TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

10
Revistas têm temporalidade expandida já por sua periodicidade alongada. São se- manais, quinzenais, mensais; organizam, a cada edição (ou na série das coleções), um tempo mais dilatado que o do jornal e, com isso, desmontam e remontam os noticiá- rios, as atualidades, as vivências. Selecio- nam as imagens do presente, enredam-nas, justapõem umas com outras, propõem perspectivas para elas conforme as rotinas e vocações de cada veículo. Configuram, desse modo, montagens em que se justa- põem fotografias, ilustrações, informações, narrativas, materiais diversos; pequenas sú- mulas de imagens do contemporâneo. Toda revista propõe, de algum modo, uma refle- xão sobre o contemporâneo; nunca uma representação do contemporâneo, mas uma apresentação materialmente estável de ima- gens justapostas, do presente e de quaisquer tempos. Sejam quais forem os temas a que se dedique, o noticiário recente ou a efemé- ride, a revista implica a reunião espacial – o número, a edição – de materiais cuja tem- poralidade é diversa, heterogênea. Refletir sobre a temporalidade da revista exige, por- tanto, que se leve em conta a espessura tem- poral das imagens que ela veicula. Procuro aqui apresentar algumas ideias relacionadas a esse trabalho tem- poral das imagens com que se defronta qualquer um que folheie uma revista, quer para distração, informação ou pesquisa. Retomo estudos anteriores, nos quais me ocupei em pensar sobre como as revistas produzem, editam e apresentam imagens. 1 Vejo a revista como um objeto-arquivo que 1 Revista e contemporaneidade: imagens, montagens e suas anacronias Daisi Vogel 1 A procura de um procedimento analítico para tra- balhar com a temporalidade heterogênea das imagens apresentadas pelas revistas foi objeto de pesquisa de pós-doutoramento, em 2009-2010, com financiamento do CNPq. Versões preliminares das ideias contidas neste capítulo foram expostas, entre outros lugares, no 8 o Encontro de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), em 2010, inclusive em seus anais, e depois no artigo “O caso de Senhor com a literatura: notas sobre a revista e o acontecimento”, incluído na coletânea Jornalismo e acontecimento: percursos metodológicos (vol.2), citado nas Referências. Contexto

description

revista e jornalismo

Transcript of TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

Page 1: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

Revistas têm temporalidade expandida já por sua periodicidade alongada. São se-manais, quinzenais, mensais; organizam, a cada edição (ou na série das coleções), um tempo mais dilatado que o do jornal e, com isso, desmontam e remontam os noticiá-rios, as atualidades, as vivências. Selecio-nam as imagens do presente, enredam-nas, justapõem umas com outras, propõem perspectivas para elas conforme as rotinas e vocações de cada veículo. Configuram, desse modo, montagens em que se justa-põem fotografias, ilustrações, informações, narrativas, materiais diversos; pequenas sú-mulas de imagens do contemporâneo. Toda revista propõe, de algum modo, uma refle-xão sobre o contemporâneo; nunca uma representação do contemporâneo, mas uma apresentação materialmente estável de ima-gens justapostas, do presente e de quaisquer tempos. Sejam quais forem os temas a que se dedique, o noticiário recente ou a efemé-ride, a revista implica a reunião espacial – o número, a edição – de materiais cuja tem-poralidade é diversa, heterogênea. Refletir

sobre a temporalidade da revista exige, por-tanto, que se leve em conta a espessura tem-poral das imagens que ela veicula.

Procuro aqui apresentar algumas ideias relacionadas a esse trabalho tem-poral das imagens com que se defronta qualquer um que folheie uma revista, quer para distração, informação ou pesquisa. Retomo estudos anteriores, nos quais me ocupei em pensar sobre como as revistas produzem, editam e apresentam imagens.1 Vejo a revista como um objeto-arquivo que

1

Revista e contemporaneidade: imagens, montagens e suas anacronias

Daisi Vogel

1 A procura de um procedimento analítico para tra-balhar com a temporalidade heterogênea das imagens apresentadas pelas revistas foi objeto de pesquisa de pós-doutoramento, em 2009-2010, com financiamento do CNPq. Versões preliminares das ideias contidas neste capítulo foram expostas, entre outros lugares, no 8o Encontro de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), em 2010, inclusive em seus anais, e depois no artigo “O caso de Senhor com a literatura: notas sobre a revista e o acontecimento”, incluído na coletânea Jornalismo e acontecimento: percursos metodológicos (vol.2), citado nas Referências.

Contexto

Tavares e Schwaab.indd 17 6/3/2013 11:03:48

Page 2: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

18 Tavares & Schwaab (orgs.)

materializa uma certa configuração de ima-gens e, portanto, um arquivo de memória, o que sugere o reconhecimento do caráter heterogêneo do tempo que atravessa uma revista. Valho-me a todo instante do pensa-mento de Walter Benjamin (1993a, 1993b, 2006) sobre a relação entre a história e o tempo e de autores contemporâneos que, nem sempre do mesmo modo, remobilizam esse pensamento, como Giorgio Agamben (2009) e Georges Didi-Huberman (1998, 2006, 2008). Há, desde o início, uma tenta-tiva de perceber como o tempo histórico se dá a ler nas revistas, se as imagens que car-rega estão elas próprias carregadas de uma história que não é nem linear, nem hetero-gênea, as imagens do contemporâneo.

Procurei por recursos teóricos que amparassem o trabalho vivo com os sen-tidos que se dá quase espontaneamente quando se folheia uma revista, seja ela atual, seja de época passada. Os conceitos princi-pais que surgiram para pensar a revista na sua relação com o tempo foram o de ima-gem, de montagem e de anacronismo, ne-les implicadas as questões relacionadas ao conceito de memória. Aqui, tentarei tramar uma relação entre esses conceitos e o pró-prio conceito de revista, bem como esboçar um procedimento que ajude a pensar a re-vista desde a edição ao consumo das ima-gens, em quaisquer tempos.

Uma síntese inicial: numa revista, opera sempre o princípio-chave da monta-gem, em que imagens de mundo são agru-padas numa dinâmica própria. As imagens que uma revista apresenta trazem sempre sentidos em carga. Ou seja, sempre um acionamento de arquivos: imagens em as-sociação, em confronto, em composição, e imagens do noticiário, do cotidiano vivo, operadas junto a imagens da experiên cia e da memória, verbais ou pictóricas, coi-sificadas ou mentais, conscientes ou não conscientes, públicas ou individuais. Esse princípio operador da montagem, associa-do ao trabalho da imaginação, se manifesta

em todo o percurso editorial, da pauta ao fechamento, e depois se desdobra cada vez que se inicia um gosto de leitura.

Procurarei, na sequência, apresentar o conceito de montagem e as questões relati-vas ao tempo que ele mobiliza, e deste se vai ao entendimento do trabalho anacrônico da memória com as imagens. Veremos que sintomas e sobrevivências se atualizam na revista, numa contemporaneidade que, de qualquer modo, não poderia ser abordada como se fosse chapada, como se o seu tem-po não fosse atravessado de esquecimentos, seleções, intermitências. A revista se mostra, afinal, como caleidoscópio em que imagens, antes separadas, se justapõem, se alternam, se multiplicam, numa reconfiguração cons-tante daquela que seria, em termos benja-minianos, a experiência do tempo, que é em tudo diferente da vivência perceptiva do presente. Por isso, dada a necessidade de logo distinguir a experiência do tempo da submersão radical no presente, coloca--se inicialmente o problema de tentar defi-nir a contemporaneidade, esse tempo que é “com-tempo” e implica algum tipo de par-tilha, de comum.

O que é, afinal, o contemporâneo? Que relação temporal distingue ou aproxima contemporaneidade e atualidade? Agam-ben (2009) recorreu ao Friedrich Nie tzsche da Segunda consideração intempestiva, para começar a responder a essas perguntas. Nietzsche, como se sabe, defende nesse texto a importância do esquecimento para a vida, a necessidade dos lapsos temporais na relação com o presente, para a reflexão e o entendimento desse mesmo estar-aí. O intempestivo, o fora tempo – logo, o ina tual –, é o espaço que abre o atual ao entendi-mento. Começa-se, pois, da sugestão de que o contemporâneo é o intempestivo. Ou seja, “[...] pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide inteiramente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual [...]”

Tavares e Schwaab.indd 18 6/3/2013 11:03:48

Page 3: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

A revista e seu jornalismo 19

(Agamben, 2009, p. 58). Donde a contem-poraneidade pode ser compreendida como uma forma singular de relação com o tem-po. Essa relação é, concomitantemente, de adesão ao tempo e de dissociação dele, de distanciamento. Diz Agamben (2009, p. 59) que

[...] aqueles que coincidem muito plena-mente com uma época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

A atualidade radical é quase a inércia da experiência, do entendimento. Nenhum tempo presente é compreensível em si mes-mo, fechado. Ele ganha espessura na medi-da em que nele se distingue o que carrega do passado e o que projeta ao futuro. De fato, é impossível pensar o contemporâneo sem o exercício crítico da imaginação e da memória.

A revista, essa súmula de imagens, é um arquivo do contemporâneo, porque não é uma tela plana: folheia-se, as ima-gens ali agrupadas se reorganizam nesse passeio, mesmo que remontadas a partir de um primeiro conjunto de atualidades. Há sempre essa justaposição e contraposição de imagens, que exercitam a imaginação e a memória. Quando se diz da imagem, diz--se também das formas verbais que operam com imagens em nossa memória, seguindo o caminho de Benjamin (1993b, p. 203):

Achar palavras para aquilo que se tem diante dos olhos – quão difícil pode ser isso! Porém, quando elas chegam, batem contra o real com pequenos martelinhos até que, como de uma chapa de cobre, dele tenham extraído a imagem.

E ainda: “[...] a escrita se assemelha ao seu autor em que é um esconderijo incom-parável de imagens. Um refúgio da história universal. Pois no autor moram, se alojam

imagens, sabedorias, palavras [...]” (Benja-min, 1993b, p. 207). Por isso a ideia de que, mais do que uma mensagem, uma revista é uma montagem.

IMAGENS EM MONTAGEM

O entendimento da revista como lugar em que se exercita o princípio artístico da mon-tagem foi apresentado por Ernst Bloch, no prefácio da primeira edição de Herança des-ta época, de 1935. Ele situa a revista como manifestação material plena da experiência moderna.

A montagem arranca partes da coerência ruída e dos múltiplos relativismos da época, para juntá-las a novas figuras. Esse procedimento muitas vezes é ape-nas decorativo, muitas vezes porém é experimentado de forma involuntária, ou, quando usado como em Brecht, vo-luntariamente; como um procedimento de interrupção que assim permite a so-breposição de partes anteriormente muito separadas. Aqui é grande a riqueza de uma época agonizante, uma surpreendente época de mescla entre noite e manhã nos anos vinte. Isso compreende desde as mal havidas ligações do olhar com a imagem até Proust, Joyce, Brecht e daí por diante, é uma época caleidoscópica, uma “revis-ta”. (Bloch, 1985, p. 17, grifos do autor, tradução minha).

O exercício em relação a essa passa-gem de Bloch é justamente remontar seu argumento ao revés. Ele aponta como a montagem das vanguardas históricas rea-liza procedimentos que são também os da revista, conceitualmente caleidoscópica, ou, enfim, uma montagem de imagens cujos nexos se produzem na memória. Efetiva-mente, ele parte da ideia de revista como um caleidoscópio de imagens e tempos. As montagens feitas pelos artistas de van-guarda dispunham em formas novas os

Tavares e Schwaab.indd 19 6/3/2013 11:03:49

Page 4: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

20 Tavares & Schwaab (orgs.)

materiais encontrados nas ruínas de sua época, criavam novas configurações de sen-tido no caleidoscópio dos materiais, e essa é a operação-chave da revista, que dispõe em nova ordem (ou desordem) as ruínas de nosso próprio tempo, o que sempre per-mite imaginar a abertura ou o vazio de um outro caminho entre elas.

O conceito de “revista”, como for-mação discursiva moderna, é quase con-substancial ao nascimento da imprensa (Contreras, 1999, p. 194). Já a perspectiva de Bloch segue o rastro de uma localiza-ção estética desse conceito, que caracteri-za a revista a partir do procedimento de montagem que interliga os diversos tra-balhos daquilo que se poderia também dizer “produção” de uma revista. É uma perspectiva que afeta o modo de entender o que são as imagens da revista, como ma-terial de montagem, e o que são as ima-gens na revista, como ma terial montado. O que atravessa essa dinâmica é a relação, sempre instável e particular, de adesão e distância que a montagem propõe em re-lação ao contemporâneo, pois é certo que, compreendida como montagem, a revista fica mais próxima de uma poética do que de uma organização científica do saber. E pode-se duplicar a perspectiva de Bloch: o desmonte e a remontagem dos materiais da revista (as imagens e as temporalidades que as atravessam) tornam-se procedi-mentos de uma operação (ou leitura) que opera francamente com a imaginação e a memória, caracterizando uma historicida-de própria, associativa e não linear.

Em seu estudo sobre a montagem épica de Bertold Brecht, Didi-Huberman (2008) menciona essa passagem de Bloch e a correlaciona com Walter Benjamin, para quem “montagem” e “caleidoscópio” são conceitos caros. Brecht, Bloch e Ben-jamin participaram ativamente do debate sobre as relações entre arte e política, na época das vanguardas históricas, e Bre-cht era como uma encarnação da ideia

benjaminiana da politização da arte. Bloch via a montagem como um sintoma histó-rico; Didi-Huberman mostra que a mon-tagem não é apenas um procedimento de época, mas também um procedimento fi-losófico em si. Daí a menção à passagem talvez mais eloquente de Benjamin a esse respeito:

O caráter destrutivo não vê nada de du-radouro. Mas eis precisamente por que vê caminhos por toda a parte. Onde os outros esbarram em muros ou monta-nhas, ele vê um caminho. Mas porque vê caminhos por toda a parte, também aí ele vê um caminho. Já que o vê por toda parte, tem de desobstruí-lo também por toda parte. Nem sempre com brutalida-de, às vezes com refinamento. Já que vê caminhos por toda parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento é capaz de saber o que o próximo traz. O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por causa do cami-nho que passa através delas. (Benjamin, 1993b, p. 237).

Didi-Huberman retoma esse texto de Benjamin e encontra nele um elogio à mon-tagem, com a presença de um pensamento crítico que não sustenta teses. A montagem se mostra em seu “caráter destrutivo”, des-viando de um modelo dominante de rela-to para extrair das imagens e seu tempo os conflitos imanentes, “como uma raiz qua-drada”. A montagem também cria vazios, “intervalos que funcionarão como vias abertas, caminhos para uma nova maneira de pensar a história dos homens e a dispo-sição das coisas” (Didi-Huberman, 2008, p. 145). Didi-Huberman faz perguntas à obra de Brecht que podem ser reformuladas, como decalque, para o objeto revista. O que uma revista expõe? A regra ou a exceção, o devir universal ou a singularidade das de-formações, o fluxo soberano ou as descon-tinuidades? Valem elas pelo seu parâmetro crônico ou por seu paradigma anacrônico?

Tavares e Schwaab.indd 20 6/3/2013 11:03:49

Page 5: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

A revista e seu jornalismo 21

O perfil poético da montagem atrai para a revista algumas questões que são centrais para a estética moderna. A mon-tagem como princípio artístico surge his-toricamente ligada ao cubismo e às suas collages, que incorporam na pintura ma-teriais não elaborados pelo artista, de fato fragmentos de realidade. Rompeu-se, com isso, um sistema de representação baseado na ideia de reprodução da realidade, isto é, um sistema baseado no princípio de que a tarefa do artista é a transposição da realida-de. Como afirma Bürger,

A obra de arte transforma-se substancial-mente ao admitir no seu seio fragmentos de realidade. Já não se trata apenas da renúncia do artista à criação de quadros completos; os próprios quadros, aliás, adquirem um status diferente, pois uma parte deles já não mantém com a realida-de as relações características das obras de arte orgânicas: não sinal da realidade; são a própria realidade. (Bürger, 1993, p. 129).

A montagem tem, pois, desde o início, um vínculo experimental e mesmo material com as revistas e os jornais – os periódicos. Os cubistas haviam usado recortes em suas telas; com a Primeira Guerra Mundial, os dadaístas desmontaram poeticamente a no-ção de informação de imprensa ao recorta-rem as revistas em pedaços. Era a época em que se propunha romper com as pretensões de uma arte eterna, para colocar a arte em relação política mais direta com a atualida-de. A imprensa europeia, por sua vez, era conduzida por grandes empresas financei-ras. Bloch (1985) se referia, por exemplo, à moral servil do periódico e sua infinita capacidade de falsificação. Alguns artistas, então, passaram a decompor os materiais factuais publicados nas revistas para re-montá-los em outra sintaxe.

Em suas Passagens, Benjamin (2006) usa a montagem como forma de conheci-mento: uma montagem literária. Ele tam-bém utiliza a noção de montagem no ensaio

em que aprecia Berlin Alexandersplatz, de Döblin, em que diz (Benjamin, 1993a, p. 56):

O princípio estilístico do livro é a monta-gem. Material impresso de toda ordem, de origem pequeno-burguesa, histórias es-candalosas, acidentes, sensações de 1928, canções populares e anúncios enxameiam nesse texto.

Essa descrição do livro de Döblin po-deria muito bem ser a descrição de uma de nossas clássicas revistas de informação ge-ral, como O Cruzeiro, Manchete ou Senhor. Em suas páginas, encadeia-se a mesma sor-te de histórias, acidentes, sensações, canções e anúncios. Benjamin segue:

A montagem faz explodir o “romance”, estrutural e estilisticamente, e abre novas possibilidades, de caráter épico, principal-mente na forma. O material da montagem está longe de ser arbitrário. A verdadeira montagem se baseia no documento. Em sua luta fanática contra a obra de arte, o dadaísmo coloca a seu serviço a vida co-tidiana, através da montagem. (Benjamin, 1993a, p. 56).

O conceito de revista como caleidos-cópio de imagens e tempos, tal como apare-ce em Bloch, não é frontalmente diverso de outras definições que se possa colecionar. Martins (2001, p. 46), em seu extenso es-tudo sobre as revistas de São Paulo, aponta que

[...] o caráter fragmentado e periódico das revistas é seu traço recorrente, imutável nas variações geográficas e temporais onde o gênero floresceu, resultando sempre em publicação datada, por isso mesmo de forte conteúdo documental.

Antelo (1999, p. 309), também estu-dioso do periodismo brasileiro, considera que ler uma revista

Tavares e Schwaab.indd 21 6/3/2013 11:03:49

Page 6: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

22 Tavares & Schwaab (orgs.)

[...] obriga a selecionar e omitir, pro-duzindo um texto, uma leitura que é collage espacial ou montagem temporal de fragmentos enxertados em relações provisórias ou aleatórias, que não obs-tante reafirmam o motor do moderno: a experiência do descontínuo.

Desde a ideia de review (resenha ou minuta crítica) ou de magazine (loja ou casa de comércio), a revista apresenta ca-racterísticas que a distinguem do jornal. Ambos operam num encontro entre texto, fotografia ou ilustração e design. Contudo, a periodicidade é um dos atributos centrais de diferenciação. Revistas podem ser sema-nais, quinzenais ou mensais, mas não exis-tem revistas que sejam publicadas diaria-mente – isso é característico dos jornais e os torna muito mais próximos (que a revista) do universo da notícia propriamente dita, com um vínculo temporal estreito entre os eventos empíricos e a publicação. Essa ca-racterística é uma das que mais fortemente altera como o evento se torna acontecimen-to numa revista, potencializa a policronia desses acontecimentos e reforça seu aspecto de montagem.

Há experiências de publicações em que as características distintivas do jorna-lismo de jornal e de revista se sobrepõem. Existem jornais que circulam com periodi-cidade ampliada, e isso termina por deixá--los, conceitualmente e no tratamento dado aos temas, mais próximos da revista. Nesse ponto, a diferenciação entre tais veículos pode restar apenas ao aspecto material, pois os jornais costumam ser montados em ca-dernos que se utilizam apenas da dobra do papel, com folhas soltas que podem ser se-paradas e reagrupadas, enquanto as revistas têm cadernos colados ou grampeados.

Como prática jornalística, a revista também é diferenciada, desde a formula-ção da pauta ao tempo de apuração e ao tratamento da linguagem e do desenho de página. Mesmo nas revistas mais noticiosas,

há uma distância maior entre o evento em-pírico e a publicação. Os jornais também costumam trazer, encartados, cadernos que circulam com periodicidade ampliada, es-pecialmente aos fins de semana. Esses ma-teriais tendem a se aproximar e incorporar atributos que são mais característicos da revista. As revistas, porém, tendem a se de-finir pela formulação de projetos bastante particulares. Segundo Lage (1982, p. 86-87), um “estigma nostálgico” impregna tanto o título quanto a forma e o modo de ser das revistas:

A revista-magazine reflete uma proposta discursiva engendrada socialmente e é raro que sobreviva à superação dessa proposta. Sua existência é, por outro lado, marcada pela contínua adaptação aos aspectos emergentes da sociedade. Isto é fácil de constatar folheando velhas publicações periódicas [...]: mais do que superadas, qualquer revista antiga guarda um aspecto reminiscente, nostálgico, que reflete valores, pensamentos e aflições de tempos idos.

Lage observa também que, voltadas a grupos de leitores, as “revistas fazem parte do grande aparato classificatório que nos dispõe em escaninhos segundo o que neces-sariamente nos interessa, a partir de nossas rendas, idades, o lugar em que vivemos ou de qualquer outro critério aparentemente natu-ral e espontâneo” (1982, p. 89, grifos do au-tor). Essa percepção, que registra a forma de biopoder que se exerce e exercita nas revistas, tem um efeito importante sobre a definição da pauta, o tratamento editorial, a lingua-gem (em suma, o acontecimento) em cada publicação. No conjunto, pode-se dizer que ela sobredetermina o modo como determi-nada revista toma posição diante dos eventos do mundo.

A hipótese da revista como monta-gem – e, logo, sua proximidade com um saber poético em que se manifesta a crise

Tavares e Schwaab.indd 22 6/3/2013 11:03:49

Page 7: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

A revista e seu jornalismo 23

da representação – está, de certa maneira, radicada na história moderna. Jacques Ran-cière faz referência às culturas tipográfica e iconográfica, “esse entrelaçamento dos po-deres da letra e da imagem”, que exerceram influência no Renascimento, e às vinhetas e demais inovações da tipografia romântica. “Esse modelo”, diz ele, “embaralha as regras de correspondência a distância entre o dizí-vel e o visível, próprias à lógica representa-tiva” (Rancière, 2005, p. 20).

Há, na própria cultura tipográfica e iconográfica de que a revista faz parte, um embaralhamento entre as noções de arte pura e arte aplicada, e isso teve um papel central na transformação do paradigma representativo. Nos vínculos criados entre o poema e sua tipografia ou sua ilustração faz-se a ligação do artista que abole a figu-ração ao revolucionário, inventor da vida nova:

Essa interface é política porque revoga a dupla política inerente à lógica repre-sentativa. Esta, por um lado, separava o mundo das imitações da arte do mundo dos interesses vitais e das grandezas político-sociais. Por outro, sua organi-zação hierárquica – e particularmente o primado da palavra/ação viva sobre a imagem pintada – era análoga à ordem político-social. Com a vitória da página romanesca sobre a cena teatral, o entre-laçamento igualitário das imagens e dos signos na superfície pictural ou tipográ-fica, a promoção da arte dos artesãos à grande arte e a pretensão nova de inserir arte no cenário de cada vida em particular, trata-se de todo um recorte ordenado da experiência sensível que cai por terra. (Rancière, 2005, p. 23).

Mesmo o realismo, determinante para todo o jornalismo e para a modernidade es-tética em si, entra em crise diante da estética da montagem. O realismo quer compreen-der a realidade produzindo seu reflexo, na intenção de restituir seu movimento e sua

totalidade histórica. A montagem, ao con-trário, renuncia antecipadamente à com-preensão global e ao reflexo, uma vez que separa e recompõe, interpreta por fragmen-tos, em vez de procurar abarcar a totalidade. O pôr em desordem, ou o “caráter destrui-dor”, é seu princípio formal. Não mostra as coisas sob a perspectiva de seu movimen-to global, mas de suas agitações. Dis-põe e recompõe, criando novas relações entre as coisas, novas situações. Toma posição sobre o real mudando, de maneira crítica, as po-sições respectivas das coisas, dos discursos, das imagens (Didi-Huberman, 2008).

Esse paralelismo histórico entre a re-vista e a crise da representação remete ao processo da autonomização dos campos em si – o campo da arte, do jornalismo, que foi concomitante. No caso da arte e do jor nalismo, pode-se considerar, como em quaisquer campos, que seu conhecimen-to depende de sua transformação, de seus sintomas, de seus desvios. As vanguardas opuseram a especificidade da obra de arte ao sistema de valores pelo qual a institui-ção estabilizava a cultura; com isso, operou como crítica à estrutura social que legiti-mava a arte. Define-se o mal-estar diante das sedimentações excessivas, normativas, numa atitude que questiona o lugar da própria ação. Isso faz pensar, por extensão, na necessidade de compreender também o jornalismo dentro e diante do sistema de valores que o tornou possível e ao qual ele, ao mesmo tempo que questiona, legitima e preserva.

ANACRONIAS DO CONTEMPORÂNEO

Benjamin explorou a relação entre ima-ginação e história, a imaginação tomada como forma de conhecimento e como es-sencialmente política. Considerava que ela se apoia nos documentos, mas também se permite tomar esse material histórico a

Tavares e Schwaab.indd 23 6/3/2013 11:03:49

Page 8: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

24 Tavares & Schwaab (orgs.)

contrapelo, desorganizando evidências. Foi seu projeto compor uma obra documental que tivesse a imaginação por objeto, um co-nhecimento por imagens. A montagem aí figura como procedimento central, sendo por excelência uma exposição de anacro-nias e heterogeneidades, porque implode a cronologia. A montagem separa coisas ha-bitualmente reunidas e vincula coisas habi-tualmente separadas.

Donde deter-se diante de uma revista é, ao mesmo tempo, interrogar o arquivo e o tempo, a história da revista, a temporalida-de e a historicidade em si mesmas. Rancière (1996) afirma que existem modos de cone-xão, na história como processo, que pode-mos positivamente chamar de anacronias: acontecimentos, noções, significações que tomam o tempo ao revés, que fazem circu-lar o sentido de uma maneira que escapa a toda contemporaneidade, a toda identida-de do tempo consigo mesmo. Segundo ele, é condição do fator histórico a multiplici-dade das linhas temporais, dos sentidos de tempos incluídos em um “mesmo” tempo.

A partir dessa noção de anacronismo, os arquivos – em nosso caso, as revistas – são potenciais objetos para o estudo e a re-flexão acerca do histórico e do contemporâ-neo. Conforme aponta Antelo (2007, p. 10), a história crítica da cultura, sob o influxo da noção do anacronismo, abriga um conjunto variado de registros:

o testemunho, o documentário, a me-mória, mas, basicamente, a ficção — que precisam ser analisados de forma completamente diversa da tradicional, nem tanto porque tenham mudado as imagens ou os relatos do presente. Mudou foi a forma de agrupá-los e classificá-los, mudou a maneira de ler. Aí reside um dos movimentos mais peculiares do presente, um movimento dúplice, que se reproduz incessantemente e permite que as escritu-ras da diferença singular convivam com as escritas da permanência identitária. Todas

convivem entre si e funcionam sincroni-camente porque a presença do passado no presente, através da superposição de temporalidades, narra, recorrentemente, o processo de constituição dessas tempo-ralidades paradoxais, porém, a partir de outras categorias históricas.

Assim, acrescenta-se à compreensão da revista a perspectiva do anacronismo, da crítica dialética das imagens, que nos olham quando as olhamos. E, como diz Didi-Hu-berman (1998, p. 150):

Como negar, com efeito, que é todo o tesouro do simbólico – sua arborescência estrutural, sua historicidade complexa sempre relembrada, sempre transforma-da – que nos olha em cada forma visível investida desse poder de “levantar os olhos”? Quando o trabalho do simbólico consegue tecer essa trama de repente “sin-gular” a partir de um objeto visível, por um lado ela o faz literalmente “aparecer” como um acontecimento visual único, por outro o transforma literalmente: pois ele inquieta a estabilidade mesma de seu aspecto, na medida em que se torna capaz de chamar uma lonjura na forma próxima ou supostamente possível da posse.

Por isso, questionar e problematizar o tempo e a contemporaneidade de uma revista exige considerar a complexidade teórica do próprio anacronismo. O tem-po histórico não poderia mais ser pensado como uma determinação, fluxo ininterrup-to de causas e consequências fixas. Perniola (2009, p. 155) bem observou, a esse respei-to, que “[...] é preciso realmente faltar de senso histórico para acreditar cegamente numa correspondência geométrica entre a realidade histórica de uma época e o seu imaginário coletivo”.

Não é difícil reconhecer que, numa revista, ocorre um encontro de tempora-lidades mistas e heterogêneas: os tempos dos acontecimentos factuais, os tempos de

Tavares e Schwaab.indd 24 6/3/2013 11:03:49

Page 9: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

A revista e seu jornalismo 25

produção da revista, os tempos da leitura. Quando se empreende uma leitura crítica da revista, entra em cena a temporalidade do analista, do observador. A tudo isso, so-ma-se que cada imagem do presente, cada evento factual, se liga a uma rede de ima-gens já existentes, multiplicando os pontos de vista. Com isso, volta-se a Benjamin, com sua proposição de construir um saber histórico que exponha a heterogeneidade e a anamnésia de cada acontecimento para além do seu presente singular.

Poderíamos deslocar, dessa prática, um procedimento de leitura dos mate-riais jornalísticos, tomados a partir de um ponto de vista deslocado, que não procura depreen der um discurso ou uma ideologia que seriam inerentes aos materiais, mas recolocar o tempo nos materiais. De fato, uma revista é um objeto que confere ma-terialidade visual às anacronias da história real. Considere-se a variedade temática, nas múltiplas seções de uma revista, que for-mam o caleidoscópio. Diz Benjamin, em Sobre o conceito de história (1993a, p. 223): “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”.

Benjamin vê a larga duração de um passado latente em cada objeto histórico. No livro das Passagens, reconhece o antigo mendigo que “sobrevive” no clochard, as bocas do inferno que sobrevivem nas bocas do metrô. Essa “sobrevivência” se refere aos efeitos anacrônicos de uma época sobre ou-tra, e exige do analista do passado que con-sidere modelos de temporalidade amplia-dos, capazes de lidar com os anacronismos da memória.

De fato, na perspectiva de Benjamin, não há história sem uma teoria da memória e sem uma atenção às operações do incons-ciente. Essa é uma das características radicais do seu pensamento: a história não parte dos feitos do passado, mas do movimento que

os recorda e os constrói no presente do his-toriador. De fato, a imaginação desmonta a continuidade das coisas para fazer surgir as afinidades eletivas estruturais, ou seja, a ima-ginação faz montagens, é montadora por ex-celência. Agora, levar em conta os processos da memória e, portanto, o inconsciente da imagem, exige o deslocamento da razão na história, de modo que o passado é atual nas sobrevivências materiais ou psíquicas dos materiais, e não na presença eterna da ideia.

A imagem é abertamente sobredeter-minada a respeito do tempo. Isso impli-ca reconhecer o princípio funcional dessa sobredeterminação dentro de uma certa dinâmica da memória. A memória é um tempo que não é exatamente um passado; ela humaniza e organiza o tempo, entretece seus fios, assegura sua transmissão (Didi--Huberman, 2006, p. 40). É a memória que se interroga na revista, e não exatamente o passado. Contudo, a memória opera como um processo psíquico, anacrônico em seus efeitos de montagem. Assim, uma das pos-sibilidades para entender a revista é não se limitar ao ângulo da eucronia, ou seja, a re-vista e seu tempo, porque as imagens que ela reúne não são pontos fixos naquela que seria a linearidade impossível da história, e tampouco remetem a blocos de eternidade, insensíveis à passagem do tempo. A revista é também as memórias que a atravessam, as próprias manipulações do tempo que ela documenta e suas eventuais posições anacrônicas, isto é, contra seu próprio tem-po. Assim, pode-se ler revistas como quem rastreia pegadas da memória, como quem toma posição diante do contemporâneo.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

ANTELO, R. Anacronismo e world literature. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIO-NAL DE LITERATURA COMPARADA, 18., 2007, Rio de Janeiro. Anais ... Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.

Tavares e Schwaab.indd 25 6/3/2013 11:03:50

Page 10: TAVARES. a Revista e Seu Jornalismo

26 Tavares & Schwaab (orgs.)

ANTELO, R. El inconsciente óptico del modernis-mo. In: SOSNOWSKI, S. (Ed.). La cultura de um siglo: América Latina en sus revistas. Buenos Aires: Alianza, 1999. p. 297-310.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993a.

BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Ed. da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

BENJAMIN, W. Rua de mão única. 3. ed. São Paul: Brasiliense, 1993b.

BLOCH, E. Erbschaft dieser Zeit: erweiterte Ausgabe. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985.

BÜRGER, P. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.

CONTRERAS, S. P. El periodismo de los nuevos médios: el cine, el magazine y la radio. In: GÓMEZ MOMPART, J. L.; OTTO, E. M. Historia del perio-dismo universal. Madrid: Síntesis, 1999.

DIDI-HUBERMAN, G. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.

DIDI-HUBERMAN, G. Cuando las imágenes toman posición. Madrid: Antonio Machado Libros, 2008.

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

LAGE, N. Ideologia e técnica da notícia. 2. ed. Petró-polis: Vozes, 1982.

MARTINS, A. L. Revista em revista: imprensa e pra-ticas em templos de republica, São Paulo 1890-1922. São Paulo: EDUSP, 2001.

PERNIOLA, M. Enigmas: egípcio, barroco e neo-barroco na sociedade e na arte. Chapecó: Argos, 2009.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e po-lítica. São Paulo: Exo Experimental; Ed. 34, 2005.

RANCIÉRE, J. Le concept d’anachronisme et la verité de l’historien. L’Inactuel, n. 6, 1996.

Tavares e Schwaab.indd 26 6/3/2013 11:03:50