria essa figura um ser terreno
com aspecto fantasmal ou um ser espectral
dissolvendo-se com o fundo? Estaria essa figura tão
decepcionada a ponto de parecer um ser fantasmal?
Essa figura, sem cabelos longos ou roupas, parece
uma mulher, de ancas largas e seios à mostra e,
150
como dito anteriormente, seu ventre e sua cabeça
são os pontos mais luminosos da pintura, seria essa
uma indicação de uma nova vida que estaria
surgindo?
Figura 41. Iberê Camargo. Tudo te é falso e inútil II. 1992.
Óleo sobre tela. 200 x 236 cm.
Fonte: FARIAS; CATTANI; LEENHARDT, 2014, p.33
Icleia Cattani em seu texto Uma obra entre
tempos reflete sobre a vasta produção do artista por
ocasião da exposição Iberê Camargo Século XXI
que aconteceu entre 2014 e 2015, organizada pela
Fundação, que leva o nome do artista, onde a
autora afirma que:
151
Iberê escolhia a escuridão nas suas
telas. Questão formal e existencial,
as sombras criavam territórios
densos, pantanosos, como a sua
visão da vida e da morte como
drama. É como nas telas do
conjunto Tudo te é falso e inútil,
noturnas, com a figura humana só,
rodeada apenas por uma bicicleta
ou por uma mesa com carretéis e
um manequim, figura onipresente
nas telas dos últimos anos.
(CATTANI, 2014, p.45)
Se a vida e a morte são como um drama
para Iberê, poderiam ser elas também como uma
encenação em Teatro #5 de Tatiana Blass? Ambas
de cores escuras, com personagens solitários e
poucos elementos que os acompanham, as obras
podem ser pensadas também por suas camadas de
tintas, as de Iberê um pouco mais empastadas, mas
as de Tatiana Blass também com certas camadas, as
duas com sobreposições de tempos em sua fatura.
CATTANI (2014, p.28) afirma sobre Iberê (mas
poderia ser sobre Tatiana Blass também): “O
processo de fazer, desfazer, refazer provoca uma
duração própria na criação da pintura e, também, na
observação pelo espectador, pois revela detalhes só
perceptíveis em um tempo longo do olhar, que se
vincula às diversas temporalidades unidas,
justapostas [...]”. Temporalidades presentes em
cada camada de tinta, em cada linha e borrão
colocados um por cima do outro. Ambas as obras,
152
de Iberê e Tatiana Blass, trabalham com o sombrio
do ser humano, evidenciam sua solidão, trazem
cores como o azul, o verde e o vermelho mas de
uma forma opaca e escura, com alguns pontos de
maior claridade. Nas obras de Tatiana Blass no
entanto, a solidão não quer dizer estar sozinho, pois
suas personagens estão sempre acompanhadas, e
mesmo assim parecem solitárias. E, ao contrário do
homem na multidão que não se deixa ler, ambos os
artistas parecem tentar revelar a fantasmagoria de
suas figuras.
4.4 DAS FORMAS, PALAVRAS,
METAMORFOSES E RUÍNAS QUE SE
REPETEM, OS FANTASMAS DE TATIANA
BLASS
Os fantasmas de Tatiana Blass podem ser
lidos não apenas como seus seres espectrais e
sombrios abordados na seção anterior, mas como as
aparições que acontecem e acabam sempre por
retornar em suas obras. As ruínas, as palavras, as
formas metamorfoseadas são alguns desses
aspectos que parecem sempre fazer suas aparições
nas pinturas, nas esculturas e instalações da artista.
Desta maneira a ruína não se encontra apenas em
suas obras em cera, como também a palavra não
aparece apenas em seus vídeos, e sim estão sempre
contidas umas nas outras, e em determinadas obras,
uma de suas características aparece com mais força.
153
Pensar a respeito da trajetória da artista não como
algo evolutivo, onde suas obras sempre estariam
melhorando em detrimento das anteriores, mas
pensar em suas obras como sintomas que retornam
é estar em consonância com o pensamento da
história da arte vista como anacrônica na
conceituação do historiador da arte alemão Aby
Warburg (1866-1929).
Warburg rompe com a história da arte como
vida e morte, grandeza e decadência e pensa em um
modelo fantasmal da história, psíquico e sintomal.
Didi-Huberman em seu livro A imagem
sobrevivente reflete sobre o legado de Warburg e
sobre como a história da arte pode ser a história de
fantasmas, de algo que sobrevive e sempre retorna.
Warburg substituiu o modelo dos
ciclos de “vida e morte”, “grandeza
e decadência”, por um modelo
decididamente não natural e
simbólico, um modelo cultural da
história, no qual os tempos já não
eram calcados em estágios
biomórficos, mas se exprimiam por
estratos, blocos híbridos, rizomas,
complexidades específicas,
retornos frequentemente
inesperados e objetivos sempre
frustrados. (DIDI-HUBERMAN,
2013, p.25)
Nesse modelo fantasmal Warburg abandona
um pensamento de que cada artista é isolado dentro
da história da arte, e se distancia cada vez mais da
forma como Giorgio Vasari tratou os artistas, como
154
blocos fechados de pensamentos. A obra de arte
seria, para Warburg, algo rizomático, que se
estende e se interliga, como se a própria obra de
arte pudesse pensar de forma autônoma e seus
aspectos pudessem retornar em obras de artistas
diferentes de outros tempos, como elementos
híbridos que tem a possibilidade de retornar.
As formas fantasmais de Tatiana Blass
podem ser tratadas como sintomas que se repetem
na história da arte e que encontraram morada em
sua obra. A história da arte rompe as barreiras do
historicismo e da evolução e atravessa paredes,
encontra nos arquivos, como encontrou em
Warburg outro modo de falar sobre si mesma,
como uma história fantasmal dos arquivos,
vestígios materiais. “Dizer que o presente traz a
marca de múltiplos passados é falar, antes de mais
nada, da indestrutibilidade de uma marca do tempo
– ou dos tempos – nas próprias formas de nossa
vida atual.” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.47).
Considerar a ideia de sobrevivência das
formas seria pensar sobre um rastro, um vestígio
que continua. Tatiana Blass apresenta esses rastros
quando, por exemplo, apresenta o cachorro em
diversas situações, pois eles estão em suas obras de
cera, ora sendo derretidos como em Sua até sumir,
sua carne, ora em cena em Fim de Partida, e em
suas pinturas contracenam com aviões em palcos
montados como em Teatro para cachorros e
aviões, obras abordadas no primeiro capítulo. Os
cachorros são recorrência e permanência em suas
obras, vem e voltam, se repetem nos diversos
155
formatos, e são tratados como seres humanos,
como seus duplos.
Outra de suas repetições são as formas
derretidas que podem ser encontradas desde o
início de sua produção como em Cauda Cadeira,
obra abordada neste capítulo, com um escorrido
que é um falso líquido, e mais tarde com o
derretimento verdadeiro, na cera que se transforma
do estado sólido para o líquido. Também em suas
pinturas são encontradas o escorrido da cera e da
cadeira, pois nelas as personagens estão sempre em
meio às camadas de tinta que escorrem de suas
telas. Ainda em seus textos nos vídeos, os diálogos
se desenrolam e derretem por entre o silêncio como
em Eletrical Room abordada no Capítulo II. Elas,
as palavras, estão sempre presentes, seja em sua
forma mais explícita por meio dos diálogos criados
pela artista ou das pequenas prosas que
acompanham as pinturas, até mesmo na
apropriação da peça de Beckett onde o texto está
implícito, ou nas obras onde se encontram
fragmentos de histórias sugerindo cenas teatrais. A
artista retorna também sempre à questão das formas
metamorfoseadas com seus homens e animais que
se tornam seres deformados e indecifráveis ou
mesmo com seus instrumentos musicais onde
agrega diferentes materiais e os transforma em
outra coisa, ganhando novos significados. Essas
questões e ainda outras que podem ser encontradas
pelo observador nas obras de Tatiana Blass acabam
sempre por retornarem. Uma série que talvez possa
exemplificar uma junção das questões abordadas na
156
presente dissertação pode ser a série Metade da fala
no chão, pois suas obras poderiam entrar pela porta
de qualquer capítulo deste texto, pois tratam da
ruína de seus objetos, do silenciar do som e de
metamorfosear suas formas.
Didi-Huberman (2013, p. 396-397) afirma
que “o homem de ideias fugidias é também o
homem das ideias que retornam, exceto que nunca
retornam completamente, o que, por conseguinte,
incita a novas tentativas, sempre renovadas.” Seria
então Tatiana Blass uma artista das ideias fugidias
pois suas formas e ideias retornam, mas nunca do
mesmo ponto, sempre levando adiante e retornando
com outros olhares, sempre transformados. É
sempre o mesmo rio, mas as águas correm e
tornam-se outras. Suas obras seriam sobrevivência,
Nachleben, que Didi-Huberman (2013, p.407)
descreveu como “as imagens portadoras de
sobrevivências são montagens de significações e
temporalidades heterogêneas.” Seriam as obras da
artista então montagens de significações e tempos
que sobrevivem, de si mesma e da história da arte
da qual é herdeira. O autor segue no texto se
perguntando de que é feita uma montagem, de
quais elementos e logo a resposta é apontada por
ele, que afirma que são feitas de detalhes, pequenos
pontos a serem percebidos, “detalhes,
principalmente: cortes, recortes, reenquadramentos
expremidos no vasto campo das imagens [...]”
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p.410). E a respeito do
detalhe, lembra de uma máxima anotada por
157
Warburg em outubro de 1925, para um seminário
em Hamburgo:
‘O bom Deus reside no detalhe
[...]’. Gombrich, que encontrou a
frase escrita em francês em alguns
manuscritos, atribuiu-a a Gustave
Flaubert. Sua referência direta
seria, antes, de acordo com Dieter
Wuttke, um dito filosófico de
Usener, segundo o qual ‘é nos
menores pontos que residem as
maiores forças’. (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p.410).
Seriam então os detalhes que fazem das
obras de cada artista serem o que são. São os
detalhes fantasmais, os detalhes contidos na
literatura e nos fragmentos de histórias que as obras
da artista contam, das formas sendo transformadas,
do escorrido, da preocupação com a fatura, da
pesquisa, do conhecimento da história da arte.
Retomando mais uma vez a obra Fim de Partida,
um elemento seu que pode passar despercebido
pelo observador é um quadro que faz parte do
cenário da obra, mas que está virado para a parede,
como pode ser observado na figura 42. A artista
afirma que o quadro foi comprado por ela em um
brechó e que faz parte da descrição do cenário
pensado por Samuel Beckett. Visivelmente com o
tecido e o chassi amarelados, o quadro esconde
uma pintura ou um desenho em um detalhe que se
torna fantasmagórico pela lacuna de sua
identificação. Que pintura seria essa que não pode
158
ser vista? Estaria virada de costas pela
impossibilidade de visão da personagem principal
da peça?
Figura 42. Tatiana Blass. Fim de Partida. 2010. Cera
microcristalina, refletores, palco e objetos de cena.
5,00x8,00x4,40m.
Fonte: www.tatianablass.com.br
São os detalhes que fazem a montagem das
obras, que as constituem. DIDI-HUBERMAN
ainda lembra que, ao contrário de Tatiana Blass
que oculta o que existe naquela tela, Warburg na
prancha 43 (figura 43), de seu Bilderatlas
159
Mnemosyne, identificou as personagens de pinturas
do artista Domenico Ghirlandaio (1449-1494):
Figura 43. Aby Warburg. Bilderatlas Mnemosyne. 1917-
1929. Prancha 43.
Fonte: DIDI-HUBERMAN, 2013, p.408
Warburg os quis singularizar. E,
desde logo, dar-lhes nomes,
identificá-los: Pedro, João e Juliano
de Medici. O detalhe seria, em
primeiro lugar, indicador de
identidade: o historiador perscrutou
160
os rostos, comparou as pinturas
com moedas, acompanhou as
modificações de fisionomias na
história, estudou os brasões de
família, as ricordanze, as
genealogias. E foi assim que pôde
dar um nome a cada rosto ou a
quase cada um dos rostos pintados
por Ghirlandaio na Santa Trinità,
ou por Memling nos painéis
externos de seu Juízo Final. (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p.411)
Warburg identifica os rostos dos
personagens e os nomeia por meio de sua pesquisa
atenciosa aos detalhes, mas afirma que o detalhe
não se resume a um indicador de identidade. Mas
será que seria possível nomear os personagens de
Tatiana Blass em Voltando pra casa ou em Teatro
#5, ou em qualquer outra obra da artista? Seriam os
rostos anônimos? Rostos que se perdem? Rostos
que perecem no escorrido da cera e da tinta?
Teriam eles alguma semelhança entre si? Seriam
eles repetições de si mesmos? Não exatamente da
mesma forma, mas assim como as águas de um rio
que parecem ser sempre as mesmas em seu fluxo,
mas na verdade são outras? O aspecto fantasmático
e fugidio desses rostos que se perdem não deixam
de ser detalhe, assim como o quadro virado de
costas em Fim de Partida. Mas o autor em seguida
lembra que: “O objeto supremo visado pela história
warburguiana não é a identidade – a prosografia, ou
a sociologia – dos atores da imagem, e sim sua
‘vida’ [Leben] paradoxal de fósseis enigmáticos:
sua Nachleben.” (DIDI-HUBERMAN, 2013,
161
p.412). A procura então não é pela identificação
desses rostos, mas por serem detalhes que se
repetem, que são sobrevivência na obra da artista.
Os rostos deformados pelas luzes acesas dos
refletores nas obras em cera, os rostos
metamorfoseados nas esculturas em bronze e os
rostos em desaparecimento nas camadas de suas
pinturas são sintomas em suas obras, sempre
retornam, em matérias e linguagens diferentes, mas
sempre encontram morada no gesto de
desconstrução da artista. As personagens e objetos
de Tatiana Blass estão sempre em transformação.
São os seres, as literaturas, as formas
metamorfoseadas que aparecem como fantasmas
em suas obras, que fazem sempre sua aparição na
desconstrução da forma e na criação da obra. O
gesto de desconstruir para depois construir parece
ser uma reminiscência, uma questão que sempre
retorna, pois tanto o sintoma quanto imagem
funcionam como vestígios da memória.
Didi-Huberman afirma que o Atlas de
Warburg poderiria ser analisado também em função
dos intervalos produzidos pelo próprio
enquadramento das imagens. “O intervalo é o que
torna o tempo impuro, vazado, múltiplo, residual.
[...] É o meio dos movimentos-fantasma. [...] É a
abertura criada pelas falhas sísmicas, pelas fraturas
da história. [...] É o hiato dos anacronismos, a
malha dos furos da memória.” (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p.422). Seria então como o
intervalo entre a aparição de elementos, entre uma
162
obra e outra, quando determinado aspecto retorna.
O intervalo poderia ser pensado como um detalhe,
como na obra Voltando para casa, na distância
entre um personagem e outro, ou como uma pausa,
entre uma frase e outra de suas literaturas. Seria
talvez um intervalo como o silêncio? Pode ser
compreendido também como o intervalo dos
tempos. Como nas obras em cera de Tatiana Blass,
que possuem um intervalo do derretimento
enquanto a exposição acontece, pois todos os dias
os refletores são ligados e desligados conforme o
espaço expositivo é aberto para o público. Ou ainda
na aparição entre um detalhe e outro como, por
exemplo, na série Metade da fala no chão, pois as
obras não foram feitas todas uma seguida da outra,
cada uma precisou de um tempo de maturação e
enquanto isso, outras obras foram surgindo.
Em outras palavras, as obras são então
regimes descontínuos de temporalidades. Como
bem lembrou BAUDELAIRE (2010, p.14): “O
passado, sem deixar de conservar o atrativo do
fantasma, retomará a luz e o movimento da vida e
se tornará presente.” A obra de arte, com um
inconsciente autônomo, sempre retorna aspectos
como um fantasma, que vem assombrar o tempo
presente e tomar mais uma vez o seu lugar na
história da arte.
163
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Chega, está na hora disso acabar
[...]. E mesmo assim eu ainda
hesito em... ter um fim.”
(BECKETT, 2010, p.39)
Tatiana Blass possui obras tão distintas em
suas matérias umas das outras que ao observador é
reservada inúmeras leituras a respeito delas. Para
ler uma imagem é preciso ver em detalhes e o que a
dissertação se propôs a fazer foi a princípio dividir,
em seguida agrupar e assim somar as imagens da
artista, para que pudesse fazer uma leitura a
respeito de alguns aspectos que puderam ser
encontrados com frequência em suas obras. Mas
eles não são os únicos, há diversas oportunidades
de estudos que podem ser levadas adiante a partir
de suas obras. As obras de Tatiana Blass estão
sempre em um fim continuado e reverberam as
fantasmagorias contidas na História da Arte.
Foram diversas as obras abordadas da artista
neste texto, que fez um recorte onde as suas
principais questões pudessem ser encontradas. A
ruína, a palavra, o silêncio, a metamorfose e a
fantasmagoria foram pensadas por blocos de
pensamentos. O Capítulo I se propôs a abordar o
gesto da ruína e da decadência nas
esculturas/performances de cera da artista que
164
retratavam seres humanos, bem como estabeleceu
as relações com obras que retratavam o cachorro,
refletindo sobre a humanidade frente ao animal. O
Capítulo II relacionou palavra e silêncio em seu
gesto de escrita, construção de literaturas e também
no gesto de calar objetos que emitem som, como
apito, microfone e instrumentos musicais. O
Capítulo III trouxe a presença da metamorfose das
formas nas obras da artista pensadas como um
acontecimento e o gesto fantasmagórico como
recorrência e permanência em seus trabalhos e na
história da arte.
Importante ressaltar que no momento da
escrita deste trabalho a artista continuou
produzindo, participando de exposições, feiras e
residência artística, resultando em obras que sequer
foram citadas pelo imediatismo de sua produção.
Desta produção mais recente ficaram de fora, por
exemplo, a série de pinturas Ibsen, que traz pinturas
intituladas com nomes de personagens do
dramaturgo norueguês Henrik Johan Ibsen.
Também Cisma, apresentado em dois vídeos
simultâneos, com dois atores travando um diálogo
e, em cada vídeo, a entonação da conversa sendo
modificada.
A desconstrução para a construção, gesto
operacional da artista, pode ser encontrado e
refletido em diversos momentos ao longo do texto,
ficando evidente em distintos usos da matéria,
desde suas esculturas/performance até mesmo em
suas pinturas e vídeos. As diferentes obras
165
apresentam as mesmas questões da ruína, da
palavra, do silêncio, da metamorfose e da
fantasmagoria, aspectos que retornam com
frequência em seus trabalhos.
As obras da artista ainda poderiam
desdobrar um estudo a respeito do espaço
expositivo com relação às suas
esculturas/performances que ocupam o espaço, com
a montagem de Fim de Partida ou ainda com suas
instalações como Penélope, pensada para um lugar
específico. Luiz Camillo Osorio refletiu sobre essa
questão quando afirmou que: “Na verdade, creio
que tudo leva a uma noção de ambiente, de criar
um ambiente, uma atmosfera, onde a vida, a mais
comum possível, possa ser vivida na sua estranheza
originária.” (OSORIO, 2009, p.116). Mas não só
em suas obras tridimensionais o espaço se faz
presente, pois em suas pinturas os ambientes são,
em grande maioria, grandes e vazios onde os
personagens humanos e animais encontram-se
pequenos em seus palcos, em uma praia na série
Observadores ou em um museu na série Museu do
meu cansaço, onde o ser humano se encontra
desmesurado na paisagem.
Outra questão que poderia ter sido
enfatizada é a relação estreita da artista com a
literatura, mas não apenas com seus textos e
pequenas prosas que acompanham as pinturas, mas
também a relação com sua publicação A família
mobília, livro infanto-juvenil publicado
recentemente. Essa relação tão próxima entre as
166
artes visuais e a literatura não é exclusividade da
artista tendo também, por exemplo, em Nuno
Ramos outro artista que trabalha com essas
questões, apenas para citar uma das referências de
Tatiana Blass. “Porque a artista, tal como Nuno
Ramos e Bruce Nauman, também lida com a
palavra como elemento visual. No caso de Tatiana,
não se trata da dedicação do ofício das letras, mas
ao uso do texto como elemento expositivo.”
(MESQUITA, 2010). A literatura se encontra em
muitas obras visuais da artista, mas também em sua
publicação literária o texto é intensamente
contaminado pelo visual.
Também um caminho que se pode seguir a
partir deste pensamento literário são as injunções
entre arte e vida a partir de suas leituras. De que
modo sua biblioteca influencia em suas obras
visuais? Quais os livros que estão claramente
referenciados? A artista afirma que cria ficções,
mas o que essas ficções podem dizer sobre si
própria, sobre seu gosto literário e suas referências?
Suas leituras poderiam ser uma chave para uma
aproximação com um pensamento a respeito de
suas obras que não fosse tão impessoal. Ainda na
esteira das interlocuções entre artes visuais e
literatura poderia se aprofundar na transposição que
a artista fez da obra literária Fim de Partida,
estabelecendo relações com outros artistas que se
apropriam de obras literárias para criar obras de
arte, como o Coletivo Irmãos Guimarães que
também trabalha com textos de Samuel Beckett. As
167
questões de hibridação das matérias e as fronteiras
das linguagens.
O corpo poderia entrar também novamente
em cena, desta vez como uma questão a ser
pensada não apenas pelo viés da ruína como fez a
dissertação, mas também pela questão da
hibridação, aprofundando as metamorfoses no texto
trabalhadas com a junção de homem e animal,
homem e máquina. Textos como A Metamorfose de
Franz Kafka ou A expressão das emoções no
homem e nos animais de Charles Darwin poderiam
entrar como uma primeira reflexão sobre essas
aproximações bestiais.
E ainda os estudos sobre a artista poderiam
avançar os campos da ilusão com sua obra Para o
morto, que fez parte da exposição Acidente, citada
ao longo do texto, e que mostrava um simulacro de
um corpo estendido no chão coberto por um lençol
branco, mas que na verdade era apenas uma chapa
de latão com um ácido jogado por cima de si para
dar o efeito de lençol. Também em seu vídeo O
engano é a sorte dos contentes, onde em um tom
circense uma mulher parece fazer a apresentação de
um mágico convidando a todos a se deixarem ser
enganados. Como refletiu a respeito desse aspecto,
MESQUITA (2010) afirma: “Isso, porque Tatiana
não se interessa pela realidade, ela fala é da ilsuão.
Do que parece ser subtraído do mundo quando
transformamos as experiências em um código”.
Além da ilusão, também poderia ser pensada a
metalinguagem da arte na obra Fim de Partida,
168
onde um quadro se encontra de costas, virado com
sua paisagem para a parede. O quadro virado de
costas fala sobre a própria arte, sobre a própria
pintura, teria ela morrido?
Simon Schama, em seu livro O poder da
arte, começa seu texto afirmando que o poder da
arte é o poder da surpresa perturbadora. Seu livro
fala sobre artistas do Renascimento ao
Modernismo, mas poderia se encaixar para a arte
pós-moderna, que suscita a pergunta: O que é isso?
Que Odradek é este? Seria o caso de Tatiana Blass,
que causa sobressalto com seu gesto de
desconstrução, derretendo homens e animais,
colocando animais contracenando em um palco
com aviões, calando instrumentos musicais,
congelando o som de um apito, fazendo parecer
que uma cadeira está derretendo ou ainda inserindo
seres espectrais em suas pinturas. Seriam suas
obras então um sobressalto à normalidade, uma
beleza desconcertante, uma surpresa perturbadora.
169
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TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 10 abril
2015.
179
APÊNDICES
APÊNDICE A – Cronologia
TATIANA BLASS
1979
Nasce em São Paulo, Brasil
1998
Exposição coletiva "Desenho", Instituto de Artes da
Unesp, São Paulo
1999
Exposição coletiva "Jovem Gravura Brasileira",
curadoria de Luiz Monforte, Academia de Belas
Artes de Viena, Áustria
Exposição coletiva "27º Salão de Arte
Contemporânea de Santo André"
Exposição coletiva "26º Salão de Arte Jovem,
CCBEU Santos"
Exposição coletiva "2º Salão de Arte
Contemporânea de Vinhedo"
180
2000
Exposição coletiva "32º Salão de Arte
Contemporânea de Piracicaba"
Exposição coletiva "4ª Pequena mostra do que
trabalho", Espaço Coringa, São Paulo
Exposição coletiva "Entre o desenho e a pintura",
Instituto de Artes da Unesp, São Paulo
Exposição coletiva "Cupim na Morsa", Funarte, SP
Exposição coletiva “Jovem Gravura Brasileira”,
curadoria de Luiz Monforte,Fundação Joze Ciuha,
Ljubljna, Eslovênia
2001
Forma-se em Bacharelado em Artes Plásticas na
Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Exposição individual "Assim", Galeria do Instituto
de Artes da Unesp, São Paulo
2002
Recebe o prêmio aquisição no "I Salão de Arte
Contemporânea de São José dos Campos"
Exposição coletiva "28+pintura", Espaço Virgílio,
São Paulo
181
Exposição coletiva "I Salão de Arte
Contemporânea de São José dos Campos"
2003
Recebe o prêmio aquisição do "Programa de
Exposições do Centro Cultural São Paulo"
Exposição individual "III Mostra do Programa de
Exposições 2003", Centro Cultural São Paulo
Exposição individual "Pinturas", Fundação
Joaquim Nabuco, Recife
Exposição individual "Colagens", Livraria Boa
Vista, São Paulo
Exposição coletiva "Flávia Bertinato e Tatiana
Blass", 10,20 x 3,60, São Paulo
Exposição coletiva "Coletiva do Programa de
Exposições", Centro Cultural São Paulo
Exposição coletiva "Edital 2003", MACC,
Campinas
2004
Exposição individual "Atavio", Ateliê 397, São
Paulo
182
Exposição coletiva "Projéteis de Arte
Contemporânea", FUNARTE, Rio de Janeiro
Exposição coletiva "Posição 2004", Parque Lage,
Rio de Janeiro
Exposição coletiva "Arte Contemporânea no
Acervo Municipal", Centro Cultural São Paulo
Exposição coletiva "9ª Bienal Nacional de Santos"
Exposição coletiva "Outro Lugar", Galeria Virgílio,
São Paulo
Exposição coletiva "Pequenos Formatos", Tapa
Galeria, Ribeirão Preto
2005
Exposição individual "Cauda", Galeria Virgílio,
São Paulo
Exposição coletiva "Salão Nacional de Arte de
Goiás", Goiânia
Exposição coletiva "Para onde caminha a arte?",
curadoria de Cristiana Tejo, Galeria Mariana
Moura, Recife
Exposição coletiva "Exposição de Verão",
curadoria Luisa Duarte, Galeria Silvia Cintra, Rio
de Janeiro
183
Exposição coletiva "Galeria Virgílio na Casa Cor",
São Paulo
Exposição coletiva "Pratos para Arte VIII", Museu
Lasar Segall, São Paulo
2006
Exposição individual "Um dia seco, claro e quente
com a paisagem mais vazia", Galeria Box 4, Rio de
Janeiro
Exposição individual "Espartilho" e "Páreo",
Temporada de Projetos 2005-2006, Paço das Artes,
São Paulo
Exposição coletiva "XV Salão Ibero-Americano de
Artes", curadoria de Jack Rasmussen, Brazilian
Embassy - Cultural Section, Katzen Arts Center of
American University, Washington, EUA
Exposição coletiva "Geração da Virada", curadoria
de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, Instituto
Tomie Ohtake, São Paulo
Exposição coletiva "mam[na]oca", curadoria de
Cauê Alves, Felipe Chaimovich e Tadeu Chiarelli,
São Paulo
Exposição coletiva "Paralela 2006", curadoria de
Daniela Bousso, Pavilhão Armando de Arruda
Pereira, São Paulo
184
Exposição coletiva "Arquivo Geral 2006", Centro
Hélio Oiticica, Rio de Janeiro
Exposição coletiva "Paradoxos Brasil - Rumos
Artes Visuais 2006", Itaú Cultural, São Paulo; Paço
Imperial, Rio de Janeiro; Museu de Arte
Contemporênea, Goiânia; Museu de Arte de Santa
Catarina, Florianópolis
Exposição coletiva "Paço com Arte Contemporânea
na CPFL", curadoria de Daniela Bousso, Espaço
Cultural CPFL, Campinas
Exposição coletiva "Parcial", curadoria de José
Augusto Ribeiro, Galeria Virgílio, São Paulo
2007
Recebe Prêmio Aquisição no "14º Salão da Bahia",
MAM Bahia, Salvador
Exposição coletiva "14º Salão da Bahia", MAM
Bahia, Salvador
Exposição coletiva "La Espiral de Moebius o los
Límites de la Pintura", curadoria de Claudia
Laudanno, Centro Cultural Parque de España,
Rosario, Argentina
Exposição coletiva "Pintura Brasileira no Acervo
do Museu de Arte Moderna de São Paulo",
185
curadoria de Andrés Hernández, Museu de Arte do
Espírito Santo Dionísio Del Santo (MAES), Vitória
2008
Exposição individual "Globo da Morte", Galeria
Box 4 e Silvia Cintra Galeria de Arte, Rio de
Janeiro
2007
Exposição individual "O engano é a sorte dos
contentes", Galeria Millan, São Paulo
Exposição individual "Zona Morta", Centro
Universitário Maria Antonia, São Paulo
Exposição individual "Tatiana Blass", Galeria
Carminha Macedo, Belo Horizonte
Exposição coletiva "Nam June Paik Award 2008",
Wallraf-Richartz Museum, Colônia, Alemanha
Exposição coletiva "Beneath the Bridge", curadoria
de Juliana Moreira, Pablo’s Birthday Gallery, Nova
York, EUA
Exposição coletiva "Nova Arte Nova", curadoria de
Paulo Venâncio Filho, Centro Cultural Banco do
Brasil, Rio de Janeiro
186
Exposição coletiva "De perto e de longe" - Paralela
2008, curadoria de Rodrigo Moura, Liceu de Artes
e Ofícios, São Paulo
Exposição coletiva "MAM 60", curadoria de
Annateresa Fabris e Luiz Camillo Osorio, Oca, São
Paulo
Exposição coletiva Premiados no 14º Salão da
Bahia, 15º Salão da Bahia, MAM Bahia, Salvador
Exposição coletiva "Poéticas da Natureza",
curadoria de Katia Canton, Museu de Arte
Contemporânea da USP, São Paulo
Exposição coletiva "Exposição de Verão", Galeria
Silvia Cintra, Rio de Janeiro
Exposição coletiva "Coletiva.", Galeria Millan, São
Paulo
Exposição coletiva "Bordando com Arte", ACTC,
Pinacoteca do Estado, São Paulo
2009
Exposição individual "Cão Cego", Museu de Arte
Moderna da Bahia, Salvador
Exposição coletiva "Coleção MAM-BA | 50 Anos
de Arte Brasileira", Museu de Arte Moderna da
Bahia, Salvador
187
Exposição coletiva "Observatórios", Mostravídeo
Itaú Cultural, curadoria de Paula Alzugaray, Cine
Humberto Mauro, Palácio das Artes, Belo
Horizonte e Cine Metrópolis, Vitória
Exposição coletiva "Les cartes blanches du Silo à
l'ENSBA", curadoria de Wagner Morales, Beaux-
arts de Paris l'école nationale supérieure, Paris,
França
Exposição coletiva "Realidades Imprecisas",
curadoria de Carolina Soares, SESC Pinheiros, São
Paulo
Exposição coletiva "Nova Arte Nova", curadoria de
Paulo Venâncio Filho, Centro Cultural Banco do
Brasil, São Paulo
2010
Recebe o prêmio "Grants & Commissions Program
Exhibition", Cisneros Fontanals Art Foundation,
Miami, EUA
Recebe o “Prêmio de Arte Espírito Santo
Investimento”, SP Arte, São Paulo
Exposição individual "Teatro para cachorros e
aviões", Galeria Millan, São Paulo
Participa da 29ª Bienal de São Paulo, Pavilhão da
Bienal, São Paulo
188
Exposição coletiva "In Transition: 2010 CIFO
Grants & Commissions Program Exhibition",
Cisneros Fontanals Art Foundation, Miami, EUA
Exposição coletiva "Offmóstoles10", CA2M -
Centro de Arte dos de Mayo, Madri, Espanha
Exposição coletiva "Páreo #2", SESC Belenzinho,
São Paulo
Exposição coletiva "20 Anos do Programa de
Exposições do Centro Cultural São Paulo", Centro
Cultural São Paulo
Exposição coletiva "Crossing [Travessias]",
curadoria de Priscila Arantes, Paço das Artes, São
Paulo
Exposição coletiva "Tinta Fresca - A nova geração
da pintura brasileira", Galeria Mariana Moura,
Recife
2011
Recebe o "Prêmio PIPA - Prêmio Investidor
Profissional de Arte", Museu de Arte Moderna, Rio
de Janeiro (Voto Popular e Voto do Júri)
Exposição individual "Acidente", Carpe Diem Arte
e Pesquisa, Lisboa, Portugal
189
Exposição individual "Penélope", curadoria de
Douglas de Freitas, Capela do Morumbi, São Paulo
Exposição individual "Tatiana Blass", curadoria de
José Augusto Ribeiro, Caixa Cultural, São Paulo,
Brasília e Salvador
Exposição individual "Fim de partida", Centro
Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro
Exposição coletiva "Os primeiros 10 anos",
Instituto Tomie Ohtake, São Paulo
Exposição coletiva "Finalistas do Prêmio PIPA",
Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro
Exposição coletiva "17º Festival de Arte
Contemporânea SESC_Videobrasil", SESC
Belenzinho, São Paulo
Exposição coletiva "17ª Bienal de Cerveira",
Portugal
Exposição coletiva "Mapas Invisíveis", curadoria
de Daniela Name, Caixa Cultural São Paulo
Exposição coletiva "Fuso 2011", curadoria de
Solange Farkas, Lisboa, Portugal
Exposição coletiva "Como o tempo passa quando a
gente se diverte", curadoria de Josué Mattos, Casa
Triângulo, São Paulo
190
Exposição coletiva "Terceira Metade - Manuel
Caiero, Tatiana Blass e Yonamine", curadoria de
Luiz Camillo Osorio e Marta Mestre, Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro
Exposição coletiva "Porque sim", curadoria de Lais
Myrrha e Rodrigo Bivar, Galeria Millan, São Paulo
Exposição coletiva "O Colecionador de Sonhos",
curadoria de Agnaldo Farias, Instituto Figueiredo
Ferraz, Ribeirão Preto
Exposição coletiva "29ª Bienal de São Paulo –
Obras Selecionadas", Palácio das Artes, Belo
Horizonte
2012
Residência artística Gasworks, Londres, Inglaterra
Exposição individual "Acidente", Galeria Millan,
São Paulo
Exposição coletiva "Unsaid/Spoken", curadoria de
José Rocca e Moacir dos Anjos, Cisneros Fontanals
Art Foundation, Miami, EUA
Exposição coletiva "Para além do arquivo",
curadoria de Cauê Alves e Priscila Arantes,
CCBNB, Fortaleza
191
Exposição coletiva "Brazilian Art", White Box
Museum of Art, Beijing, China
Exposição coletiva "Beneath", Vogt Gallery, Nova
York, EUA
Exposição coletiva "Open Studio", Gasworks,
Londres, Inglaterra
Exposição coletiva "Coleção BGA - Brazil Golden
Art", MuBE, São Paulo
Exposição coletiva "13 artistas + 13 obras",
curadoria de Fátima Lambert e Lourenço Egreja,
Galeria novaOgiva, Óbidos, Portugal
Exposição coletiva "Laboratório de Curadoria",
Guimarães, Portugal
Exposição coletiva "Otra Generación", curadoria de
Adriano Casanova, Galeria Blanca Soto, Madri,
Espanha
Exposição coletiva "Clube da Gravura", Museu de
Arte Moderna, São Paulo
2013
Foi incluída, pela revista norte-americana
Art+Auction, na lista dos 50 artistas vivos mais
colecionáveis do mundo.
192
Exposição individual "Interview", Johannes Vogt
Gallery, New York, EUA
Exposição individual "Electrical Room", Museum
of Contemporary Art Denver, EUA
Exposição coletiva "Proyectos Individuales",
curadoria de José Rocca, ArtBo, Bogotá, Colômbia
Exposição coletiva "30x Bienal", curadoria de
Paulo Venancio Filho, Fundação Bienal de São
Paulo
Exposição coletiva "Avante Brasil", curadoria de
Felicitas Rohden e Gertrud Peters, KIT — Kunst
im Tunnel, Dusseldorf, Alemanha
Exposição coletiva "Blind Field", curadoria de
Irene Small e Tumelo Mosaka, Broad Museum,
Michigan University, EUA
Exposição coletiva "Blind Field", Krannert Art
Museum and Kinkead Pavilion, Champaign,
Illinois, EUA
Exposição coletiva "Para Além do Ponto e da
Linha: Arte Moderna e Contemporânea no Acervo
do MAC USP", curadoria de Tadeu Chiarelli,
Museu de Arte Contemporânea, São Paulo
Exposição coletiva "As tramas do tempo na arte
contemporânea: estética ou poética?", curadoria de
193
Daniela Bousso, Instituto Figueiredo Ferraz,
Ribeirão Preto
Exposição coletiva “100 anos de Arte Paulista no
acervo da Pinacoteca do Estado de São
Paulo”, CPFL Cultura, Campinas
2014
Residência artística "Circulating Air", programa
da Stiftelsen 3,14, Bergen e residência na
Kunstnarhuset Messen, Ålvik, Noruega
Exposição individual "Encrenca _
Trøbbel", Kunsthuset Kabuso, Øystese, Noruega
Exposição coletiva "Cruzamentos: Contemporary
Art in Brazil", curadoria de Jennifer Lange,
Wexner Center, Columbus, Ohio, EUA
Exposição coletiva "Pieces for a Collection",
Bernal Espacio, Madri, Espanha
Exposição coletiva "Quase figura, quase forma",
curadoria de Lorenzo Mammì, Galeria Estação, São
Paulo
Exposição coletiva "Singularidades / Anotações",
curadoria de Aracy Amaral, Paulo Miyada e Regina
Silveira, Itaú Cultural, São Paulo
194
Exposição coletiva "Único", curadoria de Paulo
Venancio Filho, Carbono Galeria, São Paulo
Exposição coletiva "Ouro", curadoria de Marcello
Dantas, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de
Janeiro
Exposição coletiva "Canções de Amor - V Mostra
3M de Arte Digital", Instituto Tomie Ohtake, São
Paulo
2015
Exposição coletiva "Nuevas Propuestas", Johannes
Vogt Gallery, Zona Maco, Cidade do México.
Vive e trabalha em São Paulo, Brasil
Obras em acervos públicos: Cisneros Fontanals
Art Foundation, Miami, EUA; Fundação Joaquim
Nabuco, Recife; Instituto Figueiredo Ferraz,
Ribeirão Preto; Itaú Cultural; Museu de Arte
Contemporânea de São Paulo; Museu de Arte
Moderna da Bahia; Museu de Arte Moderna de São
Paulo; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro;
Pinacoteca do Estado de São Paulo; Pinacoteca
Municipal de São Paulo; SESC São Paulo.
É representada pela Galeria Millan - São Paulo,
Brasil www.galeriamillan.com.br. E também pela
Johannes Vogt Gallery - New York,
US http://vogtgallery.com.
195
APÊNDICE B – Entrevista com Tatiana Blass
A entrevista aconteceu no ateliê da artista situado a
Rua Marcelina, nº 118, na cidade de São Paulo no
segundo semestre de 2013. Teve duração de uma
hora e meia. Foi amplamente utilizada na
monografia latu sensu intitulada Tatiana Blass e o
gesto na matéria de 2014, sob orientação da Me.
Luciane Ruschel Nascimento Garcez para a Pós-
Graduação em História da Arte da Universidade da
Região de Joinville (UNIVILLE). Uma versão
reduzida foi publicada na Revista Valise, Porto
Alegre, v.4, n.7, julho de 2014.
Viviane Baschirotto. Você se preocupa muito com
a fatura dos seus trabalhos? Cria projetos de
execução? É rigorosa com a qualidade de materiais
e com a montagem das exposições?
Tatiana Blass. Como eu trabalho com mídias bem
diferentes, são casos um pouco diversos. Na pintura
não existe projeto, então geralmente tem uma ideia
que agrega a aquilo que eu estou fazendo em
determinado momento. Como agora, que estou
fazendo pinturas em uma série que se chama
Entrevista, que possui geralmente uma relação das
figuras com o espaço entorno, onde elas são
absorvidas pelos equipamentos. Esse aspecto está
agregado a elas, mas o fazer é muito no momento
da execução. É muito diferente, por exemplo,
quando eu faço os projetos que exigem outros
profissionais, outras pessoas, pois tenho que ter
mais clareza do que quero, até pra poder explicar
196
para as pessoas. Mas eu sou muito contaminada e
gosto de ser contaminada pelas pessoas que acabam
trabalhando junto comigo. Com o Eletrical Room,
fiz um trabalho com vários atores, com um texto
que escrevi e fui modificando o texto conforme a
montagem. Na fundição, por exemplo, quando eu
comecei a fazer, não conhecia muito a técnica,
como ficaria uma escultura em bronze, seu
processo, as pátinas possíveis, então com os
profissionais eu fui descobrindo. Há pouco tempo
eu fiz um primeiro trabalho em fundição em ferro,
que pode também gerar um monte de escolhas, de
como vai ficar. Então normalmente tem uma ideia,
uma rota, mas eu gosto muito de ser contaminada
pelas coisas, acho que enriquece.
V. Você aceita os desvios que existem no percurso?
T. Sim, pois às vezes também são várias traduções.
Acontece de você ter um trabalho que surge como
uma ideia, ele está na sua cabeça, no suporte da sua
cabeça, e quando você transfere para a imagem do
desenho ou tenta explicar, você já está traduzindo e
formalizando de outro jeito. Então são várias
traduções. Passar para uma pessoa é mais uma
camada de tradução e se você ficar querendo
chegar muito próximo ao original da sua ideia vai
ser sempre uma frustração. Porque, na verdade,
você nunca vai chegar ao suporte da sua cabeça.
V. Como acontece o seu processo de fatura? É você
quem maneja seus materiais? Se sim, como escolhe
197
os profissionais que você terceiriza, como lida com
isso?
T. Existem alguns profissionais que eu trabalho
sim. O que eu tenho capacidade de fazer sozinha é
pintura, o restante eu preciso de ajuda. Mesmo uma
escultura em mármore como Patas, tem o
marmorista. Eu acompanho todo o processo e vou
fazendo junto, mas a técnica eu não tenho. Na
fundição, que acho que é a relação mais forte que
eu tenho, já fiz muitos trabalhos com as mesmas
pessoas. A primeira vez que eu fiz uma fundição
foi em 2007, e quando eu fui fazer, entendi o
processo da técnica perdida (ou cera perdida), vi
uma escultura em cera e foi então que começou a
me dar ideia de trabalhar direto com a cera. Pois
muitas vezes a partir de um trabalho, da
experiência de realizar um trabalho é que gera
outras ideias para realizar outros. A respeito dos
vídeos tem uma produtora que é a Mira Filmes,
ligada ao cinema, também é uma parceria forte que
fez comigo o vídeo da obra Metade da fala no chão
– piano surdo e mais recentemente os vídeos para a
exposição de Denver (EUA), Electrical Room, que
foi um trabalho mais coletivo, porque exigiu várias
pessoas, câmeras, edição, som, vários detalhes.
Então conforme o projeto eu acabo indo atrás
desses profissionais. Agora como chegar neles, na
verdade assim, não tem muita opção, porque o
meio de arte na verdade não é muito grande assim,
então procuro os que outros artistas me dão dicas,
vou experimentando quem dá certo e alguns viram
parceiros mesmo. Os profissionais da fundição
198
participaram também do vídeo do piano, são eles
que colocam a cera, então também eles se misturam
com outras coisas.
V. Poderia comentar um pouco mais sobre o
primeiro contato com a cera. Quanto tempo entre o
conhecimento da técnica e o primeiro trabalho com
ela? Como é trabalhar com a cera?
T. O primeiro contato foi em 2007, com o primeiro
trabalho que era fundido, o Patas que era fundido
com uma liga de latão com bronze. E o primeiro
que fiz em cera foi em 2009 com os cachorros, na
exposição Cão Cego no Museu de Arte Moderna da
Bahia. Como a cera tem essa qualidade de ser um
material de fácil transformação, pois com uma
temperatura muito baixa ela derrete e ou se
condensa, ela possui essa transitoriedade que me
interessou. Eu estava querendo uma ação nas
esculturas, e foi então que comecei a fazer as coisas
que iam derretendo durante a exposição.
V. Suas obras trabalham com diferentes meios e
matérias, como é transitar por tantas técnicas
diferentes?
T. Então, não sei, assim que eu comecei a sair da
pintura, pois antes eu fazia só pintura, eu comecei a
ter ideias em outros materiais e fui atrás de
formalizar isso.
V. Você chama as obras em cera como Pendurado
e Luz que cega sentado de escultura-performance,
poderia comentar essa denominação?
199
T. Não sei, não tenho pensamento muito sobre isso.
Mas é só de criar algo que talvez a própria
escultura esteja representando, está atuando e eu
não tenho muito controle sobre isso, pois eu crio
aquele mecanismo, aquela ação, mas eu não sei
muito como vai terminar.
V. Você pensa em uma ideia e procura a melhor
maneira de realizá-la? Ou você pensa primeiro no
material que gostaria de usar para depois resolver o
trabalho?
T. Eu não consigo fazer muito essa distinção,
porque para mim não existe diferença entre forma e
conteúdo, pois elas não só são juntas como quase
são a mesma coisa, então eu não consigo fazer essa
distinção. Houve um momento no início, quando da
primeira vez que surgiu um trabalho a partir de
uma ideia, que fiquei com um pé atrás, porque na
verdade tudo o que eu não quero é que o trabalho
se torne algo de uma apreensão direta. Penso que às
vezes quando o trabalho vem de uma ideia, ela
pode chegar como algo que se resolve muito
facilmente pra quem contempla. Quando surgiu
isso, fiquei na dúvida de fazer ou não que foi o
trabalho do Zona Morta. Fiquei pensando se iria
fazer, se cortaria um monte de móvel, pois Gordon
Matta Clark já cortou uma casa. Também tem essa
questão que se você ficar vendo tudo que existe,
você não consegue fazer nada e então resolvi seguir
adiante e realizar o trabalho, porque veio bem
como uma imagem, como uma coisa. Foi muito
bom ter realizado, porque aquilo levou para muitos
200
outros caminhos e que tinham relação com o meu
universo e não com o de Gordon Matta Clark, não
tinha a relação com arquitetura, tinha relação até
com pintura. Acredito que cada trabalho é um
processo, e com certeza muitas vezes uma coisa
leva a outra.
V. Para você são claras as relações entre diferentes
materiais.
T. Acredito que cada meio tem suas
especificidades, mas acho que estão todos
relacionados. O fato de usar muitas linguagens e
mídias diferentes, na verdade não é uma opção, foi
talvez um jeito desconcentrado, meio bagunçado de
ter uma pulsão, de querer fazer as coisas e se
interessar por muitas linguagens diferentes. Até
também de trabalhar com coisas de outro universo,
como os atores, ou mesmo me apropriar de coisas
de literatura, de música. Tudo para mim é bem
parecido, querer um trabalho em mármore, querer
usar o Chopin, todas as coisas que estão no mundo
e que me desafiam a querer fazer, a ir para muitos
lados, eu não consigo trabalhar de uma única
forma. Às vezes também pode ser perigoso, você
acaba realizando várias experimentações que às
vezes não estão bem realizadas, não ficam bem
finalizadas. Mas é uma coisa do momento, e hoje
isso é muito mais forte em mim. E o artista expõe
muito e você muitas vezes ainda está se formando,
principalmente no começo de carreira, então é uma
formação pública, todos estão vendo os seus erros,
201
e acho que é uma coisa boa também, porque esse é
um enfrentamento que você tem que ter.
V. Você é sistemática com sua produção, produz
regularmente?
T. Não, o que tenho são momentos de imersão,
como para a exposição em Nova York, que fiz seis
pinturas e também tinha outras três que estão em
Denver, então fiquei só pintando. Todos os dias eu
acordava e ficava até onze da noite pintando, mas
depois eu não consigo mais ver tinta na minha
frente que é esse momento. Então tem uns
momentos que eu fico naquilo e depois tem outros
de produzir outras coisas, são vários momentos.
V. Quanto tempo em média você leva pra realizar
uma pintura?
T. Depende muito da pintura, mas há uma grande
que está indo para a próxima exposição nos EUA
que estou há um ano com ela. Ela tem 2 x 2,5m, é
grande, e já foi de todos os tipos. Eu sempre faço
várias pinturas ao mesmo tempo, mas tem umas
que são encrenca, que você faz e não resolve.
V. E nas instalações, as coisas veem ao mesmo
tempo, e quando surge a oportunidade o trabalho é
feito?
T. Sim, quando vêm algumas ideias às vezes nós
anoto. Tenho várias, mas geralmente quando tem
um convite mais certo para uma exposição eu
penso mais, consigo até me concentrar, pensar mais
no que fazer.
202
V. Como foi o seu ingresso no mundo da arte? De
onde partiu seu interesse?
T. Desde sempre, desde criança. Eu sempre gostei
muito de pintar, ganhava um valor toda semana e
gastava em tinta, purpurina. Perguntavam o que eu
queria ser quando crescesse eu falava que queria
ser vendedora da papelaria, porque a papelaria era
o lugar mais legal do mundo. Eu fazia coleção de
selos também, então sempre houve esse interesse,
também comecei a fazer umas brincadeiras de
colocar nanquim na água e depois colocar na
geladeira. Eu pegava mercúrio cromo e desenhava,
fazia várias coisas que eram brincadeiras para mim.
Fazia também dessas pinturas em papel, que você
coloca tinta, dobra e depois abre e aí eu falava que
era abstrato, eu adorava falar que fazia coisa
abstrata, porque acho que era uma palavra muito
difícil quando eu tinha em torno de 7 e 8 anos. E
quando eu tinha entre 9 e 10 anos eu fiz um curso
de arte no Centro Cultural São Paulo, e eu lembro
que era preciso copiar algumas obras, e eu achei
muito estranho, porque o desafio era conseguir
fazer, por exemplo, um Mondrian sem régua.
Depois na adolescência eu fiz um curso também de
desenho e na própria escola eu tive aula com o
Alex Cerveny e a Sandra Cinto. Também sempre
fui a Bienais desde criança, meus pais sempre
gostaram de ir a exposições, sempre visitaram e eu
ia junto. Meus avós também foram na primeira
Bienal de São Paulo em 1951, então isso sempre foi
algo que fez parte da vida deles e da minha. Na
203
escola eu lembro que fui com o Alex Cerveny, meu
professor na época, a uma Bienal. Eu gostava muito
disso tudo, depois eu fiz um curso de desenho que
foi importante, fiquei em torno de três anos nesse
curso e entrei direto do colégio na faculdade de
Artes Plásticas. Eu havia prestado outros
vestibulares também. Achava que não poderia viver
de arte, então pensava em fazer arquitetura para
depois trabalhar com alguma coisa a ver com arte,
ou pensava em fazer ciências sociais, para um dia
estudar algo relacionado à arte. Então eu entrei na
UNESP, eu só havia prestado artes plásticas nessa
universidade. A faculdade não foi tão importante,
mas conheci colegas que foram muito importantes,
pois criamos um grupo de estudos e sempre
fazíamos muitos cursos livres.
V. Você é formada em Artes Plásticas, quais
teóricos possui interesse (historiadores, filósofos,
escritores), ou quais são uma referência e/ou foram
importantes em algum momento?
T. Há vários, e a crítica de arte brasileira foi muito
importante para mim. Fiz um curso com o Rodrigo
Naves de história da arte que foi importante. Com o
Alberto Tassinari também fiz um curso sobre o
Impressionismo. Há também o Lorenzo Mammi,
eu fiz parte de um grupo de estudos que ele
coordenava no Centro Universitário Maria Antonia
da USP, fazíamos vários seminários, e essas
pessoas eram muito próximas e foram parte de uma
formação importante. Houve um momento em que
estudei bastante história e teoria da arte e fazia
204
parte de grupos de crítica, cheguei a fazer uma
disciplina como aluna especial na pós. Mas
começou a acontecer um conflito na minha cabeça,
porque as vezes é difícil demais ficar lendo, por
exemplo, sobre a morte da pintura e fazer pintura
ao mesmo tempo, e em um certo sentido isso
atrapalhou. Claro que a história da arte é uma
matéria bruta para se fazer arte contemporânea, se
você também não tem esse conhecimento é muito
complicado produzir, mas aconteceu de não me
aprofundar nesse lado mais teórico, apesar de me
interessar.
V. E artistas, quais foram importantes para a sua
formação ou são uma referência para você?
T. São vários e a arte tem essa qualidade, de que
ela assim como a sua contemplação, é
contemporânea. Então se você ver um Giotto na
sua frente ele será tão atual quanto, por exemplo,
Matthew Barney, a obra está na sua frente e ela tem
a mesma presença, um pulso forte de ter essa
mesma presença. Há referências de todos os lados,
mas há artistas daqui de São Paulo que foram muito
importantes para mim com os quais fiz cursos
livres. Hoje todo artista praticamente faz faculdade,
mas a 10 ou 15 anos atrás acredito que ainda havia
muitos artistas professores que não tinham
mestrado e que não poderiam dar aula nas
faculdades, então acho que os cursos livres mais
informais chegavam a ser mais importantes do que
a própria faculdade.
205
Então fiz muitos cursos com artistas, como com o
José Resende. Com o grupo de amigos da
faculdade fizemos encontros com o Paulo
Monteiro. Nos encontrávamos todos os meses com
o Paulo e cada vez chamávamos uma pessoa
diferente para falar dos nossos trabalhos.
Chamamos várias pessoas, como Nuno Ramos,
Paulo Pasta, Cássio Michalany, críticos como
Carmela Gross, Sônia Salzstein. Então nesse
momento inicial foi bom, pois criamos uma casca,
pois todo mundo nos detonava, no sentido bom,
para crescer.
V. E há algum artista que você consiga enxergar
uma relação com seus trabalhos?
T. Há vários que talvez influenciaram. Uma relação
eu vejo com o próprio Paulo Monteiro, com Nuno
Ramos também, que possui vários trabalhos que eu
gosto. Na pintura o Sérgio Sister, Paulo Pasta, a
Cristina Canale, há muitos. Do exterior também,
Matthew Barney, Urs Fischer, Bruce Naumann.
V. Quem era o Rico Blass?
T. É meu tio-avô, era pintor. É, mas eu não o
conheci, quando eu morava em Frankfurt, ele
morava em Frankfurt, eu fui visitar só que um mês
antes ele morreu, com 95 anos. Ele era irmão do
meu avo, então eu nunca o conheci pessoalmente.
Ele fazia muita coisa, fazia serigrafia, ele era um
pintor meio decorativo.
206
V. Poderia comentar um pouco sobre a obra Luz
que cega – sentado, que se desconstrói enquanto
acontece a exposição.
T. Essa obra durou em torno de dois meses, ficou
no período da exposição. O museu onde foi
realizada ficava aberto algumas horas por dia e a
noite o refletor era desligado, então o derretimento
começava de novo todos os dias. Esse trabalho foi
como uma continuidade de Fim de Partida, que
tinha a história dos atores que iam derretendo, de
criar essa ação continuada. Começou com os
cachorros, que também criavam essa ação na
exposição, que iam derretendo. E foi depois de Fim
de Partida que começaram a surgir personagens
também, essas figuras humanas.
V. Em Metade da fala no chão – piano surdo
exposto na 29ª Bienal de São Paulo e em outros
trabalhos, você inutiliza instrumentos musicais.
Como você pensa essa certa ‘destruição’ dos
instrumentos?
T. Percebo que há certo senso comum do público
na Bienal, de não conseguir ir além disso. Certa vez
percebi um dos monitores também fortalecendo
esse lado que eu acho tão bobo, de pensar que foi
gasto muito dinheiro em um piano para depois
destruir. O tempo todo as pessoas gastam dinheiro
destruindo coisas, como em comerciais quando um
carro voa, enfim, e ninguém percebe. Na verdade
os dois pianos que usei, um para filmar e o outro
para fazer a performance, foram pianos que
tocaram uma única vez. Um deles por ser muito
207
antigo não segurava a afinação, o afinador ficou em
torno de quatro horas para conseguir afinar, para
conseguir tocar uma única vez. O outro era um
piano cheio de cupim, que foi restaurado para tocar
uma vez. Então, na verdade, não custou tanto
dinheiro, para produzir o catálogo sobre a obra foi
mais caro do que os dois pianos que foram usados.
Há muitos pianos de cauda para vender, porque as
pessoas não têm mais o hábito de ter piano de
cauda em casa. E o piano não é quanto mais velho
melhor, dizem que alguns perdem a alma quando
perdem a afinação muito fácil. Até na televisão
uma repórter me perguntou se eu iria destruir o
piano, respondi que não iria destrui-lo, mas sim que
ele iria transformar em uma escultura. Há a
performance do pianista tocando, nesse processo de
realização da escultura, e depois o que resta é a
escultura pronta.
V. Poderia afirmar que o piano é mais uma
escultura–performance?
T. Sim, exatamente. Em todos os trabalhos com os
instrumentos, de alguma forma eu os silencio, e foi
apenas com o piano que houve a performance, os
outros trabalhos são somente escultura.
V. Em Fim de Partida você alude diretamente
sobre a peça de Samuel Beckett, e em Penélope
mais indiretamente à Odisseia de Homero, como é
sua relação com a literatura?
T. Na verdade a obra Fim de Partida não é
exatamente uma alusão, eu encaro mesmo como
208
uma encenação da peça. Eu peguei tudo como é a
peça, toda descrição dos personagens, todo o
figurino, os objetos de cena, tudo como é a peça
mesmo, e para mim aquilo foi uma encenação da
peça do Beckett.
V. E como foi realizar a peça da literatura para as
artes visuais?
T. Para mim Beckett, Odisseia ou Chopin, são
coisas tão estabelecidas na história da cultura que
elas são coisas. Como eu me aproprio ao usar uma
cadeira eu me aproprio ao usar o Beckett, que já
possui uma força e uma presença tão forte que são
coisas no mundo. Então é com essa liberdade que
eu me apropriei de algo existente. A princípio eu
até havia pensado em fazer uma peça em que os
atores derretem com a ação do refletor e, no
momento, pensei em eu mesma escrever esse texto,
mas depois vi que não faria sentido, porque as
pessoas teriam que ler o texto para saber do que se
tratava, pois seria algo totalmente novo. E o Fim de
Partida é algo que se as pessoas não conhecem a
peça, conhecem um pouco do universo que é o
Beckett. Acredito que a peça casou muito com a
ideia inicial, porque é um fim continuado, um fim
que nunca termina. Então tem muita relação com
essa ação que está sempre em processo, você nunca
vê nem o começo, nem o fim, é sempre esse indo
embora, mas que nunca chega ao fim, um fim
infinito. E no Penélope foi muito diferente porque
foi o título. Eu havia feito o trabalho e não sabia
que título dar e então a produtora da exposição
209
contou o mito da Penélope, pois pensava que havia
relação. Então resolvi dar o título, mas na verdade
às vezes eu acho que até atrapalha um pouco, pode
parecer que é uma ilustração do mito, pois a
referência é muito forte. O trabalho veio de outro
lugar, era para adicionar mais um sentido e não pra
ilustrar uma história.
V. E Penélope surgiu como então?
T. Eu fui chamada pela Capela Morumbi e lá há
sempre trabalhos de site-specific e então eu queria
usar algum elemento próprio de uma capela, por
isso escolhi o tapete vermelho, e a partir disso a
ideia foi se desenvolvendo. Nesse período eu havia
viajado para Minas Gerais e lá existem vários
lugares com um cipó chumbo, que é um parasita.
Ele é um monte de fios que vai se trançando nas
árvores, como um cipó mesmo, e chega a matar as
árvores. Então tinha esse parasita que eu achei
interessante e então juntou essas coisas, e eu tive a
ideia de colocar o tear no altar, pois seria essa
ligação que juntava o tapete. Eu queria muito fazer
alguma coisa fora da Capela também, porque nunca
ninguém tinha feito nada fora, e como havia essa
conexão dos furos existentes nas paredes, assim a
ideia foi se construindo. Na verdade ela se
construiu muito mais pelo lugar da Capela do que
pelo mito, o mito veio totalmente depois.
V. Na série Acidente as pinturas vem
acompanhadas com pequenos textos. Em Electrical
Room você escreve textos para a exposição, em
210
outros trabalhos eles também estão presentes, qual
a relação que você faz entre obra e texto?
T. Quando eu era adolescente eu escrevia muito, e
meu sonho era também ser escritora, pois sempre
gostei muito de escrever, principalmente poesia.
Mais tarde quando fiz parte do grupo do Maria
Antonia, havia uma revista, eu escrevia alguns
textos sobre artistas, mas sempre tive bastante
dificuldade em escrever textos mais dissertativos,
mais claros, na verdade não só dificuldade como
também não tinha muito prazer. Mas eu sempre
escrevi, foi algo sempre presente, então foi mais
uma coisa que juntou e agora nos trabalhos em
vídeo, o texto entra muito forte mesmo. Porque nas
pinturas havia uma relação, mas era muito
autônoma, pois se você visse a pintura sem ler o
texto ou o texto sem ter a pintura, os dois
sobreviviam bem. O texto surge muito quando
penso em mais uma camada de literatura, mais uma
camada de ficção. Penso que essa questão foi uma
virada no meu trabalho, pois quando eu fazia
aquelas pinturas mais abstratas, uma hora aquilo se
esgotou pra mim. Eu sentia falta de criar uma
literatura dentro daquilo, não de criar histórias, nem
acho que narrativa seja tão boa palavra. Narrativa
pressupõe um começo, meio e fim e justamente não
era muito isso, eu acho que era criar camadas de
literatura mesmo, com maior relação com a poesia
talvez. Então, na verdade, os textos nunca
explicavam nada, só atrapalhavam.
211
V. No início seu trabalho na pintura tinha colagens,
elementos mais coloridos, agora seu trabalho está
mais opaco, com o escorrido. Como você vê esses
elementos, essas mudanças no seu trabalho?
T. No começo a pintura tinha mesmo muita relação
com a colagem e eu também fazia colagens.
Acredito também que esses trabalhos com corte,
como Patas e Zona Morta, possuem relação com a
colagem, como se partissem dela, há uma
autonomia da forma no corte. Acho que naquele
momento eu fazia tudo a partir do recorte, da cor,
onde o lugar dela era naquela forma, não era uma
cor que se expandia. Mais recentemente, houve o
momento do ano passado onde fiz as pinturas da
série Acidente que eram todas brancas e pretas, e
agora eu estou retomando bastante a cor. Mas agora
o que eu não quero é que elas fiquem ligadas à
forma então, muitas vezes, a figura se torna o
espaço, torna-se algo muito junto. Naquelas
primeiras pinturas a cor era realmente muito
importante. Eu criava um certo desafio, como por
exemplo, como colocar um amarelo com prata, ou
um lilás com rosa, coisas que a principio para mim
eram as mais difíceis de conviverem umas com as
outras, como conseguir que elas ficassem bem.
V. E nas esculturas e instalações seus trabalhos
foram passando de materiais mais rígidos para os
mais maleáveis, poderia comentar essa transição
também?
T. É até interessante pensar o trabalho que está na
exposição 30x Bienal. Em Cauda #2 é engraçado
212
ver como aquele falso derretimento era feito com
madeira. Era quase uma cenografia de algo
derretendo, e depois eu usei um material que faz
parte da característica dele derreter facilmente. Eu
acredito que o momento do Cauda era um
momento de formação. Naquele momento as
esculturas eram quase que pinturas no espaço ou
esculturas pictóricas, elas eram muito ligadas às
pinturas e elas tinham essa ideia de pensar um
pouco qual é o espaço da pintura no mundo, que
era algo que me interessava, como é a pintura para
além dela mesma. Até o meu TCC (Trabalho de
Conclusão de Curso na graduação) tinha relação
com isso, àquelas pinturas abstratas, a escala das
pinturas que quase criavam um ambiente como em
Barnett Newman e Rothko. Então comecei a pensar
que na verdade o espaço da pintura era o espaço
decorativo, era o espaço da casa em relação às
outras coisas, que ela não era ela nela mesma, ela
tinha uma relação com aquele entorno. Então
comecei a pensar um pouco esse lugar decorativo
da pintura, mas por um lado acredito que havia uma
certa ironia, que é um pouco até da Pop Art, mas
que depois não me interessa mais, porque penso
que é algo que vem mais pela negação do que pela
afirmação e eu prefiro muito mais ainda tentar
construir coisas do que negar. Então acho
engraçado ver aquele trabalho que tem um pouco
essa ironia, do derretimento cenográfico, que não é
do próprio caráter da matéria.
213
V. Você afirmou que trabalha com ficções, no que
você se inspira para criar essas narrativas? De onde
vêm os temas abordados?
T. É sempre muito difícil falar sobre o trabalho,
pois muitas vezes você está um pouco confusa de
onde veio. Acho que cada vez mais se exige muito
a fala do artista. É um momento que eu sinto, pelo
menos aqui em São Paulo, da crítica de arte com
um espaço muito mínimo, quase não existe debates,
você faz uma exposição, você vai à exposição, não
tem um debate sobre aquilo, não tem uma conversa
pública sobre aquilo. Penso que existe um lado bem
complicado nisso, pois muitas vezes tudo é pautado
na fala do artista, que muitas vezes, não é a pessoa
mais apropriada para ter essa conversa. Porque as
vezes depois tudo que sai publicado é aquilo
mesmo que você falou, que de repente nem sei se
faz muito sentido. Então eu não consigo ver com
muito distanciamento o que é um tema, eu tento ser
o mais sincera possível com as coisas que eu faço,
mas às vezes é muito difícil verbalizar.
V. Percebo alguns conceitos no seu trabalho, como:
narrativa, que você não gostou do termo, gesto,
vestígio, ilusão, morte, encenação, tempo. Poderia
comentá-los?
T. Vejo que há tudo isso, poderia ter mais,
justamente o que quero é que cada um ache as suas
palavras para aquilo. Mas acho que a história da
morte é algo muito presente mesmo, mas no
sentido não tanto da morte como algo da morte real
mesmo. Acho que tem muita relação também com
214
essa ideia de fim continuado nos trabalhos, que na
verdade não é somente uma morte, mas há também.
Acredito que os trabalhos com cachorros para mim
são os mais violentos nesse sentido. Na verdade eu
não tinha muita ideia do que estava fazendo quando
eu produzi na Bahia o cachorro preto (Cão cego),
pois ele parece muito real. Ficou muito bem feito, e
ele está parte derretido e aquilo estava em uma
capela, então aquilo realmente tem uma certa
repulsão, que eu acho que também é algo em que
eu nunca tinha mexido. Penso que há um dado de
violência ali, que eu acho que também é um susto,
também uma repulsa, que espero que seja reflexiva
também. Então, penso que às vezes eu tenho certa
tendência de domesticar essa violência, deixar ela
mais branda em vários trabalhos, e penso ser até
algo mais interessante do que a violência tão
escancarada.
V. Percebo no teu trabalho que são temas fortes,
mas tratados de forma poética. Também percebo a
recorrência do cachorro nos seus trabalhos, poderia
comentar.
T. Todo mundo pergunta sobre isso, mas na
verdade eu não tenho muito uma relação pessoal
minha com o cachorro. Escolhi por ser uma figura
muito próxima ao homem, e quando fiz o trabalho
na capela para o MAM da Bahia na exposição Cão
Cego, achei que era interessante a figura do
cachorro numa capela por ter essa coisa meio
amaldiçoada do cachorro. Coloquei um cachorro
vira lata se desfazendo, quis lidar com isso e os
215
cachorros surgiram muito com essa coisa do ator
impossível, como nas pinturas que estão nos
palcos. Mas não há nenhuma história pessoal, foi
mais por ser o animal mais próximo do homem,
quase tão humano, e que as pessoas fazem o
máximo para humanizar o cachorro.
V. Você afirma que cria ficções, procura esse
distanciamento da sua vida pessoal?
T. Sim, porque para mim é como escrever um livro,
onde o personagem é um velho, por exemplo. Eu
inventei outro mundo, para mim é mais interessante
inventar vários universos do que ficar falando de
mim mesma. É claro que eu estou ali, não tem
como fugir da minha própria subjetividade, mas
não gosto de ser colada à vida, eu quero criar essas
ficções.
V. E como foi participar da 29ª Bienal de São
Paulo, como surgiu o convite?
T. Foi algo muito importante na minha carreira,
porque tem muita visibilidade. O convite foi um
pouco em cima da hora, e eu fiquei muito com
medo por fazer um trabalho que nunca tinha
realizado antes, pois fiz o trabalho especialmente
para a Bienal. Gostaria muito de ter colocado ao
menos uma pintura, mas não foi possível. Foi muito
bom ter feito o filme antes do Metade da fala no
chão –piano surdo, porque ao vivo foi muito
difícil. E também era um trabalho sobre o silêncio e
estava em uma situação com um espaço com o pé
direito gigantesco, muito amplo, com muitas
216
pessoas falando, embaixo da lanchonete. Então foi
muito bom ter feito o vídeo porque ele também não
é só o registro, ele é um trabalho em si também.
V. E na exposição 30x Bienal, você já disse que
não foi você quem escolheu a obra exposta, com
surgiu o convite?
T. Foi um pouco estranho, pois me pediram uma
imagem de uma pintura, perguntei do que se tratava
e me disseram que era para a exposição da Bienal.
Perguntei se estava participando, pois não fui
convidada, então me disseram que sim, então
questionei se era somente com a pintura
mencionada, pois é uma pintura bem pequena, de
2003, do acervo do Centro Cultural São Paulo, mas
até então tudo bem. Depois o curador me escreveu
perguntando da série Cauda #2, falei com quais
colecionadores que estavam e no fim essa pintura
não entrou, pois houve uma confusão com a
prefeitura. Aliás, bem absurdo, porque eles pediram
um valor alto para o empréstimo da obra de um
acervo público, de uma obra que eu doei, e eles não
emprestavam para a Bienal a não ser por um valor
alto. Por isso que está essa obra agora, que é de
uma coleção particular, mas que foi emprestada
sem cobrar nada.
V. Você possui obras em acervos importantes,
como a Pinacoteca SP, MAM Rio e MAM SP.
Como aconteceu esse processo, foi por doação,
aquisição, poderia esclarecer?
217
T. No Centro Cultural São Paulo, uma delas eu
doei e a outra foi prêmio aquisição na época em
que houve a exposição. Na Pinacoteca, foi através
da feira SP Arte, onde há empresas investidoras
que dão verba para o museu e o museu escolhe a
obra que vai comprar. O MAC foi a mesma coisa, e
o MAM foi doação, por conta do prêmio Pipa, onde
doei uma obra para o MAM e duas para os
investidores.
V. Como surgem os convites para expor no
exterior? São mediados pela Galeria Milan, que te
representa?
T. Não, nada acontece pela galeria. Ela me dá uma
estrutura de logística e tudo mais, mas as
exposições não são através dela. Meu contato é
direto com a instituição aonde vou expor. Eu já
havia exposto fora, mas obras bem pequenas, esse
ano que eu viajei bastante. Vai acumulando, vão
chegando vários convites de vários lados. Uma
exposição muito importante foi na Cisneros, era um
projeto onde há uma comissão que seleciona os
projetos enviados e eu passei. Foi em Miami
(EUA), e lá fiz Metade da fala no chão – bateria.
Eram cinco artistas na exposição e ela teve muita
visibilidade. Vejo também que o Brasil está muito
em evidencia, então está tendo muitas exposições
de arte brasileira, está até na moda. A exposição em
Denver foi algo bem especial para mim também.
Uma curadora tinha visto a obra da bateria em
Miami e falou de mim, eles foram pesquisar e me
convidaram. Foi pelo trabalho anterior, e lá eles
218
comissionaram um trabalho novo, foi incrível, eles
eram ótimos.
V. Como foi a experiência de residência artística
em Londres?
T. Foi muito importante, nunca havia feito
residência artística, mas foi muito importante para
viver outro contexto, poder visitar muitas
exposições, poder viver em Londres onde você vê
muita coisa. Às vezes eu ia até na National Gallery
só pra ver Rembrandt, então não era tão corrido
como uma viagem de turismo, você vivencia a
cidade de outra maneira. Mas talvez o que eu tenha
feito errado é que eu quis realizar um trabalho,pois
normalmente, eu não tinha entendido isso, na
verdade eu não consigo viver muito desse jeito,
mas para eles é mais importante o processo do que
o trabalho. E eu não consigo processar desse jeito.
Quando aconteceu o prêmio Pipa, os quatro
finalistas tinham que escrever o que faria na
residência se ganhasse o premio. Escrevi o projeto
da obra que eu iria fazer, pois tenho uma amiga que
é atriz e mora em Londres, e eu queria fazer uma
coisa com ela. E para mim, se escrevi aquilo e
ganhei o prêmio, eu tinha que realizar o que eu
escrevi. Mas acho que não tinha que ser assim, pois
foi loucura fazer aquele trabalho lá, pois eu não
tinha estrutura nenhuma, não tinha câmera, não
tinha nada vezes nada. Então tive que arcar, não sei
como eu consegui arranjar câmera, luz, atores,
edição, tudo lá, porque no fim, rolou uma
219
comunidade brasileira, e todo mundo foi se
envolvendo e eu consegui fazer o Hard Water.
V. De onde provêm os recursos para executar obras
mais caras, como Vaga?
T. Depende. Geralmente a galeria ajuda muito
nesse sentido. O acordo é dividir 50% de todos os
gastos quando é para eles. Muitas vezes em
exposições institucionais eles também ajudam.
Acho que existe uma crítica muito grande referente
ao mercado, mas ao mesmo tempo aqui no Brasil
são eles também que sustentam as instituições.
Quase todas as exposições de artistas
contemporâneos é a galeria que ajuda a produzir.
Também por produzir pintura isso me dá uma
condição maior de viver de arte, mas muitas vezes
eu coloquei dinheiro meu nos trabalhos, era o valor
de uma venda para fazer outro trabalho, ou fazia
acordos com a galeria e ficava um tempo sem
receber, então há muito investimento. Fora todas as
coisas que você faz e não dá certo, que vão para o
lixo. É um trabalho de muito investimento, acho
que é isso que faz girar as outras coisas que vão
vindo depois.
V. Com relação às obras em cera, o que acontece
quando a exposição acaba? O que resta é
descartado? E com relação a obras de maiores
dimensões, como Piano Surdo, Vaga ou até mesmo
Cerco, como você armazena essas obras?
T. Sobre as obras em cera, após as exposições eu as
descarto, mas guardo o molde para poder refazer a
220
cera novamente. Piano Surdo é parte da coleção do
Instituto Figueiredo Ferraz e fica permanentemente
exposta. Já Cerco é parte de uma coleção
particular, onde é armazenada. Algumas obras eu
guardo e outras a galeria, mas geralmente as
grandes instalações tem que ser novamente
produzidas a cada exposição.
V. Quais os próximos projetos e/ou exposições que
virão?
T. Agora vou fazer essa exposição que abre dia 17
de outubro de 2013 em Nova York, que é uma
individual em uma galeria. Depois eu estou
participando de um projeto solo na feira de Bogotá,
que também foi um curador que me chamou, e em
janeiro de 2014 eu vou fazer parte de uma
exposição em Ohio, que é uma coletiva de arte
brasileira. E talvez tenha algo no Canadá também,
de ficar algumas semanas lá pra produzir uma obra.
No Brasil fora todas as feiras, como a SP Arte, tem
também a Miami Base, às vezes é muito trabalho.
V. Você tá fazendo uma série chamada Entrevistas,
poderia comentar?
T. É um pouco no sentido dessa exposição, a
entrevista como o seu discurso público de você
mesmo, então um pouco você está encenando o que
você é, tentando achar o jeito certo de falar das
coisas, é mais nesse sentido.
221
APÊNDICE C – Fotos do ateliê da artista
As fotos foram tiradas em outubro de 2013 e o
ateliê encontrava-se em sua maior parte com as
paredes vazias por conta de uma montagem de
exposição que se aproximava.
Figura B 1 – Foto do ateliê de Tatiana Blass
Fonte: arquivo pessoal.
222
Figura B 2 – Foto do ateliê de Tatiana Blass
Fonte: arquivo pessoal.
Figura B 3 – Foto do ateliê de Tatiana Blass
Fonte: arquivo pessoal.
223
Figura B 4 – Foto do ateliê de Tatiana Blass
Fonte: arquivo pessoal.
Figura B 5 – Foto do ateliê de Tatiana Blass
Fonte: arquivo pessoal.
224
Figura B 6 – Foto com Tatiana Blass
Fonte: arquivo pessoal.
225
APÊNDICE D – Visita a exposições
A seguir os registros de exposições que Tatiana
Blass participou no Brasil entre 2013 e 2014 e que
foram visitadas.
Figura C 1- Exposição 30X Bienal em São Paulo. Outubro de
2013. Obra: Cauda, 2005.
Fonte: arquivo pessoal.
Figura C 4 - Exposição
Quase Figura, Quase Forma.
Galeria Estação, São Paulo,
setembro de 2014.
Obra: Teatro #3, 2013.
Figura C 5 - Exposição
Quase Figura, Quase Forma.
Galeria Estação, São Paulo,
setembro de 2014. Obra: O
fotógrafo #2, 2012.
Fonte: arquivo pessoal. Fonte: arquivo pessoal.
226
Figura C 6 - Exposição Quase Figura, Quase Forma. Galeria
Estação, São Paulo, setembro de 2014.
Obra: Voltando pra casa, 2014.
Fonte: arquivo pessoal.
Figura C 2 - Exposição Singularidades/Anotações Rumos
Artes Visuais 1998-2013. Itaú Cultural, São Paulo, setembro
de 2014. Obras: Rublev, 2013 (pintura), Entrevista 1.3, 2013
(escultura abaixo), Entrevista 1.1, 2013 (escultura parede).
Fonte: arquivo pessoal.
227
Figura C 3 - Exposição Singularidades/Anotações Rumos
Artes Visuais 1998-2013. Itaú Cultural, São Paulo, setembro
de 2014. Obras: Observadores #2, 2013 (esquerda),
Observadores #3, 2013(direita).
Fonte: arquivo pessoal.
Figura C 7 - Exposição Quase Figura, Quase Forma. Galeria
Estação, São Paulo. Fala com o curador da exposição Lorenzo
Mammì e os artistas também participantes da exposição Paulo
Pasta e Sérgio Sister em 30 de setembro de 2014.
Fonte: arquivo pessoal.
228
Apêndice E – Lista de catálogos
A seguir estão listados os catálogos e folhetos de
exposições adquiridos com a pesquisa de campo.
30 X Bienal. Folheto de exposição. São
Paulo: [s.n.], 2013.
Acidente. Catálogo de exposição. São
Paulo: Galeria Millan, 2012.
BARRO, David (org.). Tatiana Blass.
Santiago de Compostela: Dardo, 2008.
Cão cego. Catálogo de exposição. Bahia,
[s.n.], 2009.
Cauda. Catálogo de exposição. São Paulo:
Galeria Virgilio, 2005.
Penélope. Folheto de exposição. São Paulo:
Madai Produções, 2011.
Quase Figura, Quase Forma. Catálogo de
exposição. São Paulo: Lis Gráfica, 2014.
Sala A Contemporânea. Folheto de
exposição. Rio de Janeiro: Centro Cultural
Banco do Brasil, 2010.
Singularidades/Anotações Rumos Artes
Visuais 1998-2013. Catálogo de exposição.
São Paulo: Itaú Cultural, 2014.
Tatiana Blass. Catálogo de exposição. São
Paulo: Caixa Cultural, NU Projetos de Arte,
2011.
Tatiana Blass. Catálogo de obras. São
Paulo: [s.n], 2010.
229
Tatiana Blass. Folheto de exposição. São
Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2003.
Teatro da Despedida. Catálogo de
exposição. São Paulo: Galeria Millan, 2010.
230
231
ANEXOS
Segue em anexo fortuna crítica pesquisada da
artista.
ANEXO A – Paisagem de papel. Tiago Mesquita
Texto para o Programa de Exposições do Centro
Cultural São Paulo, 2003.
Fonte: Tatiana Blass. Folheto de exposição. São
Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2003.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Paisagem de papel
TIAGO MESQUITA
Já faz algum tempo que a pintura de Tatiana Blass
procura formas mais definidas e relações mais
estáveis entre os seus elementos. Desde 2001, a
artista aumentou a sua gama de cores. Passou a
organizá-la de maneira mais regular. Os blocos de
tinta foram fechados em massas bem delimitadas,
organizadas geometricamente, com um vocabulário
visual simplificado. As formas aparecem
dissociadas umas das outras, atuam no quadro
como objetos autônomos.
Elas não estabelecem solidariedade, nem
intimidade com suas convivas. Não têm objetivos,
232
tampouco ideais comuns. Em geral, suas cores
também não se assemelham. São bem marcadas e
não procuram relações tonais. Apresentam recortes
inusitados e matizes pouco familiarizados. Quando
as manchas se avizinham umas das outras,
estabelecem contrastes notáveis. As formas
parecem ver suas vizinhas como completas
desconhecidas, elas se viram pela primeira vez
nesta tela. Mas isso não é motivo para elas criarem
conflitos.
A artista é delicada, tenta ajeitar estas diferenças.
Aliás, é difícil incomodar estas pastas de tinta. Elas
parecem ter saído direto da fábrica, têm cores
artificiais, por vezes kitsch. Nas colagens, isso é
ainda mais acentuado. As estampas se parecem
com fórmica, capas de caderno e papel de parede.
Em alguns trabalhos imitam um céu desanuviado e
os veios da madeira. Tudo em um padrão contínuo,
que saí quente da máquina. Por isso, temos a
impressão que, talvez, elas aceitassem qualquer
arrumação, mas isso parece pouco para Tatiana.
O trabalho não se dedica apenas à arrumação
mansa das formas num espaço neutro. Também,
não parece lhe interessar a lida estritamente
objetiva com elas. Embora estes materiais sejam
pouco artesanais e não guardem sinais de
expressividade, eles passam longe da serialização
minimalista e mesmo do planejamento do
concretismo. Na contramão desta objetividade das
formas, a artista parece procurar uma nova forma
233
de se construir intimidade. Deste modo, seu gesto
não muda nossa relação com a natureza isso, ao que
parece, passa bem longe dela. Ela se vale de
materiais prontos e acabados, e os desvia sua
função convencional.
Tais superfícies ainda são regulares, repetitivas e
lisas. Poderiam ser usados da maneira mais discreta
possível. Mas a artista lhes atribuiu ambigüidade.
Ao mesmo tempo, são planas e profundas. Apesar
das formas de tinta, por vezes, se projetarem pra
fora da tela, seus recortes sugerem um volume que
nos leva para dentro. Colocados lado a lado,
aqueles planos, aparentemente anódinos, costuram
contornos com o espaço em branco e insinuam
paisagens. Um pedaço de revestimento de móvel
vagabundo parece uma mobília em um dos
recortes.
A artista se vale da ambivalência da forma e da
escala de seu trabalho para atribuir um sentido
íntimo a formas tão frias. Aqui elas não são
encaixadas em uma ordem predeterminada,
parecem ganhar outro sentido. Como se diante da
impossibilidade de se renovar a relação com a
natureza, coubesse a estes trabalhos, ao menos
atribuir novo sentido aos artefatos, para que eles
não apareçam tão alheios a nós.
234
ANEXO B – Por um belo desconcertante. Luiz
Camillo Osorio
Texto escrito para exposição na Galeria Virgilio,
São Paulo, 2005.
Fonte: BARRO, David (org.). Tatiana Blass.
Santiago de Compostela: Dardo, 2008.
Cauda. Catálogo de exposição. São Paulo: Galeria
Virgilio, 2005. Também está no catálogo: BARRO,
David (org.). Tatiana Blass. Santiago de
Compostela: Dardo, 2008.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Por um belo desconcertante
LUIZ CAMILLO OSORIO
O desafio para quem escreve sobre a obra de
Tatiana Blass é dar conta da pulsação cromática de
sua obra. Ela conquista o silêncio com cores que
berram. É um colorido raro, diferenciado, mas feito
de cores comuns, banais mesmo, beirando algumas
vezes o kitsch. Falar da cor aí é falar de uma
ousadia decorativa, de uma vontade desarmada de
assumir um belo desconcertante. É desarmada no
sentido de que nada em sua obra parece forçado ou
artificial e é desconcertante porque é
surpreendente. Como é possível uma pintura cool
235
usando cores tão “cheguei”? Outra pergunta se
apresenta diante dessas divagações iniciais: será o
belo ainda uma denominação pertinente e desejada
pela arte? Temo esta palavra por conta de uma
certa inviabilidade metafísica. O tempo e as
múltiplas idealizações retiraram dela qualquer
pregnância de sentido. Mas como deixá-la de lado?
Será possível dar-lhe alguma atualidade?
Decorativo, então, é xingamento deliberado. Pobre
Matisse. Cabe dizer, entretanto, que isto não
aconteceu à toa; de fato um esteticismo vazio e
uma cooptação frente às determinações do mercado
levaram a esta situação complicada em que o belo
perdeu espírito e o decorativo abriu mão de
qualquer rigor estético. Para uns o belo é impotente
porque não se deixa apreender intelectualmente,
para outros ele é indesejável pois se deixa seduzir
pelo brilho decorativo.
É neste território minado em que impotência
conceitual e insatisfação ética mostram-se de
imediato que queremos tratar da beleza nas obras
em questão. Diante das colagens, pinturas, objetos
e instalações de Tatiana Blass nos vemos sempre
em alerta, nossos sentidos ficam despertos, atentos
e mobilizados. Deparamo-nos com formas
desengonçadas mas precisas. Uma mistura
poderosa de desassombro e intuição parece
conduzir suas ações plásticas. A intuição aí não
funciona como algo espontâneo, fácil, que daria à
sua poética um caráter um tanto ingênuo. Não. O
que se apresenta é uma sabedoria quase física dos
236
materiais, principalmente das cores, que funcionam
por contrastes de textura e temperatura. Uma
pintura muitas vezes feita com materiais comuns e
que apela ao nosso sentido tátil. Cores exaltadas e
tímidas convivem sem se acomodarem. São poucos
os artistas jovens, hoje em dia, que assumem a
pintura com o mesmo frescor de Tatiana Blass.
O belo é o que produz uma diferença em nossa liga
sensível com o que está a nossa volta, com o que é
exterior. A autonomia do belo vai se dar no mesmo
momento histórico em que o homem assumia sua
maioridade política e espiritual. Esta possibilidade
do belo coincide com a experiência de um sujeito
livre para sentir e julgar, capaz de se postar frente
ao mundo sem os constrangimentos de uma
racionalidade instrumental que nos distingue a
priori o certo do errado, o artístico do não-artístico.
Schiller sacou esta relação entre a autonomia do
juízo estético e sua vocação política – o sentido
pleno de liberdade. O livre jogo das faculdades,
caro à experiência estética, corresponde ao livre
jogo entre os cidadãos anônimos da polis moderna.
Há que se compreender o belo como um
acontecimento singular que se apresenta aos
sentidos, à percepção, e nos mobiliza a ver o
mundo, senti-lo, de modo diferenciado. O belo nos
retira de uma indiferença perante as coisas e nos
faz desejá-las sem consumi-las. O difícil, e esta foi
a principal razão de seus atritos com a metafísica, é
que a experiência do belo vai ser sempre um
acontecimento singular, calcada no sensível, que
237
não se antecipa nem se define a priori. Ele se
apresenta e temos que estar a postos. Ele é sempre
diferente, sendo sempre comum. É a diferença que
se dá no meio do comum. Aqui voltamos aos
trabalhos de Tatiana Blass, que quer o comum, nas
suas cores, materiais, formas, para retirá-lo do reino
da banalidade, da indiferença, do mesmo.
Muitas vezes suas peças se deixam contaminar por
uma atmosfera kitsch, mas recusam o excesso
sensorial. Há contenção sem sofrimento nenhum. A
tonalidade afetiva que atravessa a obra mistura,
curiosamente, alegria e tédio. Mas é um tédio que
não inspira desapego, apenas um dar de ombros ao
que não seja a presença gratuita e imediata da obra.
É como se suas peças dissessem: pra mim tá bom
assim. Baudelaire, guardadas as diferenças, acho
que gostaria da atitude destas obras.
Outro aspecto importante que começa a aparecer
em sua obra refere-se à relação entre pintura,
colagem, objeto e instalação. Na verdade, creio que
tudo leva a uma noção de ambiente, de criar um
ambiente, uma atmosfera, onde a vida, a mais
comum possível, possa ser vivida na sua estranheza
originária. Seja na tela, seja fora dela, no espaço
real, o que percebemos são campos de energia
cromática e de formas sensuais que se propagam e
nos abarcam. É um mundo de cores para ser sentido
na pele. Vale dizer também que seus contos, suas
pequenas peças literárias, dialogam de perto com
tudo isso.
238
ANEXO C – Tatiana Blass: sobre a dificuldade ou
a necessidade do inverso. Cauê Alves. Texto para a
exposição no Paço das Artes, São Paulo, 2006.
Fonte: BARRO, David (org.). Tatiana Blass.
Santiago de Compostela: Dardo, 2008.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Tatiana Blass: sobre a dificuldade ou a
necessidade do inverno
CAUÊ ALVES
Em 1948, prestes a inaugurar uma grande
exposição no Museu de Arte da Filadélfia, Henri
Matisse, em carta para o então diretor da
instituição, Henry Clifford, manifestou
preocupação com a suposta ausência de
dificuldades de sua pintura: “Sempre tentei ocultar
os meus esforços, sempre desejei que minhas obras
tivessem a leveza e a alegria da primavera, que
nunca nos permite suspeitar o trabalho que custou.
Por isso, receio que os jovens, vendo em minha
obra apenas uma facilidade aparente e negligência
no desenho, se sirvam disso como desculpa para
evitar certos esforços que me parecem
necessários”.
239
Se pudéssemos incluir Tatiana Blass entre esses
jovens, o receio do mestre teria sido em vão. Sua
pintura, apesar do frescor e da delicadeza, possui
um rigor formal que deixa evidente o empenho que
exige. Não há, por parte dela, qualquer tentativa de
recorrer a atalhos ou chegar à primavera sem antes
atravessar a severidade do inverno. As várias
camadas de tinta sobrepostas jamais dissimulam o
esforço da artista, mesmo que o resultado tenha a
aparência geral de uma paisagem cujos contrastes
cromáticos estejam apaziguados, e isso vale
inclusive para as cores mais berrantes. O seu
esforço é no sentido de acomodar e aquietar massas
diversas de cor do melhor modo possível, ou seja,
encontrar intuitivamente certo acordo cromático
que estruture o trabalho. E essa árdua tarefa é
cumprida ao mesmo tempo em que seu trabalho
ganha densidade.
Embora a pintura seja algo onipresente na trajetória
da artista (inclusive, nas pinturas recentes, as
relações tonais são mais valorizadas e dependem,
cada vez menos, de um fundo neutro que o branco
tendia a se tornar), nos últimos tempos, novas
experiências, notadamente trabalhos
tridimensionais, têm lhe interessado. Páreo —
escultura de mármore em que quatro patas de
cavalo, em tamanho real, descem as escadarias do
Paço das Artes — remete-nos, assim como muitas
de suas pinturas, à paisagem. Mas aqui há apenas
um índice do animal, uma vez que uma espécie de
linha do horizonte elimina a maior parte do seu
240
corpo. Assim, cabe ao visitante, mais do que inferir
o dorso do cavalo, completar o entorno e relacionar
o trabalho com o local em que está colocado.
Já a operação feita em Espartilho é diversa, em vez
de seccionar a paisagem, há uma espécie de desafio
à lei da gravidade. Trata-se de quatro plataformas
de diferentes espessuras e alturas, apoiadas em
estruturas de madeira, que elevam os galhos de
uma goiabeira no canteiro central da Avenida da
Universidade. Mais do que aludir a uma paisagem
ou representá-la, a artista interfere diretamente na
natureza. O “fundo” sobre o qual o trabalho pode
ser percebido é a própria Cidade Universitária, mas
só haveria essa percepção se o trabalho não se
disfarçasse entre as árvores para evitar um assédio
direto. A estrutura que agora sustenta a copa da
árvore — assim como a cinta que comprime o
abdome e a cintura da mulher para deixá-la mais
esbelta — não poderia ser evidente e, por isso, a
pintura verde a camufla. Mas é certo que a
goiabeira, segundo um determinado padrão — que
talvez não seja o predominante em nosso tempo,
nem comum para uma árvore — está agora mais
elegante.
Todavia, a elegância desse trabalho diverge das
técnicas de Photoshop ou lipoaspirações tão
comuns nos dias de hoje. É uma elegância altiva,
de um momento determinado, que busca, em vez de
podar a natureza, modelá-la provisoriamente e, por
241
isso, talvez seja essa uma beleza fora de moda, ou
melhor, que se recusa a estar sempre na moda.
Desse modo, o projeto de Tatiana Blass, se, por um
lado, também oculta as próprias dificuldades do seu
fazer, permite-nos ampliar o receio de Matisse:
mesmo que não traga exatamente uma alegria da
primavera, o trabalho não faz concessões e exige
um esforço também do público.
242
ANEXO D – Zona Morta. Taísa Palhares.
Texto escrito para a exposição no Centro
Universitário Maria Antonia-USP, São Paulo,
2007.
Fonte: TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Zona Morta
TAÍSA PALHARES
Em Zona Morta, Tatiana Blass ocupa uma das salas
do Maria Antonia com móveis e objetos dispostos
como em uma sala de estar, só que fendidos na
altura do olhar do espectador. Trata-se de criar, a
partir de um ato de secção, uma faixa branca de
aproximadamente 80 cm em que se produz uma
zona de silêncio ou intervalo tanto entre as partes
das coisas quanto no espaço expositivo como um
todo. Talvez não exista nada mais doméstico e
cotidiano do que uma sala de estar.
Originariamente é o local de encontro dentro da
casa; onde recebemos os amigos, sentamos para ler
um livro, descansamos e nos sentimos protegidos.
Na sala construída pela artista, pinturas antigas, de
família, convivem com o piano, a televisão, o
tapete, a estante, os discos e trabalhos de sua
autoria. É essa domesticidade que é ligeiramente
dissolvida pela fenda, a “zona morta” que
transporta esse local para o universo do imaginário.
Em suas pinturas e colagens, Blass já explorara a
descontinuidade como elemento constitutivo da
243
relação entre formas e cores. Na intervenção Atavio
(2004), campos de cor se espalhavam pelo chão,
criando uma sensação de estranheza, matizada pela
maneira como pareciam brotar naturalmente das
paredes, degraus e vasos.
Em cauda_cadeira (2005) o elemento
desestabilizador encontra-se na junção da mancha
tutti-frutti à cadeira de madeira de linhas
geométricas: de repente tudo parece adquirir uma
maleabilidade de desenho animado. Em Zona
Morta, artifício e realidade novamente se misturam,
causando aquele leve estranhamento pelo qual o
espectador é lançado por um instante a esse
intervalo de dúvida, de espanto, que alguns
filósofos gregos tanto apreciavam como o momento
que precede todo conhecimento.
244
ANEXO E – Um sol partido ao meio. Rodrigo
Moura.
Texto escrito para a exposição na Galeria Carminha
Macedo, Belo Horizonte, 2007.
Fonte: BARRO, David (org.). Tatiana Blass.
Santiago de Compostela: Dardo, 2008.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Um sol partido ao meio
RODRIGO MOURA
Minha primeira impressão sobre as pinturas de
Tatiana Blass foi a de estar diante de uma poética
solar, timidamente hedonista, mas apoiada numa
idéia de prazer decorativo ou de forma voluptuosa,
cuja matriz me parecia vir de Matisse. Tratavam-se
de quadros não muito grandes (50x70 cm, em
média), marcados por um processo baseado na
pintura por estêncil (o uso das máscaras servia para
conter as cores e criar formas entre geométricas e
orgânicas) e pelo uso atrevido das cores, oscilando
entre a busca por harmonia e a aceitação mais
direta da acidez obtida (verde e rosa é a
combinação mais óbvia desta paleta de pinturas,
circa 2004). Estas obras tinham uma vibração
sensual que as tornavam irresistíveis e traziam um
frescor que parecia transbordar da tela e querer se
esparramar pelo mundo.
245
Num primeiro momento, tais atributos chamaram a
atenção da crítica, sobretudo pela pujança
cromática. Segundo uma leitura mais formalista da
obra, podia se tratar de ousadia dentro de um
programa no qual a abstração (e suas “boas regras”)
ainda era o norte. Daí a expressão kitsch ter
aparecido tão freqüentemente para descrever e
comparar, figurando como contradição a uma
pintura supostamente ainda impregnada dos
ditames greenberguianos – como se sabe, a não
comunicação da arte com qualquer assunto que
extrapole a própria obra. Mas, logo adiante, já
pareciam surgir algumas ligações entre estas
pinturas e objetos mais experimentais que a artista
passou a produzir. Sobretudo, eles comungavam de
uma idéia já presente na pintura: a dificuldade de
articulação entre os elementos de uma mesma
composição, evocando diálogos entre gravidade e
suspensão, contenção e dispersão.
Quando encontrei-me com a artista para a coleta de
dados para este texto, ela vinha de inaugurar uma
exposição no Centro Universitário Maria Antônia.
Nesta peça, chamada Zona Morta (2007), a artista
utilizou uma minúscula sala da instituição para
criar uma instalação na qual reproduzia o ambiente
doméstico de uma sala de estar, tal e qual, com
sofás, estantes, um piano, mesinhas de canto e de
centro, livros, discos e fitas, uma televisão e muitos
quadros na parede. Embora a apropriação não seja
seu assunto central, a sala evoca claramente uma
246
típica casa da classe média brasileira, talvez situada
em algum momento dos anos 1970.
Há, contudo, um elemento de profunda estranheza
para um ambiente desta natureza: uma grande faixa
vazia circula todas as paredes do recinto, criando
uma zona morta parecida com um efeito de
desenho animado, mas com impacto
profundamente físico. Passando por cima dos
objetos, esta área, além de instaurar um espaço
vazio, cinde os elementos da instalação, entre eles
um piano, um disco de Roberto Carlos, uma
televisão e uma pintura da própria artista. As partes
não foram retiradas, mas são, radicalmente,
divididas em pedaços. Pensamos em Desvio para o
Vermelho (1967-84), de Cildo Meireles, mas aqui
me parece que a lógica é mais improvável ainda do
que na obsessiva coleção de objetos vermelhos.
Além dos objetos banais, outros elementos chamam
a atenção e oferecem pistas à clef na sala de
Tatiana – referências a Bruce Nauman, objetos op,
um móbile setentista, um livro de Nuno Ramos –
criando uma cadeia de referências metalingüísticas
e autobiográficas no interior do espaço ficcional
criado para o personagem. Não por acaso, o espaço
serviu para a artista encenar um vídeo.
Diante de uma obra com contornos conceituais tão
evidentes, perguntei à artista o que unia trabalhos
como aquele à sua pintura? Ela se referiu ao
encaixe, ao corte e à imposição da linha na
composição. Todos estes atri-butos formais,
presentes na pintura, se colocam de maneira
247
figurada também no seu trabalho. Por exemplo,
pensemos no estranho lugar que um espaço tão
doméstico cria no contexto de uma instituição arte,
num prédio universitário.
Zona Morta foi desenvolvido logo após a artista
criar uma série de objetos que estão reunidos na
Galeria Carminha Macedo, na sua primeira
exposição individual em Belo Horizonte. Talvez o
mais emblemático deles seja uma série de cadeiras
(2005-2006), que são modificadas e fragmentadas
para acoplarem grandes áreas de cor na forma de
manchas solidificadas. Ao unir cor e forma para
desconstruir um objeto familiar, a artista aproxima
seu método àquele da escultura contemporânea.
Zona Branca [Lustre] (2007) também altera um
objeto industrializado, criando uma grande
instalação com luminárias vermelhas de vidro,
pendentes do teto, que recebem uma faixa
transparente a cruzar sua superfície. Mais do que
significar um abandono da pintura, o que este
movimento também traz para a prática da pintura é
uma abertura ainda maior. Na série de dípticos
recentes aqui expostos, a pintura não é feita em
lona virgem, mas em tecidos com texturas e cores
pré-existentes, utilizados sobretudo para decoração,
conferindo um diálogo da pintura feita no ateliê
com informações capturadas de outros universos
estéticos e formais.
No dia da minha visita a Tatiana, quando partimos
da instituição para o seu estúdio, tomamos de carro
248
uma linha reta e longa para atravessar a cidade.
Parados em um semáforo, vimos uma árvore
cortada ao meio, cuja raiz continuava no solo e um
pedaço de galho se prendia aos fios de um poste,
criando uma zona morta entre as duas partes. Neste
momento, pensei que algo que me interessava
profundamente na artista era a dialética entre o tra-
balho no ateliê e fora dele. Uma questão pertinente
para muitos artistas que hoje lidam com a arte
contemporânea. À medida que atravessávamos a
cidade, sentíamos a mudança da paisagem urbana,
mas sem que houvesse uma linha nítida de
passagem, como se uma troca visível se fizesse
passar por invisível por ser tão gradual.
Metaforicamente, é assim, sem limites muito
estanques, que Tatiana trabalha este balanço entre o
universo mais contido da pesquisa em pintura com
instalações como Zona Morta, que se colocam
aderidas mais diretamente ao mundo.
Sempre a oeste, chegamos a uma rua calma diante
de um pôr-do-sol, um sol cortado ao meio contra o
horizonte – e uma linha reta para ser percorrida de
volta. “O sol ainda estava acima do horizonte (não
o sol; a aparência do sol; era aquele momento em
que já se pôs ou vai se pôr, e o vemos onde não
está).”*
* BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel.
Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac Naify,
2006. P. 33.
249
ANEXO F – Desenhando com tesouras a linha do
horizonte. David Barro.
Texto escrito para o livro de sua publicação.
Fonte: BARRO, David (org.). Tatiana Blass.
Santiago de Compostela: Dardo, 2008.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Desenhando com tesouras a linha do horizonte
DAVID BARRO
Há uma imagem que me parece particularmente
tensa. Uma porta entreaberta deixa entrever
Matisse no seu estúdio, sentado e olhando para
baixo. A fotografia, tirada por Brassaï, não permite
ver o objeto do seu olhar. No estúdio, ordenado por
uma luz filtrada, a imagem dominante é a de um
grande ramo de flores que reforça a serenidade que
o artista defendia nos seus escritos. Matisse pensa a
pintura a partir do olhar interior.
Pego neste gesto como ponto de partida porque me
é dificil não pensar em Matisse ao observar muitas
das obras de Tatiana Blass. Não num sentido
formal, mas no sentido que aquele denominou de
‘desenhar com tesouras’ e que, ao seu tempo,
constituiu uma revolução estética. Afinal, nas obras
de Tatiana Blass está sempre presente o corte ou o
250
recorte, seja como fissura, mutilação, rasura,
parêntesis, discordância, concordância, ausência,
distância, descontinuidade, respiração, ocultação,
vazio, engano ou colagem. Um corte que é
simultaneamente radical e suave, velado. Como se
saísse do Photoshop (1). Como Matisse, em vez de
desenhar formas e/ou contornos de figuras para as
encher de cor, Tatiana desenha e compõe
diretamente sobre essa cor, aproveitando as
texturas, que ganham a mesma importância que as
formas.
Rodrigo Moura diz no seu texto ‘Um sol partido ao
meio’ que a primeira impressão que teve das
pinturas de Tatiana Blass foi a de “estar diante de
uma poética solar, timidamente hedonista, mas
apoiada numa idéia de prazer decorativo ou de
forma voluptuosa, cuja matriz me parecia vir de
Matisse” (2). Embora para Matisse tudo fosse
produto de uma simplificação: os tecidos tinham a
mesma importância que as suas odaliscas, e o
recorte era tudo. Mas o seu recorte acrescenta – e
quero pensar que nas obras de Tatiana Blass, mais
do que a voluptuosidade das formas e o prazer
decorativo, aparece a sua omissão – uma
desconstrução dessas formas que nos fala da
impossibilidade e da catástrofe, do acidente como
desvio da norma e de uma espécie de magia,
engano e mistério que radica naquilo que não
podemos ver, na invisibilidade do resto, recorrendo
à terminologia de Derrida. Assim, tento repensar
esse vazio invisível que se esconde por trás da
251
porta de Matisse e imagino como seria a cara de
Matisse se a sua pintura tivesse sido dividida em
duas metades, como em Zona morta de Tatiana
Blass.
Tatiana Blass questiona a fissura babélica a partir
de um transbordamento da pintura e da escultura e
das possibilidades destas relativamente à
arquitetura. Nos seus maneirismos, notamos um
domínio do espaço, um verdadeiro exercício de
eventuais continuidades e descontinuidades e,
claro, certo humor sustentado pelo absurdo da
impossibilidade. Nas suas obras, a presença física é
notável, assim como os contrastes de texturas e de
velocidades que sempre seguram a linha – o corte
ou o recorte – como eixo para o discurso conceitual
entre disciplinas. A sua pintura desenvolve-se a
partir do tátil, opondo não só texturas mas também
cores capazes de se chocarem entre si sem roçar o
excesso e roubar delicadeza e sutileza a um
trabalho que gera uma atmosfera ambígua capaz de
evocar e insinuar paisagens e temperaturas
cromáticas.
Tatiana Blass consegue articular diferentes
elementos e materiais numa composição capaz de
conviver pacificamente nessas tensões, “evocando
diálogos entre gravidade e suspensão, contenção e
dispersão” (3). Assim, devemos entender a
densidade da sua pintura como resultado de um
esforço “no sentido de acomodar e aquietar massas
diversas de cor do melhor modo possível, ou seja,
252
encontrar intuitivamente certo acordo cromático
que estruture o trabalho.” (4). Tiago Mesquita
escreveu sobre como no inverso desta objetividade
das formas – que nem conservam sinais de
expressividade nem resultam da serialização
minimalista – a artista parece “procurar uma nova
forma de se construir intimidade” (5). E consegue-
o, efetivamente, procurando o acidente das
texturas, das marcas, dos contrastes; essa tal
tatilidade. Porque nada parece encaixar na pintura
de Tatiana Blass e, no entanto, a frescura e o logro
das suas pinturas é evidente. Como quem trabalha
num ofício, Tatiana Blass sabe conter o excesso e
propagar a experiência pictórica para além do
objeto em questão, rompendo simplesmente com a
normalidade com um descaramento tão fresco que
parece inofensivo. Contudo, o resultado é letal: as
suas obras falam-nos da beleza que se esconde na
estranheza da vida, no acidente da experiência.
Como assinalou Luiz Camillo Osorio, “o desafio
para quem escreve sobre a obra de Tatiana Blass é
dar conta da pulsação cromática de sua obra. Ela
conquista o silêncio com cores que berram. É um
colorido raro, diferenciado, mas feito de cores
comuns, banais mesmo, beirando algumas vezes o
kitsch. Falar da cor aí é falar de uma ousadia
decorativa, de uma vontade desarmada de assumir
um belo desconcertante”.(6)
A pintura de Tatiana Blass acontece fora da própria
pintura. Mesmo quando se desenvolve sobre a tela,
o característico fundo neutro desaparece
253
procurando outro tipo de cruzamentos tonais entre
o pintado e o já ornamentado dos seus suportes
alcatifados. Por outro lado, quando resolve as
formas através de outros meios, como a instalação,
o olhar pictórico permanece em forma de paisagem
dominada por uma curiosa linha do horizonte
(Páreo; Zona Morta…) que obriga o espectador a
gerar as suas próprias formas, a completar esse
vazio. O curioso e paradoxal é que peças como
Patas ou Páreo, conseguem preenchê-lo
completamente, obrigando-nos a ver mais além..
Como num quadro de Rothko ou em Monge à beira
mar de Friedrich, é, curiosamente, o vazio que o
preenche por completo(7). O espectador forma a
sua própria paisagem, dá forma ao resto. Nas peças
de Tatiana Blass intuímos o resto invisível, no
sentido de resto alemão; esse resíduo ou pegada
que Derrida nos diz que não “é” porque não
permanece. Derrida enfatiza essa finitude,
afirmando que “o resto ‘é’ sempre o que pode
desaparecer radicalmente” (8). Como nessa zona
branca das lâmpadas vermelhas de Tatiana Blass ou
na zona morta que permite desdobrar a realidade e
deter o tempo, quando fragmenta os objetos de uma
casa em duas metades, o recorte torna-se margem;
mais do que não lugar seria um lugar fora do lugar,
algo como as heterotopias que Foucault (9) define,
divididas pelo espelho: “Penso que entre as utopias
e estes lugares absolutamente outros, estas
heterotopias, haveria sem dúvida uma espécie de
experiência mista, mediadora, que seria o espelho.
O espelho é uma utopia porque é um lugar sem
254
lugar. No espelho vejo-me onde não estou, num
espaço irreal que se abre virtualmente por trás da
superfície, estou além, além onde não estou,
espécie de sombra que me devolve a minha própria
visibilidade, que me permite olhar-me além onde
estou ausente: a utopia do espelho. Mas é também
uma heterotopia, na medida em que o espelho
existe realmente, e tem, sobre o lugar que ocupo,
uma espécie de efeito de retorno; a partir do
espelho descubro-me ausente no lugar em que
estou, porque me vejo para além” (10). Mas esse
espelho, que nunca vemos nas obras de Tatiana
Blass, seria neste caso uma zona de
indiscernibilidade (11) como a que Deleuze intui
nos quadros de Bacon, onde tudo tende a escapar, a
atravessar o espelho da história. Como aquele
espelho de Alice que Lewis Carroll imaginou: “foi
desaparecendo muito lentamente... ficando só o
sorriso, que ficou por algum tempo depois de todo
o animal ter desaparecido” (12). Esse mundo
aliciente bem podia ser o das obras de Tatiana
Blass, como Patas, Páreo ou Zona morta, um
mundo num presente contínuo e, todavia, por
completar.
A elipse proposta por Tatiana Blass é
simultaneamente espacial e temporal. Como toda a
interferência ou disseminação, como toda a
invisibilidade do resto ou coitus interruptus, a
elipse parte do fragmento. É, portanto, uma
interrupção da própria realidade, do seu tempo, do
seu espaço. Mas o corte não é necessariamente uma
255
ruptura da sua continuidade. Tratar-se-ia mais de
uma elipse ou dessa necessidade contemporânea de
acidentar, de transformar em fragmento. Assim o
assinalava Adorno na sua Teoria Estética (1970):
“a mais exigente das artes tende a superar a forma
como totalidade e chegar ao fragmentário”. Parece
que o acontecimento só ocorrera no acidental. Daí
verificar-se um certo sentido fractal nas pinturas de
Tatiana Blass, capazes de conjugarem
irregularidade e estrutura. A consciência de ordem
desordenada permanece precisamente pela força do
fragmento ou da fissura no seu potencial anárquico,
ou anarquitetónica, se pensarmos em Gordon
Matta-Clark e na sua obsessão pela leitura de novas
aberturas espaciais. Essas tensões geram um
universo estético realmente interessante,
inquietante e prazeroso em Tatiana Blass.
Isso nota-se especialmente em Zona morta,
intervenção realizada por Tatiana Blass em 2007
para uma exposição no Centro Universitário Maria
Antônia, onde uma pequena sala de estar foi
dividida ao meio, suspendendo a metade superior
dos objetos numa espécie de realidade aliciante e
surreal. Se, em Matta-Clark, a luz é filtrada através
dos seus cortes, em Tatiana Blass gera-se uma
outra parte flutuante, uma zona morta. No seu livro
A poética do espaço, Gaston Bachelard aponta
como “a casa vivida não é uma caixa inerte. O
espaço habitado transcende o espaço geométrico”.
E, efetivamente, quer Matta-Clark quer Tatiana
Blass fazem-nos (re)pensar a habitabilidade do
256
espaço contemporâneo transgredindo-o, obrigando
o olhar a estender-se para além da funcionalidade,
abrindo novas perspectivas e chamando a atenção
para os recantos esquecidos que escapam a toda a
lógica. Tatiana Blass penetra o vazio das coisas, a
poesia de tudo aquilo que excede, que transborda.
O que se vê em trabalhos anteriores como Cadeiras.
Um corte ao centro descompensa-as e inutiliza-as.
Antes, eram retidas e tornadas parasitárias como a
lava de um vulcão por grandes manchas de cor.
Assim, desconstruía o familiar a partir de enormes
manchas de pintura, que transbordavam tudo, como
nos seus quadros cheios de informações cromáticas
sobrepostas. Tudo consiste numa irônica estratégia
de camuflagem, como quando em Espartilho tinge
de verde quatro plataformas de alturas diferentes e
se disfarça, simultaneamente, de natureza. A
contenção domina outra vez o excesso. E, uma vez
mais, Tatiana Blass pensa a pintura fora da pintura.
Os cortes que Tatiana Blass faz não são mais do
que desconstruções das paisagens que ainda nos
faltam habitar. Por isso mesmo, como nas suas
pinturas, a ênfase na linha capaz de moldar a
composição esteja presente num trabalho como
Zona morta, um trompe l’oeil tridimensional que
fala da estranheza que surge sempre que tentamos
desencaixar uma velha ordem. Tatiana Blass
questiona no invisível, na margem, algo que
também pode estar diretamente relacionado com a
sua escolha do material das suas pinturas, as quais
também propõem um parêntesis e/ou fissura (ainda
257
que seja por acumulação) do já construído ou
fabricado.
Assim o disse Marguerite Yourcenar: “Os nossos
pais restauravam as estátuas; nós tiramos-lhes o seu
nariz falso e as suas próteses; os nossos
descendentes, por sua vez, provavelmente farão
outra coisa. O nosso ponto de vista actual
representa simultaneamente um ganho e uma perda.
A necessidade de refabricar uma estátua completa,
com membros postiços, pode dever-se, em parte, ao
ingênuo desejo de possuir e de exibir um objeto em
bom estado, desejo esse inerente, em todas as
épocas, à simples vaidade dos proprietários (…) As
pessoas que gostavam muito de antiguidades
restauravam por pena. Por pena desfazemos nós a
sua obra. Pode ser que também nos tenhamos
habituado mais às ruínas e às feridas (…)
Finalmente, o nosso sentido do patético compraze-
se nessas mutilações; a nossa predileção por arte
abstrata leva-nos a amar essas lacunas, essas
fraturas que neutralizam, por assim dizer, o
poderoso elemento humano daquela estatuária”
(13).
Zona morta é uma obra inquietante que não está
isenta de bom humor. Rodrigo Moura faz
referência a Desvio para o vermelho (1967-84) de
Cildo Meireles (14). E também a alguns elementos
que oferecem pistas para a consciência crítica
desconstrutiva de Tatiana Blass nesta pequena sala,
onde referências a Bruce Nauman ou a Nuno
258
Ramos, entre outros, tornam o seu discurso
metalingüístico e autobiográfico. A ficção, o
quadro dentro do quadro, as janelas para a história
de arte, são particularmente importantes. Mas
também a fissura entre duas imagens desastrosas, o
contraste de cores e um pequeno detalhe: uma
natureza morta de Morandi. Com um fundo
dividido em duas tonalidades e alguns objectos,
Morandi consegue criar um espaço que se prende
muito àquilo que procura o trabalho de Tatiana
Blass: a arte da elipse. E isso justifica que Morandi
fosse sobretudo admirado por poetas. Porque os
seus pequenos desenhos, tão simples e naturais, nos
remetem para um ambiente e para uma convicção:
para Morandi o tema é a pintura. Tal como no caso
de Tatiana Blass, não se trata de uma pintura
descritiva mas de uma pintura capaz de refletir
sobre si própria a partir da criação de espaços que
dialogam com os seus próprios limites. Essa é a
bonita lição de pintura. Apreender o silêncio, como
esses poemas que não existem se antes de se fazer
ouvir a sua palavra, não se ouvir primeiro o seu
silêncio (15). Um mundo para além das palavras,
onde o dizer é impossível (16).
Assim podemos entender também a sua obsessão
em enquadrar as paisagens em livros e os livros em
estantes que lhes servem de abrigo. Rio das Pedras
e Disfarce são dois exemplos significativos. A
ligação ao mobiliário cotidiano também é evidente
nestas propostas. Em Rio das Pedras, um livro de
400 páginas que repetem a mesma imagem – a
259
pedreira de São Gonçalo do Rio das Pedras em
Minas Gerais – a artista traça linhas brancas com a
intenção de encontrar a linha natural desenhada
pela areia branca na pedra. Outra vez a linha e as
suas deslocações, como quando em Cerco (2007) o
faisão dessecado rompe a regularidade do quadrado
de barras de latão que a artista instala previamente.
O movimento congela-se novamente, a
impossibilidade de alcançar a linha do horizonte
provoca no faisão um gesto angustiante, de captura
e de fuga ao mesmo tempo. De desejo e de
sacrifício. Um espírito intermédio que aspira a
pendurar-se no fio de céu e de terra, na zona do
mero cansaço, como diría Heidegger (17).
No fundo, podemos concluir que a fissura em
Tatiana Blass se apresenta como parêntesis e
transparência, como insinuação passível de ser
concretizada sob um olhar atento, como lugar entre
as coisas. Tatiana Blass confronta-nos com o que
não pode ser visto, só imaginado, como um
desenho incompleto. Como no filme Exótica de
Atom Egoyan, a chave estará no aprofundar das
carências. Em Exótica, a luz procede sempre, ou
melhor, situa-se por trás das personagens, ou até
mesmo na diagonal, mas evitando sempre o
tratamento frontal. O protagonista, ou grande parte
dele, permanece fora de plano; às vezes de maneira
muito clara, como quando as personagens saem por
detrás da câmara à procura da criança ou quando
esta tapa a objetiva da câmera com a sua mão,
salientando a evidência de um outro lado. Em
260
Exótica há uma resistência da imagem/protagonista
que permanece intocável e, assim, desta frustração
resulta o puro desejo, um erotismo do gênero
daquele descrito por Bataille. A música do strip-
tease, que corresponde ao ‘Romeu e Julieta’ de
Prokofiev, reforça essa ideia de impossibilidade.
Tatiana Blass esvazia uma parte do plano para
saturar outras, dá uma certa respiração, como uma
elipse ou como um eclipse, dependendo da luz. Um
movimento congelado, uma situação sem ação.
Noutras ocasiões, satura e combina, procurando um
tipo de convivência pacífica entre cores e formas,
uma vida em simbiose que decorre de desenhar o
horizonte com tesouras, sem deixar de sonhar.
1 Víctor del Río (“El efecto Photoshop”, Lápiz
nº169/70, 2001) descreve, de forma clara, como o
carácter pictórico de que falamos não residiria tanto
no vocabulário da pintura (telas, paletas, pincéis…)
como na própria estrutura do programa: “A pintura
descreve-se na tradição pelo exercício do
esbatimento e pelo método de camadas. O segredo
da pintura residia num conhecimento das
sobreposições e das transparências e a sua essência,
num modo de ‘pôr’ material sobre a tela numa
sucessão de planos. O Photoshop baseia-se num
sistema de camadas e canais pelos quais é possível
compor e decompor a imagem. Ambos os
dispositivos permitem tratá-la diferenciadamente
nos seus diversos níveis. A estrutura de camadas
possibilita acrescentar elementos alheios à
261
fotografia original ao recortar, do seu fundo, outros
elementos que nela estão presentes, além de
permitir também transparências e fusões entre as
diferentes camadas. Por sua vez, o sistema de
canais oferece a possibilidade de tratar
separadamente os diversos componentes de cor que
intervêm segundo o modo em que se edita a
imagem. Talvez o mais interessante seja essa
vocação para a composição”.
2 Rodrigo Moura: “Um sol partido ao meio”,
Galeria Carminha Macedo, Belo Horizonte, 2007.
3 Idem, Moura.
4 Cauê Alves: “Tatiana Blass: sobre a dificuldade
ou da necessidade do inverno”, Paço das Artes, São
Paulo, 2006
5 Tiago Mesquita: “Paisagem de papel”, Centro
Cultural São Paulo, 2003
6 Luiz Camillo Osorio: “Por um belo
desconcertante”, Galeria Virgílio, São Paulo, 2005
7 Friedrich escreveu que “quando uma paisagem
está coberta de nevoeiro parece muito mais
sublime, porque eleva e amplia a nossa
imaginação”. Ao desaparecer a profundidade e ao
suprimir os pontos de fuga em Monge à beira mar,
Friedrich expande o espaço lateral e
superficialmente, como numa pintura oriental.
8 Cristina de Peretti e Paco Vidarte, Jacques
Derrida (1930), Ediciones del Orto, 1998
9 Michel Foucault, Espacios diferentes in Obras
esenciales Vol. III. Estética, ética y hermenéutica,
Editorial Paidós, Barcelona, 1999.
262
10 Michel Foucault - Des espaces autres,
Conferência proferida no Cercle des études
architecturals, 14 de Março de 1967, publicada en
Architecture, Mouvement, Continuité, nº 5,
Outubro de 1984.
11 Ver Deleuze
12 Lewis Carroll: Alice no País das Maravilhas.
13 Marguerite Yourcenar, El tiempo, gran escultor,
Editorial Alfaguara, 1992
14 Idem, Moura.
15 José Ángel Valente assinalou que “muita poesia
sentiu a tentação do silêncio. Porque o poema tende
por natureza ao silêncio. Ou o contém como
material natural”, Antoni Tápies/José Ángel
Valente: Comunication sobre el muro, Ediciones de
la Rosa Cúbica, Barcelona, 1998, p.55.
16 Podíamos concluir outro silêncio ou
esvaziamento em Zona branca (lustre), de 2007, na
qual uma série de lâmpadas vermelhas são
interrompidas na sua verticalidade por uma faixa
branca. A mancha aqui é rasura, resto.
17 “Este olhar para cima recorre ao para cima, ao
céu, e no entanto permanece em baixo, sobre a
terra. Este olhar mede o entre céu e terra. Este entre
está assinalado como medida ao habitar do
homem” (M. Heidegger, Conferencias y artículos,
Ed. del Serbal, Barcelona, 1994, pp.169-170).
263
ANEXO G – Não são assim que as coisas são:
obscurantismo e razão na obra de Tatiana Blass.
Tiago Mesquita
Texto escrito para a revista +Soma, Kultur Studio,
nº15, janeiro de 2010.
Fonte: TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Não são assim que as coisas são: obscurantismo
e razão na obra de Tatiana Blass TIAGO MESQUITA
Cinema é feito de imagens recortadas e coladas.
Por vezes, os cortes são tão suaves, que passamos
de uma cena a outra sem perceber que o foco saiu
de um lugar e foi para o canto oposto, criando uma
ilusão perfeita. Mas também existem cortes secos,
bruscos. Mesmo que suponham uma continuidade
da ação que se desenrola diante da câmera,
notamos o intervalo entre uma cena e outra.
Na segunda metade da década de sessenta, Andy
Warhol fazia os seus Screen tests. As imagens eram
como a de retratos que duravam no tempo. Câmera
parada com um personagem posando diante dela.
Um dos filmes mais bonitos desta série é um em
que ele retratou Dennis Hopper.
O ator se mexe pouco, olha para a lente como quem
espera o tempo passar. Em um dado momento, a
imagem é interrompida por um destes cortes
264
violentos. Menos de um segundo depois, a cena
volta com quase nenhuma modificação. Mesmo
assim, entre um negativo e outro, temos a
impressão que perdemos alguma coisa na
escuridão.
Boa parte dos trabalhos de Tatiana Blass lida com
estas interrupções. Intervalos bem marcados que
parecem ter rompido formas, objetos e ambientes
que tinham alguma integridade. São pernas de
cavalo em metal ou em mármore distribuídas
simetricamente que nos fazem notar a falta do
corpo do animal que deveria estar sobre elas (como
em Páreo, Patas e na Cabine da Monga); ou uma
sala, como a de Zona Morta (2007), que passa a ter
uma faixa branca entre a parte debaixo e a parte de
cima. A lacuna nos traz a impressão de um espaço
recriado, farsesco, que também parece ter perdido
algo de sua realidade.
Isso, porque Tatiana não se interessa pela realidade,
ela fala é da ilusão. Do que parece ser subtraído do
mundo quando transformamos as experiências em
um código.
Desde suas colagens de 2005, sempre achei que
estes intervalos imitavam, em certa medida, um
movimento que fazemos mentalmente ao converter
o que vivemos ou que os outros viveram em uma
imagem, uma narrativa ou uma descrição científica.
Era como se a artista mostrasse os lapsos e o que
ignoramos ao passar uma série de acontecimentos
265
descontínuos, simultâneos e insondáveis em
relações coerentes, bem narradas, com começo,
meio e fim, causa e conseqüência.
Em certo sentido, era como se ela, diante dos
nossos olhos, fizesse e desfizesse os esquemas da
ilusão. Sobretudo o das ilusões racionalistas, que
nos fazem tomar a descrição de alguma coisa como
verdade. No intervalo entre uma coisa e outra, as
melhores explicações se eclipsavam, tornavam-se
obscurantismo. Nesse sentido, a ilusão mais
ilusória seria aquela que se pretende como
verossímil. Aquela que explica as coisas como se
insistisse em dizer: “são assim que as coisas são”.
No ano passado, a editora espanhola Dardo, de
Santiago de Compostela, publicou um pequeno
volume com os melhores textos sobre a artista e
imagens da sua obra. A partir do livro, tornou
possível a quem não conhece Tatiana apreender
algo de sua trajetória.
Alguns trabalhos eu não via há algum tempo.
Deparei-me com elas no livro e fiquei surpreso, ao
olhar retrospectivamente, como algumas relações
falseadas sempre interessaram a artista. Como as
imitações do que parece “natural” podem se
mostrar verdadeiras na sua obra.
Por exemplo, desde as pinturas de 2003 e 2004, seu
interesse é pelo o que não é verdadeiro. Nos
trabalhos daquela época, ela figurava relações
266
formais artificiais, com cores parecidas da fábrica
de corante de balas. Não por acaso, os trabalhos
tinham nomes como Eno e Tobogã.
Uma consciência cada vez maior das questões da
imitação inverossímil do mundo, fez com que a
artista se aprofundar na pesquisa e trabalhar com as
razões que nos façam atribuir às figuras peso de
realidade, à ilusão verdade. Como se não fosse
nada, era como se ela perguntasse: por que dizemos
que tal bala ou tal sorvete tem sorvete de abacaxi?
Como, mesmo com a distância entre o gosto do
doce e o gosto da fruta, conseguimos colocá-los
dentro da mesma família. Mas isso não é mostrado
como engano, mas como algo curioso, que faz com
que os significados sejam mais maleáveis do que
parecem. Por isso, ao responder o dilema, a artista
não recorre às respostas científicas ou filosóficas,
mas cria novas ilusões.
Em uma pintura feita em 2007, chamada Xadrez
prata [no livro, página 85], ela pinta formas que
parecem ser positivo e negativo umas das outras
sobre uma estampa regular de um xadrez
pequenino. Poderíamos supor que a artista
descamou uma cor e encontrou imagens soltas, que
no fundo são lâminas da mesma cor, mas também
podemos imaginar que são peças desencaixadas
soltas que só sugerem a relação de continuidade
entre uma e outra parte por estarem perto.
267
Boa parte de suas pinturas, aliás, se comporta como
colagens. A artista é uma virtuose na técnica.
Embora nos seus primeiros e últimos trabalhos a
pincelada e a escolha da cor sejam fundamentais,
existe a idéia de retirar uma forma ou figura de um
lugar e colar em outro e fazer com que estas formas
ganhem sentido diferente. Ela já fez isso com
cavalos, com um faisão empalhado e agora faz com
silhuetas de cachorro e de humanos que, dispostos
como estão, parecem olhar uma cena, como se
estivessem ao redor de um palco.
Na última exposição que Tatiana Blass fez, em
2009, no Museu de Arte Moderna da Bahia,
mostrou cachorros figurados por todos os lados:
nas pinturas, desenhos, volumes e textos. Porque a
artista, tal como Nuno Ramos e Bruce Nauman,
também lida com a palavra como elemento visual.
No caso de Tatiana, não se trata da dedicação ao
ofício das letras, mas ao uso do texto como
elemento expositivo.
Nestes textos, descobrimos, aliás, que os bichos,
como o cachorro de Goya, são cegos. Circulam por
lá confiando em outros sentidos. Tatiana é precisa:
“são cães cegos que não se pode adestrar para se
tornarem cães guia. São como atores da vida
comum, que vagam pela cena, sem um
comportamento predestinado”.
Nas telas, eles estão sobre um palco de teatro,
algumas vezes, com platéia. Parece-me que tal
268
tema tem relação direta com o interesse da artista
na ilusão. Se antes, como nas colagens da série
Páreo, ou na Cabine da monga, partes de um corpo
de cavalo nos sugeria a imagem integral do bicho,
aqui, se trata da conversão daquelas silhuetas em
uma mancha, que faz como que os cachorros se
tornem mais indefinidos do que as patas de cavalo
dispostas regularmente nas escadarias de um
museu.
Quando vi as duas esculturas que a artista mostrou
na exposição, as imagens dos cães me pareceram
mais violentas, selvagens e corrosivas. São
esculturas hiperrealistas em cera e metal. Ambas as
peças se parecem muito com o animal, são cópias
perfeitas. Imitam os pelos, as marcas da costela e
os detalhes da pele do cachorro. O bicho dorme,
mas deve estar morto. São dois, um preto, outro
dourado e braço. O preto é todo de cera, sua cabeça
se derrete, enquanto ele, impassível, espera todo o
seu corpo tornar-se mancha pelo chão. É muito
aflitivo.
Já o outro cão tem mais cara de escultura. Feito
sobre uma base de latão, recebe um volume de
parafina branca no seu interior. O metal fundido
descreve a cabeça, o pescoço, a parte de trás, o rabo
e a ponta das patas do cão. A parafina faz o resto.
No decorrer da exposição, a peça se deforma. A
parafina também se tornou uma mancha disforme.
Sobraram os restos de metal. Assim, aquela
descrição das partes não é mais só incompleta,
269
como tendia a ser nos outros trabalhos, mas
mórbida. Não se trata mais de fissura, mas de
decomposição e mutilação.
Tatiana Blass figura a morte. Mas não é o cachorro
cego que morre, mas a imagem que quer eternizá-
lo. Em um dos seus textos a artista anota:
<i>já não consigo esconder meu
desespero. a cada minuto que passa
sou engolido pelo chão! de que
serve este inútil amigo que por mim
nada pode fazer a não ser observar
com seus olhos mórbidos meu
desaparecimento. late cão! late!</i>
Ele não late, desaparece, deixa uma mancha
informe como lembrança. Algo que não dá nem
para nomear. Talvez, como nossa ilusão de
compreender o mundo diante da tragédia, do
inevitável. Não sobra muito mais do que resíduos
quando o fato se põe diante de nós. Embora Tatiana
mostre cães cegos, quem fica no escuro ao lado
deles somos nós.
270
ANEXO H – O labor de Penélope. Douglas de
Freitas
Texto escrito para a exposição "Penélope", Capela
do Morumbi, setembro de 2011.
Fonte: Penélope. Folheto de exposição. São Paulo:
Madai Produções, 2011.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
O labor de Penélope
DOUGLAS DE FREITAS
“Quatro anos quase, nos contrista, ilusos
De promessas, recados e esperanças,
E al tem no coração. Com novo engano,
Nos disse, ao predispor fina ampla teia:
— Amantes meus (...)
Vós não me insteis, o meu lavor perdendo,
Sem que do herói Laertes a mortalha
Toda seja tecida, para quando
No longo sono o sopitar o fado (...)
Esta desculpa ingênuos aceitamos.
Ela, um triênio, desmanchava à noite
À luz da lâmpada o lavor diurno;”
Odisséia de Homero – trecho sobre Penélope
É do mito grego registrado na Odisséia de Homero
que Tatiana Blass empresta o nome Penélope à
instalação desenvolvida para ocupar a Capela do
Morumbi. Segundo o mito, após um ano de casado,
Odisseu deixa Penélope e parte para a guerra de
271
Tróia. Vinte anos depois, sem notícias, Penélope
passa a ser assediada por novos pretendentes, e
assume o compromisso de escolher um novo
marido quando terminasse de tecer uma mortalha
para o pai de Odisseu. Durante o dia, aos olhos de
todos, tecia; durante a noite, solitária, desmanchava
na tentativa de enganar o tempo e iludir seus
pretendentes, aguardando a volta de seu amado.
Na instalação, um grande tear manual de pedal está
posicionado no altar da Capela; de um lado, um
longo tapete vermelho é tecido, do outro o tapete se
desfaz. A simbologia do tapete vermelho não está
particularmente ligada à religião, mas sim ao poder.
A cor púrpura, muito valorizada na Antiguidade e
Idade Média, é um vermelho escuro que tende ao
roxo, obtida através de algumas espécies de
moluscos. Eram necessárias grandes quantidades
desses moluscos e grande mão de obra para realizar
a extração da substância utilizada para o
tingimento, o que tornava o tecido extremamente
caro. Devido ao alto custo, o vermelho era
tipicamente usado pela realeza e membros da
Igreja, e com o tempo tornou-se símbolo do poder
real e eclesiástico.
É esse símbolo de poder que nos recebe na porta da
Capela. Seguimos o tapete até o tear, e vemos sua
construção dissecada; há um movimento dúbio, não
sabemos se a peça se desmancha ou se ela está
sendo construída. Parado, o tear acaba por
desvendar o construir dessa forma, um ato que
272
normalmente não se faz visível. Tatiana nos dá
alguns elementos para insinuar uma existência, um
movimento, ou uma construção, e cabe a nós
imaginarmos o restante. Se outros trabalhos da
artista sugerem um parêntese entre as coisas a fim
de explicitar uma ação, ou uma presença através da
ausência, aqui o tear se configura como o que está
entre parênteses, dando materialidade a um
elemento oculto.
Do outro lado do tear, os fios escorrem
desordenadamente, correm o chão ou sobem as
paredes vencendo-as pelos buracos existentes na
arquitetura – resultado da técnica construtiva da
taipa-de-pilão – e ganham o jardim, se arrastando
ao modo de um cipó-chumbo, planta parasita que
serviu de referência para a obra. Por não ter
clorofila, o cipó-chumbo não pode produzir seu
alimento, precisando de uma planta hospedeira para
se manter viva. Por cobrir a planta aos poucos, a
sufoca; a única maneira de matar a praga é matando
também o hospedeiro. Como nos trabalhos
realizados em cera pela artista, assistimos um lento
definhar. Do lado de fora o que vemos é o alastrar
dessa grande mancha vermelha que, apesar de ter
aparência leve, a exemplo da parasita, consome a
paisagem horizontalmente, de certa maneira como
nas pinturas e livros realizados pela artista, onde a
paisagem é invadida por manchas de cor.
Em trabalhos anteriores já existe esse movimento
dúbio de construir/desconstruir de Penélope.
273
Cadeiras e mesas escorrem em manchas de cor,
perdendo sua funcionalidade, ficando entre ser
utensílio e ser só cor, objetos são divididos ao meio
e apresentados seccionados ou com pequenos
desníveis, animais são apresentados incompletos, a
fim de nos intrigar; cachorro ou homem derretem
quase até o fim, sempre em transformação, mas
também, sempre no meio do caminho, entre a
forma e a não forma. É isso que vemos em
Penélope, apesar de insinuar um fazer, ou um
desfazer, a obra está parada; sempre no mesmo
ponto, é como se essa construção/desconstrução
sugerida se desse às escondidas.
Na produção de Tatiana Blass, assim como no mito
de Penélope, nós espectadores estamos
constantemente sendo iludidos, afinal, para a
artista, parte do papel da arte é criar estranheza,
assombro, ilusões, um deslocamento da realidade
que desafie a nossa percepção. Como em qualquer
crença, religiosa ou não, cabe a nossa participação
para que ela exista, precisamos nos deixar levar.
Como diz a artista em outro trabalho, o engano é a
sorte dos contentes.
274
ANEXO I – Fim (?) de partida. Paulo Venancio
Filho
Para a exposição "Fim de partida", projeto "Sala A
Contemporânea", Centro Cultural Banco do Brasil,
Rio de Janeiro, janeiro de 2011. Revisão: Sonia
Cardoso.
Fonte: Sala A Contemporânea. Folheto de
exposição. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco
do Brasil, 2010.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Fim (?) de partida
PAULO VENANCIO FILHO
A "pobreza" dos elementos visuais na cena
beckettiana pode parecer, a princípio, pouco
inspiradora para um artista plástico. Do palco árido,
vazio, estéril, nada se pode retirar ou acrescentar: a
espacialidade é absolutamente muda. Se é então
impossível acrescentar algo ao espaço, resta
acrescentar ao tempo; estender o já lentíssimo
tempo beckettiano - totalmente contrário à
velocidade contemporânea - ao limite máximo, isto
é, fazer da duração da peça a duração da exposição:
igualar uma à outra.
É esta transposição de "Fim de partida" que Tatiana
Blass propõe. Neste evento mais temporal que
espacial, o tempo é o verdadeiro protagonista. Tudo
275
se passa no movimento mais próximo possível da
imobilidade que ocorre ao se perguntar: o que está
acontecendo, se nada acontece?
Samuel Beckett escreveu "Fim de partida" em
1954, ainda sob efeito do desastre da Segunda
Guerra Mundial. Quatro personagens estão em cena
(Hamm, Clov, Nagg e Nell); o palco, Beckett
descreve: "Interior sem mobília. Luz cinzenta (…)
Ao lado da porta, pendurado um quadro, voltado
para a parede (…) cobertos por um lençol velho,
dois latões encostados um ao outro (…) coberto por
um lençol velho, sentado em uma cadeira de rodas,
Hamm." Os personagens estão praticamente
imobilizados e assim permanecem, a fala entre eles
é truncada, reticente, enviesada: "Nunca ninguém
pensou de modo tão tortuoso como nós", diz Clov.
Tempo e espaço se calcificam, inexoravelmente.
Na exposição, toda a ação dramática da peça, já
vagarosa, é desacelerada, reduzida ao quase
imperceptível derretimento e esvaimento da cera;
matéria perfeita para personificar o lento desalento
a narrativa, o esvair de qualquer entendimento entre
os personagens. Assim, Tatiana provoca uma
espécie de inversão escultórica: a regressão da
escultura à matéria, a remissão ao estado informe.
As esculturas, que são os atores e personagens, vão
se dissolvendo sob o calor das luzes e o começo se
torna o fim. Da cera à cera, do pó ao pó.
276
De certa maneira, a exposição propõe, nos seus
termos, um fim a "Fim de partida" - aquele em que
tudo derreteu, se esvaiu, se dissolveu… mas
também aí, como profere o personagem Hamm, "O
fim está no começo e no entanto continua-se".
277
ANEXO J – Advertência ao público. José Augusto
Ribeiro
Escrito para a exposição "Tatiana Blass", Caixa
Cultural, março de 2011.
Fonte: BARRO, David (org.). Tatiana Blass.
Santiago de Compostela: Dardo, 2008.
Tatiana Blass. Catálogo de exposição. São Paulo:
Caixa Cultural, NU Projetos de Arte, 2011.
TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Advertência ao público
JOSÉ AUGUSTO RIBEIRO
As atrações de hoje serão as mesmas amanhã. Não
exatamente iguais, em razão de um processo de
esgotamento, ainda assim, as mesmas. Já não são
como ontem e, talvez, nem mereçam ser chamadas
de “atração” dentro de alguns dias, questão de
tempo. Porque o espetáculo jamais vai se
consumar. Dirige-se ao fim, mas não avança.
Antes, esgarça os contornos de sua linguagem até
onde agüenta, muitas vezes sobre lâmina quente, ou
até estourar. Então, como significá-lo se não existe
sentido estável a atribuir ou apreender? É na
produção de resíduos, na aniquilação de
encadeamentos, que a exibição prossegue.
Holofotes acesos, palcos montados, cortinas
abertas; os instrumentos musicais é que não. Esses,
de sopro, repousam calados no chão, fechados à
278
própria estrutura, do bocal à campânula, em
circuitos abafados e autofágicos. Um pouco como
acontece nesses teatros concebidos para a
representação de animais, de figuras moribundas ou
elementos inanimados, inclusive um para aviões,
onde ninguém atua. E se há interpretação, trata-se
de uma forma dada pelos atores que se resume a
deixar-se tragar pela cena, tal qual silhueta errática,
sem chance de fala nem de expressão.
Cão e homem, por exemplo: surgem pelos cantos,
de corpo inteiro a princípio, de corpo inerte
praticamente, não fosse o seu único sinal de “vida”
também um índice de morte, gota a gota, sob, sobre
ou atravessados por um calor que não emana a
quantidade de energia que consome. Enquanto isso,
o entorno despenca junto com os personagens,
derrete-se e escorre diante de olhos crentes em
passatempo, numa agonia só. Não que haja
aspiração à tragédia. Porque tragédia constitui
gênero dramático, e o que se apresenta agora não
tem gênero, não tem categoria, em definitivo, não
tem estilo. O dourado que reluz não é ouro, é latão.
Até o anúncio de magia por uma mestre-de-
cerimônias em trajes cintilantes é a cerimônia em
si, uma verborragia enfática, persuasiva, que
engana olhos e ouvidos às raias do fastio – o que
não deixa de ser divertido –, numa espécie de
compacto verbal de números circenses, com
acrobacia, malabarismo, contorcionismo e
ilusionismo embutidos no texto e no tipo de
279
locução. Tudo para dizer que “a ficção não virá da
mente, será matéria bruta”.
Pois em parte significativa da produção que
desenvolve desde 2006, Tatiana Blass materializa
tal ficção. Mobiliza conhecimentos e recursos de
manifestações do campo da cultura – do teatro, da
música, da literatura, do circo – para uma
investigação às voltas com formas fraturadas,
interrompidas ou em dissolução, em diferentes
meios (pintura, escultura, objeto, colagem,
instalação, vídeo e texto). São trabalhos que
parecem examinar condições-limite à experiência
estética, por chaves ambivalentes, ao mesmo tempo
de potência e extenuação, de expansão e
encerramento, a caminho, quase sempre, da
invisibilidade e do silêncio. Tanto que os
acontecimentos costumam transcorrer vinculados a
certo cansaço, ao estancamento de seres e à
dissipação de forças anteriormente concentradas.
Seja em objetos e ambientes descontínuos
(respectivamente, Zona branca e Zona morta,
ambos de 2007) ou em tridimensionais cujo estado
da matéria se encontra em transformação, do sólido
ao informe (como nos animais de parafina da série
Cão cego, iniciada em 2009, e de Quanto menos
dorme, quanto menos sono há, de 2010). De todo
modo, trata-se de pôr a existência em suspensão, de
cindir o mundo em intervalos, ao dissipar a
estrutura física de seus materiais.
280
A idéia de algo que está ali “pronto para novamente
acabar” se repete no abafamento do poder sonoro
de tuba, trombone e trompete (Metade da fala no
chão, 2008) e na insinuação de eventos que não
ocorrem ou, se ocorrem, vêm à tona atravancados –
como se insinuá-los, apenas, fosse suficiente em
substituição aos eventos (no vídeo O engano é a
sorte dos contentes, de 2007, e no tridimensional
Globo da morte, de 2008). Também as pinturas da
artista nesse período (das séries Teatro para
cachorros, Teatro para animais, Teatro para aviões
e Teatro da despedida) sugerem algo parecido, em
palcos sem dimensões evidentes, de escala
ambígua, acesos em parte por cores luminosas,
ocupados por cães e aviões sem rumo, à iminência
de um revés, por sua vez, encetado por um
cromatismo escuro ou pálido que se espalha nos
fundos ou pelas beiradas. Na fatura desses
trabalhos, chama a atenção o jogo de planos entre,
de um lado, o perfil chapado de aeronaves, pessoas
e animais e, de outro, o recesso sutil da superfície
pictórica, ora pela sobreposição de cores com tinta
liquefeita, rala e translúcida, ora com o simples
acúmulo de camadas, não raro, até o escorrido.
Essa superfície rasa que aí se obtém contribui para
a criação de atmosferas nebulosas e difusas, numa
figuração, ela mesma, de estranhamentos e, ao que
tudo indica, sob a pressão de se esvair. Não é por
acaso que as pinturas de 2009 para cá se intitulam
Tempestade, falam de um Teatro da despedida,
assim como outros trabalhos trazem no título
281
referências à cegueira, a separações, a uma batida
em retirada... O conjunto parece aludir assim a um
estado de abandono e privação que, no fim das
contas, é tão somente o cumprimento de um
destino. O desaparecimento paulatino das figuras –
por meio de formalizações que ultrapassam o
controle absoluto da artista sobre os materiais de
que lança mão – acaba por soar, mais do que nunca
na obra de Tatiana Blass, um reiterado lembrete de
finitude, de uma sobrevivência entregue à própria
sorte e, por isso mesmo, violenta, desassistida,
vigorosa e desoladora. Na sua pujança, o trabalho é
capaz de sublinhar que paralisia, definhamento e
descontinuidade aventam algo daquilo que ficou
difícil ou impossível de realizar. Tornar essa
dificuldade visível e tomá-la como matéria bruta,
reportando-se a diferentes expressões artísticas, diz
respeito, ainda, a considerações sobre o estado da
arte enquanto produção de conhecimento e suas
condições de inscrever-se na vida social. Do
contrário, restaria a advertência de que o
espetáculo, aqui, há de fracassar. Mas é preciso
continuar, para além das possibilidades.
282
ANEXO K – Read between the lines. Fernando Aq
Mota
Escrito para a exposição Hard Water em Gasworks,
Londres, 2012
Fonte: TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Read between the lines
FERNANDO AQ MOTA
...the body and ones own embodiment. How one
behaves with and relates to the environment around
oneself might be an old question; even so, it
remains an open one simply because of its mutant
nature. As Heraclitus once said: “Everything flows,
nothing stands still.” However, the exact moments
of transition are hardly noticed in daily life.
Luckily, some people manage to capture these
events in time and space. One of them is Tatiana
Blass, whose exquisite art breaks the rules of
physics and proposes not only a logic but also an
anatomy of what is out there.
Her precise use of different media, and ability to
twist each one of them into something new every
time, is what makes Tatiana Blass one of the most
promising and cutting-edge artists in the Brazilian
contemporary art scene. Regardless of whether the
final work is a painting, sculpture, performance or
installation, its uncanny aspect certainly provokes
the public. She has been able to create quite an
innovative output through the manipulation of
283
numerous materials - as aesthetically appealing and
humorous as Urs Fischer, and as conceptually
instigating and human as Bruce Nauman. Her
interdisciplinary practices are often inspired by
music, theater and literature. Metade da fala no
chão (Half of the speech on the ground) is a series
where musical instruments have been turned mute
and the audience finds themselves temporarily
“deaf” while music becomes silence: it suggests the
troubles with communication nowadays. Fim de
partida (Endgame), based on Samuel Beckett’s
play, is made out of wax sculptures that are
imitations of the original characters; as they melt
down due to the heat of the stage lights, the
spectator watches the show of their disappearance.
Her works go beyond mere dematerialization of the
object - they permeate the field of ideas as well. Art
here is similar to magic: it transforms things,
reshaping perceptions.
This time around, Blass is a puppeteer. Hard Water
(the title comes from the texture of the water in
London, as it contacts the human body), her
residence project for Gasworks, is a performance
on video. Two actresses sit on chairs next to each
other in a white room: sewn to their clothes are
spools strung with colorful threads that attach to
bigger spools placed onto the walls; the bodies are
literally connected to the space. The women start a
strange dialogue and, as it develops, one can
conclude they are not on good terms. As they argue
and walk around the room, the spools start to
unwind, and they have to remove some of their
284
clothes in order to move, weaving a physical and
simultaneously social web. The messy dialogue
visibly falls all the way to the ground until the
tangled end of the game. The final scene is like a
lively painting in which brushstrokes are crossing
the white cube.
The artist has already worked before with threads
that spread around a space, in a massive installation
in a chapel in Sao Paulo -- the work made reference
to and was named after the Greek myth of
Penelope. Yet in this new story, the tracks left by
these contemporary Ariadnes do not lead out of the
labyrinth. Instead, they place the public inside a
trap along with them, unable to leave the room:
what are the real knots we make for ourselves, and
also, are we able to unravel them? How often do
we talk the talk or walk the walk and what are the
things we truly lose along the way? The lines
coming out of their mouths and the ones visible to
our eyes could be read as links between the human
body and the environment surrounding it -- perhaps
a new version of Lygia Clark’s Baba
Antropofágica? Like any good maverick, Tatiana
Blass knows how to pull strings. Ironically, there is
no way to tie it all up, given that the work, like life,
is in a constant flux(us). Nevertheless, as the piece
metamorphosizes on screen one’s caught along the
hard path of realizing ones own embodiment...
285
ANEXO L - Electrical Room. Nora Burnett
Abrams
Para a exposição Eletrical Room no Museum of
Contemporary Art Denver, 2013.
Fonte: TATIANA Blass. Disponível em:
<www.tatianablass.com.br>. Acesso em: 30 mar
2015.
Electrical Room
NORA BURNETT ABRAMS
En sus instalaciones, pinturas y esculturas, la artista
brasilena Tatiana Blass (n. 1979) explora lo que
distingue lo real, las experiencias vividas, y las
ilusiones o representaciones de ellas. A menudo sus
obras tienen una calidad misteriosa y extrana,
mayormente debido a la propensión de la artista en
convertir objetos funcionales en disfuncionales y
retorciendo el lenguaje llegando a un punto en el
cual pierde su efecto, y la comunicación llega a un
punto de quiebre.
Con Electrical Room, cientos de enchufes y cables
dan vuelta por el espacio de la Natasha Congdon
Gallery, creando así una enredada red de material.
Los cables se juntan en un punto fijo, penetrando
en la pared de la galería y aparentemente
otorgándole energía a una densa instalación de
equipos audiovisuales situados en la galería
adjunta. Este montón denso de artículos
electrónicos en el Vicki & Kent Logan Promenade
incluye ambas ruinas de la tecnología moderna y
286
también ejemplos de las televisiones mas
sofisticadas en el mercado de hoy. En un principio
el arreglo fortuito parece ser al azar e incidental.
Sin embargo, a través de distintos monitores se
muestra un video en diez canales cada pocos
minutos. Los personajes en el video hablan los
unos a los otros a través de distintos equipos como
si estuvieran actuando en un mismo escenario.
Tanto como su transformación de cables eléctricos
en centro decorativo de líneas y remolinos, Blass
utiliza su video para experimentar con y retorcer
alrededor de las líneas de comunicación habladas
por sus personajes. El video está lleno de lapsus
linguísticos, confusión, falta de comunicación y
gestos equivocados. De muchas maneras, el video
mismo ilustra las fallas del lenguaje. Su video
demuestra la disfunción del lenguaje y los métodos
de comunicación usados con otras personas. El
hecho de que haya sido originalmente escrito en
portugués y después traducido al inglés, hace aun
más pertinente este punto. En el proceso de
traducción el significado esencialmente se
interpreta subjetivamente; en una cierta manera
siempre se altera, irrevocablemente de un
significado a otro.
Llegando al final del video la traductora,
exasperada, dice “estoy tratando de traducir, pero
cuando ella lo agarra, no hace sentido. Lo que yo
podría entender es...” A su vez este
cuestionamiento resulta ser una pregunta del
287
público: ¿Es el acto de traducir esencialmente una
futilidad? ¿Es imposible completamente entender
lo que es dicho en idioma ajeno? O, será que la
artista a su vez quiere proponer que cuando
compartimos información – la compartimos con
más gente y lo comunicamos de maneras múltiples
– ésto se convierte en un asunto de entender el
contexto en el cual el lenguaje se expresa. Como,
otro personaje declara, “¡Las cosas que dices! ¡Lo
que tu dices no coincide!” ¿Es el lenguaje que no
hace sentido? O, ¿es la traducción que simplemente
no coincide? Si las traducciones coinciden sigue
siendo una pregunta pendiente. Pero aún dentro de
estas frustraciones, las líneas de comunicación
continúan conectando los personajes entre ellos –
no importando cuan débil, fuerte o claros estos
senderos puedan ser.
En otro video de Blass titulado Hard Water (Agua
Dura), a la vista en el ascensor del museo, las
luchas de la comunicación también aparecen en
forma vívida. Dos mujeres elegantemente vestidas
tratan en vano de moverse dentro de una pieza
blanca mal iluminada. Aunque tratan de interactuar,
ellas parecen hablar encima una sobre la otra en
vez de entre ellas. Como en Electrical Room, el
video presenta una serie de nudos físicos y
linguísticos que los personajes repetidamente tejen
y sobre los cuales se tropiezan, así contemplando la
falta de comunicación inherente en nuestros
intentos en conectar y juntarnos con otras personas.
288
ANEXO M – Cão Cego. Solange Farkas
Para apresentação da exposição Cão Cego no
Museu de Arte Moderna da Bahia, 2009.
Fonte: Cão cego. Catálogo de exposição. Bahia,
[s.n.], 2009.
289
ANEXO N – Cão Cego. Tatiana Blass
Sobre a exposição Cão Cego no Museu de Arte
Moderna da Bahia, 2009.
Fonte: Cão cego. Catálogo de exposição. Bahia,
[s.n.], 2009.
290
ANEXO O – Entrevista para o catálogo da
exposição Cão Cego no Museu de Arte Moderna da
Bahia, 2009, sem entrevistador identificado.
Fonte: Cão cego. Catálogo de exposição. Bahia,
[s.n.], 2009.
291
292
293
294
ANEXO P – Diálogos possíveis. Antonio Carlos
Portela
Setor educativo do Museu de Arte Moderna da
Bahia para o catálogo da exposição Cão Cego,
2009.
Fonte: Cão cego. Catálogo de exposição. Bahia,
[s.n.], 2009.
295
296
ANEXO Q – Fim de Partida. Mauro Saraiva
Para a exposição Fim de Partida no Centro Cultural
Banco do Brasil, 2010.
Fonte: Sala A Contemporânea. Folheto de
exposição. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco
do Brasil, 2010.
297
ANEXO R – Entrevista. Paulo Venancio Filho
Realizada com a artista na ocasião da exposição
Fim de Partida no Centro Cultural Banco do Brasil,
2010.
Fonte: Sala A Contemporânea. Folheto de
exposição. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco
do Brasil, 2010.
298
299
300
ANEXO S – O gosto da fissura. Tatiana Blass
Para o Jornal Número.
Fonte: BLASS, Tatiana. O gosto da fissura. N. 3.
São Paulo: USP; Mariantonia, p.22 – 23, 2003.
301
302
ANEXO T – Quase figura, quase forma. Lorenzo
Mammì
Para a exposição coletiva Quase Figura, Quase
Forma de 2014.
Fonte: Quase Figura, Quase Forma. Catálogo de
exposição. São Paulo: Lis Gráfica, 2014.
303
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ANEXO U – A família mobília. Tatiana Blass
Capa de livro infanto-juvenil de Tatiana Blass com
texto e ilustrações da artista, publicado em 2014.
Fonte: BLASS, Tatiana. A família mobília. São
Paulo: Cosac Naify, 2014.