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SUMRIO

SUMRIO.........................................................................................................................2 INTRODUO.................................................................................................................2 1. TURISMO, PATRIMNIO, MEMRIA E COMUNIDADE.....................................7 1.1 Turismo e Patrimnio Cultural e Industrial.............................................................7 1.2 Turismo, Memria e Identidade............................................................................10 1.3 Turismo e interpretao do patrimnio.................................................................16 2. A ESTAO FERROVIRIA...................................................................................19 Abaixo, so descritos os dados obtidos durante a pesquisa, feita in loco, sobre o conjunto ferrovirio do municpio de Presidente Epitcio. ............................................19 2.1 PESQUISA BIBLIOGRFICA SOBRE A HISTRIA DA FERROVIA EM PRESIDENTE EPITCIO..............................................................................................19 2.1. O processo de ocupao do extremo Oeste Paulista ............................................19 2.1.2 As ferrovias no Estado de So Paulo e a Estrada de Ferro Sorocabana.............21 2.2 Identificao dos locais e edificaes relativos ao patrimnio ferrovirio, no trecho estudado............................................................................................................24 2.3 Verificao do estado de conservao das edificaes e locais (estao, ptio, habitaes)...................................................................................................................29 2.4 Verificao do patrimnio ferrovirio em relao ao uso turstico.......................31 2.5 Entrevista com ex-ferrovirios sobre a ferrovia em Presidente Epitcio .............34 2. 5.1 Alimentao...................................................................................................34 2.5.2 Vesturio.........................................................................................................35 2.5.3 Hbitos............................................................................................................35 2.5.4 Religies e celebraes...................................................................................36 2.5.5 Ingresso na EFS..............................................................................................37 2.5.6 Trabalho..........................................................................................................38 2.5.7 Famlia............................................................................................................38 2.5.8 Moradia...........................................................................................................39 2.5.9 Privatizao....................................................................................................39 3. CONDIES DO PATRIMNIO FERROVIRIO EM RELAO A INTERPRETAO DO PATRIMNIO E O USO TURSTICO ................................40 3.1 Conservao do patrimnio ferrovirio de Presidente Epitcio ...........................40 3.2 Interpretao em relao memria coletiva........................................................42 3.3 Interpretao em relao ao uso turstico e uso da comunidade............................44 CONCLUSO.................................................................................................................47 REFERNCIAS .............................................................................................................49 APNDICES...................................................................................................................53 APNDICE B: Roteiro de perguntas para a comunidade...........................................55 APNDICE C: Roteiro de perguntas para ex-ferrovirios..........................................56 Roteiro Geral de Entrevista.............................................................................................56 INTRODUO

3 Atualmente, tem se dado cada vez mais valor para o patrimnio como forma de recontar o passado e torn-lo conhecido pelas geraes recentes e futuras. Isto tem ocorrido com certa freqncia devido a valorizao que a sociedade tem dado ao passado como a outra face da crescente nsia pelo progresso (CHOAY, 2006). E, desde meados do sculo XX, a preocupao pela conservao foi associada com o uso turstico de tais localidades. Apesar de parecer o caminho mais bvio para a preservao associada a um uso econmico, a revitalizao do patrimonial cultural para uso turstico (assim como para o planejamento urbano) nem sempre a soluo encaminhada satisfatoriamente se for adotada de cima para baixo (CUELLAR, 1997, p. 242). At porque, mesmo que o patrimnio cultural edificado se torne uma atrao atravs de um projeto de revitalizao, nem sempre grupos sociais que ocupam este espao so reconhecidos / se reconhecem nestes bens (LEITE, 2002). Logo, percebe-se uma problemtica maior que como valorizar, porque o fazer e se realmente faz sentido esta preservao. Estas perguntas podem ser respondidas, em parte, observando-se aspectos relacionados memria, ao sentido que aquela construo evoca para a comunidade e seu lugar na construo da mesma. Da advm a importncia de se identificar e analisar as diferentes memrias que foram associadas a estes bens como fonte de reconstruo do passado que se quer preservar. Pensando na questo da memria coletiva como parte da construo da identidade de uma comunidade e, conseqentemente, da construo do patrimnio cultural, tomamos como nosso tema de pesquisa o patrimnio ferrovirio paulista. Cabe uma apresentao inicial relativa histria regional paulista e a expanso ferroviria no Estado de So Paulo. Esta expanso nica quando falamos sobre a maneira que surgiram e a velocidade de sua expanso: de 1860 a 1922. O objetivo da criao de vias de transporte ferrovirio, j nas dcadas de 1860 e 70, era transportar a crescente lavoura de caf para o porto de Santos, de onde seriam exportadas para diversos pases. Obviamente, os maiores interessados em descobrir uma maneira mais eficiente de escoar sua produo, e ainda existir a possibilidade de expandir suas lavouras para territrios inexplorados, fazendeiros de diversas regies do Estado no hesitaram em investir na construo de estradas frreas com o intuito de transportar sua produo para o litoral, o que tornaria seu produto mais competitivo (GHIRARDELLO, 2006) Considerada uma das quatro grandes Companhias frreas da poca, a Estrada de Ferro Sorocabana foi fundada em 1872 e seu primeiro trecho foi aberto de So Paulo

4 at Sorocaba, em 1875. A linha-tronco da empresa se expandiu at 1922, quando atingiu Presidente Epitcio, nas margens do rio Paran, sendo este nosso objeto de estudo. Aps anos de uso, as ferrovias entraram em declnio, selado com a privatizao das linhas. Desde ento a degradao do patrimnio ferrovirio se tornou mais evidente do que nunca. Em Presidente Epitcio, a situao no foi diferente, em poucos anos, o conjunto ferrovirio exibia uma deteriorao desoladora. Atualmente, o conjunto no tem utilidade e se encontra abandonado. Com base neste histrico e no potencial turstico da cidade, por que no pensar num uso turstico para este espao e ainda preserv-lo? Se o uso turstico no for vivel possvel transformar o espao num local que seja usufrudo pela comunidade? Qual das duas alternativas mais vivel e traria mais benefcios a cidade? Mais do que isso, entre os moradores do bairro, principalmente antigos trabalhadores da ferrovia, existe o senso comum de que a preservao do conjunto ferrovirio da cidade necessria e urgente, mas os prprios no sabem de que maneira isto pode ser feito, s vem esta tarefa como obrigao das autoridades municipais. O conjunto ferrovirio da cidade preenche requisitos necessrios para tornar este bem passvel de proteo, pois identificado como parte da histria do municpio. Fonseca (2005) deixa claro que as prticas e processos de construo de patrimnios so conduzidos por atores e prticas que atribuem seus valores enquanto patrimnio, justificando sua proteo. Meneses (2008) afirma que necessrio pensar no uso de um bem histrico para a comunidade, sem pensar em seu valor comercial, pois quem deve usufruir deste bem a comunidade, j que a mesma v sentido no bem, e no pessoas que apaream esporadicamente no local, como acontece em localidades tursticas. Com estas concepes, tem-se a memria coletiva que de grande peso no processo de construo de um patrimnio, segundo Barreto (2003) ela o motor fundamental para desencadear o processo de identificao do cidado com sua histria e cultura. Para Halbwachs (apud BARRETO, 2003), ela recompe o passado e as lembranas seriam uma reconstruo do passado usando recursos do presente. No que diz respeito aos diferentes usos que podem ser atribudos a um bem, todas as possibilidades devem ser levadas em conta, principalmente as que incluem o bem estar da comunidade, que tem este bem como parte de sua histria (Menezes, 2008).

5 Assim, forma-se nosso objetivo geral, fazer um inventrio do patrimnio histrico ferrovirio da Estrada de Ferro Sorocabana, no trecho da linha tronco de Presidente Epitcio, a fim de verificar seu potencial como atrativo turstico. Dentro deste objetivo geral, temos alguns especficos: Realizao de pesquisa histrica sobre a ferrovia em Presidente Epitcio e da sua relao com a expanso ferroviria no Oeste Paulista, que remontam ao sculo XIX, recorrendo a diferentes fontes (documentos, mapas, plantas, fontes orais e visuais); Levantamento e anlise da bibliografia sobre os temas afins pesquisa, como: histria da ferrovia no estado e na regio, em particular; histria regional; patrimnio histrico; turismo cultural e ferrovirio; Identificao dos locais e das edificaes relativos ao patrimnio ferrovirio, no trecho estudado; Verificao do estado de conservao das edificaes e locais (estaes, ptios, habitaes), alm do seu entorno; Verificao das condies do patrimnio ferrovirio em relao ao uso turstico; Cabem alguns comentrios sobre a metodologia adotada. Para um

aprofundamento acerca dos temas comentados foi realizada uma pesquisa bibliogrfica sobre os temas afins a pesquisa: histria da ferrovia no estado de So Paulo e na regio, em particular; patrimnio histrico; turismo cultural e ferrovirio, que foi verificado tanto junto bibliotecas universitrias (seja da rede de bibliotecas da Unesp, da Unicamp ou USP). Tambm houve coleta de informaes sobre a histrica local e de povoamento para esta regio do Novo Oeste Paulista. Quanto ao inventrio patrimonial, algumas consideraes gerais so relevantes. Inventrio a discriminao organizada e analtica de todos os bens e valores de um patrimnio, num determinado momento, visando atender uma finalidade especfica. Tambm um conjunto de aes de pesquisa e documentao voltadas para a identificao e o conhecimento de um determinado bem, territrio, manifestao cultural etc; ou seja, realizado um mapeamento a partir de pesquisa e documentao. No caso do nosso estudo, foi elaborado um instrumento de pesquisa previamente planejado, de modo a ser realizada a catalogao do patrimnio industrial relativo ferrovia. Este instrumento de pesquisa, que uma ficha patrimnio,

6 considerou os seguintes itens: identificao, histria da edificao, tcnicas construtivas, plantas e/ou fotos das edificaes, estado de conservao e usos. Seguimos aqui a metodologia de inventrio patrimonial proposta por Leila Diogoli (1986). Utilizamos a metodologia de interpretao do patrimnio como base de critrios para verificarmos as condies de uso turstico. Alm disso, quanto pesquisa documental, foi feita uma pesquisa histrica sobre o municpio, incluindo a verificao na Prefeitura Municipal de Presidente Epitcio, a fim de saber da existncia, ou no, de um levantamento patrimonial, e demais informaes sobre edificaes, localizao e proprietrios atuais. Tambm obtivemos documentos textuais e visuais: fotos, imagens e textos relativos ao patrimnio ferrovirio e seus usos antigos conseguidos com antigos moradores, extrabalhadores, rgos municipais ou acervo remanescente da E. S. Sorocabana. Outro instrumento utilizado foi a coleta de fontes orais sobre o patrimnio, para tanto, utilizamos o registro de depoimentos para determinao dos usos antigos do patrimnio. Baseando-se nas tcnicas de histria oral (ALBERTI, 2004 e QUEIROZ, 1988), fizemos entrevistas temticas com 10 pessoas. Houve uma pr-seleo dos entrevistados em funo do tema da pesquisa (os moradores mais antigos e exfuncionrios da ferrovia), e um roteiro de entrevista previamente elaborado para orientao. Por fim, realizamos a anlise dos resultados, efetuando-se primeiro a tabulao dos dados levantados atravs dos questionrios. Em seguida, nossa anlise tomou a bibliografia levantada e lida diretamente sobre o assunto pesquisado e das temticas afins. Os captulos sero divididos em 3 partes, sendo a primeira destinada pesquisa bibliogrfica, a segunda exposio dos dados coletados ( em entrevistas, pesquisa bibliogrfica e documental) e a ltima parte destinada anlise dos dados coletados com base na bibliografia pesquisada. A pesquisa visa tambm, a proteo da memria, do patrimnio e do conhecimento das futuras geraes sobre esse passado, mostrando a importncia da proteo desses bens como forma de preservar uma identidade para o futuro, com possibilidade de se tornar um fator de renda.

7 1. TURISMO, PATRIMNIO, MEMRIA E COMUNIDADE 1.1 Turismo e Patrimnio Cultural e Industrial O patrimnio cultural est constitudo por tudo que faz parte do humano, sejam estes naturais ou culturais, necessitando ser preservado caso deseje-se que acontea um turismo histrico-cultural. Mesmo sabendo da necessidade de conservao do patrimnio a sua valorizao comea a acontecer no fim de 1970 como um fator de memria das sociedades, de acordo com Funari (2003). O que determina o valor de um bem enquanto patrimnio? FONSECA (2005) afirma que as prticas e processos de construo de patrimnios so conduzidos por atores e prticas que atribuem seus valores enquanto patrimnio, justificando sua proteo. Para entender melhor esse processo a autora se baseia na noo de valor para refletir sobre o assunto, que por sua vez se baseia em um artigo de Giulio Carlo Argan:

uma vez que as obras de arte so coisas s quais est relacionado um valor, h duas maneiras de trat-las. Pode se ter preocupao pelas coisas: procur-las, identific-las, classific-las, conserv-las, restaur-las, exibi-las, compr-las, vende-las; ou ento, pode-se ter em mente o valor; pesquisar em que ele consiste, como se gera e transmite, se reconhece e se usufrui. (1992, p.13 apud

FONSECA, 2005, p.3) Para que haja a proteo, necessrio que se desenvolvam polticas de preservao, mas, ainda de acordo com a autora, estas no seguem a linha de procurar o valor de um bem, pois existe uma grande presso para que o mesmo permanea protegido sem a devida noo de seu valor. necessrio questionar quais so os critrios que selecionam e justificam a proteo de um patrimnio, identificar quais atores esto envolvidos e os objetivos que legitimam este trabalho. Quando a questo o patrimnio, Gonalves (1990) afirma que o valor que permeia um conjunto de bens, independendo de seu valor histrico, o valor nacional, que fundamentado em um sentimento de pertencimento a uma comunidade, tais bens confeririam a realidade e legitimao da comunidade imaginada pela nao, por exemplo. Sabemos que obrigao do poder pblico tutelar um bem, no sentido de proteg-lo, que seja relevante a comunidade e que, na medida em que so considerados de interesse pblico se tornam propriedade da nao (no caso de nosso objeto, propriedade da cidade), ao mesmo tempo em que mantm seu carter de mercadoria. O

8 meio mais utilizado para a proteo de um bem o tombamento, que efetiva a proteo de bens culturais pelo Estado, baseando-se num sistema de valores por ele atingido que se apia no decreto-lei n 25 de 30.11.37, em conjunto com outras leis, garantindo a proteo e o acesso dos cidados aos bens com qual se identificam. Porm, a proteo fsica do bem, segundo FONSECA (2005) no garante a sustentao de uma poltica pblica de preservao, a leitura desses bens pressupe valores e significaes que justificam sua preservao e estes devem fazer sentido no somente aos tcnicos que o tombaram, mas principalmente, para as pessoas diretamente afetadas por ele. Esta viso, de que o bem deve ser percebido por quem o recebe, no a poltica normalmente utilizada, mas analisar como a comunidade recebe um bem tombado extremamente vlido, pois se um patrimnio fizer sentido para a comunidade, alm de existirem mais chances de que este patrimnio continue preservado, esta uma maneira de abrir novos horizontes para quem recebe este bem, pois torna o cidado um consumidor em potencial de bens culturais, j que a partir do momento em que ele v sentido em um bem histrico ele passa a observar outros patrimnios de maneira diferente, no mais como um prdio velho que no tem utilidade, por exemplo. Esta identificao muito importante, devido falta de uma base cultural comum a todos no pas, de acordo com a autora, qualquer tentativa de democratizar uma poltica de preservao tem chances enormes de fracassar sem levar em conta estes aspectos. Tal processo de identificao no to simples, ele possui uma dinmica prpria, por mais previsveis que possam parecer os efeitos de um tombamento, sua recepo tem dinmica prpria em dois sentidos:[...] no da mutabilidade de significaes e valores atribudos a um mesmo bem em diferentes momentos histricos mudana que diz respeito inclusive s prprias concepes do que seja histrico, artstico e etc.; segundo,no da multiplicidade de significaes e de valores atribudos, em um mesmo momento e um mesmo contexto, um mesmo bem, por grupos econmica, social e culturalmente diferenciados. (FONSECA, 2005, p. 10)

Esta diferena citada pela autora perfeitamente clara quando observamos que pessoas que freqentam museus, por exemplo, tm uma posio muito mais favorvel ao tombamento de um prdio histrico do que pessoas que no possuem este hbito e enxergam, na maioria das vezes, um prdio histrico com um prdio velho sem utilidade.

9 Gonalves (1996), afirma que [...] os indivduos, assim como seus propsitos, aes e contextos, so culturalmente moldados, sendo assim, perfeitamente possvel elaborar uma ao que molde a aceitabilidade da comunidade receptora em relao ao bem tombado. Aceitar este patrimnio, no significa necessariamente transform-lo em algo comercial, isto depender muito da poltica de preservao adotada e de qual ser o pblico-alvo da mesma. Para Meneses (2006) convm fazer outros usos com o patrimnio, que no o econmico, que gera lucro, entre estes usos, est a utilizao do patrimnio em algo que seja til a comunidade diretamente ligada a este bem, tal necessidade pode ser detectada quando se comea um projeto de interveno pela base, ou seja, consultando primeiramente a comunidade local. Dentre as possibilidades de uso de um bem podemos vislumbrar como alternativa, entre muitas opes, o planejamento e possvel desenvolvimento do turismo. Barreto (2003) nos coloca que o turismo histrico est diretamente relacionado com o legado cultural que no inclui apenas os bens tangveis, mas tambm os intangveis, estando assim ligado ao patrimnio cultural como atrativo. Podendo os recursos serem bens tombados ou no. Deve-se apenas ter cuidado com a sua utilizao, pois como Funari (2003) cita, o patrimnio hoje no tem a finalidade de apenas representar o passado, mas muitas vezes apresentado como mercadoria cultural por parte do poder pblico e como fator de qualidade de vida, pela sociedade. Sua utilizao combina com a atual definio de que o patrimnio deixou de ser definido apenas pelos grandes prdios que abrigavam reis, condes e marqueses passando a ser definido desde o conjunto de todos os utenslios, costumes e crenas s formas de vida cotidiana de todos os segmentos que compem a chamada sociedade (BARRETO, 2003). Segundo Le Goff (apud BARRETO, 2003), a conservao do patrimnio histrico se d pela conservao e recuperao da memria, a qual os povos mantm sua identidade individual ou coletiva. Para Lemos (2004), o termo preservar deve ser aplicado necessariamente com toda a amplitude de seu significado. Para o autor, a ateno deve estar voltada somente s irreversveis alteraes psicossociais ou sciotnicas ocorridas nos variados segmentos do panorama cultural brasileiro, provocadas por fatores externos. Barreto (2003) acrescenta ainda que a memria coletiva o motor fundamental para desencadear o processo de identificao do cidado com sua histria e cultura. Hoje feita reverncia ao passado, pois se compara muito o vivido no presente

10 com o modo de vida passado, ela acredita que o passado invocado no presente pelo desleixo dos dias atuais sendo comparado com a formalidade existente no passado. Cabe ressalvar que h algumas dcadas tem sido colocada a idia de patrimnio industrial, que leva em considerao as atividades econmicas contemporneas. Esta noo surge na Inglaterra, onde desde a dcada de 1950, fbricas e minas foram listadas pelo Conselho Nacional de Arqueologia; e estudiosos tem feito levantamentos e anlise sobre vestgios industriais (MENDES, 1991), concebendo os patrimnios industriais como os bens fsicos relativos atividade da indstria humana, assim como os ofcios e prticas relativos a estes bens. No Brasil, o esforo massivo de identificao de um patrimnio nacional e da sua proteo pelo Estado marcado pela fundao do SPHAN, em 1937. Primeiramente, as noes foram centradas nas idias de civilizao e tradio, conforme mostra Jos Gonalves (1988), e depois nas idias de bens culturais e diversidade cultural como indicadores no processo de identificao de um carter nacional brasileiro. A idia de patrimnio industrial, como vestgio do nosso desenvolvimento, materializou-se no tombamento das estruturas fsicas remanescentes da Real Fbrica de Ferro So Joo de Ipanema (Iper, SP) pelo SPHAN, em 1964 (OLIVEIRA, 2007). De modo que nossa proposta de estudo das edificaes e memria ferroviria enquadra-se nas propostas mais recentes de estudo do patrimnio industrial. Mas, para que a proteo de qualquer patrimnio ocorra preciso procurar de que maneira este bem faz sentido a uma comunidade, para isto, torna-se necessrio analisar a memria coletiva e a identidade que ela ajuda a formar. Este um processo muito rico e interessante, como veremos a seguir.

1.2 Turismo, Memria e Identidade Segundo Bosi (1983), o passado o resultado da ao da memria. Ela tem como funo o conhecimento do passado, sendo esta a faculdade pica por excelncia, sendo a memria individual definida pelo o que ela considera de seu ponto de vista pessoal e pela memria coletiva, na qual a memria compartilhada por um grupo ou de uma sociedade. Para Halbwachs (apud BARRETO, 2003), a memria coletiva recompe o passado, a lembrana seria uma reconstruo do passado usando recursos do presente,

11 ancorado por reconstrues construdas anteriormente, ainda segundo o autor, devemos entender a memria como um fenmeno coletivo e social, construdo por vrios atores e sujeitos a flutuaes, transformaes e mudanas constantes. Como elementos constituintes dessa memria coletiva, POLLAK (1987) escreve que em primeiro lugar temos os acontecimentos vividos pessoalmente, em seguida, os elementos que ele caracteriza como vividos por tabela, so acontecimentos vividos pelo grupo com a qual a pessoa se identifica, mas que no houve necessariamente sua participao, porm, perfeitamente possvel que ocorra uma identificao com um determinado evento e a pessoa acabe tomando para si, como experincia prpria, este evento no qual no esteve presente. Em conjunto com estes acontecimentos, a memria constituda por pessoas e personagens, que se aplicam a explicao acima, juntamente com lugares, que esto na memria, particularmente ligados a alguma lembrana, que no necessariamente tem suporte no tempo cronolgico, como um local de frias na infncia, sem saber a data exata de quando aconteceu. Podemos dizer, ainda de acordo com Pollak (1987), que a memria coletiva um fenmeno construdo, ela seletiva, pois somente as lembranas mais relevantes, traumticas ou no, sero lembradas e sua organizao se d em funo das preocupaes pessoais e polticas do momento em que ela construda. J em relao a memria individual, existem tambm processos inconscientes, sem esquecer que ela tambm construda, que ajudam na construo de uma identidade, seus trs elementos essenciais so: - unidade fsica: sentimento de fronteiras fsicas, pertencimento a um grupo; - continuidade dentro do tempo: no sentido fsico da palavra, mas tambm no sentido moral e psicolgico ( POLLAK, 19887) e, - sentimento de coerncia: diferentes elementos formadores do indivduo unificados. A juno desses trs elementos deixa claro que a memria um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto coletiva como individual, na mesma medida em que fator preponderante do sentimento de continuidade, de coerncia de um indivduo e construo da memria de um grupo. Obviamente, necessrio saber diferenciar quais memrias realmente pertencem a um grupo e quais foram tomadas como prprias, mesmo no o sendo, tal fato ocorre com mais freqncia em memrias coletivas, como exemplo, o autor cita o apelo do

12 general De Gaulle, que aconteceu em 1940. Em entrevista feita nos anos 50, poucos seguidores disseram ter ouvido pessoalmente o general, mas, se hoje fosse feita uma entrevista com seus antigos seguidores, o nmero de pessoas que o escutaram pessoalmente seria muito maior. Temos este fato claro nas entrevistas feitas com antigos ferrovirios em Presidente Epitcio, grande parte dos trabalhadores aposentados que ainda residem na cidade veio de outras localidades em razo da existncia da linha, a maior parte no estava presente na inaugurao da estao, eles descrevem o evento como se estivessem presentes naquele momento. A perda da autenticidade tambm um fator relevante que deve ser ressaltado, mais especificamente a populao local, que deve olhar e considerar a cultura hospedeira como a imagem de quem eles so. Muitas vezes a tentativa de marcar a regio com as caractersticas locais e tnicas faz com que alguns elementos se excluam, esvaziando o presente de prticas culturais (BARRETO, 2002). Acrescentando ainda que para Halbwachs (1990) distinguem-se duas memrias: chamaramos uma de interior ou interna e a outra exterior, uma memria pessoal e a outra social distintamente; com a primeira se apoiando sempre na segunda. visvel a importncia da conservao e preservao do patrimnio histricocultural para a humanidade e para o desenvolvimento do turismo histrico-cultural, porm observamos que tambm deve ser levada em considerao a participao da populao local. O pressuposto de turismo sustentvel responde a estas expectativas de preservao, uso turstico e participao. O uso turstico sustentvel definido, segundo a Organizao Mundial de Turismo (OMT), como aquele que satisfaz as necessidades dos turistas atuais e das regies receptoras enquanto protege e aumenta oportunidades no futuro. Desta forma, acreditamos estar correta a afirmao de Barreto (2002) quando diz que a relao nativo, estrangeiro e turistas estabelecem conexes, seja com a natureza, com o lugar ou entre si, definindo um tipo singular de cultura ao passo que direciona para alm de suas fronteira e faz-se as caractersticas regionais. Entendemos que necessrio promover o turismo sustentvel, pois assim ocorrer a conservao do patrimnio histrico que diz respeito memria de uma determinada populao. Para isso necessrio respeitar alguns elementos. Dentre os quais os principais so a capacidade de carga local, que deve ser dimensionada para evitar que o turismo degrade o que o local oferece como atrativo e a populao que vivia ou ainda vive nas localidades utilizadas. As referncias que do sentido ao patrimnio natural materializado vm da memria do povo como sertanejos,

13 camponeses e pescadores como conclui Funari (2003). Com isso podemos compreender melhor o fato da utilizao da histria oral, como fator relevante no estudo do histrico do patrimnio na regio oeste paulista que acaba por se basear no relato das lembranas vividas anteriormente pelos ex-trabalhadores, moradores e instituies a propsito da memria ferroviria em Presidente Epitcio.

Inevitavelmente o patrimnio cultural, ambiental e paisagstico a mola propulsora de qualquer iniciativa quando se fala de turismo nos centros mdios e pequenos, ou seja, na quase totalidade do territrio nacional (FUNARI, 2003, p. 98).

Atravs dessas memrias, edificaes desativadas, como o caso do objeto em questo, podem ser reavivadas, ainda que no sejam utilizadas como foram outrora, passam a ter sentido tambm para as pessoas que moram no local, mas no a vem como patrimnio. Isto possvel, segundo Leite (2002) quando damos sentidos espaos pblicos, que podem ser atribudos e absorvidos por quem no tem contato direto com o patrimnio, mas passa a utiliz-lo. Esta idia de revitalizao do patrimnio, segundo o autor, no nova e nos remete, com as devidas propores, ao princpio higienizador de Haussmann, que tem por objetivo adequar as cidades s demandas e aos fluxos internacionais de turismo e consumo urbano (LEITE, 2002). Aplicando-se ao nosso contexto, a idia reapropriar culturalmente o patrimnio e recriar sentidos e usos do mesmo, criar sentidos de lugar e pertencimento nestes espaos pblicos no utilizados. Mas, como possvel modificar a imagem, uso e representao de um local? Uma tendncia observada em todo o mundo a transformao de locais considerados patrimnio, mas sem uso aparente, em locais de consumo e entretenimento, transformando reas consideradas perigosas em centros de lazer. Podemos citar como um exemplo desta tendncia, um artigo baseado na tese de doutorado Leite (2002), sobre os usos dos espaos pblico do Bairro do Recife, em Recife PE, uma pequena ilha pertencente cidade cuja rea era marginalizada e no utilizada que possui grande valor arquitetnico e histrico por estar povoada desde a poca de Nassau e ter sido reestruturada, no sculo XIX, segundo o princpio de Haussmann. A prefeitura da cidade, em parceria com outras instituies, promoveu a revitalizao do Bairro e deu um novo sentido ao local, colocando policiais, promovendo um calendrio de eventos

14 para o bairro e estimulando a abertura de bares e locais de lazer, ocorreu o que chamamos de gentrification, um enobrecimento da rea, que passou a ser freqentada por outro tipo de pblico que no os considerados marginais. A revitalizao do bairro positiva, pois de acordo com Harvey (1992), ... a estetizao da paisagem urbana passa a ser a forma predominante de recuperar o sentido dos lugares e da tradio no contexto da acumulao flexvel e da compreenso tempoespao. Mas o autor reconhece que, apesar de positivo, esta estetizao traz o que ele chama de monotonia, pois tais espaos acabam se patrimnio mais original ou autntico. Apesar desse ponto contra, possvel repensar outros usos para o patrimnio revitalizado, o que Leite (2002) chama de contra-uso, como no exemplo do artigo do autor, a revitalizao pode dar outro sentido ao bem, que no o utilizado pelas polticas de patrimnio oficiais, que tratam edificaes como bens preciosos, mas sim uma utilizao que faa mais sentido aos moradores locais, como ocorreu no Bairro do Recife que sofreu o processo de gentrification e gerou uma diviso entre a rea que se tornou nobre e a sua contra-rea, a Rua da Moeda, que no estava voltada para as massas e o simples consumo e era vista como um plo de diverso alternativo que mostrava as razes da cultura pernambucana e era freqentado principalmente por moradores, o que mostra que o patrimnio pode e deve ser usufrudo pelos moradores, mesmo que esse usufruto no tenha acontecido propositalmente. Ainda segundo Leite, quando estes espaos de contra-uso surgem, em razo do processo de gentrification, eles representam uma forma simblica de reivindicao, por parte dos moradores, do direito de pertencer cidade, de estabelecer itinerrios prprios, de fazer um espao pblico contemporneo, enfim um legtimo espao poltico de diferena (LEITE, 2002) Meneses (2007) partilha de ponto de vista de que os moradores devem os maiores usufruidores do espao urbano, que inclui suas edificaes histricas, de acordo com o autor, todo projeto relativo ao uso do patrimnio deve comear pela base, tendo como principal preocupao o habitante, pois ele sim [...] deve ser o fruidor da coisa boa. Logo, se for melhor e mais til para os moradores que se faa uma escola, por exemplo, e que esse seja o meio de conservar o patrimnio e sua memria, por que no faz-lo? No se deve pensar somente no lucro que um patrimnio traria se fosse tornando mercadorias aps as intervenes numa espcie de mercado de autencidade em que cidades disputam qual

15 implantado um bar, um museu ou um restaurante, no convm pensar em algo que gere lucro, pois este certamente no se torna um patrimnio voltado para usufruto dos moradores quando envolve dinheiro. Adicionando ainda, que o turismo um fenmeno extremamente complexo e mutvel que pode operar de mltiplas formas e nas mais diversas circunstncias, dificultando entendimento por meio de apenas uma perspectiva terica, Barreto (2002) explica aqui o fato dos vrios pontos de vista a respeito de assuntos relevantes a este que a priori parecem sentidos como coadjuvantes, mas que se estudados mais a fundo percebe-se que quase tudo relevante no que diz respeito a passado e memria.O patrimnio histrico uma vertente particular da ao desenvolvida pelo poder publico para a instituio da memria social. O patrimnio se destaca dos demais lugares de memria uma vez que o reconhecimento oficial integra os bens a este conjunto particular aberto s disputas econmicas e simblicas, que o tornam um campo de exerccio de poder. (RODRIGUES, 1996, p. 02).

Entendemos assim como a autora quis demonstrar que o patrimnio vai alm do testemunho do passado, um retrato do presente, so possibilidades polticas de grupos sociais expressas em face da herana cultural, nos bens que fazem o histrico da sociedade. Formando assim uma identidade local. Segundo Queiroz (1989), identidade algo muito diverso, revela que os integrantes de uma sociedade partilham do mesmo patrimnio cultural do qual se origina um conjunto de valores e de crenas que os tornam sui generis. A identidade pode ser percebida individualmente ou em grupo, onde o grupo pode representar a juno de varias identidades individuais ou at ser influenciada por outros grupos. As pessoas passam a perceber que a identidade uma construo social. Dessa forma possvel concluir que os modos de agir e de pensar so reflexos dos costumes de uma comunidade. Estes so representados pelas danas tpicas, festas regionais, culinria, artesanato, crenas religiosas, em um conjunto de hbitos comuns aos moradores de uma determinada regio, constri-se a identidade cultural que representa os valores e a histria de um povo. A identidade cultural de uma populao constituda tambm atravs da preservao do Patrimnio Histrico. Este patrimnio deve ser visto como um grande acervo, que o registro de acontecimentos e fases da histria de uma cidade. A

16 indiferena predominante nas dcadas passadas vem dando lugar a uma tendncia de valorizao do patrimnio (SIMO, 2001). Esta discusso sobre identidade e patrimnio remete-nos a pensar em nossa proposta de levantamento do patrimnio e como ele pode ser representativo para a constituio de uma identidade histrica para a comunidade local. Isto , de uma identidade que poderia ser reconhecida nas edificaes e demais estruturas fsicas resultantes da atividade ferroviria. Logo surgem os eventos como forma de memria viva da cidade, de carter ideolgico, uma memria coletiva conservada. Para Funari (2003), as festas dos santos constituem-se num dos principais atrativos tursticos do Brasil tanto em grandes centros como nas cidades mais humildes.Diferentes dos monumentos e demais equipamentos urbanos, dotados de valor histrico, os eventos representam a memria viva das cidades. So agentes formadores de um novo ethos social. [...] O turismo um dos componentes externos que afetam as comunidades locais: um vetor poderoso das mudanas econmicas; funciona como elemento indutor de novos hbitos, e a implantao de infraestrutura turstica chega a ter grande impacto ambiental. (FUNARI, 2003, p.53 e p. 93)

De acordo com Barreto (2003), mesmo autores que criticavam o turismo por seus aspectos predatrios da natureza, como Nathieson e Wall (apud TULIK 1990, pp 68-69), admitiram, j na dcada passada que o turismo estimulava a existncia e a reabilitao de stios histricos, construes e monumentos, por meio de sua transformao em recurso recreacional, e que tambm propiciava a revitalizao de atividades tradicionais de reas em declnio, mantendo a estrutura e as caractersticas tradicionais. Para que as caractersticas tradicionais sejam mantidas, alm da pesquisas sobre o tema feitas dentro da prpria comunidade, existe uma interpretao sobre este patrimnio antes de transform-lo no que se deseja.

1.3 Turismo e interpretao do patrimnio Deslocar-se e manter-se temporariamente em outro local que no o de moradia considerado turismo. E, por se tratar de um fenmeno multidisciplinar, difcil uma definio com um contedo to abrangente quanto o turismo. Beni (1998) destaca cinco elementos que qualificam esse fenmeno: viagem ou deslocamento, permanncia fora

17 do domiclio, temporalidade, sujeito do turismo e objeto do turismo. Um elemento ligando-se ao outro, completa-se o fenmeno. Ainda, segundo o autor, o homem se situa no centro de todos os processos que nascem do Turismo, [...], dando origem s vrias atividades econmicas causadas por ele (BENI, 1998, p 39). Voltando ao passado, a Revoluo Industrial, que foi responsvel pela viso romntica dada ao tombamento e ao patrimnio, tambm responsvel pela viso que temos do Turismo hoje em dia (vontade de deslocamento, lazer e etc). A partir do estabelecimento da jornada de trabalho e de momentos de folga, surgiu a necessidade de ocupar esse tempo ocioso de forma prazerosa e com momentos de lazer. E uma dessas formas fazendo turismo, viajando e conhecendo lugares que fogem rotina diria. Krippendorf (1989) afirma que est nas razes da sociedade moderna industrial a necessidade de viajar. E Urry (1999, p 19) diz que ser turista uma das caractersticas da experincia moderna, sendo assim, torna-se imprescindvel ao homem fugir das condies rotineiras, manter-se em equilbrio atravs de contrastes (viagem / rotina). Para que isto fosse possvel, a sociedade industrial criou condies para desenvolvimento do turismo, como por exemplo, o aumento da remunerao, diminuio das horas trabalhadas, invento do automvel e de outros meios, avano das comunicaes, abrindo novas necessidades e possibilidades ao homem. O turismo e o lazer, assim so necessidades criadas pelo homem moderno, a terapia da sociedade que mantm o mundo em funcionamento (KRIPPENDORF, 1989). O turismo cultural cumpre bem esse papel, pois oferece ao turista possibilidade de fugir da rotina, de vivenciar uma cultura diferente da sua. O turismo cultural mostra contedos e histrias que so desconhecidos ao turista, mas que podem fazer parte de sua histria por inmeras razes ou para simplesmente conhecer e, reforando, se desligar do que lhe comum, rotineiro. Alm disso, o turismo pode ser encarado como um instrumento da preservao dos valores culturais, fazendo com que os cidados se apropriem da cidade e ocorra uma renovao do esprito cvico e orgulho pelo lugar (BARRETO, 2003). Acontecendo isso, as pessoas se preocuparo em preservar sua histria, atravs seu patrimnio e de pass-los a seus descendentes. possvel que isto possa ser associado a um retorno econmico e melhora na qualidade de vida da populao. O patrimnio industrial tambm um patrimnio cultural. E tal qual todo patrimnio, pode ser definido como tudo aquilo que constitui um bem apropriado pelo

18 homem, com suas caractersticas nicas e particulares (FUNARI, 2003). Sua importncia para o turismo pode ser analisada a partir do momento que um local passa a ser interessante, pelo olhar do turista, ampliando as possibilidades de uso e preservao. A interpretao deste patrimnio de relevante importncia para que isso ocorra de maneira efetiva. Segundo Murta (1995), interpretao do patrimnio um processo que tem como objetivo adicionar valor experincia de um lugar, por meio da proviso de informaes e representaes que realcem sua histria e suas caractersticas culturais e ambientais. Este um elemento essencial conservao e gerenciamento do patrimnio, pois orienta o fluxo de visitantes e visa a proteo do objeto de visita. O objetivo geral , portanto, aumentar a compreenso publica do tema ou ambiente, induzindo a atitudes de respeito e proteo. A interpretao do patrimnio proporciona vrios benefcios para a gesto de locais histricos, tais como: Mostrar aos visitantes porque o local de importncia patrimonial tem valor para eles, para a comunidade e talvez valor regional ou nacional; Trazer mais visitantes e possibilitar a repetio das visitas, proporcionando aumento da renda local; Ajudar os visitantes a criarem os seus prprios caminhos na experimentao e aprendizado sobre um lugar e sua histria. Desta forma, evidente que no se pode ter turismo patrimonial sem o uso da interpretao, pois este dependente da histria do local e da disposio que o visitante tem de viajar para ver, aprender e experienciar o lugar, j que de acordo com VERESKA (2003), sem interpretao, os lugares de importncia patrimonial so como conchas vazias de oportunidades perdidas.

19 2. A ESTAO FERROVIRIA Abaixo, so descritos os dados obtidos durante a pesquisa, feita in loco, sobre o conjunto ferrovirio do municpio de Presidente Epitcio.

2.1 PESQUISA BIBLIOGRFICA SOBRE A HISTRIA DA FERROVIA EM PRESIDENTE EPITCIO

2.1. O processo de ocupao do extremo Oeste Paulista

Carta geogrfica de So Paulo, 1945 Fonte: Acervo documental do Projeto Memria do Povoamento no mdio rio Paran

Um ltimo aspecto a ser considerado relativo ao processo de ocupao do extremo Oeste Paulista. Desde os trabalhos de Milliet (1982) e Monberg (1984), estudase a ocupao do Oeste Paulista como diretamente associada expanso da cultura do caf para a Alta Paulista: o caf estimulou a expanso ferroviria (trilhos da Alta Sorocabana e Alta Paulista) e permitiu a fundao dos municpios na regio assim se

20 explica a fundao de Ouro Verde (metfora da riqueza daquele produto), em 1945. Trabalhos como o de Odilon Matos (1974) aprofundam a histria da ferrovia paulista (e seu avano para o oeste), mas sempre em funo desta dependncia com a cultura cafeeira. Ressalte-se a importncia da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, cuja linha frrea parte de Campinas a Tup, cujo projeto de se estender at as barrancas do Rio Paran, motivou um empreendimento imobilirio que em 1945 formaria o loteamento urbano de Panorama. Conforme Abreu (1972) e Godoy (2002) afirmam, destacou-se ainda a extenso das linhas frreas da empresa Sorocabana, que se iniciou em Sorocaba (1870), passando por Botucatu (1889), Salto Grande (1909), Assis (1914), Presidente Prudente (1919) e terminou no Porto Tibiri (1922); alm da extenso desta no ramal que cortaria o Pontal do Paranapanema, fundando as estaes de Teodoro Sampaio, Euclides da Cunha e Rosana, num projeto (inconcluso) de terminar em Dourados (MS) (Leite, 1998). E a expans4o das linhas frreas teria sido uma das principais causas do deslocamento das pessoas: seja para trabalhar na expanso da linha frrea ou porque direcionou o loteamento de terras para o trabalho agrcola. A ferrovia estabeleceu uma relao econmica positiva com a via fluvial, tanto para transporte de gado, madeira, produtos agrcolas e mantimentos, quanto de deslocamento das pessoas. Viabilizando no apenas os loteamentos urbanos mais distantes da ponta da ferrovia (em Presidente Epitcio ou Trs Lagoas), mas tambm intensificou a derrubada de mata e o cultivo agrcola, em meados do sculo XX. Posteriormente, a ocupao motivada pelo caf dar lugar a outras culturas. Nos anos 1940, conforme Matos (1974), na regio da Alta Paulista (cujo centro produtor foi Marlia), a policultura marca a produo agrcola na Alta Sorocabana apesar da produo expressiva em Presidente Prudente. Um estudo de Dirceu Matos (1954) sobre a produo agrcola na regio mostra que houve o cultivo de produtos para o comrcio como algodo (a regio do Oeste Novo Paulista chegou a ser a ter a maior produo paulista de 1946 a 1950), arroz, amendoim, mamona e mandioca; ou ainda de produtos para comrcio local ou subsistncia, tais como banana, milho, feijo. E, ainda na primeira metade do sculo XX, iniciou-se um processo de extrao de madeira que partia do entorno dos atuais municpios de Trs Lagoas (MS) e de Presidente Epitcio (SP) e foi estendendo-se ao longo do rio Paran nas dcadas seguintes, tanto subindo quanto descendo o rio, incluindo tambm o corte de madeira para dormentes em razo da expanso da ferrovia.

21

2.1.2 As ferrovias no Estado de So Paulo e a Estrada de Ferro Sorocabana Como visto acima, as ferrovias foram de extrema importncia para o surgimento e/ou crescimento de inmeras cidades no estado de So Paulo, incluindo a cidade em questo, por atrair grande nmero de pessoas interessadas em novas oportunidades de trabalho e renda. Em meio s transformaes do sculo XIX, cujo foco era o trabalho, o pas estava em transio entre o trabalho escravo e o assalariado e, dentro esse meio, a vida urbana comea a emergir, se desvinculando dos universos agrrio e religioso, a partir da, as cidades e as ferrovias passam a ser smbolos do capitalismo. A implantao das ferrovias mostra as novas vinculaes da nao brasileira com o capitalismo internacional, dando sinais de incorporao de novos smbolos, dentre os quais se destacava a velocidade, o que, de acordo com LANNA (2006), significa a materializao de novas relaes tempo-espao. A construo de linhas ferrovirias no Estado, principalmente na regio at ento chamada de Oeste, gerou possibilidade de expanso das lavouras, aumentando a produo e exportao, o que geraria novas possibilidades de investimento do capital nacional (privado e estatal) em investimentos urbanos ou nas ferrovias, alm de incentivar novos fluxos de mo-de-obra, incluindo a imigrao estrangeira. Este capital foi utilizado de maneira to rpida e gil que foi possvel, ainda de acordo com LANNA (2006), fortificar outros segmentos econmicos, principalmente os ligados cultura do caf. Como j se sabido, os traados das ferrovias foram elaborados de acordo com a localizao das lavouras, principalmente na regio centro-sul do estado, obviamente, feitos de acordo com os interesses de administradores das fazendas e seus donos, maiores investidores e interessados no desenvolvimento das linhas, como exemplo claro dos interesses envolvidos, podemos citar o surgimento da Cia Paulista e da Mogiana. Conforme as linhas comeavam a funcionar, vilarejos cresciam e novos ncleos urbanos se desenvolviam, grande parte em razo dos fluxos e instalaes que a ferrovia trazia consigo, foi a partir de ento que as cidades apareceram como plo de atrao de mo-de-obra, das elites, dos investimentos. (LANNA, 2006)

22 Dentro desse contexto, surgem outras companhias, entre elas, a Estrada de Ferro Sorocabana ou EFS, cuja historia da empresa particular ao nosso estudo. A Estrada de Ferro Sorocabana foi fundada em 1872, seu primeiro trecho foi aberto de So Paulo at Sorocaba, em 1875. A linha-tronco se expandiu at 1922, quando atingiu Presidente Epitcio, nas margens do rio Paran, passando por vrias cidades do interior paulista, como Presidente Prudente e Botucatu, margeando o rio Paranapanema. Segundo Nogueira (1974), 1922 est dentro do decnio em que consolidada a conquista do serto desconhecido, poca em que as grandes companhias chegam s margens dos principais rios que margeiam o Estado. A partir da dcada de 40, comea o declnio da era ferroviria, ainda segundo Nogueira (1974), devido falta de manuteno e reaparelhamento, no correo de erros bsicos que no deram suporte para que as ferrovias pudessem competir com o transporte rodovirio, que passou a ser estimulado desde ento.

Plano de Expanso das Linhas da E.F.S, 1951 Fonte: Acervo documental do Projeto Memria do Povoamento no mdio rio Paran

Em 1971, a Estrada de Ferro Sorocabana passou a fazer parte das ferrovias que formaram a estatal FEPASA, seu trecho inicial, primeiro at Mairinque, depois at Amador Bueno, desde os anos 20 passaram a atender principalmente os trens de

23 subrbio. Mas a partir de 1994, esse trecho passou a ser administrado pela CPTM, que passou a ser responsvel pelas linhas suburbanas. A concessionria Ferroban, sucessora da Fepasa suprimiu trens de passageiros em 1999, a linha est ativa at hoje, para trens de carga. O ponto final da linha, inicialmente denominada "linha do Tibagi" deveria chegar em Porto Tibiri, s margens do rio Paran, num ponto ainda praticamente virgem. Durante os anos da construo do ramal, que afinal viria a se tornar a linhatronco da Sorocabana, o nome da localidade foi alterado como uma homenagem ao Presidente Epitcio Pessoa, que acabaria por deixar o cargo exatamente no ano da inaugurao da estao - 1922 -, que quando aberta j possua esse nome. Como podemos observar na citao abaixo, houve uma tentativa de planejamento, para que a futura populao da cidade no sofresse dos mesmos males que os primeiros desbravadores sofreram.Para que no seja ela a evoluo de uma aldeia levantada a esmo, dificultando as futuras edilidades com remodelaes, foi organizado um projeto e apresentado ao Governo do Estado, satisfazendo a requisitos para o bem estar de sua futura populao. Apesar da proximidade de Presidente Epitcio do rio Paran, somos de opinio que, regularizando o regime do crrego Caiu, no ser essa localidade assolada pela malria, por achar-se em um plano de nvel muito superior s guas do grande rio.

(RELATRIO, 1922 apud GIESBRECHT). A estao no recebe trens de passageiros desde janeiro de 1999, mas permanece aberta recebendo mercadorias que vm do Mato Grosso do Sul, como gros e farelo, que embarcam ali.Fui a Presidente Epitcio. Cidadezinha pequena, a estao fica longe mas est pintadinha e com o smbolo da ALL. Conversei com o ferrovirio que tomava conta. Ele comeou no ramal de Teodoro Sampaio. Disse-me que foi arrancado h dois anos e as estaes eram todas em madeira, muito bem construdas. Informou que foram todas invadidas mas no soube precisar quais ainda estariam de p. Ele me mostrou uma das salas da estao onde resgatou alguns equipamentos das estaes abandonadas, como Wenceslau, etc. Na sala, ele tinha as placas de quilometragem e altitude da estao, um conjunto completo de aparelho de staff semidestrudo, diversos telefones a magneto da Siemens do tempo da ona, etc, etc. (CABREDO, 2000 apud GIESBRECHT).

A situao j era diferente dois anos mais tarde:

24Estive em 03/11 em Presidente Epitcio e visitei a estao, que tem ainda o timbre da ALL na parede, porm no h funcionrios. A estao est com parte da cobertura da plataforma destelhada, o prdio pichado, todos os vidros das janelas quebrados. O ptio contem poucos desvios, e os que existem esto em mau estado, e h uma pessoa morando num dos armazns; conversei com ele. Quando eu estava l, um trem estava chegando, com mais de vinte vages, e foi direto ao terminal de carregamento. A ALL mantm o transporte de cargas, apesar da precariedade do trecho Prudente-Epitcio a uns 15 Km/h, e promete manuteno na linha. Existem at alguns dormentes novos amontoados na estao.(SCATOLON, 2002 apud GIESBRECHT).

Em 01/2003, a estao j estava abandonada e em incio de depredao. Existem projetos municipais de revitalizao da estao, mas at o momento no saram do papel.

2.2 Identificao dos locais e edificaes relativos ao patrimnio ferrovirio, no trecho estudado No municpio de Presidente Epitcio foi verificado o seguinte conjunto ferrovirio: prdio da estao; armazm; oficina; residncia utilizada pelo chefe da estao; residncias utilizadas pelos trabalhadores da ferrovia. Construdo no sculo XX e inaugurado no mesmo sculo, em 01 de maio 1922, o prdio da estao a principal construo do conjunto ferrovirio, onde aconteciam o embarque e desembarque de passageiros e funes administrativas como documentao de cargas, emisso e vendas de passagens. Comeando pela fachada, o prdio da estao possui estilo neo-colonial, com as iniciais da Estrada de Ferro Sorocabana em alto relevo na parte alta da fachada do prdio que fica de frente para a Avenida Marginal, nas janelas v-se apenas as estruturas metlicas que suportam os vidros, agora inexistentes . Duas salas eram separadas pelo porto na entrada das saletas, continuado por um pequeno corredor com porto baixo de metal bastante corrodo, de estilo clssico, que acaba na parte interna do ptio, nestas salas ficavam os encarregados, o chefe da estao, conferentes e outros funcionrios administrativos. Esta parte do ptio coberta por uma estrutura de ferro e telhas de amianto, o interior do prdio est todo pichado e riscado com frases e nomes de pessoas que utilizavam, e utilizam o local para pernoitar, fazer uso de entorpecentes e etc. Um pouco

25 mais adiante no ptio, vem-se dois banheiros de construo simples. Na frente do ptio se encontram os trilhos que j comearam em outro trecho bem mais adiante. A construo do prdio principal feita de tijolos de barro, em que possvel visualizar as iniciais da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) em cada um dos que esto visveis, a pintura das paredes branca, assim como a fachada do prdio. O telhado montado com telhas de barro e armao de madeira, com vrias falhas.

Estao da Estrada de Ferro Sorocabana em Presidente Epitcio Fonte: Acervo fotogrfico do Projeto Memria do Povoamento no mdio rio Paran

O armazm do conjunto ferrovirio fica mais adiante, ao lado do prdio principal, e no mesmo sentido. Sua construo mais simples que o prdio da estao, tambm feita de tijolos, com o telhado tambm montado com telhas de barro. As portas so feitas de madeira, so trs de tamanho grande, uma na parte de trs e duas na parte da frente do armazm. . Observamos um telhado anexo a parede do armazm, onde hoje s existe a estrutura metlica No foi possvel entrar, pois o mesmo se encontrava trancado, segundo informaes de moradores do bairro, at pouco tempo atrs funcionava uma oficina de automveis particular, atualmente o armazm encontra-se desativado. No tempo de funcionamento da ferrovia o local era utilizado para armazenar cargas que chegavam ou que seriam despachadas.

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Galpo do Conjunto Ferrovirio em Presidente Epitcio Fonte: Acervo fotogrfico do Projeto Memria do Povoamento no mdio rio Paran

rea interna do Galpo Fonte: Acervo fotogrfico do Projeto Memria do Povoamento no mdio rio Paran

27 Mais adiante, seguindo o rumo dos trilhos, chegamos at a oficina da estao, que a construo mais simples do conjunto, de tamanho pequeno. Encontramos somente a estrutura fsica, sem janelas, sem portas e sem telhado, somente com a laje, a construo no estava pintada de branco, como o restante das outras instalaes. A oficina coberta por uma estrutura de ferro e telhas de amianto igual a do prdio principal. Em uma das visitas feitas a cidade, a oficina estava ocupada por uma famlia de desabrigados, que foi hostil a nossa presena, mas atualmente no se encontra mais no local. A oficina est vazia, sem nenhuma ferramenta ou objeto que remeta aquela poca. Continuando o caminho, os trilhos entram na parte que pertence ao porto da cidade, por onde chegavam as cargas de toras de madeiras, bois, porcos, algodo, milho e outros, mas que no ser descrito aqui. No caminho oposto a este, observamos a vila ferroviria, onde moravam, ou ainda moram, funcionrios da EFS, entre as muitas casas da vila, se destaca a casa utilizada pelo chefe da estao, em estilo ecltico. A casa fica localizada no fundo do terreno, que grande, principalmente em relao ao tamanho dos terrenos de outras casas e da metragem atual de terrenos de casas de classe mdia em cidades do interior. A residncia foi construda em um nvel mais alto que o cho e possvel observar na varanda frontal que o piso externo feito de cimento queimado avermelhado. No foi possvel observar a parte de dentro da casa, mas segundo a pessoa que atualmente reside no local (ela no possui nenhum tipo de vnculo com a ferrovia), sendo a residncia alugada por terceiros, ela composta de trs dormitrios, sala de estar, cozinha, banheiro e rea externa coberta com um tanque de lavar roupas. A edificao de alvenaria e tambm pintada de branco, com as iniciais da EFS no alto da fachada da casa, do mesmo estilo do prdio da estao. Ela se localiza em frente ao prdio principal da estao, de acordo com antigos trabalhadores da ferrovia entrevistados, a localizao to prxima era em razo do deslocamento obrigatrio do chefe da estao caso algo ocorresse em qualquer horrio do dia ou da noite.

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Casa destinada ao Chefe da Estao em Presidente Epitcio Fonte: Acervo fotogrfico do Projeto Memria do Povoamento no mdio rio Paran O ltimo tpico a ser descrito so as casas utilizadas pelos outros trabalhadores da ferrovia. Algumas delas foram modificadas, no devido ao tempo, mas a mudanas feitas pelos prprios moradores, em parte antigos funcionrios que as ampliaram com construes de alvenaria. A propriedade dessas casas no foi cedida para a prefeitura municipal aps a privatizao da ferrovia, apesar de a mesma passar a ser a responsvel pela rea do bairro (foi concedido a Amrica Latina Logstica, ALL, o direito de usufruto somente das reas com equipamentos ferrovirios). Na rea considerada como Vila Ferroviria ainda existe um nmero considervel de casas que permaneceram sem alteraes profundas, algumas aparentemente desabitadas e pouqussimas residncias habitadas por ex-ferrovirios e sem nenhum tipo de alterao. Todas as casas da vila, com exceo da casa do chefe da estao, possuem a mesma estrutura, a diferena est no tamanho dos terrenos. Alguns permaneceram grandes e outros foram repartidos e vendidos, todas foram construdas com madeira produto abundante na regio na poca do funcionamento da ferrovia ao estilo de um bangal1. Assim como a casa do chefe da estao, elas foram construdas acima do nvel1

Segundo informaes do prof. Nilson Guirardello, tratar-se-ia de imitao dos bangals construdos pelos ingleses na ndia, no sculo XIX. Da considera a hiptese que este padro de construo tenha sido trazido pelos engenheiros ferrovirios ingleses no incio do sculo XX, para as primeiras vilas ferrovirias nas cidades do interior, e partir da se difundido como modelo de construo popular.

29 do cho, possuem degraus para adentrar uma varanda, com o pilar de sustentao do telhado feito de madeira e o cho feito de cimento queimado. Todas as casas tm as portas das salas de estar direcionadas para a rua e contam com dois quartos, um banheiro, cozinha e uma pequena rea de servio, alm da sala de estar j mencionada, na parte de dentro o cho tambm era de cimento queimado. O tamanho e distribuio das acomodaes equivalem a um apartamento de mais ou menos 60 metros quadrados. Os telhados so montados com telhas de barro. Atualmente, as casas so cercadas por muros, mas de acordo com moradores, existiam cercas de madeira no lugar dos muros.

Casa da Vila Ferroviria em Presidente Epitcio Fonte: Acervo fotogrfico do Projeto Memria do Povoamento no mdio rio Paran

2.3 Verificao do estado de conservao das edificaes e locais (estao, ptio, habitaes)

O estado de conservao do conjunto ferrovirio da cidade, no geral, muito precrio, as poucas residncias sem alteraes significativas permanecem em melhor estado de conservao em razo de serem habitadas. Todas as edificaes precisam de intervenes em carter de urgncia, o local onde essa urgncia extremamente evidente o prdio da estao, que se encontra em

30 estado de abandono h muitos anos, o que tem gerado uma deteriorao gigantesca a cada dia. Na fachada, alm da pintura desgastada, o porto de ferro no se fecha adequadamente, mesmo permanecendo trancado, do lado de dentro, as paredes das salas esto quase totalmente pichadas e sujas e com muitos pontos em que o tijolo fica aparente. Dentro das salas, vimos muitas folhas de jornais, restos de fogueiras, sujeira, cobertores e roupas abandonados, artigos utilizados para consumir drogas, um cheiro desagradvel, enfim, um completo cenrio de abandono e mau uso do patrimnio. Para completar, faltam portas, janelas e mveis. No ptio interno observamos condies parecidas, como paredes pichadas, sujeira, nos trilhos, mau cheiro, a grama est alta e muitos dormentes esto assimtricos e quebrados. Chegando ao galpo, podemos verificar que as portas de madeira se encontram empenadas devido ao das chuvas, das temperaturas elevadas e do desgaste do decorrer dos anos. A construo do armazm permanece inteira. Dentro dele no foi possvel observar nada que se refira ao seu estado de conservao, por estar trancado. E por fim, na oficina, observamos que a mesma no possui telhado, portas ou janelas, no est pintada, no existem mveis, ferramentas ou qualquer outro utenslio em seu interior, apenas sujeira e outros objetos abandonados. A estrutura metlica que cobre a oficina se encontra em estado de conservao regular e os trilhos ao longo desse caminho tambm se encontram em estado regular de conservao, com algumas falhas como as descritas acima. A vila ferroviria permaneceu em melhor estado de conservao, comparandose com as outras construes relacionadas ferrovia. Na casa destinada ao chefe da estao, por exemplo, no houve mudanas relevantes, apenas a construo de um muro em volta do terreno. No pudemos observar a parte de dentro, mas atravs da porta percebemos o cho de cimento queimado que estava aparentemente conservado, assim como o cho da varanda externa. De maneira geral a residncia est em bom estado, necessitando, aparentemente de poucos reparos. Infelizmente no podermos entrar e observar o restante da casa. Atualmente, a residncia est alugada por uma famlia sem qualquer tipo de vnculo com a ferrovia, a mesma no soube explicar quem o dono da residncia e se o mesmo um ex-ferrovirio. As residncias destinadas aos demais funcionrios tambm esto em bom estado, ficam em pequena desvantagem quando comparadas com casas de alvenaria, por serem de feitas de madeira e se deteriorarem em ritmo mais rpido pela ao do tempo.

31 Entre as casas observadas, as que no possuam alteraes relevantes em sua construo esto em estado regular de conservao, com aspectos de desgaste devido ao tempo. O interior da nica residncia que foi possvel entrar, que no estava transformada, mostrava o mesmo desgaste do lado externo, segundo o morador, ex-ferrovirio, nenhuma pea como vaso sanitrio, pia da cozinha, pia do banheiro e tanque para lavar roupa, foi trocada desde a construo da casa. O mesmo sente um imenso orgulho de morar l pelo fato de ter pertencido a ferrovia. Todas as outras casas respeitam a estrutura descrita no tpico acima, porm, grande parte j se encontra alterada, com outros cmodos construdos em alvenaria, um ponto em comum que grande parte destas alteraes comeou com a construo de uma nova cozinha. O entorno do conjunto foi profundamente alterado, atualmente, toda a rea est asfaltada. Observando o ptio da estao, vemos uma enorme rea sem vegetao, com algumas casas humildes com criao de caprinos, os mesmos passam o tempo se alimentando das gramneas que crescem entre os dormentes da estao. Assim como todo o conjunto, as casas da vila merecem reparos, principalmente aquelas que permanecem inalteradas, tornando possvel, que elas se tornem exemplos dos tempos da ferrovia que so lembrados com tanto saudosismo, como descreve um dos tpicos abaixo.

2.4 Verificao do patrimnio ferrovirio em relao ao uso turstico A perspectiva do Secretrio de Turismo do municpio a de que possvel voltar o uso da estao ferroviria ao turismo, sendo esta atividade complementar ao turismo que j ocorre na cidade. Pois, segundo o Secretrio, tornar-se um atrativo a mais para quem no se interessa por pesca, como o caso de mes e filhos que acompanham os pescadores amadores at o municpio.2 Ainda de acordo com o mesmo, a importncia do conjunto ferrovirio se deve a extrema importncia do conjunto ferrovirio no desenvolvimento do municpio em meados do sculo XX, poca em que o serto paulista era desbravado, sendo o principal meio de transporte para a fase extrativista, tambm fazendo parte da histria dos pioneiros da cidade, o que d ao local grande

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Dados cedidos pelo Secretrio Municipal de Turismo de Presidente Epitcio, Lourival Mendes Magalhes, em 19/10/2009. Entrevistado por Andra Batista Nunes

32 atratividade turstica, o que seria extremamente positivo tendo em vista que a concessionria que administra o trecho, a ALL, no tem interesse no local. Ele diz entender a indignao de todos perante o estado de abandono e desuso em que a estao se encontra, e afirma saber da importncia da mesma para o municpio, principalmente para os ferrovirios, mas diz no ser possvel nenhum tipo de interveno j que a prefeitura ainda aguarda o direito de posse do conjunto ferrovirio. Afirma tambm que os turistas vem a estao como uma atrao desperdiada. Assim que a posse do conjunto ferrovirio for transferida a Prefeitura Municipal, a inteno da Secretaria de Turismo implantar a Esplanada das Artes no local em questo, tambm promovendo a revitalizao e reurbanizao do entorno. Aps a implantao deste projeto, o Secretrio afirma, com certeza, que o local ser freqentado pela comunidade e ser um importante local de visitao turstica, assim, o projeto cumprir o propsito de proteo e reutilizao deste patrimnio. Por fim, claro para o Secretrio que o turismo traz retorno para municpio, pois mais do que gerar renda e empregos para diversos segmentos econmicos, gera constante estado de riqueza em razo do constante fluxo de turistas durante todo o ano no municpio. Sobre a questo de posse e usufruto do conjunto ferrovirio, de acordo com o Secretrio, a concessionria no tem interesse no prdio, j que utiliza apenas a linha frrea e no v como obter algum tipo de retorno financeiro com a edificao. A ALL tambm possui direitos sobre a vila ferroviria, no fazendo uso da mesma. O objetivo da prefeitura tomar posse de todo conjunto ferrovirio, passando o direito de propriedade das residncias aos atuais moradores (grande parte j reside na vila h mais de 10 anos, em mdia). Alm disso, ainda segundo o Secretrio, prev a instalao da Esplanada das Artes, j citado, cujos planos incluem um museu ferrovirio, uma biblioteca, um ateli para confeco e venda de artesanato e um espao destinado manifestaes artsticas, tornando o local um ponto obrigatrio de visitao turstica. Com estas aes, o objetivo da prefeitura estimular o desenvolvimento sustentvel atravs da venda de artesanato e da visitao turstica ao local e, ao mesmo tempo, tornar o local til para comunidade que tambm poder utiliz-lo para os momentos de lazer. O uso proposto pelo secretrio vem de encontro com a idia que o mesmo possui sobre patrimnio: pensar o projeto de revitalizao de cima para baixo (CUELLAR, 1997). Inclusive porque o mesmo admite que o meio mais fcil de reusar o conjunto

33 atravs do turismo, tendo como conseqncia a gerao de renda. Proposta cujo fim pertinente em tese (gerao de renda), mas a avaliao de uso pela comunidade deixado em segundo plano (inclusive se h interesse econmico e/ou condies para implement-lo). E, conseqentemente, outras possibilidades no so cogitadas, partilhando assim da mesma opinio de outras autoridades outrora consultadas. O sentido que o secretrio atribui estao o mesmo que pessoas sem nenhum tipo de ligao com a ferrovia possuem: ele sabe que a ferrovia foi parte fundamental da histria e do desenvolvimento do municpio e v nela a possibilidade de mais uma atrao turstica na cidade, que vem apenas reforar o que j oferecido aos turistas. Em nenhum momento foi citado ou pensado algum uso que seja exclusivo da comunidade. Numa entrevista cedida por Miriam Tubone 3, que vive em Presidente Epitcio h mais de 20 anos. A entrevistada afirma que nada foi feito at agora porque a prefeitura no tem grande interesse no conjunto ferrovirio e nem em transferir a posse das casas da vila ferroviria para os atuais moradores, pois caso houvesse interesse, o conjunto ferrovirio j estaria em posse do municpio. A entrevistada foi a nica a afirmar que, infelizmente, no ser possvel reutilizar o espao j que no existe a possibilidade de trens de passageiros voltarem a circular no trecho e que qualquer outro tipo de utilizao seria dinheiro desperdiado, pois a comunidade no usufruiria por muito tempo, apenas enquanto o espao fosse novidade. Aps question-la sobre o que poderia ser feito com o espao, j que a comunidade no estava apta a utiliz-lo, a entrevistada disse no saber o que pode ser feito no local. Apesar da opinio contrria, a mesma v o conjunto ferrovirio como um local que merece ser preservado por ser parte da histria da cidade. J o segundo entrevistado, Takahiro Tubone4, afirma que apesar de no ter nascido na cidade, acha que a vila ferroviria um patrimnio que merece ser preservado, pois j esteve no local na poca em fluxo de passageiros e cargas era intenso. Sua idia de patrimnio e preservao a opinio comum a maioria dos entrevistados (com exceo da entrevistada supracitada) em Presidente Epitcio, de que somente edificaes antigas e sem uso so preservadas, mas que de alguma maneira so importantes, razo pela qual so mantidas. Tambm cita o desinteresse do poder pblico pela estao ferroviria, quando questionado sobre a existncia do projeto Esplanada3

TUBONE, Miriam. Depoimento [19/10/2009, Presidente Epitcio]. Entrevista concedida a Andra Batista Nunes.

34 das Artes, disse no ter conhecimento desta iniciativa, mas acredita que a mesma no passa de politicagem. Confirmando sua descrena em alguma reutilizao do conjunto ferrovirio, Takahiro Tubone4, disse que no utilizaria o espao, caso o mesmo seja reutilizado, pois certamente o local no ofereceria nenhum tipo de atividade destinada a idosos, do sexo masculino principalmente.4

2.5 Entrevista com ex-ferrovirios sobre a ferrovia em Presidente Epitcio Procurar documentos sobre a EFS no municpio de Presidente Epitcio foi uma tarefa com certo grau de dificuldade, fala-se muito sobre ferrovias, mas pouco sobre o trecho em questo. Entre o material pesquisado encontram-se fotografias, mapas, documentos da poca, livros sobre a expanso ferroviria e a histria do Oeste Paulista e fontes orais. Entre as diversas fontes utilizadas a mais rica, sem dvida, foram as fontes orais, depoimentos de antigos funcionrios da estao. O pr-requisito para a concesso da entrevista foi ter feito parte do quadro de funcionrios da estao na cidade. Foram entrevistados ao todo 12 ex-ferrovirios, que trabalharam na FEPASA e na EFS, entre os anos 1960 a 2004. Muitos trabalhadores aposentados ainda vivem prximos a estao, uma boa parte na casas que pertenciam a mesma. Entre todos os entrevistados observaram-se vrios pontos em comum relativo ao cotidiano, trabalho, moradia, hbitos, festas e alimentao. O que mais chama a ateno durante as entrevistas a maneira carinhosa com que todos se lembram dos tempos em que a estao era um ponto importante para o transporte de cargas originadas do Mato Grosso e da prpria regio, como bois, porcos, madeira, milho, caf, soja, areia, pedra e algodo que eram destinadas ao porto de Santos. Abaixo, sero descritos os tpicos relativos a hbitos e costumes da poca, cujas informaes foram coletadas nas entrevistas com os ex-funcionrios.

2. 5.1 Alimentao Entre todos os hbitos da poca, a alimentao o tpico mais prximo de nossos hbitos atuais. Um nico item foi mencionado como abundante na alimentao4

TUBONE, Takahiro. Depoimento [19/10/2009, Presidente Epitcio]. Entrevista concedida a Andra Batista Nunes.

35 daquela poca por todos os entrevistados: peixe. Houve unanimidade em afirmar que o consumo de peixe era muito maior naquela poca do que nos dias de hoje. Outros itens como arroz, feijo, carne de frango e boi, legumes, saladas eram comuns no cardpio. Os funcionrios da EFS no precisavam comprar alimentos no armazm da cidade, como outras pessoas em Presidente Epitcio, os itens eram transportados de trem da capital at a cidade. Cada funcionrio fazia uma lista dos itens que necessitava, incluindo produtos de limpeza e higiene pessoal, era possvel encomendar todo tipo de mercadoria, at sapatos e laos para cabelo. Os pedidos vinham separados em pacotes nominais e retirados pelo funcionrio uma ou duas vezes por ms. O valor dessas compras era descontado na folha de pagamento, como afirma Manoel Nery dos Santos, em entrevista concedida em dezembro de 2007. Os produtos eram de boa qualidade e os preos, abaixo do valor mdio pago em estabelecimentos comerciais. Esta forma de subsdio se extinguiu com a criao da FEPASA.

2.5.2 Vesturio Tanto para os ferrovirios quanto para outros cidados da poca, se vestir era um momento de luxo. Com exceo dos uniformes de trabalho, que eram fornecidos pela EFS, outras vestimentas eram costuradas sob medida. O grande charme da poca era comprar um tecido considerado vistoso, bonito e fazer um vestido ou terno que ficava guardado por muito tempo, usado s em ocasies especiais. As roupas para uso dirio eram feitas pelas prprias esposas ou por uma costureira, caso a esposa no soubesse costurar. Os trajes mais elegantes eram usados nas missas, aos domingos. Os ferrovirios tinham uma vantagem, os tecidos poderiam ser comprados em cidades maiores e com preos mais baixos, juntamente com a lista de compras solicitada, como descrito no tpico acima. No existiam grandes luxos em relao ao vesturio, a maior parte das roupas era feita para se usar no dia a dia e um algum vestido ou terno para ocasies mais solenes.

2.5.3 Hbitos Os hbitos dos ferrovirios no diferiam dos hbitos presentes no resto da cidade. Para se divertir, era costume passear na orla do rio Paran, onde era possvel fazer piqueniques com a famlia. As crianas nadavam quase todos os dias. Entre os

36 homens, a pesca era um hbito muito disseminado, pois alm de relaxar, era possvel comer o peixe, este hbito perdurou por anos, at o enchimento da UHE de Porto Primavera, aps este perodo no era mais possvel pegar peixes na quantidade e qualidade descrita pelos entrevistados, que diziam no precisar chegar ao meio do rio para pescar devido a abundncia de peixes na poca. Esporadicamente, os ferrovirios compravam um boi, repartiam entre si uma parte e com a outra era feito um churrasco em que todas as famlias participavam, incluindo chefia. Estes esto entre os poucos momentos de lazer disponveis, segundo os entrevistados. Outro momento de citado era ir missa no domingo, este momento de lazer no foi descrito com tanto entusiasmo quanto a pescaria e o churrasco. Mas, a grande diverso dos ferrovirios era jogar futebol aos finais de semana, de acordo com os entrevistados, a cidade possuiu um time formado apenas por ferrovirios, que jogavam com times de outras cidades. Infelizmente, este time durou pouco tempo, mas a diverso e os jogos permaneceram.

2.5.4 Religies e celebraes Todas as festividades da poca eram ligadas a algum santo da igreja catlica, sendo estas festas as nicas celebradas. Todos os anos aconteciam festas comuns at hoje como a Pscoa, Festa Junina, Dia das Crianas e de Nossa Senhora Aparecida, Natal e Ano novo. As festas eram organizadas na igreja com ajuda dos fiis e realizadas no lado de fora dela. Nem todas as festas eram comemoradas em grupos, o natal e o ano novo eram comemorados somente entre familiares, geralmente, s as pessoas que moravam na mesma casa, a visita de outros parentes acontecia somente no ano novo. As festas organizadas na igreja tinham como objeto levantar fundos em benefcio da prpria instituio. Fora estas datas festivas religiosas no existiam outras celebraes relevantes. Alguns mencionaram festas de aniversrio, como afirma Jos Silva ( SILVA, Jos. Depoimento [12/12/2007, Presidente Epitcio/SP]. Entrevista concedida a Andra Batista Nunes.)], mas elas no eram muito comuns, no aconteciam todos os anos. Pelos hbitos festivos possvel perceber que entre os ferrovirios predominava o catolicismo como religio. Este foi um ponto que a maioria dos entrevistados no quis dar detalhes, principalmente quando se referiam as outras religies que no o catolicismo, dado este que no conseguimos obter com clareza, pois ningum se disps

37 a falar, apenas afirmando que deveria existir algum que fosse adepto do candombl, mas sem especificar quem ou se existia algum local para a prtica, nem mesmo quando questionados.

2.5.5 Ingresso na EFS Mesmo sendo indicado por um funcionrio da estao, para qualquer cargo, tanto na EFS quanto em outras linhas, era necessrio prestar um prova e, se aprovado, fazer exame mdico admissional. Estes testes, no caso da EFS, eram feitos na estao da na cidade de So Paulo, mais precisamente na Barra Funda. O exame fsico era simples, o objetivo era saber se o futuro ferrovirio era saudvel, se no possua nenhuma doena grave ou deficincia que o impedisse de desempenhar sua funo. O exame escrito era feito para comprovar o nvel de escolaridade em alguns cargos e para outros, somente para saber se o funcionrio foi alfabetizado. O exame em geral no era difcil e em alguns cargos, como o de ajudante, no era necessria experincia prvia. Para os jovens que eram aprendizes tambm era necessrio prestar a prova e fazer o exame mdico para fazer parte do quadro de funcionrios efetivos da EFS. No era comum a presena de mulheres entre os ferrovirios, a razo alegada para tal era que o trabalho era pesado e no condizia com o sexo feminino. Depois de aprovado nos exames, o funcionrio poderia ser mandado para qualquer lugar do Estado onde a ferrovia estivesse presente. Todos os funcionrios j moraram em diferentes cidades, pois a mo-de-obra era deslocada de acordo com a necessidade da EFS. Em Presidente Epitcio, por exemplo, parte dos funcionrios aposentados que ainda vivem l so oriundos de outras localidades que resolveram permanecer na cidade mesmo no sendo mais necessria sua permanncia. Geralmente, as mudanas de cidade eram promoes para cargos melhores dentro da ferrovia, mas existem casos em que a mudana era por falta de mo-de-obra especializada. As pessoas que se recusassem a mudar de cidade, devido a sua promoo, permaneciam por mais um pequeno perodo na cidade e na funo que ocupavam e, posteriormente, eram demitidas por se recusarem a obedecer ordens. As aposentadorias eram concedidas aps 30 anos de servio, em mdia, para alguns casos este tempo podia ser menor, como era o caso de trabalhadores que lidavam com servios pesados. O valor do benefcio era de 75% do valor de ltimo salrio e em alguns cargos de chefia chegava a ser o valor integral.

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2.5.6 Trabalho O trabalho na estao era rduo, principalmente nos tempos de maior movimento de cargas, este um ponto em comum a todos os entrevistados. Nestes perodos, era comum trabalhar at 16 horas seguidas para no deixar a carga se acumulando no armazm. Em cada vago, ou carro, como os ferrovirios chamam os vages, os animais eram transportados vivos, era possvel acomodar 22 bois ou 50 porcos (um conjunto de tbuas era posto no vago para formar um segundo andar, tornando possvel transportar um maior nmero de animais por vago) ou ainda, 50 caixas com galinhas. Em gros, possvel transportar em cada vago por volta de 3000 quilos, em madeira, mais ou menos 100 toras, dependendo do peso e tamanho. Fora destes perodos de maior movimento, a jornada normal de trabalho era de 8 a 10 horas diria, dependendo da funo desempenhada. O chefe de estao, por exemplo, deveria permanecer no local at que o ltimo trem partisse e no houvesse mais nenhuma chegada. A jornada estafante era compensada com o pagamento de horas extras, se um funcionrio ficasse at duas horas alm do tempo normal de trabalho ganhava 25% sobre o valor da hora/trabalhada, se as horas extras somassem at 4 horas a mais esta porcentagem subia para 50% e a partir de 4 horas o valor era de 100% sobre o valor da hora trabalhada. Por esta razo, os entrevistados disseram no se queixar da jornada pesada de trabalho por haver a compensao financeira.

2.5.7 Famlia A constituio familiar tpica da poca era parecida com a que encontramos atualmente. Enquanto o homem, considerado provedor do lar, trabalhava na estao, a esposa permanecia em casa cuidando dos filhos e fazendo as atividades domsticas. O marido voltava para a casa na hora do almoo, quando a residncia era prxima da estao, ou levava consigo uma refeio preparada pela esposa. O fato de a esposa no trabalhar fora de casa gerava certo status, pois s as mulheres de famlias muito pobres trabalhavam fora de seus lares. No caso dos ferrovirios no foi relatado nenhum caso de que alguma esposa de qualquer funcionrio trabalhasse fora.

39 Os filhos freqentavam a escola na parte da manh e a tarde, brincavam com as outras crianas do bairro, as opes de lazer eram poucas, entre elas estava o banho de rio, como j escrito acima. As meninas quando entravam na puberdade comeavam a aprender costura, bordado e ajudar a me nos afazeres domsticos. Os meninos quando adolescentes tem a oportunidade de trabalhar na estao como aprendizes, sem receber remunerao na maioria das vezes, para aprender algum ofcio til a ferrovia.

2.5.8 Moradia Como j sabemos, as casas que fazem parte do conjunto ferrovirio pertenciam a EFS, a mesma cedia as residncias conforme disponibilidade e na ordem chegada dos funcionrios, pois a maior parte da mo-de-obra era importada de outros municpios, que traziam consigo seus familiares. Para os trabalhadores que no conseguiam uma casa assim que se mudavam, nos tempos ureos da EFS, no havia sada, era necessrio alugar outra residncia at que houvesse alguma disponvel, este aluguel era pago pelo prprio trabalhador. As moradias eram simples, como j descrito nos tpicos anteriores, no eram espaosas e no havia qualquer tipo de luxo, esta simplicidade era vlida para todos os nveis hierrquicos de funcionrios, incluindo o chefe estao. O mobilirio tambm era bsico contava com cadeiras ou sofs na sala, uma estante onde geralmente existia algum santo, guarda-roupas e penteadeira nos quartos, alm das camas e mesa e cadeiras na cozinha. Nos fundos da casa, ficava o tanque para lavar roupas e os varais, o quintal era de terra e havia criao de pequenos animais.

2.5.9 Privatizao De acordo com a maior parte dos entrevistados, o declnio das estradas de ferro mostrou seus primeiros sinais com a criao da Cia. Paulista e comeou, de fato, com a criao da FEPASA, naquele perodo, a empresa passou a oferecer benefcios para demisses voluntrias e aposentadoria para os trabalhadores que j tinham idade e tempo de servio suficiente para tal. Com o tempo, o volume de cargas transportadas comeou a diminuir, devido incentivo dado ao transporte rodovirio. A partir da, as demisses comearam a crescer e, finalmente, com a privatizao e venda do direito de uso para a ALL, Amrica Latina Logstica, antigos trabalhadores passaram a presenciar

40 o abandono das instalaes e quase inexistncia do transporte ferrovirio. Este o momento em que os entrevistados mais se emocionam, para os mesmos, no cabvel que um meio de transporte que cresceu to rpido, teve tanta importncia para o pas e foi responsvel pelo surgimento e crescimento de tantas cidades acabe negligenciado da maneira que foi. A esperana destes antigos ferrovirios de que a ferrovia volte a ser utilizada em sua plena capacidade num futuro prximo, esta motivao, segundo os mesmos, derivada de vrios discursos do atual Presidente da Repblica, que prometeu incentivar a modalidade.

3. CONDIES DO PATRIMNIO FERROVIRIO EM RELAO A INTERPRETAO DO PATRIMNIO E O USO TURSTICO Analisar e interpretar o conjunto ferrovirio do municpio de Presidente Epitcio como patrimnio histrico da cidade parece a soluo mais natural para a preservao do local, visto que ele o principal smbolo que remete ao desenvolvimento econmico da cidade no passado, apesar disso, uma parte dos moradores da cidade no a vem desta maneira, a observam to somente como um prdio abandonado, tornando difcil o desenvolvimento de prticas que estimulem uma mudana na percepo sobre patrimnio que os mesmos possuem. Contradizendo este pensamento, existe uma parcela da comunidade que v a estao como parte fundamental da histria da cidade e observam com profundo pesar o abandono do conjunto, ainda acreditando que possvel haver outros usos para este patrimnio. Entre as pessoas que acreditam nessa mudana encontram-se, obviamente, os ex-funcionrios da estao que conseguem transmitir a afeio ao conjunto aos familiares e amigos mais prximos. Contudo, existem alguns fatores que dificultam a execuo de qualquer medida relativa estao, como por exemplo, o fato de a prefeitura no ter obtido direito de posse sobre o local, tampouco sobre a vila ferroviria e das aes do municpio serem totalmente voltadas ao turismo de lazer, no incluindo a comunidade nas aes propostas.

3.1 Conservao do patrimnio ferrovirio de Presidente Epitcio

41 A proteo da antiga estao ferroviria de Presidente Epitcio est estritamente ligada memria da cidade, que se desenvolveu em razo da instalao da ferrovia. O conjunto ferrovirio em questo se encaixa num conceito recente sobre patrimnio, o patrimnio industrial (Mendes, 1991), que engloba as atividades econmicas contemporneas, sendo estes bens fsicos relativos atividades humanas, incluindo seus ofcios e prticas. Logo, o conjunto ferrovirio, parte importante da histria da cidade, integrante tanto da memria coletiva quanto da memria individual de boa parte dos moradores da cidade, j que muitos deles trabalharam na EFS por uma vida toda e trazem consigo a longa trajetria da estao, de suas vidas e da cidade. Simo (2001), afirma que a identidade e a memria local tambm so construdas atravs do patrimnio, e estes devem ser observados como um acervo, que o registro de fases da histria de um municpio. Esta identidade de extrema importncia para legitimar a proteo do conjunto ferrovirio, j que a memria dos ferrovirios e a histria da cidade se encaixam nas prticas e processos de construo de patrimnio que justificam a preservao do mesmo (Fonseca, 2005). J quando recorremos memria, podemos observar dois tipos, segundo Halbwachs (1990), a primeira seria a interior e a outra exterior, uma pessoal e outra social que so separadas, mas com a primeira se apoiando na segunda. Ela um ponto de extrema importncia, pois baseado na mesma que questes relativas ao modo de vida, ao trabalho na ferrovia e a importncia que lhe dada pelos moradores viro tona, sero filtradas e utilizadas para mostrar no somente a histria da cidade para as futuras geraes, mas tambm para torn-la conhecida pela prpria comunidade, principalmente os mais jovens, que apenas observam a estao como a estao abandonada utilizada por usurios de drogas e moradores de rua e no pensam que possvel haver qualquer outra utilidade no local alm da supracitada. Esta viso recorrente entre os jovens do municpio e deixa muito claro que se nada for feito agora, o conjunto ferrovirio estar fadado decadncia e total inexistncia num futuro prximo, pois esta gerao que estar no poder em alguns anos no saber da importncia desse conjunto para a histria da cidade. Sendo assim, com tamanho volume de histrias e acontecimentos cabe-nos a tarefa de gerir, filtrar e expor estas memrias formadas coletiva e individualmente. De acordo com Pollak (1992), a memria seletiva e se lembra com mais vivacidade de

42 fatos que foram traumticos ou extremamente relevantes, que ajudam a formar a identidade coletiva de uma sociedade, porm trs elementos so de extrema importncia na construo dessa identidade. Isto se confirma quando notamos que os fatos que so relembrados com maio nfase so os que mais impactaram as pessoas que fizeram parte daquela situao, como por exemplo, a privatizao. Tal confirmao se refora ainda mais quando recorremos bibliografia sobre a regio, em que esto documentados mais extensamente fatos como a criao e expanso acelerada das ferrovias para distribuio e expanso da cultura do caf e o movimento de ocupao do extremo oeste paulista, ocasionado pela mesma, onde a expanso marca o surgimento das cidades que passam a atrair mo-de-obra e investimentos (LANNA, 2006), chamado de conquista do serto desconhecido (NOGUEIRA, 1974). Ainda temos fatos marcantes mais restritos, como os que so comuns apenas aos ferrovirios de nosso objeto de estudo, por exemplo. Entre os fatos que marcaram mais intensamente os antigos funcionrios esto o modo de vida no auge da ferrovia e os salrios, considerados muito bons para os padres da poca. Esta similaridade de pensamentos explicada por Queiroz (1989), segundo o autor, a identidade muito diversa e deixa claro quando integrantes de uma mesma sociedade partilham dos mesmos valores. Sendo assim, como o conjunto ferrovirio j ocupa um espao considervel na memria coletiva, o trabalho de preservao ser facilitado, pois Barreto (2003) explica que a memria coletiva a propulso mais do que necessria para desencadear o processo de identificao da comunidade com sua cultura e histria.

3.2 Interpretao em relao memria coletiva A histria da cidade de Presidente Epitcio est estreitamente ligada expanso ferroviria no Estado, pois a cidade atingiu seu pice social e econmico em decorrncia da instalao da linha pela Estrada de Ferro Sorocabana, da abundncia de matriaprima e, principalmente, por estar s margens do rio Paran. Sendo este o ponto final atingido em 1922, como parte da expanso da malha ferroviria cujo objetivo era desbravar reas at ento desconhecidas e au