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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACURSO DE GRADUAO EM CINCIAS ECONMICAS

Tito Luiz Pereira

BRUTALIDADE INOCENTADA:As determinaes econmicas e ideolgicas da ditadura militar no Chile

Florianpolis, 201346

TITO LUIZ PEREIRA

BRUTALIDADE INOCENTADA:As determinaes econmicas e ideolgicas da ditadura militar no Chile

Monografia apresentada ao Departamento de Economia e Relaes Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito obrigatrio para a obteno do ttulo de Bacharel em Cincias Econmicas.Orientador: Prof. Dr. Nildo Ouriques

Florianpolis, 2013APROVAO

Ao cigarro, ao lcool e msica

AGRADECIMENTOSNo consigo me perceber com sujeito sem trazer comigo tudo aquilo que me transformou no que sou hoje. E dentre todas as relaes que um ser humano pode estabelecer em vida, certamente a afetiva foi a que mais me mexeu, mais me usou, mais me moldou em o que quer que eu seja ou virei a ser. Se hoje posso me chamar de gente, foram os amigos que cultivei e amei at hoje que foram os principais responsveis. Por isso, primeiramente agradeo todos queles que j passaram pela minha vida, seja pelo bem ou pelo mal, de passagem ou permanentes, estveis ou conflituosos, sem vocs eu no chegaria at aqui.Agradeo, claro, meus pais, dona Dad e seu Aristo, mame e papai, eles que at hoje no entendo como conseguiram me dar suporte inimaginvel, que acima de tudo, me ensinaram a amar e a lutar intensamente, a eles devo tudo.Ao Andrey, meu melhor amigo. No consigo imaginar como seria minha vida sem ele, que me entende, ajuda, inspira, com quem eu mais consigo ser eu e com quem passei os melhores momentos da minha vida. Foram muitos bares da depresso, rouba-montes, tetinha, philosophy: the gatherin, universidade de Dota, War UFSC, feijo na hora do estudo, sexta-feiras profanas, blues, afters na casa do Andrey, uma lista to longa quanto a nossa amizade. Jaque, minha melhor amiga. Eu te amo tanto que, tudo que eu disse para ti, no tenho coragem e ousadia de repetir para mais ningum. Porque tudo que eu sinto por ti teu e meu, original, inalcanvel e de mais ningum.Ao Arland, em que tempos difceis nos uniu, nos fortaleceu e criou laos que nunca mais sero rompidas. Pela ajuda no TCC, pela ajuda nos estudos, mas sobre tudo pela ajuda na vida e na poltica. Carol, a pessoa mais encantadora que o mundo j viu, pelas conversas, pela msica, pelo tempo junto, por me ouvir e por me dar honra de te ouvir. Voc fenomenal e nada pode te parar. Ao Nando Reis por ter sido meu primeiro mentor na poltica, sem o qual no saberia metade do que sei. Pelas manhs, tardes, noites e madrugadas em reunio, no bar, na repblica dos colonos, nas viagens, ou no DCE jogando conversa fora. Pri, minha alma-gmea, minha par, minha irm, sou igual a voc, eu nasci pra voc, eu no presto, eu no presto. Tamara pela insistncia em me fazer am-la, pelas fofocas, pelas brigas, pela cumplicidade e por ter me acompanhado por toda minha jornada. Glenda pela insistncia em me amar, mesmo quando eu no merecia. Pelo encanto, pela inteligncia e pela paixo. Nunca realeza foi mais legtima, mais natural, mais aclamada pelo reconhecimento, mais confirmada pela impotncia da rebelio. Por ser quem , e por me amar do jeito que sou. I, pela parceria, por nunca me deixar ficar infeliz, por me entender e por ser essa mulher nica que . Renata, pela convico, inteligncia, rebeldia e paixo. Por ter decido meu tema e minha referncia bibliogrfica, por atrasar em um ms a concluso da minha monografia. Por acreditar na minha inteligncia, e me incentivar a us-la.Ao CALE, o melhor Centro Acadmico da histria da humanidade, pelo que me ensinou e pelo que fez e faz. Por se recusar a aceitar a mediocridade, por lutar intensamente e radicalmente por economista e por um Brasil popular. A toda a famlia CALEANA, ao Tai, verdadeiro companheira, s minhas irms Vanessinha, Carol, Emilly e Gabi, vocs so incrveis. Ao Toms, Tales, Maicon, Luciano, Venezuela, Elisa, Dani, Cinthia, Samuca, Igor, Jeff, Ruan, Stfano, Lucas, Heleninha, Thiago e Marina, a melhor caloura. A todos que construram o melhor ENECO que o Brasil j viu. Ao DCE e ao ME o ponto crucial de transformao na minha vida, lugar onde fiz meus melhores amigos, onde aprendi quase tudo que sei, onde vivi to intensamente que mal consegui respirar, onde sofri e amei todo momento, onde cresci. Ao Boas Novas, Canto Geral, Rosa dos Ventos, Polifonia e Acabou Chorare, por juntar paixo revolucionria com paixo pela brasilidade. Gy, minha BFF, ao Bozinho por qualquer momento junto, ao Viet, meu professor, ao Renato, pelas gordices e viagens, Gabe (e por falar em paixo / em razo de viver / voc bem que podia me aparecer), ao Marino, Meiri, Marina, Zeva, Rani, Hel, Maria, Malu, Mari, Dina, Su, Hlio, Eduardinho, Fernandinha, Karen, Diogo, Candi, Jonga, Bag, Fria, Andr, Gusta, Fer Vargas, Balo, Iza, Belinha, Branda pelas gestes passadas. A Emlia, Antonio e Midi, pelo que h de vir.Ao Ufsctock, maior festival de bandas independentes de Santa Catarina e melhor experincia da minha vida universitria. Nina, por me encontrar, por ser a pessoa que , por viver e pelas melhores risadas. Ao Portela, Xochilt, ao Pira, JulA, Doris, por realizarmos o que realizamos.Ao Reino da Babcia, onde tudo que h de melhor e pior no mundo se encontra. Meus melhores amigos, minha vida fora do movimento estudantil, meu maior arrependimento durante a graduao. A tudo que a Babs produziu, ao fim da Babcia. Ao Paulinho, pelos 14 anos juntos, ao Menan, por ser o superego do grupo, ao Chico, pelo Chico, pelo Carnaval e por ser quem , ao Tibor, meu irmo, ao Samir, Fer, Bruneco, Hyndira, Pauleco, D e Fabi.A Manacia, onde tudo foi produzido. me Bozo, por dividir o sofrimento, pelas conversas sobre o passado e pela maturidade que tem. Ao Victo, pelos Schweps no posto, pela jornada na economia, pelo potencial, pela paixo e pela inteligncia. Ao Betinho, pelas madrugadas com The Wall, pela melhor dupla de conselheiros, pelos pareceres e amizade. Jacque, por nos suportar e fazer da Manacia um lugar suportvel.Por todos os outros com quem morei nesses anos, em especial o Bruno, pelas dietas, pelos incndios, pelos ataques de riso e por me forar a sair do quarto. Ao Loba, por mostrar que a amizade ultrapassa a diferena poltica. Ao Celo, por meus presentes de aniversrio, pela malacagem e pela amizade persistente.Aos amigos da poca de ouro do CETEC, a rosa que rompe o asfalto do CTC. Ao Casa, pela honra de me deixar ser seu amigo e confidente, Luih, por sempre me amar mesmo eu jogando errado, pelos jogos do CAECA, pelas discordncias com sries, por alguns dos melhores momentos que tive na UFSC, ao Patric, pelas eleies da Reitoria, pelos trotes do CTC, pela organizao de festas e coordenao de bar, por achar que sou aliado do Pida, e pela energia e paixo que tem. Day, Bruna, ao Zico e ao Chito.Ao Janelo, pelos encontros e desencontros, pela amizade duradoura. A Cnthia, por te amar demais, Mari, por me emprestar a chave do CAF, por me ajudar a me libertar e por coisas que no posso contar aqui. Ao Al, Mabel e a May.Ao Demetri, Caume, Thiago, Victor e F Mussarela pela amizade irrestrita. Claudia, Marina e a Lilian, pela amizade fora do mundo do CALE. Aline linda, ao Yuri, Cleber e ao Palmeiras, pelo tempo da ESAG.Aos meus amigos da CDO, em especial Belly, minha paixo nunca realizada e Lari, melhores amigas que a internet pode oferecer.s minhas irms, Domi, Lvia e Clarice, por aprendermos a nos amar. Arlete, que muito mais do que famlia.Aos meus amigos de Balnerio, Roberta, Cah Rosa, Lucas, Paulete, Beto, Maca, Cris, Thais, Jenny, Pedro, Marega, Iel, Guga e Geg. Por um amor que permanece.E finalmente, s Brigadas Populares, a alternativa socialista para a realidade brasileira, a chama revolucionria sempre acesa, a todos os companheiros que partilham do mesmo horizonte e amam intensamente o povo brasileiro. Ao Matheus, Gabriel, Rod, Milezi, futuros colegas profissionais. Sara, pela importncia na minha vida, Bruninha, Ellen, Capiva, Bia, Jojo, Cear, Luis Felipe.Ao professor Nildo, pela pacincia e pela luta constante por um curso, uma universidade, e uma sociedade mais crtica e popular. todos que esqueci. Muito obrigado.

Calma, pequeno louco, rosnou o lobisomem. Quando chegar a sua vez de saltar para o Nada, voc se transformar tambm num servidor do poder, desfigurado e sem vontade prpria. Quem sabe para o que vai servir? possvel que, com sua ajuda, se possa convencer os homens a comprar o que no necessitam, a odiar o que no conhecem, a acreditar em quem os domina ou a duvidar de quem os podia salvar. Por seu intermdio, pequenos seres de Fantasia, fazem-se grandes negcios no mundo dos homens, desencadeiam-se guerras, fundam-se imprios...Gmork para Atreyu(Michael Ende, A Histria Sem Fim)

RESUMOA tese da doutrina do choque, elaborado por Naomi Klein em seu livro A Doutrina do Choque: Ascenso do Capitalismo do Desastre, definida como um estado de terror e choque coletivo de complexo social usado pelo Estado para conseguir aplicar polticas neoliberais que vo contra os interesses da classe trabalhadora. Este trabalho ento, busca analisar atravs da experincia chilena a veracidade do conceito, tentando, ao mesmo tempo, inseri-la dentro de um arcabouo terico marxista atravs da discusso da Teoria Marxista da Dependncia de Gunder Frank e Marini, a ontologia do ser social e ideologia proposta por Lukcs e hegemonia proposta por Gramsci.Palavras chave: doutrina do choque; Lukcs; Naomi Klein; Chile; Pinochet; Friedman; Gunder Frank. ABSTRACTThe thesis of the Shock Doctrine, written by Naomi Klein in her book The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism, defined as a state of collective terror and shock of a social complex is used by the State to to apply neoliberal policies that go against the interests the working class. This paper then seeks to analyze through the Chilean experience the truth of the concept, trying at the same time, insert it within a Marxist theoretical framework through discussion of Marxist Theory of Dependence by Gunder Frank and Marini, the ontology of social being and ideology proposed by Lukcs and hegemony proposed by Gramsci.Keywords: shock doctrine; Lukacs, Naomi Klein, Chile, Pinochet, Friedman; Gunder Frank.SUMRIO

1. INTRODUO101.1 TEMA E PROBLEMA101.2 OBJETIVOS121.2.1 Objetivo Geral121.2.2 Objetivos Especficos122. AS DETERMINAES ECONMICAS132.1 DIVISO INTERNACIONAL DO TRABALHO132.2 TEORIA MARXISTA DA DEPENDENCIA192.3 A SUPEREXLORAO263 AS DETERMINAES IDEOLGICAS303.1 O PROBLEMA DA IDEOLOGIA303.2 IDEOLOGIA PARA LUKCS E GRAMSCI343.2.2 Ideologia para Lukcs413.2.3 Ideologia e hegemonia em Gramsci494 NAOMI KLEIN E A TESE DO CHOQUE604.1 A TESE DO CHOQUE645 BRUTALIDADE INOCENTADA: O CASO DO CHILE726 CONSIDERAES FINAIS977 REFERENCIAL BIBLIOGRFICO101

1. INTRODUO

1.1 TEMA E PROBLEMA

Nos ltimos anos o Brasil e o mundo tem passado por momentos impressionantes relacionados movimentao poltica. Os anos ps-crise de 2008 foram marcados por gigantescas manifestaes no Egito, Estados Unidos, Turquia, Grcia, Finlndia, Ir, Espanha, Brasil, Chile e diversos outros pases, levando milhes s ruas com reivindicaes diversas. Independente das especificidades e feies diferenciadas de cada protesto, "no ar" uma sensao de incomodao, angstia se mostravam como resposta da populao tanto aos avanos das polticas neoliberais, da desigualdade econmica e social, quanto de uma impresso de perda de legitimidade institucional do Estado como ente capaz de resolver os problemas das naes, de origem tanto econmica quanto ideolgica.Estes grandes movimentos de massa dos ltimos anos, que buscam no apenas solues imediatas a problemas econmicos urgentes, mas tambm formas mais democrticas de governana contrastam em muito com duas dcadas de relativa apatia poltica. O que deu o tom destas ltimas duas dcadas, entretanto, foi a completa hegemonia da lgica neoliberal e seu avano em quase todas as naes do globo, do Brasil Unio Sovitica, passando pelo Iraque, frica do Sul, Colmbia, etc. Alm disso, o atentado s Torres Gmeas no 11 de Setembro, inaugurou uma nova era de caa terrorista, que foi providencialmente utilizada para avanar a dominao do imperialismo ianque, enquanto o povo, amedrontado, no reagia.Foi neste perodo que Naomi Klein lana seu livro intitulado Doutrina do Choque: ascenso do capitalismo do desastre. Nesta obra, aclamada internacionalmente, a jornalista faz um mapa do desenvolvimento das polticas neoliberais durante toda a sua histria, desde sua primeira experincia no Chile, at o processo de privatizao da segurana nos Estados Unidos ps 11 de setembro e, conjuntamente cria uma nova tese: toda aplicao das polticas neoliberais s se deram em perodos de choque, ou seja, momentos que por causa de alguma calamidade poltica, social, econmica ou natural - uma ditadura, hiperinflao, um atentado terrorista, um tsunami - a populao no tinha condies de reagir ativamente a polticas que prejudicariam a capacidade de reproduo de sua prpria vida. Assim, ela prope que os "arquitetos econmicos" destes movimentos - isto , Friedman, a Escola de Chicago e teoria econmica liberal - sejam tambm responsveis pela destruio que causaram - no caso, fome, violncia, desigualdade e represso.Embora extremamente revelador e fruto de extensa e profunda investigao jornalstica, percebe-se na tese certa falta de rigor terico, explicaes mais bem formuladas sobre quais so as origens deste movimento de avano neoliberal, a quem ele servia, como ele se desenvolve e quais so seus determinantes. Embora impreciso teoricamente, os fatos levantados e suas teses do pistas e caminhos a se trilhar para sua complementaridade.O presente trabalho ento, tenta revestir a tese da "doutrina do choque" de uma teoria marxista mais bem embasada. Tentando tratar mais rigorosamente como a "doutrina do choque" se insere dentro do conceito de Ideologia e quais so as determinaes econmicas que foram as polticas neoliberais a serem aplicadas, no caso, como a lgica da poltica neoliberal se insere nos interesses da burguesia para a manuteno da diviso internacional do trabalho.Para tanto, vamos primeiramente vamos fazer um resgate terico da Teoria Marxista da Dependncia e da Superexplorao do trabalho a partir, principalmente, das obras de Andre Gunder Frank e Ruy Mauro Marini; em seguida, faremos um resgate da ontologia do ser social de Lukcs, assim como sua tese de ideologia e avanaremos por Gramsci em seus estudos sobre ideologia e seu conceito de hegemonia.Finalmente resgataremos o conceito de Naomi Klein acerca da doutrina do choque e veremos como se deu o processo de implementao do programa econmico neoliberal em sua primeira experincia: a ditadura de Pinochet. Assim, remontaremos como se deu o processo de desregulamentao do estado Chileno; sob quais coordenadas agiu; como foi a resistncia e por que; como a ditadura de Pinochet contornou sua oposio; qual foi o papel dos Estados Unidos, da burguesia nacional e da burguesia internacional neste episdio; qual era e como se deu a relao entre a violncia da ditadura e a violncia do choque econmico; quais foram os resultados polticos, culturais e econmicos do governo Pinochet; e como a ideologia liberal conseguiu ser absolvida de seus crimes. Assim, dando peso e qualidade a tese levantada.

1.2 OBJETIVOS

1.2.1 Objetivo Geral

O objetivo geral do trabalho conseguir demonstrar como as polticas liberais e neoliberais, por objetivamente prejudicar a classe trabalhadora, s conseguem ser integralmente aplicadas atravs de aes ideolgicas que ou reprimam a classe trabalhadora, ou a coloquem em estado em que eles no tenham condies de reagir, assim sendo igualmente responsvel por todas as atrocidades realizadas em seu nome.

1.2.2 Objetivos Especficos

Resgatar o conceito de ontologia do ser social proposta por Lukcs como fundamental para uma anlise marxista totalizante; Fazer uma reviso dos conceitos da Teoria Marxista da Dependncia; Conseguir inserir a tese da doutrina do choque dentro do arcabouo do marxismo; Mostrar a relao entre a ditadura chilena de Pinochet com a burguesia nacional chilena, a burguesia norte-americana, Friedman e a Escola de Chicago;

2. AS DETERMINAES ECONMICAS"The worker will overthrow absolutism and lead the proletariat to a victorious communist revolution, resulting in socio-economic paradise on earth. lt's common sense, really." (Anyanka, Buffy: A Caa Vampiros)

2.1 DIVISO INTERNACIONAL DO TRABALHO

Ao adentrarmos a temtica do presente trabalho, faz-se necessrio primeiro resgatar conceitos fundamentais acerca da estrutura econmica da Amrica Latina e sua relao com a economia em escala global. Por isso, portanto, comearemos recuperando o conceito da Diviso Internacional do Trabalho a partir da tese elaborada por Nikolai Bukharim (1984). Para introduzirmos o conceito, primeiro fazemos uma aluso a como, da mesma forma que a economia da nao constituda de diversos setores, indstrias e empresas concorrendo entre si, em uma economia em escala global estas mesmas relaes se repetem; neste caso a concorrncia entre as economias nacionais. A composio da economia da nao dada pela produo de diferentes tipos de bens teis ao dispndio social, assim:Formado pelos valores-de-uso diferentes ou pelas mercadorias materialmente distintas, manifesta-se um conjunto correspondente dos trabalhos teis diversos, - classificveis por ordem gnero, espcie subespcie e variedade,- a diviso social do trabalho (MARX, 2012, p.49). A diviso social do trabalho, desta forma, encontra-se em todos os setores da vida produtiva de uma nao, mas tambm se projeta a nvel mundial, e esta esfera que denominamos Diviso Internacional do Trabalho.Em A Economia Mundial E O Imperialismo (1984), Bukharin apresenta duas maneiras pelas quais as trocas so feitas entra as naes. A primeira versa sobre as mercadorias as quais um pas no tem condies naturais de produzir internamente, por questes geogrficas ou agrcolas. Para o autor, as trocas advindas deste tipo de condio vo se tornando cada vez mais insignificantes historicamente conforme o desenvolvimento econmico das naes avana. A segunda a forma social de troca entre as naes, ou seja, relacionada ao desenvolvimento das foras produtivas, quando as naes no tm condies internas de produo de dada mercadoria (BUKHARIN, 1984). Esta segunda, por ser dependente do desenvolvimento desigual das foras produtivas em diversas naes acaba assumindo historicamente centralidade no comrcio internacional, assim ampliando a diviso internacional do trabalho.Deste avano da centralidade de troca entre pases via capacidade produtiva, Bukharin (1984, p. 21-22) afirma:O trabalho social do mundo, em seu conjunto, est dividido entre pases. O trabalho de cada pas em particular torna-se parte do conjunto do trabalho social por meio da troca que se realiza no plano mundial. Essa interdependncia dos pases no terreno da troca no absolutamente casual, ela a condio necessria da evoluo social ulterior, mediante a qual a troca internacional se torna um fenmeno regular da vida social econmica.Bukharin determina a economia em escala global como um sistema de relaes de produo e de relaes correspondentes de troca, que abarcam o mundo em sua totalidade (BUKHARIN, 1984, p. 24). Assim, o comrcio entre naes no se d apenas entre mercadores de origens diferentes, ele se d tambm por questes relacionadas capacidade produtiva, ou seja, quando um pas no possui capacidade produtiva suficiente para dar conta de sua prpria demanda interna, ele se v forado a recorrer ao comrcio internacional. Pases diferentes, ento, concorrem entre si para a venda de um mesmo tipo de mercadoria, o preo, no caso, determinado pelo custo de produo de cada pas, sendo o salrio (ou seja, o trabalho socialmente necessrio para reproduo da vida dos trabalhadores) o fator determinante.Foi a evoluo do comrcio europeu, a partir do descobrimento e da explorao dos territrios das Amricas, que fez com que o comrcio internacional se expandisse, fazendo com que diferentes regies do globo se especializassem em determinados tipos de produo do capitalismo mundial. Assim estipulando que partes do planeta ficariam responsveis, por exemplo, pela produo de mo de obra, matrias-primas ou mercadorias com alto valor agregado, assim expandido e efetivando a Diviso Internacional do Trabalho.No por menos que Karl Marx (2005, p.864) afirma:As descobertas de ouro e de prata na Amrica, o extermnio, a escravizao das populaes indgenas, foradas a trabalhar no interior das minas, o incio da conquista e pilhagem das ndias Orientais e a transformao da frica num vasto campo de caada lucrativa so os acontecimentos que marcam os albores da era da produo capitalista. Assim o papel de cada territrio dentro da produo de mercadorias a nvel globo, suas especializaes e suas relaes com o comrcio internacional que nos do as coordenadas do que significa a Diviso Internacional do Trabalho. Para nos aprofundarmos um pouco mais no papel que o comrcio internacional cumpre dentro do capitalismo, importante antes apresentar os aspectos ideolgicos da dita teoria econmica oficial que justificam as polticas de comrcio internacional. Em outras palavras, buscar identificar porque e como o discurso econmico corrente continua a reafirma o papel do comrcio internacional como um ambiente de trocas vantajosas para todos os pases que participam da mesma, desde que livres de qualquer ao do Estado. Para tal, vamos apresentar as ideias gerais presentes na obra Teoria das Vantagens Comparativas do pensador econmico David Ricardo, entendendo que mesmo as teorias atuais ignorando sua utilizao da lei do valor-trabalho, ela ainda nos d os argumentos fundamentais que o atual mainstream econmico usa para justificar as polticas internacionais no intervencionistas. A premissa fundamental que parte David Ricardo a que o trabalho materializado na mercadoria que determina o valor pela qual a mesma trocada no mercado, seja no mercado nacional ou internacional. Desta forma, chega-se a um nico resultado terico, que a produo de riqueza a nvel mundial ser maior quanto mais cada pas se especializar na produo da qual obtm maiores vantagens em relao concorrncia. Complementa-se a tese afirmando que, a partir da troca firmada no valor, o prprio comrcio assegurar a apropriao de maneira mais vantajosa a todos. Assim, criar qualquer mecanismo que prejudique indivduos ou setores de garantir suas vantagens relativas s prejudicar o sistema de maneira geral.Para tal, o autor exemplifica a tese atravs da anlise do Tratado de Mathuen (SODR, 1957) quando h a queda de algumas barreiras alfandegrias para o comrcio de vinho e tecido entre os dois pases. Seguindo o exemplo, Ricardo afirma que para a produo de uma certa quantidade constante de tecido e vinho, necessrio o trabalho de 90 e 80 homens por ano, respectivamente, para Portugal; enquanto para Inglaterra os valores seriam 100 e 120 homens por ano, respectivamente tambm. Desta forma, observa-se que a maior produtividade de vinho e tecido advm de Portugal, assim nos fazendo assumir que o pas deveria se especializar nas duas produes ao invs de voltar-se a importao. A virada terica de Ricardo se d quando o mesmo afirma que, mesmo possuindo uma produtividade maior nos dois setores, Portugal deveria relegar a produo de tecido Inglaterra, onde a vantagem relativa menor e mais: afirma que se cada pas se voltaria naturalmente quele mercado do qual possui maior vantagem comparativa caso estivesse livre de polticas intervencionistas por parte de ambos governos. Para Ricardo Este o princpio que determina que o vinho seja produzido na Frana e em Portugal,que o trigo seja cultivado na Amrica e na Polnia, e que as ferramentas e outros bens sejam manufaturados na Inglaterra. (RICARDO, 1996, p.53)A debilidade deste argumento se d justamente em considerar que o comrcio entre as naes se d atravs da troca de mercadorias de mesmo valor. David Ricardo mesmo alerta:A utilizao de maquinaria num pas nunca deveria deixar de ser incentivada, pois, se no for permitido ao capital obter o maior rendimento lquido que o emprego de mquinas possibilita, ele ser transferido para o exterior e isso representar um desestmulo muito maior demanda de trabalho do que a generalizao mais completa do uso de mquinas, uma vez que, enquanto o capital aplicado no pas, alguma demanda de trabalho dever ser criada: as mquinas no funcionam sem a interveno do homem, e tambm no podem ser construdas sem a contribuio do seu trabalho. Investindo uma parte do capital em maquinaria aperfeioada, haver uma reduo na progressiva demanda de trabalho; exportando-o para outro pas, a demanda ser totalmente eliminada. Alm disso, o preo das mercadorias determinado por seu custo de produo. Com a utilizao de maquinaria aperfeioada, o custo de produo das mercadorias se reduz, e, conseqentemente, ser possvel vend-las no mercado externo por um preo mais baixo. Se, no entanto, rejeitssemos o uso da maquinaria, enquanto os demais pases o encorajassem, seramos obrigados a exportar dinheiro em troca dos produtos estrangeiros at que o preo natural de nossos produtos baixasse para o mesmo nvel de preo dos demais. Trocando mercadorias com aqueles pases, estaramos entregando uma mercadoria que custa aqui dois dias de trabalho por uma mercadoria que custa um no exterior, e essa troca desvantajosa seria a conseqncia de nossos prprios atos, pois a mercadoria exportada e que nos custa dois dias de trabalho, custaria apenas um, se no houvssemos rejeitado o uso da maquinaria, cujos servios nossos vizinhos souberam aproveitar mais inteligentemente. (RICARDO, 1996, p.94)Esta contradio apresentada de que, por um lado se defende a produo de manufaturas exclusivamente na Inglaterra e, por outro, afirma que pases que no investirem em maquinaria sero, no decorrer do tempo, prejudicados no comrcio internacional, pode ser vista com mais acuidade quando a analisamos sob a tica marxista o problema fundamental que ela apresenta: o monoplio das foras produtivas de alta tecnologia e suas conseqncias no mercado mundial e na Diviso Internacional do Trabalho. O aumento da produtividade gerado pelas grandes indstrias, pelas tecnologias e ainda seu constante aperfeioamento - que faz com quem este mesmo aumento de produtividade avance em passos mais largos se comparados aos pases com outros nichos de produo - faz com que diminua o valor individual das mercadorias. Assim, a tese de Ricardo que afirma que as trocas se do atravs do valor no acontece realmente, pois no h real livre concorrncia, o que existe o monoplio da tecnologia (da qual os outros pases, por terem papis diferentes na Diviso Internacional do Trabalho no conseguem alcanar). atravs deste monoplio que os pases com maior capacidade tecnolgica conseguem evitar a queda no preo de suas mercadorias que ocorreria proporcional elevao da produtividade.Em tese, as mercadorias deveriam se trocadas balizadas em seu valor-trabalho, mas, firmada a Diviso Internacional do Trabalho, diversas maneiras so utilizadas como forma de fazer com que o valor da mercadoria e seu preo no mercado internacional se distanciem. Os pases capitalistas industriais possuem inmeros instrumentos que garantem o no repasse os aumentos de produtividades alcanados aos preos das mercadorias.Um dos instrumentos para a realizao do no repasse do aumento da produtividade aos preos se d de maneira anloga aos capitalistas individuais quando se reduz o valor individual da mercadoria enquanto o valor socialmente mdio da produo permanece inalterado, desta forma, o capitalista (ou a nao capitalista) obtm vantagem de lucro sob os capitalistas (ou nao capitalistas) rivais. Esta forma garante a obteno da chamada mais-valia extraordinria, ou seja, a mais-valia retirada quando a mercadoria vendida possui um valor menor que o valor mdio de produo. Esta forma de obteno de mais-valia se d atravs da deteriorao a distribuio equnime de excedente entre os capitalistas que concorrem em certos setores de produo, dando mais mais-valia queles capitalistas com maior produtividade e menos mais-valia queles com menor produtividade, este tipo de mais-valia se cessa ao passo que o fator que gera o aumento da produtividade (seja novas formas de produo, tecnologias, etc.) se generaliza e a produtividade mdia se aproxima. (MARINI, 1979).Assim, este mecanismo se projeta para a economia mundial, onde o setor (ou setores) de maior produtividade se apropria do excedente daqueles de menor produtividade. Entretanto, na dinmica global, poucos so os pases com condies de desenvolverem alta capacidade produtiva, ou seja, com poder de no transferir a queda no valor aos preos das mercadorias. O monoplio por parte destes pases mais avanado no mbito da produo consegue, desta forma, retardar ou impedir que esta capacidade produtiva se generalize, fazendo que com que os pases menos desenvolvidos sejam impedidos de tornar parelhos os custos de produo no mais temporariamente, como ditaria a teoria, mas de forma perene. Em resumo, o aprofundamento da Diviso Internacional do Trabalho faz com que os pases centrais absorvam o valor produzido pelos pases menos desenvolvidos de maneira fixa e infindvel e no intermitente -, devido ao descompasso gigantesco de produtividade de ambas as naes e os mecanismos de mercado que garantem a manuteno deste descompasso.Rui Mauro Marini (2000, p109) assim afirma: a partir desse momento que as relaes da Amrica Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a diviso internacional do trabalho, que determinar o curso do desenvolvimento posterior da regio. Em outras palavras, a partir desse momento que se configura a dependncia, entendida como uma relao de subordinao entre naes formalmente independentes, em cujo mbito as relaes de produo das naes subordinadas so modificadas ou recriadas para assegurar a reproduo ampliada da dependncia. O fruto da dependncia s pode assim significar mais dependncia e sua liquidao supe necessariamente a supresso das relaes de produo que ela supe.Como sabemos, a prpria Revoluo Industrial inglesa foi em grande medida financiada pelo desembargo agrcola precedente da Amrica Latina. Devido ao alto custo da renda da terra europia, o pas Breto obtinha baixo lucro com o investimento em agricultura, transferindo assim seu investimento ao setor industrial e se especializando no mesmo. Ao passo que a indstria europia crescia, o America Latina continuava como fornecedora de alimentos de matria-prima necessria para o desenvolvimento europeu. Assim, a Amrica Latina cooperar para que o eixo da acumulao na economia industrial se desloque da produo de mais-valia absoluta para a mais-valia relativa3, isto , que a acumulao passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da explorao do trabalhador (MARINI, 2000, p. 112-113). Isto se d, pois a Diviso Internacional do Trabalho que se estabelece desta forma d aos pases latinos a atribuio de fornecedores de gneros alimentcios para o operariado britnico, isto, somando-se a queda generalizada nos preos da produo primria, que garante a baixa do valor da fora de trabalho nas naes que se industrializavam, faz com que o aumento da produtividade se manifeste no aumento constante das cotas de mais-valia relativa (MARINI, 2000).

2.2 TEORIA MARXISTA DA DEPENDENCIA

Entendido o processo que desenvolve a Diviso Internacional do Trabalho, passamos a nos aprofundar nos aspectos e especificidades prprias que se manifestam no seu desenvolvimento dentro da Amrica Latina, para tal, comearemos expondo acerca da origem do subdesenvolvimento dos pases latinos, que em grande medido produto histrico do passado, mas que permanece nos dias atuais entre as relaes econmicas dos pases metropolitanos desenvolvidos e seus satlites subdesenvolvidos (FRANK, 1973), acerca disso, Gunder Frank afirma que:O subdesenvolvimento no devido sobrevivncia de instituies arcaicas e escassez de capital em regies que permanecem isoladas do fluxo da histria mundial. Ao contrrio, o subdesenvolvimento foi e ainda gerado pelo mesmo processo histrico que gerou tambm o desenvolvimento econmico [...] dentro da estrutura metrpole-satlite que abarca o mundo capitalista, as metrpoles tendem a desenvolver-se e os satlites a subdesenvolver-se.(FRANK, 1973, p. 31)Assim, apercebe-se o componente estrutural do desenvolvimento e subdesenvolvimento das naes, ambas enraizadas na prpria dinmica totalizante do capitalismo, onde desiguais desenvolvimentos entre as naes so parte imprescindvel para a reproduo e avano do sistema capitalista como um todo. Foram de trs formas que a supremacia dos pases centrais reteve o desenvolvimento econmico dos pases subdesenvolvidos. Primeiramente retirou o lucro da produo local e os repassou a metrpole, estancando o processo de acumulao primitiva que foi necessrio, por exemplo, para o desenvolvimento destas mesmas metrpoles, expropriando, assim, o produto social local latino americano que serviria para a nossa prpria acumulao primitiva. Alm disso, garantiu a manuteno e investimento naquilo que se transformaria nas particularidades prprias do subdesenvolvimento, como a propriedade da terra o comrcio externo, etc. E, finalmente, assegurou a manuteno de castas da classe dominantes no poder e manteve grande parte da populao fora da esfera da produo, o que significava diminuir ainda mais a capacidade da acumulao primitiva de capital (MANDEL, 1982).Foi a maneira de investimento dos pases metropolitanos a seus subsidirios subdesenvolvidos que deu forma a uma dinmica de desenvolvimento da qual os pases latino-americanos se transformariam em parte integrante do desenvolvimento dos pases centrais, ou seja, foi este investimento que determinou aos pases subdesenvolvimentos o crescimento econmico voltado a produo de matrias-primas vegetais e minerais. Assim, o comrcio internacional se formou ao juntar o crescimento de excedente de capital nos pases centrais a buscar por grandes taxas de lucro e matrias-primas advindas dos pases perifricos. (MANDEL, 1982).Como o enorme volume de fora de trabalho a baixo preo, tornou no lucrativo o emprego de capital fixo em grande escala: a mquina moderna no podia competir com esse trabalho barato (MANDEL, 1982, p. 39) passou-se a existir intervenes das metrpoles a fim de coordenar esta mo-de-obra barata latino-americana com intuito elevar a produo de matrias-primas a escalas globais. Isto se deu, pois o acrscimo da participao das matrias-primas no valor das mercadorias na Europa incentivava a procura por novas e mais baratas fontes de produo na Amrica Latina. Desta forma, a produo de matrias-primas, que na Amrica Latina era arcaica e com baixssimos custos de mo-de-obra fizeram com que no houvesse incentivos ao processo de desenvolvimento e modernizao das nossas prprias foras produtivas, assim, o abismo que j existia entre a capacidade produtiva dos pases perifricos e dos pases centrais apenas se acentuou. Este abismo acentua-se, pois o controle do capital estrangeiro sobre a nossa acumulao de capital exportou o nosso capital para as naes desenvolvidas, forando os pases perifricos ao seu papel na Diviso Internacional do Trabalho e assim continuando a reforar esta mesma lgica de expropriao de capital. Assim, foi a organizao desta lgica da Diviso Internacional do Trabalho, onde os prprios pases perifricos eram forados a garantir a manuteno da lgica que expropriava seu prprio capital e o reinvestia nos pases desenvolvidos, que transformou e separou estes pases entre dependentes (Amrica Latina) e metropolitanos (Europa).Foi o crescimento do capital comercial e bancrio europeu que garantiu a expanso do sistema monetrio e o estabelecimento da grande indstria na Inglaterra. Este capital s se deu como conseqncia do crescente comrcio entre Amrica e Europa, em especial dado a produo de alimentos e metais preciosos do novo mundo. Este comrcio, ainda sim, no se deu num vcuo, ele foi se desenvolvendo concomitantemente ao processo de industrializao ingls e, no por coincidncia, os processos de independncia latino-americanos. A conseqncia de ambos os processos foi a vinculao econmica entre os pases recm independentes e a Inglaterra, fazendo assim que estes pases exportassem produtos primrios para abastecer a crescente populao inglesa e em contrapartida importasse manufaturas necessrias para a reproduo da vida na Amrica.Mas, como vimos anteriormente, ainda existe um abismo entre a capacidade produtiva dos pases perifricos e centrais, portanto, para dar conta de assegurar a capacidade de importao os pases dependentes primeiramente so forados a buscar emprstimos externos; com o tempo, entretanto, os produtos primrios comeam a galgar espao nas trocas internacionais, tornando-se ento, superavitrios nos pases do Novo Mundo. Estes saldos de supervit so ento transferidos s metrpoles via lucro. No decorrer do tempo, entretanto, h uma queda acentuada no valor das manufaturas em relao aos alimentos, j que estes se mantm relativamente fixo. Por conta do monoplio dos pases mais desenvolvidos, ou por uma capacidade de desenvolvimento das foras produtivas mais avanadas que dos pases subdesenvolvidos, se d o processo de transferncia de valor, visto que o monoplio de produtos manufaturados faz com que eles possam manter o preo acima do valor (que vai diminuindo com o desenvolvimento produtivo), ou via concorrncia caso no haja monoplio, pois com maior capacidade produtiva, os pases desenvolvidos conseguem vender as mercadorias ao mesmo preo que dos pases subdsenvolvidos, mesmo as mercadorias tendo valor menor, pelo valor mdio. Este um dos determinantes da transferncia de valor no comrcio internacional, de maneira que os produtos manufaturados tm seu valor na economia mundial sempre decrescente. (MARINI, 2000, p. 117-118)A concluso que Marini (MARINI, 2000, p. 118) tira acerca desta lgica de funcionamento do capitalismo global, ento, : No porque se cometeram abusos contra naes no industriais que estas se tornaram economicamente fracas, porque eram fracas que se abusou delas. No tampouco porque produziram alm do devido que sua posio comercial deteriorou-se, mas foi deteriorao comercial que as forou a produzir em maior escala.Ainda acerca dos mecanismos pelos quais havia este descompasso de valores entre as naes, Mandel (1982, p. 244) afirma que: Troca desigual significa que as colnias e as semicolnias tendiam a trocar quantidades cada vez maiores de trabalho nativo (ou produtos do trabalho) por uma quantidade constante de trabalho metropolitano (ou produtos do trabalho). Com o aprofundamento da economia internacional, o desenvolvimento do capitalismo e do fluxo internacional de capital no decorrer do tempo, em especial no ps-guerras, uma srie de mudanas da economia mundial faz com que a transferncia de lucro perca espao na lgico da economia global e, com isso, as trocas desiguais passam a se tornar central no processo de troca internacional, sobretudo na Amrica Latina. As principais mudanas ocorridas podem ser resumidas em quatro grandes questes: primeiro, a transformao do fluxo de capitais no mais no molde colnia-metrpole, mas entre Estados metropolitanos; segundo, a mudana das coordenadas do investimento estrangeiro no mais para produo de matria prima e sim para bens de consumo; terceiro foram as polticas antiimperialistas seguida por parte dos pases subdesenvolvidos a fim de diminuir a transferncia de lucros para os pases centrais e, por fim, a busca das burguesias nacionais das naes perifricas em aumentar sua prpria extrao de mais-valia em relao as empresas dos pases centrais (MANDEL, 1982).Neste momento, faz-se necessrio resistir ao impulso de avanar no debate das causas do subdesenvolvimento latino-americano para resgatarmos a ortodoxia do mtodo histrico e dialtico e entender como funciona de maneira um pouco mais minuciosa a dinmica de uma economia dependente, na tentativa de chegarmos essncia dos interesses que constituem a circulao capitalista e nvel global.Assim, a apropriao do produto social por parte do proletariado (ie salrios) s pode ser visto a partir da disputa de interesses antagnicos entre trabalhadores e patres que foram o preo da fora de trabalho a diminuir ou aumentar em relao ao valor do trabalho. , ento, o resultado da disputa de classe que baliza a repartio do produto social, tendo como base o valor da fora de trabalho. Desta forma, o antagonismo de classe se caracteriza de forma que, enquanto os trabalhadores buscam melhorias na condio de sua reproduo da vida, os patres visam diminuir o salrio ao mximo em vias de aumentar sua prpria taxa de lucro.No entanto, dentro da complexidade da lgica capitalista moderna, outros fatores inerentes ao capitalismo tambm precisam ser sensivelmente considerados dentro desta disputa de elevao ou rebaixamento salarial. Primeiramente, importante perceber que o lucro, por parte dos capitalistas, s se realiza medida que os consumidores comprem os valores de uso materializados na mercadoria. Parte deste consumo advm da Mais-Valia no-acumulada - aquela que no reinvestida na produo -, ou seja, a frao do consumo correspondente a burguesia onde esto inseridos os bens no consumidos pelo proletariado (Marini os insere no subsetor IIb). Outra parcela se diz do consumo advindo do capital varivel (salrios), ou seja, os bens necessrios por parte da massa trabalhadora para a sua prpria reproduo e subsistncia (Marini os denomina subsetor IIa). Assim, para o autor, os produtos que so adquiridos diretamente pelo proletrio e pela burguesia para o consumo fazem parte do setor II da produo. De forma anloga, o consumo pode advir do reinvestimento de Mais-valia para obteno de capital constante (indstrias de produo de equipamentos e mquinas), ou seja, reinvestir no prprio processo produtivo. Igualmente, elas se separam em produo de capital constante para produo de bens voltada ao proletariado ou burguesia, neste caso, setores Ia e Ib respectivamente (MARINI, 1979a).Desta forma para o consumo do produto materializado pelo setor IIb e Ib (pois o segundo depende do primeiro para efetuar sua produo) a burguesia sujeita apenas a capacidade de realizao do consumo da sua prpria classe. Portanto, no apenas incentiva o interesse na reduo dos custos de mo-de-obra aos menores possveis, como tambm quanto menor os salrios da massa trabalhadora, maior relativamente ser a frao do produto social dada classe burguesa, fazendo, assim, que estes subsetores forcem a queda do salrio com o dobro de intensidade.De maneira inversa, apresenta-se uma clara contradio para os empresrios que investem nos subsetores Ia e IIa, pois ao mesmo tempo que a reduo do custo da mo-de-obra se mostra imperativa, de vital importncia que o proletariado, como classe, tenha condio de consumo, ou seja, salrio elevados. Esta dualidade no consegue ser percebida olhando este subsetor de maneira individual, atravs de disposio individual de cada capitalista, pois eles ainda buscam, como o restante da classe, o aumento imediato da explorao de mais-valia e lucro, mas, dentro da esfera de polticas pblicas, este subsetor de classe pode se comportar de maneira ambgua na relao de dispositivos que favoream a capacidade de consumo da classe trabalhadora.Configura-se desta forma, um descompasso dentro da luta da prpria burguesia em relao aos direitos dos trabalhadores para alm do antagonismo clssico entre a burguesia e o proletariado. Dada as diferentes constituies das capacidades produtivas e das classes sociais, este antagonismo clssico, onde ao mesmo tempo em que o proletrio cria toda a riqueza ele apenas uma frao de seu consumo se configura de forma diferente entre pases desenvolvidos e subdesenvolvidos. Aqui, necessrio perceber que mesmo sendo crucial o mtodo marxista apresentando nO Capital, pressupor a igualdade entre preo e valor na dinmica capitalista tem como funo perceber quais so os elementos essenciais das leis que estruturam o capitalismo. Entretanto, dentro da complexidade totalizante do funcionamento real do capitalismo, as trocas no se equivalem de acordo com este modelo terico, embora, novamente, ele seja demasiadamente necessrio para entendermos a relao fundamental de funcionamento do capital. Assim, as mercadorias entre elas a fora de trabalho -, podem ter seu preo em unidade acima ou abaixo do seu valor real. O salrio, em especial, determinado nesse caso no apenas pelo mnimo necessrio para a reproduo da vida (isto, determinado historicamente), mas outros fatores no emaranhado complexo da totalidade capitalista podem pressionar o salrio a nveis mais baixos ou mais altos que seu valor.O prprio Marx (2008, p. 306) nos d uma definio cruamente dramtica da lgica que se incorpora na lgica do empresariado e suas tentativas de forar a atividade da fora de trabalho para alm do seu limite material:[...] em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos, fsicos e morais, da jornada de trabalho. Usurpa o tempo que deve pertencer ao crescimento, ao desenvolvimento e sade do corpo. [...] O capital no se preocupa com a durao da vida da fora de trabalho. Interessa-lhe exclusivamente o mximo de fora de trabalho que pode ser posta em atividade. Ou mesmo em relao ao trabalho e a sade dos trabalhadores, Marx (2008, p. 125) alerta que:Do mesmo modo, esse trabalho coletivo em massa, em recintos fechados e em condies que no consideram a sade do trabalhador, destinando-se a facilitar a fabricao do produto, essa concentrao macia no mesmo local de trabalho, fonte de lucro crescente do capitalista e, alm disso, quando no compensada por reduo da jornada ou por medidas de precauo adequadas, arruna a vida e a sade dos trabalhadores. Marx ento compreende que o pagamento da fora de trabalho (e de qualquer outra mercadoria) pode estar parcialmente descolada de seu valor, mas, como este era um tema relativamente marginal ao que se propunha em O Capital (entender as lei estruturantes do sistema capitalista), o mesmo no se aprofundou na temtica da oscilao dos valores e do preo da fora de trabalho.

2.3 A SUPEREXLORAO

O conceito de superexplorao nasce, ento, na obra de Ruy Mauro Marini como forma de interpretar a configurao histria dos pases dependentes atravs do mtodo marxista de anlise, entendendo suas especificidades acerca do tema. Ele versa sobre a violao da fora de trabalho ou sua aquisio por um preo abaixo do seu valor histrico, podendo se expressar ou pela violao do fundo de consumo do proletariado ou do seu fundo de vida.A primeira diz respeito aquisio de uma frao do capital varivel em forma de mais-valia, impedindo que a massa trabalhadora tenha condies de consumo dos valores-de-uso indispensveis a reproduo da sua vida ou da vida de sua famlia em condies normais, podendo se apresentar na forma de queda de salrio ou aumento do valor histrico do trabalho sem que aumento proporcional do salrio ocorra.J a segunda acontece atravs da ampliao da jornada de trabalho ou sua intensidade para alm da natural, fazendo com que as foras fsicas e espirituais dos trabalhadores sejam consumidas de forma precoce, de forma que o aumento do valor conseqente deste maior desgaste no consiga ser suprido pelo aumento do consumo. Como a explorao a razo entre o total de horas prprias mais-valia e o total de horas prprios do capital varivel, percebe-se que estas medidas de salrios abaixo do valor da fora de trabalho tm como funo aumentar a qualidade da explorao. Existem, ainda, diferentes determinantes sob o nvel de explorao: o desenvolvimento das foras produtivas dos setores Ia e IIa, como apresentado antes, pressiona o valor da fora de trabalho para baixo, assim, o aumento da produtividade nesta produo faz, concomitantemente, aumentar o grau de explorao do trabalhador, embora isto no denote fatalmente a superexplorao da fora de trabalho.Devemos esclarecer ento a confuso que existe, onde se percebe a superexplorao no como um conceito, mas como uma mera adjetivao do conceito de explorao (ou seja, diferente apenas quantitativamente e no qualitativamente). A superexplorao define-se, portanto, como o pagamento da fora de trabalho abaixo do seu valor histrico real, podendo, desta forma, existir uma menor taxa de explorao para o trabalhador superexplorado que para o explorado, dependendo das circunstncias de cada pas ou setor, j que no a superexplorao que define a quantidade de Mais-Valia ou de Capital Varivel (que determinam o grau de explorao)A partir disso, Marcelo Carcanholo (2013, p.75) conclui que:O rigor terico e metodolgico exige utilizar o termo superexplorao da fora de trabalho, uma vez que explorar no sentido de usar, utilizar, consumir, realizar aquilo que j o resultado desta explorao (utilizao), o trabalho, no parece fazer muito sentido.Entretanto, enquanto a superexplorao significa para as metrpoles maneiras de conseguir fraudar a lei do valor na sua busca por lucros extraordinrios, no caso da Amrica Latina, como parte do nosso excedente social transferido para os pases centrais, a superexplorao a maneira com a qual a burguesia nativa consegue contrabalancear sua taxa de lucro, custa da classe trabalhadora, Marini acerta ento que: O problema colocado pela troca desigual para a Amrica Latina no precisamente o de se contrapor transferncia de valor que implica, mas compensar a perda de mais-valia, [...] incapaz de impedi-la no nvel das relaes de mercado, a reao da economia dependente compens-la no plano da produo interna. (MARINI, 2005, p. 154). Como a nica forma de manter altas taxa de lucro alm da superexplorao seria impedir o processo de transferncia de valor aos pases centrais (e estes no o fazem, pois so dependentes deste sistema para a manuteno de sua prpria acumulao), o que as burguesias nativas fazem ento voltar-se sempre para o mecanismo da superexplorao, reduzindo salo, estendendo a jornada de trabalho, tornando-o informal ou mesmo aumentando o exrcito industrial de reserva de forma a pressionar a diminuio salarial.Como o papel dos pases dependentes, em especial na Amrica Latina, na Diviso Internacional do Trabalho o de exportadores de bens de consumo aos pases centrais, as perdas causadas pela diminuio da capacidade de consumo das classes subalternas irrisrio. Como ento o comrcio mundial que determina o padro de produo dos pases dependentes, os incentivos da burguesia nacional so o de manuteno dessa lgica de superexplorao e transferncia de valor, fazendo com que as economias dependentes continuem nesta lgica exportadora e no no caminho da industrializao, assim:[...] o desenvolvimento da produo latino-americana, que permite regio coadjuvar com essa mudana qualitativa nos pases centrais, dar-se- fundamentalmente com base em uma maior explorao do trabalhador. (MARINI, 2005, p.144). As anlises de Marini, ento, vm no sentido de entender que necessrio um olhar especfico do processo de produo nos pases dependentes para alm da anlise do capitalismo estruturada por Marx. As especificidades do capitalismo dependente, como demonstrado, nos obriga a entender como a estrutura econmica se configura na nossa realidade, tendo, neste caso, o conceito de superexplorao como resultado trgico do processo de transferncia de valor entre a colnia e a metrpole. Justamente por estar razes, Carcanholo conclui que: preciso ressaltar que, no nvel de abstrao do livro I de O capital, no qual a questo mais tratada, no fazia sentido analisar o aumento da taxa de mais-valia em razo da reduo do salrio, ainda que a possibilidade real de que isto acontea tenha sido inmeras vezes remarcada. Isto porque ali se tratava de entender o processo de produo do capital, abstraindo-se da anlise todas as reais dificuldades que ele tem para circular e realizar o valor produzido, temtica dos outros livros. Assim, no livro I desta obra, supe-se que todo o valor produzido ser realizado; ou melhor, que as mercadorias sero vendidas no volume e na magnitude de valor em que foram produzidas. Em termos da mercadoria fora de trabalho, isto significa que os salrios corresponderiam ao valor da fora de trabalho. (CARCANHOLO, 2013, p. 80). E finalmente que:Como se viu, a superexplorao da fora de trabalho no pode ser considerada uma categoria em Marx, at em funo do nvel de abstrao em que ele estava em O Capital. Ao contrrio, para a teoria marxista da dependncia, em um menor nvel de abstrao em relao a Marx, trata-se de entender a especificidade do capitalismo dependente. Como afirmamos antes, pretendemos demonstrar agora que a superexplorao no apenas um conjunto de mecanismos que levam elevao da taxa de mais-valia, mas, para alm disso, constitui-se em uma categoria central - alis a mais importante da teoria marxista da dependncia. (CARCANHOLO, 2013, p83)Assim, conclumos que a acumulao de capital sob forma de superexplorao no apenas uma qualidade singular de algumas economias especficas, a fora-motor do desenvolvimento latino-americano, no espontneo ou fenomenolgico, parte da estrutura dependente e est imbricado no nosso prprio processo de formao histrico.

3 AS DETERMINAES IDEOLGICAS

- Uma vez expulsos do Paraso, o Homem no teve escolha a no ser escapar para esta existncia terrena, lado a lado com a morte. o nosso paraso, criado pelo trabalho que este mais fraco dos seres foi forado a desenvolver.- Para nos proteger do medo da morte, para saciar nossa sede pelo prazer, um paraso que ns mesmos criamos. Esta cidade verdadeiramente um paraso. Uma cidade armada para nos defender.- Uma cidade de cidade de covardes fugindo do mundo exterior, recheada de inimigos.(Ikari para Fuyutsuki, Neon Genesis Evangelion)

3.1 O PROBLEMA DA IDEOLOGIA

No de hoje que o estudo da ideologia vem sendo alvo de intensos debates dentro da comunidade cientfica, a ponto de poder facilmente ser considerado o conceito de definio menos precisa de todo arcabouo terico marxista. Isso se deve, como afirma Terry Eagleton em sua obra Ideologia: uma Introduo, no porque as pessoas que trabalham nessa rea sejam notveis por sua pouca inteligncia, mas porque o termo ideologia tem toda uma srie de significados convenientes, nem todos eles compatveis entre si. (EAGLETON, 1997). Estes significados no s variam entre correntes tericas diametralmente opostas, mas tambm dentro do prprio marxismo h um rico e intenso debate acerca da real significao do tema.Assim, Eagleton inicia apresentando uma coleo de significaes de ideologia que circulam socialmente, em vistas de iniciar um mapeamento das definies do tema nos debates correntes. Esta lista traz percepes de ideologia como processos de produo de significados, signos e valores na vida social; ideias falsas que ajudam a legitimar um poder dominante; comunicao sistematicamente distorcida; um corpo de idias caracterstico de um determinado grupo ou classe social; formas de pensamento motivadas por interesses sociais; pensamento de identidade; iluso socialmente necessria; o veculo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo; conjunto de crenas orientadas para a ao; a confuso entre realidade lingstica e realidade fenomenal; o meio pelo qual os indivduos vivenciam suas relaes com uma estrutura; etc. (EAGLETON, 1997).Conseguimos ento perceber no s a vastido de significados formalmente aceitos ao conceito de ideologia, mas, alm disso, que algumas teses so antagnicas entre si enquanto outras so compatveis ou at complementares. Neste caso, por exemplo, impossvel ideologia designar qualquer conjunto de crenas motivadas por interesses sociais e ao mesmo tempo representar somente formas de pensamento dominantes. Outra observao em relao ao carter que ideologia empregada sob certas significaes, algumas tratando ideologia como algo certamente nefasto, outras, vagamente nefasta, outras representando algo vagamente neutro e ainda entusiasta em relao ao termo. Para Eagleton (1997, p. 16), neste caso: Considerando-se vrias dessas definies, ningum gostaria de afirmar que seu prprio pensamento ideolgico, assim como ningum normalmente iria se referir a si mesmo como gorducho. A ideologia, como o mau hlito, , nesse sentido, algo que a outra pessoa tem. Ao afirmar que os seres humanos so at certo ponto racionais queremos dizer, como parte dessa declarao, que ficaramos surpresos se encontrssemos uma pessoa que sustentasse convices que ela prpria reconhecesse como ilusrias. J um corpo de ideias caracterstico de um determinado grupo ou classe social no parece ser algo repulsivo a princpio, fazendo com que os sujeitos ficassem confortveis em admitir o prprio componente ideolgico de seus discursos e aes sem serem automaticamente classificadas como ilusrias.Finalmente, dentre as definies apresentadas, podemos identificar que algumas tm um cunho epistemolgico, enquanto outras tm um carter mais sociolgico, voltado para ao ou at mesmo ambguo em relao a isto. Esta primeira, como veremos, est estritamente vinculada a um fio que atravessa filsofos como Hegel, Marx e Lukcs tentando desvendar os movimentos ideolgicos sob a tica da ideologia como distoro, vu ilusrio ou mistificao, outras voltadas apenas para o papel das ideias na sociedade (EAGLETON 1997). Esta diviso fundamental para compreendermos grande parte das divergncias que existem entre as principais tradies percebidas nos debates sobre ideologia.Como uma avaliao complementar, importante fazer o exerccio de anlise sobre qual a definio de ideologia na vida rotineira, ou seja, o que significa o termo ideologia quando dito no dia-a-dia, afastado do mundo cientfico, em uma mesa de bar com amigos por exemplo. No o caso de tratarmos este como significado juiz do processo analtico, mas tentar tirar proveito do que como o termo da ideologia se traduz no cotidiano, pois assim ele no apresenta, de certa forma, o resultado de uma disputa terica e poltica anterior. No s o termo em si, mas a maneira como ele usado e afirmado cumpre, desta forma, tambm uma funo social. Em um amistoso ou vociferante debate fraterno e cotidiano, no apenas se afirma que algum est sendo ideolgico, acusa-se. Neste caso o interlocutor percebe as coisas como elas realmente so; [o idelogo] as v de maneira tendenciosa, atravs de um filtro imposto por algum sistema doutrinrio externo. (EGLETON, 1997, p. 17). Aqui, o termo ideologia atribudo de um carter essencialmente pejorativo. Assim, h, em geral, uma sugesto de que isso envolve uma viso extremamente simplista do mundo que falar ou avaliar ideologicamente faz-lo de maneira esquemtica, estereotipada, e talvez com um toque de fanatismo (EAGLETON, 1997. p.17). Neste caso, o discurso no-ideolgico seria aquele referente no a uma verdade incontestvel, definitiva e inabalvel, seria algo mais prximo de uma verdade pragmtica, conjuntural. (EAGLETON, 1997).Tal discurso de fcil refutao, ao percebermos que ao alegar ideologia somente como viso de mundo ou pensamento esquemtico s nos diz algo quando adjetivado como simplista, tendencioso ou fantico e tais adjetivos, por si s, possuem mrito apenas pessoal e pouco objetivo. difcil concordar que exista qualquer tipo de argumentao se alguma concepo anterior, alguma viso de mundo ou esquematizao terica e, analogamente ao discurso anterior, difcil conceber algum sujeito que autodenomine suas posies como tendenciosas ou fanticas. O discurso doutrinrio sempre do outro, enquanto o meu agradavelmente autnomo.[footnoteRef:1] [1: Aqui, no estou querendo afirma que no exista discurso tendencioso, doutrinrio ou fantico, eles existem e podem ser objetivamente demonstrados. Estou apenas afirmando qual o significado atribudo ao conceito de ideologia na fala corrente, usado essencialmente desvinculado de qualquer contextualizao externa, como se bradar ideolgico fosse argumento suficiente para comprovar que o discurso do outro falso. ]

O resgate ao discurso cotidiano no nos parece, neste caso, em vo. Ele demonstra justamente sob que coordenadas o conceito de ideologia vem sendo apropriado socialmente. Este discurso resultado, entre diversos outros fatores, do descenso da esquerda na disputa global por um novo patamar civilizatrio, remontando o fim da Unio Sovitica e a ascenso do imprio Estadunidense. ento, conseqncia da promoo do discurso sociolgico norte-americano ao discurso corrente, que acredita na crena de que a ideologia uma forma esquemtica e inflexvel de se ver o mundo, em oposio a alguma sabedoria mais simples, gradual e pragmtica (EAGLETON, 1997, p.17), da afirmao de destes discursos, onde se percebe que as ideologias so explcitas, fechadas, resistentes a inovaes, promulgadas com uma grande dose de afetividade e requerem a total adeso de seus devotos (EAGLETON, 1997, p.17) O resultado mais notvel da elevao deste discurso a prpria afirmao do fim da ideologia professada pela mdia, partidos, e idelogos em geral. Portanto, o perigo deste discurso versa no apenas em tratar ideologias como formas esquemticas inflexveis, mas tambm quais alvos esta inflexibilidade formal projetada. Em resumo, para Eagleton (1997, p.18):O que se quer dizer com isso que a Unio Sovitica est nas garras da ideologia, ao passo que os Estados Unidos vem as coisas como elas realmente so. No se trata, como o leitor ir verificar, de um ponto de vista em si mesmo ideolgico. Tentar alcanar algum objetivo poltico modesto e pragmtico, tal como derrubar o governo democraticamente eleito do Chile, uma questo de adaptar-se de modo realista aos fatos; j enviar tanques para a Tcheco-Eslovquia um exemplo de fanatismo ideolgico.Desta forma, a ideologia do fim da ideologia sofre de uma ambivalncia. Enquanto ela incondicionalmente irracional, ela tambm obsessivamente racionalista. Uma mistura de f cega, mstica, louca e fantica, mas com preciso cirrgica em sua coerncia interna, modelos e esquemas voltados a um plano impiedosamente irrevogvel; coisas que o sistema tecnocrtico capitalista certamente j ultrapassou.No meio deste emaranhado de conceitos, rupturas, significados e impactos polticos reais, para conseguirmos afastar a neblina que turva nossa viso acerca do objeto de estudo da ideologia, optamos por fazer um resgate metodolgico rigoroso do mtodo marxista. Para conseguirmos avanar na anlise sobre ideologia, resolvemos ento tratar apenas de ideologia sob tica de dois autores que consideramos fundamentais sobre o tema, Gyrgy Lukcs e Antonio Gramsci. A escolha por Lukcs se deu, pois ele o principal responsvel por buscar as origens que fundam os processos ideolgicos, ou seja, a ontologia do ser social, os processos de reificao e fetichismo e a concepo totalizante do capitalismo como fundamentos da ideologia. Optamos por Gramsci por, alm de ser um inequvoco terico do tema, ainda introduz o conceito de hegemonia ao circuito ideolgico.

3.2 IDEOLOGIA PARA LUKCS E GRAMSCI

3.2.1 Ontologia do Ser Social em LukcsPara conseguirmos vislumbrar com segurana o que ideologia significa para Lukcs, primeiro devemos resgatar todo o trajeto de desenvolvimento do seu pensamento at este ponto, j que apenas entendendo as origens ontolgicas do ser social que teremos condies de traar um fio que nos guie com garantia interpretao do autor acerca deste objeto de estudo.A ontologia do ser social lukacsiana parte da premissa retirada de Marx de que a vida dos Homens pode apenas existir enquanto os mesmo estiveram continuamente em processo de transformao da natureza. De modo alternativo ao que se percebe na natureza, essa dimenso de transformao possui um carter teleolgico, uma concepo de finalidade, as transformaes, neste so resultados de construes subjetivas anteriores, ou seja, existe um plano, um projeto para transformao que guia a ao de transformar a um fim especfico. este processo de conscincia, finalidade, ao e transformao que Lukcs cunha como trabalho. [...] ocorre em Marx, tambm nesse caso que o trabalho a categoria central, na qual todas as outras determinaes j se apresentam in nuce: O trabalho, portanto, enquanto formador de valores-de-uso, enquanto trabalho til uma condio de existncia do homem, independente de todas as formas de sociedade; uma necessidade natural eterna, que a funo de mediatizar o intercmbio orgnico entre o homem e a natureza, ou seja, a vida dos homens. Atravs do trabalho, tem lugar uma dupla transformao. Por um lado, o prprio homem que trabalha transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao mesmo tempo, a sua prpria natureza; desenvolve as potencias nela oculta e subordina as foras da natureza ao seu prprio poder. Por outro lado, os objetos e as foras da natureza so transformados em meios, em objetos de trabalho, em matrias-primas, etc. [...] (LUKCS, 1979: p.16).Para Lukcs, entretanto, este trabalho constitui-se unicamente atravs de medies de dois complexos sociais essenciais: as relaes sociais e a linguagem. Portanto, para o autor, o ser social resultado da interao destas trs categorias fundamentais: o trabalho, a linguagem e a sociedade. Destas, o trabalho que protagoniza o processo de desenvolvimento social, pois nele est imbricada uma caracterstica nica e singular, a produo do novo, que o que compele os sujeitos a nveis mais avanados de sociabilidade. E, a partir de Marx, Lukcs afirma trs momentos fundamentais da categoria do trabalho: a objetivao, a exteriorizao e a alienao (LESSA, 1996).A primeira diz respeito s aes que guiam o processo de transformao idealizado, do destinao a um processo anteriormente apenas pensado a um produto objetivo. A objetivao que realiza a mudana da ideia criao de algo que nunca antes existiu, ela que agencia a teleologia ao processo criativo de um novo objeto ou produto social, ontologicamente destoante daquilo que o projetou como fim, ou seja, com uma identidade prpria.O processo de objetivao tambm volta ao seu prprio criador. Neste caso, ao transformar a natureza, o agente transformador tambm se transforma. Isto se d, pois alm de adquirir novas habilidades, o processo de sobrepujar as resistncias da prpria criao obriga ao criador conhecimento sobre o objeto que sofre o processo de criao, em outras palavras, quo melhor se conhecer as determinaes dos objetos que se pretende transformar (seja um pedao de madeira em fogo, ou a sociedade capitalista), mais qualificado ser o processo de transformao (LESSA, 1996).A exteriorizao diz respeito ao novo patamar histrico sob o qual o processo de transformao via trabalho imbrica. A produo de um novo objeto ento, no apenas o processo de objetivao de uma ideia em algo novo, ele estabelece um novo patamar civilizatrio. Toda a transformao se d a partir de um dado patamar de desenvolvimento individual j alado e historicamente determinado, ao produzir um novo objeto, assim, toda histria da humanidade e seu reflexo na individualidade esto aplicados a ele. Quando, ento, o trabalho realizado e dele surge um novo objeto inteiramente novo, esse processo exterioriza um novo patamar de desenvolvimento social (LESSA, 1996). esta relao entre objetivao e exteriorizao que nos da a base do ser social como ente ontolgico diferente da natureza. Essa diferenciao se d, portanto, pois a esfera humana recheada pelo produto do trabalho do homem, o mesmo no ocorre no mundo natural. Tanto o produto dos Homens quanto os produtos da natureza so resultados de interaes de causa e efeito, mas somente nas produes humanas h inerentemente uma relao de transformao teleolgica, fruto de uma concepo anterior destinada a fins especficos. Esta relao inexiste na natureza, onde seus produtos, mesmo sendo resultado de relaes causais, no possuem finalidades envoltas de um projeto anterior, de um fim determinado e consciente, so frutos do acaso e das leis naturais.As transformaes encadeadas pelos humanos, entretanto, nunca correspondem exatamente com sua finalidade originria, podendo essas variaes serem marginais em relao ao plano originrio ou mesmo miserveis fracassos. Isto se d no apenas porque existe um montante de acaso imensurvel ou de difcil racionalizao que impede os sujeitos de compreenderem o objeto em sua totalidade, mas tambm porque o prprio processo de criao transforma o sujeito durante todas as etapas do processo, quem ele e o que ele quer ento se altera juntamente a alterao do objeto sobre qual ele realiza o trabalho e, e ento se mutam ou se adaptam a estes novos cenrios. Desta forma, existe uma eterna tenso entre a teleologia e o objeto que se esbarram, mas nunca se encontram totalmente (LESSA, 1996). da dualidade entre objetivao e exteriorizao que promove a mediao necessria entre o trabalho e a sociabilidade, isto se d, pois todo resultado do trabalho humano se generaliza objetiva e subjetivamente. Isto significa que este novo objeto, ao sofrer ao do trabalho, se insere automaticamente no contexto social de sua criao, desta forma sofrendo influncias e influenciando a totalidade da vida social, em um movimento do particular para o todo e do todo para o singular.Para Lessa (1997, p. 18):ao se transformar em uma particularidade partcipe de uma totalidade j existente, a histria desse ente adquire uma indelvel dimenso genrica: sua histria absorve determinaes da totalidade do existente e, por sua vez, retroage sobre o desenvolvimento da totalidade do real enquanto um seu ente particular. Deste modo, todo processo de objetivao necessariamente resulta em um processo objetivo de generalizao dos resultados alcanados, de tal modo que, a cada nova objetivao, a totalidade do ambiente no qual est inserida o indivduo tambm se altera.Alm de retroagir sobre o desenvolvimento da totalidade do real, a generalizao influencia sobre outros indivduos alm do que realiza o trabalho. Um novo produto social provoca uma nova situao histrica, e incide assim a todos que se relacionaram com o resultado do trabalho, obrigando-os a responder a esta nova situao histria apresentada, transformando assim no s a relao dos sujeitos com a natureza, mas entre si.H ainda outro domnio sob o qual a generalizao recai, a subjetividade. As transformaes ocorridas nos sujeitos a partir do trabalho no se esvaem com o fim do processo criativo, elas permanecem e se generalizam nos processos futuros, assim, o processo de generalizao transforma o particular em universal, conhecimentos antes individuais se generalizam, formando a arte, a religio, a filosofia e a cincia. Chegando ao seu extremo, generalizao do conhecimento singular ao universal forma at mesmo concepes de mundo historicamente determinadas.Assim Lessa (1997, p. 9) conclui que:J que esses novos conhecimentos so incorporados s objetivaes futuras, atuando assim sobre a totalidade do existente e, deste modo, sobre a vida dos outros indivduos -- e, novamente, com as devidas mediaes -- sobre o desenvolvimento da prpria humanidade, estes conhecimentos que no incio so necessariamente individuais, se generalizam humanidade no seu todo. Com o avano do processo de sociabilizao, as mediaes de transmisso dos conhecimentos vo dando origem a complexos sociais especficos como a educao, a tradio, os costumes, etc.Portanto, todo processo de objetivao-exteriorizao necessariamente nico e genrico. nico, pela simples razo de a histria jamais se repetir. E genrico, porque ele incorpora, tanto no plano objetivo quanto no subjetivo, determinaes genricas que correspondem ao desenvolvimento efetivamente alcanado pela humanidade a cada momento histrico. Em suma, ele concomitantemente um processo que possui uma insupervel dimenso individual (mesmo o trabalho mais alienado no interior de uma linha de produo no perde por completo este seu carter singular) e sempre determinado socialmente. Por isso, trabalho e sociabilidade so categorias que s existem conjuntamente, enquanto determinaes reflexivas.Isto posto, podemos compreender porque o trabalho o momento predominante do complexo formado pela sociabilidade, pela linguagem e pelo prprio trabalho. ele o solo gentico do novo que incessantemente produzido na reproduo social; novo este que o fundamento ontolgico ltimo da tendncia histrica de desenvolvimento do gnero humano a patamares sempre superiores de sociabilidade (LUKCS, 1979).Alm disso, o movimento de generalizao do trabalho e todas as suas atribuies d origem ao que Lukcs chama de complexo social. um complexo que engloba todas as aes singulares em tendncias do desenvolvimento histrico-genrico (LESSA, p 10.), e ocorrem mesmo se os sujeitos no tenham conscincia do processo. este processo de generalizao que faz com que a sociedade se distancie de suas tendncias mais primitivas. Portanto:Cada momento da histria, de modo desigual e contraditrio, a humanidade consubstancia uma situao histrica mediada socialmente, assim, cada nova objetivao-exteriorizao encontrar um ambiente social mais desenvolvido para sua efetivao, gerando demandas cada vez mais elaboradas, operando respostas cada vez mais complexas socialmente. (LESSA, p. 11)Este processo de generalizao do trabalho, sociabilidade e complexo social se aprofunda com o desenvolvimento histrico. Quo mais se avana no processo de objetivao-exteriorizao e generalizao, mais complexas se tornam as relaes sociais, e quo mais complexas forem as mediaes das relaes sociais com as aes individuais, mas complexas so tambm as individualidades. este movimento que transforma os sujeitos primitivos em individualidades cada vez mais complexas, pois ao estarem inseridos em uma realidade, estes sujeitos apreendem suas determinaes histricas (consciente ou inconscientemente) e so forados a elaborarem objetiva e subjetivamente respostas para reproduo da sua vida, galgando assim patamares cada vez mais avanados do gnero humano. Assim, a sociabilidade e a individualidade fundam os dois plos da reproduo social, sob os quais se atravessam as contradies da sua prpria reproduo social.O resultado do aprofundamento da sociabilidade o desenvolvimento de complexos sociais capazes de conseguir responder s necessidades desta mesma evoluo. No caso, o desenvolvimento das foras produtivas o que demarca a viabilidade da explorao do homem pelo homem, sucedendo a sociedade primitiva por uma sociedade de classes, esta, por sua vez, dando origem a novas contradies entre indivduos e complexos sociais. Assim, as antigas formas que davam conta de estabelecer uma coeso social na base de costumes, fora e hierarquia j no so suficientes para dar conta deste novo patamar histrico; cria-se ento o Estado, a propriedade, o direito e a famlia patriarcal monogmica.O processo de sociabilizao, portanto, conduz a formas crescentemente complexas de sociabilidade e de individualidades, j que a reproduo material da vida social cada vez mais mediada socialmente. O carter de complexo de complexos do ser social se explicita cada vez mais claramente medida que novas demandas do origem a novos complexos sociais, os quais mantm uma complexa relao de determinao reflexiva com a totalidade da formao social a qual pertence. Correspondendo a todo este processo, refletindo e favorecendo o seu desenvolvimento, d-se o desenvolvimento da linguagem. No interior do complexo de complexos que a totalidade social, mais uma vez, ao trabalho que cabe o momento predominante, pois nele que temos o solo gentico do novo que impulsiona a humanidade a patamares crescentes de sociabilidade. (LESSA, p. 13)Embora no processo de sociabilizao, em geral, h mais altos patamares de sociabilidade, esta no uma regra, em diferentes contextos histricos, complexos sociais que antes foram fundamentais para a elevao da sociabilidade, passam, pelo contrrio, a serem as mediaes que impedem este avano, e isto que Lukcs denomina como alienao. Dois exemplos utilizados por Lukcs a religio e o capital. Enquanto em momentos mais antigos da histria humana, a religio tenha cumprido o papel fundamental de significar socialmente experincias singulares a um patamar de universidade, com o desenvolvimento humano, a religio passa a se tornar um obstculo deste mesmo desenvolvimento, impedindo os homens de se tornarem protagonistas de sua prpria histria e relegando-os a meros coadjuvantes de foras externas que comandavam a existncia terra, assim, contribuindo em inmeros casos para a reproduo do status quo social. O capital tambm nos parece contribuir para o mesmo papel. Embora, como o prprio Marx afirma, o capital tenha sido a fora motora do desenvolvimento produtivo e humano, com o passar do tempo, sua incapacidade de resolver a totalidade do complexo social, faz com que contribua para a desigualdade e a misria dos povos, assim se tornado cada vez mais uma obstruo quase inultrapassvel da emancipao da humanidade.Assim, Lessa (1997, p. 16) finalmente conclui que: Ao conceber a essncia humana como histrica, como historicamente determinada pela reproduo social e, portanto, ao conceber as misrias humanas, as desumanidades produzidas pelos prprios homens como sendo de responsabilidade nica da humanidade, Lukcs resgata a tese marxiana de que os homens fazem a sua prpria histria, ainda que em circunstncias que no escolheram. A conseqncia decisiva deste resgate a recusa de toda teorizao que tenda a negar a possibilidade da emancipao humana do jugo do capital a partir de uma pretensa natureza humana, de uma pretensa essncia humana, dada de uma vez para sempre, e que limite o desenvolvimento da sociabilidade aos padres individualistas e mesquinhos tipicamente burgueses. E, com isso, a Ontologia de Lukcs revela o que ela tem de mais significativa para o debate contemporneo: , nos dias de hoje, a fundamentao mais elaborada e melhor acabada, no plano filosfico, da possibilidade ontolgica da subverso revolucionria da ordem burguesa.

3.2.2 Ideologia para Lukcs

Esta brevssima introduo acerca da ontologia do ser social para Lukcs foi colocada, porque apenas entendendo qual a dimenso do Homem e do trabalho para Lukcs conseguimos ter acesso ao significado do que ele define como ideologia.Em sua obra magna, Histria da conscincia de classe, o autor afirma que verdade que a realidade o critrio para a correo do pensamento. Mas a realidade no , ela se torna e, para tornar-se, necessria a participao do pensamento (LUKCS, 1989, p. 204) . Assim, o pensamento, para Lukcs, cumpre um papel tanto de percepo quanto de criao, ao comear a se dar conta das determinaes de suas condies, as classes sociais simultaneamente comeam a transformar sua conscincia, sua realidade (ou planejar a mudana) e queles a sua volta. Portanto, a conscincia como reflexo da realidade no tem parte no pensamento lukacsiano, como o prprio afirma:O pensamento e a existncia no so idnticos no sentido de que correspondem um ao outro ou refletem um ao outro, de que correm paralelamente ou coincidem um com o outro (todas elas expresses que ocultam uma dualidade rgida). Sua identidade consiste em serem aspectos de um mesmo processo histrico e dialtico real. (LUKACS, 1989, p. 204)A conscincia revolucionria, no caso, seria fruto das condies histricas socialmente construdas e transforma essa situao de pronto. Assim, para Lukcs, nunca conhecemos realmente algo, pois o prprio ato de compreenso a transforma em algo totalmente novo. Assim, essa tese de conscincia no mais esttica, mas sim dinmica e voltada ao prtica nos impede de aceitar qualquer tipo de percepo vulgar da falsa conscincia como descompasso entre conhecimento e realidade (EAGLETON, 1997).Para Lukcs, ao contrrio do tratamento marxista vulgar do mero falseamento da realidade, a ideologia toma feies ligeiramente positivas, ao ponto do autor hngaro tratar o marxismo como a expresso ideolgica do proletariado. Mesmo assim, resgatando ortodoxamente a crtica de Marx acerca da categoria do fetichismo e ainda desenvolvendo a tese da reificao, Lukcs consegue dar um carter mais crtico e preciso do que seria a conscincia e a ideologia. Primeiro, acerca do fetichismo da mercadoria, Marx formula que, sobre ela: Temos que recorrer s regies nebulosas do mundo religioso. Nesse mundo, os produtos da mente humana aparecem como seres independentes dotados de vida, e que entram em contato tanto uns com os outros como com a raa humana. O mesmo se d no mundo das mercadorias, com os produtos das mos dos homens. (MARX, 2012, p. 83)Portanto, na realidade social:A funo do fetichismo, e da religio em geral, livrar o fiel da responsabilidade por suas aes. No ele quem est agindo, Deus (ou o demnio) quem age dentro e por intermdio dele, ele no pode nem criticar, nem modificar, nem transformar o mundo; ele, como o prprio mundo, apenas o veculo de uma Vontade que no a sua. Similarmente, o capitalista nega deter o poder de at mesmo tentar modificar os desastrosos processos do mercado: o mercado opera segundo leis eternas s quais ele e todos os homens esto irremediavelmente subjugados. A fico da Lei Natural que joga com todas as ambigidades tanto do termo natureza como do termo lei, e por meio da qual os discursos descritivo e normativo se fundem extremamente eficiente no que diz respeito a manter os homens fixos em seus papis. As leis do comrcio teria dito Burke, segundo Marx, so as Leis da Natureza e, portanto, as leis de Deus. (BERMAN, 2001, p. 60-61)Para Marx, no bastava ainda que apenas a classe burguesa estivesse envolta nesse mito divino empregado pelo fetichismo da mercadoria, para manter a firmeza do sistema capitalista, queles que no tm mais nada a vender seno sua fora de trabalho, tambm precisa estar sob seu feitio. Formando assim uma classe trabalhadora que, por educao, tradio e hbito, perceba as condies desse modo de produo como indiscutveis leis da natureza (MARX, 2012, p. 803).Assim, o fetichismo na sociedade capitalista faz com que a forma da mercadoria fruto das mos, do trabalho objetivo de todos os trabalhadores-,assumindo um carter fantasmagrico e religioso ou seja, fetichizada -, permeie toda a vida social, se revestindo de uma lgica mecanicista e anti-humana.A reificao, em sentido oposto, fragmenta e desloca nossa experincia social, de modo que, sob sua influncia, esquecemos que a sociedade um processo coletivo e passamos a v-la meramente como este ou aquele objeto ou instituio isolados. (Eagleton) A partir disto, desenvolvendo atravs da anlise do fetichismo e da reificao, o contrrio de ideologia, para Lukcs, no mais a cincia marxista, mas o conceito de totalidade. Para o autor, ento: Todas as formas de conscincia de classe so ideolgicas, mas algumas, por assim dizer, so mais ideolgicas que outras. O que especificamente ideolgico na burguesia sua incapacidade de compreender a estrutura da formao social como um todo por causa dos efeitos nefastos da reificao (EAGLETON, 1997, p. 90)O que faz, para Lukcs, a conscincia proletria nica, que ela a nica capaz de totalizar a ordem social, pois s atravs dessa necessidade que os trabalhadores tero condies de superar sua condio de explorao. Neste caso, a conscincia de classe e o conhecimento do sistema capitalista como um todo, so, de fato, o mesmo movimento. Esta viso gera, em certa medida, um descompasso entre ideologia parcial e totalidade social, onde interesses parciais (ou imediatos) se tornam, ento, o ponto de partida para a necessidade da compreenso totalizante, Eagleton (1997, p. 92), explica:Para que as mulheres se emancipem, precisam ter o interesse de compreender algo das estruturas gerais do patriarcado. Tal compreenso no , de maneira alguma, inocente ou desinteressada; pelo contrrio, est a servio de interesses polticos prementes. Mas sem passar em algum ponto, por assim dizer, do particular para o geral, provvel que esses interesses fracassem. Um povo colonial, simplesmente para sobreviver, pode ver-se forado a investigar as estruturas globais do imperialismo, como seus governantes imperialistas no precisam fazer. Aqueles que hoje, seguindo a moda, desautorizam a necessidade de uma perspectiva global ou total podem ser privilegiados o suficiente para dispens-la. E onde tal totalidade exerce uma influncia urgente sobre as condies sociais imediatas que a interseco entre parte e todo mais significativamente estabelecida. O argumento de Lukcs que certos grupos e classes precisam inscrever sua prpria condio em um contexto mais amplo para mudar essa condio e, ao faz-lo, ver-se-o desafiando a conscincia dos que tm interesse em bloquear esse conhecimento emancipatrio.Desta forma, enquanto para Lukcs, por ser a pea fundamental de estruturao do Capital, o trabalhador justamente o nico sujeito capaz de alcanar a totalidade de sua prpria situao histrica. Diametralmente oposto, ento, est a burguesia, impregnada pelos seus interesses imediatos e sem condies de perceber sua situao na totalidade. Isto se d, retornando ao marxismo mais tradicional, porque a condio estrutural na qual esto inseridos os burgueses evita que os mesmos, como classe, consigam alcanar a totalidade das relaes que estabelecem.Lukcs, entretanto, mantm viva a chama da reificao, mostrando que na sociedade capitalista, toda a vida social adquire um carter desumanizado, mecnico e quantificado. O todo social no consegue ser automaticamente visto, pois a prpria burguesia o pulveriza em um sem nmero de operaes tcnicas diversas que, com o passar do tempo, parecem obter uma vida prpria. Marshall Berman, em Tudo que slido se desmancha no ar, traz uma imagem bem dramtica deste cenrio:O feiticeiro burgus de Marx descende, claro, do Fausto de Goethe, mas tambm de outra figura literria que assombrou a imaginao de sua gerao: o Frankenstein de Mary Shelley. Essas figuras mticas, que lutam para expandir os poderes humanos por meia da cincia e da racionalidade, desencadeiam poderes demonacos que irrompem irracionalmente, fora do controle humano, com resultados aterrorizantes. (BERMAN, 2001, p. 134)A reificao garante que cada parte do todo social esteja recheada de tcnicas puramente formais e relativamente autnomas, na fbrica, na burocracia do Estado, nas cincias, no mercado, na economia, no direito, no jornalismo, todos so vtimas do processo reificador. assim que:Assolado por um mundo opaco de objetos e instituies autnomas, o sujeito humano rapidamente reduzido a um ser inerte, contemplativo, incapaz de reconhecer nesses produtos petrificados sua prpria prtica criativa. O momento do reconhecimento revolucionrio chega quando a classe operria reconhece esse mundo alienado como sua criao confiscada, reclamando-o por meio da prxis poltica. Em termos da filosofia hegeliana subjacente ao pensamento de Lukcs, isso sinalizaria a reunificao de sujeito e objeto, dolorosamente separados pelos efeitos da reificao. Ao conhecer-se pelo que , o proletariado torna-se sujeito e objeto da histria. (EAGLETON, 1997, p. 93)Lukcs ento percebe que a prpria viso ideolgica parcial fruto do processo de reificao capitalista, e a nica resposta efetiva a ela a prtica poltica crtica em vista de uma percepo totalizante do mundo. Desta forma, a ideologia, para Lukcs, no chega a ser a falsificao da realidade, mas a compreenso verdadeira de uma realidade limitada estruturalmente pela reificao; desta forma superficial, sem se dar conta as relaes mais essenciais da reproduo da vida humana.Portanto, entendendo a totalidade como um complexo de complexos objetivando e generalizando a realidade social - a ideologia no uma mera concepo de mundo de diferentes classes e estratos de classe, um sistema objetivo determinado pelo campo total da luta social. No meramente uma viso de mundo de uma classe baseado diretamente na sua necessidade material. A ideologia, ento:Como a prpria classe social, um fenmeno inerentemente relacionai: expressa menos como uma classe vive suas condies de existncia do que como as vive em relao experincia vivida de outras classes. O Assim como no pode haver uma classe burguesa sem um proletariado, ou vice-versa, a ideologia tpica de cada uma dessas classes constituda at as razes pela ideologia de sua antagonista. (EAGLETON, 1997, p. 95)Assim, as ideologias dominantes no simplesmente subjugam as classes subalternas e suas concepes da realidade social, elas precisam respirar a alma destas classes como nica maneira de conseguir moldar a ideologia geral da populao sob coordenadas de seus prprios interesses, somente assim o processo de dominao ideolgico se funda. O maior exemplo disso talvez seja a pequena burguesia, que tem em seu espectro ideolgico partes da ideologia burguesa e da proletria, no por menos que Marx a denomina de a contradio encarnada. Outra conseqncia deste carter relacional da ideologia so objetos ideolgicos fundamentais para vida poltica que no parecem ter origem embrionria em nenhuma classe especfica, ou ao menos, usado de maneira ideolgica tanto em sentido emancipatrio como tambm conservador, como o caso do nacionalismo. Portanto: As classes sociais no manifestam ideologias da mesma maneira que indivduos exibem um estilo particular de andar: a ideologia antes um campo de significado complexo e conflitivo, no qual alguns temas estaro intimamente ligados experincia de classes particulares, enquanto outros estaro mais deriva, empurrados ora para um lado, ora para o outro na luta entre os poderes contendores. A ideologia um domnio de contestao e negociao, em que h um trfego intenso e constante: significados e valores so roubados, transformados, apropriados atravs das fronteiras de diferentes classes e grupos, cedidos, recuperados, reinfletidos. Uma classe dominante pode viver sua experincia em parte por meio da ideologia de uma classe previamente dominante: pense na colorao aristocrtica da haute bourgeoisie inglesa. Ou pode modelar sua ideologia, parcialmente, em termos das crenas de uma classe subordinada como no caso do fascismo, em que um setor dominante do capitalismo financeiro incorpora para seus propsitos os preconceitos e angstias da baixa classe mdia. No existe uma correspondncia exata, ponto a ponto, entre classes e ideologias, como evidente no caso do socialismo revolucionrio. (EAGLETON, 1997, p. 96)Quando ento, formos examinar as classes, no podemos faz-la tratando-as como sujeitos coletivos homogneos, mas sim conflitivos, interna e externamente. Assim, no apenas a classe burguesa carrega