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MAGAZINE Entrevista com Luis Henrique Milan Novaes por Caio Garrido REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS ANO 1 N. 1 JUNHO, 2014 ESTAMOS TODOS TRANQUILOS!? Durval Mazzei Nogueira Filho 10 ANOS DO NÚCLEO TAVOLA DESNUDANDO O TRAVESTISMO Fernanda de Oliveira Cecchi INDÚSTRIA DE IMPOSIÇÃO CULTURAL Caio Garrido Feuerbach e Freud: A RELIGIÃO COMO ILUSÃO Alessandro Alves

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Tavola MAGAZINE é uma publicação trimestral, de distribuição gratuita, multidisciplinar, voltada à área de Psicanálise, Psicoterapias, Humanidades, Literatura, Filosofia, Ciências, Cinema e Artes em geral, do Núcleo Tavola Instituto de Formação e Pesquisa em Psicanálise, Psicologia e Ciências Humanas LTDA.

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MAGAZINE

Entrevista com Luis Henrique Milan Novaespor Caio Garrido

REVISTA DECIÊNCIASHUMANASANO 1 N. 1JUNHO, 2014

ESTAMOS TODOS

TRANQUILOS!?Durval Mazzei Nogueira Filho

10 ANOS DO NÚCLEO TAVOLA

DESNUDANDO O TRAVESTISMOFernanda de Oliveira Cecchi

INDÚSTRIA DE

IMPOSIÇÃO CULTURALCaio Garrido

Feuerbach e Freud: A RELIGIÃO COMO ILUSÃOAlessandro Alves

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Editor Geral: Caio Garrido

Jornalista Responsável: Marcos Angelini - MTB 21.329

Projeto Gráfico e Diagramação: Lucy Gandra

Diagramação e Finalização: Vanúcia Santos (asedicoes.com)

Contatos:

Tel.: (16) 3623-5786Rua Visconde de Abaeté, 210 Jd. Sumaré - Ribeirão Preto - [email protected]

Tavola MAGAZINE é uma publicação do Núcleo Tavola Instituto de Formação e Pesquisa em Psicanálise, Psicologia e Ciências Humanas LTDA.

Rua Visconde de Abaeté, 210, Jd. Sumaré CEP 14025-050 | Ribeirão Preto – SP –Tel.: (16) 3623-5786

CNPJ: 12.947.921/0001-45 | Luis Henrique Milan Novaes (diretor geral)

Colaboradores:Andréa Nícia - Biohumanismo Caio Garrido - Literatura Ana Celeste de Araújo Pitiá – Acompanhamento Terapêutico Eneida de Duartina Fernandes Novaes – Psicoterapia Corporal Fernanda de Oliveira Cecchi – Psicoterapias e fenômenos Grupais Alessandro Alves – Filosofia

Desde os tempos mais remotos, a ânsia pelo conhecimento foi uma mar-ca intrínseca do ser humano. Foi exatamente essa ânsia que possibilitou ao homem desenvolver o que lhe é mais caro, e por vezes, o mais difícil: a capacidade de pensar.

Mas o desenvolvimento do conhecimento não se faz sozinho, não acon-tece de maneira independente, ele nasce do pensamento individual e parte para o coletivo, e quando realiza esse processo, dá-se a construção do sa-ber, através da relação com o outro, que deve ocorrer sempre de maneira circular, para ser realmente legítimo.

Nesse sentido, fundamentada no espírito de vanguarda, inerente ao Núcleo Tavola desde sua criação, nasce a revista Tavola Magazine, um importante instrumento de partilha do saber humano, que sempre foi o objetivo de nosso trabalho.

Buscando atingir essa proposta, temos textos dos mais diversos, de cien-tíficos a poéticos, tornando a leitura de nossa revista prazerosa e palatável.

Nossos sinceros agradecimentos a todos os colaboradores, que gene-rosamente cederam parte de seu tempo e conhecimento para que nossa revista pudesse atingir seu objetivo maior.

Sejam bem vindos e desfrutem conosco, sentados ao redor desta mesma mesa, de uma excelente leitura.

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05 Luis Henrique Milan Novaes e os dez anos do Núcleo Tavola

Caio Garrido

10 Estamos todos tranquilos!?

Durval Mazzei Nogueira Filho

14 Afinal, o que é Psicoterapia Corporal?

Eneida de Duartina Fernandes Novaes; Rogério Ziotti

16 Indústria de Imposição Cultural

Caio Garrido

18 O Acompanhamento Terapêutico — o AT: uma clínica itinerante

Ana Celeste Pitiá; Raymundo Reis Neto

23 Xilogravura: Processo Artístico para Teoria das Polaridades

Andréa Nícia

25 Desnudando o Travestismo

Fernanda de Oliveira Cecchi

29 Sistemas de Classificação em Subgrupos: Um novo paradigma no tratamento da dor lombar

Adriano Pezolato

33 Feuerbach e Freud: A religião como ilusão

Alessandro Alves

35 Alguns apontamentos sobre Eichmann em Jerusalém

Sirlene Ap. Pessalacia Barretto

39 A fúria sem som

Matheus Arcaro

41 Poemas

Eduardo Lacerda

43 Agendas

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Luis Henrique Milan Novaese os dez anos do NÚCLEO Tavolapor Caio Garrido Magazine

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Psicanálise, disciplina criada há mais de um século por Sigmund Freud e herdeira direta da Literatura, não é propriamente um percurso de rosas. É preciso se implicar no caminho, ousar, buscar e sustentar um compromisso de desejo; para que o percurso possa trazer uma dinâmica interna de paixão. Palavras de Luis Henrique Milan Novaes, nosso entrevistado nesta primeira edição da Tavola Magazine.

Novaes foi um dos fundadores do Instituto, criado há mais de 13 anos, instituto que hoje já conta com 10 anos de Formação em Psicanálise.

Quando da criação do Tavola, a cena psicanalítica ribeirão-pretana contava com um único grupo, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP). O Tavola, em sua di-nâmica de vanguarda, apesar de referenciar ao que existe, apostou no novo, na singularidade; aposta que pra ser real deve vir sem garantias.

Uma das apostas, segundo Novaes, é “criar poder”. Um poder que se caracteriza pelo en-contro, capaz de gerar exponencialidades e criatividade. Hannah Arendt, uma pensadora que se debruçou sobre a questão do poder, já dizia: “O que cria poder é o encontro entre as pessoas”.

Esta ideia de “encontro” já vem presente no nome do Núcleo, inspirado na Távola Redonda, conceito vindo da literatura. E fica claro nesta entrevista o quanto a Literatura foi um “item” norteador para o nascimento e evolução da disciplina. Vamos à entrevista!

Tavola Magazine: Qual foi o fator determinante que o fez enveredar pela Psicanálise?Luis Henrique Milan Novaes: Bem, não é uma pergunta das mais fáceis, porque o con-

junto das dinâmicas inconscientes de uma pessoa, que vai ser tecida pela própria história dela — e é tão difícil recapitular —, esses fatores da história que vão tecendo motivações inconscientes, que levam alguém a buscar algum caminho, a Psicanálise, inclusive, foram vários no meu caso. Primeiro, uma paixão muito grande pela literatura, pela escrita, pelo ci-nema. Tudo isso foi levantando, para mim, questões ligadas ao que chamo, muitas vezes, do “grande enigma do humano”, na via das obras de arte, das manifestações artísticas do mundo, do cinema, da literatura, do teatro, enfim, o conjunto das produções culturais das quais bus-quei me aproximar desde muito cedo. E não fazia a menor ideia da Psicanálise ainda, coisa que amadureceu bem mais tarde. O encontro com a Psicanálise se deu de uma forma até de surpresa, que não foi propriamente com a Psicanálise. Eu vi um livro, chamado “A Dinâmica do Inconsciente”, numa livraria. Falei: “O que é isso?” Fui ler. Era de autor que admiro, Carl Gustav Jung. Depois, fui devorando a obra toda dele, de vários ângulos. Mas antes mesmo de acabar essa primeira obra, porque ele sempre se remetia a Freud, fui ver de quem se tratava, quem era Freud. E fui começando a ler Freud. Nessa vida, o acaso vai tecendo as coisas. Gos-tei de Freud, que foi mencionando outros autores. Fui lendo muito fortemente as obras de Jung e de Freud e passei a ver na obra freudiana uma tessitura teórico-química riquíssima e uma coisa absolutamente apaixonante. Aquilo me consumiu, até hoje. A paixão só fez aumentar. Como a gente diz na formação psicanalítica: ou você tem um compromisso de desejo, que de alguma forma aquilo lhe traga uma dinâmica interna de paixão, ou você não fica, você vai fazer outra coisa. A Psicanálise é algo que implica o sujeito, o analista, e o implica, mais do que tange a formação propriamente dita, com um percurso que não é nada fácil, que é o da análise pessoal, que, como todos sabemos, não é propriamente um percurso de rosas. Como dizia Hermann Hesse, no seu Demian, numa das passagens lá, quando perguntam a ele se o percurso foi difícil, ele diz “sim, mas foi belo”. Aliás, é um autor que recomendo a todos. E o

que acho fundamental para as pessoas na Psi-canálise, os que já são analistas e os que não são, é a questão da literatura. Ler os grandes clássicos, os grandes escritores, que marcam a nossa vida de uma forma muito rica. No que tange ao analista, então, nem se fala, porque a literatura oferece um conjunto metafórico muito rico, para pensarmos as tessituras dos dramas dos próprios analisandos.

“Os analistas são, muitas vezes, grande parte deles, pessoas pro-

fundamente brilhantes, inteligentes e, por vezes, mergulham com tal

monta no estudo da Psicanálise, o que não é dispensável obviamente, mas acabam não se dando conta, por assim dizer, de que o mundo

não é só a Psicanálise. ”E a Psicanálise, ela própria, se alimenta

de outras coisas. Ela sempre se alimenta de outros estudos. Então, sempre recomendo aos colegas do curso de formação lerem So-ciologia, outras formas de psicoterapia, para que não derivemos para um sectarismo que acaba empobrecendo demais. Acho que as pessoas, conforme vão entrando em determi-nado campo de conhecimento, acabam sendo contaminadas por certo narcisismo de classe, vamos chamar assim, Classe, que eu digo, classe profissional. Então, acaba-se torcendo o nariz um para o outro. “Não, de Skinner eu não gosto. Não, de Jung eu não gosto. De Melanie Klein eu não gosto. Eu não gosto de Lacan. Não gosto disso, não gosto daquilo”. Para mim, isso nunca me pegou, nunca foi questão pra mim. Essas pessoas, todas elas, fo-ram pessoas com uma paixão épica por algo e fizeram o melhor de si pra levantarem ques-tões pertinentes a esse imbróglio, que é o ser

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humano. Obviamente, o que vai condicionan-do para nós essa aproximação de uma ou de outra teoria, são nossas dinâmicas transferen-ciais que fazem com que, para mim, Freud seja mais interessante do que Carl Rogers, do que X, Y ou Z. E, para outros, Rogers é mais interes-sante. Agora, dentro do campo da Psicanálise, você trabalha com certos parâmetros teórico--conceituais, mais ou menos como num jogo. Se você está jogando pôquer, você não está jo-gando canastra. Existem regras de como o jogo se dá. Essas regras são mapeadas pelo con-junto da tessitura conceitual. Tem formas de psicoterapia que não abordam, por exemplo, conceitualmente, a questão da transferência. Elas não abordam outras questões que a Psi-canálise aborda. Perfeito? Perfeito. Tem todo o direito disso. Só que não é Psicanálise. Psica-nálise é outra coisa. Da mesma forma como Jung, que teria sido alguém muito importante para a Psicanálise, se não tivesse saído do mo-vimento psicanalítico, foi muito execrado por analistas, pode-se questioná-lo de inúmeras formas, mas não se pode deixar de lê-lo. Da mesma forma, tem muita gente que não gosta de Skinner. E você pergunta: “Quantas páginas de Skinner você já leu?”“Ah, não sei. Acho que nem precisa”. Não dá pra conversar nesses ter-mos. Assim, você não está fazendo Ciência, não está pensando de forma séria.

Tavola Magazine: Pegando uma carona aí, como surgiu a ideia da criação do instituto? Você acha que o Tavola carrega essa sua paixão pela literatura?

Novaes: Penso que sim. Carrega desde o início. O Núcleo Tavola vai fazer, daqui a pouco, 14 anos, e 11 anos da formação em Psicanálise. Bem, 11 anos não é tanto tempo, mas também não foi ontem –, você já tem uma amplitude de experiências, das pessoas, do que elas buscam, o que querem, quais são as questões que têm. Dá pra perceber que esse instituto foi tomado, nesses 11 anos, mais do que em quaisquer dos anos anteriores, por pessoas que entenderam o espírito que nos anima, de uma Psicanálise que não tenha compromissos que reputamos, muitas vezes, danosos para a formação psicanalítica, como o de fazer uma formação psicanalítica reforçando, muito mais, o próprio narcisismo do analista na sua relação institucional do que uma relação transferencial criativa do psicanalista com a Psicanálise, com a elaboração psicanalítica, do escrever e falar sobre ela, operar na clínica com ela. E que sejam pessoas, diria até, indômitas, no sentido de criar algo. É isso que esse instituto sempre buscou. Fico feliz que tenhamos pessoas que entenderam o espírito. Demorou um tempo para isso. As pessoas não captam isso logo que entram, mas acho que esse instituto vem crescendo, porque as pessoas, de muitas formas, com mais ou menos clareza, vão percebendo que o Núcleo Tavola tem algo sui generis nas relações que animam a dinâmica institucional. Então, é um instituto

que vem colocando questões sobre até onde queremos crescer, porque a formação psicanalítica, como vocês sabem, é uma formação filiatória. Isso envolve toda uma atenção à singularidade dos percursos de cada um, dos candidatos à formação que buscamos ter. Os alunos que estão conosco gostam do instituto, querem levar essa proposta adiante.

“A ideia da própria revista é a de fazer algo que me parece inédito em Ribeirão Preto, que é uma revista multidisciplinar

em que as pessoas se encontram em um nicho, para expor seu pensamento a outros que não trabalham no que ele trabalha.

Você vê ótima literatura especializada, mas que fica fechada numa espécie de gueto de pertinência. Aqui, nessa revista, você vai ver analistas escrevendo, neurologistas, pessoas ligadas ao Teatro, às

artes em geral, ao cinema, numa única publicação, o que me parece algo novo.

”Tavola Magazine: Por que o nome Núcleo Tavola?Novaes: Por causa de Camelot, mais uma vez a literatura. Por causa do Rei Arthur e a Tavola

Redonda. A ideia é, diria, Arendtiana. Hannah Arendt se debruçou muito sobre a questão do poder, principalmente nos estudos dos fenômenos totalitários. Nesses estudos, ela analisou uma frase de Mao Tsé-Tung, que dizia que o poder sai da ponta de um cano de revólver. Arendt se contrapõe a isso e diz “não, o que sai da ponta de uma arma é a violência. Poder não nasce daí. A violência pode até destruir o poder, mas violência não cria poder. O que cria poder é o encontro entre as pessoas”. Aliás, os grandes líderes totalitários ditatoriais sempre souberam disso. E sempre criaram todos os tipos de dificuldades para que as pessoas se encontrassem. Onde me encontro com você, você se encontra comigo, nós com ele e com outros, há uma dinâmica de trânsito, de ideias, riquíssima e imprevisível nos seus efeitos. Então, a ideia do Camelot, da Tavola Redonda, é uma ideia do encontro entre homens no sentido de gerar poder. É que a palavra poder vem muito estigmatizada com a ideia de um poder ditatorial. Diferente disso, criar poder significa criar uma exponencialidade. Quando estou aqui com você nesta entrevista, nós dois somos mais do que nós dois. Isso é uma exponencialidade, porque não sabemos como o conjunto dessa relação e o conjunto de trânsito ideacional de pensamento pode nos trazer. Daí, o nome Núcleo Tavola. Eu acho que esse nome é absolutamente pertinente e foi levado a sério nas práticas institucionais. As pessoas que estão aqui sabem que nós levamos em conta seu pensamento e sua fala. O Núcleo Tavola é um instituto que convida as pessoas a se implicarem, não propriamente com ele enquanto instituição, mas a se implicarem fundamentalmente com uma paixão, que é dela, da pessoa, o instituto é só o caminho. É um nicho para onde ela pode trafegar. Porque se ela for num bar, por exemplo, em Ribeirão Preto, não vai ter um nicho apropriado à Psicanálise. Você cria um nicho porque cria um encontro de pessoas afins em determinada disciplina, seja ela qual for, não necessariamente a Psicanálise. De forma que nós criamos um nicho que valorize e estimule a criatividade do candidato à formação e o convide a exercer essa criatividade sem garantias, porque é da própria ética da Psicanálise. E é da vida, já que a vida não tem garantias, e de termos responsabilidade com a nossa criação psíquica, com nossa fala, com nosso pensamento, com o nosso estar no mundo, sem garantias de que aquilo nos traga coisas assim ou assado. Isso se chama compromisso com o desejo. Em última instância, o percurso analítico é o que aproxima o sujeito da sua dinâmica desejante, de todos os paradoxos que essa dinâmica desejante traz, porque todos sabemos que nossos desejos não têm nada de linear, eles não são “belozinhos”, como, muitas vezes, algumas figurações mais vulgares do romantismo, principalmente o “Romantismo Facebookiano”, que são regressivos, vêm colocando que nossos desejos são uma maravilha, a natureza é perfeita, a harmonia é total. Não é assim. Nosso mundo é complicado. Falar de Romantismo nos é interessantíssimo, porque a Psicanálise é herdeira direta dele, fundamentalmente do Romantismo Alemão, do Iluminismo Francês. Mas como o Romantismo caiu de nível, não? Antigamente, os românticos traziam essa coisa pesada, que é o existir, a nossa relação com o desejo, com as duas grandes condições humanas, o amor e a morte. O Romantismo sempre tematizou isso. E de forma riquíssima. Hoje, o que a gente tem visto por aí é de regressividade, de uma inequivocidade, de uma linearidade que assusta. O Romantismo diz que o amor é bom, que o amor é belo. Quem ama sabe que não é assim. O amor é belo, mas não é belo no sentido de nos trazer coisas fáceis. O amor nos implica, o desejo nos apavora, nos coloca contra a parede. Temos a sombra da morte a cada instante na vida, não só quando morremos. O ser humano lida com a morte o tempo todo. A morte é condição da vida não ser farsa. Você não pode pedir a ela “você pode me dar mais um tempo? Talvez eu morra mais pra frente”. A vida é perigosa. Então, acho que a Psicanálise é riquíssima disso por causa da herança literata. Freud não construiu a Psicanálise porque era

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médico neurologista – alguns pensam que ele era psiquiatra, mas psiquiatra era Jung. Freud poderia ter seguido o que seus mestres da Universidade de Viena, a maior do mundo na época, desejavam pra ele: ser apenas um neurologista brilhante, o que ele era. O que seria talvez um caminho mais cômodo para um homem pobre, apaixonado, que queria se casar, que precisava ter algum sustento na vida. Mas, para onde foi o bom e velho Sigi? Foi se meter no único lugar onde diziam para não se meter: um cientista sério com as tais histéricas. Deu um estatuto, uma coisa interessante à histeria. Desenvolveu uma teoria à qual até hoje nos debruçamos, que foi a Psicanálise — não se restringiu à histeria, obviamente, mas nasceu dali, e criou um movimento gigantesco que mudou o mundo. No ano passado, foram eleitos os dois homens mais importantes do mundo em termos de conjunto teórico no século XX: Freud e Karl Marx. Bem, penso que Marx se foi, em termos de dar respostas ao que dava. O Marxismo tomou outras vertentes. Não que não seja um autor importante. Na minha opinião é importantíssimo. Estou falando que Freud, como diz André Green, é o que há de novo na Psicanálise. Porque ele tem uma riqueza, um frescor, mesmo depois de mais de cem anos de muitos de seus escritos. Além do que era um grande escritor. Vocês sabem que, em 1930, pouco tempo antes de morrer — ele morre em 1939 — foi Prêmio Goethe — um escritor que ele admirava profundamente — de Literatura. Então, vejam, foi com essa paixão literária que Freud criou a Psicanálise, não o fato de ele ser neurologista. Obviamente que ele estudou na mais prestigiosa universidade de Medicina do mundo na época, a Universidade de Viena, mas a paixão dele, bem anterior, bem antes de entrar na universidade, eram os grandes clássicos da literatura. Ele era um devorador de livros. Difícil você ler uma página, em Freud, em que você não veja Shakespeare, Goethe, Lessing, Schopenhauer e vários deles. Bom lembrar que, por ser o primogênito, a mãe de Freud deu a ele uma paixão e uma estrutura para o estudo gigantesca. Basta citar que ela pedia para os outros irmãos comerem rápido a janta para sobrar vela para o bom e velho Sigi estudar.

Tavola Magazine: Olhando agora para essa fragilidade narcísica que acomete a sociedade atualmente, e aproveitando e olhando para esse Freud, de cem anos atrás, desenvolvendo a Psicanálise, que balanço você faz do Núcleo Tavola, enquanto instituição instalada em Ribeirão Preto, assim como da sociedade ribeirão-pretana, no que diz respeito à Psicanálise?

Novaes: Essa é uma pergunta muito interessante. Quando vim de São Paulo para cá, junto com colegas que alimentavam o desejo da formação em Psicanálise — isso não faz muito tempo —, a cena psicanalítica em Ribeirão Preto era diversa. Tínhamos a Sociedade Brasileira de Psica-nálise de Ribeirão Preto, que faz um trabalho muito sério, com pessoas bastante brilhantes. Foi fundada enquanto grupo de estudos na década de 70 e depois se tornou uma sociedade ligada à IPA [International Psychoanalytical Association] de forma autônoma. São pessoas que desenvol-veram um trabalho épico de instauração da modalidade de formação em Psicanálise no interior paulista. Pessoas portentosas. E depois delas, durante muito tempo, não se teve outra iniciativa de formação em Psicanálise em Ribeirão Preto. Depois, veio o Núcleo Tavola. E depois do Tavola, vieram alguns outros grupos. Ouvi de uma pessoa importante ligada à Psicanálise, e também ligada à Sociedade Brasileira de Psicanálise em Ribeirão Preto, uma seguinte frase alguns anos atrás: “Luis Henrique, o Núcleo Tavola vem cumprindo um papel histórico na Psicanálise em Ribeirão. Se fechar amanhã, já terá cumprido um papel histórico forte”. Acho que sim, essa pes-soa tem razão. Isso já faz alguns anos. E continuamos. Acho que em Ribeirão Preto hoje, uma cidade com mais de seiscentos mil habitantes e num processo de metropolização, é interessante como, por vezes, tem uma mentalidade de província e, por outro lado é uma cidade pujante, universitária, de gente talentosa, brilhante, em que os dispositivos de cultura vêm aumentando fortemente. O Núcleo Tavola, é bom que se fale, tem vários departamentos hoje. Também é um instituto voltado à cultura e às humanidades de forma geral, não somente à Psicanálise. Sempre foi, mas a departamentalização é mais recente. Ele faz parte de um cenário para a Psicanálise em Ribeirão Preto em que há um futuro a construir, e um futuro riquíssimo. A paisagem psicanalítica em Ribeirão, nos últimos dez anos, mudou fortemente. Ela se abriu, com pessoas interessantes, em vários grupos. Nós temos o Clin-a, Centro Lacaniano de Investigação em Ansiedade, temos o Instituto de Estudos Psicanalíticos, fundado pelo Dr. José Francisco de Oliveira, infelizmente, falecido, temos o Lalingua, grupo de inspiração lacaniana, e certamente outras dezenas de gru-pos de estudos, a partir do trabalho pioneiro que foi o da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto. Então, acho que temos uma cena interessante, diversificada. Torço para que essas pessoas transitem entre os grupos. Acho que sectarismo, dogmatismo, em Psicanálise, sim-plesmente não combinam, não oferecem nada à Psicanálise. Oferece ao umbigo dos analistas. Espero que as pessoas façam coisas juntas. Quanto mais gente nisso, melhor, porque você cria uma massa crítica, mais ou menos como, para ter certo suco, você precisa ter uma quantidade de limão. Acho que essa massa crítica vem ocorrendo em Ribeirão Preto, que é uma cidade de serviços, para a qual acorrem pessoas de uma região, das mais ricas do país, e que usufruem de várias ordens, inclusive serviços de saúde mental e educacionais, como o Núcleo Tavola e outros. Enfim, é uma cidade que está se metropolizando e que tem muito por fazer em termos da formação psicanalítica. Estamos só no início. O Núcleo Tavola está aí há 13 anos. Espero que chegue aos mil. Já não estarei mais aqui, mas que vá adiante.

“Difícil você ler uma página, em Freud, em que você não veja Shakespeare, Goethe, Lessing, Schopenhauer e vários de-les. Bom lembrar que, por ser o primogênito, a mãe de Freud deu a ele uma paixão e uma

estrutura para o estudo gigantesca. Basta citar que ela pedia para os outros irmãos co-merem rápido a janta para sobrar vela para

o bom e velho Sigi estudar.”Tavola Magazine: O Núcleo Tavola

poderia estar inserido nessa cena como uma vanguarda?

Novaes: Penso que sim. Acho que vanguarda é aquilo que, apesar de referenciar ao que existe, aposta em alguma coisa nova, sem garantias. Qualquer coisa que se propõe a isso é algo de vanguarda — a Psicanálise, como eu disse, é uma disciplina filiatória. Todos nós, analistas, ao usar uma terminologia analítica, somos castrados. Significa que nós fazemos referências a outros, ou seja, nós levamos a nossa experiência com as pessoas, com nosso próprio analista, com os autores que lemos. Nós somos filhos disso tudo. E nos referimos a isso. No nosso pensar, na nossa elucubração teórica, na nossa prática clínica, estamos sempre prestando um tributo ao que nos constituiu enquanto analistas. E vamos criando nosso próprio estilo, nossa própria prática. Então, o Núcleo Tavola busca criar condições para que essas pessoas possam desenvolver seu próprio estilo de pensar, de criar, de apostar nisso sem garantias e se responsabilizar por isso. O que é uma tarefa gigante, porque a tendência maior das pessoas é ficar na sombra de algum guru de última hora. “Eu fico lá na sombra e, o que ele falar, eu falei também. Onde ele disser para eu botar a vírgula, eu ponho”. E me parece

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que é algo que acaba fazendo uma formação burocrática, porque você vai criar analistas que vão repetir jargões ou certas práticas, mas com uma capacidade de pensar por si mesmo bastante comprometida. Acho que os alunos do nosso instituto percebem que aqui existe um convite a eles. E desde o início também percebemos que muitos — hoje, bem menos, mas era mais — queriam que desenhássemos o caminho, que carregássemos no colo, como colocar no quadro aquilo que se deve pensar. Isso vem muito das pessoas entrarem numa formação psicanalítica talvez com certo pensamento bacharelesco, do vício de uma formação universitária que coloca tudo no quadro negro, os alunos fazem prova e passam. A formação psicanalítica é um pouco mais complicada.

Tavola Magazine: Entrando nessa questão da falta de garantias da formação em Psicanálise, desse movimento que a Psicanálise nos coloca, o que você nos diz da Clínica Social proposta pelo Núcleo Tavola e até por alguns autores da própria literatura brasileira?

Novaes: Acho essencial a ideia da Clínica Social, que está conosco desde 2001. É, inclusive, anterior ao curso de formação, que foi fundado em 2003. Ela foi baseada na experiência de um analista que admiro muito, infelizmente já falecido, um homem maravilhoso, um homem com esse espírito de criação, que sempre marcou minha formação,o analista mineiro radicado no Rio de Janeiro Hélio Pellegrino. Ele fazia parte do chamado “Grupo dos Quatro”, que eram ótimos literatos, pensadores que vinham de

Minas. Eram Hélio Pelegrino, Otto Lara Rezende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. Então, o Hélio veio de Minas, se radicou no Rio por uma vida toda, falecendo em 1987, com 64 anos de idade, e inspirou um trabalho na década de 60 chamado de Clínica Social, que era a possibilidade de aglutinar analistas no sentido de oferecer atendimentos a pessoas com renda bem mais baixa. Isso era importante porque a temática do pagamento em Psicanálise é central, para você não aprisionar uma pessoa numa dívida eterna. O tratamento tem que ser pago. Pode ser R$ 0,50 a sessão. Não tem problema. O problema é que muitos analistas usaram do cinismo, dizendo “bem, se o tratamento tem que ser pago, se eu cobrar mais, o tratamento é melhor”. É bom lembrar que o Inconsciente não reconhece gravatas Hermes, nem bolsas Prada ou Louis Vuitton. Trata-se do ato de pagar, não da quantia propriamente dita. E isso também porque os serviços públicos de Psicanálise envolvem outra dinâmica institucional. Então, a Clínica Social se insere nesse nicho, de um serviço privado a um custo acessível a pessoas que, de outra forma, não poderiam estar perto da Psicanálise. Isso vem dando muito certo.

“Nós, aqui no Núcleo Tavola, nesses 13 anos, já recebemos encaminhamento de mais de mil e cem pessoas. Me parece uma coisa

essencial que derruba um mito de que as pessoas com menos renda não têm interesse em certas descobertas de si mesmo. Existiu muito desse mito por aí.

Não é verdadeiro.”Basta você criar certa condição, as pessoas afluem ao trabalho. Juntamos a Clínica Social ao

trabalho dos psicanalistas em formação, de forma que isso criou uma aglutinação interessante para ambos. Acho muito interessante, um trabalho que tem que ser só aumentado. Quiçá outros façam, mas a Clínica Social do Núcleo Tavola me parece hoje um serviço estabelecido na cida-de. As pessoas o conhecem. Não é difícil você falar em Clínica e que alguém não tenha ouvido falar, um colega, mesmo instituições como a Universidade de São Paulo. O Serviço de Psiquia-tria, o Hospital Dia, encaminham pra Clínica Social.

Tavola Magazine: Voltando nosso olhar para a questão do homem contemporâneo, partindo da existência da Psicanálise nos seus mais de cem anos, qual a sua opinião: você acha que a Psica-nálise ainda pode trazer alguma luz para esse homem contemporâneo, vítima de suas fragilidades?

Novaes: Com certeza. O que acho, e ligando essa questão da formação de analistas criativos, eu sou um diletante profissional, uma pessoa muito curiosa. Difícil alguma área da Psicologia que eu não tenha lido ou visitado. E posso te dizer, sem pecar por desconhecimento e sem des-merecer, que acho que a Psicanálise tem uma sofisticação teórico-clínica bastante superior, com muitas formas do pensamento psicológico. E também muito por força da genialidade de seu fun-dador. Mas não só por ele, também por outras pessoas geniais que vieram depois. A Psicanálise não é Freud. Freud iniciou a Psicanálise e, sem sombra de dúvidas, é seu maior teórico, mas ou-tras pessoas vieram. Acho que ela tem uma riqueza teórico-clínica ainda capaz de dar respostas ao mal-estar contemporâneo, que é bastante diferente do que Freud vivia. Hoje, estamos vivendo num mundo onde as pessoas estão sendo subjetivadas de tal forma e condicionando formas de psicopatologização diferenciadas da época de Freud. Vejam, por exemplo, as situações ligadas aos transtornos ou fenômenos borderlines e que vem sendo abordados segundo um arsenal te-órico psicanalítico de forma bastante rica. A Psicanálise não vive por si mesmo. A Psicanálise sou eu, é você, é o nosso leitor. Somos nós que levamos a Psicanálise. É qualquer analista que renova, a cada ato de sua prática, a saga freudiana, em torno desses mistérios do humano. Nos nossos escritos, nas nossas falas, junto a outros, fazemos parte de um épico. Eu sempre senti isso. Sinto que faço parte de uma história épica, a Psicanálise é uma história épica. Só pra lembrar o nosso leitor, ela pode coadunar pessoas díspares no século XX e XXI. Gente de estatura gigante no século XX se interessou pela Psicanálise. Pintores como Picasso, escritores como Huxley, o próprio Hermann Hesse, compositores maravilhosos, como Gustav Mahler, gente de peso em vá-rias áreas, na literatura, na filosofia, nas artes, na música, que viram na Psicanálise a mensagem de uma outra imagem sobre o humano. Em 1936, Freud recebeu uma carta com mais de 140 signatários do porte de Albert Einstein, Pablo Picasso, Aldous Huxley e outros, agradecendo pela sua saga de descoberta do Inconsciente, da criação dessa outra imagem sobre o humano através de sua teoria. Esta carta está nos documentos freudianos. Ele recebeu quando fez 80 anos, por-que ele nasceu em 1856. E iria morrer três anos depois, com 83 anos. Então, não precisa dizer mais nada. Ela atraiu as maiores mentes do século XX em várias áreas, mesmo que essas pessoas não tenham se tornado psicanalistas strictu sensu, mas certamente o seu saber, a sua obra foi profundamente influenciada pela Psicanálise. Só pra dizer uma coisa: a Psicanálise atravessa o surrealismo francês de cabo a rabo. E outras mil formas de arte e literatura.

“A tendência maior das pessoas é ficar na sombra de algum guru de última hora. “Eu fico lá na sombra e, o que ele falar, eu falei também; Onde ele disser para eu botar a vír-gula, eu ponho”. É algo que acaba fazendo uma formação burocráti-ca. Aqui existe um convite. Desde o início percebemos que muitos

queriam que desenhássemos o ca-minho, que carregássemos no colo,

como colocar no quadro aquilo que se deve pensar. Isso vem muito das pessoas entrarem numa forma-ção psicanalítica talvez com certo

pensamento bacharelesco, do vício de uma formação universitária que coloca tudo no quadro negro, os alunos fazem prova e passam. A

formação psicanalítica é um pouco mais complicada.”

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Tavola Magazine: Dentro dessa questão do mal-estar contemporâneo que você falou, há novas formas de sofrimento psíquico hoje?

Novaes: Algumas coisas vêm se formando; em outras, você já tem um panorama mais cla-ro. Por exemplo, hoje vemos a relação diferenciada das pessoas com a experiência amorosa, o profundo mal-estar narcísico das pessoas no mundo, um sentido de busca de pertinência, a relação angustiante com a liberdade que o mundo moderno acena. O que fazer da tal liberdade? Um ser humano angustiado, por vezes deprimido, o que são formações diferentes da nosogra-fia que Freud trabalhou lá atrás. Mas, mesmo assim, a Psicanálise que nos regula nos oferece a possibilidade de pensarmos essas novas coisas, nossos transtornos borderlines, as dinâmicas dos fenômenos chamados de psicossomáticos, incrementados fortemente nas últimas décadas. Tem toda uma série diferenciada do chamado mal-estar contemporâneo. Quem eu sou em relação ao outro? De onde vim? Você vê uma coisa muito diferenciada, pra não dizer da complexidade da relação das pessoas hoje com o amor, com a temática amorosa, porque o amor, dentro da dinâmica de subjetivação atual, que é fundamentalmente narcisista – as dinâmicas narcísicas envolvem controle, previsibilidade, domínio e o conjunto do amor romântico, que é o amor ocidental, herdado de Shakespeare e outro – é um lugar que convida a uma certa fusionalidade, a uma certa perda de si, a lutar contra uma possibilidade de estilhaçamento interno. Então, esse sujeito narcísico da contemporaneidade está com uma verdadeira batata-quente na mão, por-que ele é um sujeito cujos ideais sociopolíticos estão absolutamente questionados. A época das utopias do século XXI acabou. Tudo vem sendo transformado em mercadoria, como se você não devesse mais buscar sentidos de vida, pois os objetos te darão. Basta ter dinheiro. Eu penso que, desses ideais, do ápice do Romantismo no século XIX até hoje, o amor se manteve, quase que como um ideal redentor de todos. O amor há de salvar. Todo mundo diz das belezas do amor, mas as pessoas falam: “É lindo, é belo, mas é bom na novela ou no meu vizinho. Pra mim, não. Pra mim, complica. Porque amar dá trabalho, amar complica, perturba”. Quando você deseja paz e amor, parece até uma coisa estranha, porque você não tem paz, não nesse tipo de amor romântico. E tem uma coisa que é bom lembrar: Freud está morto. Klein está morta. Lacan está morto. Quem é da Psicanálise hoje somos nós, os analistas do mundo todo. E somos convidados o tempo todo a renovar, no nosso trajeto, o épico da saga freudiana. Em nós mesmos.

Tavola Magazine: Nessa busca de sentido de vida citada por você, existe a questão da com-plexidade da violência hoje no mundo. Ela acena para o sujeito que os sentidos de vida estão muito “líquidos”?

Novaes: Antigamente, você era convidado a pensar sobre “o que vai fazer para ter um sen-tido na vida?” “Ah, eu vou ser caixa do Banco do Brasil”. E aquilo sustentava seu sentido a vida toda. Hoje, com essa abertura e o convite da cultura dizendo “reinvente-se a cada dia, você pode ser o que quiser”, os sentidos e possibilidades de sentidos se multiplicaram de tal monta que a liberdade caiu como um pião na cabeça das pessoas. “O que eu faço com essa tal liberdade?”. Antes, alguém dizia “faça um concurso do Banco do Brasil. Faça o que estou lhe falando pra fazer”. Hoje, você se forma em engenharia, depois você se matricula para ajudar os Médicos sem Fronteiras em Serra Leoa. Quem sabe o que você vai fazer amanhã? As pessoas são convidadas a erguer buscas de sentidos de vida, mas são sentidos de vida cada vez com uma provisoriedade maior. Você não tem mais sentidos de vida que falem “não, eu passei no Banco do Brasil, minha vida está resolvida”. Porque hoje se acena ao sujeito com possibilidades insuspeitas de vir a ser, na cultura contemporânea, impensáveis há alguns anos atrás. Vejam, não estou falando séculos atrás. Alguns anos. Trinta, quarenta anos. Em termos históricos, vocês sabem que foi ontem.

Tavola Magazine: E a violência destrói um pouco essa ideia de sentido?Novaes: Você tem uma sofisticação dos meios de violência, diferente do Neolítico, em que

o sujeito batia na cabeça da mulher com um tacape. Hoje, as formas da violência estão ligadas também a todo o gigantesco dispositivo sociocultural do mundo. Você tem formas mil de usar de violência, inclusive nem vendo quem foi o agredido pela tua violência. Basta você apertar determinados botões. Certos financistas podem quebrar um país apertando dois ou três botões de computador e retirando dinheiro. Isso aconteceu com o México algumas décadas atrás, quando fundos de investimento poderosíssimos retiraram dinheiro do México e quase levaram o país à bancarrota. Ninguém foi lá no caixa de um banco. Dispositivos eletrônicos fizeram o dinheiro migrar. Só um exemplo de como formas de violência hoje são muito diversas.

Tavola Magazine: Aproveitando sua paixão pela literatura, pelo cinema, e fazendo um gan-cho pra essa questão da eletrônica, trazemos, então, o filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, para o palco de nossa entrevista. E a pergunta é a seguinte: com vistas à imagem que vai do homem primata ao homem pós-moderno, que tanto sofre de transtornos neuróticos e psicóticos, assim como de distúrbios psicossomáticos, e tendo o pressuposto de que o ato de sonhar, tão colocado por Freud, seja um dispositivo capaz de confrontar e integrar o homem

primitivo que há dentro do homem contempo-râneo, o que falhou nesse processo de sonhar, nesse processo de pensar? O que você acha que o ser humano esqueceu de sonhar?

Novaes: Eu acho que sonhar envolve risco. Porque o sonho vem de um desejo. Envolve a não garantia. E nós estamos num mundo em que a cultura é construída de forma cada vez mais monitorada, racionalizada, no sentido de que as pessoas tenham garantias o tempo todo. Todo mundo quer ter direitos a tudo, mas pou-cos deveres. Todo mundo quer ter sua casa, sua geladeira, seu ar condicionado, o mundo tem que estar absolutamente familiarizado. Por ou-tro lado, o preço disso é que, afinal de contas, sonhar envolve risco e envolve você apostar no desconhecido. Nesse sentido, cito uma frase de um grande homem, que admiro, pelo que criou, que é o fundador da empresa Apple, o Steve Jobs. Ele diz: “Eu faço o que faço porque eu não quero ser o mais rico do cemitério, eu quero criar algo grande”. E o algo grande é o de talvez modificar a forma como as pessoas estão no mundo. Você está me entrevistando com um iPad, ou seja, com dispositivos que, se não todos, boa parte deles foi criada por esse homem e pela empresa dele. Quer dizer, eles modificaram uma relação no mundo. Eu acho que, na nossa escalinha aqui, no que tan-ge à Psicanálise, o Núcleo Tavola busca algo semelhante. Busca fazer as pessoas acredita-rem na possibilidade do sonhar, mas não na vertente do sonhar do Romantismo regressivo facebookiano, mas do risco do sonho. Não é aquela coisa rósea, do “sonhe querido e tudo dará certo”. Nada disso. Sonho envolve risco. Sonho envolve víscera. Sonho envolve paixão. E paixão, mais ou menos como título de fil-me, como Paixão de Cristo, envolve você se aproximar de como a sua dor se organiza em você. Quando alguém pergunta qual é a tua paixão, alguém está perguntando: “Qual é a organização de sua dor, no seu psiquismo?”. Basicamente isso.

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ESTAMOS TODOS

TRANQUILOS!? Durval Mazzei Nogueira Filho

PSIC

AN

ÁLI

SE

Queremos?

Uma maneira profícua de ler o desenvolvimento de Lacan (1992) sobre os quatro discursos é marcá-los com uma dimensão histórica. Não é difícil atribuir ao discurso do mestre antecedência a quaisquer outros discursos. Basta que concedamos à sua descrição a vontade de domínio e reconheçamos que, na fala religiosa usual, das grandes religiões monoteístas às versões míticas sobre a origem das comunidades indígenas, não está ausente uma entidade que criou o mundo e criou os homens para agirem de acordo a seus desígnios. Uma entidade que garante que não há fenômeno fora da lei e que o saber sobre tudo está garantido pelo próprio ato criador. Não há o que descobrir, há que agir corretamente.

Se aplicarmos essa leitura à história da cultura ocidental, não é incorreto concluir que a ordem regida por Deus prevaleceu absolutamente até que os homens arriscaram desafiá-la. O desafio não foi nenhuma declaração a propósito da morte de Deus, o desafio foi questionar que nada há a descobrir, que nada há a inventar, que nada há a aprimorar. Questionar, portanto, a perfeição da obra divina. Francis Bacon (1979) e o ‘Novum Organum’, de 1620, não obstante o respeito às formulações e ao poder religioso, propõe um método específico à ciência e a destina a cumprir um papel útil à humanidade. Descartes, contemporâneo de Bacon, é outro que se insurge diante da tradição escolástica que não questionava a razão da existência dos objetos do mundo e do próprio homem. Acena com a dúvida metódica para fundar um sujeito para o pensamento: penso, logo existo.

Sem preocupação em receber crítica de filósofos e historiadores, Descartes, Bacon e a multidão anônima de artistas mecânicos, para usar a expressão de Rossi (1966), abrem o caminho para novas considerações “sobre o trabalho, sobre a função do saber técnico e o significado que têm os processos artificiais de alteração e transformação da natureza (Rossi, 1966, p. 11)”. Está pavimentado o trajeto para a era das Luzes e, para que não seja mais um surpreendente desafio à ordem divina, o homem deixar de lado a tutelagem e libertar-se para usar a razão sem a direção de outrem.

É, nesse momento da história, que situamos a emergência do discurso universitário. Quando o homem recalca o significante-mestre (S1) e promove ao lugar do agente o saber (S2). Está instaurada a ciência, com toda ambiguidade, virtude, benefício e malefício de sua ação sobre o mundo e o ser. De uma vez por todas, o saber desbancou a obediência.

Em um primeiro momento, o mundo natural, onde vivem os homens, foi o objeto privilegiado da ciência de sua cria mais dileta: a tecnologia. Não demorou muito para que a volúpia do saber dirigisse o poder para o ser que desenvolveu a ciência. Dos passos nessa direção, o mais decisivo foi a queda do vitalismo. Foi o momento em que não se atribuíram mais à matéria viva, à substância extensa, propriedades distintas da matéria física. O corpo e a pedra compartilhavam muito mais identidade que a vã razão vitalista poderia supor.

Foi na metade do século XX que essa perspectiva estabeleceu bases que mudaram o rumo do pensamento biológico. A lápide do vitalismo foi proferida por Schrödinger (1996) em sua conferência no Trinity College de Dublin em fevereiro de 1943. Desenvolve um inteligente argumento para sustentar que o trabalho de um organismo exige leis físicas exatas e compara-o a um relógio. Sua hipótese de que o material hereditário é constituído por um “cristal aperiódico (p. 85)” influenciou Watson, Wilkins e Crick a definir a dupla-hélice do ADN e o resto da história é o que vivemos na contemporaneidade. Todo e qualquer detalhe, em torno da vida orgânica, é objeto do escrutínio científico, sem excluir o conjunto de processos que levam à cessação do funcionamento dessa máquina.

Assim, não é à toa que a edição nacional de julho de 2010 da Scientific American lista “os 12 eventos que mudarão tudo e não da maneira que você pensa” e inclui 3 relacionados

Durval Mazzei Nogueira FilhoPsicanalista, Mestre em Psiquiatria, Membro do De-partamento Formação em Psicanálise, Membro da Seção SP da Escola Brasileira de Psicanálise, Mestre em Psiquiatria pelo HSPE.

Resumo: O autor escreve a respeito da influência que a realidade virtual pode vir a produzir no ho-mem do mundo contemporâneo

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à manipulação do corpo ou ações correlatas. A saber, vida sintética e máquinas conscientes (proposições herdeiras diretas da equiparação do biológico ao físico) e a clonagem humana. Como outros 5 seriam desastres radicais (Big One, guerra nuclear, colisão de asteroide, pandemia mortal e derretimento polar), vê-se que a intervenção na matéria viva, a possibilidade de reproduzi-la fora da natureza, a possibilidade de imiscuí-la de produtos sintéticos, a possibilidade de replicá-la sem a intervenção sexual são pontos plenamente legítimos da atual ambição da ciência.

Não há como saber as consequências dessa marcha. Há como afirmar que inócua não será. Linares diz que “a expansão do poder tecnológico tem afetado a autoconsciência da humanidade enquanto à compreensão de sua própria natureza e do posto que ocupa no universo (p. 11, 2008)”. Diante dessa constatação, se assim é possível escrever, os pensadores dividem-se entre apocalípticos e integrados. Os últimos apostam todas as fichas que a humanidade, de posse dos produtos da agora chamada tecnociência, elevar-se-ia sobre a natureza e teria em mãos instrumentos poderosos para safar-se de qualquer tragédia. Desde a tragédia da morte individual, marca da humanidade desde a linguagem, até a tragédia decorrente de algum desastre ecológico. Misturam-se, nesse belo caldo de leituras utópicas, a possibilidade de deslindar os mecanismos genéticos do envelhecimento e da morte e, quiçá, criar, por meio da engenharia genética, células imortais a definir a matéria como ilusão e desenvolver complicadíssimos algoritmos para afirmar que absolutamente tudo em torno resume-se a bits e informação, acenando com a decifração desse código e, portanto, com a possibilidade de controle desse processo e reduzir a matéria, vida biológica incluída, à realidade fundamental cibernética. Longe do peso da vida carnal. Luna e López (2005) classificam pensadores desse jaez de ‘otimistas científicos’ e ‘otimistas éticos’. Creem que não somente a humanidade vai alcançar esse patamar como apostam que essa perspectiva segue a máxima iluminista de uma ética regida pela razão e pelo igualitarismo. Os apocalípticos recortariam esse campo de outra maneira. Se bem que ‘otimistas científicos’, pois apostam no sucesso da tecnociência, seriam ‘pessimistas éticos’. Dado que atribuem o sucesso da ciência à falência de qualquer ética sustentada na responsabilidade. O raciocínio é que a humanidade dedicou-se à liberdade, abandonou o principal discurso –– do Mestre –– que pedia a obediência, para entregar-se ao domínio pelo discurso universitário e abdicar de construir o próprio destino para além de um hedonismo imóvel.

No primeiro time, estão Ray Kurzweil, Andy Clark, Marvin Minsky, Donna Haraway e Michio Kaku. No outro time, Hans Jonas, Jürgen Habermas, Zygmunt Bauman, Jacques Ellul e Jean Baudrillard. Como se vê, daria um partidaço de futebol de salão.

Resta saber se é o que queremos...

Resta saber se é o que desejamos...

Ficção científica?

Os filmes Matrix e Substitutos são apocalipses futurísticos.O cinema e a literatura dividem-se em seus exercícios premonitórios. Há filmes, como Mad

Max, e romances, como Um cântico para São Leibowitz, que descrevem um futuro em que o avanço tecnológico desaparece –– em geral, por suas contradições internas –– e a humanidade é, de uma hora para outra, jogada em uma situação sociocultural primitiva. Noutros filmes, Matrix, por exemplo, e romances, como O admirável mundo novo, o avanço tecnológico desenvolve-se

de tal forma que não se pode mais pensar na Humanidade como singularidade. A morte do Homem torna-se uma verdade primária.

Nas histórias do primeiro tipo, o dilema da humanidade é a reorganização de um mínimo de Lei que não seja, simplesmente, a supremacia do mais forte e proporcione uma distribuição justa do espólio da falência da sociedade. Nos filmes do segundo tipo, um homem ou pequeno grupo dá-se conta de que algo com a realidade está errado. A realidade que a cultura em torno aponta é um engano, apresentado como verdade indiscutível pelo poder da insistência e pela insistência do poder. Nos dois tipos de relato, o que ‘salva’ a humanidade é, talvez, a única especificidade humana: a disponibilidade à transcendência. Isto é, a possibilidade de reconhecer o Outro. Seja o Outro como Lei. Seja o Outro como Real. Transcender é ir além da aparência, além da empiria metodológica ou imanente. E essa possibilidade existe se, e somente se, há uma perspectiva ética em cena.

O personagem de Keanu Reeves, em Matrix, é esperado por um pequeno grupo como o Salvador. Esse pequeno grupo transcendeu. Deu-se conta de que a realidade oferecida pelo grupo dominante continha furos e convencia apenas pela cumplicidade dos que deixam a luta pelo próprio futuro. O argumento se estrutura como uma metáfora futurística do renascimento de Cristo. Cabe salientar que a versão cristã da transcendência –– o reconhecimento do Outro como Deus –– se é genuína, não é a única. O Outro como Lei ou o Outro como Real aproxima-se das versões psicanalítica e existencialista da transcendência. O personagem de Bruce Willis, em Substitutos, é um policial que resgata o espírito dos detetives noir de Dashiel Hammet. É a reserva moral em um mundo onde impera o caminho mais fácil. Homens e mulheres ao redor, incluindo a esposa do herói, aceitaram entregar a vida a artefatos tecnológicos cibernéticos feitos de material imitador da pele que não envelhecem , são lindos e sedutores. Tais corpos cibernéticos é que trabalham, dançam, namoram, drogam-se, trepam enquanto os corpos reais estão nos quartos plugados a computadores fruindo, em tempo real, as peripécias dos substitutos.

O filme Matrix, então, pertence à catego-ria das previsões apocalípticas em que o traço característico da humanidade –– a transcen-dência –– torna-se impedida em função do totalitarismo tecnológico. Na história, os sujei-tos são mantidos sob controle, imersos em uma onipotente realidade virtual policiada por man-datários de uma instância de comando sobre a qual o espectador nada sabe. Nesse sentido, Matrix exibe um paradoxo que define bem a ambiguidade, percebida ou não, da humani-dade perante a Ciência e a Tecnologia. Assim, enquanto nos divertimos e nos fascinamos com os efeitos especiais, efeitos produzidos pela virtualidade de poderosos computadores, assis-timos ao horror que a realidade virtual pode

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constituir. Se visto dessa forma, o filme propõe uma reflexão entre o prazer e a facilidade ime-diata que a Tecnologia oferta e o preço a pagar pela artificialização e alienação que a Tecno-logia e a Ciência produzem. O filme revela uma face dessa alienação: a realidade virtual, apesar de oferecida por alguém –– um homem –– que a define, é a ‘realidade real’ que os cida-dãos vivem. A atividade subjetiva dos sujeitos, naquela cultura, é inteiramente dominada por essa ‘verdade’ sobre o Real oferecido por uma instância de domínio. Nesse sentido, o filme Substitutos pode servir como um perfeito ante-cedente de Matrix. O ambiente não é em nada diferente das cidades contemporâneas. Não há elemento futurístico. O espectador desco-bre que está no terreno da ficção científica quando é revelado que aqueles belos e felizes humanos são artefatos. O ponto é que não há obrigação em viver por meio dos tais artefa-tos. Os sujeitos escolheram substituir o peso da carne, a dor da carne, o horror pelo envelheci-mento, o luto pela perda do poder sedutor por um artefato tecnocientífico. A servidão volun-tária, horror dos iluministas, encontra perfeita guarida no mais íntimo sonho de um sujeito.

É possível?

Há essa possibilidade? Há possibilidade daquilo que se julga ‘realidade’ ser da ordem da constru-ção artificial? E há a possibilidade de homens e mulheres singulares

optarem por viver esse engano volun-tariamente?

As histórias de Matrix e Substitutos têm, portanto, a chance de não se restringirem a uma das milhares das histórias da imagina-ção desprovida de praticidade? A humanidade pode, de fato, enganar-se e entregar-se a esse ponto? Ao ponto de que o que é vivido com todas as qualidades de uma vivência genuína ser um engodo? Se a resposta a essas perguntas não recupera em nada o animismo primitivo, nos faz tremer ou nos regozijar pela possibili-dade de receber “sim” como resposta.

Dois pesquisadores separados por apro-ximadamente 100 anos, Freud e Maturana, orientam-nos.

Em 1895, Freud escreveu o Projeto para uma Psicologia Científica (1895/1973). Nes-se texto, de uma maneira bastante original, o fundador da Psicanálise constrói um esboço de aparelho psíquico. A principal característi-ca desse aparelho original é a separação que Freud faz entre o fenômeno bruto da percep-

ção e a sensação consciente que nos garante a realidade como fenômeno presenciado. Entre a percepção bruta e a consciência, Freud interpõe o setor “psi” constituído fundamentalmente por representações que não copiam os objetos do mundo. E, além disso, essas representações vinculam-se à história do sujeito. Isto é, representam-se as experiências que o corpo vive. Mas, caracteristicamente, as representações, se pretendem orientar e organizar a relação do sujeito à realidade, o fazem de acordo com uma lógica própria que não repete a lógica dos objetos e acontecimentos que representam. Como esse setor “psi” se interpõe entre a percepção bruta e a sensação consciente, garante da realidade, é lícito concluir que a garantia de realidade recebe uma contribuição importante da organização das representações e, portanto, das ex-periências históricas e pessoais do sujeito. Isto é, sendo verdadeira a proposição freudiana, o que chamamos de realidade inclui a participação daquele sujeito que a descreve e que a vive. Outro ponto que Freud salienta nesse texto é que, justamente por cadeia de representações e realidade obedecerem a lógicas distintas, é fundamental que cada sujeito faça um trabalho que o desvencilhe do poder fascinante das representações e alce ao que denomina ‘princípio de realidade’. Isto é, como o aparelho psíquico funciona sustentado na materialidade das repre-sentações, ele não exige o mundo real, senão como aplacador da carga originária no corpo. Repete-se: se não há nenhuma justificativa em renovar o animismo primitivo, constata-se, desde Freud, que há um hiato difícil de ser transposto entre a realidade e o sujeito que a vive. Isto quer dizer que esse pacto objetivo que nos preside não é um dado que se oferece espon-taneamente à percepção, que, por sua vez, também seria espontânea. Não são, na verdade, a realidade e a percepção como dois canais abertos que não recebem influência nenhuma do ator do ato perceptivo.

Na década de 60 do século XX, Maturana (2001), um biólogo em nada influenciado pelo pensamento freudiano, conduziu experimentos sobre a percepção visual que levaram à observação que diferentes combinações de comprimento de onda [luminosa] podem ge-rar a mesma experiência cromática, assim como as mesmas combinações de comprimento de onda podem gerar distintas combinações cromáticas. Esses experimentos –– aqui não descritos –– levaram o pesquisador a concluir que a visão é um fenômeno que depende da estrutura do sujeito que vive a experiência. Outra vez, não há espontaneidade perceptiva. O último passo das conclusões de Maturana levou-o a mudar a pergunta tradicional sobre a percepção, isto é, deixou de correlacionar a atividade da retina com a cor definida em ter-mos de espectro luminoso objetivo, para correlacioná-la com o nome da cor. Quer dizer: há uma experiência de linguagem além do ato perceptivo. Se, sem nenhuma extrapolação inde-vida, é considerado que o termo representação, em Freud, inclui decisivamente a linguagem, é notável que autores de interesses e preocupações tão diversos concluam da mesma forma que o nexo entre realidade e percepção não pode, e não deve, descrever-se como um fenô-meno imediato sem a intervenção de nada mais que a boa fisiologia dos órgãos do sentido e a clareza óbvia da realidade.

Dessa forma, mesmo que Maturana e Freud não se influenciem reciprocamente, são dois autores que, a despeito de partirem de pressupostos distintos, propõem que o sujeito que percebe participa na construção da realidade em que vive, apesar da evidência empírica que atesta que há o ‘Eu’ e a ‘Realidade’. Aliás, é a Psicanálise que mostrou que esta diferenciação –– entre o ‘Eu’ e a ‘Realidade’ –– na verdade, é constituída na rede de laços que se estabelece entre o infante que se desenvolve e os outros que o recebem, para o Bem ou para o Mal.

A conclusão final é que o cérebro, órgão que sustenta a atividade psíquica, não tem auto-nomia para captar a realidade, não tem como decifrar a realidade, se não estiver vinculado à linguagem. O antropólogo Geertz (1989) diz “o homem precisa tanto de... fontes simbólicas de iluminação para encontrar seus apoios no mundo porque a qualidade não simbólica cons-titucionalmente gravada em seu corpo lança uma luz muito difusa (p. 57)”. Se assim é, “não dirigido por padrões culturais –– sistemas organizados de símbolos significantes –– o com-portamento do homem seria virtualmente ingovernável, um amplo caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma con-dição essencial para ela (p. 58)”. Como a linguagem é um pacto social sem autor, por mais que a potencialidade linguística possa aproveitar-se de detalhes da estrutura cerebral, e participa na constituição da realidade, não é impossível concluir que outras formas de influenciar a atividade de um sujeito, que possui um cérebro, possam constituir uma realidade com todos os traços de legitimidade. É exatamente esse o ponto que as distopias futurísticas que inspiram este texto salientam. Em Matrix, a humanidade vive com todo o frescor de uma existência ple-na enquanto está confinada em casulos, imóvel e alimentada por uma complexa rede de tubos e cateteres. Em Substitutos, voluntariamente a humanidade renuncia aos tropeços usuais para viver com plenitude apenas as boas sensações. Sem nenhum tipo de risco. Pelo descrito, não é, em hipótese nenhuma, negativa a resposta às perguntas anteriormente expressas. A realidade é, sim, uma construção que pode vir a ser artificializada pelo progresso tecnológico e se, por-ventura, esta seja mais aprazível que a construção, que obrigatoriamente todos arquitetamos, muitos, de bom grado, aderirão.

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Por fim...

A referência a Freud e a Maturana é para sustentar que o horror virtual que domina as so-ciedades futurísticas de Matrix e Substitutos é possível. A relação do homem com a realidade é mais frágil do que a certeza subjetiva supõe. Em última análise, significa que a renúncia à crítica, a obediência cega a discursos de qualquer natureza tem o poder, sim, de conformar a realidade que habitamos. A linguagem e a cultura são tão condicionantes da realidade quanto a convic-ção de que o mundo real nos antecede. Significa que transcender e sacar que há algo além de qualquer experiência possível, se traz mais trabalho ao sujeito, é a única maneira de garantir a insubmissão a qualquer discurso que vise a dizer como é o Homem ou como são as Coisas. Ve-nha o discurso de onde vier: da Religião, da Ciência, da Rede Mundial ou da Televisão.

Não há outra maneira de tranquilizarmo-nos.

Alessandro Alves Psicanalista

[16] - 99119-0707

Consultório:

Rua: Visconde de Abaeté, 210 - Rib. Preto SP

Referências:BACON, F. Novum Organum. São Paulo: Abril, 2000,. 276 p.

CHOI, C. Q. 12 eventos que mudarão o mundo. Scientific American, – Brasil. N.. 98, p. 22/33, 2010.

FREUD, S. Projecto para uma psicologia científica. Obras Completas. Biblioteca Nueva: Madrid, 1973, 1014 p.

GEERTZ, C. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora AS, 1989, 324 p.

LACAN, J. O seminário – livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, 212 p.

LINARES, J. E. Ética y mundo tecnológico. México: Univer-sidad Nacional Autônoma de México & Fondo de Cultura Econômica, 2008, 520 p.

LUNA, F. & LÓPEZ, E. R. Introducción. Em ‘Los desafíos éticos de la genética humana. F. Luna & E. R. López (org). México: Universidad Nacional Autônoma de México & Fon-do de Cultura Econômica:, 2005, 252 p.

MATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizon-te: UFMG, 2001, 350 p.

ROSSI, P. Los filósofos y las máquinas. 1400-1700. Barce-lona: Editorial Labor, 1966, 178 p.

SCHRÖDINGER, Erwin (1992). What is life? With ‘mind and matter’ and ‘autobiographical sketches’. Cambridge: Cam-

bridge University Press:, 1992, 184 p.

Formação em Psicanálise pelo Núcleo Tavola agora também em São Paulo

+ Informações: www.nucleotavola.com.br/sp

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PSIC

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L... AFINAL, O QUE É

PSICOTERAPIA CORPORAL?Eneida de Duartina Fernandes Novaes; Rogério Ziotti

Muito se fala sobre isso desde que o movimento Reichiano chegou ao Brasil nas décadas de 60 e 70, com a contracultura e a mudança dos costumes. No entanto, é preciso

conhecer suas origens, saber no que se constitui e qual sua importância para a prática clínica.Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que a Psicoterapia Corporal não trabalha apenas

com o corpo em detrimento da fala. Ao contrário, acrescentam-se à linguagem, à elaboração simbólica, diversos recursos de intervenção corporal, a depender da especificidade da escola adotada e também de cada caso e, ainda, do momento de cada caso. Trabalha buscando elemen-tos que lhe possibilitem meios de perceber a transferência, fazer a análise das resistências para trazer aspectos do inconsciente para o consciente.

Psicoterapia Corporal é o nome que se dá às psicoterapias que incluem, na sua prática, a observação do corpo, exercícios expressivos e trabalhos com a respiração, entre outros.

Tudo começou, na verdade, com Reich, austro-húngaro que viveu de 1897 a 1957. Formou-se médico em Viena, em 1922. Na época em que cursava medicina, aproximou-se da psicanálise e tornou-se discípulo de Freud desde 1920. Foi seu assistente entre 1922 e 1928 e diretor do Seminário de Técnica Psicanalítica entre 1924 a 1930.

Até 1934, escreveu muitos artigos e livros sobre psicanálise e introduziu a ela a observação do corpo: a expressão dos olhos e da face, a qualidade da voz, padrões de tensão muscular (linguagem corporal). Usou a técnica para aprofundar e liberar a respiração com o objetivo de melhorar e intensificar a experiência emocional.

Em 1933, publica Análise do Caráter e fala sobre outro tipo de resistência: a resistência do caráter ou caracterológica. O conjunto dessas resistências produz uma espécie de armadura ou “couraça” que protege o ego tanto de influências externas quanto de manifestações pulsionais vindas do próprio organismo.

Também em 1933, publica Psicologia das massas do fascismo e é expulso do Partido Comu-nista, no qual havia ingressado em 1930. Em 1934, rompe com a Psicanálise e é expulso da IPA (Associação Psicanalítica Internacional) por motivos políticos.

A trajetória profissional e científica de Reich pode ser dividida em três fases:

Análise do Caráter (1923-1934). Chama atenção para as resistências latentes (que não se manifestam explicitamente). Então, propõe-se prestar atenção não só ao que o paciente fala, mas como ele fala, isto é, gestos, posturas, aparência; enfim, “ter um olhar analítico”.

Vegetoterapia carátero-analítica (1934-1939). Aqui a intervenção corporal complementava a análise das resistências vindas do caráter do paciente. O trabalho corporal era sobre a muscula-tura para influenciar o sistema nervoso autônomo (ou vegetativo). Nessa fase, o corpo não é mais só olhado, passa também a ser mobilizado para expressar-se.

Orgonoterapia (1939-1957). Postula que a energia biológica existe em todo o planeta e fora dele como uma energia livre de massa, independente da matéria viva ou não viva. Reich com-prova experimentalmente essa energia e a nomeia como energia orgone. A orgonomia aponta uma nova relação entre o homem e o Universo –– uma nova compreensão do funcionamento do ser humano.

A Psicoterapia Corporal se expandiu

no final dos anos 50 e início dos anos 60,

principalmente por meio dos neorreichianos.

Eneida de Duartina Fernandes Novaes Psicóloga Clínica e Organizacional, Analista e Superviso-

ra em Análise Bioenergética, Coordenadora de grupos de

exercícios corporais, Coordenadora de workshops temá-

ticos voltados para a área clínica e organizacional. Sócia

fundadora do Núcleo Tavola.

Rogério Ziotti Psicólogo Glínico, Psicoterapeuta cor-

poral, Supervisor em Análise Bioenergética e Biossíntese,

Coordenador de Workshops Clínicos, Professor de Biossín-

tese, Consultor de Empresas e Docente do Núcleo Tavola.

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mundo”. Pela pertinência do tema, é sempre incluído nas aulas nos cursos de formação em abordagens corporais.

O trabalho da Psicoterapia Corporal pos-sibilita a compreensão da personalidade em termos do corpo, postulando que os processos energéticos dele estão intimamente ligados ao que acontece na mente, e vice-versa, o que acontece na mente também determina o que acontece no corpo. Assim, as pessoas que pas-sam por esse processo observam um aumento da vitalidade, pelo trabalho de aprofundamen-to da respiração, que possibilita ainda um maior contato com os próprios sentimentos e sua expressão, acarretando um efeito positivo em sua qualidade de vida.

É impossível conceber clinicamente o indi-víduo sem incluir o corpo, suas expressões, sua linguagem não verbal, sua qualidade respirató-ria e outras características. A análise clínica, na psicoterapia corporal, inclui tanto aquilo que é ouvido, como aquilo que é “sentido” e em como os sentimentos são expressados. Algu-mas linhas de psicoterapia corporal permitem identificar a riqueza desses elementos “não verbais” também propiciando ao indivíduo a capacidade de experimentar prazer ao liberar atitudes crônicas arraigadas no corpo.

Parafraseando Freud: O ego é antes de tudo corporal...

Entre eles, Alexander Lowen, americano (1910-2008) que foi paciente e aluno de Reich entre 1940 e 1952. Cursou medicina na Suíça e, ao voltar para a América, em 1953, encontrou Reich estudando a energia orgone com a qual não se identificou. Em 1956, fundou com John Pierrakos (grego, 1921-2001) o “Instituto de Análise Bioenergética” em Nova York, retomando a impor-tância dos fundamentos psicanalíticos, aprofundando, assim, o aspecto analítico da psicoterapia reichiana. Desenvolveu novas técnicas e ampliou a teoria reichiana da Análise do Caráter. Em 1972, a parceria se desfez e Pierrakos fundou a própria escola, Core Energetics, com sua esposa Eva.

Há vários outros importantes teóricos que contribuíram para a Psicoterapia Corporal a partir de Reich, como, por exemplo, Ola Raknes (1887-1975), filólogo norueguês, que foi discípulo de Reich na década de 30. Não trouxe inovações à teoria reichiana, mas influenciou outros que criaram novas escolas, tais como:

Gerda Boyesen (1922-2005). Psicóloga e fisioterapeuta norueguesa fundadora da Psicologia Biodinâmica. Na década de 60, enfatizou o papel das vísceras (couraça visceral –– tubo gastroin-testinal), e a couraça tissular (relativa ao tecido subcutâneo). Foi além das concepções de Reich, cuja compreensão e intervenção eram sobre a musculatura.

David Boadella (1931). Psicólogo inglês, fundador da Biossíntese, atribuiu grande impor-tância ao momento intrauterino, que estaria diretamente ligado aos problemas emocionais (embriologia). Os fluxos vitais seriam ligados às camadas germinativas primárias: o ectoderma (camada externa do embrião) origina o sistema nervoso, a pele e os órgãos dos sentidos; o me-soderma (camada intermediária) forma a musculatura lisa e estriada, ossos, articulações, tecido conjuntivo, sangue, vasos sanguíneos; o endoderma (camada mais interna) origina o revestimen-to interno do tubo intestinal, pulmões, pâncreas, fígado e outras vísceras.

Frederico Navarro (1924-2002). Médico neurologista e psiquiatra, italiano, criador da Soma-topsicodinâmica (sistematização da vegetoterapia carátero-analítica). Nos anos 70, sistematizou o trabalho de Reich, trabalhando os segmentos da couraça muscular de modo organizado, um após o outro em ordem: ocular, oral, cervical, toráxico, diafragmático, abdominal e pélvico.

Já Stanley Keleman (1931), americano, cursou quiropraxia, não se considera reichiano nem neorreichiano. A partir de 1971, criou seu método próprio, a Psicologia Formativa, trabalhando com a propriocepção (capacidade de “sentir” o estado interno do corpo) e a questão da forma, levando o paciente a perceber o seu padrão corporal e a desenvolver novas formas de “estar no

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INDÚSTRIA DE IMPOSIÇÃO CULTURAL Caio Garrido

LITE

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UR

A

Ah, cansados de tanto conhecimento...

Tanto conhecimento improdutivo... Em que a arte e a cultura não chegam até Deus. Fausto em novas facetas. As faces macabras da indústria cultural.

Você prefere o Funk Ostentação, Funk Procriação ou a Mulher Chiclete? Que gruda em seus olhos e ouvidos e opera uma catarse emocional em que a única fonte e objetivo é o capital?

Que os antigos filmes futurísticos nos protejam. Pois, o apocalipse agora é real e faz mais crentes por metro quadrado do que toda antiguidade.

Ver TV é o mesmo que ir ao cinema que é o mesmo que ir à igreja, que está na TV, que deus nos proteja, anuncia o último sucesso musical cristão.

Não tenho nada contra os evangélicos nem contra os cristãos. Vejo até grandes atributos no que uma comunidade religiosa pode proporcionar a uma pessoa. Isso quando a coisa não é dis-torcida a um grau já definhado.

Mas tudo faz parte de um grande pacote da indústria cultural, que, entorpecendo as massas, dita as regras e nivela por baixo o grau a ser superado para se atingir um padrão estético que seja o suficiente para manter uma sociedade hiper-estimulada, induzindo a velha fábrica de seres não pensantes. E cada vez mais temos que nos voltar para a tela do computador — infelizmente — para que possamos ter uma experiência de qualidade, como assistir a um bom filme — fugindo da legião de iguais nas telas grandes — ou ler uma opinião jornalística aprofundada, ou simples-mente ter o prazer de saber que existe boa música por aí. Mas isso sempre com muita pesquisa, pois não se consegue descobrir o benéfico e distinto em meio à imensa malha da rede virtual.

Em meio a essa virtualidade, o que pode ser considerado arte vai se tornando cada vez mais banal e aberto a qualquer critério.

Mas o que é vida senão uma grande banalidade? A televisão se tornou metalinguística, ora pois; Ou foi a vida? Reality shows; “O show da vida!”

Que o Show de Truman nos proteja.A arte e a cultura deveriam ter o poder e capacidade de ampliar o campo de visão de um

sujeito, e não estreitar sua possibilidade de ver, ouvir, sentir, pensar.

A sutil Banalidade do Mal

Bem ou mal, o fato é que o cinema, ou a arte contemporânea, ou a música, ou o jornalismo (veja o anúncio de fechamento de grandes revistas nacionais de cultura) e outros tornam-se cená-rios de grandes torturas para quem gosta de arte. É como se todo o ‘lixo eletrônico’ da sua pasta

SPAM viesse à tona a todo o momento.Esses lócus artísticos vêm se tornando pal-

co para as pirotecnias da indústria cultural, que tal qual vendedor de uma nova gramá-tica, se aprofunda em fazer o que sabem de melhor: Marketing, propaganda. Pois, vive-mos numa sociedade em que fazer merda ao vivo no youtube é sinal de criatividade, bom gosto e dom divino.

Mas merda não é privilégio do youtube. Haja vista uma recente exposição na respeita-

Caio Garrido é editor da Revista Tavola Magazine. É psica-

nalista e coordenador do Depto. de Literatura do Tavola.

Tem três livros publicados (um romance, e dois de poemas).

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bilíssima Royal Academy of Arts. Os detalhes sobre a peculiar exposição estão descritos no livro A Civilização do Espetáculo, de Mario Vargas Llosa — Prêmio Nobel de Literatura em 2010. Mario fala sobre a obra de um jovem chamado Chris Ofili, que monta suas obras sobre bases de cocô de elefante solidificado. Essa e outras do rapaz deram o que falar na exposição, pois o que vale hoje é gerar publicidade.

E os intestinos estão soltos e atingem a todos...

Tenho bons amigos que já estão acreditando que deve ter um pouco de arte no funk ou no sertanejo universitário, afinal, eles representam o gosto popular.

Quem se lembra do Saltimbancos, estouro de sucesso na época gloriosa dos Trapalhões? Ou o Plunct Plact Zum, programa especial infantil exibido na década de 80? O que o popular daque-la época difere desta? A trilha sonora desses antigos programas e filmes é detalhista na resposta: Maria Bethânia, Chico Buarque, Raul Seixas, Elba Ramalho, trazendo músicas populares que até hoje fazem parte do nosso dicionário de lembranças.

Pois, fui então a outro dicionário e encontrei o significado não de popular, mas de popularesco.

O que é popularesco:

Baixo calão, má qualidade, qualidade duvidosa. Que é vulgar ou de baixa qualidade.

Que imita o que é popular.“ “

Prefiro acreditar nesse velho oráculo.

Dica de livro: A Civilização do Espetáculo. Mario Vargas Llosa. Objetiva.

Dura radiografia da cultura e dos tempos atuais, pelo

olhar inconformista do mais notório escritor peruano.

“A arte, a literatura e o cinema se trivializaram de tal maneira, que o espectador e o leitor vi-

vem a ilusão de ser cultos e de estar na vanguarda de tudo com o mínimo esforço intelectual. (...)

Se aceitar entrar no jogo da civili-zação do espetáculo e se converter

em um bufão, o intelectual tem a possibilidade de que sua mensagem prospere.” Mario Vargas Llosa.

A banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política são ca-racterísticas da sociedade contemporânea: a ideia temerária de converter em bem supremo a natural propensão humana para o divertimento. Este é o tema central do novo ensaio de Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura em 2010.

Em A civilização do espetáculo, o escritor diz que no passado a cultura era uma espécie de consciência que impe-dia que virássemos as costas para a realidade. Hoje, lamenta Llosa, a cultura atua como mero mecanismo de distração e entretenimento. Para ele, “a ideia ingênua de que, através da educação, se pode transmitir cultura à totalidade da socie-dade, está destruindo a ‘alta cultura’, pois a única maneira de conseguirmos essa democratização universal da cultura é empobrecendo-a, tornando-a cada dia mais superficial”.

Para o autor peruano, a figura do intelectual que estruturou todo o século XX teria desaparecido do de-bate público. Ainda que alguns assinem manifestos e participem em polêmicas, sua repercussão na sociedade é mínima. Conscientes desta situação, observa Llosa, “mui-tos optaram pelo silêncio”.

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O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO

O AT: UMA CLÍNICA ITINERANTEAna Celeste Pitiá; Raymundo Reis NetoA

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ApresentaçãoEste texto pretende fazer uma apresentação do trabalho de Acompanhamento Terapêutico

— AT —, destacando como sua principal característica a articulação da escuta clínica com o deslocamento compartilhado entre a pessoa acompanhada e o acompanhante terapêutico — o at — por espaços públicos, domiciliares e institucionais.

Acompanhamento terapêutico: o que é?

Historicamente, o AT surge como prática destinada àqueles pacientes acometidos por trans-tornos mentais ou sofrimento psíquico que, por razões variadas, requerem mais (ou menos) do que se oferecem os espaços tradicionalmente destinados ao seu tratamento, ou seja: clínicas, hospitais psiquiátricos e consultórios.

Hoje, seu campo de atuação vem aumentando paulatinamente, para atender a quadros va-riados. Neste trabalho, enfocaremos sobre o caráter itinerante da prática AT, destacando que é indicada para acontecer fora de espaços institucionais restritos a dimensões físicas. Caracteriza--se por ser um tratamento em movimento. O termo acompanhamento indica isso. Não basta dizer que o AT ocorre na rua, ou na casa do paciente, ou que seria, por exemplo, um ‘tratamento domiciliar’. Não: o AT é um atendimento em movimento, que passa por uma série de lugares sem se fixar. O movimento do acompanhante terapêutico –– o at –– junto à pessoa acompanhada é uma parte fundamental desse tipo de atendimento, à qual vem somar-se a escuta clínica que, em seus diferentes matizes, também está presente em todo tipo de psicoterapia.

AT é, portanto, considerado uma prática na área da saúde que tem como principal caracterís-tica o fato de não ficar restrita ao espaço físico de determinada instituição — hospital, consultório ou escola, por exemplo (SILVA; SILVA, 2006). As possibilidades de intervenção multivariadas, assim como suas definições e as histórias que abordam o seu surgimento como uma prática clínica. Essa multiplicidade aparece também no modo de problematizar o próprio processo de trabalho do AT como prática que acontece no campo da saúde, que pode ser tomada como um programa, quanto uma estratégia, quanto uma metodologia, quanto uma intervenção, enfim. Pensamos que, seja qual for a denominação dada a esse trabalho, já há um compartilhamento de pontos em comum, traduzido na perspectiva da relação de horizontalidade que se constrói entre acompanhante/acompanhado em meio ao projeto terapêutico possível a cada caso.

Tal tipo de tratamento pode ser desejável por uma série de motivos. Imaginem o caso do sujeito delirante cujos laços sociais foram restringindo-se progressivamente, sendo reduzidos a uns poucos outros, integrados ao delírio. O sujeito pode estar recolhido há anos em seu quarto, redigindo um livro sagrado, ou pode sair apenas para investigar uma rede que vem apertando o cerco em torno dele, eventualmente denunciando-o à polícia. Ou pensemos em uma pessoa deprimida, cujo risco de suicídio não seja avaliado como iminente; e esse risco iminente de suicídio, quando suposto, torna qualquer indicação terapêutica delicada, no AT não é exceção. Ou ainda o dependente químico que, quando só, não pode evitar o recurso às drogas, ainda que eventualmente o deseje.

Em todos esses casos, o AT pode cumprir com o objetivo de evitar uma eventual interna-ção, na medida em que oferece uma contenção simbólica, mesmo quando não se utiliza uma carga horária extensa. Sabemos, por exemplo, o quanto a psicose pode incidir, restringindo os vínculos do sujeito. Para Freud (1914, 1924), se o delírio constitui uma tentativa de autocura, de recomposição dos investimentos libidinais nos objetos, essa recomposição se dá segundo as linhas do delírio que, por definição, é um saber não compartilhado — um delírio comparti-lhado por muitos deixa de ser delírio, independentemente do caráter, mais ou menos, bizarro do que ele manifesta.

Ana Celeste Pitiá Doutora em Saúde Mental pela USP,

com tese de doutorado sobre Acompanhamento Terapêu-

tico. Graduanda em Psicologia desde 2011, foi Graduada

como enfermeira psiquiátrica em 1983. Formou-se psi-

coterapeuta clínica e acompanhante terapêutica (AT) no

período de 1996-2005. Coordena Cursos de Formação em

Acompanhamento Terapêutico desde 2004-atual, desen-

volve supervisão profissional do AT, desde então. Desde

2012 é, Diretora da Comviver e, a partir de 2013, coorde-

na o Departamento de Acompanhamento Terapêutico–AT

no Instituto Tavola em Ribeirão Preto/SP.

Currículo Lattes disponível em:

http://lattes.cnpq.br/4659444336586155.

Contato: [email protected]

Raymundo Reis Neto Doutor em psicologia clínica PUC/

RJ, Psicanalista, Coordenador e Professor do Curso de

Psicologia da Universidade Estácio de Sá, campus Nova

Friburgo – Rio de Janeiro – RJ – Brasil.

Currículo Lattes disponível em:

http://lattes.cnpq.br/1929740835808664.

Contato: [email protected]

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Pelo menos consideramos essa uma posição ética interessante, preservada da tentação de supormos

uma ‘realidade’ da qual a doença mental afasta

e a saúde mental aproxima.

O que teria o AT a oferecer diante desses casos? Justamente tudo aquilo que fica ex-cluído da cena fechada do consultório. O AT oferece a rua, o deslocamento compartilhado entre at e acompanhado com o domínio pú-blico. Pois, se o consultório se fecha à cena pública, é justamente para que esta não desvie a atenção do que está sendo dito. Por sua vez, se o AT oferece a cena pública, podemos espe-cular que isso pode funcionar exatamente por desviar a atenção do que está sendo dito. E, ao fazê-lo, paradoxalmente, pode tornar o dizer possível. Assim, o at poderia facilitar o discur-so, exatamente na medida em que não coloca o sujeito sob a injunção de falar, insuportável em certos casos, por suposto.

De todo modo, valeria ressaltar que o AT tem sua indicação não apenas quando se ava-lia que o trabalho em consultório (ou qualquer outro) não anda, mas também quando se reco-nhece a positividade de uma abordagem que tem a especificidade oferecida pelo AT. Alter-nativa ou suplemento à abordagem clínica em consultório, o AT vale pela sua especificida-de, ou seja, mobiliza ações provenientes da própria maneira do seu acontecer –– acom-panhante e acompanhado se deslocam –– o trabalho se faz itinerante, na medida em que o ponto de partida é o acompanhado e suas demandas. Nesse sentido, o profissional que se pretende at, precisa desalojar-se de suas convicções técnicas necessárias, mas não de-terminantes para a eficácia do trabalho clínico e seus efeitos benéficos. Ou seja, será neces-sário o preparo técnico exatamente para que o at possa lidar com o lugar do “não saber” pro-veniente do trabalho em AT. Isso é paradoxal.

Em todos os casos, o at se utilizará de dois recursos, entre vários: a escuta e o desloca-mento. O que se nota frequentemente é que, por um lado, quanto mais o acompanhado em AT melhora, mais substitui o deslocamento compartilhado com o at, por um retorno ou abertura a outros laços sociais; por outro lado, quanto mais interessado na perspectiva de falar a outra pessoa –– ao at –– sobre suas questões, o que pode ter sido despertado no trabalho no AT, mais afeito o acompanhado poderá ficar ao tipo de trabalho feito em consultório, pro-movendo, assim, uma rede compartilhada de ações terapêuticas em favor do acompanha-

Daí, que o paciente delirante vê-se tantas vezes condenado a uma solidão ou reclusão nem sempre desejada. Em casos assim, o trabalho no AT pode facilitar a criação de novos laços, oferecendo como recursos tanto a escuta que o acompanhante terapêutico –– o at –– abra à sin-gularidade do delírio, quanto o deslocamento compartilhado pelo espaço público, muitas vezes capaz de abrir ao psicótico novas possibilidades de laço social, pelo diverso e inusitado que tal espaço tem a oferecer (PITIÁ e SANTOS, 2005).

É muitas vezes porque se está com um at, que um paciente poderá voltar a frequentar deter-minada atividade ‘socialmente adequada’, sem que isso implique abandono da elaboração que possa fazer em torno de suas alucinações ou delírios. Pelo contrário, acontece de um paciente nesses casos poder, junto ao at, construir algo de estatuto simbólico em torno do conteúdo aluci-natório que lhe permita voltar a desempenhar algumas funções sociais abandonadas. A oferta de uma escuta pelo at é muitas vezes eficaz, exatamente na medida em que é oferecida no contexto de um deslocamento compartilhado no espaço público. Não quer dizer que seja sempre assim, mas, conforme avaliação pode ser o caso.

Por sua vez, a presença de um at junto a um paciente deprimido ou melancólico pode ser-vir às necessidades quase sempre presentes de fornecer atenção e uma possibilidade de troca a alguém que se fecha cada vez mais, seja no vazio subjetivo que o acomete paralelamente ao mal-estar e à indisposição física, seja em delírios. Tais pacientes, muitas vezes, causam preocu-pações ao serem deixados sós, entregues a uma dinâmica mórbida, contra o que o trabalho no AT pode ser utilizado, ainda que isso não signifique uma solução definitiva ou suficiente para uma possível “cura” almejada.

Finalmente, o dependente químico pode apresentar duas manifestações básicas: pode estar ou não interessado em abandonar as drogas. No caso de haver esse interesse, o at pode funcio-nar como um apoio para que resista à tentação. Poder-se-ia dizer, porém, que, nesse caso, o at é apenas um vigia, ou uma “babá”? Não é bem assim: enquanto o at oferece apoio, uma série de trocas significantes se estabelece entre ele e o acompanhado; trocas que podem levar a uma modificação considerada benéfica para a “cura”, sob diversos pontos de vista teórico-clínicos.

Porém, gostaríamos de considerar um modo de utilização do AT que nos parece de todo co-erente com um referencial psicanalítico. E aqui estamos pensando neste texto a partir de uma at, que trabalha o AT de forma ampla e contextualizada no campo da saúde mental coletiva e um psicanalista, que pensa a abordagem AT via manejo clínico da psicanálise. Pensamos não haver contraposição nessa relação e sim a ideia de diálogos constantes em que, seja qual for a orien-tação clínica que se queira “ler” o trabalho no AT, todas estarão no campo da saúde e pensando, por sua ação, uma atitude coletiva, tendo em vista a dimensão do coletivo, das pessoas atendidas em AT que não deve ser perdida de vista .

Deve-se considerar que o trabalho psicanalítico é, via de regra, bastante exigente, requerendo daquele que a ele se entrega uma disponibilidade que, se não é incomum, tampouco se verifica em todos os casos. Há quadros clínicos, nos quais o sujeito não manifesta qualquer interesse em dirigir-se a um analista para que este o ouça ou apresente respostas a suas dúvidas e conflitos (que poderão mesmo estar ausentes). Tal posição não se manifesta apenas em alguns quadros de psicose e pode estar presente em pessoas que, a despeito de reconhecerem-se doentes ou sofrendo, não subjetivam seus conflitos de modo favorável ao trabalho analítico. No caso das psicoses, o que se manifesta, tantas vezes, é uma posição de certeza incompatível com a expec-tativa de que, por exemplo, em associação livre, um novo saber possa surgir. Alguns estudiosos em psicanálise (SOLLER, 1989)apontam como, no tratamento analítico das psicoses, deve-se levar em conta a dificuldade de os eixos do amor e do saber estarem invertidos em relação ao que acontece na neurose: quem ama é o analista e quem sabe é o sujeito.

A situação analítica –– o consultório fechado e mais ainda o divã–– confronta tais pacientes de modo direto com a hipótese de uma causalidade psíquica de seus sofrimentos –– mesmo que somatizados –– e com a perspectiva de que há saber para além de suas certezas egoicas. Exata-mente isso nem sempre parece ser suportado por alguns deles.

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do. Isso nos remete à ideia de construção do projeto terapêutico compartilhado e trabalho, realizado em equipe multiprofissional.

Em todos os casos mencionados, vale dizer que não é necessária uma carga horária ma-ciça de AT; para melhor abordar esse aspecto, vejamos como se organiza esse trabalho.

A organização do trabalho

Historicamente, o trabalho de AT foi fre-quentemente requisitado por psiquiatras (ou psicoterapeutas) e não por pacientes ou por seus familiares. O fato de a demanda de AT para uma pessoa/cliente ser a partir de um terceiro é um aspecto que introduz uma pri-meira dificuldade a ser contornada: não está claro, até que o trabalho tenha começado, o que o acompanhado e sua família podem de-mandar a um at (Reis Neto, 1995). Mesmo que isso também possa ocorrer com o terapeuta de consultório, a diferença é que o at é lançado dentro do ambiente em que está o acompa-nhado e, muitas vezes, também sua família. Portanto, o at corre muito mais o risco de ser tomado como um invasor, alguém cuja presen-ça não é desejada senão por um terceiro.

Muitas vezes, o que sustentará o trabalho, pelo menos até que um vínculo positivo tenha sido estabelecido entre acompanhado e at ou entre a família e o at, é o vínculo com aquele que solicitou o AT. Não obstante, também tem acontecido de famílias e pacientes ficarem entusiasmados ao saber que o trabalho de AT existe e, desde o início, se disporem a receber os ats. Não se descarte, ainda, a possibilidade de o trabalho ser demandado diretamente a um at. Se isso não acontece tanto, não é senão por razões históricas; não há fatores técnicos ou clínicos que justifiquem o fato.

Frequentemente essa prática foi requisitada como uma espécie de substituição da internação. Assim, equipes com quatro ou cinco ats revezavam-se noite e dia em um atendimento de 24 horas/dia. Passada a crise do acompanhado, os atendimentos em AT diminuíam, progressivamente, até que eram interrompidos (REIS NETO, 1995).

Com o passar do tempo, seja porque tal modelo tornou-se oneroso para a maioria das famílias, seja porque novas descobertas foram feitas acerca dos usos possíveis do AT, este pode passar a ser feito em cargas horárias menores. Todo tipo de configuração horária passa a ser possível, na medida em que se entende o AT, não apenas como uma substituição da internação, mas sim como um trabalho que tem a especificidade de ser feito, como se disse anteriormente , em movimento, no espaço público e/ou domiciliar.

Quem faz o acompanhamento?

É curioso notar que inicialmente o trabalho de AT era feito por leigos. Os ats surgem no in-terior de comunidades terapêuticas argentinas, sendo mais ou menos na mesma época –– final da década de sessenta ––incorporado ao trabalho da Clínica Pinel de Porto Alegre (REIS NETO, 1995). Preferia-se, então, que o at fosse um leigo, ou seja, alguém que não fizesse de seus conhe-cimentos teóricos um instrumento para a cura do paciente. O tipo de ideologia que atravessava, em maior ou menor grau, as instituições que se pretendiam comunidades terapêuticas favorecia esse tipo de posição, pela contestação de identidades rigidamente delimitadas e pelo investimen-to na constituição de um ‘ambiente terapêutico’ facilitador da ‘aprendizagem social’ como maior força no tratamento (JONES, 1968; MAUER & RESNIZKY, 1985; REIS NETO, 1995).

Dentro dessa clínica, os futuros ats permaneciam em um tipo de troca o mais simétrica possí-vel com as pessoas internadas, procurando sempre engajá-las em atividades compartilhadas por essa comunidade. Porém, também havia as saídas ‘acompanhadas’, para finalidades diversas. As saídas poderiam servir para levar as pessoas internadas até suas casas, visitar alguém, ir às consultas médicas, ações que foram precursoras do AT. O at tornava-se, então, um mediador do atribulado contato do acompanhado com o meio extramuros .

Com o tempo, esse trabalho passou a ser oferecido a pessoas não internadas. Alguns psiquia-tras chamavam os ats para atuar junto a seus pacientes, cumprindo finalidades diversas, entre as quais ‘evitar a internação’. Progressivamente, os ats foram deixando de ser leigos, passando a serem majoritariamente estudantes de psicologia, mas também de psiquiatria e de outras áreas da saúde. Ainda um pouco mais tarde, os estudantes seriam substituídos por profissionais re-cém-formados; muitas vezes, psicólogos clínicos, agregando-se de outros profissionais da saúde como os terapeutas ocupacionais, enfermeiros psiquiátricos, entre outros, que hoje lutam para dar a essa prática um estatuto teórico mais preciso.

É preciso um pouco de cuidado quanto a isso, pois a potência do trabalho de AT depende, em parte, da ‘falta de identidade’ do at. Historicamente, lançou-se mão dessa atividade quando ofer-tas terapêuticas mais tradicionais fracassaram. O at chegava, então, com a ‘liberdade’ de atuar em um terreno no qual ninguém sabia muito bem o que poderia ser feito, embora algo devesse ser feito. Liberdade dolorosa, mas que foi e deve ser aproveitada em seu potencial clínico. Pitiá & Santos (2005) tecem considerações clínicas acerca do trabalho em AT que passam pelo enfoque clínico do referencial da análise bioenergética, no entanto, não o restringem a essa possibilida-de. Além dessas características, não consideramos, de forma alguma interditada, a realização do AT por profissionais de áreas não PSI.

Se o AT era inicialmente feito por leigos, é porque, desde sua ‘aparição’ no cenário Psi, tal limite do saber está inscrito nessa prática de um modo especial. O AT, surgindo nas comunida-des terapêuticas como um trabalho feito por um ‘novo técnico’ –– inicialmente foi chamado de amigo qualificado ou auxiliar psiquiátrico. Assim, não iniciou denominado pelos técnicos que já existiam. Então, vemos aí uma operação que preservou as identidades já fixadas desses outros técnicos. Quem não tinha um saber eram os leigos, amigos qualificados ou auxiliares psiquiátri-cos, e não eles, os técnicos já conclamados por uma estrutura profissional. A ideia do AT como nova área de ação converge com a ideologia das comunidades terapêuticas a questionar as pró-prias identidades técnicas existentes e as funções já assumidas no âmbito institucional, em face do inusitado colocado pela ‘loucura’ (REIS NETO, 1995).

Não foi à toa que os que acompanhavam se rebelaram contra essas denominações, reclaman-do reconhecimento como acompanhantes terapêuticos, os ats. Dessa maneira, o surgimento dos precursores do AT pode ser lido como uma ideia de intercruzamento de saberes, tendo em vista que os leigos precisavam de preparo prévio ao início dos atendimentos em AT. Que conhecimen-to era esse, tendo em vista a especificidade do não saber no trabalho AT? Atualmente, sabemos que o AT não se limita a determinada área de conhecimento.

Podemos considerá-lo como sintoma –– desde que, com isso, não se entenda ‘algo a ser eli-minado’, porém ‘escutado’ –– o protesto sensível na demanda por uma nova denominação de quem faz o AT, que pode ser lido como retorno do recalcado, para referir uma expressão utiliza-da por Freud para caracterizar que a doença neurótica manifesta-se em um ‘só depois’, quando se torna explícito o fracasso de um mecanismo de defesa primeiro, que procura defender o eu de exigências insuportáveis advindas do Isso (FREUD, 1924).

É certo que conhecimentos teóricos contribuem no refinamento da prática do AT. Pode ser muito bom que hoje tal trabalho já seja feito por estudantes mais tarimbados ou profissionais for-mados, dado que certamente a tarefa para a qual são convocados é das mais delicadas. Porém, seria lamentável que, com o tempo, o at repetisse o “erro” que fez com que um dia surgisse um técnico Psi, destinado a assumir a ‘ignorância’ que ameaçava os outros, no encontro com um sintoma que insistia em não se deixar enquadrar (REIS NETO; PINTO; OLIVEIRA, 2011). Nova-mente nos deparamos com um confronto paradoxal.

Nesse sentido, vale notar que o AT, por sua própria trajetória histórica, enquanto prática Psi, sempre ‘mal instituída’, sempre resistente à apreensão por um saber que lhe garanta contornos

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bem definidos, presta-se bem como instrumen-to nos esforços de constituição de uma prática em saúde mental que se permita interrogar a si mesma, como característica dos movimentos de reforma psiquiátrica, como o que acontece no Brasil. A entrada do AT em serviços públi-cos de modo articulado aos CAPSs seria, assim, possível e bem-vinda (PALOMBINI 2004; PELLICCIOLI 2003).

Existem, certamente, limitações e dificulda-des que são características dessa prática, nem melhor nem pior do que qualquer outra. O AT apresenta a delicadeza de ser um trabalho em equipe multidisciplinar de ats e que não é feito apenas junto à pessoa acompanhada, de forma isolada, mas também junto a seus fa-miliares e pessoas de seu círculo social mais imediato. Lidar com todos esses vínculos, para mencionar apenas um ponto potencialmente problemático, exige delicadeza e preparo. É válido, portanto, que a formação do at possa encontrar, no preparo teórico e nas supervisões clínicas, alicerces fundamentais para sua prá-tica, na sustentação do não saber, do não ao a priori, bem como arraigamentos aos saberes técnicos rigidamente enquadrados. Além disso, muito bem complementadas, no caso da prá-tica AT, são as discussões em grupo facilitadas por seu caráter grupal e interdisciplinar.

Conclusão

Encerramos este trabalho, desejando ter demonstrado que o AT, na medida em que introduz a dimensão de uma clínica em movimento, com uma circulação compartilhada entre at e pessoa acompanhada pelos espaços público e domiciliar, é uma prática que merece ser explorada e pensada. Procuramos também fazer uma apresentação de tal prática, apontando para a possibi-lidade de sua exploração por diferentes saberes clínicos de áreas Psi e não Psi, na perspectiva da convivência e sustentação com o não saber.

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Caio GarridoPsicanalista

Tels: (16) 99153-9136 / 36235786

Rua: Visconde de Abaeté, 210 - SumaréRibeirão Preotp/SP

Glicério de Souza Psicólogo / Psicanalista

CRP 107246

Crianças e adultos

16 991283674

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XILOGRAVURA: PROCESSO ARTÍSTICO PARA TEORIA DAS POLARIDADESAndréa Nícia

BIO

HU

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Xilogravura é a técnica de gravura na qual se utiliza madeira como matriz, o que possibi-lita a reprodução da imagem sobre papel ou outro suporte adequado, resultando algo à

semelhança de carimbo. De provável origem chinesa –– 3 a 5 a.C –– , a Xilogravura é conhecida desde o século VI.

No ocidente, ela já se afirma durante a Idade Média. No século XVIII, duas inovações a revolu-cionaram: a chegada à Europa das gravuras japonesas em cores, que tiveram grande influência sobre as artes do século XIX, e a técnica da gravura de topo, criada por Thomas Bewick. No final do século XVIII, Thomas Bewick teve a ideia de usar madeira mais dura como matriz e marcar os desenhos com o buril, instrumento usado para gravura em metal e que dava maior definição ao traço. Dessa maneira, Bewick diminuiu os custos de produção de livros ilustrados e abriu caminho para a produção em massa de imagens pictóricas. Mas, com a invenção de processos de impressão, a partir da fotografia, a xilogravura passa a ser considerada uma técnica antiquada. Atualmente, ela é mais utilizada nas artes plásticas e no artesanato.

Foi amplamente utilizada na Idade Contemporânea e no Renascimento através dos Romances Cordelistas –– Literatura de Cordel. O nome cordel refere-se à forma de comercialização desses folhetos em Portugal, onde eram pendurados em cordões de barbantes –– os cordéis. Inicialmen-te continham peças de teatro.

No Brasil, os portugueses introduziram o cordel. Em meados do século XIX, surgiram as impressões de folhetos brasileiros com características próprias: fatos do cotidiano, episódios históricos, lendas, religião, temas sobre Lampião –– escritos de formas rimadas e poéticas, cujos

autores –– cordelistas –– recitavam os versos de forma melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola.

No processo artístico, percebe-se o que essa técnica oriental, que atravessou continentes, povos e mares, tem a oferecer didati-camente: a compreensão das Polaridades.

Entalha-se a madeira determinada com instrumento cortante –– goivas –– recobre-se com rolo de borracha embebida em tinta, tocando-se somente as partes elevadas e imprime-se, em papel ou pano especial, o qual fica impregnado com a tinta, revelando a figura. Pode-se fazer o mesmo processo em linóleo –– borracha –– ou em qualquer outra superfície plana.

Entalhando-se a madeira ou borracha com a figura desejada, quando impregnada com tinta, o inverso surge de maneira mágica: a parte entalhada não imprime o papel, enquanto que a parte não entalhada imprime, revelando a figura. É o que se chama de “o negativo do positivo”.

E tem mais, não para aí: o que se forma, após a técnica, é o inverso da figura, ou seja, se foi feita virada para o lado direito, aparecerá no esquerdo e vice-versa; daí todo o cuidado necessário no preparo.

Verifica-se, portanto, que a tinta é a “ponte” que une a parte entalhada da não entalhada e, na impressão, surge a forma –– o Todo, a Unidade –– contendo ambas.

Assim, a técnica da Xilogravura, que tanto concentra e diverte, é um bom exercício para conhecer a Integração das Partes, já que nada no Universo existe sem razão de ser, nenhuma parte vive sem a sua oposta e complementar, habilitando, no processo artístico, ver e reconhecer a Totalidade da Vida.

Andréa Nícia Biohumanista, Profa. de Biologia, Bióloga,

Biomédica e Analista em Psicossomática. Coordenadora

do Dpto. De Biohumanismo do Núcleo Tavola.

Referências:DETHLEFSEN, T e Rüdiger Dahlke. A Doença como Cami-

nho. São Paulo: Cultrix Ltda, 1983.

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PSIC

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PAISDESNUDANDO O

TRAVESTISMOFernanda de Oliveira Cecchi

Uma pessoa pode realmente sentir-se diferente do que sugerem seus atributos físicos se-xuais?

A sexualidade, em todas as suas formas de expressão, é uma parte da identidade de um ser humano. Isso significa que o Ser sexual é uma condição que evolui ao longo das etapas de desen-volvimento. O que se espera é que cada um esteja mais ou menos satisfeito com a natureza da sua sexualidade. Entendemos por “natureza de sua sexualidade” a configuração física e psíquica com que a sexualidade é investida. Essa condição pode variar quantitativa e qualitativamente.

Antes de Freud, a sexualidade era determinada pelas relações exclusivas da genitalidade. Tudo dependia, portanto, das adaptações possíveis ao longo desse desenvolvimento. Depois de Freud, a sexualidade se ampliou em seus conceitos econômicos, físicos e psíquicos. À sexuali-dade genital se acrescentou a capacidade de erotização das zonas erógenas do corpo inteiro.

Por que alguém se submeteria a procedimentos tão dolorosos, invasivos, cirúrgicos até, para aparentar ser do outro sexo?

Existem dois princípios que regulam o funcionamento mental: o princípio de prazer-despra-zer e o princípio de realidade.

Algumas pessoas são capazes de sacrifícios enormes, automutilações para lograr esse objetivo. A compreensão desse fato só se tornou possível depois de uma discussão mais profunda sobre

os conceitos de sadismo e masoquismo. (FREUD, 1914. O princípio econômico do masoquismo).O que acontecia, antes, era a expressão de uma visão obtusa que impedia a ampliação desse

pensamento. A dificuldade para sua compreensão reside no fato de que uma parte considerável dele está sujeita a influências e determinações inconscientes.

A sexualidade não é mais uma conceituação estritamente genital, mas um conceito que de-pende da focalização das zonas erógenas.

Continua existindo a condição de gênero ligada à constituição física do sujeito. O concei-to de zona erógena veio trazer uma complicação adicional ao aspecto subjetivo do sentir-se masculino ou feminino. Isso foi ampliado. O gênero continua existindo, acrescido de aspectos subjetivos que não mudam a qualidade dele; o indivíduo vai ser classificado como homem ou mulher dependendo da posse de órgãos genitais masculino ou feminino. Será acrescido, na sua sensibilidade, pela presença dessas zonas. A forma como elas irão se constituir definirá aquilo que estamos chamando de ampliação na sexualidade.

O que pretendemos aqui é uma ligeira reflexão sobre um tema que tem adquirido alguma notoriedade na sociedade atual, o travestismo.

Pois bem, iremos nos embrenhar por entre conceitos e teorias, na busca desse limite ilusório entre a normalidade e a patologia, com a intenção de devolvermos os símbolos ao plano simbó-lico e a concretude ao soma.

Diversas têm sido as nomenclaturas que orbitam o tema geral e amplo do homossexualis-mo. Nosso intuito aqui será uma caminhada no campo daquilo que passou a ser designado como travestismo.

O que é o travestismo?

Os travestis são pessoas que buscam, através do vestiário, sugerir uma mudança de gênero. Além disso, eles podem fazer uso de um nome social correspondente ao sexo desejado. Outras alterações podem ser adotadas: uso de hormônios, mudança do timbre de voz, corte de cabelo, depilação, chegando ao extremo de cirurgias estéticas com implante de próteses de seios e au-mento dos glúteos.

Com o objetivo de nos situarmos dentro de uma localização mais exata, gostaríamos de revi-sar alguns conceitos correlatos conforme eles são usados na linguagem corrente:

CrossdressersSão pessoas que fazem uso das vestimentas centralizadamente como um ponto de referência

para sugerir uma mudança de gênero. A expressão em inglês nos pareceu muito feliz para designar

Fernanda de Oliveira Cecchi* Psicóloga Clínica pela

USP – Rib.Preto, Psicoterapeuta Corporal Neo-Reichiana

e Analista Bioenergética, filiada ao International Institute

of Analysis Bioenergetic – Suíça. Supervisora em Análise

Bioenergética pelo IABSP- Instituto de Análise Bioenergé-

tica de São Paulo, formada em Psicoterapia Analítica de

Grupo pela Spagesp-Sociedade de Psicoterapias Analíticas

Grupais do Estado de São Paulo, Diretora do Departamen-

to de Psicoterapias de Grupo do Núcleo Tavola

*A elaboração do texto foi resultado de um trabalho em

conjunto no qual contei com a participação e colaboração

do Psicanalista Dr. David Azoubel Neto.

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ros: identificação e imitação, Jornal de psicanálise v. 42

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pios do funcionamento mental, 1911. In: Obras completas

de Sigmund Freud.Rio de janeiro: Imago, 1966.

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essa modalidade. No entanto, as possibilidades são múltiplas e obedecem a motivações compe-tentes para definir outras várias formas de apresentação: para vivenciar uma faceta feminina ou masculina, por motivos artísticos profissionais, para lograr gratificação sexual e/ou para realizar pulsões exibicionistas.

Drag queens ou Drag kings Também se caracterizam pelas vestes “performáticas” com uma intenção profissional/artísti-

ca; prevalece nesse grupo a característica do cômico e do exacerbado.Outro conceito que se expressa na literatura sobre o travestismo é o Eonismo.Esse termo se refere a um agente secreto francês histórico (Chevalier d’Eon), o qual se vestia

de mulher como uma forma de obter uma aparência disfarçada, a quem notadamente se deve o uso do travestismo como uma forma de disfarce.

Outro conceito associado ao uso de vestimenta, com o fim artístico-comercial, seria o Trans-formista. Ao que parece, para esses indivíduos, o fato de se vestirem dessa forma não interferiria necessariamente em sua orientação sexual.

Do ponto de vista atual, o que permeia todas essas formas clínicas é um denominador co-mum reducionista, que nos leva a enquadrar todas elas como travestismo. Temos em mente que um estudo mais detalhado do assunto poderá ajudar a criar uma precisão maior.

O comportamento sexual do homem civilizado se tornou, ao longo de sua evolução, sujeito a influências múltiplas. Para um estudo mais pretensioso, não basta fazer um diagnóstico descri-tivo, é preciso levar em conta as diversas possibilidades e multiplicidades de encaixes.

O que também nos parece importante é chamar a atenção para esse tema que constitui um capítulo muito rico da sexualidade humana dentro do parâmetro de uma conduta perversa poli-morfa. Trata-se de um assunto relevante que merece ser pesquisado com uma lente de aumento.

O limite entre o masculino e feminino está tênue, mas tem uma vertente que desemboca numa área de desconhecimento muito grande, que está dentro dessas tentativas de condutas ditas perversas, e isso realmente põe em contato esse conflito de gêneros: a atenção é sobre a sexualidade, mas não fixada nos conceitos concretos da sexualidade; a genitalidade fixada na expansão do conceito do gênero.

É uma relação com um conceito que é polivalente... À medida que isso vai sendo consegui-do, o conceito vai se ampliando na mente de cada um. Se nós temos uma bissexualidade, a sexualidade deve se expressar de forma mais eficiente se esse espaço ampliar o espaço da inter-permeabilidade do conceito.

Foi publicada em 4 de novembro de 2010 no Jornal A Folha de S.Paulo uma entrevista com o cartunista Laerte Coutinho, 60 anos, que se tornou crossdresser desde 2009.

Laerte nos conta que, em meados de 2004, começou a aproximar-se do travestismo e cross-dressing, fato esse que foi marcado pela publicação de uma tirinha, onde o personagem Hugo transforma-se em Muriel.

Esse processo foi interrompido com a morte repentina de seu filho em 2005. Em 2009, Laerte retoma esse tema e faz sua primeira “montagem” (vestir-se de mulher e frequentar lugares e es-paços naturalmente). Segundo ele, “as coisas que se evidenciaram [em meu trabalho] a partir de 2005 já estavam ali, latentes, germinando em 2004.” (Folha de S.Paulo, 4 de novembro de 2010).

Com essa postura que vem assumindo desde 2009, Laerte levanta exatamente a discussão que desenvolvemos, no presente trabalho, sobre a possibilidade de que travestismo não é uma questão de sexo, e sim de gênero, portanto gênero e sexo seriam coisas independentes. Laerte vem, portanto, questionar essa “cultura binária- homem/mulher”, ou, nas suas próprias palavras, essa “ditadura de gêneros”.

Eis sua fala quando questionado pelo repórter sobre as razões que o levariam a travestir-se:“Quando me travisto, uso o repertório consagrado às mulheres. Exploro minha feminilidade, mas

não quero convencer as pessoas de que sou mulher.” (Folha de S.Paulo, 4 de novembro de 2010).Laerte coloca que o único dos seus personagens das tirinhas que publicava que tem “sobre-

vivido”, é o HUGO, porque:

“... para mim a atividade de me travestir é uma coisa nova e misteriosa, e também cheia de informação que não tenho (risos); eu uso o Hugo

para fazer essa prospecção.”

Gostaríamos de usar o conteúdo da entre-vista citada para levantar alguns pontos:

Não existe o intuito de acentuar uma ou ou-tra tendência, o que existe é uma relação com a sexualidade que admite uma expressão mais livre para os aspectos masculino e feminino da personalidade. O que existe, na linguagem comum, em torno dessas concepções e pre-concepções, é, na verdade, certa delimitação e certo bloqueio que se traduzem em uma inibi-ção para se levar em conta esses aspectos.

Os conceitos viram prisões que os contêm e a personalidade não se expande.

Laerte consegue colocar o masculino e feminino sem sofrer perdas no contexto da sexu-alidade normal, através da sexualidade travestida.

O que se passa na cabeça de alguém que se propõe a fazer essa experiência?

Muitas imagens podem ocorrer se houver uma liberdade de pensamento e de expressão que permita essas relações. O cartunista está falando que o travestismo não é uma questão de sexo — o que é homem e o que é mulher — mas, sim, uma questão de gênero — os impulsos sexuais existem como pulsões instin-tivas em busca de realizações, o que dá a essa definição de conceitos uma ótica diferente.

O que existe, por detrás dessas reformu--lações, é muito antigo e tem permanecido praticamente intocável. Talvez por se tratar de um assunto que ainda é crivado de pre-conceito. É preciso que pessoas corajosas e desafiadoras retomem a questão, trazendo à baila novas expansões.

Laerte se propõe a questionar essa cultura binária da sexualidade.

Os processos de submissão aos conceitos e preconceitos são aparentemente muito suaves, quase não se nota a sua imposição, mas eles existem como uma força secular sobre a qual pesa uma tradição contendora.

As coisas passam a ter uma sindicância. Nós vivemos num mundo de rituais onde os mitos e ritos desempenham o mesmo papel que sempre desempenharam em todas as épocas. Têm signi-ficados próprios e as sociedades prezam muito os costumes que deles resultam. Mudá-los seria provocar uma revolução de culturas que prova-velmente despertaria muita resistência.

Faz, portanto, algum sentido que alguém se rebele ao perceber, de uma forma mais aguda, esses detalhes que indicam essa forma de apri-sionamento.

Trata-se de um tema de abordagem muito inteligente, o qual só poderia ser proposto e discutido por alguém de muita sensibilidade, cultura e coragem.

Questões desse tipo estimulam os pensadores a encarar temáticas de fato muito ousadas, mas que contribuem consideravelmente para a am-pliação da capacidade de pensar do ser humano.

Laerte sustenta a personagem (Hugo), que se mantém fiel a essa parte dele como uma dimensão de uma sexualidade mais ampla. A persistência da personagem (Hugo) é em decorrência de uma necessidade que busca formas de expressão.

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Aceitando relutantemente a questão da ge-nialidade que tem sido atribuída pela classe artística e pelo público ao seu estilo de fazer quadrinhos, Laerte se aventura de fato por zo-nas novas não exploradas.

Dentro desse enquadre, essa descoberta traz à tona uma concepção cuja transcendência vai muito além da noção de uma sexualidade que se encerra na genitalidade.

No que pese o risco da redundância, acen-tuamos esse pensamento que coincide com a concepção psicanalítica do achado das zonas erógenas na teoria freudiana quando Freud su-gere uma renomeação. Se a sexualidade vai além do genital, o que seria, mais exatamente, esse além do genital?

Os rituais são restos de mitos em cuja core-ografia estão inseridos movimentos repletos de significados.

O ato de travestir-se estaria sendo, portanto, uma expressão dessa ritualização.

O que pode parecer ambíguo, nessa tenta-

O que será que me dáQue me bole por dentro, será que me dáQue brota à flor da pele, será que me dáE que me sobe às faces e me faz corarE que me salta aos olhos a me atraiçoarE que me aperta o peito e me faz confessarO que não tem mais jeito de dissimularE que nem é direito ninguém recusarE que me faz mendigo, me faz suplicarO que não tem medida, nem nunca teráO que não tem remédio, nem nunca teráO que não tem receita

O que será que seráQue dá dentro da gente e que não deviaQue desacata a gente, que é reveliaQue é feito uma aguardente que não saciaQue é feito estar doente de uma foliaQue nem dez mandamentos vão conciliarNem todos os unguentos vão aliviarNem todos os quebrantos, toda alquimiaQue nem todos os santos, será que seráO que não tem descanso, nem nunca teráO que não tem cansaço, nem nunca teráO que não tem limite

O que será que me dáQue me queima por dentro, será que me dáQue me perturba o sono, será que me dáQue todos os tremores me vêm agitarQue todos os ardores me vêm atiçar Que todos os suores me vêm encharcarQue todos os meus nervos estão a rogarQue todos os meus órgãos estão a clamarE uma aflição medonha me faz implorarO que não tem vergonha, nem nunca teráO que não tem governo, nem nunca teráO que não tem juízo

tiva de realização, corresponde a uma indefinição de conceito porque nós estamos tratando de um conceito não suficientemente elaborado, ainda. Estamos tentando uma aproximação aos seus significados não saturados.

Na medida em que pensamos a propósito, nos deparamos com as dificuldades de encerrar em si mesmo, através de uma definição complementar, um significado que não se conforma com esse encerramento.

O nosso pensamento caminha, nesse caso, para um sistema fechado. Daí, prestar-se facil-mente para a formatação de um preconceito.

Estamos entrando na compulsão de repetição (Barbara Low) para nos situarmos nesse encaixe.A postura de Laerte vem, então, com sua ousadia, ampliar e não encerrar esse conceito e nos

confronta com essa possibilidade. A repressão é um mecanismo muito primitivo. Outros mecanismos também surgem (transfor-

mação em contrário, deslocamento); nenhum deles tem a força de transformação e de moldagem da repressão.

Como se trata de um processo inconsciente, a sua força decorre desse poder. Paradoxalmente, o objetivo do inconsciente é se tornar consciente. O que acontece de forma

disfarçada e sutil ou, então, mais escancaradamente.Isso costuma acontecer através de uma ruptura social, por exemplo, a forma convencional de

vestir-se para cada um. Estamos lidando, portanto, com pensamentos que se mostram cada vez mais herméticos, levando-nos a concluir que eles fazem parte de uma finitude incompleta e, se esse princípio é verdadeiro, resta-nos, tão somente, aceitar a sua (in)finitude.

Em síntese, esbarramos com o inconsciente.

A música “O que será”, de Chico Buarque de Holanda, refere-se a esse tema. É com ela que gostaríamos de fechar (abrir) a nossa discussão.

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ALSistemas de Classificação em Subgrupos:

UM NOVO PARADIGMA NO TRATAMENTO DA DOR LOMBARAdriano Pezolato

Introdução

Dor lombar representa um problema significativo de saúde pública e um ônus econômi-co para empregadores (PEREIRA et al., 2012). Considerada um dos problemas mais comuns na sociedade ocidental e industrializada com prevalência de 39% de pessoas experimentando-a em algum momento de sua vida (HOY et al.,2012). Desse número, aproximadamente 50% a 60% buscam tratamento fisioterapêutico (FRITZ et al.,2007).

Fisioterapeutas empregam uma ampla variedade de intervenções no tratamento da dor lom-bar, incluindo terapia manual, exercício terapêutico, modalidades eletrotermoterapêuticas, tração e treinamento funcional (FRITZ et al.,2007).

Havia uma promessa de que os estudos controlados randomizados proporcionariam respostas a questões, tais como “qual intervenção é mais efetiva para cada paciente”, mas, após a publica-ção de mais de 1.000 estudos controlados randomizados em dor lombar, há ainda uma falta de evidência para considerar as estratégias mais eficazes para o tratamento dessa população (VAN DILLEN e VAN TULDER, 2013). Uma possível explicação é o uso de amostras heterogêneas de pacientes em muitos dos estudos clínicos. Pacientes com dor lombar demonstram heterogenei-dade etiológica e prognóstica, a qual torna improvável que a mesma abordagem de tratamento atenda às necessidades individuais de cada paciente.

A identificação de subgrupos homogêneos, ou seja, pacientes que dividem as mesmas carac-terísticas clínicas, foi determinada como prioridade de pesquisa em dor lombar há exatamente duas décadas e continua como uma das prioridades para esta década. (ROSE,1989; RIDD-LE,1998; COSTA et al.,2013).

Ao longo dos anos, muitas tentativas foram feitas para classificar pacientes com dor lombar em subgrupos mais homogêneos (BILLIS et al.,2007). A classificação em diferentes subgrupos tem como finalidade auxiliar na tomada de decisão com relação às diferentes intervenções te-rapêuticas disponíveis e, assim, aumentar a eficácia do tratamento por meio de uma prática baseada em evidências.

Há evidências que mostram que o uso de intervenções baseadas em sistemas de classificação resulta em melhores resultados clínicos quando comparado a outras formas de tratamento alter-nativo (FRITZ et al, 2003).

Delitto et al. (1995) propuseram um sistema de classificação no intuito de direcionar o tra-tamento de pacientes com dor lombar. Conhecido como Sistema de Classificação baseado no Tratamento (CBT), foi desenvolvido em resposta às limitações percebidas em algumas das clas-sificações do Conceito McKenzie, vigente na época, assim como preenchia algumas lacunas e definia novos subgrupos de dor lombar (VAN DILLEN e VAN TULDER, 2013).

O sistema é composto por quatro classificações, cada uma relacionada a uma série de acha-dos baseados na história clínica e exame físico do paciente. Os grupos são nomeados de acordo com a intervenção sugerida e considerada ideal diante dos achados clínicos presentes. São eles: manipulação, estabilização, exercício específico e tração (FRITZ et al.,2007)

Desde a sua introdução, esse sistema tem sido alvo de estudos que visam a seu aperfeiço-amento e atualização. O desenvolvimento de Regras de Predição Clínica (RPC) é um exemplo das novas evidências incorporadas ao sistema. (CHILDS et al, 2004; HICKS et al, 2003; FRITZ et al,2005; FRITZ e GEORGE,2002; CLELAND et al,2008).

Regras de Predição Clínica são ferramentas designadas a assistir clínicos na determinação de um diagnóstico, prognóstico ou uma resposta provável a uma intervenção específica. As RPCs,

Adriano Pezolato Fisioterapeuta, Mestre em Ciências

da Saúde pelo Departamento de Biomecânica, Medicina

e Reabilitação –– FMRP-USP, Docente do Curso de Gra-

duação em Fisioterapia e Pós- graduação em Fisioterapia

Traumato-Ortopédica com Ênfase em Terapia Manual do

Centro Universitário Barão de Mauá. Certificação inter-

nacional em Sistemas de Classificação em Subgrupos no

tratamento da dor cervical e lombar.

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como são conhecidas, usam uma série parcimoniosa de achados clínicos da anamnese, do exa-me físico e dos resultados dos testes de diagnóstico que uma vez analisados demonstram serem estatisticamente preditores significativos de uma condição ou de um resultado de interesse. A função de uma RPC intervencional ou prescritiva, por exemplo, é ajudar clínicos a identificar quais pacientes têm maior probabilidade de sucesso com uma intervenção específica compara-da a uma intervenção alternativa (BEATTIE e NELSON, 2006; GLYNN e WEISBACH,2011).

Este estudo teve como objetivo revisar a literatura científica atual no intuito de reunir e or-ganizar o conhecimento referente ao Sistema de Classificação baseado no Tratamento, uma vez que aumenta a nossa compreensão para o seu uso em pacientes com dor lombar.

Metodologia

Este estudo é uma revisão bibliográfica, na qual foram utilizados artigos publi-cados no período de 1989 a 2013 e indexados nas bases de dados Pubmed, EBSCO e Web of Science.

Para a busca, foram utilizadas as seguintes palavras-chaves: coluna lombar, dor lombar e sistemas de classificação e seus equivalentes em inglês.

Classificação Manipulação

Flynn et al. (2002) desenvolveram uma RPC para prever a priori quais pacientes têm mais chances de se beneficiar de uma intervenção baseada em manipulação articular com rápida e sustentada melhora.

Os resultados desse estudo identificaram cinco preditores clínicos que determinam com pre-cisão os pacientes que se beneficiariam da intervenção manipulativa. Os critérios baseados na história clínica e em exame físico do paciente compreendem: início dos sintomas menor que 16 dias, ausência de sintomas distais ao joelho, hipomobilidade articular da coluna lombar, amplitude de movimento (ADM) de rotação medial pelo menos em um quadril maior que 35° e

pontuação no Fear Avoidance Beliefs Questionnaire (FABQ) subescala, tra-balho menor que 19 pontos.

A presença de, no mínimo, qua-tro dos cinco critérios foi altamente preditiva para uma resposta exce-lente à intervenção manipulativa com melhora em torno de 97%, en-

quanto a presença de dois ou menos fatores estava quase sempre associada

a uma melhora pouco expressiva, dimi-nuindo a probabilidade de sucesso para

9% (FLYNN et al.,2002; FRITZ et al.,2007). Childs et al. (2004) conduziram um

estudo de validação da RPC manipula-ção e verificaram que os pacientes que eram positivos na RPC, ou seja, apre-sentavam 4 ou mais achados e recebiam manipulação, demonstravam melhores resultados na dor e incapacidade em cur-to e longo prazo quando comparados aos indivíduos que eram negativos na RPC e que recebiam também a intervenção manipulativa. Outro achado importante refere-se à combinação de tratamento, ou seja, pacientes que eram positivos na RPC

apresentavam melhores resultados na dor e incapacidade com a manipulação isolada

que aqueles que eram positivos na RPC, mas realizavam o exercício terapêutico combina-

do à manipulação. Os autores concluíram que a manipulação é

a intervenção mais adequada quando os indiví-duos preenchem os requisitos presentes na regra, e que esta deve ser aplicada independentemente de quaisquer recursos adicionais.

Classificação Estabilização

Instabilidade vertebral é considerada uma causa importante de dor lombar (O’SULLIVAN, 2000). Muitos clínicos acreditam que pa-cientes com instabilidade segmentar lombar podem preferencialmente responder a uma abordagem de tratamento específica e, por isso, a identificação desses pacientes podem melhorar os resultados do tratamento (HICKS et al.,2003).

Hicks et al. (2005) desenvolveram uma RPC para identificar quais pacientes têm maior pro-babilidade de se beneficiar de um programa de exercícios de estabilização.

Quatro fatores foram identificados como pre-ditivos para a melhora: idade menor que 40 anos, boa flexibilidade geral (Straigth Leg Raise (SLR) maior que 91°), padrões de movimentos anor-mais no plano sagital (flexão e extensão lombar), tais como arco doloroso, ritmo lombopélvico re-verso e padrão segmentar em dobradiça e teste de instabilidade em prono positivo.

A RPC estabilização, como é conhecida, é considerada positiva quando 3 ou mais desses achados estão presentes com probabilidade de sucesso em tratamentos baseados em exercí-cios de estabilização em torno de 80%.

Se três ou mais achados levam a resulta-dos excelentes, a presença de quatro achados predizem o fracasso com o tratamento; teste de instabilidade em prono negativo, ausência de padrões de movimento lombar anormais no plano sagital, ausência de hipermobilida-de lombar e uma pontuação menor que 9 no FABQ sub-escala atividade física. A presença de, no mínimo, três achados foi altamente pre-ditiva para o fracasso (86%).

O programa de tratamento ideal para esse subgrupo é caracterizado por exercícios de controle motor e coordenação direcionada ini-cialmente a alguns músculos-chave do tronco, dentre eles, o transverso abdominal, o multí-fido, o assoalho pélvico e o psoas maior. Em estágios avançados, os músculos superficiais ou globais são incorporados aos exercícios embora seja ainda questionável se os músculos do tronco devam ser treinados separadamente (GRENIER e McGILL, 2007).

Classificação Exercícios Específicos

Robin McKenzie foi um dos primeiros fisio-terapeutas a classificar pacientes de acordo com os achados do exame. Ele os categorizava em diferentes síndromes mecânicas, subme-tendo--os a intervenções distintas ou específicas para cada caso (CLARE et al, 2005; MACHADO et al, 2006). Como os princípios do conceito es-tavam difundidos na época, Delitto et al (1995) identificaram uma classificação em que mo-vimentos repetidos no final da ADM em uma direção específica (flexão, extensão ou desvio lateral) beneficiavam pacientes que tinham, como particularidade, a centralização da dor durante a realização dos movimentos.

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Mckenzie (2003) descreveu a centralização como um fenômeno que ocorre durante o exame do movimento ativo ou passivo quando o paciente relata que a dor se move de uma área mais distal ou lateral para uma localização mais central ou próxima da linha média na coluna vertebral.

Diversos estudos têm demonstrado que a centralização durante o movimento ativo pode ser interpretada como um bom prognóstico comparada aos indivíduos em que a centralização não ocorre (WERNEKE e HART, 2001; SKYTTE, MAY e PETERSEN, 2005).

Os preditores clínicos que classificam o indivíduo no subgrupo exercícios específicos são: cen-tralização durante a avaliação do movimento lombar ativo, sintomas distais ao joelho, sinais de compressão radicular e nítida preferência por posturas flexionadas ou estendidas (FRITZ et al, 2007).

A presença de centralização é considerada o principal preditor clínico dessa classificação. Outro critério importante é o achado clínico de uma preferência direcional. Preferência direcio-nal é definida como uma situação, na qual o movimento, em dada direção, abole, atenua ou centraliza a dor enquanto que o movimento na direção oposta reproduz, exacerba e distaliza os sintomas (BROWDER et al., 2007).

A premissa básica para tratar pacientes na classificação exercício terapêutico é usar movi-mentos repetidos no final da ADM na direção que causa a centralização. A preferência direcional mais comum usada nessa classificação é a extensão. Movimentos na direção da flexão e do des-vio lateral são menos comuns, com a primeira ocorrendo em pacientes mais velhos, muitas vezes com diagnóstico médico de estenose vertebral lombar (FRITZ et al., 2007).

Classificação Tração

Embora não recomendada pelos guidelines baseados em evidências e revisões sistemáticas, a tração axial continua a ser usada por clínicos que criticam a qualidade metodológica da maioria das pesquisas que avaliaram a tração como forma de tratamento. A heterogeneidade da amostra é apontada como um dos vieses de estudos compromissados a avaliar os efeitos da tração lombar (KRAUSE et al., 2000; FRITZ et al., 2010).

Fritz et al. (2007) procuraram identificar um subgrupo que respondesse favoravelmente à tração mecânica e concluíram que esse subgrupo existe com resultados satisfatórios com o uso dessa intervenção. Os resultados desse estudo sugerem que esse subgrupo é caracterizado pela presença de sintomas referidos na extremidade inferior, sinais e sintomas de compressão nervosa, distalização dos sintomas com movimentos de extensão e SLR cruzado positivo.

Considerações Finais

Sistemas de Classificação que auxiliam na identificação de subgrupos que respondem satisfa-toriamente a intervenções específicas são considerados por muitos pesquisadores-clínicos como promissor no tratamento da dor lombar, no entanto, ainda é aguardada a replicação dos resulta-dos, assim como a validação e a análise do impacto clínico das Regras de Predição Clínica para prover maiores evidências para a generalização do uso desse Sistema de Classifcação baseado no Tratamento para a prática clínica.

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FEUERBACH E FREUD: A RELIGIÃO COMO ILUSÃOAlessandro Alves

FILO

SOFI

A

Freud (1836-1939), sem dúvida, antes mesmo de fundar a psicanálise, era conhecedor do que havia de mais sofisticado no pensamento filosófico ocidental e, portanto, apropriou-se de muitas fontes para arquitetar sua teoria, o que não lhe tira o mérito e a genialidade, ao contrário, os reforça.

No que se diz respeito à religião, é possível, através de uma leitura atenta, fir-marmos um diálogo entre o pensamento de Freud e Feuerbach, filósofo e antropólogo alemão (1804-1872), contemporâneo do pai da psicanálise.

Tanto para Feuerbach quanto para Freud, a religião possui um componente doentio, constitui--se em uma ilusão e não pode oferecer um futuro seguro à humanidade.

Na obra Essência do Cristianismo (1841), obra mais conhecida de Feuerbach, o filósofo anali-sa a religião sob a vertente de uma patologia psíquica e ilusória, o que nos remete imediatamente a um diálogo com a obra freudiana O Futuro de uma Ilusão (1927).

Em Freud, a crítica à religião mostra-se afinada à temática do pensamento filosófico pós--hegeliano, em que a religião era recusada e apontada como um fator de alienação.

A obra de Feuerbach é ainda pouco conhecida no Brasil, e sabe-se mais dela por comenta-dores e críticos do que propriamente por sua leitura. Costuma-se fazer uma leitura marxista de seus textos, mas o próprio Marx, em sua obra Teses sobre Feuerbach (1845) aponta, no pensa-mento do filósofo alemão, um erro, indicando que o pensador não compreendeu e não ampliou a discussão social da ilusão e da alienação religiosa, restringindo-se ao campo apenas da ilusão teológica.

O tema da religião é o principal assunto de toda produção de Feuerbach, que diferentemente de Kant, manteve severas críticas à religião institucionalizada, o que lhe custou uma vida difícil, sendo sempre perseguido e passou pelo seu tempo quase sem reconhecimento acadêmico.

Para ele, a religião não é um nada, é, antes de tudo, uma ilusão. Sua investigação consiste em saber como tal ilusão ocorre e qual o código presente nela. A teologia tradicional baseia-se, segundo o pensador, em uma ilusão, que, assim como o empirismo, não conseguiu alcançar o âmago dos problemas do homem, de modo que ambas as formas de pensamento são equivoca-das e não respondem aos anseios deste. Durante sua investigação teórico-filosófica, Feuerbach vai tentar subverter a ordem existente, que apresentava, na religião, o simbólico, como sendo sempre referente a Deus, ao passo que, no empirismo, o simbólico se perdia. Ele quer ir além, pretende demonstrar que o simbólico deve referir-se ao homem.

Para Feuerbach, a religião seria igual à antropologia, isto é, não há um Deus que constrói homens à sua imagem e semelhança, o que existe são homens criando deuses à sua imagem e semelhança. Evidentemente, essa tese não é nova, já se encontrava nos pré-socráticos: “Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, de-senhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm.” (Xenófanes de Colofão, 1973, p.70)

Para Feuerbach, ao estudar os deuses, o homem está se estudando e buscando a si próprio, de modo que a religião possui uma lógica, pois ninguém é capaz de crer no absurdo. Por isso, para o crente, o milagre é sempre algo tão natural. Na religião, imagem equivale à essência. Nisso reside a patologia psíquica, pensada por Feuerbach, e depois retomada sob outra vertente em Freud.

Na obra O Futuro de Uma Ilusão (1927), e depois em O Mal Estar na Civilização (1930), Freud analisa, sob a perspectiva psicanalítica, o problema da civilização, que está intimamen-te ligado à religião. Em Freud, a civilização baseia-se na repressão dos instintos (canibalismo, incesto e ânsia de matar), estabelecendo, portanto, que a coerção pode ser considerada como a fundadora da cultura. Desde a mais tenra infância, os homens lutam contra sua natureza e tentam negá-la, desenvolvem internamente valores morais e, dentre esses valores, afirmam-se as

Alessandro Alves Psicanalista em Formação, Bacharel

em Filosofia, com especialização em Filosofia da Educa-

ção e Graduando em Letras.

Referências:FEUERBACH, Ludwig (1989). Preleções sobre a essência da religião. Tradução de José da Silva Brandão. 1ª edição.

Campinas: Papirus Editora,1997.

______A Essência do Cristianismo. Tradução de José da

Silva Brandão. 2ª ed. Campinas: Papirus Editora.

FREUD, Sigmund (1996). O futuro de uma ilusão (Co-

leção “Standard”- vol.XXI Freud). Tradução de Jayme

Salomão. Rio de Janeiro: São Paulo. Imago: São Paulo

GIMENES, Mario de Paula. O Futuro de Uma Ilusão: Algu-mas Reflexões entre Feuerbach e Freud. Disponível em

http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/adverbum/

Vol2_2/feuerbach%20freud.pdf. Acessado: 29/12/2014.

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ideias religiosas que são ilusórias. Para o pai da psicanálise, as ideias religiosas trazem diversos problemas para a sanidade humana, como, por exemplo, a ideia do pai como fundamental e o apego excessivo à tradição. A origem psíqui-ca das ideias religiosas é ilusória e essa ilusão está ligada à repressão dos desejos humanos e à negação destes. A base da religião é, portanto, falsa, e não pode ser vista como fundamento da civilização. A proposta freudiana é que a ética ocidental supere a religião, pois as leis religio-sas nada mais são do que produtos culturais.

Tanto para Feuerbach quanto para Freud, a religião possui um componente doentio,

constitui-se em uma ilusão e não pode oferecer

um futuro seguro à humanidade.

Em Freud, a religião assume dois aspectos: o componente neurótico individual e a ilusão coletiva. Há certo otimismo em que a ciência da razão psicanalítica substitua a ilusão religiosa.

Nesse sentido, podemos perceber, através de uma leitura atenta, fecundas semelhanças entre Feuerbach e Freud:

Neste livro não se tornam as imagens da religião nem pensamentos –– pelo menos no sentido da filosofia especulativa da religião –– nem realidades, mas são consideradas como imagens –– isto é, a teologia não é tratada nem como uma pragmatologia mística, como o é pela mitologia cristã; nem como ontologia, como o é pela filosofia especulativa da religião, mas como patologia psíquica (FEUERBACH, 1997, p.19).

Para ambos os pensadores, a religião só pode ser compreendida como uma doença psíquica, ou seja, como uma ilusão, assim como nos aponta Freud em O Futuro de uma Ilusão: “Avaliar o valor da verdade das doutrinas religiosas não se acha no escopo da presente investigação. Basta--nos que as tenhamos reconhecido como sendo, em sua natureza psicológica, ilusões.” (FREUD, 1978, p.109)

Para Feuerbach, o cristianismo do século XIX apresenta-se decadente, fato este que Nietzsche retomará também em suas reflexões. Hegel teve o mérito de, em sua filosofia, delinear a crítica de que a teologia é antropologia, mas seu pensamento não foi capaz de aprofundar essa questão, o que Feuerbach tenta sistematizar em sua obra.

O filósofo entende que a verdade da existência de um deus depende de se acreditar ou não em seus predicados:

A identidade do sujeito e do predicado mostra-se da maneira mais clara no desenvolvimento da religião que é idêntico ao desenvolvimento da cultura humana. Enquanto cabe ao homem somente o predicado de um mero homem da natureza é também o seu Deus um mero Deus natural (FEUERBACH, 1997, p.62-63).

Para Feuerbach, o deus da religião é um deus egoísta, autossatisfatório, o sagrado é uma es-pécie de espelho do ser humano falível e, portanto, a pseudo-humilhação do homem religioso; é, na verdade, uma glorificação egoísta e reprimida. A obra Essência do Cristianismo (1841), dividida em dois capítulos, trata, na primeira parte, da essência verdadeira da religião, isto é, sua parte antropológica. A segunda parte trata da falsa essência da religião, que é a teológica, e é aqui que reside, em Feuerbach, a ilusão ou patologia psíquica. Uma leitura atenta, volto a frisar, nos leva a perceber uma relação entre o pensamento de Feuerbach e Freud.

O filósofo alemão, em seu desenvolvimento teórico, vai perscrutando questões ligadas ao ser do homem religioso, classifica o cristianismo como uma soteriologia, isto é, uma doutri-

na da salvação e não uma doutrina de Deus, e vai apontando que a infelicidade é a mola propulsora da fé, pois, ao oprimir o homem, o torna dependente de Deus; ao passo que a feli-cidade é pouco profícua à fé, pois, ao expandir o homem, o torna capacitado a dispensar o auxílio divino. A religião é considerada, por-tanto, uma projeção das carências humanas e ignora a arte e as ciências naturais, sendo que a contemplação humana diante do sagrado é impura, pois é, em última instância, uma con-templação de si mesmo. Feuerbach expande, portanto, a crítica à religião, característica de alguns pensadores pós-hegelianos, e a classifi-ca como ilusória, adotando, inclusive, o termo “patologia psíquica”. Claro que sua constru-ção teórica perpassa o campo da antropologia e da filosofia, não se atendo à problemática das implicações psíquicas que a religião exer-ce sobre o indivíduo, até mesmo porque essa não era sua intenção e seu campo de inves-tigação. Freud, anos mais tarde, vai retomar o tema da civilização e da religião, abordan-do-os evidentemente dentro de uma óptica psicanalítica, mas afirmando, assim como seu contemporâneo Feuerbach, que a religião tem um componente ilusório, analisando, já sob sua teoria, a origem psíquica das ideias reli-giosas. São campos de estudos diferentes, mas um leitor atento é capaz de estabelecer um diálogo entre esses dois pensadores do século XIX. A temática da religião sempre atravessou a filosofia e exerceu também fascínio ao pai da psicanálise, que a estudou sob o ponto de vista de suas origens e implicações psíquicas.

A religião é, portanto, para esses dois pensadores, uma ilusão. Evidentemente, o pensamento de ambos é mais amplo, mas este texto tem a intenção de demonstrar apenas que é possível estabelecer um diálogo entre a obra feuerbachiana e os textos freudianos no tocante à temática da religião.

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ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE

EICHMANN EM JERUSALÉMSirlene Ap. Pessalacia Barretto

INTRODUÇÃO

Eichmann em Jerusalém é um relato da banalidade do mal, protagonizada num perso-nagem patético e ordinário, incapaz de exercitar a função do pensar e do refletir criticamente. É uma análise de Hannah Arendt, filósofa e teórica política (como gostava de se autodenominar), sobre a figura de Eichmann. Ele era um carrasco nazista, responsável pela condução de milhões de judeus para os campos de concentração e extermínio.

Eichmann em Jerusalém é uma obra polêmica, sendo Hannah incompreendida e muito criti-cada pelos seus pares e pela sociedade judaica da época –– 1962.

Corajosa e determinada, Hannah Arendt proporcionou ao mundo uma nova leitura do holo-causto, desvendando, ao mesmo tempo, um mal radical expresso no cotidiano e na banalização que leva as pessoas ao inominável e à negação do real.

O Tribunal de Jerusalém foi um tribunal político, com intenção de resgatar a memória dos cri-mes cometidos contra o povo judeu. Nos aspectos que diz respeito à legalidade e legitimidade, o Tribunal de Jerusalém foi alvo de muitas críticas. Há vários fatos que comprometem sua legitimi-dade –– a captura de Eichmann em território de outro Estado, ferindo a soberania da Argentina, o tribunal ser de judeus com leis e processo próprios, comprometendo o direito de ampla defesa, entre outros fatos.

O povo judeu tinha necessidade de reavivar a memória do holocausto ao mundo. O Tribunal de Jerusalém teve essa função, só não contava que Hannah Arendt seria os olhos de águia, apon-tando a verdade de forma escancarada.

O ACUSADO E A BANALIDADE DO MAL

Hannah Arendt acompanhou o caso Eichmann, coletando material por dois anos, entre o seu rapto na periferia da Argentina e sua execução em Jerusalém. Ofereceu-se ao Jornal The New Yorker para fazer a cobertura do julgamento, deixando implícita uma necessidade parti-cular de encontrar-se com o carrasco nazista. Era o acerto de contas íntimo –– como seria estar frente a frente com um nazista de carne e osso? Como ela mesma expressa ao escrever a carta enviada ao The New Yorker. Era o momento do resgate de sentimentos profundos que necessi-tavam ser testados para fantasmas serem desvencilhados –– o que fez entrevistando Eichmann pessoalmente.

Eichmann era o grande carrasco de milhares de judeus, se tornou um mito –– o mito da cruel-dade que certamente despertava no imaginário das pessoas e também de Hannah, sentimentos sombrios, de tempos não menos sombrios. Termos usados para descrever as incertezas das dé-cadas de 1930 e 1940.

A expectativa do encontro com Eichmann era um acontecimento de mobilizações emocio-nais, em Hannah e em toda sociedade intelectual e judaica. Pensavam encontrar um ser vil, desprezível, sem escrúpulos -–– um Mefistófeles inteligente e ardiloso, que fora capaz, junto com outros assassinos, de dizimar seis milhões de judeus. Esperava-se a própria encarnação do mal, tanto que Eichmann, durante o julgamento, era apresentado dentro de uma gaiola de vidro ––– um canibal, fazendo referência ao filme americano, Hannibal de Ridley Scott , lançado em 1986. O canibal Eichmann não passava de uma pessoa ridícula e imbecil, situação possível de causar uma ferida narcísica na sociedade judaica, atraída para o extermínio sem nenhuma reação por parte de seu povo. Difícil mesmo de aceitar!

Sirlene Ap. Pessalacia Barretto Mestre em Serviço So-

cial, Especialista em Psicanálise, Especialista em Gestão

Pública, Psicóloga Clínica, Administradora de Empresas,

Formação em Sistema de Informação, Psicanalista em For-

mação, Acadêmica de Direito e Coordenadora de Saúde

Mental do Município de Franca.

RESUMO O texto visa a fazer uma rápida aná-lise do julgamento de Eichmann em Jerusalém, com enfoque na questão da banalidade do mal discorrida por Hannah Arendt. A banalidade do mal é colocada aqui como um fenômeno inquietante e arraigado no cotidiano. Um de-safio constante, cujos reflexos estão inscritos na ausência de pensamento, muitas vezes, justificada por clichês vazios e atos validados por um Estado instituído legalmente. Há uma preocupação para o normal e para o medíocre sendo capaz de nos surpreender de forma im-pactante perante o banal. É um olhar sobre um Tribunal com várias falhas jurídicas, mas que buscou cumprir a função de relembrar ao mun-do o absurdo do holocausto, abrindo espaço para reflexões sobre ações de barbáries con-tra a humanidade. A discussão aqui perpassa por questões psíquicas, entremeando o mundo subjetivo dos protagonistas numa tentativa de trazer à tona fatos que, com uma leitura menos apurada, nos passam despercebidos.

Palavras-chave: banalidade do mal, Arendt, pensamento.

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Hannah descreve que Eichmann, durante todo o processo, revelou-se uma pessoa incapaz de exercer a atividade do pensar, da elaboração de um juízo crítico e reflexivo. Mostrava-se ro-botizado, utilizando-se de frases feitas para se expressar e sem nenhuma capacidade de decisão autônoma. Sua incapacidade de falar estava diretamente relacionada com sua incapacidade de pensar. Eichmann, como muitos profissionais de diversas áreas, falava através de jargões e clichês, durante o julgamento, por meio dos depoimentos, mostrava-se cômico, confundindo palavras e emitindo apenas conversa vazia. Demonstrava uma falha de caráter refletida pela in-capacidade de considerar o ponto de vista do outro. Os clichês aceitos socialmente dispensam o juízo crítico e ocultam implicações morais.

Hannah descreve Eichmann, isento de patologia mental (comprovado através de exame de sanidade mental), medíocre, carreirista pretensioso, mas fracassado, vendo, no movimento na-zista, a oportunidade de construir carreira e de poder fazer parte de algo grandioso. Eichmann não possuía nenhum atributo que o destacasse, exceto sua capacidade de organizar e negociar. Não era nenhum pervertido, mas assustadoramente normal –– como dizia ela. Essa normalidade é muito mais apavorante do que todas as atrocidades praticadas pelos insanos nazistas.

Chama-nos a atenção o fato de Eichmann não possuir a capacidade de avaliar as consequên-cias de seus atos, considerava-os instrumentos de autopromoção. Seu déficit moral está na sua incapacidade em avaliar que seus atos, mesmo compatíveis com a ordem jurídica instalada pelo nazismo, eram causadores de destruição humana totalmente gratuita.

Hannah Arendt e toda a sociedade judaica pensavam ser Eichmann um comandante do Ter-ceiro Reich, inteligente e perspicaz, mas era um palhaço com dotes mentais medíocres. Um indivíduo sem pensamento próprio, sem diálogo consigo mesmo, o qual pudesse expandir sua capacidade cognitiva e emocional –– um diálogo entre o eu e o ser que sou eu, capaz de estru-turar uma identidade individualizada. É possível que esse exercício mental todos os comandados de Hitler fossem incapazes de porem em prática, não possuíam a função de pensamento reflexivo voltado para o outro ou para si num diálogo consciencioso. O ego investido pela grandiosidade da causa ideológica, as ações praticadas não constituíam crimes, mas atos do Estado legalmente instituído, era assim que se justificavam as atrocidades praticadas.

É provável que existisse um núcleo de perversos e fanáticos, mas Eichmann achava que nunca havia feito mal a nenhum judeu, não fizera nada errado, tinha o dever de obedecer, mesmo que a ordem fosse para matar o pai se este transgredisse uma ordem do Führer –– não havia pensamento extensivo. Essa função estava bloqueada, dando lugar a um eu tosco e empobrecido.

O ego dissociado e identificado com a causa ideológica banalizou o que não era eu, desper-sonalizou o que lhe era estranho –– os judeus eram os estranhos, assim sendo, não havia crime e toda e qualquer ação se justificava. Esse comportamento é próprio de uma dinâmica de perso-nalidade com um funcionamento mental distorcido do real.

Hannah percebeu com clareza o óbvio, sendo filósofa e acostumada com o exercício do pensar, registrou o que viu indo contra ao que todos esperavam da intelectual, da judia e principalmente de quem vivenciou os tempos sombrios na própria vida. Toda sociedade judaica e intelectual buscava, nos pareceres de Hannah, validação do mal e da culpa atribuída a Eichmann.

Hannah não foi acolhida em suas ideias, foram consideradas benevolentes e equivocadas, sendo execrada do meio intelectual. Mas, em nenhum momento, Hannah isentou Eichmann de sua responsabilidade, entendeu que havia diferentes responsabilidades e atribuiu a cada um sua parcela de culpa.

Apontou, nos seus escritos, a colaboração dos próprios judeus em encaminhar seus iguais para o extermínio e o comportamento de aceitação pacífica da massa judaica. Arendt levanta a hipótese de que, sem a cumplicidade e auxílio dos judeus, o número de pessoas assassinadas nos campos de concentração seria bem menor. Nas palavras de Hannah “para um judeu, esse pa-pel dos líderes judeus, ajudando na destruição de seu próprio povo, é indubitavelmente o capítulo mais negro de toda essa história sombria”.

Sabemos também que situações extremas de medo e terror que comprometem a sobrevi-vência deixam o ser humano em um suspense psíquico –– a possibilidade de pensamento se extingue e o que há é uma espécie de paralisação mental. Quando o horror é instalado, não há simbolização, apenas ação. Podemos exemplificar essa situação quando os Conselhos Judaicos encaminhavam seu povo para a morte, contribuindo na organização e listas para as deportações. Individualmente judeus se apresentavam voluntariamente para embarcar nos trens em busca de seu próprio extermínio. Participavam do ritual de suas mortes, se prontificavam ajudando na cremação ou recolhimento de restos de seus parceiros executados. Pacificamente e resignados, aceitaram o extermínio, não se rebelaram. Estranho! Parece haver uma expectativa, uma espera, não há pensamento e não há reação. Tudo vai terminar, não reagimos –– aguardamos! Estavam todos em suspense.

Essa situação exige uma nova reflexão. Por que a sociedade não aceitou os apontamentos e argumentações de Hannah durante o julgamento de Eichmann? Será que houve também uma suspensão da função do pensar diante do constatado? Vergonha? O mito estava desvendado, o sentimento era de traição e a traidora, naquele momento, era Hannah por mostrar o que não se queria ver. Projeções de sentimentos que não permitiam ser pensados –– foram atuados através da ira remetida a Hannah.

Freud, no Mal Estar da Civilização, escrito em 1930, afirma que toda tentativa de civi-lização é o domínio de pulsões primitivas, o nazismo é a expressão dessas pulsões, orga-nizado legalmente e demonstrado aqui num funcionamento mental de bases pulsionais pri-mitivas. A própria Hannah Arandt ressalta que não há limite para as deformações da natureza humana e Freud completa, quando afirma em O Futuro de Uma Ilusão (1927) que, “apesar dos esforços da sociedade, sempre existirá uma parte da humanidade que, em função de alguma patologia ou excesso de pulsão, permanecerá associal”. Esse pensamento nos faz remeter ao homem no estado de nature-za de Thomas Hobbes. No estado de natureza, os homens utilizam-se de todos os meios para atingir seus desejos, são maus por natureza, é o lobo do próprio homem, possuem um po-der de violência ilimitado. Para apaziguar essa violência, é necessário um acordo entre os in-divíduos para que o mal seja controlado e que possam viver em sociedade, caso contrário a barbárie passa a ser a ordem.

A banalidade do mal está em todos os luga-res, principalmente no cotidiano das pessoas, o mal banalizado deixa de ser notado. Vivemos numa cultura de massa, de comportamentos líquidos, como diz Zigmunt Bauman. Na mo-dernidade sólida, as ameaças para a existência humana eram mais óbvias, os perigos eram mais reais e as pessoas tinham capacidade para se horrorizar frente ao mal. Os riscos de hoje são de outra ordem, estamos todos expostos; a violên-cia se tornou gratuita e banal; não se horroriza mais frentes aos horrores. O que importa é viver a própria vida e, de preferência, sem frustrações. O homem não suporta mais frustrações nos dias atuais, os desejos têm que ser realizados agora e, sendo realizados, tem-se imediatamente um novo desejo que é executado e descartado o que já não comporta dentro desse novo desejo. Buscam-se satisfações imediatas e de qualquer forma –– não se tolera o desconforto das dores, sejam elas físicas ou psíquicas. Frustrações, nem pensar! São extintas rapidamente.

O mal hoje se insere nesse contexto, em que tudo é provisório e descartável, o outro é apenas um meio para a realização dos pró-prios desejos. O mal radical está na violência que ignoramos, na necessidade do outro que fingimos não perceber.

Atingir o equilíbrio entre desejos e a capa-cidade de agir para chegar ao que se quer, nos dias atuais, está difícil de ser alcançado. Ve-mos uma ampliação dos desejos junto com a capacidade de ação, levando à perda do senti-do do ser. Há uma crise do ser em favor do ter, o mundo imaginário, regido pelo princípio do prazer e da realidade, artigo escrito por Freud, em 1911, descreve como o indivíduo se insere no mundo e se protege frente à realidade. Freud expõe que os desejos são adaptados à capaci-dade de ação de cada pessoa, uma forma de se resguardar aos sentimentos de frustrações.

Kant defende a ideia de que o homem pos-sui uma disposição natural ao mal, utiliza sua

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liberdade para satisfações próprias. O mal radical não é um mal específico ou algumas manifesta-ções de suas ações no homem –– é o mal arraigado, o que está agindo permanentemente. O mal, na contemporaneidade, perdeu a característica demoníaca, passou a ser indiferente para quem pratica e para quem testemunha. O mal está na mediocridade e no cotidiano de sistemas buro-cráticos instituídos, nos indivíduos imbuídos pela ideologia com predomínio da ação ordenada e nunca pensada e discutida criticamente. Deparar-se com o mal na mediocridade e na rotina é assustador –– ele pode surgir entre as pessoas mais comuns e nas situações mais corriqueiras.

O dia a dia da atualidade está cheio de demonstrações da natureza humana nessa categoria, como na série da TV americana Breaking Bad (no Brasil exibida pela AXN), em que se retrata a transformação de um homem de reputação ilibada, bondoso, pacato e banal no mais temido e cruel traficante de drogas. Atos cada vez mais estarrecedores, justificados no injustificável –– demonstrando do que o homem é capaz por um objetivo ou ideologia. É uma série repleta de epifanias, metáforas e insights sobre o absurdo da humanidade e em que o ser humano pode se transformar. É a demonstração da natureza vil que a humanidade traz em si.

O TRIBUNAL DE JERUSALÉM

O Tribunal de Jerusalém é a demonstração da ferida narcísica do povo judeu. É evidente a perversidade e o horror do holocausto, mas o desejo de capturar e levar fugitivos nazistas a julga-mento num tribunal judeu sugere muitos significados. A barbárie foi um mal não só aos judeus, mas à humanidade e esse fato não deve ser desmerecido.

O tribunal instituído em Jerusalém foi, sem dúvida, um tribunal com fins políticos ligados à questão sionista e com muitas ilegalidades. Iniciando com o sequestro de Eichmann em território de outro Estado, afrontando e violando a soberania da Argentina. Fato que reforçou discussões sobre o conceito usual de soberania e as relações entre os Estados.

O julgamento de Eichmann poderia se tornar uma peça de espetáculo teatral com grande estar-dalhaço –– essa era a intenção de Bem-Gurion (primeiro chefe do governo de Israel), que o mundo voltasse os olhos para Jerusalém, que o sionismo fosse colocado em questão de forma oportunista. A vingança do povo judeu também estava nesse pacote de intenções. Comportamento esse ado-tado também pelo promotor e pelas pessoas presentes no auditório. O juiz Landau (presidente e condutor do tribunal) evitou episódios sensacionalistas diante das atrocidades apresentadas.

Estava sendo julgado um homem que havia feito mal à humanidade, devendo ser julgado num tribunal internacional e embasado em leis internacionais. Não foram ouvidas testemunhas de defesa, não se admitiu apelação ou a ampla defesa do réu. A execução foi rápida e sumária.

Eichmann foi escolhido como bode expiatório, o julgamento tinha a intenção de expurgação do horror e do sofrimento do povo judeu frente ao holocausto. O veredicto já estava dado antes mesmo do início do julgamento. O crime fora cometido contra a humanidade e o veredicto de-veria ser pronunciado por uma corte que representasse a humanidade.

Hannah recomenda que o fato sirva de reflexão de diálogo com o passado, aplicar penas retributivas ou preventivas pelo mal praticado não possui o poder de impedir a perpetração de novos crimes análogos.

CONCLUSÕES FINAIS

Hannah Arendt é considerada uma importante pensadora do século XX, sua história de vida se confunde com suas obras como, Eichamann em Jerusalém – relatos sobre a banalidade do mal e entre outras como A Origem do Totalitarismo. Procuramos, a partir de seus pensamentos, fazer uma pequena digressão a respeito do julgamento de Eichmann em Jerusalém, discorrendo sobre a banalidade do mal tão bem explorada por Hannah Arendt.

O personagem protagonista dos fatos trouxe-nos a possibilidade de observar a questão do mal arraigado em pessoas comuns e em situações cotidianas vivenciadas por qualquer de nós.

Eichmann, apontado como um monstro nazista, responsável pelo planejamento e condução de milhares de judeus para os campos de concentração e extermínio, apresenta-se como um funcio-nário pronto a obedecer a qualquer voz de comando. Eichmann, um burocrata incapaz de refletir sobre suas ações utiliza-se de clichês em justificativas vazias numa tentativa de resolução para seus problemas de consciência. Hannah encontra, em Eichmann, a capacidade destrutiva banalizada na burocratização; é a capacidade homicida singularizada em ações de Estado legalmente instituído.

Encontramos uma obra polêmica, em que sua autora faz uma análise crítica, não poupando nem mesmo seus pares. Aponta a colaboração dos próprios judeus em seus extermínios, facili-tando o assassinato de milhões deles.

O Tribunal de Jerusalém foi um tribunal de cunho político, com irregularidades jurídicas, bus-cando enfatizar o movimento sionista. Mas não deixou de ter natureza jurídica, cumprindo seu objetivo –– expôs o Estado da Alemanha Nazista para que a comunidade internacional pudesse testemunhar os absurdos praticados contra a humanidade.

Referências:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens

Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

BAUMAN, Zigmunt. Sociedade Líquida. Tradução de

Plínio Denitzien. São Paulo: Zahar, 2001.

Filme: Hannah Arendt. Margarethe Von Trotta, lançado

em 2013.

Filme: Hannibal. Ridley Scott, lançado em 1986.

FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. Edição

Standard Brasileira. Obras Psicológicas Completas. Tradu-

ção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

_____________. O Mal Estar da Civilização. Edição

Standard Brasileira. Obras Psicológicas Completas. Tradu-

ção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

_____________. O Futuro de Uma Ilusão. Edição Stan-

dard Brasileira. Obras Psicológicas Completas. Tradução

de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

WATSON, David. Hannah Arendt. Coleção Mestres do

Pensamento. Rio de Janeiro: Difel, 2001.

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Cadê a Tereza? Faz tempo que ela não me dá banho. A mão da Tereza era leve, parecia o beija-flor que cheirava as flores da mamãe. Ela me deixava tão cheiroso que um dia quase o beija-flor veio me beijar. Ele não veio, mas a Tereza me beijou. Ela me beijava e abraçava e de-pois beijava de novo. E eu desenhava o cheiro dela enquanto ela passava a mão no meu rosto, temos que fazer essa barba hoje, Benjamim. Tá igual espinho. Espinho branco, onde já se viu? De manhã, à tarde e à noite ela me dava um monte de balinhas coloridas, sempre iguais. O gosto não era muito bom, por isso eu não queria comer. Mas ela dizia que era pra dar força pra minha cabeça, aí eu engolia sem mastigar. A Tereza cuidava de mim como se eu fosse um filho. Mulher foi feita pra ter filhos, ouvi vovó dizendo pra mamãe. É obrigado igual a ir na missa de domingo, vó? Ela só olhou pra mamãe espremendo os olhos, a boca feito um arco curvado pra baixo. Vovó falava bastante, mas agora eu não ouço mais a voz dela. Ela foi ficar junto com o vovô. Não sei como, mas lá de cima ela ouve tudo o que eu falo. Você acha que a camiseta vai sair por mági-ca, Benjamim? Levanta o braço direito. Não estou levantando direito, dona Elizabeth? O outro braço. Vamos, antes que a sua mãe chegue. Mamãe foi no circo com o Willian? Seu irmão está trabalhando, como faz todos os dias. Sua mãe também. Mamãe trabalha no circo? Bem que ela podia pedir emprestado o sapato do palhaço. Depois eu devolvia, era só pra mostrar pro Willian que o sapato não combina comigo. Mamãe deve ter ido conversar com o mágico pra ele fazer o papai reaparecer. Mas como será que ele entrou na cartola? Cadê a Tereza, dona Elizabeth? Mudou de cidade faz mais de três meses. Pra onde ela foi? Pra longe. Onde fica o longe? Serven-tia de mulher que não tem filho é limpar chão mesmo. A Tereza não serve só para limpar chão, eu queria ter gritado pra vovó. Mas meu silêncio alto chegou aos ouvidos da Tereza: ela sorriu pra mim com os olhos. Vamos tirar a bermuda, Benjamim. Será que a dona Elizabeth vai fazer aquilo de novo? Que bermuda imunda! Você rolou na terra a tarde toda? Fiz uma casa pro Den-tuço perto das flores da mamãe. A senhora tem mais neve na cabeça do que eu. Está nevando lá fora? Papai Noel deve estar chegando. Outra coisa: a Tereza trata esse homem de um metro e oitenta como se fosse uma criança de sete anos. Assim ele vai continuar babando pelos cantos e rabiscando as paredes da casa até morrer. Um metro e oitenta é mais ou menos que a altura de um avião? Preciso mostrar pro Willian que eu sou grande e forte como o papai. Quem sabe ele para de dizer que eu tenho que ir pro hospital. Hospital é lugar de gente doente, eu fui lá ver a vovó antes do vovô puxar ela pra perto das nuvens. É tudo branco e a comida vem numa tigela de plástico rachado. Vovó não devia gostar daquela comida, por isso estava tão magra. Mamãe disse que ela não conseguia comer porque estava pagando não sei o quê, pecado, ruindade, não lembro. Como vou tirar sua cueca se você está com quase cem quilos? Me ajuda, Benjamim. Não adianta chorar, afasta os pés. Não me force a repetir o que fiz ontem. Passei a mão nas minhas pernas, das listras vermelhas ainda saltava uma coisa doída. A cinta que ela usou estava pendu-rada junto com a toalha. Alguém mexeu nas minhas joias, Carmen. Só pode ter sido esta negra fedida. Tereza era tão cheirosa. Eu desenhava o cheiro dela. Você tem que tomar uma atitude, filha. Fica quieto, senão vou te machucar com a lâmina. Levanta a cabeça, você tem muito pelo aqui no pescoço. Pelo é pra proteger do frio, por isso o Dentuço nunca fica resfriado. Ele é muito velho, só tem pelo branco. Eu tenho mais pelo preto que pelo branco. A vovó usava uma mágica pra sumir com os pelos brancos da cabeça. Mas não durava muito tempo, não. Logo os brancos iam empurrando os pretos e ela tinha que fazer a mágica de novo. Tá ardendo meu olho, dona Elizabeth. Como você é chorão! O que você tem no meio das pernas? Ela sabe o que tenho no meio das pernas. Enfia a cabeça embaixo d’água, Benjamim. Assim, rapaz! Mas eu não consigo respirar, preciso de uma máscara de mergulhar igual uma que vi na televisão. Eu já assisti um monte de coisa legal na televisão. A senhora tem televisão, dona Elizabeth? Eu não peguei joia nenhuma. A senhora me conhece desde que nasceu, dona Carmen, e sabe muito bem que eu sou direita. Eu nem tenho pescoço pra usar essas coisas. Por que você acha que essa preta nun-ca teve filhos, Carmen? Que homem ia sujar o pau com ela? A senhora sempre procurando um

CO

NTO

SA FÚRIA

SEM SOMpor Matheus Arcaro

Matheus Arcaro é formado em Comunicação So-

cial e também em Filosofia. Pós-graduado em História da

Arte. Diretor de Criação publicitária e professor de Filoso-

fia e Sociologia. Além de redator, é também escritor, com

artigos, crônicas e poesias publicados em diversos portais

e revistas. Nas horas vagas atua ainda como artista plásti-

co. O conto “A fúria sem som” foi premiado em 2013 no

concurso OFF FLlP de literatura e faz parte do livro “Vio-

leta velha e outras flores” que será brevemente lançado.

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jeito pra acabar comigo, né, dona Lúcia?! Mas o seu Horácio, que Deus o tenha, não achava a nega aqui fedida. Lave a boca pra falar do meu marido, velha encardida. Ele me procurava quase toda noite no quartinho, a senhora sabe muito bem. Leva o seu irmão lá pra fora, Willian. A Tereza também dava banho no vovô, Willian? Levanta o braço. Deixa eu esfregar aqui, vira. Vira mais. Benjamim, você tomou os remédios da tarde? Cadê a Tereza? Cadê a Tereza? A Tereza contava história enquanto me dava banho. Ela disse uma vez que conheceu o mundo inteiro num dia só. Ela ia de cidade em cidade voando de balão e fotografava tudo lá de cima. Ela me mostrou as fotos no computador do Willian. A senhora já viu as fotos? Mas demorou muito pra ela me mostrar porque ele não queria emprestar o computador. Disse que o computador era pra trabalho, não pra essas coisas que não servem pra nada. Como a gente mede a serventia de uma coisa? A Tereza não sabe roubar nada não, Willian. Eu sempre deixei meus bonecos em cima da cama, no chão, no banheiro e eles sempre estavam lá quietinhos quando eu voltava. Às vezes ela punha em cima do armário, é verdade. Mas nunca sumiu nenhum. Você está me molhando inteira, Benjamim, olha só a minha blusa. Desculpa. Vou estender a blusa aqui no box. Ontem a senhora estendeu na maçaneta, dona Elizabeth, lembra? Ou foi antes de ontem? Eu não quero que a Tereza vá embora, mamãe. Você tem que falar pra vovó que ela não fez nada. Ela cuida de mim como se eu fosse o filho dela. Como um neto, Benjamim. Ela cuida de você como um neto. Dona Elizabeth, a calça da senhora também molhou? Você já consegue entender como é a sua vó Lúcia. Quando ela põe uma coisa na cabeça não há quem tire, filho. Vem, eu vou te dar seu remedinho da noite. Mas a Tereza vai sair assim nesse escuro, mãe? E se o homem do saco pegar ela? E se a menina do Exorcista vomitar verde na cara dela como fez com o padre? Ela vai pegar doença. A Tereza não pegava assim em mim. Eu não pegava assim na Tereza. O que é isso que acontece quando a dona Elizabeth pega em mim? Eu não gosto do que acontece. Não posso gostar. Por que a senhora não é tão branca como a vovó, mamãe? Que pergunta! As pessoas

nascem diferentes, Benjamim. Veja, você não é igual ao seu irmão. Como eu sou, mãe? Você é um homem bom, muito especial. Um anjo de Deus. Dona Elizabeth, não gosto de fazer isso. Eu sinto um negócio estranho, parece que al-guma coisa aqui dentro cresce, cresce, cresce até explodir. Tenho medo. Ai, Benjamim, cala a boca. É só você ficar paradinho aí na parede que eu faço o resto. Mas eu não consigo ficar paradinho, o azulejo está frio. Põe uma toalha nas costas e outra na boca. Benjamim, esta é a Beth. Ela vai cuidar de você como a Tereza cuidava. A partir de agora você tem que obe-decer a Beth, ouviu bem? Fecha a tampa do vaso e senta aí. Isso. Mas a senhora é muito pe-sada pra sentar no meu colo. Vai. Bem-ja-mim! Bem-ja-mim! Já! Já! Para, dona Elizabeth, por favor. Para. Para! Endoidou de vez? Me dá essa lâmina, Benjamim. O que você está fazendo, retardado? Ai! Para, débil mental. Demente fi-lho da puta. Socorro! A senhora nunca mais vai fazer isso comigo. Nunca mais. Nunca... Dona Elizabeth! Dona Elizabeth, a senhora está me ouvindo? Tereza! Tereza, cadê você?

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POEM

AS

A Última Ceia

Há regras à mesacomo em um brinquedode quebra-cabeça.

/ E eu não entendoos dispostos à esquerdados pais.

Restos do pequenoque sentavam ao meio

da mesa (como pratoque se enchee procura lugar entreas pessoas). /

Já não me encaixodepois que aprendi

a olhar de ladoe sair por baixo.

Festim

Jogou copos contraParedes.

Mudou de letra, comcaligrafia e sessõesterapêuticas, dando-se firmeza às mãos.

Rabiscou espelhosnão sendo elesua próprialetra.

Lençóis amassados emarcas de unhasnas costas.

Cheiro de cigarros,bebida, suore incenso.

–– os poucos amigos,dispersos,juravam que viviaem festa. ––

Embrulho

na festa

esgares de assoprosincineram

os fogos

apagadosorrio

(de lado)

fria a velao desejo retorna ao estado

de espera.E eu espero.

E eu estou de parabéns.

A dentadas

Perco amigoscomo

quem perdedentes.

Comoquem

mastiga,perco amigos.

(E também os guardo.deitados sob o sono

do travesseiro,à espera

de impossíveisfadas)

Como quem guarda dentes que perde.

Como quem dói à noite inteira.Como quem

os devora.

Como quema dentadas e com raiva

esperaainda algum

trocoou

esmola.

Outro dia de folia

É certoquenão hánenhumconvite,maschegamoscedo,para ondesempreestivemos:pele,festa emedo.

/ E é a presençaque insiste:

simvocêestátriste./

E o convívio,ele éóbvio, equente.

(Inquietos,seus dedoscontamsozinhosos anoscomo quem conta os passos de dança [e tropeça]por sobrea pele)

Quanto hádepenetrano donode sua própriafesta?

Ilustrações by Leonardo Mathiasflickr.com/leonardomathias

Eduardo Lacerda, autor do livro de poemas Outro dia de folia, nasceu em Porto Alegre em 1982, mas vive

em São Paulo, cidade que ama, desde os dois anos de idade. Cursou Letras, com habilitação em Português e

Linguística, na Universidade de São Paulo, mas não concluiu o curso. Como um legítimo geminiano, também

não conseguiu concluir nada até hoje. Coeditou a Revista Metamorfose e O Casulo – Jornal de Literatura

Contemporânea. Atualmente, é coeditor da Editora Patuá, onde acredita que livros são amuletos. Tem poemas

publicados em revistas eletrônicas e impressas como Entrelivros, Mirante, Ventos do Sul, Cronópios, Germina

e em algumas antologias, como a Antologia Vacamarela e El Vértigo de los Aires (México).Outro dia de folia

foi premiado pelo ProAC 2011 - Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo.

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| 43

AG

END

AS

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Curso: Arte de Escutar Sentimentos - duração 2 meses, terças às 19h, julho a agosto, participação de R$ 90,00 ao mês. Inscrições abertas.Ministrante: Andréa Nícia.

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LITERATURA FILOSOFIA&Verdade – Intersecções entre Filosofia e LiteraturaDiscussão acerca dos limites entre Filosofia e Literatura tendo como cerne o conceito de “Verdade”Diálogo | com Matheus Arcaro (Graduado em Comunicação

e Filosofia) – e Osvaldo Felix (Doutor em Estudos Literários pela

UNESP e professor de literatura)

Data: 16/08/2014 – das 09:30 às 12:30h.Local: Auditório Unidade II do Núcleo Tavola Endereço: Rua Adolfo Serra, 575Informações: www.nucleotavola.com.br/filoInscrições: http://nucleotavola.com.br/matricula/

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