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VICENTE CONCILIO Teatro e Prisão: dilemas da liberdade artística em processos teatrais com população carcerária Dissertação apresentada à Área de Concentração Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes, sob a orientação da Professora Doutora Maria Lucia de Souza Barros Pupo. São Paulo 2006

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VICENTE CONCILIO

Teatro e Prisão:

dilemas da liberdade artística em processos

teatrais com população carcerária

Dissertação apresentada à Área de Concentração Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes, sob a orientação da Professora Doutora Maria Lucia de Souza Barros Pupo.

São Paulo 2006

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VICENTE CONCILIO

Teatro e Prisão:

dilemas da liberdade artística em processos

teatrais com população carcerária

Dissertação apresentada à Área de Concentração Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes, sob a orientação da Professora Doutora Maria Lucia de Souza Barros Pupo.

São Paulo 2006

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Este trabalho é dedicado a Jorge Spínola.

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AGRADECIMENTOS A meus pais, Luiz e Cida, e meu irmão Julio, por acreditarem nos caminhos que

escolhi. A eles, todo o meu amor.

A Maria Lúcia Pupo, grande mestra, por me fazer perseguir o melhor.

A Ana Maria Sabbag, pela generosidade na feitura da revisão com que me

presenteou. Eu continuo aprendendo muito com você!

A Ingrid Koudela, por me fazer duvidar positivamente de minhas certezas.

A Lígia Borges, porque essa pesquisa também é dela.

A Ademir Correa, pelo apoio imenso durante esses quase cinco anos.

A Taty Kanter, por não me deixar esquecer a importância de sua amizade.

A Elias Andreato, Maria Rita Freire Costa, Paul Heritage e Roberto Lage, pela

disponibilidade com que compartilharam suas trajetórias em teatro nas prisões.

A Sônia e Robson Rusche, pelos saberes compartilhados.

A Manoel Portugues e Adilson Souza, que conheci na FUNAP, por apostarem no

teatro e nessa pesquisa.

Aos meus companheiros de Lumiar, com quem eu divido o sonho e a prática por

uma outra educação.

Ao professor Sergio Adorno, pelos comentários valiosíssimos compartilhados no

exame de qualificação.

A José Cerchi Fusari, Maria Isabel de Almeida e Marina Célia Dias, professores da

Faculdade de Educação da USP, pela receptividade e generosidade na troca de idéias.

A Alexandra Tavares, Sérgio Oliveira, Cecília Schucman e Ricardo Ribeiro, pelo

que construímos durante o tempo em que Muros ligou nossas rotinas.

A Cícera Maria da Conceição, Renato de Oliveira Lopes, Josenita Dias Santos,

Ester Vaz, Karla Menezes, Charlton Alexsander Costa, Kelly Keyko, Flávio Araújo, Ivan

Pedrosa Cavalcante, Luiz Carlos Antonio da Silva, Marcos Feitosa da Silva, Cristina da

Luz Dias, Gretel Lanoza, Maria Helena Gonçalves, Marina Ferreira, Luciana Feitosa, Marta

Bonfim, Marta Jaceline Amaro e Valéria Covos, onde quer que vocês estejam.

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A Alba Célia Pinto, Cilene dos Santos, Evaldo Canossa, Gilberto Coelho, Graziela

Silva, Mariângela Calheiros, Robson Mansano, Rodrigo Silva, Sandra de Oliveira e todos

aqueles que dão prosseguimento ao sonho do Núcleo Panóptico de Teatro.

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Diz-se das águas do rio que são violentas

Nada se diz das margens que as comprimem.

Bertolt Brecht

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RESUMO

Esta dissertação é fruto da análise de dois processos teatrais realizados em contextos

imersos na realidade carcerária de São Paulo, das quais participei como ator e pesquisador.

Assim, parte-se de uma análise histórica da ascensão da prisão como sistema

punitivo do mundo dito civilizado, buscando os sentidos sociais da pena restritiva de

liberdade e seus efeitos sobre as vidas a ela submetidas.

No momento seguinte, realiza-se um levantamento de práticas teatrais em presídios,

realizadas no Estado de São Paulo, anteriores aos processos que deram origem a Mulheres

de Papel e Muros, objetos principais da pesquisa.

Da análise desses processos, busca-se os sentidos que podem ser atribuídos ao

teatro, tanto pela prisão quanto pelos presos, levando-se em conta a contradição óbvia

existente entre a liberdade almejada pela criação artística e o contexto prisional.

PALAVRAS- CHAVE

Teatro-Educação; Prisão; Reabilitação; Presidiários; Ação-Cultural

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ABSTRACT

This dissertation is the result of two theatrical processes analyzed in the context of

the jail system of São Paulo of which I took part as an actor and researcher in a project of

theater-education for prisoners.

In this way, I started from a historical analysis of the prison system, considering it

as an ascendant punishment system of the world said as civilized, looking for the social

meanings of the penalty that restricts freedom and its effects on the lives submitted to it.

On the following moment, a survey about the theatrical practices, in prisons of the

State of São Paulo, was made. Those practices took place before the processes that

originated Mulheres de Papel and Muros, main objects of the research.

From the analysis of these processes, I look for meanings that could be attributed to

the theatre, both for the prison and the prisoners, taking in to account the obvious

contradiction existent between the freedom searched in the artistic creation and the jail

context.

KEY-WORDS

Theater-Education; Prison; Prisoners; Probation; Cultural-Action

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ÍNDICE

Introdução......................................................................................................................... 1 Uma proposta de pesquisa ................................................................................................ 3 A elaboração de uma pergunta ......................................................................................... 4 Um Método Possível ........................................................................................................ 6 Capítulo 1: Crime e Castigo ........................................................................................... 13

1.1 Prisão .................................................................................................................... 13 1.2 Um panorama brasileiro ....................................................................................... 21 1.3 O Sistema Prisional no Estado de São Paulo........................................................ 23

1.3.1 A Escola de Administração Penitenciária – EAP.......................................... 28 1.3.2 A Fundação de Amparo ao Preso Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel – FUNAP................................................................................................................................ 28

Capítulo 2 - Notas do Subsolo........................................................................................ 34 2.1 A experiência de Frei Betto .................................................................................. 34 2.2 Projeto “A Arte como Processo de Recriação em Presídios” de Maria Rita Freire Costa ........................................................................................................................... 38 2.3 Ruth Escobar na Penitenciária do Estado (PE)..................................................... 47

Capítulo 3: Recordações da casa dos mortos: Mulheres de Papel.................................. 74 3.1 Antecedentes......................................................................................................... 74 3.2 Primeiros Passos................................................................................................... 79 3.3 Mulheres de Papel em 2002 ................................................................................. 81

3.3.1 Com papel na mão ......................................................................................... 82 3.3.2 Regras ............................................................................................................ 90 3.3.3 A estréia......................................................................................................... 98

3.4 Mulheres de Papel em 2003 ............................................................................... 100 3.4.1 Com o gravador a postos ............................................................................. 104

Capítulo 4 - Humilhados e Ofendidos: Muros ............................................................. 119 4.1 Os Desterrados: primeiros desafios e acordos.................................................... 120 4.2 Desterrados com texto ........................................................................................ 122 4.3 Sobre rodas e pessoas ......................................................................................... 127 4.4 Desterrados com peça......................................................................................... 131 4.5 O Espetáculo....................................................................................................... 139 4.6 Em 2005.............................................................................................................. 143

Notas de Inverno sobre Impressões de Verão: Conclusões.......................................... 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 158

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Introdução

Em maio de 2002, como parte essencial da disciplina “Prática de Ensino com

Estágio Supervisionado em Artes Cênicas I”, iniciei um estágio de observação,

acompanhando o desenvolvimento de uma oficina de teatro na Penitenciária Feminina

do Tatuapé (PFT).

Inserida no Projeto Teatro nas Prisões, da FUNAP – Fundação Prof. Dr. Manoel

Pedro Pimentel de Amparo ao Preso, essa oficina era coordenada pelo professor e

diretor teatral Jorge Spínola.

Tratava-se de um processo que já acontecia desde março mas que, naquele

momento, tentava sobreviver a uma série de dificuldades oriundas das expectativas das

integrantes por concretizar um espetáculo nos moldes em que elas compreendiam a

prática teatral. Não queriam ficar “brincando”, não tinham interesse em “fazer jogos”.

Para elas, fazer teatro significava ter um texto para decorar, ensaiar marcações e,

finalmente, apresentar uma peça.

O problema, sem dúvida, residia no fato das participantes simplesmente não

atribuírem qualquer sentido cênico aos jogos que lhes eram propostos, o que gerava um

índice de evasão muito alto que poderia comprometer a continuidade da oficina.

Na primeira vez em que estive presente na oficina, elas começavam a ler o texto

da primeira cena do espetáculo que só viria a ser apresentado em dezembro daquele ano:

Mulheres de Papel, adaptação do texto “Homens de Papel”, de Plínio Marcos.

Logo meu envolvimento ultrapassaria os objetivos do próprio estágio, de tal

forma que acabei participando ativamente do processo, vivendo inclusive um

personagem da encenação. Assim, durante os dois anos em que Jorge Spínola atuou na

PFT, acompanhei profundamente todas as fases do trabalho e acabei conquistando

parcerias artísticas em um local ao qual normalmente nos remetemos como o oposto da

vida.

Foram dois anos divididos entre o prazer da criação artística e a rotina

massacrante dos rituais da prisão. Divididos entre a alegria das conquistas elaboradas

durante o processo de encenação e a crueza de um ambiente organizado para ser hostil.

Divididos entre a construção de valores concernentes a um trabalho verdadeiramente

coletivo e a força massacrante e homogeneizante da imposição de regras promovidas

pelo sistema penal.

O período que vai de maio de 2002 a outubro de 2003, durante o qual um grupo

de artistas prisioneiras se encontrava quase diariamente com um grupo de artistas livres,

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configura-se como um exemplo relevante de experiência bem sucedida no corpo das

escassas políticas educacionais instauradas no âmbito do aparelho prisional.

Em 2004, o Projeto foi elaborado em moldes diferentes, agora voltado a uma

outra parcela da população carcerária: alguns, presos em regime semi-aberto, outros,

egressos do sistema penal, em liberdade condicional ou que já haviam cumprido sua

pena.

Assim, a partir de março daquele ano, instaurou-se um novo processo, agora fora

da instituição penal. O desejo do encontro com outras parcelas da sociedade e de

ampliar o debate sobre a realidade carcerária eram as grandes razões para que o Projeto

Teatro nas Prisões fosse realizado em um espaço diferente de uma unidade penal.

Esse processo, depois de oito meses de ensaio, em uma rotina que não raro nos

obrigava a cinco encontros por semana, resultou no espetáculo Muros, inspirado em

Jean-Paul Sartre e Jean Genet.

A estréia se deu em um espaço de alto valor simbólico, o salão nobre da Escola

de Administração Penitenciária, de onde partimos rumo ao Pavilhão II do Carandiru, no

qual foram realizadas oito apresentações com lotação esgotada, uma conquista obtida

graças ao interesse da platéia em ter acesso aos escombros daquele que havia sido o

maior presídio da América Latina.

Durante todo o ano de 2005, o trabalho conquistou outras possibilidades de

manutenção financeira e institucional, o que garantiu a continuidade do Projeto.

Com a intenção de obter autonomia em relação à estrutura político -

administrativa e financeira da FUNAP, fundamos um grupo que recebeu o nome de

Núcleo Panóptico de Teatro, filiado à Cooperativa Paulista de Teatro.

O Núcleo elaborou então um projeto, o Pulando o Muro, no qual se propunha a

realizar cento e onze apresentações gratuitas do espetáculo Muros, em espaços públicos

da cidade de São Paulo. O projeto foi contemplado, no segundo semestre de 2004, com

verba da Secretaria Municipal da Cultura, através da Lei de Fomento ao Teatro para a

Cidade de São Paulo.

A aprovação do projeto concretiza um reconhecimento da própria classe artística

a um trabalho que já se desenvolve há dez anos, dos quais seis foram dedicados a

práticas de construção cênica que ultrapassaram os muros dos presídios e ganharam

repercussão fora do sistema penitenciário.

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Uma proposta de pesquisa

Para abordar a prática teatral no contexto da cultura produzida dentro das

prisões, realizei um levantamento de experiências anteriores com teatro em presídios,

uma vez que não havia encontrado nenhuma sistematização relativa a essa temática.

Cheguei assim à própria trajetória do trabalho desenvolvido por Jorge Spínola,

inserida em projetos de cultura e educação da FUNAP. Esse trabalho ganhou destaque

na medida em que concretizou uma série de mudanças positivas na rotina dos presídios

em que ele se consolidou, o extinto Centro de Observação Criminológica (COC),

localizado no também extinto complexo do Carandiru, e a Penitenciária Feminina do

Tatuapé, sendo que no primeiro foram realizadas três encenações anteriores à minha

presença como pesquisador: O Auto da Compadecida (1999), A Pena e A Lei (2000),

ambas de Ariano Suassuna, e O Rei da Vela (2001), de Oswald de Andrade.

Esta dissertação parte de uma análise do modelo prisional, suas origens e sua

consolidação como prática punitiva mundial, para finalmente traçar um panorama da

realidade prisional brasileira, e mais especificamente paulistana, da qual fazem parte a

FUNAP, os presídios e também o Projeto Teatral que aqui são objeto de estudo.

Pretendo ampliar a discussão sobre as práticas educativas realizadas dentro dos

presídios brasileiros, sem perder de vista a análise de questões pertinentes à prática

teatral realizada com não-atores e suas implicações estéticas e éticas, tema este bastante

relevante em uma época em que proliferam organizações civis e projetos de educação

informal que tomam o fazer teatral como instrumento pedagógico valioso diante das

lacunas educativas e sócio-econômicas produzidas pela ineficiência da ação do Estado.

Assim, no primeiro capítulo, procuro apresentar a prisão como instituição total

(Goffman, 2001), explicitando sua ação sobre os indivíduos e seus comportamentos,

revelando a incapacidade deste sistema em efetivar qualquer processo de reabilitação,

apesar desta idéia constituir o cerne do seu discurso institucional.

No capítulo seguinte, analiso alguns processos teatrais realizados com

presidiários no Estado de São Paulo, na tentativa de compreender o teatro como

instrumento pedagógico em prisões.

No capítulo três abordo as especificidades da Oficina de Montagem Teatral na

PFT, durante os anos de 2002 e 2003, revelando as rotinas de trabalho, quem eram os

participantes, e a relação da oficina com a instituição penal.

O foco do capítulo quatro é a análise do processo de criação do espetáculo

Muros, no âmbito das relações institucionais e das relações pessoais e profissionais

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construídas ao longo do trabalho, do qual participaram atores presos em regime semi-

aberto, atores egressos do sistema penitenciário e atores “não-presos”.

Nesses dois capítulos, há um destaque para os processos de construção dos

contratos que regulamentavam as rotinas de trabalho, resultantes de extensas discussões

e impasses, exigindo de todos uma relação com as regras diferente da habitualmente

estabelecida pelo presídio.

A elaboração de uma pergunta

Em meio a tantas questões cruciais, relativas ao sistema penitenciário, à

educação estética, à educação de adultos presos e a políticas públicas destinadas ao

sistema carcerário, os caminhos tomados pela pesquisa foram se consolidando de

maneira a produzirmos o máximo de questionamentos com relação à trajetória de

processos teatrais em instituições penais.

Dessa forma, ainda no momento inicial de observação da prática de Jorge

Spínola, na PFT, a primeira questão elaborada: “Pode o teatro contribuir para a

reabilitação de um preso?” demonstrava a minha ingenuidade em relação ao modelo

prisional e aos discursos que ele produz e que o sustentam.

Uma questão desta natureza reduz a abordagem analítica da prática cênica a um

mero jogo de avaliações relativas a mudanças de comportamento individual, a serviço

dos laudos técnicos de cada participante preso. Portanto o alcance de suas respostas fica

limitado, inclusive contribuindo para a permanência da lógica institucional que se

pretende combater.

A indagação seguinte se definiu a partir da percepção da complexidade da

inserção de projetos educacionais e, nesse caso, também artísticos, em uma instituição

cujas áreas de atuação se dividem entre a reabilitação e a punição dos indivíduos a ela

submetidos, porém com prática claramente voltada para esta última.

A atividade teatral inserida em um organismo penal acaba por instaurar uma

complexa contradição. Uma ação promotora de reflexão a partir de um processo

artístico coletivo se depara com limitações relacionadas ao fato dele acontecer em um

ambiente cujas regras, explícitas ou não, constituem uma rede coercitiva e contrária ao

exercício crítico pertinente ao livre pensar, essencial a qualquer manifestação artística.

Diante desta contradição, a reflexão ganhava nova abordagem: “É possível

instaurar uma prática artística que esgarce os limites impostos pela instituição penal?”

Ou melhor: “Será que existe liberdade criadora em um ambiente cuja função maior é

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afirmar a falta de liberdade, impondo diversos limites à atuação de cada um ali dentro,

presos ou funcionários?”

O processo que resultou na encenação Muros colocou-me diante da

complexidade da progressão dos presos para o regime semi-aberto, e das dificuldades

enfrentadas pela população que cumpriu sua pena em restabelecer sua vida depois da

prisão.

A trajetória construída pelo Projeto Teatro nas Prisões me possibilitou conhecer

diversos aspectos da realidade carcerária do Estado de São Paulo: a rotina de um

sistema fechado, na PFT; a batalha financeira e burocrática, que garante a sobrevivência

do Projeto Teatro nas Prisões, na FUNAP; a EAP - Escola de Administração

Penitenciária; o conflito dos presos em regime semi-aberto, divididos entre a liberdade

diurna e a prisão noturna, e os ex-presidiários, sobreviventes de um sistema que lhes

imprime o estigma do crime para sempre.

Isso me levou a repensar a questão em termos da possibilidade de alteração da

prática institucional consolidada.

Sendo assim, configurou-se uma nova formulação: “Tendo em vista as

contradições e os limites da prática teatral com presidiários, é possível que ela provoque

alterações no modelo prisional hoje estabelecido?”.

Uma questão elaborada dentro de parâmetros tão “grandiosos”, contrapondo

uma pequena experiência, em uma única unidade prisional, a um sistema que comporta

quase 200.000 presos, tende a se perder num delírio transformador que é o oposto de

uma postura mais realista, atenta às pequenas, mas significativas, alterações provocadas

no ambiente opressivo da cadeia pelo exercício coletivo e criador do teatro.

Assim, prefiro pensar nas fissuras do sistema prisional, nas fragilidades que dele

descobrimos e me propor a dividi-las com quem por elas se interesse. Assim, para

combater o sistema, busco responder a uma questão menor, mais objetiva: “Diante das

contradições e limites de uma prática teatral com presidiários, é possível que ela

provoque fissuras, rupturas no sistema que a comporta?”

Vale ressaltar, por fim, que essas indagações foram suscitadas não apenas por

essa experiência, mas já vinham de uma reflexão provocada pelo ciclo de violências que

se consolida em nosso país.

A maneira pela qual a sociedade pune seus criminosos faz parte desse processo.

No entanto isso é pouco debatido nos jornais, não é mencionado nas propagandas

políticas, não faz parte das discussões sobre as formas de combate à criminalidade,

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como se as prisões fossem um mundo à parte, um depósito de criminosos que, uma vez

isolados do convívio social, cessariam de atemorizar os cidadãos.

Curiosamente, o número de instituições penais cresce ano a ano. Ou seja, a

prisão não diminui os índices de criminalidade, embora ganhe força a partir de sua

própria incapacidade de “reabilitar” o criminoso, uma vez que insere o indivíduo em seu

próprio funcionamento, ao invés de devolvê-lo ao corpo social de tal modo que não

mais transgrida suas leis.

Um Método Possível

Propor-se a realizar uma pesquisa em ambiente prisional pressupõe a

disponibilidade em aceitar que grande parte dos procedimentos metodológicos

utilizados serão os possíveis, os permitidos pela unidade penal e pelos participantes do

processo.

Um gravador comum, com o qual seriam realizadas as entrevistas e gravações

dos encontros, só foi permitido após três meses de contínuas solicitações. Uma

filmadora nunca obteve permissão para entrar na unidade penal e fotos só aconteceram

quando os espetáculos estrearam.

Ao mesmo tempo, a abordagem histórica, a despeito da utilização de pesquisa

bibliográfica, buscando fontes documentais e históricas, registros em jornais e

publicações institucionais sobre projetos teatrais acontecidos em unidades penais

paulistanas, carece de material disponível, consequência do descaso dispensado ao

sistema penal na sua totalidade. Assim, parte relevante do trabalho está apoiada em

entrevistas.

Consequentemente, fez-se necessária a opção de uma abordagem metodológica

de cunho participativo. As propostas metodológicas conhecidas como pesquisa-ação

(Thiollent, 1998) pressupõem ampla interação entre os pesquisadores e as pessoas

envolvidas na situação investigada. Dessa interação resultam os problemas de pesquisa.

Um dos objetivos da pesquisa-ação consiste no encaminhamento da resolução de

tais problemas. Com isso, pretende-se ampliar o conhecimento dos pesquisadores e a

conscientização dos grupos pesquisados, chamados a propor soluções às questões

detectadas.

Embora eu não seja responsável pela totalidade das opções pedagógicas e

artísticas definidas ao longo dos processos analisados, o fato de haver participado como

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ator e ter acompanhado todas as etapas do trabalho torna-me um observador

privilegiado.

Tanto nas práticas que resultaram em Mulheres de Papel quanto em Muros, a

proposição de um desafio (a construção de um espetáculo teatral) a um grupo de pessoas

por alguém, em um primeiro momento, estranho àquele próprio grupo, levaram à

construção de diferentes saberes relacionados ao desafio em questão.

A partir da descrição e abordagem crítica dos processos teatrais instaurados sob

a direção de Jorge Spínola, pretendo avaliar os sentidos dessas práticas em diversos

níveis:

• No nível institucional, já que o trabalho se desenvolve dentro de limites e regras

de conduta e atuação definidos por instituições como a PFT, FUNAP, a Secretaria de

Administração Penitenciária, etc;

• No nível educacional, uma vez que as práticas teatrais estão inseridas na

proposta político-pedagógica e cultural desenvolvida pela FUNAP para a Educação de

Adultos Presos;

• No nível do próprio processo de elaboração do contrato de grupo (que também é

resultado de um processo pedagógico), imprescindível para que os participantes do

processo estabeleçam vínculos com a prática teatral e, conseqüentemente, construam o

envolvimento artístico significativo com a qualidade da encenação, fruto de um trabalho

coletivo;

• No nível artístico, pois a proposta de trabalho com teatro visa, primordialmente,

à elaboração de um produto estético, cujo valor simbólico é inquestionável, mas que

acontece, sobretudo, graças a um envolvimento pessoal na elaboração de um produto

cênico coletivo, cuja qualidade é fruto do grau de consciência que cada participante vai

estabelecendo com a prática teatral, resultando no discurso materializado pelo

espetáculo.

Todos esses aspectos precisam ser abordados para que a análise seja enriquecida

pelos diversos níveis do processo, a fim de que se amplie o potencial da abordagem do

pesquisador.

Uma vez que a própria prática pressupõe um alto grau de envolvimento por parte

de todos os participantes, fundada que está em uma dinâmica de exploração artística e

trocas de experiências pedagógicas e pessoais, não há espaço para imaginarmos que

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exista uma pretensa “objetividade científica”. Isso obriga o pesquisador a construir

parâmetros de análise que permitam ultrapassar o relato de experiência.

Este problema, o de esclarecer o papel da subjetividade em pesquisas que

contem com ampla participação do pesquisador, ganha instigante abordagem analítica a

partir do conceito de implicação: A implicação, no campo das ciências humanas, pode ser então definida como o engajamento

pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis científica, em função de sua história familiar e

libidinal, de suas posições passadas e atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sócio-

político em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte

integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento (Barbier, 1988: 120).

Trata-se da possibilidade de explicitação de parâmetros que dêem conta de

estabelecer o papel da subjetividade do pesquisador, a fim de que os resultados

produzidos durante a pesquisa sejam reafirmados e ampliados à luz de seu papel como

um dos protagonistas ativos da situação em estudo. Do contrário, qualquer tentativa de

forjar uma pretensa objetividade acabaria por relativizar a produção de conhecimento, o

que comprometeria os resultados defendidos pelo pesquisador que analisa sua própria

experiência.

Segundo Barbier (1988), os três níveis de abordagem do conceito de implicação

seriam os seguintes:

1. O nível psicoafetivo, pois o pesquisador deve assumir que sua pesquisa é

construída em um amplo processo que envolve um questionamento profundo de suas

crenças e possíveis certezas. Portanto, ele deve estar preparado para um envolvimento

que poderá provocar transformações em áreas basilares de sua maneira de compreender

o mundo.

2. O nível histórico-existencial, que insere a relevância da origem sócio-

econômica do pesquisador e suas conseqüências para a análise produzida. Por abarcar o

nível existencial, leva-se também em conta o caráter dialético da práxis que relaciona

pesquisador e pesquisa.

3. O nível estrutural-profissional, que busca revelar os papéis profissional e

institucional do pesquisador em relação ao contexto no qual realiza sua pesquisa. É

nesse nível que ocorre o choque entre o projeto histórico e existencial do pesquisador,

lugar das grandes aspirações, e as limitações econômicas, científicas e políticas da ação

profissional inserida em determinada realidade estrutural.

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Considerando que estes três níveis de implicação se interpenetram e interagem

entre si, cabe-me neste momento explicitar de que forma estes parâmetros servem para

que eu pense minha inserção nas práticas que aqui são objeto de estudo.

O potencial da utilização de práticas teatrais em contextos pedagógicos, mas não

escolares, atraía-me no momento em que era convidado a observar processos de teatro-

educação, com o objetivo de cumprir estágio em “Prática de Ensino I”, disciplina

obrigatória da Licenciatura em Artes Cênicas. Procurei então Lígia Borges, colega

recém-formada que havia feito estágio com o diretor de teatro Jorge Spínola, quando ele

ainda ministrava oficina de teatro para um grupo de presos no Carandiru. Com ajuda

dela, cheguei à oficina de teatro que ele então iniciava na Penitenciária Feminina do

Tatuapé, em maio de 2002.

Assim, é preciso deixar claro que minha posição inicial não era totalmente

confortável. O papel de observador pode gerar algum incômodo em situações onde o

observado se sente intimidado pelos possíveis questionamentos e avaliações do

estagiário. Nesse caso, a experiência anterior de estágio realizada por Lígia Borges, com

resultados positivos, aparentemente havia aberto o caminho para novas possibilidades

de troca entre os alunos da USP e as oficinas de teatro coordenadas por Jorge Spínola.

De qualquer forma, havia no ar aquele desconforto típico do início de um

processo em que as participantes, e também o diretor do trabalho, passariam a ser alvo

de análise por um “estudante da USP”. Evidentemente, as presas não davam tanta

importância para este lado da questão, embora minha presença gerasse um certo

embaraço, por ser um estranho e por ser homem, o que me garantia vigilância extra,

proporcionada pelas namoradas das integrantes do grupo.

Por parte do diretor Jorge Spínola, havia um respeito em relação a mim do qual

eu nunca havia sido objeto, e que interpreto como sendo fruto da própria importância

que ele dispensava a meu papel de observador como possível auxiliar de seu próprio

crescimento profissional. Jorge, formado pedagogo nos antigos cursos de magistério,

construiu seu saber prático em teatro em diversas oficinas e nas próprias encenações que

realizou dentro do projeto Teatro nas Prisões, que na época completava quase seis anos.

Ele não só valorizava o diálogo com a USP, como fez de tudo para que esta parceria se

mantivesse.

Por outro lado, essa referência positiva gerada pela “sigla USP”, produzia uma

carga equivalente de desconfiança por parte do presídio. Como toda instituição total, o

presídio tem dificuldade em se abrir ao mundo exterior. E seu corpo funcional sabe que,

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se por um lado eu poderia ser um crítico em potencial, por outro essas possíveis críticas

pouco iriam alterar a lógica da ação institucional pela qual eles devem zelar. Sabiam

também que eu não poderia questionar nenhuma das limitações impostas por eles,

sequer alterar uma regra a que era submetido: qualquer deslize meu significaria a

impossibilidade de permanecer naquele mundo que tanto me atraía, e alguém na minha

posição não abriria mão da oportunidade.

Com o tempo, minha presença não gerava mais desconforto. No âmbito

institucional, não era alvo da má vontade habitual dos funcionários do presídio,

dispensada inclusive a outros atores que, como eu, vinham “da rua” para participar do

processo.

O fato é que o presídio acabou por ganhar uma dimensão fascinante aos meus

olhos. Um local tão horrível, que degrada continuamente a todos que a ele estão

submetidos, presos, funcionários, técnicos, num contexto que pouco distingue quem é

vítima e quem é algoz. O espaço da punição, mas que abre espaços enormes para

reafirmar a validade da vida. Um cemitério de indivíduos que, alvo de toda sorte de

tentativas de padronização e impessoalidade, insistem em preservar zonas de

pessoalidade em detalhes marcantes: um corte de cabelo, uma outra maneira de vestir a

camiseta branca, um desenho na barra da calça bege.

Tive acesso privilegiado àquilo que Castro denomina formas sutis de violência,

constitutivas mesmo da rede de relações sociais que atravessa sujeitos posicionados de modo diferente

na estrutura social da prisão. Trata-se de formas pouco acessíveis à visibilidade pública e que, por isso,

só podem ser desvendadas pelo olhar inquiridor de quem pesquisa. Referem-se a mecanismos,

estratégias, táticas tanto de controle da massa carcerária por parte da equipe dirigente, quanto de

construção de experiência: a de dominação e sujeição daqueles que vivem sob tutela e abrigo da prisão.

Estão presentes em gestos, em olhares, em atitudes, em cautelas, como sabiamente mostrou Michel

Foucault (Castro, 1991: 57).

Nos dois anos em que vivi grande parte de meus dias no presídio, conheci

mulheres fascinantes, convivi com trajetórias sinuosas e percebi o verdadeiro sentido da

liberdade, ao confrontar todas as coisas simples que temos possibilidade de realizar aqui

fora no momento exato em que surge o desejo, e a impossibilidade dessa realização na

rotina massacrada entre grades e guardas vivida por um preso.

Ao mesmo tempo, percebi a relevância que as participantes do processo

atribuíam ao teatro, como espaço artístico libertador e de conquista de novos sentidos

para a própria existência institucionalizada que levavam. Daí meu interesse em abordar

aquela prática em reflexão mais elaborada. Daí este projeto de mestrado: transformar

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essas experiências em uma pesquisa na qual se evidencie o potencial de uma prática

diferenciada e reconhecidamente bem-sucedida, como é o caso do projeto Teatro nas

Prisões, de tal forma que se questione a maneira pela qual a prática penitenciária ainda

está embasada em nosso país.

Há nesta reflexão, sem dúvida, uma dose de idealismo que, se aparenta exagero,

eu considero pequena, diante da dimensão atingida pelo problema das penitenciárias em

nosso país. Por isso, senti imensamente o fato de sermos obrigados a deixar a PFT para

iniciarmos, em março de 2004, o processo que deu origem ao espetáculo Muros.

Apesar do processo não se desenvolver atrás das grades da prisão, o contato com

a progressão de regime penal e com as dificuldades dos egressos em restabelecerem sua

dignidade após o cumprimento da pena provocaram intensa ampliação do universo

penal com que até então eu havia convivido.

Naquela altura, após dois anos de ampla convivência no presídio, eu já tinha

acesso a uma série de códigos e lógicas comportamentais estabelecidos pela vida

institucionalizada a fim de preservar suas estruturas de funcionamento e suas

hierarquias de poder, existentes tanto no universo funcional, quanto no universo dos

apenados.

Nosso papel é facilmente confundido, aos olhos dos presos, com a função

exercida pelo corpo técnico e funcional do presídio, e estabelecer uma prática em outro

patamar demanda um esforço essencial para o estabelecimento do vínculo pedagógico

necessário para o pleno desenvolvimento do processo.

Ao tentarmos esclarecer nossa posição, não podíamos ignorar o fato de estarmos

vivendo um papel ambíguo, devendo respeitar todo o rigor normativo do sistema

prisional, sem condições de alterá-lo. Ao mesmo tempo, incentivávamos uma reflexão e

um tipo de criação artística que fatalmente abala a crença no poder da coerção, modelo

defendido pela prisão.

Assim, a oficina de teatro, ao assumir uma proposta apoiada em práticas que

invistam no potencial artístico dos participantes, coloca-se em plena oposição à

realidade institucional. Mas existe um tempo para que isso se configure aos olhos dos

participantes, um tempo em que somos avaliados, medidos, testados e, com sorte,

aprovados. Durante este processo, nosso conhecimento da dura realidade em que

viveram, da cultura prisional e das conseqüências da prisão para toda a vida do

indivíduo apenado, faz com que eles passem a nos enxergar como aliados sinceros.

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Isto é primordial, visto que a principal fonte documental dos sentidos que a

prática teatral foi provocando para cada participante, foram as entrevistas que realizei

com eles ao fim dos processos.

Devido às dificuldades de escrita da maioria dos integrantes, a entrevista

revelou-se a principal forma de avaliar o envolvimento de cada um com o processo, e

deste processo com a instituição penal.

Dada a importância que essa forma de registro assume portanto nesta pesquisa,

volto a enfatizar o tipo de envolvimento que acabei estabelecendo com os integrantes de

cada grupo, promovido tanto pela natureza coletiva da prática teatral que estávamos

explorando, quanto pelo tempo de convivência demandado por nossos encontros quase

diários.

Esta convivência foi essencial para que os processos promovessem o

desvelamento das realidades com a qual nos defrontávamos, e a construção de

verdadeiros laços de convivência entre os diversos participantes, não raro representantes

de universos distintos que em outras situações jamais chegariam a se comunicar.

Dessa forma, ante a percepção de que todos compreenderam a relevância desta

pesquisa em termos de documentação e análise do processo artístico do qual fizeram

parte,, considero suas declarações fruto de um interesse real em expressar com

sinceridade e qualidade suas impressões da prática vivida.

Por fim, outro importante instrumento de registro foi o diário de bordo pessoal,

que produzi ao longo de todo o processo, no qual estão relatados fatos, impressões,

opiniões e angústias relacionadas a cada fase dos ensaios. Eles possuem forte cunho

descritivo e analítico, possibilitando retomadas do processo de modo que a escrita da

dissertação não perca, com a distância temporal, a qualidade da reflexão produzida

simultaneamente à prática.

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Capítulo 1: Crime e Castigo

1.1 Prisão

Apesar da aparente normalidade com que encaramos o fato de a prisão

concentrar a quase totalidade da ação punitiva da sociedade com relação a seus

indivíduos transgressores, sua consolidação e enraizamento são fatos bastante recentes

na história das organizações sociais do mundo ocidental.

Data da passagem do século XVIII para o XIX o surgimento das primeiras

instituições que, mediante um certo tipo de organização espacial e do tempo social dos

indivíduos a elas submetidos, foram modelando um discurso moral, ideológico,

econômico e político que, pouco a pouco, definiu as bases de uma política prisional.

Isso culmina, ironicamente, com a afirmação da prisão como uma espécie de “punição

civilizada”.

Anterior ao aprisionamento, a idéia de punição estava vinculada ao suplício

físico. Os espetáculos promovidos pelos enforcamentos e mutilações públicas deixavam

bem claro aos que as assistiam qual o destino dos que não se enquadravam nas leis.

Tratava-se, portanto, de soluções definitivas; não há como voltar atrás depois de mutilar

um condenado ou tirar-lhe a vida.

Era uma forma ostensiva da ação da justiça: a população deve identificar, na

punição, o crime cometido contra a ordem soberana de seu Chefe de Estado. Estamos

em meados dos séculos XVI e XVII, o Estado Absolutista e centralizador encontra-se

em seu apogeu em países europeus de expressiva influência econômica e política, como

França e Inglaterra, e qualquer atentado à ordem pública é considerado um ataque direto

ao rei; portanto a punição é uma resposta direta do soberano ao delinqüente e assim

deve ser identificada pela população.

A partir da segunda metade do século XVIII, surge a necessidade de se repensar

as práticas da justiça. Inicia-se uma espécie de glorificação dos criminosos,

transformando-os em mártires, ao mesmo tempo em que a população se revolta contra o

poder abusivo do soberano sobre os corpos dos condenados.

Foi um período em que os chamados “crimes de sangue”, até então responsáveis

pela maior parte das condenações, cederam lugar a crimes contra o patrimônio. A

prática dos suplícios perde seu papel de reafirmação do poder do soberano e se torna

fonte de críticas de abuso de poder.

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É, portanto, nesse momento que surge um movimento reformulador das leis e

das práticas judiciárias de punição. Ironicamente, é com forte cunho Iluminista que se

dará a mutação do aparato supliciador para a prática sistemática do aprisionamento.

O raciocínio compensatório dos suplícios, que mede a produção da dor,

relacionando o grau de seus efeitos sobre o corpo do criminoso com o tipo de crime que

cometeu, desloca o seu alvo: ao invés de compensar o crime com o sofrimento do

criminoso, o tempo de vida em aprisionamento passa a ser alvo da justiça.

Mas quem seriam esses desajustados, esses delinqüentes, esses criminosos? Que

tipos de crime praticavam? Contra quais interesses agiam? Por que não tentavam,

simplesmente, inserir-se nos padrões sociais estabelecidos?

O momento histórico em questão é ainda fruto da transição do antigo regime

feudal, apoiado no vínculo de famílias a pequenas propriedades de terra adquiridas por

direitos de nascença, para o capitalismo moderno, cujo princípio é o acúmulo de capital

gerado pela exploração da mão de obra operária barateada, aliada ao aumento da

produção através da tecnologia fabril.

A expulsão de grandes massas populares camponesas para os centros urbanos

em formação, conseqüência direta da apropriação ilícita de suas terras pelos antigos

senhores a que antes estavam submetidos, acabou por gerar uma classe composta por

mendigos, prostitutas, “vagabundos”, órfãos e “pequenos ladrões” que se tornariam alvo

das denominadas “casas de correção”.

Essas instituições estavam, basicamente, “voltadas a obrigar ao trabalho seus

prisioneiros” (Rocha, 1996: 66). Homens, mulheres e crianças, desapropriados de sua

forma tradicional de sustento, passam a produzir bens que irão enriquecer seus próprios

algozes. Nesses lugares vai se desenvolvendo, pouco a pouco, uma série de saberes que

resultam no modelo prisional até hoje estabelecido e consolidado no interior das

sociedades atuais.

Assim, é no momento em que os centros urbanos se consolidam através da

atividade industrial, momento em que o modo de produção industrial será responsável

pela constituição de grandes fortunas e, conseqüentemente, impulsionará o

desenvolvimento tecnológico do mundo ocidental, que à prisão será atribuída uma nova

responsabilidade, uma nova missão, mais “nobre” que a simples punição: ela é

convocada a “reformar” indivíduos.

Entramos na era das prisões

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São consideradas as primeiras experiências prisionais reconhecidamente

modernas o sistema da Filadélfia, instituído em Walnut, Filadélfia, em 1790, e o sistema

Auburn, instaurado na cidade homônima no Estado de Nova York, em 1820, uma

reação ao anterior. Isso porque o primeiro, também conhecido como sistema celular,

impunha o isolamento total aos condenados, que passavam 24 horas por dia

encarcerados.

Já no sistema Auburn, ou silent system, o isolamento se dava no período

noturno, e durante o dia o trabalho e as refeições eram realizados coletivamente. Havia

vigilância constante e os presos eram proibidos de conversar e trocar olhares entre si,

sendo submetidos a uma rotina altamente militar.

A descrição desses modelos prisionais revela que ambas as tentativas de

correção de comportamentos já possuíam hipóteses claras de uma ciência em formação,

composta por tentativas que visavam transformar a postura considerada inadequada dos

indivíduos aprisionados naquela considerada correta pelo senso comum, para então

reintegrar o indivíduo ao convívio social: o primeiro preconizava a reflexão

transformadora; o segundo, atividades produtivas regidas por vigilância massacrante,

aliando à idéia do enquadramento às regras o modelo fabril que se instaurava nos meios

de produção.

As prisões modernas se enquadram naquilo que Goffman define como

“instituições totais”, assim caracterizadas: Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única

autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia

imediata de um número relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e

obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são

rigorosamente estabelecidas pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a

seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de

funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único,

supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição (Goffman, 2001: 18).

Além disso, há uma divisão entre os dois mundos que convivem nestas

instituições: o grupo vigiado e a equipe dirigente. Aquele composto por um número

maior de pessoas que mantêm pequeno contato com o mundo externo, enquanto este

último grupo dedica algum tempo de seu dia à instituição e está integrado ao convívio

social externo.

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O modelo prisional moderno, no qual se inserem as características acima

descritas, espalhou-se por toda a Europa e, conseqüentemente, por suas colônias. No

início do século XIX, já era um sistema consolidado.

A organização e gerenciamento das fábricas, no início da Revolução Industrial,

pouco ou nada se diferenciavam das características descritas para definir uma instituição

total.

Em uma Europa já bastante urbanizada, os assalariados fabris tinham que

competir com a mão de obra convenientemente acumulada nas prisões, a partir das leis

que consideravam grande parte das formas populares de sobrevivência (mascates,

taberneiros, prostitutas, mendigos, etc...) passíveis de pena prisional.

Durante longo tempo, prisões se confundiam com unidades fabris, que faziam

uso da mão-de-obra dos prisioneiros, obrigando-os por lei ao trabalho gratuito,

explorando-os economicamente com a desculpa da reabilitação moral das condutas para

depois reintegrá-los à sociedade, agora como operários exemplares.

A tecnologia desenvolvida nas fábricas encontra paralelo na tecnologia

desenvolvida nas prisões. A diferença é que a primeira produz mercadorias, enquanto a

segunda está preocupada em moldar comportamentos e transformar atitudes.

Para legitimar a ação sobre os homens, o sistema penal se encarregará de

elaborar uma série de saberes sobre os indivíduos, elaborando normas de conduta para

os encarcerados. Cria também um discurso científico, bem aos moldes do ‘cientificismo

positivista’ do século XIX, que vai outorgar a poucos o poder de decisão sobre a

sanidade dos indivíduos, criando uma série de teorias da loucura, da inferioridade moral

e mental dos pobres e dos povos colonizados.

Convenientemente, consolida-se uma ciência: a Criminologia. Termos

tecnicistas como “sociopatia” ou “distúrbios anti-sociais da personalidade” são

suficientes para justificar uma ação penal sem dar muitas explicações efetivas.

Assim, à medida que o sistema prisional se consolidava como forma definitiva

de punição generalizada, eram desenvolvidas técnicas de ação sobre os corpos dos

condenados, com conseqüência direta na sua organização psicológica em relação ao

entendimento do mundo e de si mesmos.

São submetidos a uma série de rituais que estabelecem uma separação radical

com o mundo exterior, perdem o contato espontâneo com seus familiares, sua

intimidade é massacrada pela constante vigilância, perdem seu nome ao serem tratados

como números a serem contados e conferidos diversas vezes por dia. São

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constantemente relembrados de sua condição de inferioridade pelos maus tratos a que

são submetidos, não lhes é permitido possuir nem mesmo objetos pessoais, não

escolhem a roupa que usam e perdem o contato com o sexo oposto, resultando muitas

vezes em perda da identidade sexual.

A compreensão das regras que regem internamente o sistema prisional a que está

submetido, provoca no indivíduo apenado uma reorganização para melhor se adaptar a

elas, sobretudo para obter privilégios e sair-se bem em laudos técnicos e perícias.

Opera-se aqui uma espécie de política de autodisciplina que vai pouco a pouco

eliminando a espontaneidade, que constrói um autocontrole nascido não de uma

mudança real de comportamento, fruto de reflexão acerca de atos cometidos antes do

aprisionamento, mas sim de uma adaptação às regras impostas pela instituição.

Os trabalhos a que são submetidos, normalmente atividades simples, repetitivas,

fragmentadas e monótonas, completam a ação da prisão sobre o corpo dos aprisionados:

devem ser eficientes, disciplinados, adestrados, politicamente dóceis e economicamente

úteis (Foucault, 2004).

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que a prisão se firmava como

modelo punitivo, ela já produzia críticas ao seu funcionamento, perfeitamente

incorporadas a seu sistema. Originados a partir dos próprios saberes gerados dentro de

seus muros gigantescos, os discursos reformadores atendiam à necessidade de

apresentar a prisão como uma instituição em constante aperfeiçoamento.

Assim, a prisão e sua pena privativa de liberdade chegam até nossos dias como

principal instrumento punitivo do Estado, atendendo a interesses pouco aparentes: todo

o seu discurso reabilitador na verdade esconde um papel crucial na construção da

delinqüência (Foucault, 2004), estigmatizando os indivíduos (em sua grande maioria

oriundos das classes mais pauperizadas da população) que são submetidos a suas

técnicas para, finalmente, justificar todo o aparato de vigilância policial cuja principal

função é garantir, basicamente, o sossego dos detentores de bens materiais contra a ação

criminosa daqueles que não os possuem, já que o delito responsável pela maior parte

dos aprisionamentos é o atentado à propriedade alheia.

O encarceramento, a visão de muralhas constantemente vigiadas por homens

armados e tudo aquilo que a idéia da prisão traz à mente são sínteses de uma rede de

poderes disciplinares por ela produzidos, e que portanto ela condensa, como símbolo da

maior intervenção do Estado na vida dos indivíduos.

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O resultado é a formação de uma sociedade disciplinar, consolidada a partir de

várias instâncias de vigilâncias hierarquizadas que se reproduzem infinitamente não só

dentro dos sistemas carcerários e manicomiais, militares e religiosos, reformatoriais e

fabris, como também nas instituições educacionais e, em casos extremos, dentro da

própria estrutura familiar.

Assim, fica claro que a prisão perpetua o crime, uma vez que imprime nos seus

egressos, a alcunha da delinqüência, impedindo que a maior parte deles consiga

reinserir-se nas formas de trabalho socialmente reconhecidas.

Além disso, o tempo despendido atrás das grades pode ser considerado um

verdadeiro laboratório criminal, já que possibilita a troca de experiências entre

iniciantes e criminosos perigosos que convivem em um ambiente estimulador de

práticas delituosas, onde burlar regras é a única forma de satisfazer necessidades

consideradas banais fora da cadeia, mas que são proibidas dentro de suas celas (portar

material pornográfico e mascar chiclete, por exemplo).

Chegamos, dessa forma, ao centro de toda questão crítica relacionada ao modelo

punitivo prisional. A despeito de todas as reformulações, reformas, revisões, a prisão

sobrevive através da doutrina da reabilitação, que encobre uma série de fatores

intrínsecos à sua organização institucional e que acoberta seu próprio fracasso como

instituição, uma vez que ela não atinge seus objetivos. Seus objetivos declarados, o de

reabilitar e punir acabam transformando a ação da instituição prisional em uma

verdadeira rede paradoxal e difusa de atribuições que se mesclam e se sobrepõem e cujo

resultado não é outro senão a construção da delinqüência (Foucault, 2004).

A proposta de reabilitação materializada através da prática penitenciária

desenvolve-se a partir de três grandes fatores: o isolamento, o trabalho penitenciário e a

autonomia da gestão penitenciária. Eles são a base de todo o aparato técnico e científico

sobre o qual e a partir do qual o eixo da ação penal deixa de ser o ato criminoso e passa

a ser o indivíduo criminoso.

O isolamento diz respeito à retirada do indivíduo do convívio com o mundo

exterior e a tudo que ele possibilitou ao infrator em termos de relações sociais

motivadoras do crime. Também está relacionado à transformação que se pretende operar

no indivíduo, classificando-o em relação aos outros, a fim de garantir-lhe a

individualização da pena.

O trabalho penal também é definido como parte essencial na transformação dos

indivíduos. Ele deve ser concebido como sendo por si mesmo uma maquinaria que transforma o

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prisioneiro violento, agitado, irrefletido em uma peça que desempenha seu papel com perfeita

regularidade. A prisão não é uma oficina; ela tem que ser em si mesma uma máquina de que os detentos-

operários são ao mesmo tempo as engrenagens e os produtos (Foucault, 2004:204).

As conseqüências dessas ações devem ser constantemente avaliadas e

examinadas, e os resultados devem materializar-se de tal forma que o tratamento da

pena seja modulado, ou seja, alterado na medida em que a ação carcerária opera a

regulação do indivíduo segundo seus princípios.

Desses três grandes fatores basilares, o que se irradia é um conjunto de saberes

que, reunidos, formam as sete máximas universais da boa administração penitenciária

(Foucault, 2004: 224). Esses princípios são:

1. CORREÇÃO: a função essencial da prisão é a transformação do comportamento do

sujeito alvo de sua ação, através de sua reclassificação social e sua recuperação,

devolvendo-o à sociedade assim que o processo de reabilitação se conclua.

2. CLASSIFICAÇÃO: uma vez condenado, o indivíduo deve ser isolado, separado da

sociedade, e depois agregado a outros de acordo com sua pena, idade, sexo, tipos de

técnicas de reabilitação de que serão alvo.

3. MODULAÇÃO DAS PENAS: as penas devem ser proporcionais não à gravidade

do crime cometido, mas sim aos resultados conseguidos através da ação carcerária sobre

o indivíduo. Dessa maneira, esse princípio avalia a transformação individual dos

detentos e lhes atribui alterações nas previsões de tempo e ação da pena.

4. TRABALHO COMO OBRIGAÇÃO E COMO DIREITO: o trabalho é encarado

como um dos instrumentos fundamentais da ressocialização e transformação dos

detentos, através do aprendizado e execução de um ofício, ocupando o tempo da

detenção enquanto pode propiciar recursos financeiros ao próprio preso e sua família.

5. EDUCAÇÃO PENITENCIÁRIA: prover instrução geral e profissional é sempre

encarado como parte essencial de um processo de reabilitação bem-sucedido.

6. CONTROLE TÉCNICO DA DETENÇÃO: a gestão prisional deve ser assumida

por pessoas que detenham saber especializado no interesse de zelar pela conquista dos

objetivos a que se destinam as prisões.

7. INSTITUIÇÕES ANEXAS: aliar ao encarceramento uma série de medidas de

controle e assistência até que o indivíduo possa ser considerado ressocializado, depois

do cumprimento da pena.

A exposição das máximas universais da boa administração penitenciária revela,

por um lado, a sofisticação dos saberes desenvolvidos pela técnica prisional, e por outro

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lado atesta que as reformas do sistema penitenciário, sempre repousando comodamente

sobre estes sete temas, não dão conta do problema real, conseqüência final do

aprisionamento, que é o da consolidação da delinqüência.

Se a prisão se apresenta como instrumento fundamental no processo de combate

ao crime, em verdade seus efeitos há muito não comprovam a qualidade de sua ação. As

prisões não diminuem a taxa de criminalidade, nem a quantidade de crimes. Ela ainda

facilita a organização dos delinqüentes, pois favorece um ambiente socializador em seu

submundo.

De qualquer forma, a aparente obviedade do fracasso do sistema prisional não

contribuiu para a construção de uma alternativa que subvertesse radicalmente sua

organização. Devemos notar que essa crítica monótona da prisão é feita constantemente em duas direções:

contra o fato de que a prisão não era efetivamente corretora, que a técnica penitenciária nela

permanecia em estado rudimentar; contra o fato de que, ao querer ser corretiva, ela perde sua força de

punição, que a verdadeira técnica penitenciária é o rigor, e que a prisão é um duplo erro econômico:

diretamente pelo custo intrínseco de sua organização, e indiretamente pelo custo da delinqüência que ela

não reprime. Ora, a essas críticas, a resposta foi invariavelmente a mesma: a recondução dos princípios

invariáveis da técnica penitenciária. Há um século e meio que a prisão vem sendo dada como seu

próprio remédio; a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso

permanente; a realização do projeto corretivo como único método para superar a impossibilidade de

torná-lo realidade (Foucault, 2004: 223).

Ao mesmo tempo, esse pretenso “fracasso” revela mais uma das contradições da

prisão. Quanto mais a criminalidade cresce, mais recursos são destinados ao aparelho

jurídico-penal, então a própria organização penal se fortalece, embora sua atuação não

reverta a crescente criminalidade. Isto atesta o enraizamento de sua lógica na estrutura

social, inclusive impossibilitando a proposição de alternativas para o combate ao crime

que não pretensas reformas do sistema punitivo.

O sistema penal, invariavelmente repousado no dilema entre reabilitar e punir,

ao propor o fim da criminalidade através da ressocialização dos indivíduos a ela

submetidos, acaba operando uma alteração no papel social daqueles que passaram pelo

aparelho carcerário e se tornaram objeto de uma ciência legitimizadora da existência da

prisão: de infratores eles passam a delinqüentes.

Dessa forma, a prisão cumpre seu papel mais perverso. “Corrigir as pessoas

sempre foi um objetivo ligado ao uso que se quer fazer delas” (Rocha, 1996: 170).

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1.2 Um panorama brasileiro

No Brasil, a situação atual das penitenciárias é das mais graves.

A péssima distribuição de renda aliada a sucessivas crises econômicas

resultantes do modelo neoliberal de gestão, que privilegia o lucro especulativo em

detrimento do lucro gerado pela produção das indústrias, acabam por produzir os

maiores índices de desemprego da história nacional, processo resultante também do

aumento da mecanização da produção.

A crise do sistema educacional público, resultado de um longo processo de

desmantelamento do ensino, vem formando gerações de analfabetos funcionais (pessoas

alfabetizadas, porém incapazes de compreender e articular raciocínios a partir daquilo

que lêem), ou de técnicos que não se enquadram no perfil atual exigido pelas empresas.

Somamos a isso a atual situação das periferias dos grandes centros urbanos

brasileiros, onde o dinheiro injetado pelo tráfico de drogas possibilitou a formação de

grupos criminosos que disputam abertamente áreas de atuação, colocando em risco a

população local, que acaba apoiando tacitamente os criminosos por não confiar na ação

da polícia.

Por mais que se tente ignorar, há uma relação direta entre a crise econômica

atual e o aumento da criminalidade. O roubo (subtrair coisa móvel alheia mediante

grave ameaça ou violência) é o crime responsável pelo maior número de

aprisionamentos no Brasil:

Nas prisões brasileiras, os culpados de homicídio são 10 ou no máximo 20 por cento. Os de

estupro não são mais do que dois em cada cem. Não que isto seja insignificante. Mas, convenhamos, é

muito menos do que somos levados a imaginar: 78 por cento dos encarcerados não estão lá por práticas

horrorosas sistemáticas. Na verdade a população das prisões em geral é formada por jovens pobres de

menos de trinta anos, que começaram a trabalhar antes dos 14 anos e cumprem pena por delitos de

pequena monta contra a propriedade. No Brasil, o valor médio roubado ou furtado nestes pequenos

delitos que abarrotam as prisões é calculado em cerca de 80 dólares cada um. Isto significa que todos os

prisioneiros deste tipo no país, ainda que tivessem logrado absoluto sucesso, não teriam conseguido

surrupiar juntos 1% do valor comprovadamente desviado da Providência Social somente entre 1988 e

1992 (Rocha, 1994: 56).

Atualmente as autoridades são constantemente ameaçadas por organizações

criminosas que se instauraram dentro das cadeias. Em fevereiro de 2001, o Primeiro

Comando da Capital, PCC, a melhor estruturada delas, foi responsável por uma rebelião

conjunta de 29 prisões do Estado de São Paulo, só controlada depois de 27 horas, com

um saldo de 16 mortos.

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Trata-se não apenas de uma demonstração da força, mas também do desespero

da massa carcerária brasileira, que em abril de 2001 já contava com 223.220 presos,

sendo que em São Paulo havia um déficit de 26 mil vagas. Por mês, estima-se que sejam

despejados nos cárceres do país de 800 a mil novos réus, o que significa que seria

preciso construir um novo presídio a cada trinta dias. A superpopulação carcerária encontra-se na origem imediata de não poucos outros problemas,

sobretudo a promiscuidade que promove toda sorte de contaminação – patológica e criminógena -,

exacerbando a violência como forma institucionalizada e moralmente legítima de solução de conflitos

intersubjetivos (Adorno, 1991b: 71).

O fato é que as condições atuais de penúria e precariedade dos institutos

prisionais Brasil afora não correspondem à idéia, cada vez mais expressa pela mídia

formadora de opinião, de que o combate à criminalidade, ampliando o número de

encarcerados, resolveria o problema candente da violência em nosso país.

O debate cada vez mais acirrado, desencadeado por uma parcela da população

que pretende reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, repele o apelo cada vez

mais óbvio contra o fortalecimento do papel da prisão no ciclo de violência estabelecido

em nossa sociedade. Se cada vez mais a faixa etária dos criminosos diminui, não se

pode alegar simples coincidência o fato de que os maiores índices de desemprego

atingem justamente os jovens com baixa escolaridade.

Os menores infratores, que cumprem ‘medida socioeducativa’, não entram na

contagem da população encarcerada, pois não são considerados presos, mas

‘internados’: No primeiro semestre de 2000, foram aplicadas mais de 99 mil medidas socioeducativas

contra adolescentes em São Paulo; entre elas, contavam-se 54.871 casos de liberdade assistida, 21.729

casos de prestação de serviço à comunidade e 17.088 internações compulsórias. São os presos de

amanhã (Carvalho Filho, 2002: 13).

Enfim, ante a demanda pela construção de mais unidades penais, caberia uma

compreensão mais profunda das causas que disseminam e reforçam a criminalidade em

nosso país, nas quais a instituição penal possui papel proeminente, mas pouco debatido.

Longe de ser solução para a violência, a crítica que se faz aos presídios atribui a

eles função disseminadora e irradiadora dessa mesma violência que eles pretensamente

combatem.

Obviamente, este aspecto nunca é abordado pela mídia, aparentemente mais

preocupada em promover uma sensação constante de medo e insegurança por toda a

população, cujo resultado é a ênfase na visão superficial e estereotipada que a sociedade

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constrói do homem preso, da polícia, do sistema judiciário, do crime, enfim, das

personagens envolvidas no drama da questão carcerária brasileira.

A especificidade do modelo prisional paulistano é o tema sobre o qual nos

debruçaremos a partir de agora.

1.3 O Sistema Prisional no Estado de São Paulo

Desde 1993, o Estado de São Paulo tornou-se o primeiro estado brasileiro a criar

uma secretaria destinada especificamente à administração do sistema penitenciário. Este

pioneirismo (hoje o Rio de Janeiro também possui uma pasta destinada exclusivamente

à gestão carcerária) foi a resposta do então governador Luiz Antonio Fleury Filho

(1991-1994) às pressões de diversas instâncias da sociedade ligadas aos Direitos

Humanos e organismos internacionais, com relação à execução de 111 homens presos

no Pavilhão 9 da Casa de Detenção, o Carandiru, durante intervenção da Polícia Militar,

em uma rebelião mundialmente conhecida como o “massacre do Carandiru”.

Pouco antes, ele havia transferido a administração do sistema penitenciário para

a Secretaria da Segurança Pública, que até então tinha estado sob o comando da

Secretaria da Justiça, o que já revela uma concepção sobre prisão: prioridade da punição

sobre a ressocialização.

A gestão anterior, do governador Orestes Quércia (1987-1990), foi responsável

pela construção de 17 unidades prisionais, que passaram de 22 pra 39, e também pela

atribuição da incumbência da educação dos adultos presos à FUNAP.

O governador Franco Montoro (1983-1986), assumindo a gestão sob forte

expectativa no período da tão esperada redemocratização do país, designou o advogado

José Carlos Dias para a Secretaria dos Negócios da Justiça, responsável pelos

estabelecimentos penais. Aparentemente, toda a proposta parecia caminhar para uma

renovação nas práticas penitenciárias, uma vez que o recém-nomeado secretário era

notório defensor dos direitos humanos e lutou abertamente contra a ditadura em defesa

de presos políticos.

Todavia, medidas que abertamente procuravam restabelecer o cuidado no trato

da população presa (visavam o fim das torturas e garantiam o acesso dos presos à

educação, trabalho e assistência jurídica) ganharam imediatamente forte oposição no

corpo funcional das unidades prisionais, que entendia a valorização do preso como uma

afronta ao poder dos funcionários da instituição sobre a massa carcerária.

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As crises maiores, ocorridas quando foi proposta a criação de comissões de

representantes da massa encarcerada na gestão das penitenciárias, eleitos

democraticamente pelos próprios presos, foram responsáveis pela demissão do

secretário, o que revelou a dificuldade em se instaurar propostas diferenciadas no trato

com as unidades prisionais.

Fica evidente, neste episódio, a objeção a se transformar efetivamente a lógica

instaurada e arraigada no corpo funcional das unidades prisionais, emergindo a primazia

da manutenção da ordem prisional (impedir brigas e rebeliões, acabar com as tentativas

de fugas, manter a ordem da unidade, etc.) em oposição a projetos que estejam voltados

para a ressocialização do preso.

Hoje, o sistema carcerário paulistano é composto por 144 unidades prisionais,

submetidas a seis Coordenadorias Regionais com vínculo direto à Secretaria da

Administração Penitenciária (SAP).

Dando prosseguimento à política de promoção dos Direitos Humanos instaurada

desde a posse do governo Mário Covas, em seu primeiro mandato (1995-1998), o

governador Geraldo Alckmin promoveu uma série de medidas que, se por um lado

afirmam ter mudado radicalmente o perfil do sistema carcerário no Estado de São Paulo,

por outro não impediram que a população carcerária tenha chegado ao número

assustador de 1309.187 pessoas presas1 em fevereiro de 2006. Desse total, 122.055

(87,66%) estavam nas unidades da SAP, enquanto 17.763 (12,31%), ainda permaneciam

sob custódia da Secretaria de Segurança Pública, detidos nos DPs (Distritos Policiais) e

Cadeiões, onde tradicionalmente ficam os presos ainda não julgados e, portanto, ainda

não submetidos à SAP.

Para se ter uma idéia do aumento do número de presos, em 1994 existiam 55.021

presos em todo o Estado, sendo que 31.842 (57,87%) estavam em unidades prisionais

enquanto 23.179 (42,13%) ainda estavam nos DPs.

O único dado satisfatório neste pequeno panorama está ligado à redução da

porcentagem do número de presos à espera de julgamento que ainda permaneciam fora

das instituições sob tutela da SAP, já que as diretrizes políticas atuais pretendem zerar o

número de presos nos DPs e Cadeiões, uma vez que ambos constituem a parte mais

frágil de todo o sistema: superlotados e construídos apenas com a finalidade de

1 Todos os números utilizados a partir deste momento, quando não explicitada a especificidade da fonte, foram extraídos da página virtual da Secretaria da Administração Penitenciária: www.sap.sp.gov.br.

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detenção, não possuem capacidade física e pessoal técnico habilitado para cumprir as

exigências de uma prática penal adequada.

Para isso, foram construídos 33 Centros de Detenção Provisória, com capacidade

para até 768 presos aguardando julgamento. São unidades de segurança máxima que

possuem celas reforçadas com chapa de aço e sistema interno de alarme e tevê.

Além de 74 penitenciárias, o sistema conta ainda com: 2 Institutos Penais

Agrícolas (IPA); 7 Centros de Progressão Penitenciária (CPP), unidades com

capacidade para até 672 pesos em regime semi-aberto, que podem trabalhar dentro ou

fora do presídio e 18 Alas de Progressão Penitenciária (APP), construídas junto a

unidades de regime fechado com capacidade para até 210 presos em regime semi-

aberto. Essas são unidades tradicionais, que comportam a maioria numérica do

montante de presos do Estado, e que aparentemente estão eclipsadas pelas duas

“estrelas” da SAP: os dois Centros de Readaptação Penitenciária (CRP), e os 22 Centros

de Ressocialização (CR).

Os Centros de Readaptação Penitenciária, cujo nome já assume o papel que irão

desempenhar, o de adaptar o indivíduo ao sistema penitenciário, caso promovam graves

distúrbios a seu funcionamento. São as unidades responsáveis pela aplicação do Regime

Disciplinar Diferenciado, o RDD, cumprido em celas individuais, no qual o sentenciado

tem direito a apenas duas horas de banho de sol por dia, ficando impossibilitado de se

comunicar com outros presos. Os advogados são obrigados a passar por detectores de

metais antes de entrarem no presídio e não há contato direto com seus clientes, apenas

através de vidros.

Os CRPs são os presídios de segurança máxima, erigidos sobre um metro de

concreto reforçado por um tapete de aço, a fim de impedir as fugas subterrâneas,

arrematados por muros de oito metros de altura vigiados por agentes e cães treinados.

Comportam até 160 condenados, e são aparelhados com sistema de vídeo e bloqueador

de celulares. Não possuem atividades culturais, educativas ou qualquer tipo de trabalho

que possam ser consideradas como um programa de reabilitação.

Já os Centros de Ressocialização (CR) promovem filosofia oposta a dos CRPs.

Seriam o lado “bonito, dinâmico e moderno” do sistema penal, em 21 unidades mistas

(com presos em regime fechado, semi-aberto e detenção provisória) para até 210 presos,

com infra-estrutura e pessoal técnico capaz de oferecer atendimento odontológico,

médico, jurídico, psicológico, laborterápico, educacional e assistencial, além da tão

divulgada parceria com ONGs e Associações Comunitárias na gestão da unidade

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prisional, o que reduz drasticamente o custo financeiro e administrativo para o Estado e

amplia o contato dos presos com o mundo “de fora”.

A experiência dos Centros de Ressocialização é considerada o grande trunfo da

gestão do Secretário Nagashi Furukawa, que ampliou a rede de CRs a partir de sua

própria experiência à frente da unidade de Bragança Paulista. O projeto de gestão em

parceria com a comunidade é batizado de Cidadania no Cárcere e os resultados têm

sido realmente positivos, quaisquer que sejam os critérios: econômico, número de fugas

e rebeliões, número de reincidentes.

Todavia, ficam em aberto questões sérias a serem analisadas: qual o limite da

atuação dessas associações comunitárias frente ao papel do governo estadual nas suas

atribuições de construtor de políticas realmente sólidas e equânimes a todas as unidades

prisionais, diante do evidente aumento do número de presos a cada dia, em todo o

Estado?

Além disso, de que forma essa aparente desconexão entre as pastas da Justiça, da

Segurança Pública e da Administração Penitenciária pode ser superada, a fim de que o

tratamento das questões criminais seja abordado por todas as instâncias que lhe cabem:

a justiça, a segurança e as políticas prisionais?

Em um arquivo ainda disponível na página virtual da SAP, denominado “O

sistema prisional de São Paulo está mudando”, realizado em agosto de 2004, temos

acesso a uma apresentação composta por uma série de imagens de um CR, fotografias

de presos sorridentes realizando atividades esportivas e culturais, trabalhando em

fábricas e realizando refeições satisfatórias, tudo entremeado por trechos de uma

suposta “Carta de um reeducando recém-chegado a um Centro de Reabilitação para um

amigo, preso em outra unidade”.

O texto é o que segue: Como vai? Mando um abraço pra todos vocês aí... Rapaz, vou te contar o sofrimento eu foi esse

bonde para mim, tanto que eu só não me arrependi de ter saído daí porque sabia que um lugar melhor

me esperava. Rapaz do céu, eu quase morri de tanto frio. Deitar para dormir era impossível, porque o

chão era supergelado. Sono todos tinham, mas era impossível deitar no chão frio.

Na hora do almoço cheguei ao CR, agora vou te contar a maravilha daqui. É um céu! Desci

minhas coisas do bonde, já tinha um funcionário me esperando para me receber, com toda educação e

respeito. Sabe, eu acho que todos eles têm uma função treinada para nos tratar bem, com respeito e

sempre com cordialidade, ninguém aqui é carrancudo ou de mau-humor.

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Você acredita que a cozinheira, uma senhora de cor, toda vestida de branco e lenço na cabeça,

veio me perguntar, logo que eu parei de comer, se a comida estava boa? E por que eu comi pouco?

Acredita? Rapaz...é incrível como aqui eles tratam bem a gente!

O banheiro tem azulejo branco de 1,5m de altura, vasos sanitários com assento de abrir e

fechar, igual a casa da gente. A assistente social veio ontem perguntar o que era para eu falar para

minha família, que ela ia ligar avisando que eu já estava aqui. Aí a gente nunca é atendido quando pede

atendimento, aqui elas vêm para perguntar. Será que esse lugar existe?Trabalho tem para todos aqui. Só

não trabalha se não quiser. Eles nos trazem as refeições aqui. Almoço com feijão tipo igual o que a mãe

da gente faz.

Acho impossível um preso querer fugir daqui, porque essa é a idéia: ressocializar o preso, tratando bem

e como ser humano, para que ele se sinta capaz de pagar a dívida com o Estado e ser gente de bem.

Já valeu a pena o frio e a fome que passei para chegar aqui”2.

Este texto, aparentemente escrito para louvar os Centros de Ressocialização, é

um pequeno presente cômico a qualquer interessado em apontar as graves distorções

que ele evidencia. Primeiro, porque para valorizar o CR, ele precisa revelar o horror que

é a grande maioria das instituições que constituem o sistema penal paulista. O texto

tenta nos fazer crer que difícil mesmo foi o “bonde”, mas a cada elogio feito ao Centro,

temos absoluta clareza com relação à falência das outras instituições penais.

Se no CR a comida é maravilhosa, é porque nos outros presídios a alimentação é

horrível. Se no CR os funcionários são atenciosos, fica claro que nas outras unidades

eles não são capazes de oferecer tratamento digno ao preso. Se no CR existem até

azulejos, está revelada a ausência inclusive de privadas em outras prisões. Se no CR só

não trabalha quem quer, nas outras unidades as oportunidades de trabalho atingem

somente 52,2% da população encarcerada.

Mas difícil mesmo é acreditar que alguém que tenho convivido minimamente

com o sistema penal, e no caso do texto, tenha sido preso, seja capaz de escrever “acho

impossível um preso querer fugir daqui, porque essa é a idéia: ressocializar o preso,

tratando bem e como ser humano, para que ele se sinta capaz de pagar a dívida com o

Estado e ser gente de bem”. Nesse momento, nos perguntamos: é justo que um cidadão

precise ser preso, julgado e condenado por um crime para finalmente perceber que o

Estado existe?

2 Texto em arquivo disponível no endereço www.sap.sp.gov.br

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1.3.1 A Escola de Administração Penitenciária – EAP

A função de capacitar e formar pessoal técnico responsável e o corpo funcional

do sistema penitenciário tem suas origens no Centro de Recursos Humanos da

Administração Penitenciária (CRHAP), fundada em 1979, com as funções de

recrutamento, seleção, legislação e expediente de pessoal, controle de recursos humanos

e política salarial dos funcionários do sistema penal.

A ACADEPEN, ou Academia Penitenciária, foi criada em 1994, um ano depois

da criação da SAP, e suas finalidades estavam dirigidas a construir um processo

contínuo de treinamento e desenvolvimento do corpo funcional, a fim de atender às

demandas provocadas pelas novas diretrizes do sistema, em todos os níveis de atuação,

sejam administrativos, técnicos ou de vigilância e controle.

Assim, mais uma vez a reformulação das políticas penais passa longe de

qualquer tentativa de questionamento da própria prisão como pena, e acaba repousando

em uma nova proposta de gestão para uma das já citadas máximas para o bom

desenvolvimento carcerário (Foucault, 2004), a que diz respeito ao controle técnico da

detenção.

Atualmente, a ACADEPEN passou a se chamar Escola de Administração

Penitenciária – EAP, o que reforça a sua intenção de ser interpretada como um centro

formador de pensamento e transformador da filosofia punitiva arraigada no corpo

funcional dos presídios, ou seja, como uma “escola”, e não como uma “academia”,

título fortemente ligado a instâncias formadoras do corpo policial, o que pode reforçar o

sentido de uma formação voltada para a vigilância e controle da massa carcerária.

A proposta atual é de que a EAP vá se descentralizando, criando ramificações

pelo Estado a fim de se aproximar das unidades que proliferaram nos últimos anos, já

que sua sede, no complexo da Penitenciária do Estado, na capital paulistana, não dá

conta de atingir todo o sistema.

1.3.2 A Fundação de Amparo ao Preso Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel – FUNAP

A FUNAP é um órgão vinculado à SAP, mantido por recursos públicos e

oriundos da venda de produtos e serviços produzidos por presos. Sua principal função é

criar articulação entre os setores público e privado, organizações não-governamentais e

comunidades, a fim de oferecer trabalho, educação, cultura e assistência jurídica a

presos e egressos do sistema penitenciário paulista.

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Dessa forma, com missão declarada de evitar a reincidência criminal, e em

sintonia com a política de apoio aos Direitos Humanos assumida pela SAP, a FUNAP

assume função das mais relevantes, uma vez que é responsável pela educação e

formação profissional do indivíduo encarcerado, dois dos pilares da ação “reabilitadora”

promovida pelos presídios.

Fundada em 1976 pelo então Secretário da Justiça Manoel Pedro Pimentel, a

FUNAP é resultado de uma série de fatores que evidenciaram a necessidade de oferecer

capacitação profissional e trabalho aos presos, a fim de lhes proporcionar reabilitação e

também para contribuir com a disciplina dos presídios, ocupando o tempo ocioso dos

encarcerados.

Em maio de 1975 foi montada uma exposição dos produtos confeccionados por

presos, durante as horas de “trabalho obrigatório”, na época regidas de acordo com os

regulamentos internos de cada unidade penal. Até então os trabalhos artesanais

realizados pelas mulheres presas na Penitenciária Feminina e os móveis de junco e

taboca produzidos na ala masculina do Carandiru eram inúteis, pois ficavam guardados

dentro da instituição.

A partir da venda dos produtos expostos e de mudanças promovidas na

legislação de forma a possibilitar a remuneração do preso, foram iniciados uma série de

contatos, encabeçados por Carmem Gama Pimentel, criando uma demanda pelas

mercadorias produzidas dentro dos presídios. O resultado foi a criação do Instituto de

Amparo ao Trabalhador Preso, em abril de 1976.

Em dezembro do mesmo ano, foi aprovada na Assembléia Legislativa do Estado

a mudança de categoria do Instituto, que passou a ser denominado Fundação, mantendo-

se suas finalidades, mas alterando suas possibilidades de relação com instâncias

governamentais e com as unidades prisionais.

No decorrer de sua trajetória, a Fundação, apesar de estar declaradamente

voltada para a formação profissional do preso, acabou servindo para outras ações, como

contratação de profissionais e compra de materiais. Isso era possível, pois até a

Constituição de 1988, uma fundação não era obrigada a realizar licitação ou concurso

público.

Dessa forma, a FUNAP foi, pouco a pouco, assumindo a responsabilidade pela

Educação nos presídios, o que foi oficializado a partir do governo Quércia (1987-1991);

pelas atividades culturais e esportivas, através dos Postos Culturais instalados nas

penitenciárias, que organizam eventos e campeonatos internos; e também pela

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Assistência Judiciária nas unidades prisionais, tarefa de responsabilidade da

Procuradoria Geral do Estado.

Além disso, a Fundação implementa, com o objetivo de diminuir a reincidência

criminal, programas de apoio aos egressos, procurando fornecer-lhes suporte jurídico e

assistência social.

Na presente pesquisa as atenções estarão voltadas às práticas teatrais

desenvolvidas em contextos prisionais. Portanto interessa que se faça uma análise das

propostas educacionais desenvolvidas pela FUNAP que estabelecem vínculos profundos

com a inserção da arte em presídios. As prisões, suas normas, procedimentos e valores observam a absoluta primazia na dominação e

controle da massa carcerária. Decorre que a manutenção da ordem e disciplina internas são

transfiguradas no fim precípuo da organização penal. Os programas e atividades considerados

“reeducativos” inserem-se nesta lógica de funcionamento, pautando suas ações e finalidades pela

necessidade de subjugar os sujeitos punidos, adaptando-os ao sistema social da prisão. Contudo, a

resistência prisioneira ao controle é patente.

A educação, de forma alguma, permanece neutra nesse processo (embate) de subjugação e

resistência. Seus procedimentos metodológicos e suas práticas cotidianas podem contribuir para a

sedimentação da escola enquanto recurso ulterior de preservação e formação dos sujeitos, nos

interstícios dos processos de dominação (Portugues, 2001: 7).

Dessa forma, coube à FUNAP a elaboração de programas que buscassem atingir

a excelência em educação de adultos presos, terreno pouco explorado pela literatura

educacional, mas inserido na trama complexa das políticas prisionais e de combate à

criminalidade e reincidência.

Até 1979, o ensino básico era proporcionado nas penitenciárias paulistas por

professores comissionados advindos da Secretaria de Educação e estava submetido aos

mesmos parâmetros e diretrizes estipuladas para as escolas oficiais, em termos de

currículo, calendário e seriação.

Nesse contexto, a educação de adultos presos está, portanto, envolta num panorama que

circunscreve aspectos comprometedores de sua qualidade. Destacam-se, neste sentido: a) a ausência de

uma coordenação pedagógica própria que atentasse para a especificidade daquele ensino, daquela

instituição; b) a não constituição dos educadores num corpo docente, que permaneciam cada qual

isolados em suas salas de aula; c) a não existência de trabalhos coletivos neste quadro, que ensejassem a

organização das atividades escolares pautadas por preceitos pedagógicos; d) a não identificação destes

profissionais com o exercício docente no interior da prisão, recaindo sua motivação na gratificação

salarial; e) a não caracterização deste ensino na modalidade de suplência, regulamentado desde 1971,

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pela Lei 5692/71; f) a impropriedade da extensão do ensino da rede regular destinado às crianças, aos

adultos presos (Portugues, 2001:105).

Evidentemente, ignorar as especificidades de um processo pedagógico em

contextos carcerários pouco contribuía para a construção de uma prática consistente de

educação de adultos presos.

Fato relevante foi a implementação do histórico escolar do aluno, a partir de

1987, época em que a FUNAP ficou definitivamente responsável pela educação nos

presídios. Este documento possibilitaria um acompanhamento da trajetória educacional

do preso durante o tempo em que estivesse inserido no sistema, garantindo o acesso a

estudos relativos ao seu estágio de aprendizagem, não sendo mais necessário aguardar o

início de um ano letivo a cada transferência ou ausência às aulas, por exemplo, por

haver cumprido um longo castigo,.

Os passos seguintes foram fornecendo as bases da filosofia educacional e das

propostas da Fundação para o ensino nas prisões:

1. Criação da Gerência de Educação, em 1989, com o objetivo de promover

encontros regionais mensais para a reflexão contínua sobre temas como educação de

adultos, sistema penitenciário e alunos presos (na época havia 20 escolas, 2500 alunos e

114 monitores).

2. Em 1993, foi realizado o I Encontro de Monitores de Alfabetização de

Adultos Presos do Estado de São Paulo, com a apresentação de palestras sobre Teorias

da Alfabetização, Alfabetização em Presídios e Educação como Processo de

Reabilitação, além de uma série de oficinas, que resultaram em duas propostas: efetivar

o quadro de monitores e estabelecer um programa de formação contínua para os

educadores.

3. Em 1994 foi criado o cargo de “Coordenador Pedagógico Regional”, com a

função de desenvolver projetos de formação junto aos monitores e auxiliá-los na

construção dos projetos pedagógicos das unidades prisionais.

4. Em 1995, a FUNAP publica o livro “Educação de Adultos Presos: Uma

Proposta Metodológica”, organizado por Robson Rusche.

Não é necessária uma leitura minuciosa dessa publicação, para perceber o grau

de comprometimento da proposta metodológica da FUNAP com concepções

conscientizadoras e humanistas, oriundas sobretudo das propostas da pedagogia do

oprimido de Paulo Freire.

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Nesse sentido, é importante ressaltar o avanço qualitativo no trabalho filosófico

e metodológico da formação dos educadores da FUNAP, que assumiu uma postura

claramente contrária a um modelo funcionalista da educação, apresentando propostas

que buscam a conscientização dos indivíduos e pretendem torná-los sujeitos de sua

existência (Rusche, 1995: 26) em um ambiente de privação de autonomia e liberdade.

Atualmente, a rede de educação da FUNAP atende 79 unidades penais, com um

quadro funcional composto por 71 monitores contratados em regime CLT, 148

estagiários e 143 monitores presos, totalizando 362 educadores que atendem cerca de

15.000 alunos. De acordo com dados do último Censo Penitenciário, realizado em 2003,

os índices de analfabetismo atingem 4% da população encarcerada, sendo que 75% dos

homens e 65% das mulheres não completaram o ensino fundamental.

Esses dados oferecem uma idéia da dimensão do trabalho a ser desenvolvido

pela FUNAP, tarefa infelizmente dificultada pela da carência de recursos financeiros e

de pessoal qualificado. Uma solução encontrada para superar essas questões tem sido a

contratação de estagiários e a consolidação da figura do “monitor preso” como principal

articulador das propostas educacionais nas celas de aula (LEME, 2002) das unidades

prisionais, assessorados pela formação pedagógica e acompanhamento do “monitor

orientador”.

O “monitor orientador” é um pedagogo cujas atribuições são: 1) execução de

políticas de atendimento da FUNAP, nas unidades penais, de forma organizada e unificada; 2)

organização e sistematização dos dados do atendimento educacional da unidade; 3) formação

continuada para Educadores, respeitando as necessidades e as diretrizes estabelecidas pela FUNAP; 4)

participação no processo de captação e seleção de monitores presos; 5) participação nas formações

pedagógicas oferecidas pela direção da FUNAP; 6) participação no funcionamento da escola em todos

os seus horários de acordo, com revezamento de horários, quando necessário (Souza et alii, 2005:

23).

A presença de monitores presos encontra suas raízes no final dos anos 60,

quando os presos políticos, em sua maioria intelectuais e estudantes universitários

condenados por crimes no combate à ditadura, deram início a processos informais de

alfabetização dentro dos presídios.

São funções do monitor preso: 1) Realização de aulas nos presídios, sob orientação e acompanhamento do monitor

coordenador; 2) Colaboração na organização e sistematização dos dados do atendimento educacional

da unidade; 3) Participação na formação continuada oferecida pelo monitor orientador, respeitando as

necessidades e as diretrizes estabelecidas pela FUNAP; 4) Realização de registro de atividades e

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relatórios regulares a serem apresentados ao monitor orientador; 5) Realização de hora-atividade, em

que deverá preparar estudos e atividades pedagógicas; 6) Participação no funcionamento da escola nos

horários que lhe são atribuídos (Souza et alii, 2005: 21).

A consolidação desta política visa a reestruturação do quadro funcional, bastante

escasso, uma vez que não há um vínculo duradouro entre os monitores concursados e a

FUNAP: o salário é baixo e as condições de trabalho oferecem, sem dúvida, perigos

constantes. Também a contratação de estagiários resulta pouco interessante, se estes

mesmos estagiários não encontram possibilidade de efetivação depois de toda a

formação e experiência adquiridas,

Nesse contexto, é de extrema relevância que os monitores orientadores dêem

conta da difícil tarefa de constituir uma equipe de monitores presos, leigos em

educação, apesar da defesa cada vez mais incisiva, nos discursos que pautam as

políticas educacionais, pela qualidade da formação universitária dos educadores.

É mais uma contradição gerada pelo descaso das políticas públicas com relação

ao tratamento do preso: como concretizar uma educação “libertadora” se o próprio

professor está cumprindo pena de privação de liberdade?

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Capítulo 2 - Notas do Subsolo

Ao mesmo tempo em que atuava junto ao processo desenvolvido na PFT, iniciei

uma busca por possíveis registros de experiências teatrais em prisões, anteriores ao

trabalho de Jorge Spínola. Deparei-me com a imensa dificuldade de encontrar

documentos referentes a esse assunto, sobretudo porque eles quase não existiam.

As práticas aqui reunidas foram as que tiveram algum cuidado em preservar seu

legado, através de documentação e registros iconográficos, e aquelas sobre as quais

consegui referências pela repercussão obtida na época em que se deram. Portanto, vale

reiterar que nosso objetivo não é abarcar a totalidade dos experimentos teatrais

realizados em presídios paulistanos. Uma empreitada dessa proporção, referente à

preservação da memória desses processos, deveria ser realizada por algum órgão

interessado em documentar a história da cultura e da educação que se desenvolve dentro

das penitenciárias.

O pequeno panorama que aqui será apresentado nos fornece a dimensão daquilo

a que não tivemos acesso. As biografias de alguns dos profissionais que se envolveram

com a questão já construiriam capítulos da história do teatro brasileiro.

Da busca, foram surgindo algumas referências, alguns nomes: Ruth Escobar,

Maria Rita, Paul, Boal. Mais tarde, Roberto Lage, Elias Andreato e por último, Frei

Betto. Como pretendo propor uma ordem cronológica, parto da experiência mais antiga.

2.1 A experiência de Frei Betto

O livro “Uma Escola Chamada Vida” é resultado surpreendente de um encontro

de notáveis. Trata-se da publicação de uma entrevista realizada pelo jornalista Ricardo

Kotscho com o grande pedagogo Paulo Freire e o educador e teólogo Carlos Alberto

Libânio Christo, o Frei Betto.

Durante mais de seis horas, em um domingo de outubro de 1984, Freire e Betto

expuseram momentos cruciais de suas experiências em educação popular. Um trecho do

prefácio dimensiona a importância deste diálogo: Não por acaso, certamente, seus caminhos se

cruzam neste livro. O pernambucano Paulo e o mineiro Betto iniciaram seus trabalhos em épocas,

circunstâncias e lugares diferentes – um poderia ser pai do outro -, mas num determinado ponto de suas

trajetórias elas se encontraram e seguiram juntos, mesmo sem se conhecerem pessoalmente, os olhos

fixados em um mesmo horizonte: a libertação do povo brasileiro pela educação (Freire e Betto,

1986: 3).

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Enquanto Paulo Freire se encontrava no exílio, entre 1964 e 1979, vivendo em

países distintos como a Colômbia, Chile, Espanha e Suíça, Frei Betto ficou no país e,

ligado a setores esquerdistas da Igreja Católica, notadamente à Teologia da Libertação,

o então jovem frade dominicano se envolve com a resistência e a contestação ao regime

militar. Acaba condenado e, de novembro de 1969 a 1971, é considerado preso político.

Da metade de 1971 ao final de 1973, é transferido para penitenciárias de São Paulo,

agora como preso comum. Na prática, essa troca de condição significava que o

indivíduo não estava simplesmente aprisionado, mas que era também um criminoso.

O tipo de tratamento dispensado a um preso político deve obedecer a uma série

de normas e padrões reconhecidos por órgãos internacionais de defesa dos direitos

humanos e da liberdade de opinião. Para escapar desse controle, o regime militar

brasileiro buscou um nivelamento maior entre o preso político e o preso comum, à

medida que a resistência de esquerda brasileira à ditadura se ampliava.

Enquanto esteve submetido a condenação por crime político, Frei Betto

empreendeu um balanço da atuação da esquerda brasileira, numa tentativa de

compreender seu fracasso. Sua conclusão foi a de que tínhamos tudo: ideal, coragem,

disposição, domínio dos conceitos clássicos, conhecimento das histórias da revolução. Só não tínhamos

povo. E, porque não tínhamos raízes populares, foi muito fácil se criar uma política repressiva de

isolamento daqueles grupos, o que levou à sua aniquilação. Isso me conduziu, pessoalmente, a uma

posição que, hoje, defino na seguinte frase: Prefiro correr o risco de errar com o povo do que ter a

pretensão de acertar sem ele. Porque essa pretensão eu tive antes (Freire e Betto, 1986: 38).

O que mais impressionou Frei Betto foi perceber que os presos disputavam entre

si postos de trabalho a serviço do sistema penitenciário, normalmente ocupados por

condenados por crimes “de elite”, como estelionato e contrabando.Dessa forma, o

presídio acabava cooptando os presos que, por medo de perderem seus empregos, não

causariam distúrbios à rotina prisional.

Diante daquela situação, a seu ver absurda, Frei Betto inicia os “círculos

bíblicos”, leituras sistemáticas da Bíblia com grupos de interessados, um trabalho de

conscientização social a partir de uma abordagem que buscava interpretar o contexto

histórico vivido por Jesus.

Decide então fazer uso do teatro como meio de ampliar a consciência social: Eu tinha trabalhado no Teatro Oficina, com Zé Celso Martinez Corrêa, tinha tido uma

experiência muito marcante de teatro, na época da montagem de “O Rei da Vela”, de Oswald de

Andrade. Na prisão, tive a oportunidade de realizar aquele que é, até hoje, um dos meus sonhos utópicos,

que é dirigir um espetáculo. Montei um grupo de quarenta presos. Foi muito interessante como

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experiência pedagógica porque, na verdade, minha meta não era tanto montar o espetáculo. Chegamos a

montar dois espetáculos, inclusive com sessões para o pessoal da cidade (Freire e Betto, 1986: 41).

. Mesmo tendo realizado esses dois espetáculos, os objetivos de Frei Betto não

estavam voltados a questões estéticas. Mas minha meta era criar, através do teatro, um processo pedagógico através do qual eles

pudessem se liberar subjetivamente de todo aquele sofrimento absurdo que o sistema penitenciário gera

no preso comum. O sistema penitenciário, tal como ele existe na sociedade capitalista, principalmente

aqui no Brasil, é extremamente cruel não só porque confina fisicamente o homem, sem que esse homem

possa compreender o problema da liberdade, senão em relação à sua locomoção física, mas ele destrói a

subjetividade do homem, no sentido de não lhe oferecer nenhuma possibilidade de racionalização da

situação em que se encontra. Por isso que o alimento do preso é a fantasia, a revolta e a maconha. O

preso vive disso (Freire e Betto, 1986: 41).

Assim, podemos concluir que teólogo considera o teatro capaz de libertar o

preso da situação de alienação social. O preso passa a se situar historicamente e decide a

lutar por transformações mais amplas. No momento em que o homem emerge da percepção da

vida como mero processo biológico para a percepção da vida como processo biográfico, histórico, ele

começa a fazer da sua revolta como um marginal e bandido um potencial de contestação política. Ele

começa a situar-se como ser político (Freire e Betto, 1986: 43).

Portanto, o que está em jogo é o próprio sentido da existência, a construção de

um projeto de vida que ultrapasse os limites do aprisionamento e transforme a vida em

algo maior que o presente. O trabalho do teatro visava possibilitar-lhes um equacionamento da sua existência no mundo e

no mundo carcerário. Como? Eu promovia os laboratórios. São ensaios improvisados. Eu pedia:

“Companheiro, conte por que você veio parar na prisão, como é que foi exatamente o crime pelo qual

você foi condenado” – e ele contava. Começava a representar o crime e fazia o papel de criminoso.

Outro preso fazia o papel da vítima, outro da mulher da vítima, outro da polícia, do delegado, do

investigador que torturou, do juiz... Depois, invertíamos os papéis. Era interessante quando aquele que

tinha matado se via no lugar da vítima. Era o distanciamento que, pela primeira vez, ele tinha da própria

atitude. Ele se via, inclusive, como juiz, tendo que decidir a pena. Isso foi criando toda uma reflexão

crítica do problema deles (Freire e Betto, 1986: 43).

O processo de trabalho era, portanto, a dramatização da experiência de vida,

materializada na cena improvisada. Em determinado momento, ela passava a ser

transformada pelos integrantes do grupo, através da troca de papéis. Isso possibilitava a

vivência dos diversos pontos de vista relacionados àquela situação.

Obviamente, tal prática promovia uma leitura mais abrangente da realidade

vivenciada, mesmo partindo de recordações bastante incômodas. Fazia sofrer, exatamente.

Parecia-se com um processo psicanalítico. Inclusive, a narração do crime é sinal de confiança que ele

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tem em você na prisão. Nunca se pergunta a um preso o que ele fez. Mas, se ele confia em você, um dia

ele lhe dirá. Ele precisa ser ouvido, sobretudo em respeito ao princípio pedagógico de sempre se fazer

um trabalho a partir dos elementos fornecidos pelas experiências vitais anteriores. Mantenho esse

critério pedagógico até hoje (Freire e Betto, 1986: 44).

Muitas dúvidas surgem a partir da experiência narrada por Frei Betto. Como ele

lidava com a direção do presídio? De que forma conseguiu realizar uma atividade

coletiva, envolvendo muitos presos, que resultou inclusive na abertura da instituição a

uma platéia? Com quem precisou negociar? E que tipo de argumentos foram

necessários? Será possível que ele conseguiu convencer a direção de uma penitenciária

a permitir a realização de um grupo de teatro usando o mesmo tipo de argumentação

com que ele relatou a experiência, mais de dez anos depois? Frei Betto pediu permissão

para realizar um processo de conscientização política através do teatro em plena

ditadura, dentro de uma prisão?

Trata-se da experiência teatral mais antiga, realizada em presídio paulistano,

dentre as que tomamos contato. A qualidade de suas intenções e aspirações,

materializadas em uma prática de conscientização e diálogo, já nos dá indícios de um

tipo de discurso que é usado para justificar a prática do teatro em presídios.

Em um presídio, onde as carências se avolumam, promover uma atividade que

se proponha a ressignificar a vida é tarefa de grande porte. Mesmo assim, Frei Betto

passou a buscar essa ressignificação também através da luta pela instauração do Ensino

Ginasial na prisão.

Não sabemos como a experiência com o teatro se encerrou. Talvez o foco do

trabalho, voltado ao autoconhecimento de seus participantes, e abrindo mão de uma

investigação artística da linguagem teatral, tenha esgotado as possibilidades do

processo.

Seja como for, o Ensino Ginasial, conhecido como “curso de madureza”,

aconteceu. E nele Frei Betto também destacou o valor do conhecimento para produzir

capacidade crítica em relação ao mundo, dando continuidade a seu projeto de

transformação das realidades injustas pela conscientização do homem.

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2.2 Projeto “A Arte como Processo de Recriação em Presídios” de Maria Rita

Freire Costa

A história do projeto “A Arte como Processo de Recriação em Presídios” nasce

do empenho da então jovem atriz Maria Rita Freire Costa, recém-chegada em São

Paulo, em promover atividade teatral em um presídio feminino.

Seu primeiro contato com o universo prisional acontecera em 1977 quando

buscava elementos para a construção da personagem que interpretaria em um episódio

do programa Caso Especial, da Rede Globo de Televisão, sob direção de Walter

Avancini. O episódio, denominado “Indulto de Natal”, fora escrito com o intuito de

revelar, com altas doses de emocionalismo, a realidade das mulheres presas que

recebiam o benefício de passarem o Natal com suas famílias.

Na prisão, Maria Rita percebeu a inexistência de atividades educacionais,

culturais ou laboriais, o que reduzia as presas a uma rotina ociosa e desesperadora.

Decidiu então lutar, junto à direção da PFC, pela possibilidade de incluir o teatro entre

as atividades de reabilitação.

Em 1978, ela consegue iniciar o trabalho, com uma equipe composta por

diversos profissionais: o ator e diretor Elias Andreatto, a psiquiatra Eros Volúzia, a

socióloga Conceição D´Incao, a fotógrafa Iolanda Husak e o músico Ademir Martins.

Esse projeto duraria cinco anos, até meados de 1983, e é até hoje relembrado como uma

das mais bem sucedidas propostas artístico-culturais já promovidas em unidades penais,

tamanha a repercussão alcançada por cada uma de suas realizações.

Para tanto, uma verba era fornecida pela FUNARTE, órgão federal, e os valores

eram repassados para a Secretaria Municipal de Cultura, que pagava os profissionais.

É interessante acompanhar a mudança qualitativa ocorrida na percepção da

equipe com relação às finalidades do projeto, ainda no primeiro ano de trabalho: Em

meados de 1978 teve início o projeto A Arte no Processo de Readaptação Social em Presídios, dentro da

Penitenciária Feminina da Capital – SP. O objetivo central é conduzir o indivíduo a uma confrontação

dos seus valores com os do meio social, usando o teatro como uma atividade ludoterápica e catártica,

através do questionamento e da atividade reflexiva. A proposta do trabalho estava voltada para a

questão da READAPTAÇÃO. Porém, com o decorrer do tempo, percebeu-se que o conceito inicial era

incompatível com a ação efetiva do trabalho que se dava pelo desenvolvimento do espírito grupal e

crítico. Ao invés de impor valores, o trabalho possibilitava uma leitura e apreensão dos fenômenos que

direta ou indiretamente, determinavam o comportamento do indivíduo. Passou-se a discutir então o

conceito de RE-CRIAÇÃO e sua maior identidade com os objetivos propostos (Costa, 1983: 5).

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A alteração do nome do projeto valoriza os princípios da criação artística

coletiva, demonstrando maior interesse em atender primeiramente aos anseios das

participantes, ao invés de ajustar a atividade teatral às finalidades da instituição. Não

que o projeto abrisse mão de seu potencial de promover mudanças na capacidade crítica

e no grau de reflexão das participantes: Sensíveis mudanças foram constatadas no comportamento

individual de cada participante do grupo, como por exemplo, a capacidade de análise crítica (frente a

uma visão de si e do mundo), a percepção da necessidade de convívio social e do equilíbrio entre o

emocional e o racional (Costa, 1983: 5).

Dessa forma, o processo teatral é entendido como meio privilegiado de encontro

do homem com sua capacidade de envolver-se com sua própria história, levando-o a

compreender o sistema que o circunda.

Em relação à experiência de Frei Betto, relatada anteriormente, já percebemos

um avanço na importância atribuída ao espetáculo concebido no decorrer de todo esse

processo artístico.

As fotos das peças realizadas sob orientação de Frei Betto mostram cenas

realistas, que exploram temas ligados ao universo do crime, encenados com uso de

figurinos simples e utilização concreta de objetos contundentes, como um revólver de

brinquedo..

Já as peças produzidas na PFC ganhavam complexidade poética e apuro formal,

garantido por um processo diferente de elaboração. Nas palavras de Elias Andreato3: Esse trabalho era pensado em função da realidade delas, elas que propunham os temas. A gente

tinha a delicadeza de não interferir demais. Então foi bacana pra mim, de tentar observar o potencial de

cada um, observar atentamente a realidade delas, as angústias, e ver como a gente poderia transformar

aquilo tudo em teatro, ou numa grande brincadeira. Tinha momentos interessantes, tinha mulheres

interessantes, elas escreviam o próprio texto, a gente só orientava. A gente criava todas as condições

para que elas pudessem subir no palco. Então foi um projeto nesse sentido muito bacana, muito íntegro.

E quando a gente começou, 79, 78, era acabando o período obscuro, os exilados estavam começando a

voltar, só tinha uma presa política no presídio, que era a Elza, e que não participava do nosso grupo,

mas estava sempre com a gente. E esse trabalho, o resultado era aberto ao público. A gente preparava

durante um ano. O público pagava. A gente tinha uma média de 300, 400 pessoas por sessão. Todo o

dinheiro era revertido para elas.

O processo, conforme relatado por Elias e Maria Rita em entrevistas realizadas

por mim com cada um deles, nascia do levantamento de um tema que conduziria o

grupo à construção dos textos. Esses textos eram redigidos pelas próprias participantes,

3 Entrevista realizada por mim em junho de 2004. Todas as falas cuja autoria não é destacada no subcapítulo 2.2 são declarações feitas por Elias Andreatto na referida ocasião.

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sem restrição quanto ao gênero utilizado: poesias, cartas, manifestos, diálogos e cenas

dramáticas. Essa pesquisa também se estendia à sonoplastia.

Assim Elias Andreato relata o processo que daria origem ao espetáculo Cela

Forte Mulher, apresentado em 1980, por ele dirigido: O processo era assim: a gente decidiu que ia falar da cela forte, que ia falar da relação

amorosa entre o homem e a mulher, a mulher e o malandro. A gente sugeria assim: cada uma pensa em

uma música, que tem a ver. Então a gente selecionava essa música, ou cantava, tocava. E aí a gente

pensava nessa coisa musical, no movimento. Tudo era em função dessa idéia para que o trabalho

acontecesse. Textos, a gente ia separando. A gente fazia improvisação de cenas de violência, de brigas,

de ciúmes, de traição, tudo relacionado ao tema. Aí a gente dava pra elas o entendimento do ponto de

vista psicológico, do ponto de vista social, o que isso significa. Tinha um entendimento do trabalho,

mesmo que elas não tivessem tanto conhecimento, mas elas tinham uma noção. Pra elas foi muito

importante.

Diante do material criado por elas, a função do diretor era descobrir formas de

encadear um texto ao outro, uma cena à outra, sempre expondo para o grupo a

justificativa de cada escolha.

As inscrições eram abertas a todas as presidiárias da unidade, não havendo

critérios de seleção pré-fixados pela unidade penal. As pessoas se inscreviam e aí tinha a seleção natural: as que não agüentavam saíam, tinha

desistência por morte, ou transferência. Então administrar isso era muito angustiante. Por isso a

psiquiatra. Tinha discussão com grupo o tempo todo. Era muito difícil pra mim, porque às vezes tinha

gente bacana que era transferida, ou que morria, as pessoas brigavam...

Cinco espetáculos foram construídos a partir das seguintes fases: escolha do

tema; elaboração de textos e seleção de músicas pelas detentas; criação coletiva da

dramaturgia; ensaios e apresentações abertas ao público.

Em 1978, era apresentado um ensaio aberto intitulado Criação Coletiva. Seu

tema era a reflexão das presidiárias a partir de sua vivência dentro da realidade

carcerária e social, agora convidadas a acordar para a necessidade de se questionar

(Costa, 1983: 6). Ator, atriz, quem não é?

Todos nós o somos. Eu, o senhor, a senhora...

Sim. Somos atores e atrizes integrantes da gigantesca companhia teatral chamada humanidade,

vivendo vinte e quatro horas por dia no palco do grande anfiteatro da sabedoria eterna chamada Mundo,

das cenas do drama de “domínio público” intitulado VIDA...

Heróis, Anjos, Santos, Demônios, Egoístas, Idealistas e todos os “istas” que se possa imaginar,

são os personagens por nós vividos no palco.

Será que sabemos cada um de nós qual é o personagem por cada um de nós representado?

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Será que gostamos dele e temos coragem de vivê-lo à luz do “Grande Refletor”?

Façamos de conta que hoje é nosso dia de folga e para descansar, vestiremos outros

personagens. Talvez eles nos dêem as respostas para as perguntas feitas anteriormente...(Costa, 1983:

6).

Este trecho, creditado à detenta Toninha, revela o percurso seguido pelas

integrantes na tentativa de relacionar teatro e vida, metáfora e realidade, aprofundando

assim a consciência de seu próprio papel na sociedade. Ao se assumir personagem no

palco da vida, que pede permissão para descansar vivendo um outro papel diante do

público, esta mulher pede licença a nossos preconceitos. Ela nos pede para deixarmos

de vê-la apenas como presidiária, para que ela possa ser também muitas outras coisas.

Este tema acaba sendo o grande mote do primeiro espetáculo resultante do

projeto, chamado Favor Não Jogar Amendoim, em 1979, onde o grupo avança nas suas

reflexões, extrapolando os muros do presídio e chamando a sociedade a pensar sobre a

questão carcerária e sobre os presidiários em geral (Costa, 1983: 7).

Nas palavras do diretor da peça, o desejo de abalar as expectativas do público

em relação a um espetáculo feito por infratoras: O espetáculo criou um grande interesse, um grande impacto, todos que o assistiam ficavam

completamente chocados. A gente fazia teatro na capela; ensaiava e apresentava lá. A gente construiu

um palco, que era um grande tablado móvel, com vários módulos, e a gente colocou lá um tablado

cercado de grades. Tinha uma presa que recebia o público na porta do presídio com um megafone e ia

passando pela penitenciária falando “Esse é o pavilhão 1, onde estão as feras de maior periculosidade, e

por aí vai, até levar os espectadores para a platéia. Elas estavam todas no palco, atrás das jaulas,

imitando bichos, rosnando. Era um zoológico. Aí a gente dava esse aviso: “favor não jogar amendoim”.

Aí a brincadeira, nesta peça, era o seguinte: cada uma contava como foi parar lá na prisão. Sempre a

história delas, ou real, ou ficção, mas sempre tinha ver com elas. Às vezes uma contava a história da

outra, mas sempre o universo delas. A gente só orientava. E era muito bonito, muito forte. Eu me lembro

que terminava assim: com todas dormindo, como se fosse uma grande cela, e depois de tudo uma delas

levantava, ficava em pé, fazia que tirava um revólver, apontava para alguém da platéia e atirava. Era só

isso. É que lá dentro isso tinha um poder. Cada uma contando como é que tinha ido parar ali. Então

aquilo era uma coisa forte.

No ano seguinte, o resultado de oito meses de ensaio era apresentado com o

instigante título de Cela Forte Mulher.

Para termos uma noção da durabilidade do impacto desse espetáculo na cultura

prisional, o jornalista Antônio Carlos Prado, editor da revista Isto É, lançaria, em 2003,

sob o mesmo título, um livro escrito por ele, em parceria com presas de diferentes

unidades.

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No prefácio, a justificativa para a escolha do título: o nome da peça era usado na

PFC como uma gíria, quando era preciso levantar o astral de uma detenta. Entre si,

entendiam o termo “cela forte mulher” como um apelo à retomada de forças, como a

possibilidade de revalorizar a própria vida. Sou uma mulher presidiária, mas não sou diferente de vocês. Tenho sentimentos, gosto de viver,

quero a liberdade. Luto com vocês contra essa prisão invisível em que se encontram quase todas as

mulheres.

Se hoje estou aqui, foi porque tudo fiz para não me acovardar diante de tais absurdos. Quem

sabe, até por medo de cair na prostituição, que optei pelo lado menos repugnante.

Deram-me fama de Malandra, mas saiba que não é nada disso... Simplesmente sou uma mulher

que luta contra a violência deste mundo, dos homens, rufiões, que agem como verdadeiras feras, como

carrascos, mantendo as mulheres prisioneiras, e as torturam, e as usam como cobaias para os seus

instintos bestiais. Se apresentam como homens de bem, mas ferem as mulheres sem que ninguém possa

perceber suas duas faces. (...)

Hoje, nessa prisão tão alta, tão estreita, tão pesada, tão penosa, que esmaga aos poucos o meu

corpo, sou capaz de sentir uma certa tranqüilidade; a tranqüilidade de conseguir resistir, de ter a moral

limpa, de nunca ter me vendido para homens de pouca dignidade, de estar livre desta prisão invisível.

Mesmo estando aqui, sou livre, porque minha alma está livre (Costa, 1983: 6).

De autoria da presa Dulcinéia, este trecho faz menção aos temas sobre os quais o

espetáculo se debruçava: a condição da mulher e seu aprisionamento.

A cela forte é a solitária, a cela em que as detentas são postas de castigo cada vez

que são punidas por infração às regras da prisão. É a prisão da própria prisão. Durante o

período de isolamento, não há permissão para banho de sol, e a detenta é obrigada a

ficar sozinha, mergulhada em seus próprios pensamentos. Estávamos nesta discussão da cela forte. A função de existir a cela forte dentro da prisão,

começou com este questionamento. Por que até então isso era muito freqüente. Muitas vezes elas não iam

pro ensaio porque estavam na cela forte. Então toda vez que a gente chegava tinha esse problema: não

vem, não vai ter, pois estava na cela forte. Isso alterava toda a dinâmica. Então a gente resolveu, a partir

daí criar esse universo feminino. Então a capela virou um grande altar. A platéia entrava e lá no centro

tinha um manequim com paletó branco, que era a figura do homem, e a capela toda arrumada para um

casamento. Todas elas entravam de noiva, com véu. Elas subiam no altar, pegavam aquele paletó e cada

uma fazia alguma coisa: uma costurava, a outra lavava, todo o trabalho doméstico em relação ao

homem, ao malandro. Então a peça falava da submissão da mulher ao grande malandro. O texto era

isso, a visão feminina. Isso na época também tinha um significado forte, porque a música, as artes, o

cinema, todo o mundo estava pensando a mulher de uma outra forma. A mulher também se colocava de

um jeito diferente. Então esse espetáculo foi muito impactante também, nesse sentido.

A PFC fica ao lado da Penitenciária do Estado, um presídio masculino. Das

grades externas das celas de ambos os presídios, braços e mãos em movimentos

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elaborados e objetos como lenços e papéis constituem códigos de comunicação. Cela

Forte Mulher utilizava cenicamente esta linguagem corporal criada pelos presos e

presas a fim de trocarem carícias à distância.

O espetáculo conquistou a possibilidade de ser apresentado fora do presídio, o

que representou um ganho muito significativo para o projeto e suas integrantes. A gente fez apresentação do Cela Forte Mulher no Sesc Anchieta. Conseguimos autorização. Saí

com elas no ônibus com uma guarda. Eu me lembro que o meu discurso era assim: gente, esse trabalho é

muito importante pra mim, se alguém fugir, vai acabar. É a possibilidade de vocês também saírem uma

vez, passear, ver gente. E vocês não podem tirar a possibilidade das outras, de no ano que vem também

fazerem teatro. Nem que seja só por isso. E eu me lembro que a Patrícia chegou, virou pra mim e disse:

isso é uma sacanagem! Eu tenho 35 anos pra tirar na cadeia, você não tem o direito de pedir isso pra

mim! E eu falei assim: Tenho. E ela disse que não ia fugir, mas queria beber. Eu falei que isso eu

descolava. Mas enfim, a gente saiu, se apresentou, foi bacana. A gente foi mostrar na Penitenciária do

Tremembé, unidade masculina. Fizemos debate com os presos, elas puderam falar dessa relação da

malandragem, do homem e da mulher. E era sempre assim: nós e uma guarda.

A permissão para que um grupo de mulheres presas se apresentasse fora dos

limites do presídio revela o apoio alcançado pelo projeto por parte da direção da

unidade. Sobretudo por se tratar de um espetáculo que abordava, de forma

extremamente crítica, em um período em que a liberdade de expressão ainda não havia

sido garantida, a questão do abuso de poder. Não vejo diferença entre eu e tu. Não basta que te acusem, porque eu sei da tua fragilidade, e o

todo da culpa é demasiado para que eu carregue.

Não se divide o mundo em homem e mulher, em branco ou índio, preto ou judeu. Com o olho

lúcido da fome, eu percebo apenas uma divisão, uma só: É o fraco e o forte!

Nós dois que somos vergados por um peso de miséria, nós dois que ficamos fracos na medida em

que nosso suor, nossas vidas cevam o pão que alimenta e fortalece o rico.

Não, não creia na divisão de nós dois, não creia sobretudo na tua aparência de ser livre!

Porque liberdade é barriga cheia, é casa decente, é trabalho garantido com salário justo, é escola para

nossos meninos... Liberdade é saúde para fazer a vida, meu amor! (Costa, 1983: 11).

Esse trecho, escrito por Patrícia, diz muito da consciência construída por essas

mulheres em relação a sua condição indigna. Da percepção que elas possuem das causas

que as tornam vulneráveis, e do quanto isso tudo nos envolve a todos. Esse texto mostra

que, ao compreenderem as condições que consideram como causas de seu

aprisionamento, essas mulheres passaram a dividi-las conosco. Empregando um sentido

social para o conceito tão amplo de liberdade, conferido a partir de uma análise do que é

essencial para a dignidade humana, essas mulheres não permitem que nos sintamos tão

livres assim.

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O processo seguinte, que resultaria no espetáculo Fala Só de Malandragem,

apresentado de 07 a 31 de janeiro de 1982, às 20 horas, na PFC, representa o momento

em que o grupo questiona os valores e normas da sociedade través da instituição

JUSTIÇA, abordando o tema da violência social e criminal (Costa, 1983:13).

O registro em vídeo deste espetáculo resultou no documentário homônimo

dirigido por Denoy de Oliveira, lançado em 1985. Na abertura, o diretor destaca sua

surpresa e admiração em perceber que, durante os anos em que a sociedade se sentia

amordaçada, um grupo de presas exercia abertamente sua liberdade de opinião.

O filme se inicia com cenas em que as detentas correm pelo pátio, num jogo de

pega-pega proposto como aquecimento. Em seguida, um momento mais concentrado,

em que elas estão deitadas sobre um palco, com os olhos fechados, recebendo

individualmente uma massagem de Maria Rita. Mais tarde, ela me relatou que aquela

cena era resultante de um momento muito tenso, pois no dia anterior havia acontecido

uma ameaça de rebelião, o que poderia impossibilitá-las de realizar a apresentação e,

conseqüentemente, a filmagem.

São exibidos alguns dos momentos que antecedem a apresentação: mulheres se

maquiando cuidadosamente, algumas fazendo o penteado das outras, umas

descontraídas e falantes, outras mais reservadas, concentradas. Então é mostrada a

platéia, que acompanha a abertura dos portões e é recebida por uma mulher, vestindo

um figurino típico de malandro. O espetáculo se inicia ali, no pátio da prisão. Dois

malandros discutem. Um tiro. O cadáver é coberto com jornal.

Em uma cena muito forte, uma detenta personificando a justiça, olhos vendados,

uma balança em uma das mãos, um martelo na outra, faz o julgamento de cada uma das

atrizes, que são convidadas a relatar suas histórias. Todas são consideradas culpadas,

pois nenhuma foi capaz de perceber que atuou exatamente como o sistema social-

político-econômico esperava que elas atuassem. Esse é o veredicto proclamado a todas

pela justiça. Porém, no final, todas as condenadas emitem uma sentença à própria

justiça, considerando-a também culpada, por sua cegueira e incapacidade em se

perceber também como parte de todo esse sistema.

O documentário Fala Só de Malandragem foi vencedor do Festival de Brasília,

na escolha do público, em 1985. Uma das detentas foi considerada “Melhor Atriz

Coadjuvante”, pois apesar de ser um documentário, ela aparecia como personagem, uma

vez que o espetáculo teatral era mostrado na íntegra no decorrer do filme.

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Sua repercussão foi um forte argumento contra a instituição da pena de morte no

Brasil, tema de forte apelo na época, quando diversos setores da sociedade debatiam os

principais tópicos a serem levados em consideração na Nova Constituição Brasileira,

que seria aprovada pelo Congresso Nacional em 1988.

Esse filme nunca foi comercializado, nunca chegou às locadoras e raramente é

exibido. Meu acesso a ele se deu após negociação com a viúva de Denoy, Maraci de

Oliveira, que possui uma cópia em VHS, e é muito reticente em mostrá-la, por conta do

acordo estabelecido entre o cineasta e as detentas, sempre preocupadas com as

repercussões de sua imagem fora das prisões.

Registro semelhante, que também resultou em um documentário, com duração

de catorze minutos, foi realizado com o espetáculo Nós de Valor... Nós de Fato,

apresentado em 1983 e que seria o último resultado deste projeto.

Debruçando-se sobre a figura do palhaço, entendido como um ser explorado e

marginalizado, este espetáculo traçava uma analogia entre o circo e a vida, explorando a

idéia de que é preciso abandonar a máscara de idiota, para partir em busca da

transformação.

Analisando hoje todos esse trabalhos, alguns pontos merecem ser abordados.

Primeiramente, é preciso valorizar o engajamento da equipe, pois quase todos

entravam em uma unidade prisional pela primeira vez e se dispuseram a participar de

um processo de trabalho coletivo em um local de tão precárias condições.

Destaco também o apoio da direção da penitenciária. O trabalho era aberto ao

público e chamava bastante atenção da mídia, trazendo para a platéia artistas famosos

como Marília Pêra, Marco Nanini, Célia Helena, além de políticos. A diretora Suraia

Daher expôs-se corajosamente e assumiu os riscos que um evento de tal porte poderia

trazer para a “ordem” da unidade penal.

Além disso, o apoio da direção garantiu uma mudança na relação com o corpo

funcional, que passou a respeitar o projeto, embora sempre tenha existido uma má

vontade com relação a qualquer atividade que “desequilibrasse” a rotina da unidade. Depois da estréia (do primeiro espetáculo) a tranqüilidade foi um pouco abalada. Para o

próprio presídio, todas as pressões que a diretora sofreu. Teve os dois lados: ela foi reconhecida e

endeusada pelo projeto, mas por uma ala mais radical deve ter sido censurada. O corpo de funcionários

muitas vezes tentou provar que a gente levava droga pra cadeia, que dentro da sala de ensaio podia

fumar maconha, podia namorar, tinha toda uma briga diária, pois a gente não deixava que as guardas

tomassem conta do trabalho. Então a gente criava muitos problemas pra eles. A revista não existia, a

gente entrava e saía com a maior liberdade. A gente nunca levou nem trouxe nada, e a gente deixava isso

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muito claro. Elas pediam, sempre tinha esse jogo de sedução, mas a gente era muito inteiro no processo,

a gente acreditava muito no projeto.

O final da experiência do projeto na PFC foi abrupto, causado pela fuga de três

detentas, que abandonaram o grupo às vésperas de uma apresentação de Nós de Valor...

Nós de Fato, em uma das salas do Centro Cultural São Paulo.

Naquele momento, já em meados do segundo semestre de 1983, o projeto lutava

pra sobreviver, em um árduo processo de negociação com a nova direção da unidade,

pois Suraia Daher não era mais a responsável pelo cargo.

As tensões desestabilizavam as relações de confiança entre as integrantes, e

Maria Rita decidiu que só sairia com o grupo se houvesse garantia de escolta. Para ela, a

situação estava fugindo de seu controle, pois o grupo havia aceitado a entrada de muitas

pessoas que procuraram o projeto assim que o mandado judicial autorizara a saída para

as apresentações.

A escolta, que fora garantida pelo presídio, foi feita por três policiais femininas,

que, segundo Maria Rita, estavam vestidas de saia justa e sapato com salto. A chegada

do grupo no Centro Cultural, que deveria acontecer pelo porão do edifício, com portões

que poderiam ser fechados para o desembarque do grupo, não foi possível pois a

unidade não havia feito a solicitação.

As três fugitivas saíram correndo em plena luz do dia, em um local bastante

movimentado, próximo a estações do metrô e com fácil acesso ao centro da cidade.

O espetáculo aconteceu, com a participação de Maria Rita, substituindo uma das

fugitivas. Ela contou que só foi possível levar a situação adiante graças à organização

das detentas, que tomaram todas as decisões necessárias: redistribuíram as falas,

decidiram quem ia realizar determinadas cenas.

Não fosse por intervenção pessoal da diretora, que abriu mão da continuidade do

projeto para assumir a defesa das que permaneceram e realizaram a apresentação, todas

as detentas teriam sido transferidas para unidades do interior do Estado, o que

representaria uma injusta punição, pois esses presídios não possuem tanta oferta de

trabalho e acesso ao judiciário quanto os da capital.

Anos depois, ela seria convidada a desenvolver o Programa Nimuendajú. Era,

em suas palavras, uma ação cultural junto aos segmentos confinados e às instituições de

confinamento. Este programa foi gerenciado por mim dentro do Ministério da Cultura durante a gestão

do ex-ministro Celso Furtado e da gestão do ex-ministro Fernando Lira, no Ministério da Justiça. Pela

primeira vez no Brasil realizava-se uma ação conjunta, um convênio entre os Ministérios da Cultura e da

Justiça, voltado para um programa de atividades artísticas, junto aos segmentos confinados. Portanto,

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durante o ano de 1987, este programa realizou-se em nove estados e no distrito Federal, e vinte

instituições de confinamento com mostras de teatro, poesia, exposições de pintura, artesanato, entre

outras (Costa, 2001: 57).

Tratava-se, na prática, de destinar verba federal para as Secretarias Municipais

de Cultura das cidades onde havia penitenciárias interessadas em realizar o projeto. A

verba então era usada para pagar professores selecionados pelas próprias unidades, mas

que necessariamente exercessem atividade artística comprovada na linguagem que se

propunham ensinar. Esse projeto foi encerrado com a saída de Celso Furtado do

Ministério da Cultura.

A trajetória de A Arte como Processo de Recriação em Presídios é um exemplo

significativo da qualidade artística que qualquer processo desenvolvido em uma unidade

reabilitadora pode almejar. Essa qualidade é condição essencial para que o trabalho

extrapole o nível de sua utilização como “processo reeducativo” pelo presídio, e atinja

patamares importantes para a vida dos que com eles se envolvem, presos ou professores,

funcionários ou artistas.

2.3 Ruth Escobar na Penitenciária do Estado (PE)

Em carta aberta publicada pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 30 de

dezembro de 1980, Ruth Escobar nos fornece a dimensão do horror que um pequeno

incidente pode provocar dentro de uma cadeia: No dia de Natal, os presos do segundo pavilhão jogavam futebol no pátio, começou a chover e o

guarda mandou recolher. Cinco deles protestaram e o jogo continuou até que alguns disseram que era

melhor parar. Um guarda pegou a bola, os presos começaram a sair e no caminho eram espancados

pelos guardas que estavam em serviço no pavilhão, comandados pelo chefe da guarda, Amauri. Os

presos subiam para suas celas sem reagir quando ouviram os gritos de cinco detentos considerados pela

guarda os responsáveis pela desobediência do cancelamento do jogo. Os presos que estavam subindo

para as celas desceram em solidariedade aos companheiros e se armou uma pancadaria onde os guardas

ficaram em minoria.

Aos gritos dos guardas - “...também somos pais de família” – os presos se acalmaram diante

das promessas dos guardas de que não haveria revide, denúncias ou punições. Os presos se

encaminharam para suas celas. Quando todos estavam recolhidos, a guarda comandada por Amauri

arrastou os cinco detentos (dois deles, Genésio Moreira da Silva e Durval de Morais, ainda estão no

hospital) e debaixo de forte espancamento os levaram para a solitária. Nesse instante, os presos do

pavilhão dois começaram a gritar em protesto, batendo com as canecas nas grades, juntando-se a esse

protesto o pavilhão três. Foi chamada a tropa de choque interna que silenciou violentamente os dois

pavilhões. Eram 15h30min. da tarde e o presídio estava em total silêncio.

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Às 18horas, na troca de plantão do pavilhão dois, o plantão dois e o que assumia juntaram-se e

retiraram da solitária os cinco “líderes” para espancá-los. De novo, o presídio se acendeu na maior

gritaria e com os presos do segundo e do terceiro pavilhões, aí já em desespero, quebrando vidros,

arrebentando celas e um deles, de alcunha “Marrom”, pôs fogo no próprio colchão, encontrando-se em

estado grave (...).

Eram 19 horas e foi chamado o choque externo que procedeu a uma nova inspeção, cela por

cela, e novas violências foram cometidas com os detentos que eram apontados pelos funcionários. Depois

que o “choque externo” saiu, alguns funcionários ainda continuaram a “festa” por conta própria,

entrando em celas, quebrando vidros de quem ainda não havia se manifestado (...).

Sexta-feira, dia 26. O “choque externo” é chamado de novo para fazer vistoria, segundo

esclarecimentos da direção. Me pareceu estranho a esta altura dos acontecimentos que algum preso

pudesse ser portador de uma arma, pois se o fosse a teria utilizado na noite anterior para revidar ou

defender-se da violência.

Entraram 600 homens do choque, equipados com cães para revistar presos, trancados em celas

individuais. Um funcionário abre a cela, o preso fica nu, o choque passa o cacetete revistando as

nádegas. O chefe da disciplina penitenciária gritava: “Onde tiver vidro quebrado, deixa arreado no

chão”, e a violência se consumava cela por cela. Neste mesmo dia, a violência também chega ao

hospital. Durval de Morais, já gravemente ferido é espancado novamente. Todos estes homens que

sofreram todo tipo de violências e humilhações juram que vão dizer a verdade e que não vão se

acovardar se tiverem a oportunidade de serem ouvidos. (...). Ignora-se quantos feridos existem. Hoje

tomei conhecimento que os vários detentos que fazem parte do grupo de teatro estão nas celas fortes (Escobar, 1982: 151-153).

Os familiares dos presos só obtiveram permissão para revê-los depois do dia

primeiro de janeiro. Foram impedidos de se encontrarem com eles às vésperas do Ano

Novo, a despeito do sofrimento provocado pelos eventos acontecidos durante o Natal.

Daquele momento em diante, Ruth Escobar e a equipe responsável pelo projeto

de teatro, desenvolvido desde maio daquele ano dentro das dependências da

Penitenciária do Estado, estariam terminantemente proibidos de entrar no presídio. E

pouco mais de um mês depois do incidente, seriam acusados de provocar o motim.

Em notícia do Jornal da Tarde, de 21 de janeiro de 1981, “Ruth Escobar,

responsável pela rebelião?” (Escobar, 1982:180), destaque para uma declaração do

então Secretário de Justiça, professor Manuel Pedro Pimentel: Na máquina infernal que é a prisão de segurança máxima, preso bom é preso anulado em sua

personalidade, totalmente submisso ao regime totalitário e repressivo, com perda total do respeito

individual. De maneira nenhuma Ruth insuflou a rebelião, mas com sua generosidade de idéias começou

a dar aos presos a conscientização de sua individualidade, de seu valor como homem, seus direitos, o

que é um estímulo perigosíssimo, é levá-los ao castigo, porque a única maneira do preso reivindicar é

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insubordinando-se, e, fazendo isso ele sofre a repressão do sistema, onde a primeira regra é anulação do

respeito individual (Escobar, 1982: 180).

Na fala do professor Pimentel está resumida a essência da lógica prisional,

explicando por que razões é tão difícil propor um debate profundo, crítico e radical com

os presos. Pois uma vez conscientes da lógica do sistema que sustenta a prisão, a

tendência natural é buscar a mudança. E dentro da cadeia, basta uma reivindicação

muito pequena, como a continuidade de uma partida de futebol, para que se tenha que

enfrentar conseqüências muito violentas.

Em outubro de 1980, seria apresentado o primeiro trabalho da equipe

supervisionada por Ruth Escobar, que recebera o título de “Aqui há Ordem e

Progresso”. A direção era de Roberto Lage.

Lage já possuía longa experiência com prática de teatro em presídios de São

Paulo. Antes de chegar à Penitenciária do Estado, ele havia coordenado processos

teatrais nos presídios de Taubaté, Tremembé, Araraquara e Presidente Bernardes. Criou

um método para instaurar esses processos, conforme seu relato: A primeira dificuldade era quebrar o preconceito. A segunda era levar esses indivíduos para o

palco. Botar esses caras para representar alguma coisa, mesmo que uma brincadeira. Então eu fazia

uma analogia entre a representação e os programas humorísticos de tevê, ou através da própria novela,

e então explicar o que era teatro. Mas era muito difícil, num primeiro momento, eles irem lá na frente se

expor. Na Febem e na Feminina, a facilidade era muito maior. Então eu utilizava a música para

começar. Primeiro eles então iam cantar acompanhados por um violão, era mais fácil para eles. Aí a

gente perguntava o por quê dessa música, por que ele gostava dela, que história essa música trazia.

Então eu pedia: “ao invés de cantar, vamos contar essa história”. “Você não tem uma historia sua que

seja parecida com essa?”. Então o processo era sempre por analogias, aproximações. Nunca usei jogos,

Viola Spolin, nada. Na Febem sim. Na penitenciária sempre partia da música, daí para dramatização da

letra, da criação de textos por eles, e daí para a representação. E a preocupação nunca era “artística”,

de criar um produto artístico de boa qualidade para apresentar. Era muito mais a utilização dos

recursos teatrais usados para o se perceber, se descobrir, se avaliar e se organizar4.

Portanto o trabalho tinha como ponto de partida o universo trazido pelos

próprios integrantes, que escolhiam um repertório musical, compartilhado com o grupo

e que servia de ponto de partida para a criação das cenas. Esse material, assumindo uma

nova linguagem, a teatral, era objeto de apreciação e discussão por todo grupo. Quando

as cenas estavam prontas, eram apresentadas para outras pessoas além dos integrantes.

4 Entrevista realizada com Roberto Lage em março de 2004. Todos os trechos cuja autoria não está citada no subcapítulo 2.3 referem-se a esta entrevista.

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O teatro, entre outras coisas, é agregador. Eu acredito que qualquer proposta de mudança

começa no individual, para aí mudar o coletivo, o social. Quando eu chamava o povo para fazer teatro,

todos os interessado vinham. Nem todos estavam interessados no palco, mas estavam interessadas em

acompanhar. Mesmo não estando no palco, eu fazia um esforço para que todos percebessem sua

importância, a importância do seu trabalho para esta atividade coletiva. Isso não se estabelecia com

muita facilidade. Essa preocupação do coletivo na produção de um único evento é que fazia a reflexão

deles para o seu cotidiano dentro da casa e que transformava as relações internas todas. Eles

começavam a perceber os limites de cada um, as diferenças entre cada um e isso diminuía o acirramento

de pensamentos distintos. Quando a gente começava a construir as cenas, aí é que eu levava esse

elemento da responsabilidade assumida perante o coletivo que impossibilitava você de a qualquer

momento desistir. Mas antes disso, era livre. O compromisso devia se estabelecer naturalmente, eu não

queria que fosse imposto. A idéia era perceber o compromisso assumido, a sua necessidade, a sua

importância naquele coletivo, e ai estar comprometido.

Interessado em desenvolver esse processo na Penitenciária do Estado (PE), Lage

conseguiu verba da FUNARTE, mas não conseguia obter autorização do presídio para

desenvolver a atividade. Depois de muitas tentativas, eu encontrei com a Ruth Escobar e falei para ela que queria fazer

esse trabalho. Como ela sempre foi influente nesse meio político, eu perguntei se ela não podia dar uma

força. Ela disse que sim desde que pudesse estar comigo. Aí entramos para o trabalho. Ela conseguiu

uma autorização do Ministério da Justiça autorizando e dando mais recursos. Então tínhamos

equipamento de vídeo, uma equipe técnica. A gente envolveu um número grande de detentos e o trabalho

caminhou de uma maneira que denunciava todas as arbitrariedades e as dificuldades da vida de quem

estava preso.

O interesse de Ruth Escobar pela questão carcerária já havia mobilizado a

realização de uma série de apresentações em presídios do espetáculo “Revista do

Henfil”, criação de sua companhia teatral. A peça era uma sátira política que usou todo

o poder da palavra cênica em prol da anistia que movimentava a opinião pública

esclarecida à época de sua estréia, 1978 (Fernandes, 1985: 129).

Portanto, levar esse espetáculo para presídios tinha como objetivo principal

prestar uma homenagem aos presos políticos. Realizadas no decorrer do ano de 1979, as

apresentações da “Revista do Henfil” aconteceram na Penitenciária Lemos de Brito, em

Salvador, em 27 de abril; na Penitenciária Barreto Campelo, Itamaracá, Pernambuco,

em 04 de maio; e na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, nos dias 29, 30 e 31

de maio e 1° de junho.

O contato com o universo carcerário gerou interesse pelas condições de vida do

preso comum. E isso resultaria na ação teatral desenvolvida na PE em 1980, e que já em

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outubro, às vésperas de apresentar seu primeiro resultado, sofreria com a intervenção da

direção da penitenciária: Este trabalho seria estreado no dia 12 de outubro de 1980, um domingo, às 19 horas, para os

presos, familiares e alguns convidados especiais.

Era o resultado de uma atividade de cinco meses, envolvendo mais de 80 pessoas, entre equipe

profissional do teatro Ruth Escobar e os reeducandos. A diretoria do presídio, diante da proximidade da

estréia do espetáculo, e sem ter dado nenhuma atenção específica ao trabalho, durante todo o tempo,

subitamente, conforme registrou “O Estado de São Paulo”, de 9 de outubro de 1980, proíbe a encenação

e o Sr. Bruno Vizotto, Diretor Geral da Penitenciária, considera a peça “perniciosa e negativista, uma

vez que iria atrapalhar os trabalhos de reabilitação e readaptação dos internos”. Estas declarações

foram rebatidas por Ruth Escobar na entrevista para “Folha de São Paulo”, do mesmo dia, 9 de outubro

de 1980:

“Nenhum deles (os Diretores do Presídio) assistiu a um ensaio geral e todos buscaram suas

opiniões apenas através da leitura dos textos... (a peça) foi escrita por eles mesmos e aborda problemas

concretos com os quais os presos convivem diariamente. Os diretores têm medo de quê? Dizem que é

tudo mentira, mas eu sei que alguns estão enfiando a carapuça, pois as peças dão os nomes aos bois,

mostrando as corrupções e tudo mais...” (Fernandes, 1985: 158).

Diante da grande repercussão provocada na imprensa em torno da polêmica

proibição das apresentações de “Aqui há Ordem e Progresso”, Ruth declara sua intenção

de promover leituras dramáticas, realizadas por atores profissionais, do texto do

espetáculo. Também distribuiria cópias do conteúdo para a imprensa, junto com

gravações dos ensaios.

As apresentações foram finalmente liberadas, com a intervenção do então

Secretário de Justiça José Carlos Ferreira de Oliveira, desde que duas cenas, “B.B.B.” e

“Concorrente” fossem cortadas do espetáculo.

Ambos os textos estão presentes na publicação Dossiê de Uma Rebelião

(Escobar, 1982), cujo conteúdo é uma série de documentos, cartas, poemas, textos e

notícias de jornal sobre a presença do grupo do Teatro Ruth Escobar na PE.

“B.B.B.”, iniciais de bola, buxixo e bunda, começa com o diálogo entre dois

presos, que comentam a situação de um terceiro, que eles chamam de Kid Parede. Estão

inconformados, pois Kid Parede, preso há dez anos, recebe a visita de sua esposa, que

aparece grávida. A cena materializava, com um tratamento cômico, garantido através de

referências ao milagre da anunciação, um dos maiores temores do homem preso, que é o

de ser traído pela esposa em liberdade.

Já a cena “Concorrentes” mostrava o vínculo afetivo entre homens no ambiente

prisional. Apesar de fazer parte da rotina penitenciária, o “casamento” entre dois presos

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é, ainda hoje, um tema pouco abordado pelas autoridades penitenciárias, embora

administrado de forma extremamente polida entre os presos.

O Secretário da Justiça alegou que a censura aos textos era necessária pois as

cenas eram “...demasiadamente demagógica... contra a religião... nitidamente

subversiva, contra as autoridades constituintes” (Fernandes, 1985: 159).

De qualquer forma, o material “aprovado” para a apresentação compunha um

mosaico da realidade dos presos.

A primeira cena, “Monólogo”, representava a dor de um detento que não se

despediu da mãe falecida, por conta de sua condição de presidiário.

A cena seguinte, “C.O.D.P.H.U.”, iniciais de “Conselho Ornamental de Defesa

da Pessoa Humana” satiriza o conselho técnico do presídio, responsável pelos laudos

dos presidiários e, conseqüentemente, pela obtenção dos benefícios a que eles têm

direito.

Este tema também é reforçado na cena “Audiência”, em que os presos

reivindicam a um “Doutor” direitos que lhes estão sendo negados: receber jornais, que

só chegavam mediante suborno; o direito de transferência para o regime semi-aberto,

sempre adiado; a transferência de pavilhão, a fim de que o preso fique mais próximo de

seu amante.Também surge nesta cena a dificuldade financeira enfrentada pelas famílias

dos presos, que não conseguem retirar o dinheiro ganho pelo presidiário em seu trabalho

na unidade. E a praticamente impossível obtenção da liberdade condicional, quando o

preso já cumpriu metade da pena e apresentou bom comportamento. No fim, o “Doutor”

dá o veredicto, basicamente uma punição a cada um dos sentenciados, pois todos

ousaram reivindicar seus direitos.

Em “Reincidente”, o tema é a dificuldade de reestruturação da vida do egresso,

manifestada sobretudo na impossibilidade de conseguir um emprego, o que facilita um

novo envolvimento com a criminalidade, contrariando todos os sonhos do homem

recém-saído da penitenciária.

“Ordem e Progresso” sai do universo especificamente prisional e investiga a

relação entre miséria e crime, presentes em uma comunidade de favelados que organiza

uma escola de samba.

Finalmente, “Uma Certa Justiça” satiriza acidamente a diferença de tratamento

dispensada pelo sistema judiciário brasileiro aos presos de classes sociais diferentes,

provocando uma angústia profunda nos presos que já possuem o direito da liberdade

condicional, mas nunca conseguem obtê-lo.

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A polêmica em torno da realização das apresentações de “Aqui há Ordem e

Progresso” garantiu a presença de muitos artistas, autoridades e intelectuais em cada

uma das mais de quinze apresentações realizadas pelo grupo de presos.

Muitos deles manifestaram sua opinião através de veículos da imprensa, dos

quais alguns trechos são reproduzidos a seguir: Quem assistiu à peça “Ordem e Progresso” (...) teve a grata revelação de que eles não se

preocupam com a liberdade apenas em termos de sua cela, mas sim no seu sentido mais abrangente,

como sendo a plena florescência da personalidade humana.

- Não se pode reter a evolução mental de um homem! Com esta frase, um detento, dizendo-se

frustrado, ele que era o autor de uma das duas peças censuradas pela Secretaria da Justiça e que,

portanto, não foram apresentadas, se referiu a ao arbitrário que atingiu a todos, presos e homens livres,

que não puderam ouvir o clamor que vem da prisão. É fascinante constatar que a censura, um

cerceamento intelectual, é alvo de protesto por aqueles que têm, de fato, sua liberdade física arrancada,

por aqueles a quem nós nos referimos como marginais. Luiz Francisco Carvalho Filho5

(Fernandes, 1985: 159).

O resultado é amplamente positivo, de diversos pontos de vista. Há uma reflexão serena e bem-

humorada sobre a vida do presidiário, levando-os, certamente, a conscientizar-se e a conscientizar a

sociedade a propósito do confinamento que lhes é imposto. A dramatização dos conflitos atenua as

tensões e facilita um diálogo com as autoridades. E a responsabilidade interpretativa, no palco, é um

fator decisivo de dignificação humana. (...)

Mas outros valores estão em jogo. Na área propriamente artística, vê-se como os depoimentos

sinceros, mesmo carentes do aprendizado técnico específico, têm o poder de sensibilizar a platéia.

Algumas cenas provocam real emoção, porque a linguagem despojada e simples fala ao espectador. O

testemunho verdadeiro, nascido de uma necessidade profunda, encontra um ouvido mais receptivo de que

para muitos empreendimentos profissionais. Sábato Magaldi6 (Fernandes, 1985: 160).

Estranhei o título. Como podia a ordem nascer do crime, ser o produto da desordem? Seria

preciso assistir à peça para perceber que a pergunta é absurda e o título mais que justificado. (...)

O ciclo que a peça mostra é vicioso. Nascido da miséria social, o criminoso está fadado ao

crime, entre nós uma sina de gente malnascida, denunciando as teorias biológicas sobre o crime e a

retórica que sustenta a prisão.

Violento é o crime, não o preso. Esta dissociação que a peça nos obriga a fazer agora é

decisiva. Não fosse a identidade imaginária que o sistema penitenciário estabelece, deslocando a

5 In O São Paulo, São Paulo, 7/13 de novembro de 1980. Seção Justiça e Paz Para Todos. Tratava-se de um semanário da Arquidiocese, responsável por publicações de orientação católica. Quem orientava a seção “Justiça e Paz Para Todos” era José Carlos Dias, futuro Secretário da Justiça. 6 In Jornal da Tarde, São Paulo, 29 de novembro de 1980.

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violência de um para o outro, como poderia ele justificar o horror branco (referência à arquitetura da

prisão), a cela forte e a fúria de punir?

Reivindicando uma nova ordem na penitenciária, o espetáculo a que tive o privilégio de assistir

e devia ser aberto a todos demonstra que a justificativa da lei é vazia e ela só se sustenta porque somos

coniventes. Punir e recuperar são exclusivos. Sabemos disso, esquecidos entretanto de que sabemos.

Forma de afastar o criminoso que nos habita e ameaça eclodir?. Betty Milan7 (Fernandes, 1985:

160-161).

Todos os espetáculos eram seguidos de um debate entre presos e platéia,

ampliando o alcance de seus temas junto ao público.

Ruth Escobar destaca um outro aspecto relevante das apresentações: Os

espetáculos para os familiares dos presos também foram experiências sensacionais. Muitas destas

pessoas, por sua condição econômica, nunca tinham ido ao teatro e quando tiveram a oportunidade de

ver os seus filhos, esposos, sobrinhos ou pais no palco representando, uma nova sensação tomou conta

dessas famílias, algumas das quais pela primeira vez na vida deixaram de ter vergonha em ver seus

familiares presos. Pela primeira vez em muitos anos, alguns destes detentos foram “aceitos” novamente

pela família (Escobar, 1982: 15).

Vitorioso, o grupo decide então preparar um espetáculo especial para as

comemorações natalinas. Com direção de Emílio de Biasi, o grupo monta o “Auto do

Burrinho de Natal”, de Chico de Assis.

O grupo de teatro conseguiu realizar então uma grande festa, obtendo permissão

para que ela durasse um dia inteiro, com as visitas dos familiares pela manhã e tarde. À

noite o espetáculo seria apresentado, encerrando as festividades. Foi permitido também

que a comemoração abrangesse todos os pavilhões da PE. O Grupo Teatral assumira a

responsabilidade pela segurança. A festa natalina foi autorizada, sendo uma grande vitória do trabalho

coeso e integrado do Grupo Teatral da Penitenciária do Estado de São Paulo (FERNANDES, 1985:

163).

Ruth Escobar descreveu assim este dia: Depois de 50 anos, os presos conseguiram este

dia de Natal; o dia 21 de dezembro de 1980 ficou marcado para aqueles 1.200 detentos e para as

famílias como o Natal que jamais esquecerão. A confraternização foi geral. O que se viu foi emocionante.

(...) Para o Natal também, o grupo e Teatro preparou uma peça, “O Auto do Burrinho de Belém”, de

Chico de Assis, que foi mostrada ao Cardeal Evaristo Arns, detentos e a administração. A evolução de

nosso trabalho, depois de sete meses e meio de atuação estava crescendo a olhos vistos (Escobar,

1982: 16).

7 In Folha de São Paulo, São Paulo, 11 de novembro de 1980.

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O espetáculo seria reapresentado no dia seguinte. O que aconteceu foi a

catastrófica ação da direção do presídio sobre os detentos nos dias 25 e 26 de dezembro,

ao enviar os integrantes para diferentes presídios no interior do estado, impossibilitando

a continuidade do trabalho. Ruth Escobar foi acusada de insuflar a rebelião, o que

resultou na proibição a todos os artistas ligados ao projeto de entrarem na unidade.

A declaração de Roberto Lage sobre esse tipo de situação, em que o sistema

declara guerra a uma atividade que promovia um envolvimento real do preso e uma

reflexão mais profunda em níveis individual e social, nos dá a dimensão do problema a

ser enfrentado: O que eu constatei e que me desestimulou a continuar fazendo um trabalho em penitenciária é

que era inevitável uma mudança de comportamento dentro do sistema. O cara que está ligado a uma

atividade teatral dentro da penitenciária, o que ele muda de relação, de comportamento, de atitude, de

posicionamento dele em relação ao mundo, em relação a si mesmo é muito grande. Isso já está

comprovado há muito tempo, essa força que o teatro tem como instrumento transformador.

A disciplina, a organização interna de um presídio é pela relação de crime-castigo. Sofrer

punição quando sai do pré-estabelecido. Esse tipo de postura começa a ser muito discutido pelo preso

quando ele começa a fazer teatro. Ele começa a rever sua situação, ele quer dialogar, ele quer conversar

sobre, ele quer propor novas formas de relação.

Isso em geral ameaça muito a direção da unidade. Eles se sentem enfraquecidos. A direção se

utiliza da rivalidade interna entre gangues como instrumento disciplinar. Ela se apropria disso para

criar diferenciais, privilégios. Então não interessa para a direção que se elimine essa rivalidade.

Isso se repetiu sempre: as pessoas ligadas ao teatro que modificavam seu comportamento

interno, que adquiriam um outro grau de dimensão crítica acabavam sendo muito mais perseguidas e

castigadas do que os outros. Então, fazer com que o indivíduo melhorasse e se aperfeiçoasse era fazer

com que ele fosse mais perseguido. Eu me sentia responsável por isso, e impotente frente a isso.

Tentando denunciar, fazer coisas, mas não interessa para o sistema que se acabe com a idéia de castigo

por alguma transgressão, e foi por isso que eu acabei parando de trabalhar. Todas as mudanças promovidas pelo trabalho dos artistas do Teatro Ruth

Escobar pouco pesaram na avaliação dos dirigentes da unidade, quando estes decidiram

acusar o teatro de promover a rebelião, provocada na verdade pela incompetência de um

dos funcionários.

É em situações como essa que o sistema revela toda a sua lógica punitiva e

pouco aberta a propostas diferenciadas de trabalho. O grupo de teatro da PE promovia

um modelo de atividade em que todas as práticas podiam ser questionadas, todos os

fatos poderiam ser analisados, e situações cotidianas mereciam uma abordagem mais

atenciosa e crítica.

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Demoraria quinze anos para que outra proposta com o termo “teatro” em seu

título recebesse autorização para acontecer na Penitenciária do Estado. E mesmo assim,

com a recomendação de que não repetisse o grave incidente promovido pela experiência

anterior.“O nome da diretora daquele projeto foi invocado com um ódio e uma

malignidade que nem parecia que o incidente havia ocorrido quinze anos antes daquela

reunião com as autoridades prisionais”8(Heritage, 1998: 231).

2.4 O Projeto Teatro nas Prisões da FUNAP

O Projeto de Cultura elaborado pela FUNAP foi construído ao longo de sua

atuação junto aos presídios, à medida em que ia assumindo funções que inicialmente

não eram de sua responsabilidade declarada.

Dessa forma, sua contribuição para o desenvolvimento de atividades culturais

dentro das penitenciárias deu-se na criação e manutenção dos Postos Culturais, que são

instâncias administrativas ligadas ao Setor de Educação de cada unidade penal. Cada

Posto Cultural é gerido por um funcionário preso remunerado pela FUNAP, que fica

responsável pela organização de eventos esportivos e das festas tradicionalmente

comemoradas nos presídios: a Páscoa, o Dia das Mães, a Festa Junina, o Dia dos Pais, o

Dia das Crianças e o Natal.

A partir de 1996, a SAP reinicia um convênio com a Secretaria de Cultura do

Estado, finalizado no início da década de oitenta, reinaugurando a possibilidade de

realização de oficinas que abordassem linguagens artísticas, difundindo-as entre a

população encarcerada. Esta parceria voltou a acabar no momento em que os sucessivos

cortes orçamentários impossibilitaram a Secretaria de Cultura de manter as oficinas

dentro das unidades penais.

Todavia data basicamente do mesmo período uma iniciativa que provocou uma

grande repercussão junto à comunidade carcerária, pela ousadia de seus objetivos e pela

qualidade da discussão criada junto à equipe de Educação da FUNAP.

Trata-se do Projeto Drama, cujas origens e desdobramentos se consolidaram em

um longo período, que vai desde 1995, quando o projeto é concebido, até final de 2001,

quando o programa deixa de receber o apoio da diretoria então recém-nomeada da

FUNAP.

8 Traduzido por mim a partir do original em inglês.

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O início do projeto é marcado por uma parceria entre a FUNAP e outras duas

instituições: a Universidade de Manchester, através do TIPP Centre (Theatre in Prision

and Probation) e a Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, através da pró-

reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários e do Departamento de Artes Cênicas.

O TIPP Centre é um centro de pesquisas teatrais cujo objetivo é integrar técnicas

dramáticas a propostas pedagógicas e terapêuticas junto ao sistema penitenciário inglês,

atuando dentro das unidades penais e nos programas de liberdade condicional

(probation).

Naquele momento, o principal responsável pela divulgação das propostas do

TIPP Centre no Brasil era o professor universitário9 e diretor teatral Paul Heritage, cuja

trajetória profissional esteve ligada, desde muito cedo, a trabalhos com a comunidade

encarcerada.

Suas primeiras experiências envolvendo a utilização de atividades dramáticas

com presos tinham se iniciado já na década de oitenta, quando participava de programas

sobre a prevenção da AIDS.Desde então, em parceria com James Thompson, Paul é

responsável pela divulgação de programas de teatro e educação em prisões, defendendo

propostas que reafirmam o direito à dignidade dos prisioneiros.

Ele veio pela primeira vez ao Brasil em 1991, e já em 1993 iniciou a

implementação de um projeto de teatro na Penitenciária da Papuda, situada na capital

federal. Embora a FUNAP tenha começado a transformar as condições materiais e as provisões

educacionais na Papuda, em 1992 ainda não havia um programa cultural e assim eu fui convidado a

tentar a implantação do trabalho teatral na prisão. Isso começou em janeiro de 1993 com dois grupos de

presidiários, um no CIR (unidade de segurança máxima) e o outro no Núcleo de Custódia (uma unidade

semi-aberta). Ambos são institutos masculinos, mas sete mulheres eram trazidas ao Núcleo todos os dias

da prisão de mulheres para criar o primeiro grupo de gênero misto. Isso foi importante para o trabalho

desde o início, e, embora inicialmente resistente, a administração usou o sucesso desse projeto para

proporcionar uma ampliação dos programas de união entre o Núcleo e a penitenciária feminina. Todo

dia, durante o projeto, as mulheres eram recolhidas de suas celas e então marchávamos em formação

com uma escolta armada, por uma linha amarela, até as salas de ensaio do outro lado do pátio da prisão

masculina. Sinto uma grande admiração pela bravura dessas mulheres e grande respeito pelos homens

que, nunca, nem uma única vez, gritaram obscenidades ou críticas negativas ao cruzarmos seus

territórios. Eu não poderia garantir a mesma decência na Grã-Bretanha e, apesar do suposto machismo

da sociedade brasileira, eu era surpreendido a cada dia pela generosidade e compreensão entre os dois

sexos no composto penitenciário” (Heritage, 1998: 71-72). 9 Atualmente, Paul Heritage leciona Drama na Queen Mary University of London.

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Assim, desde o princípio, o trabalho rompia com uma questão penitenciária de

valor crucial, que é a separação entre os sexos, mostrando que a convivência entre as

populações feminina e masculina daquela unidade poderia acontecer sem incidentes.

Em entrevista que realizei com Heritage10, ele enfatizou a ausência de uma

metodologia previamente elaborada em sua experiência na Papuda. Segundo ele, o

processo tinha pontos de partida diversos, que originavam procedimentos de direção

específicos, de acordo com as características desenvolvidas por cada grupo. E prefere

defini-lo como um trabalho de criação coletiva, em que opções eram feitas para garantir

maior qualidade cênica do espetáculo.

O tipo de trabalho desenvolvido não pretendia ser uma proposta teatral limitada

às idéias de diversão e de lazer. O processo era conduzido de tal forma que os

integrantes produzissem conhecimento sobre temas que diziam respeito à sua realidade. O método da atividade dramática era firmemente concentrado nos modos mais eficazes de

alcançar esse impacto. As formas teatrais produzidas se desenvolveram arquitetadas com componentes

estrangeiros e nativos, mas as técnicas originaram-se da obra de dois brasileiros, Augusto Boal e Paulo

Freire. Assim, os grupos trabalharam para apresentações finais usando um processo que começou com

práticas desenvolvidas nas prisões da Grã-Bretanha mas que depois se tornou caracteristicamente

brasileiro. Usando um estilo eclético extraído da capoeira, do carnaval e das novelas, as peças

apresentavam a trajetória individual dentro de um determinado protagonista dentro da estrutura de

opressão (Heritage, 1998:72).

A experiência em uma penitenciária brasileira e a repercussão das apresentações

provocam uma reavaliação dos conceitos construídos por Paul ao longo de sua trajetória

em institutos penais britânicos. No passado, tornou-se característica comum do teatro na prisão (e talvez de outros projetos

similares) que o momento mais importante para os profissionais do teatro é nas oficinas e nos ensaios, e

que o processo em si, e não o produto, é fundamental para a realização do projeto. Freqüentemente isso

é expresso mais em termos de um processo de cura que de aprendizagem, focalizando o trabalho

individual dentro de um grupo a fim de se adquirir várias habilidades sociais. Isso se molda muito

satisfatoriamente na estrutura de um sistema punitivo que se concentra em reformar um indivíduo cuja

presença é considerada tanto um perigo como uma ameaça dentro da comunidade social. A atuação é

vista com freqüência simplesmente como completando uma função mais importante do “verdadeiro”

trabalho que é executado nas oficinas. No Brasil, contudo, a representação foi vista como completando

uma função mais importante. Em primeiro lugar, justificou o trabalho e, dessa forma, permitiu um

desenvolvimento do projeto. Assim, na primeira apresentação da peça sobre escravidão havia

convidados especiais do Departamento de Justiça, da Universidade de Brasília e do Consulado

10 Esta entrevista aconteceu no dia 25 de agosto de 2004, na sede do People´s Palace Projects, na capital do Rio de Janeiro, durante a realização do III Fórum Mudança de Cena.

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Britânico, que estava financiando o projeto. O corpo administrativo da prisão que estava presente na

apresentação também incluía o Secretário de Segurança assistindo à peça entre os detentos. A

conseqüência direta dessa apresentação foi um convite para continuar o trabalho. A prova do que se

alcançou teve de ser mostrada na representação. Isso foi, entretanto, mais do que uma simples mistura

bizarra de pessoas reunidas sob vigilância armada, para assistir uma peça sobre a opressão do sistema

judiciário brasileiro. O que o acontecimento tornou visível foi o poder extraordinário do teatro de

facilitar um diálogo que jamais poderia acontecer em outras circunstâncias. Até agora esse diálogo era

numa só direção, mas pelo menos a representação reverteu a direção habitual e realçou o foco central

da verdadeira representação teatral (Heritage, 1998:73).

Diante desta constatação, o projeto seguinte busca a criação de cenas de teatro-

fórum, técnica de Boal na qual um grupo de pessoas elabora uma cena que servirá como

elemento iniciador de um debate entre atores e público. A platéia é estimulada a intervir

no andamento e até no desfecho da cena, a fim de explorar outras possibilidades para as

situações apresentadas.

A influência do Teatro do Oprimido é assumida e enfatizada por Paul Heritage,

que descreve com otimismo a possibilidade de ampliação dos sentidos atribuídos à obra

teatral diante da instauração de um fórum: Quando retornei à Papuda em julho de 1993 foi com a intenção específica de explorar e

estender este trabalho específico da representação dentro do projeto. Nós decidimos trabalhar

praticamente da mesma maneira, mas com o objetivo claro de instalar apresentações de teatro-fórum

para cada uma das produções.(...) No final das apresentações, o público era solicitado a perguntar aos

atores sobre seu desempenho e a sugerir alternativas que os atores ou platéia executariam. Um autêntico

teatro-fórum, tal qual descrito por Boal. A força dele dentro da prisão era enorme, pois, de repente, um

projeto que havia anteriormente atingido um pequeno número de pessoas estava agora reunindo entre

150 e 200 pessoas por apresentação. O nível do debate em cada uma das apresentações era

impressionante, focalizando não somente os problemas a serem resolvidos de imediato pelo protagonista,

mas questões complexas que a própria sociedade precisava debater. A prioridade foi transferida de

corrigir o indivíduo para mudar a sociedade (Heritage, 1998:74).

O resultado foi que o presídio construiu, em agosto de 1994, dentro de suas

dependências, uma sala para ensaios e realização de espetáculos teatrais.

Pouco depois, o convênio entre UNICAMP, FUNAP e o TIPP Centre daria

início à elaboração do piloto do Projeto Drama - DST/AIDS, a partir de dois cursos de

formação em técnicas dramáticas ministrados por Paul Heritage e James Thompson para

professores e alunos do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, técnicos de cultura

e monitores de educação de adultos presos da FUNAP.

Segundo Rusche (1997: 25), naquele momento, o projeto idealizado teria a

duração de quatro anos, entre 1995 e 1998, e sua operacionalização estava dividida

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entre quatro etapas que se intercalavam: apresentação de peças teatrais nos

estabelecimentos penais, realização de oficinas de técnicas dramáticas, criação de uma

metodologia de teatro-educação com a participação dos monitores de adultos presos, e a

construção de uma proposta de trabalho de reabilitação a partir das técnicas

experimentadas pelo TIPP Centre na Inglaterra.

Assim, enquanto eram realizadas as oficinas de formação em técnicas dramáticas

para os técnicos da FUNAP e alunos da UNICAMP, aconteciam apresentações

semanais de teatro, dança e música/coral, durante um período de três meses, no primeiro

semestre de 1996, dentro das dependências do presídio “Professor Ataliba Nogueira”,

situado em Campinas, São Paulo. O sucesso da empreitada nos levou ao segundo passo do Projeto Piloto, a saber: a realização de

oficina de teatro junto aos prisioneiros.

Nosso objetivo era o de utilizar os jogos dramáticos como processo educativo e não na

formação de atores ou encenação de peças teatrais.

Perseguindo este objetivo, planejamos (ainda em caráter piloto) a realização de uma oficina

com 10 (dez) horas de duração, cujo tema foi a Prevenção às DST/AIDS. Os trabalhos foram

coordenados por dois estudantes da UNICAMP e dois técnicos da GEDUC (Gerência de Educação e

Cultura da FUNAP).

As oficinas ocorriam uma vez por semana com duração de duas horas. A adesão ao trabalho por

parte dos prisioneiros foi voluntária e fechamos uma turma com 25 pessoas.

Os trabalhos foram realizados na quadra coberta da unidade e quase uma centena de outros

prisioneiros permaneciam no local assistindo.

Posteriormente esses espectadores manifestaram o desejo da participação ativa na oficina,

levando à organização de mais turmas.

As avaliações e replanejamentos dos trabalhos foram constantes (semanais), caracterizando

definitivamente a experiência enquanto “piloto” a fim de refinar, aprimorar e ampliar o trabalho de

prevenção às DST/AIDS através do teatro.

Concomitantemente fomos estruturando o projeto, o qual foi encaminhado ao Ministério da

Saúde em 1997, desencadeando a celebração do Termo de Cooperação nº 277/97 em 15 de outubro de

1997, com vigência até 30 de junho de 1998.

O eixo central do projeto foi a realização de 60 oficinas, para cerca de 20 participantes e com

duração de 10 horas cada uma, totalizando 1200 prisioneiros atendidos. A finalidade foi a de

desencadear um processo educativo para a transformação das atitudes frente às DST/AIDS.

A experiência piloto demonstrou ser o Drama uma linguagem de grande aceitação para as

populações encarceradas, além de ser facilitadora do debate e ampliadora dos interesses na busca de

respostas para os temas encenados (FUNAP, 2003).

De todo esse processo, algumas conclusões podem ser extraídas, para

compreendermos a natureza do projeto que se desenrolava. O TIPP Centre, entre 1995 e

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1996, propôs as oficinas de formação em técnicas dramáticas para os profissionais da

FUNAP e estudantes da UNICAMP. Propôs também que essas técnicas, muitas delas

baseadas nas práticas do Centro de Teatro do Oprimido (CTO), estivessem ligadas ao

tema da prevenção às DST (doenças sexualmente transmitidas) e AIDS.

Ao mesmo tempo em que se desenvolviam as atividades práticas, os

responsáveis pela oficina, que já haviam participado do planejamento, acompanhavam

também as reuniões de avaliação contínua e discussão metodológica, realizadas com a

presença das professoras da UNICAMP Verônica Fabrini e Joana Lopes e o técnico da

FUNAP Osmar de Souza Filho.

O objetivo principal do processo era garantir a formação de uma oficina que

pudesse instaurar, para grupos de 20 a 25 presos, um debate sobre o tema das

DST/AIDS, promovendo então um processo educativo para a transformação das

atitudes frente às DST/AIDS (FUNAP, 2003).

Estamos diante de uma proposta muito clara, a da utilização da linguagem teatral

como meio para transmissão de conteúdos e construção de conhecimento sobre temas

que, aparentemente, ganham novos significados e diferentes graus de interesse quando

discutidos à luz da prática cênica e expressiva. Daí a afirmação: Nosso objetivo era o de

utilizar os jogos dramáticos como processo educativo e não na formação de atores ou

encenação de peças teatrais (FUNAP, 2003).

Essa afirmação, presente no Projeto de Cultura da FUNAP merece especial

atenção. Ela parece assumir que não há processo educativo quando o objetivo é formar

atores ou encenar uma peça, o que não corresponde, sem dúvida, à realidade das

propostas atuais em pedagogia teatral. É questionável também a valorização dos jogos

dramáticos em detrimento da realização de uma encenação, como se os jogos

representassem o “verdadeiro” sentido pedagógico do teatro.

Isso revela um vínculo forte com a postura pedagógica defendida pelo CTO,

criticada inclusive por Paul Heritage quando ele afirma, em texto já citado, que o

espetáculo é garantia de que o trabalho vai atingir um número maior de pessoas,

provocando nova relação entre os presos e a platéia. Isso gera a possibilidade de

abordagem estética para o trabalho com a linguagem teatral.

As propostas do Teatro do Oprimido nasceram e foram sendo sistematizadas por

Boal ao longo de sua trajetória como diretor, dramaturgo, professor e escritor,

principalmente no momento em que viveu no exílio, durante os anos da ditadura militar

brasileira. Datam sobretudo da década de 1970 os principais escritos. Publicados ao

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longo da década seguinte, deram visibilidade a suas idéias concernentes à utilização do

teatro para promover a conscientização dos oprimidos e, portanto, a transformação das

relações sociais de opressão. 1. O Teatro do Oprimido tem dois princípios fundamentais: primeiro – a transformação do

espectador, ser passivo, recipiente, depositário, em protagonista da ação dramática, sujeito, criador,

transformador; segundo – não tratar apenas de refletir sobre o passado, mas também de preparar o

futuro. Basta de um teatro que apenas interprete a realidade: é preciso transformá-la!

2. Só a transformação do espectador em protagonista impede que o teatro tenha função

catártica. O espectador que é capaz de um ato liberador, durante uma função de teatro-fórum, ainda que

tenha sido capaz de realizar esse ato apenas na “ficção” que é o teatro, na verdade é estimulado a

realizá-lo também na vida real. Se o pode fazer em “ensaio”, prepara-se depois para fazê-lo na vida

real. A catarse purifica (suprime) o espectador de algo perturbador, inquietador, algo transformador da

sociedade. Mesmo o teatro brechtiano, por apresentar imagens acabadas do mundo, por não permitir ao

espectador que intervenha e modifique a ação dramática, mesmo o teatro brechtiano acaba por ser

catártico. Devemos inventar uma outra palavra que seja o exato antônimo da catarse, porque o Teatro

do Oprimido provoca justamente esse efeito: aumenta, magnifica, estimula o desejo do espectador em

transformar essa realidade.

3. Para que o Teatro do Oprimido seja eficaz e útil é necessário que seja praticado

massivamente: não basta um espetáculo aqui e outro ali, vez ou outra. (...)

4. Para que seja praticado massivamente é necessário que compreendamos que a atividade

artística é natural a todos os homens e todas as mulheres. (...) Devemos compreender que todos os

homens são capazes de fazer tudo aquilo que um homem é capaz de fazer. (...) Todo mundo pode fazer

teatro – até mesmo os atores! O teatro pode ser feito em todos os lugares – até mesmo dentro dos teatros!

5. Disse Brecht que o teatro deve ser posto a serviço da Revolução. Eu penso que o teatro deve

ser parte da Revolução! Ele não está ao serviço: é a preparação da revolução, é o seu estudo, é a sua

análise, é o ensaio geral da Revolução. (...)

O Teatro do Oprimido não apresenta imagens do passado, mas sim prepara modelos de ação para o

futuro. Todos os espectadores devem estar conscientes de que o tema tratado refere-se a alguma coisa

que vai efetivamente acontecer. Vai acontecer: portanto é necessário preparar-se para quando aconteça!

Não basta ter consciência de que o mundo precisa ser transformado: é necessário transformá-lo! Para

esta imensa tarefa, algo podem ajudar as técnicas do Teatro do Oprimido (Boal, 1984: 18-20).

Esta síntese das idéias fundamentais do Teatro do Oprimido nos fornece as

principais referências utilizadas por Boal para construir o corpo de sua teoria: a opção

por um teatro político, condensadas nas propostas do Teatro Épico, de Bertolt Brecht e

na Pedagogia do Oprimido, do pedagogo brasileiro Paulo Freire.

De Brecht, Boal utiliza a crítica ao teatro dramático, com sua concepção

ilusionista do teatro, o que provoca o envolvimento catártico do público, impedindo-o

de estabelecer uma relação crítica com a obra que lhe é apresentada. Para provocar um

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outro tipo de relação entre platéia e obra, Brecht elabora a teoria do Teatro Épico,

fundado na idéia do estranhamento, que obrigaria o público a refletir constantemente

sobre a cena e, a partir disso, promover um debate sobre a sociedade.

Mas Boal se diz mais radical que Brecht, pois incentiva, além da relação crítica

entre a encenação e o público, a participação efetiva deste nos rumos em que a obra

pode tomar. Um espectador pode, durante uma apresentação de teatro-fórum,

interromper a encenação e tomar o lugar de um dos atores, alterando os desdobramentos

previamente ensaiados para a cena.

O teatro-fórum é visto como um ensaio para a tomada de uma atitude

verdadeiramente revolucionária, quando o espectador estiver diante de uma situação

real de opressão. Portanto a cena desvela quais tipos de opressão estão escondidos em

nosso cotidiano social, e promove um debate sobre as melhores formas de combatê-la.

O Projeto Drama – DST/AIDS utilizava como recurso metodológico as técnicas

do Teatro do Oprimido, sobretudo o teatro-fórum, a fim de se debruçar sobre uma

questão assim comentada por Rusche: As técnicas dramáticas, inspiradas nas experimentações de Augusto Boal e unidas a um projeto

educativo baseado nos princípios freirianos podem ajudar a ampliar nossa reflexão sobre as atitudes

individuais frente a uma situação conflituosa do cotidiano como é a prevenção da AIDS?

Os fundamentos da Pedagogia do Oprimido são essenciais para que possamos compreender

melhor essas questões. São também fundamentais em qualquer trabalho com educação em comunidades.

No caso das Instituições Totais, e populações carentes, como é o caso das prisões, que são espaços

constituídos por uma multiplicidade de culturas, ausência de um projeto comum, pelas proibições

concretas de ir e vir, pela carência material e pelo estigma frente à sociedade; a visão de homem, de

sociedade e de educação freirianos devem ser mantidos para que o projeto educativo possa se diferenciar

da técnica penitenciária, que tem o objetivo contrário, de tornar os corpos dóceis, produtivos e

disciplinados, e que trabalha para impedir a construção de uma sociedade crítica e criativa. Estas idéias,

sendo levadas ao seu limite, seriam impedidas de penetrar nas cadeias – esta é a grande contradição que

enfrentamos; não a contradição da baderna que impediria qualquer trabalho, mas a contradição básica

dos princípios. A prisão espera poder controlar as atitudes e o que nós queremos é construir consciência

sobre elas (Rusche, 1997: 50).

A evolução do Projeto Drama – DST/AIDS então se deu da seguinte forma:

depois da formatação do modelo de oficina a ser desenvolvido com os grupos de

presidiários, criado durante a realização do piloto no presídio “Ataliba Nogueira”, a

equipe também passou a contar com uma profissional do CTO, Bárbara Santos, para

promover formação técnica e discussões sobre o modelo de oficina. Esta formação

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ainda não ocorria em nome da parceria entre a FUNAP e o CTO, o que só viria a

acontecer em 1999.

Assim, durante o ano de 1998, a equipe contava com cinco duplas de

profissionais responsáveis pelo desenvolvimento da oficina, sendo que duas duplas

ficaram responsáveis pelos presídios da capital e três desenvolviam o trabalho em

presídios do interior.

O modelo do trabalho definido para cada oficina tinha duração de dez horas,

divididas em cinco encontros de duas horas cada.

No primeiro dia explicitava-se a proposta e eram realizados jogos para

aquecimento e integração do grupo, introduzindo-os nos jogos dramáticos do Teatro do

Oprimido, dentre os quais pode-se citar o hipnotismo colombiano e completar imagens

(Boal, 2002).

No segundo encontro iniciava-se o estabelecimento de paralelos entre os jogos e

o tema a ser abordado, a questão das DST/AIDS. No terceiro dia isso seria abordado de

forma mais enfática e complexa, para que no quarto encontro fossem levantados os

relatos pessoais que resultariam nas cenas de teatro-fórum, apresentadas no quinto e

último encontro.

O diretor teatral Jorge Spínola fazia parte da equipe responsável pela realização

das oficinas nos presídios da capital. Eis seu relato11: Nós trabalhávamos muito superficialmente questões teatrais, pois você tinha uma semana para

fazer a integração, fazer o grupo se apropriar daquela linguagem, que era o jogo dramático. Os detentos

chegavam na Casa de Detenção com a cara fechada e se perguntando que diabo é isso de teatro. E aí

você chegava. Tinha gente que saía no início do trabalho! O preconceito estava tão impregnado que o

cara não se propunha a fazer aquilo. O primeiro dia era pra mim o melhor, porque você via toda essa

dureza, e na hora do encerramento você já via o que mudava.

No primeiro dia eram os jogos iniciais do Boal. Tinha uma conversa antes com o grupo e a

gente explicava quais eram os objetivos, que era pra discutir AIDS, não como uma palestra, mas através

do teatro. Isso pra eles não queria dizer nada, porque quando você começava os jogos, aí é que eles

ficavam sem entender mesmo! Só que depois da integração, a gente começava a ligar com o tema, então

eles se acalmavam. Começávamos a perguntar que relações eles estabeleciam entre os jogos e a questão

da AIDS. Quando eles percebiam que o jogo propunha essa possibilidade, e que dava para estabelecer

uma discussão a partir de uma atividade que eles haviam acabado de vivenciar, aí o trabalho acontecia!

A gente ganhava o grupo no segundo dia.

11 Entrevista realizada por mim em 21 de julho de 2004. As declarações cuja autoria não está destacada no subcapítulo 2.4 pertencem a Jorge Spínola e foram dadas na referida situação.

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No encontro seguinte a gente aprofundava mais a discussão sobre os temas através dos jogos,

usando uma técnica mais complexa para fazer a discussão. Aí só sobravam dois dias para construir uma

cena do fórum. Então aí perdia a qualidade. As cenas eram interessantes, mas muito superficiais. Davam

conta da questão da AIDS, mas não estética teatral, não havia tempo. E o que eles destacavam muito na

avaliação final dos grupos era, além de receber as informações a respeito da doença, a questão da

solidariedade. Essas palavras eram as que vinham mais: companheirismo, solidariedade.

Agora as cenas de Fórum eram totalmente questionáveis. Tinha grupo que não aprofundava o

tema, tinha grupo que se aprofundava mas a estética teatral era totalmente questionável, de um senso

comum do que é teatro! Por exemplo, essa questão do tempo dentro da cena, o tempo real e o fictício, até

isso era difícil deles compreenderem. Se a história continuasse no dia seguinte, a impressão que dava é

que você teria que ficar um dia esperando chegar.

No relato de Jorge Spínola podemos perceber a dimensão dos limites que

caracterizaram o projeto.

No âmbito pedagógico, a discussão do tema DST/AIDS, proposta a partir das

experiências dramáticas, provocava um redimensionamento das relações e dos

comportamentos no contexto brutalizado da prisão, fruto justamente do caráter lúdico

das atividades propostas.

Por outro lado, a falta de tempo e condições para elaboração e aprofundamento

da discussão sobre os elementos da linguagem teatral acabava reduzindo a criação das

cenas a uma etapa pouco produtiva em termos artísticos. Daí a conclusão de que a

oficina, sem sombra de dúvida, atingia seu objetivo de provocar um debate relevante

sobre questões que envolvem a prevenção e cuidados relativos às DST/AIDS, mas

deixava a desejar com relação à prática teatral.

Podem-se avaliar os bons resultados deste primeiro ano do Projeto Drama -

DST/AIDS pelo alcance atingido no ano seguinte, 1999, quando o trabalho ganha

continuidade e aprofundamento. O CTO torna-se parceiro oficial do projeto,

responsabilizando-se pela formação contínua das cinco duplas que haviam realizado as

oficinas junto à população carcerária nos anos anteriores. Essas duplas, por sua vez,

passam a desenvolver o processo de formação em técnicas dramáticas de toda a equipe

de monitores de educação de adultos presos da FUNAP.

Dessa forma, o projeto passa a ser implantado em 36 unidades prisionais e atinge

9.500 detentos, além de promover a difusão das técnicas dramáticas desenvolvidas pelo

CTO para praticamente todo o corpo funcional dos setores educacionais dos presídios.

A avaliação final do projeto está assim descrita no Programa de Cultura da

FUNAP:

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66

Esse projeto de prevenção às DST/AIDS atingiu os seus objetivos, proporcionando formação aos

educadores, alunos e disseminando uma cultura de prevenção na vida escolar e dos presídios como um

todo, contribuindo para a solidificação de nossa rede escolar (FUNAP, 2003: 6).

Dessa forma, tudo levava a crer que a equipe responsável pela qualidade com

que o Projeto Drama – DST/AIDS se desenvolveu permaneceria. Não foi o que

aconteceu. O Projeto Drama – Direitos Humanos em Cena, desenvolvido nos dois anos

seguintes, 2000 e 2001, dispensou a participação da equipe de gerentes e técnicos da

GEDUC (Gerência de Educação e Cultura) da FUNAP.

Assim, a formação técnica dos monitores de educação de adultos presos da

FUNAP passa a ser realizada diretamente pela equipe de profissionais do CTO.

Gerentes e técnicos da GEDUC - FUNAP encararam essa exclusão como um duro

golpe, principalmente depois de haverem dedicado quatro anos de trabalho à

consolidação do Projeto Drama. Eles compreendiam o valor do contato pedagógico sem

intermediários entre o CTO e os monitores de educação, que seriam os responsáveis

pela efetiva realização das oficinas junto à população penitenciária.

No entanto, a distância da equipe da GEDUC, responsável pelo planejamento e

garantia de execução plena das propostas pedagógicas da FUNAP, sem dúvida

comprometeria a continuidade do trabalho assim que o CTO finalizasse seu contrato

com o projeto.

O Projeto Drama – Direitos Humanos em Cena já criava polêmica a partir do

título, escolhido justamente com o intuito de promover, de imediato, um debate que

derrubasse a visão preconceituosa que associa a luta pelos direitos humanos dos presos

a uma batalha que favoreça a impunidade. Atualmente, quando pronunciamos as palavras Direitos Humanos dentro das prisões,

instigamos as paixões mais viscerais e intensas. Quase que automaticamente, presos e funcionários

vinculam os Direitos Humanos a um grupo específico de proteção a presos e presas, mas que pouco faz

sentido. Para eles, o “tal pessoal dos Direitos Humanos” são geralmente senhores e senhoras distintos

que sempre desejam entrevistar os sentenciados sem a presença dos guardas e após a inspeção nunca

mais retornam.

Esta visão mítica construída no sistema prisional sobre os Direitos Humanos revela o quanto a

garantia dos valores fundamentais é algo distante daqueles que vivem ou trabalham nas prisões. (...)

Com qual grau de certeza podemos afirmar que a repulsa aos Direitos Humanos por parte de presos e

funcionários está vinculado ao fato destes direitos não serem plenamente garantidos a eles? (Araújo,

2002: 66).

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Assim, o Projeto Drama amplia seu alcance, atingindo diretamente não só a

população presa, mas também os funcionários do presídio, ambos convivendo em um

mesmo ambiente que não lhes garante a plena efetivação dos Direitos Humanos. O

objetivo geral do projeto era: Criar meios efetivos para melhorar as condições de

implementação de Direitos Humanos e Cidadania para prisioneiros e funcionários do

Sistema Penitenciário Paulista (Araújo, 2002: 56).

O Projeto partiu de uma grande pesquisa, realizada durante o ano de 2000, com

o objetivo de consultar e avaliar o grau de apropriação referente à prática dos Direitos

Humanos nas Prisões.

Os resultados da pesquisa dão uma amostra clara dos principais temas a serem

desenvolvidos por um trabalho que buscasse ampliar o alcance cotidiano dos Direitos

Humanos no contexto prisional.

Para a maior parte dos entrevistados, prostitutas (90,6%), homossexuais

(72,2%), policiais (72,2%) e guardas do presídio (80,5%) merecem a proteção dos

Direitos Humanos, enquanto a minoria considera que caguetas (37,9%) e estupradores

(33,8%) são merecedores de tal distinção.

Quando a pergunta está relacionada aos momentos da vida em que os

entrevistados entendem que seus direitos foram violados, o momento da prisão

(62,2%),o julgamento (48,4%), a chegada ao estabelecimento penal (43, 4%) e durante

o cumprimento da pena (40,7%) ganharam número expressivo de menções. O número

reduzido de menções a antes da prisão (28,6%) pode resultar da compreensão de que o

desrespeito aos Direitos Humanos aconteça somente em casos de violência ou agressão,

quando em verdade as dificuldades de acesso pleno à alimentação, saúde e educação são

também consideradas ofensas graves aos direitos do homem e do cidadão.

Em abril daquele ano, iniciavam-se as oficinas de formação oferecidas pelos

profissionais do CTO para 52 monitores de educação da FUNAP, que passariam a

implementar o Projeto Direitos Humanos em Cena nas unidades em que atuavam.

O modelo de oficina proposto então por esse novo projeto era semelhante à

oficina realizada no Projeto Drama – DST/AIDS: cinco encontros com duas horas cada.

O plano das oficinas obedecia ao seguinte planejamento: PRIMEIRO DIA

OBJETIVO: Introduzir o tema dos Direitos Humanos e do teatro-fórum.

PROGRAMA – TÉCNICAS:

• Conversa inicial – contato grupal;

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• “Hipnotismo Colombiano”12;

• “Completar a Imagem”;

• Técnica Prospectiva: Imagem da Palavra;

• Demonstração de Teatro-Fórum: “Aperto de Mãos”;

• Fechamento/ avaliação.

SEGUNDO DIA

OBJETIVO: Relacionar o tema à realidade dos participantes.

PROGRAMA:

• Resgate do dia anterior;

• “Corrida em Câmera Lenta”;

• “Máquina Rítmica”;

• Técnica Prospectiva: “Imagem de Transição”;

• Demonstração de Teatro-Fórum: “Os Quatro em Marcha”;

• Escolha de Histórias;

• Fechamento/ avaliação.

TERCEIRO DIA

OBJETIVO: Montar as histórias/ cenas de teatro-fórum.

PROGRAMA:

• Resgate do dia anterior;

• “Cinco Gestos”;

• “Floresta de Sons”;

• Explanação sobre o Teatro-Fórum;

• Demonstração de Teatro-Fórum: “Invasão de Território”;

• Improvisação das Histórias;

• “Espetáculo para Surdos”;

• Fechamento/ avaliação.

QUARTO DIA

OBJETIVOS: Ensaiar as cenas de teatro-fórum e levantar e registrar as declarações de Direitos

Humanos do grupo.

PROGRAMA:

• Resgate do dia anterior;

• “Círculo com Pinos”;

• Relembrar as histórias;

• Apresentar com diálogo (usando “Monólogo Interior”);

• Aplicar Técnicas de Ensaio: “Interrogatório de Hannover”, “Ensaio Analítico de Motivação”;

• Registro das declarações de Direitos Humanos dos presos;

• Fechamento/ avaliação.

12 As técnicas colocadas entre aspas estão descritas e comentadas em: BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.

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QUINTO DIA

OBJETIVOS: Debater o tema através da sessão de teatro-fórum e selecionar as declarações

consideradas essenciais pelo grupo.

PROGRAMA:

• Resgate do dia anterior;

• “Carnaval no Rio”;

• Ensaio Geral das cenas;

• Sessão de Teatro-Fórum;

• Escolha de uma cena para o diálogo;

• Seleção das declarações de Direitos Humanos;

• Fechamento/ avaliação. (Araújo, 2002: 59-61).

Pode-se notar que esse modelo de oficina dedica espaço à elaboração artística

das cenas de teatro-fórum, valorizando a prática teatral desde o primeiro encontro. Isso

representa um avanço em relação ao anterior, que se debruçava sobre a criação da cena

apenas por dois dias.

Esta maior preocupação com o aspecto cênico atende também a outro desafio

proposto: apresentação pública das cenas de teatro-fórum para a comunidade prisional,

em um primeiro momento, e sua posterior reapresentação em encontros regionais,

ampliando o alcance do debate provocado pelas cenas a locais que extrapolavam o

espaço da oficina.

Segundo Heritage: Estas performances serão chamadas de Diálogos e reunirão cerca de

cem prisioneiros e guardas. Após uma série destes Diálogos, espera-se que cada uma destas prisões

participantes encene um Fórum Público, quando se espera que membros do público sejam convidados às

prisões para assistir e interagir com os fóruns de teatro sendo encenados pelos presidiários. Em alguns

casos, esperamos que apresentações em locais públicos sejam permitidas, onde suas peças sobre os

Direitos Humanos dentro das prisões possam se tornar parte de debates cívicos de uma abrangência

ainda maior (Heritage, 2003: 175).

O projeto atingiu ao todo 34 unidades prisionais em todo o Estado, sendo que em

21 delas foi realizada também a apresentação das cenas produzidas na oficina para a

comunidade interna da prisão. Em dez ocasiões, prisões abriram seus portões para membros do

público que vieram debater os direitos humanos através de encenações de fóruns de teatro interativo.

Mais de 2.000 pessoas viram estas apresentações, as quais incluíram presidiários atuando em praça

pública em Presidente Prudente e na conferência anual dos psiquiatras da prisão em Bauru (Heritage,

2003: 177).

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O encerramento do projeto aconteceu em 12 de dezembro de 2001, em pleno

Parlamento Latino Americano, dentro do Memorial da América Latina, na cidade de

São Paulo. Ali foi realizado o Fórum Estadual - Direitos Humanos em Cena: Teatro

nas Prisões, reunindo todos os responsáveis pela realização do projeto: monitores de

educação e autoridades da FUNAP, da SAP, do CTO e representantes do sistema

judiciário e de diversas organizações responsáveis pela promoção dos direitos

Humanos.

O evento reuniu a apresentação de três cenas de teatro-fórum: uma representada

por agentes de segurança penitenciária (ASP), outra representada por um grupo de

presidiários e uma por um grupo de presidiárias.

A peça dos agentes de segurança, denominada “No Sistema”, toca na questão

delicada dos Direitos Humanos de quem também passa diversas horas de seu dia em

situação de risco dentro de uma penitenciária. Os funcionários do presídio responsáveis

pela vigilância dos presos, os ASPs, são em grande parte oriundos da mesma classe

social dos presos. Recebem um salário muito pequeno. Em caso de rebeliões, são os

primeiros a arriscar a própria vida, e não raro são tomados como reféns e assassinados.

Para piorar, são sempre os acusados pelo mau funcionamento do sistema penitenciário

como um todo, e acabam personificando, para o preso, a própria instituição penal, pois

são eles que mantêm contato direto e diário com a população carcerária. Portanto não é

possível concretizar uma transformação nas relações possibilitadoras da efetiva

presença dos Direitos Humanos na prisão sem considerar o ASP.

A cena seguinte, “O Segundo Julgamento”, realizada por presos do COC –

Centro de Observação Criminológica, expunha o momento da triagem, quando os

detentos passam pela Comissão Técnica de Classificação e são submetidos a um laudo

comportamental, assim que chegam ao presídio.

Por fim, as presas da PFC tratavam do tema da dor da separação dos filhos

nascidos durante o cumprimento da pena, separados da mãe quando o bebê completa

seis meses de vida.

Pelo depoimento de Jorge Spínola, percebe-se que esta cena, intitulada “A

Despedida”, fornece um exemplo do cuidado artístico, possibilitado pela preocupação

com a qualidade estética da cena: Eu me lembro de uma cena feita pelas presidiárias da PFC, sobre a questão da separação das

mulheres e seus filhos nascidos enquanto elas estavam presas. As grávidas. Elas reivindicavam um tempo

maior de convívio com seus filhos. O respeito a isso era uma questão de Direitos Humanos. Então nessa

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cena elas foram direto ao cerne da questão, que é a hora que a autoridade vai lá e tira a criança da mãe.

E o bebê da cena era uma boneca. Então na hora que a funcionária chega, a presa começa a desenrolar

o bebê. Ela arranca uma perna do bebê. E dá uma perna. Dá a outra perna. Dá a cabeça. Dá o corpo. E

a cena pára aí. Isso foi de uma mobilização na platéia incrível. Com todas aquelas autoridades

presentes, ouvindo o que as pessoas propunham durante a discussão no fórum!13

No encerramento, dois presos e dois guardas leram para a platéia um documento

contendo todos os artigos escritos pelos grupos que realizaram as oficinas e resultaram

nas Declarações dos Direitos Humanos do Sistema Penitenciário de São Paulo

(ILANUD, 2002: 91-94). Ao construir uma Declaração de Direitos indistinguível representando ambos prisioneiros e

guardas, o documento final e a sua arte coletiva de interação apelavam aos alicerces da igualdade e

unidade que são venerados na nossa idéia contemporânea do que são direitos. Nossas sensibilidades pós-

modernas podem achar difícil acomodar a segurança a tudo que abrange na Era da Razão, mas pelo

menos dentro da experiência local deste projeto, a Declaração final aspirava à universalidade que une o

prisioneiro, o guarda e a sociedade brasileira atual. E, se alguns direitos humanos produzidos parecem

se dirigir ao particular e não ao geral, então talvez seja apropriado lembrar que o ímpeto histórico

definidor dos direitos do cidadão provém de um século, quando o índivíduo estava apenas começando a

emergir do Estado. A prisão reproduz uma sociedade que é medieval na sua estrutura, onde os poderes

em si, ao invés dos poderes essenciais, são com tanta freqüência a norma da lei. Portanto, não é

surpreendente encontrar nestas declarações o desejo de remover a subjugação do indivíduo ao geral

através de exigências altamente personalizadas. É, afinal de contas, através da relação entre o universal

e o particular que nossos direitos são forjados (Heritage, 2003: 180).

Assim, as propostas desenvolvidas nas sessões de teatro-fórum encontrariam

continuidade e efetivação através de outra proposta de Boal, denominada Teatro

Legislativo (Boal, 1996). O Teatro Legislativo permite que sugestões levantadas pela platéia de

teatro-fórum possam ser transformadas em leis. (...) Todo o espetáculo de Teatro Legislativo envolve,

além dos atores e platéia, advogados e representantes legislativos. Estes últimos têm o papel de refletir

sobre as cenas e propor projetos de lei. Ao final da sessão, os projetos de lei criados são encaminhadas

pelos legisladores competentes, se forem referendadas pelo público (Araújo, 2002: 57).

Este processo foi criado e desenvolvido por Boal durante o período em que foi

vereador da cidade do Rio de Janeiro, entre 1993 e 1996, sendo responsável pelo

desenvolvimento de diversos projetos de lei enviados para votação na Câmara

Municipal, muitos deles aprovados.

Aparentemente, esse foi o método mais concreto de aproximação entre a prática

teatral desenvolvida e teorizada pelo CTO, e seu objetivo declarado, o de que o Teatro

do Oprimido deve ser parte essencial da “revolução”. 13 Entrevista realizada por mim em 21 de julho de 2004.

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No entanto, essa fase do Projeto Drama – Direitos Humanos em Cena não

chegou a acontecer. No início de 2002, uma série de fatores contribuem para que a SAP

e a FUNAP decidam interromper a parceria com o CTO e a ONG People´s Palace

Projects, que substituiu o TIPP Center no decorrer do projeto.

Procurar entender por que um projeto tão bem sucedido acabar sem explicações

consistentes obriga a uma análise mais apurada da situação.

Primeiramente, há a mudança de rumos impressa pela diretoria recém-nomeada

da FUNAP, que alterou significativamente o quadro de gerentes e técnicos da GEDUC,

substituindo por novos profissionais aqueles que, a despeito de terem sido excluídos do

Projeto Direitos Humanos em Cena, ainda defendiam a continuidade da presença das

técnicas dramáticas na formação dos monitores.

Existia também um certo mal-estar entre os monitores de educação de adultos

presos, provocado pela repercussão da exclusão da equipe da FUNAP durante o

processo de formação, e que Spínola, um dos profissionais substituídos, expõe da

seguinte forma: É claro que a equipe do CTO possuía um domínio da técnica muito maior que o nosso, mas a

gente já tinha chegado à conclusão, por conta das experiências anteriores, de uma certa superação da

técnica. Se a gente tivesse continuado na coordenação do Direitos Humanos em Cena, nós estaríamos

fazendo enormes adaptações ou mudanças nos jogos, permitindo maior autonomia aos monitores. Mas

com a equipe do CTO fornecendo a capacitação, o rigor e a rigidez da técnica foram mantidos. Mas era

muito rico, os monitores tiveram encontros de formação com o próprio Boal. O trabalho atingiu uma

amplitude muito maior, pois o processo anterior já havia aberto as portas da relação com as prisões. E

aí começou a haver uma preocupação artística com relação ao Fórum. Houve um cuidado muito maior

com a questão estética. Aconteceu o Fórum, foi muito interessante. Só que sempre houve um confronto:

tudo que aparecia de diferente no jogo, eles culpavam a equipe da FUNAP, que havia feito a formação

anterior. E a equipe que havia recebido a formação ficava incomodada com isso. Começou a ter uma

desestabilização aí. A crise apareceu: a equipe da FUNAP começou a questionar que a técnica já não

estava dando conta das questões nascidas nas oficinas, então havia uma questão ideológica. Criou-se

com uma cisão, pois a equipe técnica acreditava que os próprios monitores já tinham autonomia pra dar

continuidade ao projeto sem a formação com o CTO, que a relação entre os gerentes e técnicos da

FUNAP e os educadores não tinha tantos conflitos e que a gente podia sim mudar os jogos14.

A preocupação com a técnica, que aparentemente causava incômodo à equipe de

monitores pode ser até justificada, se levarmos em conta que eles, em sua grande

maioria, conheceram as técnicas do Teatro do Oprimido a partir das oficinas realizadas

pela equipe da FUNAP. O que não se justifica é a criação do desconforto causado pelas

14 Entrevista realizada por mim em 21 de julho de 2004.

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acusações dirigidas à equipe da FUNAP, responsável pela formação anterior, feitas pela

equipe do CTO, principalmente em um contexto em que todos os monitores ainda

estavam diretamente ligados aos técnicos e gerentes da FUNAP.

No entanto, o principal motivo do encerramento do Projeto Direitos Humanos

em Cena encontra-se justamente nos limites de questionamento tacitamente acordados

entre os dirigentes de políticas prisionais. Esses limites, uma vez postos à prova,

provocam um grande mal-estar cuja resolução depende de uma reorganização de

poderes. Isso resulta na preferência pela manutenção do poder já estabelecido, que

busca pequenas alterações estruturais para, no fim, deixar a prisão como ela é.

Ao fornecer a um preso a possibilidade de criar uma lei capaz de transformar a

rotina carcerária, é bem possível que o sistema tivesse de enfrentar a reação dos grupos

que não acreditam na hipótese de que um detento possa ser o co-autor de uma proposta

capaz de melhorar a qualidade de vida na prisão.

Basta relembrar a série de rebeliões que culminaram com a demissão do então

Secretário da Justiça do Governo Franco Montoro (1983-1986), o advogado José Carlos

Dias, quando ele criou a possibilidade de existirem comissões, eleitas entre a massa

carcerária, a fim de que os presos tivessem representatividade na gestão das

penitenciárias (Portugues, 2001, 33-34).

As duas décadas que separam este incidente do Projeto Direitos Humanos em

Cena definitivamente não produziram mudanças significativas nas políticas de execução

de tratamento ao delinqüente. Se o evento de encerramento, o Fórum Estadual dos

Direitos Humanos, promoveu um marco na trajetória da evolução do sistema

penitenciário paulista, a não continuidade de um projeto sistemático de debate sobre tal

tema dentro das prisões, utilizando técnicas dramáticas ou não, equivale, a um

curtíssimo prazo, à não realização do projeto.

O fato desse projeto ter sido encerrado de forma abrupta, sem justificativa

convincente, diz muito sobre a Secretaria de Administração Penitenciária e sua relação

com o teatro: é de seu interesse até o momento em que é produzida certa repercussão na

mídia, utilizando o resultado de longos processos artísticos para exibir-se como

autocrítica, progressista, questionadora de sua prática e aberta a sugestões. No entanto, a

verdadeira situação no interior das prisões prevalece, nas assustadoras imagens que

ilustram as rebeliões feqüentes.

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Capítulo 3: Recordações da casa dos mortos: Mulheres de Papel

No dia dois de maio de 2002, tinha início o vínculo que eu estabeleceria junto ao

mundo penal. Às 15 horas, eu deveria estar diante do portão de entrada da PFT, onde

encontraria Jorge Spínola, diretor teatral e coordenador da “Oficina de Montagem

Teatral” desde março daquele ano.

Havíamos combinado a hora e o local por telefone, mas tudo parecia precário e

tenso: o agente de segurança responsável pela portaria observava meus movimentos,

provocando uma sensação de desconforto, como se eu fosse culpado por algo. Imagino

que ele estranhasse alguém parado por muito tempo no portão de entrada, mas não havia

lugar para encostar ou sentar, e ao mesmo tempo eu não tinha permissão para entrar.

Eu havia morado durante toda a minha a vida no Tatuapé, bairro da Zona Leste

da capital paulistana, e só fiquei sabendo da existência de um presídio ali entre a

marginal Tietê e as avenidas Celso Garcia e Salim Farah Maluf quando entrei em

contato com Jorge.

Muito atencioso e receptivo a minhas dúvidas e questionamentos, ele quis saber

que razões me fizeram procurá-lo. Pergunta difícil. Fui sincero ao dizer que não tinha

interesse em realizar meu estágio em uma escola, e que uma proposta teatral que se

desenvolve em um presídio me parecia uma experiência mais enriquecedora, pelos

desafios que ela deveria apresentar.

Ao mesmo tempo, havia a curiosidade de explorar aquele espaço vigiado, onde

pessoas supostamente perigosas e terríveis estavam supostamente separadas do convívio

social por muros supostamente intransponíveis.

3.1 Antecedentes

Eu havia tomado conhecimento do trabalho do Jorge, em 2000, por intermédio

de uma colega, a atriz, professora e diretora de teatro Ligia Borges, que havia realizado

um estágio com ele no Centro de Observação Criminológica, no Carandiru,

acompanhando o processo que resultou no espetáculo A Pena e a Lei, interpretado por

homens presos a partir do texto de Ariano Suassuna.

Anteriormente, em 1999, Jorge havia conseguido, pela primeira vez, construir

um espetáculo com atores presos, após uma série de tentativas frustradas em outras

instituições (Penitenciária Feminina do Butantã e Penitenciária de Guarulhos). Tratava-

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75

se de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, criada ao longo de um ano e meio

de processo no interior do já referido COC.

O COC era uma ala do Complexo do Carandiru destinada ao cumprimento de

pena a sentenciados que recebiam tratamento especial dentro do sistema penitenciário,

principalmente por correrem risco de vida, caso submetidos a um tratamento penal

comum. Homens condenados por estupro, policiais corruptos, justiceiros (aqueles que

matam por profissão, e não por defesa própria) e políticos ou servidores públicos que

haviam cometido crimes contra o patrimônio público e estelionato.

Portadores de penas altíssimas, esses homens foram se acumulando nas celas do

COC, um espaço de segurança máxima cujo maior diferencial era a presença constante

de um quadro de funcionários completo, ou seja, todos os setores que constituem o

cerne administrativo de um presídio existiam e funcionavam ali.

Enquanto na maioria dos presídios o corpo funcional ainda se concentra nas

áreas de disciplina e segurança, deixando de lado os setores de reabilitação, educação e

trabalho, o COC era um modelo de atuação em todas as áreas. Por isso os laudos

emitidos por sua equipe técnica eram incontestáveis, e para lá eram mandados os casos

de “observação”, quando algum juiz desconfiava do laudo emitido, por não encontrar

adequação com a descrição da trajetória do preso.

Foi nesse ambiente que Jorge finalmente conseguiu organizar uma rotina para o

desenvolvimento da atividade teatral. Inserido nos quadros funcionais da FUNAP como

monitor de educação, ele deu início à oficina de teatro dentro do espaço escolar, com

permissão do setor de reabilitação. E bastou a leitura de algumas páginas do texto de

Suassuna para que o grupo se decidisse pelo O Auto da Compadecida.

Nas palavras do próprio Jorge: No meio do processo, a gente ainda não tinha autorização da direção da casa, do Doutor Hélio,

para apresentar o espetáculo. Foi quando a gente levou a peça pra ele ver. E foi uma mobilização! Aí

nós ensaiamos, apresentamos o primeiro ato pra ele, pra ele autorizar o trabalho. Como o texto é

brilhante, ele ria, ele se acabava de rir. E a gente ali, bobo da corte, fazendo o show. Ele ficou

entusiasmado por aquilo, e deixou fazer. E a gente pôs a mão na massa. Ele foi liberando espaço,

funcionários, liberando os presos em outros horários. Eles até podiam abandonar, mas depois da

mobilização da “pré-estréia”, eles já estavam envolvidos pelo teatro, envolvidos com o texto. A figura

dele era tão poderosa, que vendo esse homem rindo do que a gente estava fazendo, permitindo a

continuidade do teatro, era um absurdo.

Ficou um compromisso implícito de que tinha que dar conta daquilo. O rigor dele favoreceu

nisso. Eu sabia que os detentos não iam ter coragem de desistir. Os funcionários relaxaram. Não era

como nos outros presídios, onde ninguém chamava os participantes. Na hora que virou uma atividade

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aprovada pela direção da casa, tinha que acontecer. Nós ensaiávamos na escola, à tarde, três vezes por

semana. Tinha muita gente eu queria fazer parte do grupo, por que a gente venceu o preconceito do

código interno dos presos, o rigor dos funcionários, que beirava a perseguição, e o rigor da direção.

Ficou na minha cabeça uma cena muito forte: no primeiro dia, eu fui olhar pra ver se vinha

alguém. Tinha quase 20 homens parados no corredor, de cabeça baixa, expostos, antes da aula, cheios

de vergonha, eu pensei: eles não voltam amanhã, eles não vão agüentar a humilhação. E eu perguntei:

“Vocês vão encarar isso?”. Eles falaram: a gente já chegou até aqui, a gente vai até o fim...15”

E eles foram até o fim. A estréia aconteceu e a direção do COC passou a apoiar

incondicionalmente o projeto. O espetáculo conseguiu circular por outros presídios,

inclusive fora da cidade de São Paulo, o que era inimaginável: permitir que aqueles

homens ameaçados de morte pelos próprios presos saíssem para apresentar uma peça!

Suassuna toma conhecimento da montagem, através de uma prima que assistira a

uma apresentação no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, e escreve, em sua coluna no

jornal Folha de São Paulo: Um deles (referindo-se a um dos presidiários) chegou a declarar: Em toda minha vida de crime

eu nunca senti emoção tão grande quanto a de trabalhar no teatro. Pois posso garantir, a ele e aos

outros, que minha emoção não foi menor. Lembrado das palavras do Cristo, o problema do castigo de

uma pessoa humana sempre me angustiou; e, mesmo impotente como seja, sempre foi profunda a

compaixão que eu sinto por qualquer condenado. Assim, fiquei contente ao ver que minha peça tinha

levado um pouco de alegria (e talvez alguns momentos de reflexão) tanto aos atores que a encenaram

quanto ao público de detentos que assistiu ao espetáculo. Por alguns momentos voltei a ser o menino

que, na pequena cidade de Tapera, sertão da Paraíba, por ordem da tia e da mãe ia, com outros irmãos,

visitar os presos da cadeia local, numa tentativa (também inócua, sei) de amenizar sua terrível e

dolorosa condição (Suassuna, 1999).

Suassuna não assistiu ao espetáculo, mas certamente ele teria apreciado a cena

final de seu auto representada por homens presos. Quando o personagem João Grilo é

absolvido em julgamento divino e recebe da Compadecida uma segunda chance, talvez

não fosse difícil para o público entender que aquele momento concentrava um pedido de

perdão também daqueles que interpretavam a cena, mediado pela ficção do autor

pernambucano. E encontrando tanta reverberação e aprovação nessa literatura

dramática, foi natural que o trabalho continuasse seguindo por esse território.

A Pena e a Lei estreou em 2000, e seguiu os mesmos passos do espetáculo

anterior: apresentações dentro da própria unidade, apresentações em outras

penitenciárias e apresentações em teatros como o TUCA e o Sérgio Cardoso, na cidade

de São Paulo. O processo contou com a participação da atriz Alexandra Tavares, que 15 Entrevista realizada em julho de 2005. Todas as falas cuja autoria não está destacada nos capítulos 3 e 4 referem-se às declarações de Spínola em tal ocasião.

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abria assim caminho para a entrada de mais interessados em partilhar da experiência de

criação teatral em presídios. Essa parceria mais à frente iria criar uma categoria, o ator-

formador, dentro da agora denominada “Oficina de Montagem de Espetáculos”, inserida

no Projeto Teatro nas Prisões da FUNAP, que ao mesmo tempo comportava as oficinas

do Projeto Drama: Processos Educativos através do Teatro.

Permitir a presença de uma atriz dentro de uma instituição tão rígida

demonstrava a confiança da direção do COC no trabalho, confiança testada diariamente

a cada novo entrave provocado pela instituição e derrubado pela repercussão alcançada

pelo trabalho.

Novamente, o texto de Suassuna validava um discurso que não seria permitido

de forma declarada dentro do universo prisional. Ao construir uma trama recheada das

confusões provocadas pelo malandro Benedito, que engana e faz de idiota o delegado, o

padre e o coronel, o autor novamente usa o cômico para satirizar os poderosos e, de

certa forma, exaltar os humildes que têm na esperteza uma tábua de salvação. O texto

conquista muitos sentidos quando levado à cena por homens presos, permitindo-lhes

revelar sua crítica às relações de poder a que são diariamente submetidos em um espaço

que não lhes credita valor de opinião.

É contundente imaginar uma cena onde um preso interpreta um malandro

surrando outro preso que interpreta um delegado, sem que este perceba quem o está

surrando. O público ri da burrice de um e se identifica com a esperteza de outro. E o

público é formado por presos, por agentes de segurança e também pelo diretor do

presídio, todos validando, através de risadas e aplausos, o que assistem em cena.

Estariam eles todos avaliando a dimensão do que acontecia durante essa

apresentação? Será que ninguém compreendia a ironia, o sarcasmo concentrado

naqueles instantes em que o espetáculo era encenado?

Um novo processo é iniciado e, em 2001, o grupo encena O Rei da Vela, um

texto reconhecidamente difícil e de estilo bem distinto das comédias farsescas de Ariano

Suassuna. Trata-se de uma obra contundente, que data de 1933, mostrando um Oswald

de Andrade impregnado de crítica marxista às estruturas de manutenção de poder da

burguesia, revelada na construção ácida de um panorama trágico para os que acreditam

nos valores do capitalismo.

O Rei da Vela foi convidado, pelo próprio diretor do Teatro Oficina, Zé Celso

Martinez Correa, a se apresentar no emblemático edifício que serve de palco, há mais de

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trinta anos, para as históricas encenações de um grupo que é referência na trajetória das

lutas de resistência cultural do teatro brasileiro.

A grande repercussão obtida garantiu quase o dobro da capacidade do teatro. E

lá, o público pôde presenciar o que anteriormente sempre ficara ocultado pelas cortinas:

os atores, insistentemente ovacionados, saírem algemados e escoltados por dois policiais

cada um.

Este longo percurso se encerra com a desativação do Carandiru e a transferência

da maior parte dos integrantes do grupo para a Penitenciária do Tremembé. Não deve

ter sido uma despedida fácil, como nada deve ter sido simples nessa trajetória de quatro

anos no COC, a julgar pela carta de despedida escrita por Jorge e entregue a cada um

dos integrantes do grupo: Queridos atores,

Mais um ano chega ao final. Até parece que começamos tudo ontem. Mas não, estamos fechando

um ciclo de muita experiência, este ano, nossa característica foi brigar, brigar e brigar!

Brigamos em gramelô; brigamos pela continuidade do projeto; brigamos pelo horário e pelo

espaço; brigamos para construir o personagem, brigamos para encontrar o trilho e manter o ritmo;

brigamos porque briguei às cadeiradas com uma atriz; brigamos para manter o COC; brigamos porque

olhamos, pelas frestas, um quarto vazio; brigamos porque a platéia não fez o exercício da escuta e ficou

olhando o Guache-Guache dizer libidinosamente que foi a vela do Abelardo que nos salvou; brigamos

porque às vezes somos medíocres e entregávamos uns aos outros; brigamos porque olhamos as

fotografias; brigamos porque queremos o vídeo e porque não estamos contentes com ele; (...) brigamos

pelo Memorial que não fizemos e só foram nossos primos ricos; brigamos porque Pitoco foi pra berlinda

e descobriu chorando que teatro é uma paixão e uma possibilidade; brigamos porque trocamos as roupas

no mesmo camarim e porque lanchamos juntos; (...) brigamos porque invadimos/transgredimos a radial;

brigamos para ter os estudantes e atores de fora...nossa metade diferente e que nos completa; brigamos o

ano todo , talvez por uma única razão: brigamos porque somos apaixonados uns pelos outros sob a luz

do teatro.

São Paulo, dezembro de 2001

Jorge Spínola

Em setembro de 2002, um ano depois do fim do COC, durante um seminário

realizado pelo IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, um grupo de

duzentos advogados, juízes, cientistas sociais e funcionários de elite do sistema

prisional assistiu à derradeira apresentação de O Rei da Vela, reorganizada com muito

esforço e da qual eu participei, em substituição a um dos atores que havia sido colocado

em castigo na véspera.

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No teatro do luxuoso hotel Maksoud Plaza, a platéia acumulou-se nas últimas

fileiras, uma atitude que só podia denotar uma espécie de temor ante o que poderia

acontecer sobre o palco. No final da apresentação, antes mesmo de encerrarem os

aplausos, a cortina desceu e enquanto o mestre de cerimônias convidava a todos para o

coquetel de encerramento, os agentes de segurança algemavam cada um dos atores,

levados embora sem a possibilidade de se despedir. Artistas despidos de sua máscara,

obrigados a voltar à sua dura condição: presidiários.

3.2 Primeiros Passos

Mas voltemos ao portão da PFT. Jorge havia chegado e tínhamos que aguardar

por um certo tempo até que o responsável pela portaria resolvesse permitir nossa

entrada. Quando o fez, não percebi nenhuma tentativa em ser agradável.

De nossa parte, foi e continuará sendo sempre o oposto: lutamos para estar

sempre sorridentes e bem-humorados, realizando um enorme esforço para esconder o

quanto ficamos nervosos por nos deixarem esperando longo tempo diante do portão, por

termos de ouvir comentários equivocados com relação ao trabalho que realizamos, pela

brutalidade com que algumas revistas eram realizadas.

Para chegar na área administrativa do presídio, fomos revistados na portaria,

onde devíamos deixar pertences pessoais (carteira e celulares) e, após atravessarmos o

estacionamento, passamos pelo detector de metais. Subimos uma rampa e, para

entrarmos nos pavilhões, atravessamos ainda mais duas portas trancadas por cadeado.

Todo esse ritual se repetiria ao longo dos dois anos seguintes. Era uma rotina da

prisão que aos meus olhos passaria a ser encarada como natural, mas naquele primeiro

dia só serviu para aumentar minha tensão e gerar um medo que até então eu não

atribuiria àquele lugar.

A feiúra dos ambientes de trabalho administrativo chamava minha atenção. A

geografia dos corredores era confusa, e gritos e pedidos das presidiárias ecoavam por

todo o ambiente. Aquilo tudo me impressionava bastante e ficou muito evidente para as

participantes da oficina o quanto eu estava tenso naquele primeiro encontro com elas e

com a cadeia.

Muitas impressões ficaram desse dia. Uma delas, a percepção de que aquelas

mulheres possuíam uma rotina. Elas conseguiam manter um certo grau de

individualidade, na cor e no corte dos cabelos e mesmo nos uniformes, como eu nunca

havia imaginado existir em um presídio.

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Porém o que foi ficando evidente era a sensação de vitalidade que o cotidiano

das internas expressava, em contraste ao marasmo consolidado no aspecto dos agentes

penitenciários.

Preocupadas em sobreviver e em preservar o máximo de referências do mundo

externo, a maior parte daquelas presas corriam contra o tempo, estavam agitadas. O que

eu esperava encontrar nas aprisionadas, como a sensação de inutilidade e as

perspectivas de vida consumidas pela falta do que fazer, em verdade eram

características mostradas pelos agentes penais.

A PFT está atualmente em processo de desativação, pois será transformada em

um CDP ligado ao CDP masculino do Belém. Na época, ela comportava quinhentas

mulheres divididas em quatro pavilhões com celas onde podiam viver até cinco pessoas.

Nunca foi considerada uma instituição modelo, apesar de oferecer às presas

oportunidades de trabalho e educação, através do Setor de Reabilitação, no qual estão

inseridas também as atividades esportivas e artísticas, incluindo aí a oficina de teatro.

Porém, o trabalho oferecido às detentas não passava de atividades simples,

repetitivas e maçantes, que tinham como principal objetivo ocupar-lhes o tempo ocioso,

servindo como instrumento de contenção dos ânimos, uma vez que o menor deslize é

punido com a demissão. As firmas aproveitam-se da mão de obra não qualificada e

pagam um salário baixíssimo a elas, que não lhes serve diretamente, uma vez que não é

permitida a circulação monetária dentro da cadeia.

As atividades educacionais são simples, e não ultrapassam o ensino

fundamental. Quem deseja concluir o Ensino Médio deve recorrer a telecursos de ensino

à distância, e os cursos profissionalizantes oferecidos são bastante simples, adequados à

vida prisional, e com esforço podem vir a garantir o sustento fora da cadeia, como o

curso de cabeleireiro ou de corte e costura.

As oficinas artísticas e atividades esportivas constituem práticas de lazer,

oferecidas entre o horário de trabalho estabelecidos pelas firmas e o da contagem final,

que precede o fechamento das celas e determina o fim da circulação das presas pelos

pavilhões.

A oficina de teatro aconteceu, durante o ano de 2002, entre 17 e 19 horas, três

vezes por semana, sendo que os horários eram ampliados e os dias alterados conforme

as necessidades e possibilidades das integrantes, sobretudo às vésperas da estréia.

No ano seguinte, profundas alterações na estrutura do trabalho marcaram uma

nova fase do projeto. Assim, para melhor analisar as especificidades de cada período,

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prefiro abordá-los separadamente, com a preocupação de não demarcar territórios

artificiais, pois há uma ligação orgânica e profunda entre esses dois momentos.

São processos irmãos, ligados por uma série de elementos que tornam fluida a

percepção da continuidade entre eles, sem que isso prejudique a percepção das claras

distinções que caracterizam cada uma dessas fases.

3.3 Mulheres de Papel em 2002

Antes do início de minha participação como estagiário de observação, em maio,

o grupo já havia começado a se encontrar desde março. Ele era aberto a qualquer

presidiária que estivesse interessada em participar da oficina de teatro três vezes por

semana durante duas horas. As inscrições eram realizadas na biblioteca da unidade.

O local onde a oficina se desenvolveu até meados de novembro era bastante

significativo: a capela, situada ao lado das salas de aula. Num reino em que tudo é

invertido, para se ter acesso às Luzes (a escola) e a Deus (a capela), era preciso descer

ao nível térreo.

No ambiente penitenciário, onde se está o tempo todo sob vigilância, a noção de

privacidade, muitas vezes tão cara ao trabalho teatral, perdia importância a cada vez que

o ensaio era interrompido pela intromissão de algum agente de segurança, ou que os

gritos por atenção de alguma presidiária invadiam o ambiente, mesmo quando dirigidos

a outras áreas.

Nos dois primeiros meses, a proposta de trabalho era a experimentação de jogos

do Teatro do Oprimido, que Jorge conhecia muito bem, graças a sua experiência junto

ao CTO durante todo o tempo em que participou do Projeto Drama.

Mas, segundo me relatou, essa proposta não estava de acordo com as

expectativas do grupo. As integrantes estavam começando a faltar e reclamavam da

diferença entre o que elas esperavam de uma oficina teatral e o que acontecia nos

encontros. Não reconheciam o que estavam fazendo como teatro e disseram o que

desejavam: uma história, um texto para decorar e um personagem para representar.

Mulheres que praticamente nunca haviam freqüentado uma sala de espetáculos

batalhavam, no espaço de ensaio reservado pelo presídio, para fazer valer sua própria

idéia de teatro, negando as tentativas do diretor para explicar os fundamentos teatrais

existentes nas práticas que realizavam.

Ouvir as opiniões de um grupo de presos e levá-las em consideração é algo raro

no contexto penitenciário. Os membros da equipe dirigente teriam o poder de obrigar

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todas as presas que se inscreveram a permanecer no trabalho até sua conclusão. Isso

seria bastante cômodo para Spínola, que não enfrentaria qualquer objeção a sua prática,

pois não restaria outra alternativa às participantes senão fazer o que elas fazem o tempo

todo: obedecer.

Era evidente que a ampla experiência do diretor em presídios já o tornara

perfeitamente familiarizado às gírias e códigos de conduta que compõem uma cultura

específica das prisões, desarmando qualquer suspeita do grupo em relação à proposta da

Oficina de Teatro, instaurando desde cedo um clima diferente em comparação ao que se

estabelece com a grande maioria dos membros da equipe dirigente.

Ele sabia que precisava mostrar para as presas que efetivamente consideraria

suas opiniões, mostrando-lhes a disposição de construir um ambiente de convivência

baseado em um outro tipo de relação, na qual elas poderiam expressar opiniões com a

certeza de que estas não seriam desprezadas ou desvalorizadas.

Era evidente a satisfação das integrantes quando receberam as cópias do texto.

Eu estava chegando junto com as primeiras páginas da peça que Jorge havia escolhido

para a tão exigida montagem. Após esse dia, ele me revelou seu alívio. As discussões

sobre a presença ou não de um texto haviam atingido um ponto em que as integrantes

não pretendiam ceder: ou papel na mão ou nada de participar do teatro.

3.3.1 Com papel na mão

Diante do vínculo recém-iniciado com as integrantes e com a instituição e

compreendendo a possibilidade de perder o espaço na Penitenciária do Tatuapé, Jorge

decidiu ceder. E o texto que ele escolheu foi Homens de Papel, de Plínio Marcos.

O texto Homens de Papel era desafiador, se considerarmos a temática da peça e

a história de vida do autor.

A trajetória de Plínio Marcos, que cresceu no Macuco, um bairro da cidade de

Santos, litoral de São Paulo, situado entre a zona de prostituição e o principal porto do

país, forneceu-lhe o convívio com o tipo de gente que retratava em suas peças: os

miseráveis, os malandros, as prostitutas e seus cafetões, os esquecidos da sociedade que

lutam para sobreviver em um modelo econômico e social que lhes nega oportunidades.

Aos dezenove anos, escreveu Barrela (1958). Baseada em uma notícia de jornal,

a peça contém praticamente todos os elementos que marcariam suas melhores obras: o

retrato naturalista de um ambiente sufocante e as conseqüências desse meio nas relações

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humanas, sempre estruturadas em um modelo em que os mais fortes impõem seu poder

através de constantes abusos sobre os mais fracos.

Violência física e verbal, relações opressoras de poder, exploração de miseráveis

por outros miseráveis que conseguem poder pelo uso da coação - este é o conjunto dos

temas que se repetem nas obras mais importantes do autor: Dois Perdidos numa Noite

Suja (1966), Navalha na Carne (1967), Abajur Lilás (1969), A Mancha Roxa (1988),

entre as outras doze que escreveu.

Homens de Papel (1967) trata do universo dos catadores de papel, que

sobrevivem do lixo produzido pela sociedade, e nele se confundem, na paisagem dos

grandes centros urbanos brasileiros.

A peça se inicia com a chegada do personagem Berrão, intermediário entre os

catadores e a fábrica que compra o papel recolhido. Ele é quem pesa e determina o valor

do papel segundo seus critérios, indica os pontos de trabalho onde cada catador deve

atuar e abusa de seu poder, tratando os catadores com desrespeito e explorando-os por

onde pode, pagando uma miséria pelo papel que lhe é entregue, roubando na pesagem e

descontando do pagamento a gasolina que abastece seu caminhão, utilizado no

transporte do papel.

O catador Chicão, ao perceber que seu companheiro de trabalho, Tião, está

fragilizado após a investida de Berrão sobre sua companheira, Maria-Vai, inicia uma

negociação que tenta fomentar uma paralisação coletiva.

Nesse momento, o aparente marasmo é interrompido pela chegada de um casal

de retirantes, Frido e Nhanha, que estava recolhendo papel nos pontos dos catadores.

Estes se revoltam e tentam tomar-lhes o produto da coleta. Durante a briga, a filha do

casal, Gá, sofre um ataque e desmaia.

Ficamos então sabendo que o casal precisa juntar dinheiro para pagar um

tratamento para a filha doente. Berrão os aceita no grupo de catadores, colocando-os

para trabalhar junto com Coco, que por sofrer algum tipo de abalo mental não consegue

se enquadrar no mesmo nível de rendimento que seus companheiros.

Está instaurado o conflito central da peça: Chicão convence a todos da

importância da paralisação, menos a Nhanha, que precisa do dinheiro para salvar a vida

da filha. Irredutível, ela sai para catar papel, desestabilizando o movimento, e todos

acabam voltando, contrariados, ao trabalho.

Sua filha, deixada sozinha, sofre tentativa de abuso sexual por Coco, e morre

estrangulada por ele, desesperado por ter causado o último ataque nervoso da criança.

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O grupo, ao ver a criança morta, espanca o retardado até a morte. Pensam ter

adquirido a consciência do poder da união frente a um problema comum. Enfrentam

Berrão que, temeroso de problemas com a polícia diante dos cadáveres, insiste em

abandonar o local.

Nhanha, a grande personagem da peça, exige que Berrão compre o papel que

recolhera para que possa usar o dinheiro em um funeral decente para sua filha.

Temeroso diante das ameaças do grupo, Berrão puxa o revólver. Não convence: Berrão- Não está vendo o revólver na minha mão? Então, que papo é esse? Eu estouro um. Estouro o

primeiro que vier, estou avisando. Quem avisa amigo é. Eu queimo um. Eu queimo. Mas, não dou um

puto de um tostão pra sacana nenhum.

Nhanha- (Mostra o peito.) Então queima! Atira aqui! Atira! Falta peito? Tu não tem coragem? Atira!

Atira, seu porco!

Berrão- Tu tá louca, mulher?

Nhanha- Tu é que tá louco de medo. Atira! Tem medo, seu puto? Então dá o dinheiro! Anda, dá a grana

ou atira! Tu me mata, e daí? Estou cagando um monte desse tamanho para morrer. Já morri um cacetão

de vezes, tá bom? Morri de fome, morri de frio, morri de medo, morri de ver a minha cria morrer. E

agora chegou a tua vez. Atira! Atira! Anda, atira! Mas tu não escapa. Gasta a tua verdade aqui no meu

peito. Anda! Daí eles te pegam e te azaram. Esta é a hora de acertar as contas. Quem tiver se danado

mais é que está com a razão. E não vai Ter canhão pra mudar o resultado. Anda, atira! Atira!(Nhanha

anda lentamente, avançando sobre Berrão, que está apavorado.)

Maria-Vai- É melhor tu dar a grana para ela.

Berrão- É...é... Vou ajudar tu enterrar a criança. Vou ajudar. Afinal é só isso que tu quer, não é?

Nhanha- É.

(Berrão pega todo o dinheiro e dá para Nhanha.)

Berrão- Pronto. Já tem o que queria.

(Nhanha fica parada na frente de Berrão. Olha com desconfiança para o dinheiro. Berrão, percebendo

que já domina a situação novamente fala agora com autoridade para Nhanha, comprando-a

definitivamente.)

Berrão- Então mulher? Não tá contente? Não tem tua grana? Então? Vai cuidar da tua cria morta, antes

que os urubus dêem conta dela (Marcos, 1976: 87).

Finalmente, reassumindo sua estabilidade poderosa, Berrão ordena que todos

carreguem os sacos de papel para o caminhão. Todos o obedecem.

Refletindo sobre a condição miserável destes homens e mulheres, o autor

concebeu uma metáfora sobre as dificuldades das classes menos favorecidas em

manifestar suas opiniões contra esse modelo exploratório de produção, no qual a

maioria está inserida.

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O fato dos diálogos estarem conectados à ação e não em debates intelectuais,

propondo seqüências dramáticas claras e bem encadeadas, além de possuírem uma

linguagem significativamente simples, tornava o texto bastante eficiente para o tipo de

processo de criação que Jorge passou a desenvolver.

O texto estabelecia uma ponte entre as participantes da oficina e as propostas da

direção, que criou um sistema de improvisações bastante distinto de uma simples

transmissão de marcações. Agora, com texto em mãos, ou apenas com trechos

memorizados após uma ou duas leituras, elas tinham um problema coletivo para

resolver, que era dar realidade cênica às palavras escritas no papel.

O texto não foi recebido de uma vez. Isso gerava uma expectativa positiva com

relação ao destino das personagens e ao desfecho da peça, produzindo um espaço de

debate muito interessante sobre a história daqueles personagens. Esses debates

invariavelmente desembocavam em temas mais amplos que recontextualizavam as

situações apresentadas pela peça. Assim as integrantes do processo podiam estabelecer

conexões entre a cena e suas experiências vividas dentro ou fora da prisão.

O texto era objeto de reflexão ativa, instigador de novas possibilidades de

interpretação e significado. Assim, noções de certo e errado, dever e direito ou

autoridade e submissão podiam ser revistas, remodeladas e transformadas através de

uma outra abordagem, nascida da prática artística.

Por isso era tão importante a variedade de integrantes do grupo: além das

integrantes presas, do Jorge e de minha presença, cada vez mais inserida nas

improvisações, o processo passou a contar, a partir de meados de junho, com a

participação de Sérgio Oliveira e de Alexandra Tavares, atores que acompanhavam o

trabalho de Jorge desde o COC.

A presença do denominado “grupo de fora” foi bastante importante porque ela

possibilitou o desenvolvimento, nas integrantes da oficina, de um olhar diferente para os

“mistérios” do trabalho do ator. Queriam entender como se processava a criação de

outras atitudes, outras vozes, outros gestos que enriquecessem essa segunda natureza,

que é o personagem.

O fato de a oficina teatral receber pessoas que não faziam parte do contexto

penitenciário possibilitava uma interação não só das presas entre si, mas também o

confronto de suas opiniões com as de pessoas que vinham de fora e não as tratavam com

a indiferença típica da grande maioria dos funcionários. Era uma troca em que os

diversos participantes podiam sair surpreendidos.

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Estava garantido um encontro de Plínio Marcos com seu submundo, gerando um

processo em que a moral simplista do “isso pode”, “isso não pode” não possuía espaço.

Muitas vezes me surpreendia a franqueza com que eram discutidos o direito à vida, os

motivos que levam ao crime e a decisão de preservar ou não a vida de uma vítima

durante uma tentativa de assalto.

Vale ressaltar aqui que o texto não sofreu nenhum corte por retratar um ambiente

possibilitador de óbvios paralelos com o mundo da carceragem. A alteração mais

significativa foi a adaptação dos nomes de personagens masculinos para seus correlatos

femininos e as conseqüentes mudanças que isso acarretava no contexto em que ele

estava inserido. O título do espetáculo passou a ser Mulheres de Papel. Apenas os

personagens Berrão, Tião e Coco continuaram a ser representados por homens.

Não houve, entretanto, nenhuma distribuição definitiva de personagens no início

do processo, uma vez que no contexto penitenciário nunca se sabe ao certo até quando

se pode contar com a presença de um participante. Para contornar este problema, havia

um acordo, entre Jorge e as participantes, de que só seria definido quem assumiria os

papéis depois de muita experimentação.

A idéia de que o personagem escolhe o ator e não o ator a personagem, é um

princípio dessa forma de trabalho, chamada de “curingagem”. Em um contexto em que

não se está discutindo técnicas de interpretação, mas a realização de uma montagem que

possibilite o contato do grupo com o fazer teatral, o processo é conduzido de tal forma

que todos possam viver todos os personagens ao menos uma vez.

Dessa forma, todos os integrantes do processo têm a oportunidade de realizar

improvisações de acordo com as situações vividas por vários personagens, e assim

encontrar pontos de contato entre suas características pessoais e as características das

personagens.

A qualidade com que essa identificação se desenvolvia, seja por prazer em

vivenciar determinadas situações, seja por interesse em relação ao personagem, resultou

na escolha definitiva da distribuição dos papéis, em geral feita a partir de um debate

entre os integrantes do grupo e o diretor.

Não era incomum que possíveis trocas na distribuição dos personagens gerassem

conflitos: quando se improvisa um personagem por um certo tempo, consolida-se um

vínculo com as descobertas que ele possibilitou, com o fato de já haver decorado

algumas falas, enfim, com a criação realizada a partir dele. Todavia esta opção pela

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indefinição criava um olhar especial para o trabalho dos outros, uma vez que, a qualquer

instante, poderia chegar sua vez de improvisar outro personagem.

Muitas vezes, as trocas eram realizadas pela direção com o intuito de despertar

do marasmo as participantes que se acomodavam em seus papéis, abandonando a

criação e se apegando a uma repetição desinteressante de propostas para o personagem.

Outras vezes, as trocas eram feitas como discreto pedido de atenção ao trabalho para as

integrantes menos empenhadas.

Assim, antes de cada improvisação, definia-se quem seria o responsável pela

leitura de cada personagem e, sentados em círculo, líamos as cenas em grupo. Depois,

as cenas eram esquematizadas verbalmente em uma seqüência de ações (era solicitado a

alguém que relatasse o que acontecia no texto), e então partíamos para a improvisação.

Durante a realização das improvisações, o desafio inicial não era o de acertar a

ordem das falas do texto ou dizê-lo com as palavras escritas pelo autor. O principal

objetivo era realizar a cena até o fim, portanto o desafio estava em criar a seqüência de

ações cênicas que iriam compor o seu desenvolvimento.

O objetivo desse procedimento era possibilitar uma apropriação ativa do texto,

através da prática, do acerto e do erro em cena, e não por meio de leituras ou métodos

de memorização de falas.

Sempre era reafirmada a necessidade de que todos relessem o texto também fora

da oficina. Porém não bastava decorá-lo, pois durante as improvisações, percebia-se o

quão desinteressante era ver o ator apegado a “deixas”, preocupado com o final da fala

que um outro deve dizer.

Essas improvisações também continham outros objetivos além da relação com a

dramaturgia. Elas ampliavam a construção de conceitos da linguagem teatral, como a

necessidade do foco, a relação de parceria e contracenação, a concentração, a

capacidade de situar-se no espaço em relação ao todo da cena e ao público, vencer o

receio de propor novidades e desestabilizar o resto do grupo e, por conseqüência, obter a

prontidão necessária para responder a propostas dos companheiros durante o jogo.

Construíamos toda segunda-feira um cenário improvisado, dinâmico, feito de

colchões velhos, placas de madeira, um púlpito, um sofá estragado e muitas caixas de

papelão e de madeira, na tentativa de compor um ambiente que remetesse a uma série de

pequenas moradias improvisadas em um canto sujo qualquer.

Às sextas-feiras o ambiente era desmontado para que os cultos das Igrejas

Católica, Universal do Reino de Deus e Renascer em Cristo fossem realizados durante

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os finais de semana. A única coisa que permanecia no local era o púlpito, que servia a

Deus e ao teatro com a mesma resignação: além de ser usado pelos pastores e padres,

era o local em que o ator convidado Sérgio Oliveira, improvisando o personagem

Berrão, simulava o ato de pesar o resultado do trabalho das catadoras de papel.

Os limites relativos ao trabalho corporal apareciam na falta de disponibilidade

que elas dispensavam às improvisações: o tempo era curto, o que impossibilitava

propostas de aquecimento físico, inclusive a partir de brincadeiras simples como pega-

pega, uma vez que elas não se entregavam ao espírito lúdico com facilidade.

Durante os ensaios, ficavam evidentes as dificuldades surgidas cada vez que as

participantes eram expostas a situações que exigiam um mínimo de contato físico.

Nascia um senso de autopreservação cuja conseqüência mais grave acabava sendo a

morte da proposta de jogo que visava possibilitar uma ampliação do contato entre elas.

Era a constatação prática de que o modelo prisional constrói o que Foucault

denomina de “corpos dóceis” (Foucault, 1987: 125): os horários determinados, o

modelo de obediência a que os internos são submetidos, a aniquilação dos impulsos

individuais para melhor adequação às normas mantidas por vigilância constante, tudo

isso resulta em uma reestruturação daquilo que se demonstra fisicamente, gerando um

tipo de consciência que aniquila a espontaneidade e impossibilita a expressão de gestos

e pensamentos.

Os embates físicos propostos pelas situações encontradas no texto foram pouco a

pouco rompendo algumas dessas barreiras. Dentro de certos limites, esse contato entre

as integrantes do grupo foi sendo construído, contextualizado pelas exigências do

próprio texto. Isso validava, para as integrantes, propostas de jogos que conduzissem à

ampliação do contato físico entre os atores. Aos olhos das integrantes, não se tratava

mais de um “jogar por jogar”, reclamação que elas faziam em relação aos primeiros

meses de processo. O que acontecia agora tinha sentido, era norteado pelo texto e uma

necessidade para a realização com qualidade da encenação.

Um dos momentos mais surpreendentes aconteceu durante um jogo entre uma

atriz presa e Sérgio, que deviam simular um embate de forças opostas enquanto diziam

palavras aleatórias do texto.

O jogo não acontecia, principalmente porque a atriz não conseguia falar,

preocupada que estava em acertar o texto. Em determinado momento, quando foi

solicitado a ela que dissesse o que lhe viesse na cabeça, ela começou a expressar trechos

de sua própria fala. Em certo ponto, ela diz um palavrão e abandona a improvisação por

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um instante, para expressar sua surpresa. Ela olha para a platéia e sussurra: “Meu Deus!

Aqui na cadeia eu não posso falar palavrão!”.

Estava ali, diante dos olhos de todos, a dificuldade complexa de compreensão da

preservação da distância entre um jogo de representação e a vida. Da separação confusa,

mas necessária, entre o homem e a máscara, entre teatro e realidade. E é evidente que

construir esse conceito, aparentemente “natural” para os artistas, revela-se um dos

desafios fundamentais para quem se envolve em práticas cênicas com não-profissionais.

No caso do presídio, esta construção do conceito de trabalho dentro do plano

ficcional esbarra na contradição presente entre cena e cadeia, ambas fundidas na

realidade do espaço de ensaio.

Procurava-se a ampliação da entrega ao universo ficcional a fim de se erigir uma

criação baseada na liberdade em relação ao texto e aos parâmetros de comportamento

cotidiano, com o intuito de construir uma autoria grupal a partir da prática cênica sobre

o texto. No entanto, a todo momento éramos relembrados das fronteiras impostas pela

prisão, não apenas com relação às limitações práticas que a instituição pregava através

de suas regras, mas também pelo próprio código de conduta construído nos subterrâneos

das relações entre as próprias presas.

Assim, era preciso lidar com uma série de imposições criadas pela instituição

penal, que chegavam até nós de forma declarada, em solicitações explícitas, ou de

maneira escusa, através de “recadinhos” ou atitudes grosseiras por parte de alguns

funcionários, que devíamos interpretar para desvelar seus significados, lidar com eles e

garantir a continuidade do processo.

Tínhamos também de lidar com as limitações instauradas pelas próprias presas,

sempre atentas a não ferir sua imagem junto às outras internas, caso o teatro precisasse

questionar, muitas vezes sem essa intenção, alguma norma muito específica do código

ético arraigado ao seu cotidiano.

Os palavrões do texto seriam também os responsáveis pela primeira reclamação

da direção do presídio com relação ao nosso trabalho. E eles revelariam também que

construir a noção de ficção era mais fácil para as presas, do que para a própria diretora

da unidade, pois até a estréia do espetáculo esta fazia questão de negar que cada

palavrão estava perfeitamente contextualizado no universo ficcional proposto por Plínio

Marcos.

Vinte mulheres presas participaram do processo, mas apenas dez chegaram até a

estréia. Dez sobreviventes. Das outras dez, três “pagaram sua dívida com a sociedade” e

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recuperaram sua liberdade; três foram transferidas e as outras quatro abandonaram o

processo em diferentes estágios de seu desenvolvimento. Todas elas marcaram o

trabalho e suas contribuições permaneceram no resultado final, graças à continuidade de

uma linha de criação garantida pela “curingagem”.

Até agosto, participou também dos ensaios Petronilha Lúcia Flora da Silveira, na

época a Chefe da Seção de Educação, uma funcionária do presídio. Sua participação foi

importante não apenas por sua entrega aos desafios do fazer teatral, mas porque

simbolizava um “desvio” ético em relação a uma norma instaurada nos códigos de

conduta de um funcionário de presídio: a de sempre zelar pela clareza formal da

distância entre as atividades destinadas aos presidiários e aquelas realizadas pela equipe

dirigente.

Tratava-se de um ato transgressor, estabelecendo uma nova perspectiva entre as

instâncias da hierarquia penitenciária. Símbolo ou não de novos tempos, o fato é que a

responsável pela Seção de Educação esteve ali, realizando uma atividade ao lado das

presidiárias para aprender junto com elas, e não para vigiá-las, medi-las, controlá-las.

Um grupo composto basicamente por mulheres entre vinte e trinta e cinco anos

de idade, das quais eu não sabia no início que delitos haviam cometido, há quanto

tempo estavam presas ou quanto ainda lhes restava de pena para cumprir. Assuntos que

não costumam ser abordados diretamente. Mas pouco a pouco, a confiança que

depositavam no trabalho ia abrindo brechas para que fossem desvelados seus anseios, os

atos que resultaram no aprisionamento, suas opiniões sobre a vida que levavam.

As próprias condições do trabalho teatral questionador acabavam também por

levar a discussões e desabafos reveladores da situação atual de suas vidas e das

condições anteriores ao encarceramento.

3.3.2 Regras

Ao longo de todo o processo que culminou com a estréia de Mulheres de Papel,

merece destaque, no tipo de condução orientada por Jorge Spínola, uma ação que residia

nos “subterrâneos” de nossos ensaios.

“Subterrâneos” pois, em uma oficina denominada Oficina de Montagem Teatral,

o que está em evidência é a criação de um espetáculo teatral. Esse é o objetivo principal

da reunião, em torno do diretor, de todas as presas que atuaram na encenação.

O que está oculto, portanto na zona subterrânea, é o processo a construção de um

contrato de grupo. Podemos definir um contrato de grupo como uma série de acordos

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coletivos decididos entre os integrantes do processo com o intuito de realizar um projeto

em conjunto. Um contrato está comumente associado ao universo das leis e é

responsável por estabelecer as regras, os direitos e deveres das partes envolvidas nas

situações regulamentadas por ele.

No caso de determinadas produções teatrais profissionais, um contrato é

assinado entre artistas e produtores a fim de regulamentar as bases do trabalho artístico

a ser desenvolvido. Ele explicita um regime de trabalho, valores a serem pagos e todas

as condições que delimitam o vínculo entre artista e a produção artística, estabelecendo

critérios que, não sendo cumpridos por qualquer das partes envolvidas, contratante ou

contratado, resultam em penalidades pré-estabelecidas.

Por outro lado, em um processo teatral vinculado a propostas pedagógicas, e nas

condições específicas de uma prática realizada dentro de uma prisão, promover um

regime de contratação nos moldes descritos anteriormente seria a aniquilação de um

processo particularmente importante.

Jean Piaget (1896-1980), em O Juízo Moral na Criança (Piaget, 1994),

apresentou bases científicas para a compreensão da construção do conceito de regras

pelos homens. Trata-se do único estudo sobre moral produzido por ele em toda sua

trajetória como estudioso do desenvolvimento da inteligência humana, e é ainda hoje

uma referência essencial sobre o assunto.

Sua abordagem inaugurou a idéia de que há um processo de atribuição de

sentidos, pelo homem, à prática das regras. De acordo com suas hipóteses, essa relação

entre prática e consciência das regras caminha no sentido da conquista da autonomia.

No que se refere à prática das regras, ele constatou a presença de quatro estágios,

sendo o primeiro aquele em que as regras praticamente não produzem efeitos sobre a

criança (motor e individual), passando a seguir para uma fase em que elas já se fazem

notar, porém não são compreendidas em termos sociais (egocêntrico).

O terceiro (cooperação) já revela indícios de uma preocupação em uniformizar

as regras que norteiam o jogo coletivo, preocupação esta que leva à consolidação do

quarto estágio (codificação) em que elas se tornam patrimônio do grupo, estabelecendo

critérios uniformes a todos os jogadores.

A evolução da prática das regras encontra desenvolvimento equivalente nos

estágios de aperfeiçoamento de sua consciência: anomia (ausência da consciência sobre

as regras), heteronomia (obediência a regras por meio da coerção ou por respeito a sua

origem “adulta” ou “mística”) e autonomia (consciência da prática das regras).

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Piaget constatou que, por volta dos dez anos de idade, um indivíduo já começa a

sinalizar a presença de uma moral autônoma, ou seja, a regra passa por uma elaboração

consciente, e a decisão de respeitá-la ou transformá-la ganha uma intencionalidade

subjetiva. Assim, o respeito às regras estaria vinculado a uma construção pessoal de

sentidos pela manutenção desse código de leis, que possui sempre uma reverberação

coletiva. No momento em que as crianças começam a se submeter verdadeiramente às regras e praticá-

las segundo uma cooperação real, formam uma concepção nova da regra: pode-se mudá-las, com a

condição de haver entendimento, porque a verdade da regra não está na tradição, mas no acordo mútuo

e na reciprocidade (Piaget, 1994: 82)

Autonomia é um conceito que nasce em oposição à heteronomia, obediência a

regras por coerção. O homem autônomo é aquele que segue as regras por consciência de

seu significado e sua importância para o coletivo, e está disposto a alterá-las sempre que

as considerar inúteis ou incompletas16.

Assim, autonomia não é um conceito que se confunde com individualismo, pois

está preocupado com a reverberação de opiniões pessoais na organização coletiva. É por

isso que Piaget afirma que a democracia é o sistema político ligado à idéia de

autonomia, enquanto o autoritarismo está em sintonia com a heteronomia.

Durante nossos ensaios na PFT, e na medida em que os integrantes do grupo iam

estabelecendo importantes vínculos com aquele processo, foi se tornando cada vez mais

essencial a consolidação de um contrato erigido em comum acordo e respeitado

mutuamente por todos os envolvidos.

16 A noção elaborada por Piaget, de que a moral é um processo de construção dinâmico, oriundo da relação entre a subjetividade e o próprio exercício de manutenção da prática das regras, seria retomada, na década de setenta, pelo psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg (1927-1987). Kohlberg realizou suas pesquisas sobretudo com adultos. A partir delas, definiu seis estágios, dentro de três grandes níveis. Dentro do nível pré-convencional, o estágio 1, quando a punição é o parâmetro para a moralidade de um ato, ou seja, se não há punição, o ato é válido, e o estágio 2, quando a satisfação de necessidades pessoais (hedonismo) é o parâmetro. No nível convencional, há o estágio 3, quando a moralidade de um ato está vinculada à aprovação dos outros de forma estereotipada. No estágio 4, um ato é avaliado moralmente em relação aos códigos legais e para a manutenção da ordem social, sendo este o estágio mais freqüente entre os adultos. Por fim, o nível pós-convencional, dentro do qual estão inseridos os estágios 5, quando um ato é moralmente avaliado não só por estar de acordo com as leis, pois há aqui a compreensão de que as leis podem ser injustas e devem ser mudadas por meios democráticos, e o estágio 6, quando “o indivíduo reconhece os princípios morais universais da consciência individual e age de acordo com eles. Se as leis injustas não puderem ser modificadas pelos canais democráticos legais, o indivíduo ainda assim resiste às leis injustas. É a moralidade da desobediência civil, dos mártires e revolucionários pacifistas, e de todos aqueles que permanecem fiéis a seus princípios, em vez de se conformarem com o poder estabelecido e com a autoridade. Jesus Cristo, Gandhi, Martin Luther King são exemplos dados por Kohlberg de pensamento nesse estágio”(BIAGGIO, 2002: 27).

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Na verdade, uma espécie de pré-contrato existia desde o momento em que os

encontros tiveram início. Nos cartazes em que a oficina era divulgada já havia um

horário estabelecido, os dias da semana em que os encontros aconteceriam, enfim,

existiam elementos que sinalizavam a presença de algumas regras.

Mas isso não significa muita coisa, pois a validade de uma regra se constrói no

sentido a ela atribuído por aqueles que lhe estão sujeitos. E foi por investir na

construção de significados para o contrato de grupo, valorizando-o perante o esforço

coletivo de realizar um espetáculo teatral, que o processo de Mulheres de Papel nos

remete às teorias do juízo moral propostas por Piaget.

A cadeia estabelece com o indivíduo encarcerado uma relação essencialmente

heterônoma, se é que podemos chamar isso de relação. Isso porque ela é aparelho

disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos dos indivíduos, seu

treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas

disposições; a prisão, muito mais do que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa

certa especialização, é ‘onidisciplinar’. Além disso a prisão é sem exterior nem lacuna; não se

interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser

ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus

mecanismos internos de repressão e de castigo: disciplina despótica. Leva à mais forte intensidade todos

os processos que encontramos nos outros dispositivos de disciplina. Ela tem que ser a maquinaria mais

potente para impor uma nova forma ao indivíduo pervertido; seu modo de ação é a coação de uma

educação total (Foucault, 2004: 199).

Nas palavras de Foucault, a síntese das ações de um presídio sobre os

condenados. Nesse ambiente, puramente disciplinar, o respeito às regras é obtido

através da coerção e do medo. A obediência é fruto da reafirmação exaustiva dos

castigos e da vigilância onipresente.

Mas se a heteronomia é marca da relação entre o sistema penal e seus apenados,

esse é também o tipo de relação estabelecida pelos presos entre si. É a força bruta que

faz valer as leis próprias do cotidiano dos presos entre si.

Essa lógica está arraigada em relações que constituem uma rotina permeada por

medo e violência, onde as infrações são punidas com a própria vida daquele que não

seguiu o “proceder”.

Se nos remetermos novamente a Piaget, recordaremos que a heteronomia está

ligada ao egocentrismo, estágio em que a prática das regras está pouco ligada à

subjetividade. A obediência acontece por medo da punição, e o indivíduo não é capaz de

se perceber como modificador das leis, simplesmente porque a relação que estabelece

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com elas não o impele a criticá-las. Permanece alheio aos processos que regem as

normas a que está submetido e, dessa forma, está praticamente condenado a acatá-las,

por mais injustas que sejam.

A cadeia quer indivíduos com esse comportamento. Do contrário, ela não seria o

que é, um centro de vigilância e manutenção de sua ordem interna conquistada através

de castigos, ameaças e alijamento de privilégios.

Mas a função da prisão, ao menos a explicitada pelos seus dirigentes, é a

ressocialização, sendo considerado ressocializado aquele que demonstra bom

comportamento, que é obediente.

As noções de juízo moral lançadas por Piaget provam que almejar a obediência é

muito pouco. Principalmente quando ela é compulsória, conquistada a punições

constantes.

Quem, em liberdade, está sujeito a tanta vigilância? Quem, em sociedade, está

submetido a tantas normas e a tanta força bruta quanto um indivíduo encarcerado? Ouso

responder que ninguém.

E faço essas questões porque a cadeia lida com infratores da lei. São homens e

mulheres condenados e presos por infringirem leis e regras importantes para a

sociedade. E eles passam muito tempo atrás das grades sem refletir sobre isso: leis e

regras.

Essas considerações vêem à tona no momento em que é preciso abordar o

processo de Mulheres de Papel em um de seus pontos mais fascinantes: a partir do

desafio coletivo de construção de um espetáculo teatral, Jorge Spínola realizou um

contato entre as atrizes e o difícil processo de enfrentarem a lei, agora não como réus,

mas como deliberadoras do próprio contrato de trabalho.

Esse debate esteve presente em muitos momentos e afirmo que foi essencial

inclusive para as conquistas artísticas do grupo. Pois sem esses debates, tudo indica que

a autoria das atrizes em relação ao espetáculo teria sido de outra ordem.

Piaget vincula a conquista da autonomia com o momento em que o indivíduo,

deixa de se relacionar com elas de forma egocêntrica e passa a se perceber como

propositor e modificador das leis, desde que estabelecidas em acordos mútuos.

A regra deixa de ter um valor em si e passa a ser alvo de discussão. Nessa

relação, o egocentrismo perde espaço, pois o indivíduo passa a respeitar não mais a

regra pela regra, mas a regra de acordo com as necessidades consentidas em parceria. O

indivíduo não está mais apenas submetido às leis, ele é responsável por elas.

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Essas idéias de Piaget não eram uma referência de Jorge. Mas elas estabeleciam

conexões evidentes com sua prática, e isso está relacionado ao vínculo profundo de sua

formação às idéias de Paulo Freire.

O pedagogo brasileiro, como visto no capítulo 1, é referência principal do

projeto pedagógico da FUNAP. A filosofia de Freire vincula educação a um projeto de

formação conscientizadora do homem, inserindo-o em um contexto histórico e político

para, com isso, prover-lhe a conquista da autonomia. Somente os seres que podem refletir sobre sua própria limitação são capazes de libertar-se

desde, porém, que sua reflexão não se perca numa vaguidade descomprometida, mas se dê no exercício

da ação transformadora da realidade condicionante. Dessa forma, consciência de e ação sobre a

realidade são inseparáveis constituintes do ato transformador pelo qual homens e mulheres se fazem

seres de relação. A prática consciente dos seres humanos, envolvendo reflexão, intencionalidade,

temporalidade e transcendência, é diferente dos meros contatos dos animais com o mundo. (Freire,

1987: 66)

No caso específico de um processo teatral, o vínculo entre reflexão e ação pode

ser substituído por uma relação autoritária entre um diretor e seus atores. Neste caso,

uma proposta que deveria ser de construção de saberes artísticos, portanto de

conscientização sobre a prática teatral, acabaria se transformando em uma relação de

subserviência, em que os atores apenas realizam o que lhes é solicitado, sem vínculo

real com a criação encenada.

Um trabalho deste tipo estaria distante de qualquer referência aqui citada, Piaget

ou Freire. Não estabelece relações passíveis de conscientização, não estimula a

construção de saberes e, portanto, priva os educandos de emitir opiniões, reduzindo-os a

seres que obedecem. Não são estimulados a construírem sua autonomia e, não sendo

considerados dotados de idéias e referências sobre a prática que realizam, não podem

propor nenhuma mudança, nenhum aperfeiçoamento, nenhuma crítica.

Nosso processo era conduzido em outros moldes. Jorge demonstrava saber que o

resultado de um espetáculo em cena dependia do quanto o grupo se considerava autor

daquela criação. Para isso, o grupo precisava expressar suas idéias e opiniões. Precisava

vê-las transformadas em cenas testadas e praticadas, avaliadas pelos outros

componentes, reensaiadas, reencenadas e, por fim, definitivamente inseridas ao

espetáculo.

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O espaço de discussão era materializado em nossas rodas. A roda era o espaço

da palavra: todos eram chamados a contribuir, com opiniões e sugestões, nos temas e

problemas que emergiam dos debates.

Podiam ser solicitadas por qualquer um dos integrantes do trabalho, mas

normalmente aconteciam no início e antes do encerramento de cada encontro, por

proposição do diretor.

Era comum iniciarmos debatendo a cena recém-realizada. Pouco a pouco, a

discussão tomava dinâmica própria, de acordo com as necessidades artísticas e

estruturais do grupo.

A roda se transformou em um espaço importante daquele coletivo. Evitava que

críticas parecessem ofensivas a quem eram dirigidas, pois o que era dito passava a ser

um patrimônio do grupo, e não um boato sem autoria.

Instituiu uma rotina de troca de idéias e garantia repercussão para as sugestões e

opiniões trazidas por qualquer um dos integrantes. Dessa forma, validava a participação

no debate, o que se traduzia em respeito para com os diferentes pontos de vista

explicitados.

A roda foi, para grande parte dos integrantes, responsável pela construção de

uma atitude de atenção pelo que era dito e instauradora de um exercício de reflexão

coletiva que poucas pessoas, mesmo fora da prisão, estão acostumadas a enfrentar. Dela

nasceram muitas idéias e sugestões que, em ação, deram solidez ao espetáculo e

construíram um ambiente de respeito e carinho daquele grupo pelo seu próprio trabalho.

Considerando a duração do processo, nove meses até as apresentações, era

normal que de tempos em tempos surgisse um afrouxamento nos princípios que

estabeleciam nosso contrato.

Atrasos e faltas freqüentes de algumas integrantes desestimulavam aquelas que

chegavam no horário e ficavam esperando. Além disso, entre os meses de agosto e

setembro daquele ano de 2002 houve uma série de “baixas” entre as participantes:

houve a transferência de algumas delas para outras penitenciárias e a conclusão do

cumprimento da pena de uma das mais ativas participantes do projeto, que não obteve

permissão para continuar o trabalho, a despeito de seu interesse.

As integrantes ainda tentavam trazer outras companheiras, mas isso não dava

resultados, pois as novas participantes não se envolviam com o trabalho. Uma das

razões para que isso acontecesse certamente está na ausência do mesmo tipo de vínculo

construído pelas atrizes durante tantos meses de ensaio.

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Muito se discutiu sobre a importância de se evitar os atrasos, mas eles sempre

aconteciam, sobretudo em dias “especiais”: uma vez por mês era o “dia de pagamento”,

e elas tinham que pagar ou receber as dívidas adquiridas com outras presas.

Outro dia problemático para os ensaios eram as segundas-feiras. Depois da visita

no domingo, elas estavam visivelmente mais sensíveis, angustiadas pela saudade e pelas

lembranças do mundo com o qual não lhes era permitido manter contato.

Era hora de escutar suas reclamações, compreender as dificuldades que elas

criavam para iniciar o trabalho, mas evitando que sessões de terapia de grupo tomassem

conta do processo. Apesar da relevância que atribuíamos a seus desabafos e reflexões,

muitas vezes tentávamos apresentar a elas outras maneiras de enfrentarem seus

problemas.

A lista de inscrições para a oficina sempre esteve à disposição de Jorge. Ele

poderia pedir para que os agentes trouxessem as integrantes inscritas nas datas e

horários por ele estipulado. Seria o fim do problema com atrasos. E para que ninguém

abandonasse os ensaios, bastaria registrar o ocorrido aos laudos das presas, que

provavelmente permaneceriam por medo das possíveis interpretações de tal fato.

Ele poderia desrespeitar o tempo necessário para que cada participante

construísse vínculos com a proposta criadora, e simplesmente propor que se

memorizassem as falas o mais rápido possível, passar-lhes a “marcação” das cenas e

estrear o quanto antes.

No entanto, o processo era conduzido em outros parâmetros. Havia a obrigação

com a montagem, mas isso não nos impediu de estimular discussões aparentemente

exteriores ao resultado teatral, mas surgidas da necessidade de elaboração de um

contrato de grupo.

Um contrato essencial, pois era necessária uma consciência da especificidade

territorial dos ensaios teatrais dentro do cotidiano acachapante da prisão. Era preciso

compreender novas bases de convivência, que não estariam mais submetidas a um

controle coercitivo externo, mas estariam reguladas pela manutenção e necessidade de

sua preservação pelo próprio grupo.

Em um espaço completamente mantido pelo poder heterônomo, o teatro

procurava funcionar através de princípios de autonomia e de gestão participativa. Tarefa

da qual íamos tomando consciência aos poucos, enfrentando a hostilidade de quem

preferia simplesmente obedecer e considerava mais eficiente evitar o debate.

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Ao mesmo tempo em que ocorriam os desafios instaurados para a realização de

um objetivo comum, o de montar uma peça, acontecia também um encontro entre as

atrizes e sua própria capacidade de tomar decisões coletivas, capacidade aniquilada pelo

contexto penal em que estavam inseridas.

Elas encontravam, nos momentos destinados à “Oficina de Montagem Teatral”,

um espaço onde suas opiniões seriam levadas em conta, pois eram necessárias para a

qualidade do resultado final do processo. Idéias eram estimuladas, alterações de

horários e datas de ensaio eram avaliadas, problemas de ordem pessoal que produziam

efeitos na rotina do grupo deveriam ser expostos para todos, e não mais só para o Jorge,

o que evitava desconfianças de favorecimento.

Essa maneira de compreender, dentro do processo, o valor da prática diária de

um posicionamento contra tudo aquilo que desfavorecesse o trabalho, encontrava o seu

oposto em todos os outros tipos de relação consagrados pela cadeia.

Tínhamos uma noção muito clara do alcance de nossa ação: discussão e

tratamento sem distinções eram princípios dentro do espaço promovido pelo teatro. Fora

dele, ainda era preciso obedecer.

Isso também foi um princípio acordado por todos nós: envolvermo-nos o

mínimo possível em discussões com funcionários para evitar qualquer atitude passível

de punição, pois a ausência de algum integrante comprometia o desenvolvimento do

ensaio.

3.3.3 A estréia

Quando a primeira apresentação aconteceu, para um público de cem presas,

durante a segunda semana de dezembro, um alívio inspirador tomou conta do grupo.

No início de outubro, uma série de problemas de diferentes origens havia

ameaçado a continuidade do processo, forçando o grupo a renovar seu posicionamento

em relação à dedicação ao teatro. Isso aconteceu porque não poderíamos mais

considerar natural que, tão próximos da estréia, ainda fosse possível abandonar o

processo, como haviam feito duas integrantes.

A relação com a unidade tornava-se cada vez mais delicada, principalmente

quando agentes encontraram, durante uma inspeção, roupas diferentes do uniforme da

prisão. Eram figurinos usados em nossos ensaios.

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Havíamos reparado que os botões da maioria das camisas e detalhes como laços

ou lantejoulas estavam sumindo. Mas não nos preocupávamos em contar o número de

peças de roupa ou trancá-las em um baú, como passou a ser feito .

Tranqüilidade é uma atitude que não funciona no presídio. A direção foi muito

clara e avisou que aquele fato era motivo suficiente para encerrar a presença do teatro

na unidade.

Jorge pediu então um posicionamento sincero de cada integrante em relação a

seu interesse em continuar até o final. Foi a primeira vez que vi aquelas mulheres

debaterem com clareza as razões que as obrigavam a faltar e chegar atrasadas. Não

estavam inventando desculpas; posicionavam-se e procuravam fazer valer suas

motivações, negociando com todas as pessoas do grupo. O tom da discussão não era de

troca de acusações: era um debate sobre o sentido de continuar lutando por aquela

experiência, caso se chegasse à conclusão de que as razões das ausências e atrasos eram

mais importantes.

Dessa conversa, algumas frases anotadas em meu diário de bordo: “Quando eu

cheguei aqui, teatro era terapia. Hoje é compromisso”; “Hoje eu não quero partir pra

briga, eu quero escutar primeiro”; “Eu não vou pagar mico, por isso é bom assumir a

responsabilidade com a gente!”.

Depois desse dia, muitas mudanças aconteceram, principalmente porque fomos

obrigados a mudar o espaço de nossos ensaios. A capela, onde os ensaios até então

aconteciam, seria transformada em uma fábrica. Foi-nos oferecido um pátio de outro

pavilhão. Era um espaço enorme, muito diferente daquele a que estávamos habituados.

Ele evocava um canto abandonado sob um viaduto, o que fazia sentido para o

espetáculo.

Isso nos obrigou a ampliar a quantidade de dias e o horário dos ensaios,

inclusive para nos dedicarmos à construção e manutenção dos figurinos e do cenário,

atividades nas quais participavam todos os integrantes do processo.

Com a ampliação do tempo e a proximidade da estréia, dispúnhamos de um

tempo maior para nossas rodas. Não havia mais a pressa em sair da conversa antes de

tê-la terminado, pois a direção do presídio permitiu que as atrizes voltassem para a cela

depois do horário da tranca, que era às 19 horas.

As rodas passaram a comportar temas ligados às cenas, dúvidas sobre a nova

configuração e o espaço. Não concentravam mais discussões de interesse puramente

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pessoal; não eram mais o momento de expor dificuldades que nada tinham a ver com o

trabalho do grupo.

Era o momento aberto às sugestões de todos os integrantes com relação a nossos

encontros para compartilharmos idéias sobre a própria prática e percepção sobre o

trabalho, sem que houvesse desconfiança de que se pretendia desvalorizar as idéias dos

outros.

Foi ficando claro que ali estava acontecendo um processo verdadeiramente

especial para as pessoas envolvidas em Mulheres de Papel. A consciência do valor

atribuído por cada integrante em relação ao coletivo, aprendendo a se posicionar diante

das questões abarcadas pelo processo, no âmbito da criação cênica e das questões

estruturais dos encontros, era uma conquista evidente para aquelas mulheres.

Tudo isso transparecia no resultado cênico, pois quem assistiu às apresentações

viu um grupo integrado e emocionado com a possibilidade de mostrar um trabalho do

qual se orgulhava, porque simbolizava uma vitória ante as dificuldades provocadas pelo

presídio, e pelas próprias integrantes, antes de decidirem levar o processo até o fim.

Durante nossa terceira apresentação, uma das atrizes caiu e aparentemente havia

torcido o pé. Mesmo assim, realizou o espetáculo até o fim. Seu pé estava muito

inchado, e ela foi encaminhada até a enfermaria do presídio.

No dia seguinte, ela ainda não havia sido atendida. Diante daquela situação, as

apresentações foram canceladas, para forçar a unidade a levá-la a um pronto-socorro.

Ela estava com o pé quebrado.

Com o cancelamento das apresentações, em meados de dezembro, não sabíamos

quais as perspectivas de continuidade para o projeto. As respostas viriam apenas no ano

seguinte, quando a FUNAP decidiu dar um crédito até então inédito para uma atividade

cultural em presídios.

3.4 Mulheres de Papel em 2003 O Sistema Penitenciário não tem uma relação positiva com o teatro. Observa-se um certo

preconceito negativo em relação ao próprio termo, provavelmente devido a experiências que não

resultaram satisfatórias. Este preconceito produz dificuldades na implantação e na ampliação de

atividades ligadas ao teatro. O caráter de diversão também não é muito bem visto. O Estabelecimento

serve ao cumprimento da pena, o preso deve ser reeducado, os meios importam menos que o fim (Rusche, 1997: 21).

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Esse trecho comprova a má vontade enraizada no sistema penitenciário com

relação a atividades menos formais, que procurem estabelecer uma relação diferenciada

com os presos. A disciplina devem estender seus braços por todas as instâncias do

regime prisional. Portanto, criar um ambiente propiciador de criação artística constituía-

se em um desafio muito grande.

Jorge havia dado demonstrações de que isso era possível, e a repercussão

positiva atingida pelas três apresentações de Mulheres de Papel possibilitou-lhe propor

uma maneira diferenciada de organização da oficina teatral dentro da PFT.

Aquele era seu quarto espetáculo, construído com o apoio de alguns gerentes do

setor de Educação da FUNAP. Assim, ele manteve o Projeto Teatro nas Prisões, na

verdade uma única oficina de teatro, que recebia oficialmente o título de Oficina de

Montagem de Espetáculo.

Isso significava que, na ausência de um projeto amplo relacionado à presença de

oficinas culturais em prisões, a FUNAP permitia que Jorge trabalhasse como professor

de teatro, ao invés de monitor de educação básica, cargo para o qual era contratado.

Dessa forma a Fundação criava, ao menos em uma penitenciária, um projeto cênico que,

evidentemente, rendia-lhe grande repercussão quando da estréia do espetáculo.

O desejo de visibilidade era a contrapartida desejada pela FUNAP, uma

realidade muito clara para todos os que batalhavam pela permanência da atuação de

Jorge como diretor teatral dentro de alguma prisão.

Dentro dessa lógica, foi elaborado um projeto que visava a consolidação da

presença da oficina de teatro dentro da PFT, com o intuito de ampliar o vínculo das

presas com o processo, ao mesmo tempo em que garantisse, para a FUNAP, a certeza de

que Mulheres de Papel pudesse ser levado para um congresso que o IBCCRIM

(Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) realizaria no final de setembro de 2003.

As presidiárias receberiam um pagamento equivalente a meio salário mínimo

para estarem vinculadas, durante meio período, ao teatro.

A FUNAP sempre contratou presos para realizar diversos trabalhos dentro de

presídios, sobretudo para cargos em que uma maior penetração junto à população

carcerária ampliasse a repercussão da atividade. Eram cargos ligados às atividades de

organização de eventos culturais e festividades dentro da prisão, apoio aos monitores

educacionais ou aos bibliotecários. Também eram contratados para trabalhar em

fábricas de móveis de propriedade dessa fundação. Mas junto à oficina de teatro, pela

primeira vez, seria instituída uma bolsa-salário como pagamento a uma atividade que

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não tivesse o objetivo de produzir bens materiais ou eventos avaliáveis e pré-

programados.

Seriam doze bolsas, o que significava, para o presídio, doze novos postos de

trabalho. Isso alterava a relação entre a instituição penal e o teatro, pois aceitando as

novas condições do projeto, o presídio também deveria zelar pelas condições de plena

realização. Assim, não poderíamos mais aceitar reclamações comuns no ano anterior, de

que determinados agentes dificultavam o acesso das integrantes aos ensaios, atrasando a

abertura dos portões ou impedindo-as de sair dos pavilhões.

A FUNAP garantiu também, pela primeira vez, um pagamento aos atores que

acompanhariam o processo. Dessa forma, estava criada a categoria do ator-formador,

que receberia uma ajuda de custo, equivalente a pouco mais que um salário mínimo,

para que continuasse a existir, no processo, a presença de profissionais.

Nessas novas condições, os encontros tiveram início em março daquele ano.

Os primeiros ensaios foram realizados em uma das salas de aula. Quando ela

voltou a ser usada pela escola, passamos a nos encontrar em um espaço que dividíamos

com o curso de corte de cabelo. Era um espaço com espelhos e cadeiras típicas de salão

de cabeleireiros, em que não cabíamos todos. Depois de muitas reclamações, fomos

para uma sala muito boa, mas que servia de passagem entre o corredor de acesso ao

pavilhão e as fábricas que nele estavam alocadas.

Isso significava que a todo momento éramos interrompidos para a passagem das

trabalhadoras, para a entrada de matéria-prima ou saída da produção, o que começou a

gerar tensões entre as integrantes do grupo e as outras presas. As atrizes se sentiam

ignoradas no pedido que faziam para que não interrompessem tanto os ensaios. Criou-se

um impasse, pois era óbvio que as outras presas não estavam atrapalhando

propositadamente.

A questão foi resolvida quando o presídio finalmente cedeu um espaço recém-

abandonado por uma confecção. Tratava-se de um salão situado no primeiro andar do

Pavilhão II. Possuía espaço suficiente para a construção de uma arquibancada com 60

lugares para o público. Assim, os ensaios aconteciam no local em que seriam realizadas

as apresentações, garantindo a todos uma familiaridade com o espaço.

Outro fator de preocupações foi a adaptação de algumas das integrantes à nova

realidade. Para as novas integrantes e para aquelas que já haviam participado do

processo no ano anterior e que trabalhavam meio período, a possibilidade de dedicarem-

se somente ao teatro foi recebida com muita alegria. Duas integrantes abriram mão de

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empregos em tempo integral, pelos quais recebiam salário maior, para permanecerem no

grupo de teatro, o que denotava o grau de importância atribuído ao teatro.

Mas uma das mais engajadas, Karla, não podia sair de seu trabalho, pois sua

família dependia do dinheiro que ela enviava todo mês.

Essa questão foi a primeira de muitas polêmicas resolvidas após longos debates

na roda. Ela poderia permanecer no processo, mesmo chegando nos ensaios por volta de

quatro e meia da tarde, enquanto o grupo se encontrava a partir das duas. O

encerramento deveria acontecer às seis horas. Karla não poderia receber a bolsa , que foi

destinada a uma nova integrante.

Naquele momento, a resolução mostrou a compreensão das componentes do

grupo e uma vontade de manter o trabalho sem grandes alterações na distribuição das

personagens, conquistadas ao longo do processo no ano anterior. Mas aos poucos, essa

decisão teria sua contrapartida em termos de organização dos ensaios.

A proposta de “remontagem” de Mulheres de Papel valia-se do conhecimento já

construído em relação à peça. Mas havia um número grande de novas integrantes que

estavam apenas iniciando o processo.

Assim, o trabalho devia ser desafiador para aquelas que já conheciam a peça e,

ao mesmo tempo, devia proporcionar descobertas que instigassem as novas a construir

vínculos com a prática teatral.

Agora, não havia mais como esconder o enredo para gerar debates: a peça já era

patrimônio de uma parte daquele grupo. Isso muitas vezes intimidava as novas

participantes, que não sabiam o que fazer, e limitava a criação das outras, preocupadas

em reproduzir as cenas como já haviam feito.

Esse apego nasceu, de certa forma, com a aceitação das condições necessárias

para que Karla permanecesse no processo. Isso consolidou um vínculo com os antigos

papéis e limitou o surgimento de novas configurações e distribuições de papéis.

A solução encontrada para que o ambiente de trabalho não ficasse reduzido a

uma mera reconstrução do espetáculo anterior foi uma significativa alteração da rotina

do trabalho.

Os encontros seriam divididos em duas partes. A primeira, que não contaria com

a participação da Karla, seria dedicada à curingagem, ou seja, os papéis seriam

distribuídos com o intuito de que cada um “jogasse” com o personagem. Os atores

deveriam improvisar os trechos lidos, com foco na criação de novos pontos de vista

sobre as cenas e as personagens. Todos deveriam estar atentos às propostas de cada um,

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pois a improvisação seria avaliada coletivamente e tudo que se julgasse interessante

deveria ser preservado para a “versão IBCCRIM”.

A “versão IBCCRIM” era ensaiada na segunda parte do ensaio, mais ligada à

criação das personagens definitivas, e na manutenção das cenas elaboradas em consenso

com a direção. Era uma versão ainda em processo, porém com referências mais

elaboradas em termos de utilização espacial e que criava um certo sentido de

“responsabilidade” entre os integrantes do processo.

As atrizes valorizavam o desafio do “passadão”, quando a improvisação não

podia parar. Os erros deveriam ser incorporados, as falhas disfarçadas e, juntos, todos

devíamos preservar a qualidade daquela apresentação simulada. Era uma prévia do

momento da apresentação com o público, onde se comprovaria a qualidade do

envolvimento de cada uma com o teatro.

3.4.1 Com o gravador a postos

A partir do final de julho, a unidade passou a permitir a entrada de um gravador,

que eu utilizava para registrar algumas de nossas conversas e debates. A partir das

gravações pude construir um pequeno panorama do processo desenvolvido, das

questões que ele abarcava, tanto em relação à elaboração das cenas, quanto em relação a

problemas de ordem estrutural.

Em 28 de julho de 2003, debatemos as impressões causadas pelo primeiro ensaio

aberto. Para muitas das integrantes era a primeira vez em que estariam representando

diante de uma platéia alheia ao processo.

É uma transcrição longa, mantida aqui na íntegra com o intuito de se preservar o

clima da discussão, contextualizando as falas dentro da lógica de um debate importante

para o grupo:

Cena 1 (28/07) J- Vocês sentiram a diferença de apresentar para alguém?

L- Muita. Eu senti a responsabilidade de fazer certo, a autocobrança...

J- Autocobrança pra dar conta

M H- O medo de errar..

J (para M)- Você joga, né? Vence os medos, né? Agora quando é com a gente fica ali, sofrendo e fazendo

a gente sofrer. Qual é a diferença? Vou ter que trazer platéia todo dia!(Risos) Só que nem sempre o

processo dentro do teatro é criação na frente de platéia, e o interessante é justamente isso, quando junta

tudo o ator se completa. Então, vocês jogaram muito, a gente tá acostumado a ouvir o som no volume 5,

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aquele dia tava no 13, no 14, no 21... Tava uma insanidade, uma loucura, uma neurose, uma correria, uma

pancadaria que não tinha mais tamanho, todo esse espaço tremia, era meio louco. O desafio agora é a

gente, eu não quero dizer diminuir, é acertar algumas coisas, pra gente começar a ver e não ficar com

aquele monte de maluco ou de louca fazendo o trabalho. Por exemplo, me incomoda ver que toda vez que

a Cícera faz a Nhanha e quando acaba, ela está desgastada, ela tá melada, ela tá tremendo, é louco, quer

dizer, o que a gente pode fazer para ela fazer tudo aquilo com certa sanidade? É o nosso desafio. Como é

que a gente faz pra ligar essa daqui, que durante a semana fica cheia de melindres e naquela hora ligou?

Como é que a gente faz pra perceber que tem momentos em que tudo pára. A vontade de fazer era tão

grande que a gente ficava justificando e explicando o que ia acontecer. Então, olha que louco, eu sempre

peço: vai, fala, joga, improvisa, não pára, e agora eu tô pedindo pra vocês: olha, diminui, a gente não

precisa ir lá no 13, e nem precisa ficar o tempo todo falando, e nem mostrando, porque é horrível quando

o ator começa a mostrar, mostrar que está com dor de cabeça, mostrar que está preocupado com a cena.

Dá pra perceber isso que eu falei?

L- Na sexta feira foi muito claro. Eu gostei particularmente porque todo mundo se mexeu. Não teve uma

que ficou encostada de braços cruzados. E é assim, como eu comentei com a Cícera, é como se a cada

espetáculo, a cada ensaio, a gente tivesse apresentando tudo de novo. Então, parecia uma coisa, a Nhanha

muda as características dela mil vezes se for necessário, se ela tiver que gritar, ela grita, se ela vai rasgar a

blusa, ela vai rasgar a blusa e vai tirar a saia, ela vai tirar o sapato e vai dar, então ela cria, e sexta todo

mundo investiu as últimas moedas, então eu acredito que baseado nisso é que foi ao extremo. Eu mesma

fiquei completamente confusa na hora de entrar como Poquinha e fazer a Maria-Vai, quando a Cícera teve

que entrar como Nhanha. Então ele foi o Coco, o Tião, e foi uma coisa assim, extrema. Tava todo mundo

assim: tem roupa, tem louça, tem chão pra limpar. Então vamos começar: joga o sabão no chão, vai ali

lava uma louça, estende uma roupa, ninguém terminou o que tinha que ser feito, mas todo mundo fez.

C- Eu tava cansada, com falta de ar.

J- Mas você enganou. Ninguém via isso, muito pelo contrário, via uma louca!

C- A hora que eu fui bater no Berrão, eu tava tão cansada que eu pensei assim, eu tenho que ir, eu tenho

que fazer...

J- Então achou o motivo, e às vezes no ensaio, quando a gente fala, qual é o motivo que faz ligar pra

funcionar. Pois na sexta ficou claro: era uma platéia de três pessoas que tínhamos a missão de seduzir pra

ganhar o figurino!

X- Foi legal porque eu contracenei com três Maria-Vai diferentes, mas acho que fui a mesma Noca.

J- Foi louco porque na hora foi muito natural, a outra entrava, saía, sabe aquele negócio de que a

preocupação tem que ser coletiva, quando eu falo não se isola, que o que se faz depende do outro, e vocês

fizeram isso. Então era uma Maria-Vai que não chegava e toda hora quem estava fazendo tinha que sair

pra cuidar do seu personagem. Fazia isso sem mostrar o erro, sem mostrar que estava substituindo, estava

lá parada, do nada começava a falar, entrava, saía. Nesse sentido, foi um grande ensaio, só que agora a

gente já sabe da nossa loucura.

L- Ninguém se preocupou com a platéia, quando entrou no palco eu estava consciente de que tinham três

pessoas na platéia, mas no auge a loucura foi tanta que eu nem sei.

J- Eu acho que foi muito bom mas agora a gente tem que ter mais consciência.

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K- Fazer tudo aquilo com equilíbrio.

J- É. Quando a Karla chegou de lá, foi uma cena histórica, porque ela já veio louca.

M- Ontem eu tava vendo o Faustão e a Nair Belo tava falando do ator que morreu e ela falou sobre

improvisação, e aquilo mexeu comigo. Que ali tinha improvisação, não era tudo texto, que às vezes ela

dava um tapa nele e ele falava assim no ouvido dela: aquele tapa me machucou de verdade, aí ela não

agüentava, começava a rir, improvisava fala na hora.

J- E foi o que vocês fizeram, pois a cena não parou: ou com texto, ou sem texto, a cena não parou.

K- Quem conhece teatro a fundo, eles perceberiam que é um extremo ou achariam que é assim?

J- Eles perceberiam o que é trabalho de ator e o que é surto. Agora essa que é a questão, como é que a

gente faz tudo aquilo mas não estando surtado? Arte tem a ver com consciência do que se está

representando. Ver a platéia, enxergar, estar fazendo seu personagem sempre vendo tudo sem perder o

equilíbrio, ter consciência de tudo que está a sua volta... Consciência. Eu acho que agora é esse o nosso

desafio.

L- A loucura foi tão grande que eu fui tomar café, não tinha, e eu cheguei a tomar café!

Sandra, até então amuada, começa a falar.

S- Tem gente que se aproveita da situação, depois eu que pago o pato, eu que meto a mão, então as mina

faz a fita, e quem tá pagando sou eu. Eu não tô machucando ninguém, certo? Eu tenho meus esculachos

sim, eu dou um tapa, mas eu não machuco ninguém. Elas fazem e eu assumo o erro delas? Elas que têm

que assumir o erro delas. Só porque eu brinco, de vez em quando dou um tapa nelas, eu não tenho que

assumir o erro delas?

J- Quem te feriu?

S- Não, aquele dia, na hora de enquadrar ela, uma pá de gente machucou ela, puxou o cabelo dela, mas

cai sempre nas minhas costas, então eu sou a mais ignorante? Então eu não vou tocar mais, e ninguém me

toca, entendeu professor? Nem sempre foi a Sandra que fez.

J- Isso é normal dentro do nosso processo.

S- Mas as pessoas, elas não estão agüentando as atitudes delas, elas tão fazendo e tão passando pra outra,

porque se eu faço, eu falo. Que nem, eu machuquei ele, eu fiquei até mal, porque eu não gosto de

machucar ninguém, mas foi uma coisa que aconteceu, mas eu assumi. Tem que admitir que bateu. Falam

que eu sou agressiva, tudo, então foi a Sandra...

J- Eu não acho que você seja uma pessoa agressiva, o que a gente tem que ter é clareza nesse processo. A

gente tá ensaiando briga, tá ensaiando tapa, tem hora que pega, que bate, que machuca. Mas a gente não

pode deixar isso cair no pessoal, e nem que machucar vire uma rotina. Se eu ensaio uns tapas, tem hora

que vai pegar mesmo, mas tem hora que fica técnico.

C- Foi sem maldade, eu peguei a garrafa...

S- Mas tem que pegar uma coisa que não machuque.

J- Quer pegar uma garrafa, tá, o personagem tá louco, tá, mas o ator tem que saber que aquilo machuca.

Mas é isso mesmo Sandra, não adianta ficar escondendo o problema, senão você se esconde, deixa de se

generosa com as outras. Temos que tomar cuidado com as cenas de briga!

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A conversa tem início com Jorge destacando a diferença no grau de

envolvimento e concentração apresentado por algumas integrantes que, nos ensaios

diários se conformavam em fazer “figuração”.

Como em Mulheres de Papel a maioria dos atores ficava em cena o tempo todo,

era muito difícil construir a relação entre a ação central da cena e os outros integrantes,

que tendiam a perder contato com o foco.

Esse era um grande problema a ser resolvido durante os ensaios. Como cada um

poderia construir ações e intenções particulares que não disputassem a atenção da

platéia?

A ordem era propor, era dispor-se a errar, e foi isso o que aconteceu de maneira

descontrolada naquele ensaio. Daí o apelo feito pelo Jorge para que conquistássemos

um grau maior de consciência. E essa consciência nasce a partir de uma escuta à opinião

dos outros, acatando os comentários e encarando-os como uma referência útil ao

processo de criação pessoal.

Trata-se de uma postura difícil de se conquistar, e a discussão que encerrou a

roda é um exemplo disso. Sandra começa se explicando, mas só com esforço fomos

compreendendo que ela havia sido machucada. Como essa era uma questão delicada

para ela, pois era ela quem levava fama de machucar as outras, a discussão poderia

resultar inútil para o grupo.

Em momentos como esse, a habilidade para mediar o debate era essencial para

extrair do conflito um tema útil para todos os integrantes, para que a roda fizesse sentido

e esse tipo de questão não passasse a ser resolvido de forma escusa, dentro de códigos

próprios da cadeia. E para que esse sentido fosse atribuído à roda, era necessário que ela

fosse encarada como um espaço justo e essencial para o convívio entre os participantes

do processo.

Cena 2 (29/07) Sandra e Grethel discutem. Grethel está chorando muito, não entendemos o que ela fala por conta de seu

sotaque castelhano, sobretudo porque ela está bem alterada.

J- A Sandra te destratou?

G- Não.

S- Eu falei pra ela que, se a gente vai começar a ensaiar às duas, é pra faxina já estar pronta nessa hora, e

não esperar todo mundo chegar pra começar a faxina. Eu to esperando a menina chegar, eu vi que aqui

está tudo sujo, mas eu não vou pegar a chave pois a faxina não é responsa minha hoje. Eu falei com ela,

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mas ela não entendia. Ninguém ta indo fazer a faxina na hora, o senhor já falou que tem que encher os

sacos com papel, e ninguém ta fazendo nada!

J- Então você não destratou, você fez uma cobrança?

G- Eu não estou aqui pra agüentar nenhuma gracinha, eu sei o que eu tenho que fazer!

J- Tudo bem que ela fez às duas horas, mas outras meninas também já fizeram. Eu acho que aqui a gente

não vai discutir quem está certo ou quem está errado. O que aconteceu foi que a Sandra fez uma

abordagem que magoou a outra. Com a preocupação de garantir o trabalho do grupo, acabou magoando a

Grethel. A Sandra quis adiantar coisas, a outra se sentiu constrangida. O que vale para o crescimento é

que a Sandra tem que melhorar o jeito de chegar nas outras pessoas e a Grethel não tem que se desesperar

diante de qualquer cobrança.

S- Ela é muito sentimental!

J- O trabalho do grupo tem que começar a entender as diferenças! O incidente não merece maiores

comentários do que isso, mas a gente tem que começar a entender mais o outro e perceber que nem todo

mundo pensa do mesmo jeito. A nossa convivência tem que trazer o respeito novamente.

Esse é um exemplo do tipo de questão que assolava nosso cotidiano e que

tomava muito tempo de nossas discussões. Dedicar-se a elas demonstrava um interesse

profundo pela reconstrução de um tipo de relação humana que era muito raro no

ambiente prisional.

Em qualquer outro posto de trabalho, uma discussão entre presas era razão

suficiente para demissão. A disciplina era conquistada através da punição e esses

desentendimentos acabavam resolvidos entre elas nos pavilhões, fazendo valer suas

regras, baseadas também em esquemas de coerção.

Mas ali nós estávamos dispostos a utilizar essas discussões como mote para

questionamentos maiores, avaliando o difícil exercício da convivência. Esses debates

iam, com algum custo, criando novas bases para nosso trabalho, e esperávamos que

essas mudanças originassem outras transformações que elas pudessem carregar para

além do teatro.

Naquele mesmo dia, fomos encarregados de fazer uma pequena avaliação após a

improvisação. Deveríamos apontar aspectos positivos e pontos de fragilidade em nosso

trabalho.

Cena 3 (29/07) L- Eu achei que a Gilozinha e o Coco estão muito próximos.

S- Por que você fica rindo a hora que eu estou me jogando?

X- Eu não sei, eu tenho vontade de rir, aí eu finjo que eu acho que a Gá está achando engraçado.

S- Mas não parece, a gente vê que é você.

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V- E na hora da cena com o Coco. Parece que essa Gá não quer a bonequinha, parece que ela está fora do

ar.

J- Ela quer a bonequinha, ela não quer o Coco!

V- Eu sei disso, mas falta essa vontade de ir pra boneca. Quando você vai pra boneca é que você se

aproxima do Coco. Ela fica muito tempo na viagem interna, percebendo o que acontece em volta, mas

uma hora ela age. É a mesma dificuldade de quando você faz a Noca: quando o foco não estava com

você, era super interno o seu trabalho, mas na hora que você tinha que segurar a cena, não conseguia,

lembra?

A- Eu acho que ainda falta o lance de se ouvir, pois todo mundo já sabe as falas, já sabe a hora de ir, mas

ainda tem muito buraco, porque não está se ouvindo. A gente sabe que é a vez da pessoa falar, olha pra

ela e ela ta lá, viajando. Tem que falar pro outro ouvir. Se a gente se ouve, a gente não atropela as falas. A

gente espera o outro terminar.

M- Eu estava tão preocupada que eu falei a minha fala e a outra da seqüência, eu engoli a fala da Maria-

Vai.

Y- Mas uma coisa que é legal é que agora a Grethel, a Marta, a Maria Helena, a Da Luz estão vindo aqui

pra frente, querem ser ouvidas. Não ficam mais se escondendo lá no fundo.

S- No começo da cena a Grethel começou a rir!!!

V- Isso é falta de concentração.

L- Buraco, branco... Olha, a gente escreveu os positivos: É visível a bronca que o grupo tem da Maria-

Vai. A Bichada e a Poquinha estão mais tranqüilas em relação ao personagem. Não ficaram mais com

frescura de parecer bêbadas e sujas. As intenções estão mais claras. A Maria Helena, Grethel e Marta

pararam de só ficar na figuração. A curingagem deixou elas mais soltas e no caso da Maria Helena ela

parou de ficar tão estereotipada, cheia de frescura. A Marta não fica mais mostrando que não lembra o

texto no palco. A relação entre Gilozinha e Coco está mais bem definida.

V- Eu tinha pensado em trabalhar um pouco mais com o Coco na dele, sem fazer muita coisa. Eu peguei

um pão e ia explorar como era a relação do Coco com o pão e tal. De repente veio a Cícera e tomou o pão

de mim. Eu fiquei com a sensação da miséria muito forte pois eu não tinha o que fazer. Eu sabia que se eu

fosse pra cima eu ia apanhar.

M- Eu observei a cena. Eu vi a hora que ele pegou o pão do chão, depois que ele demorou muito tempo

olhando pra lá e pra cá pra ver se alguém ia ver ele pegando o pão do chão. Eu vi a Gilozinha dando o

bote e a cara de desespero que ele fez.

J- Você viu que está descrevendo a ação toda? Como você conseguiu isso?

M- Porque eu vi?

J- Então, mas viu porque os dois criaram juntos ações e situações. Eles se relacionavam o tempo todo, e

revelavam pra gente toda essa miséria que está sugerida o tempo todo no texto, mas que não está descrito

o que é pra ser feito. E essas ações não atrapalhavam o foco. Isso é muito importante: a gente vê que tudo

está vivo mas ninguém está querendo ser mais que o foco principal. Está se acrescentando no todo, e isso

que é importante. E o que ficou a desejar?

L- A falta de se ouvir; buracos; falta de ritmo; falta de concentração; Bichada e a Poquinha precisam se

desvencilhar uma da outra.

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J- Mas vocês viram hoje como não tem erro no teatro? Você veio e interferiu na cena e ainda não era sua

hora, o Berrão olhou pra você e resolveu! Ele mandou você calar a boca. Imagina se o Sérgio vira e diz

“Não é isso agora!”?

L- Eu tava viajando, eu não sabia qual era última fala da Cícera, aí quando eu vi um intervalo maior entre

as palavras eu me enfiei no meio, sem perceber que a pausa tinha a ver com o que estava rolando em

cena.

MH- Na música é assim, quando a gente está tocando, por exemplo, eu toco um violão e ela toca uma

sanfona. Se ela dá uma falhada lá, eu cubro, senão o público vai ver!

J- Então, você viu? É por isso que na roda a gente não sai falando quem errou e quem não errou, mas

mostrando que tem outras coisas que você pode melhorar, que não é só no decorar o texto e que você vai

descobrindo o fazer.

M- Teve uma hora que eu fiz o contrário. Eu falei uma fala que não era minha e ela repetiu, não

conseguiu passar por cima. Eu estava ansiosa e ela também não ouviu.

J- É por isso que o ator tem que estar ligado o tempo todo, porque quanto mais ele sabe da peça, mais

oportunidade ele tem de consertar sem fugir da peça. Tem ensaios em que a gente pega o texto, erra,

conserta, mas aí o texto volta, e vai, e não anda pra frente, por que aí não tem a clareza da situação. Então

pode até não mostrar o erro, mas a peça não anda. Agora a gente vai passar uma vez no formato

IBCCRIM. Mas com cuidado para não surtar, ficar tudo uma correria, nem deixar a peça lerda e cheia de

buracos. Ontem a gente voltou pro texto, pra dar mais tempo pro Coco, pra Nhanha perceber que às vezes

ela é agressiva muito mais pela força verbal que física.

Essa roda foi muito importante pois baseada em uma proposta de discussão

clara, enriquecida por uma troca de impressões e opiniões maduras por parte do grupo.

A qualidade da discussão comprova o nível de consciência do grupo com relação ao que

interessa ser melhorado e uma capacidade de observar e avaliar as conquistas cênicas

obtidas através dos ensaios.

O grupo constatava o surgimento de uma cumplicidade cênica, criada por

haverem encontrado uma motivação coletiva no interior do texto. Percebiam a

importância de se integrarem à cena, ao invés de se preservarem dela.

Um fator de apreensão muito grande existia em relação ao texto: as atrizes que

participavam do processo desde o ano anterior sabiam-no inteiro, e cobravam das outras

integrantes a memorização das falas. Jorge ressaltava que importante era entender o

contexto em que as falas estavam inseridas, e dispor-se a improvisá-las de acordo com a

situação. Porém havia uma cobrança pela segurança que as “deixas” traziam. Alegava-

se que a fala decorada facilitava a criação de outros aspectos, como a ocupação do

espaço, e isso era melhor para a cena.

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Cena 4 (19/08) J-O que vocês pensam em cena?

C- Eu fiquei com raiva pois o Berrão não me levou pra fábrica.

S- Pra mim foi difícil. Eu sempre fiz a cena de cima e o senhor me colocou aqui pra baixo.

J- Vocês ainda não chegaram onde eu quero. Na hora que eu estou aqui, eu fico pensando no espaço, no

cenário, eu vejo se vocês estão verdadeiras, em um monte de coisas além da cena. E vocês?

C- Eu penso que quando acabar aqui eu tenho que ir pra cela, que raiva!!

R- Eu fico preocupada com os erros, pra ver quem vai salvar a cena.

L- Eu fico preocupada em não rir e com o espaço.

S- Eu fico pensando nos elásticos que eu preciso pra terminar a tiara.

G- Eu trato de me preocupar com o que está acontecendo aqui!

J- Sem nenhuma escapadinha?

G- Eu fico pensando em quem tem que falar e não falar!!

M- Eu fiquei pensando nas coisas pra colocar na bolsa que você trouxe.

Z- Eu penso nos meus namorados. Como que eu vou fazer a Noca? Eu tenho que ser séria, ou vagabunda,

que tipo de roupa, mas às vezes eu penso na cela, nas coisas que eu tenho pra fazer lá, na comida.

X- Eu fico sempre preocupada em criar alguma coisa nova. Eu acredito que eu consigo. Eu pego e faço

pra ver onde dá. Hoje o Berrão tava falando e eu comecei a imitar e zombar dele sem ele ver, eu não sei

se vocês perceberam.

DL- Eu penso nas falas, eu ainda não estou à vontade nesse negócio de improvisação, eu acho que eu vou

fazer tudo errado, aí quando eu vejo já está em outra parte da cena...

L- Eu acho que em época de compra, de paga, eu penso nessas coisas, eu acho difícil pensar em outras

coisas.

Q- Eu penso no lado técnico, da voz, do jeito de andar.

A- Pra mim é difícil esse lance do Tião ver tudo que acontece com ele e não fazer nada.

V- Eu fico preocupado em criar as ações porque o Coco tem pouca fala e ele não entende as coisas que

estão acontecendo, ele vive em um mundo à parte. Ele só começa a ter uma referência quando a menina

chega. E eu às vezes tenho a tendência de sair um pouco fora do meu universo pra cuidar dos outros,

quando eu percebo que tem algum coisa errada acontecendo.

J- Olhando daqui tem horas que a gente vê a pessoa completamente fora.

G- Eu não!! (todo mundo ri)

J- De uma forma ou de outra isso acontece. Às vezes o cara tá tão concentrado no seu personagem que

não cola no todo, e isso é um tipo de ausência, pois não está favorecendo o foco. E o outro problema é a

ausência total. Às vezes é um segundo, mas a gente vê o ator perdendo o personagem. Eu fui dar uma

fala, alguém me atropela, eu quebro!

DL- Eu acho que quando eu comecei estava melhor. O pessoal tava mais preocupado.

J- Oscila, tem horas que a gente dá tudo,tem horas que as pessoas dispersam.

L- Eu acho que no primeiro formato a minha Nhanha está atrapalhando tudo com todo aquele problema

de fala, porque eu não sei o texto.

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J- Mas isso não atrapalha, isso ajuda o processo, porque aí fica todo mundo fica ligado, pois vai ser

inesperado o que você vai fazer.

V- As pessoas não vão ficar esperando as falas prontas, porque você vai improvisar em cima da lógica

desse personagem. As falas não são o personagem! Tem que encontrar a lógica e aí falar dentro disso.

DL- Mas essa Nhanha esqueceu de mim, ela está muito fria. Ela não tem muita cumplicidade comigo, ela

está mais preocupada com a menina.

L- Eu não sei o texto direito, então eu estou indo no que eu já entendi da personagem, que tem a ver com

a menina.

DL- Mas pra eu improvisar você tem que me dar a deixa certa! Você está falando coisa que não tem a ver

com a peça. Na minha opinião pra improvisar tem que dar a deixa certa!

K- Eu tenho extrema dificuldade de decorar. Eu falo uma coisa que tem a ver com o sentido da cena, mas

não com as mesmas palavras que estão no texto. Tanto é que na Bichada eu jogo.

Z- Se eu sei qual é a situação, eu improviso. Então a fala vem naturalmente. Se o que ela falar tem a ver

com aquele momento da Frida, então não importa quais palavras ela vai usar.

J- Eu acho que você não é generosa com ela, eu já venho observando isso há tempos. Quando você ouve o

que quer, você dá a sua fala. Mas como a outra não diz o que você quer ouvir, você fica lá sofrendo.

DL- E o que eu tenho que fazer?

V- Falar! Pra ajudar ela, pois quando você chegou a Cícera já sabia as falas da Nhanha, então ela te

ajudou. Agora é o contrário, você que tem que ajudar ela.

J- Tem uma coisa importante que todo mundo tá falando que tem a ver com a lógica, que é a intenção.

DL- Às vezes eu até tento entrar na improvisação, mas eu não consigo, dá uma travada, uma agonia!

Essa “agonia” expressa pela atriz resulta da dificuldade, central na criação

artística, de assumir os riscos do erro e expor algumas fragilidades a um grupo do qual

emergiriam críticas. Nessa roda, expusemos nossas dificuldades de concentração,

revelamos pensamentos desviantes em relação às cenas e fomos desfiados a não

perdermos a conexão durante os ensaio. Se não nos interessássemos pela cena, por que o

público o faria?

No texto feito por mim para o programa da peça, uma síntese do trabalho: Ensaiamos praticamente quinhentas horas durante esse ano e meio, em um processo do qual

participaram quase cinqüenta reeducandas. Muitas desistiram, outras foram transferidas, duas

cumpriram sua pena e foram libertadas, catorze estão sobre o palco, ao lado dos quatro atores

convidados.

Nosso espetáculo dura uma hora e meia. Nele não estão aparentes todos os nossos esforços de

apropriação do texto, as dificuldades de leitura, os debates promovidos pelo grupo a fim de compreender

as situações que ele propõe e as motivações dos personagens. Muito menos estarão visíveis as discussões

relacionadas à construção do trabalho de grupo: o horário de chegada, a responsabilidade no cuidado

do cenário e do figurino, isso sem falar na questão do tamanho das unhas das integrantes.

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Por outro lado, Mulheres de Papel condensa um esforço enorme de construção coletiva, pois

tudo o que ele é nasceu das dificuldades em se criar uma relação amorosa e produtiva do grupo com o

espaço de trabalho, de cada atriz ou ator com seu personagem, de cada integrante com o grupo todo e,

principalmente, com o desejo de produzirmos beleza e reflexão em um lugar que prima pelo acinzentado

nas paredes, no gosto da comida e nas relações humanas.

Obviamente, entendendo por bela não a superficialidade das propagandas de cartão de crédito,

mas uma criação artística da qual todos os envolvidos – atrizes, atores, diretores e agora o público – não

têm como sair ilesos, agora que Plínio Marcos nos emprestou suas palavras para mostrarmos que a

exploração infame, o verdadeiro mal de nosso tempo, não está em pauta porque não há interesse em tirá-

la da sociedade e colocá-la dentro de uma cela de cadeia, pois ela ainda serve a muitos.

A primeira apresentação de Mulheres de Papel em 2004 aconteceu no dia 15 de

setembro, para as próprias presas. Era uma platéia agitada, que fazia comentários

durante a apresentação. Tamanha agitação surtiu efeito contrário nas integrantes do

grupo. A conversa que se seguiu à primeira apresentação foi um dos mais duros

exercícios de avaliação para o grupo.

Cena 5 (16/09) J- Vamos concentrar. Temos que falar da platéia, da gente, de tudo que a gente tem que melhorar sem

perder tempo. Quero ouvir vocês. Eu senti que algumas pessoas estão angustiadas em relação à platéia.

Vamos botar pra fora pra saber que angústia é essa pra gente discutir.

G- Muitos riram de mim e isso me incomodou muito.

L- Eu fico contente independente da opinião deles. Quem é inteligente captou, se não fica boiando.

E- Eu também não gostei. Tinha muita piadinha, mas tinha muitas que vieram pra ver a peça! Não

respeitaram nem nós, que estávamos representando elas, nem os demais ao redor.

A- Não foi fácil, mas vencemos.

C- Eu não gostei e faço das minhas palavras a palavra da Ester. Pois na hora que eu tirei a blusa, e a

menina falou uma besteira, aquilo me incomodou. Eu não estava legal e não fiquei até agora.

K- Eu acho que a gente vai ainda ver muito isso pela frente, porque na rua tem isso, os educados e não

educados. O que me incomodou na verdade foi a troca de roupa lá atrás, na coxia. A Rosana enrolou,

fiquei muito nervosa. Se você vai sair com um brinco a mais, um a menos, a platéia não vai saber. Sai

com o que tiver. É improvisação e não ficar empacando.

DL- Eu odiei essas minas boca aberta aqui sem proceder porque a gente está representando a calça bege e

elas vêm aqui e faz isso, seu Jorge! Alguém tem que ficar na porta e pôr pra fora quem abrir a boca! Eu

não gostei. Tirou com a nossa cara!

X- Eu acho que a gente fez nossa parte.

R- É isso. Graças a Deus ninguém tomou ovo na cara então tá tudo bem.

Q- Eu repito o que eu disse no ano passado: odiei apresentar pra elas, mas eu entendo porque um dia eu

fui como elas, sem cultura.

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S- Pra mim não foi novidade nenhum. Eu já tinha visto isso. Mas passei minha mensagem e algumas

entenderam. Quem não, fazer o quê?

X- Quem não entendeu a mensagem tá querendo vir hoje de novo, professor.

S- O ano passado foi pior! Fiquei triste pelo caso da Cícera, mas você representa muito bem. Você tem

que levantar a cabeça e deixa pra lá.

L- Mas o erro não foi nosso! Tem gente que nem sabe o que vai fazer quando sair daqui! Você vai ver

quando a gente apresentar pra gente de fora, vai ser outra coisa!

S- Eu vou falar uma coisa que eu não gostei. Na hora da xavecada da Alexandra, eu estou falando com

você, Maria Helena, você tem que esperar a Alexandra terminar de falar, você cortou eu, a Mechinha, a

Marta...

MH- Eu não fiz isso! Eu não errei! (Elas discutem)

J- Não vamos despencar agora de cima da escada! Calma! A gente tem que continuar subindo. Uma coisa

é indicar o problema, outra é resolver, então não dá pra soltar os cachorros na platéia e depois agir da

mesma forma! É uma coisa de cada vez! Vamos por partes. Proceder é uma palavra da cadeia. Nóia e

mina é da cadeia. Então a gente tem que entender que aqui a gente quer uma cultura diferente dessa. E a

gente tem que entender que arte é pra ser exposta. Ela só é arte porque ela foi feita para agredir o olhar do

outro e para ser agredida também. Então a gente parte do princípio que a gente fez pro outro. O ator tem

seu próprio ego, mas ele não pode ficar vulnerável quando ele está exposto. Ele representa o personagem

com seu corpo, então as pessoas confundem as coisas. E a platéia é sempre diferente. O trabalho da gente

é pra ser apresentado pra qualquer pessoa. E pra deixar todo mundo desesperado, é preciso dizer que elas

amaram vocês. Ficaram orgulhosas por vocês. Elas viram vocês bonitas e elas se viram em vocês. Quando

elas gritam “Josenita!”, elas querem fazer parte deste espaço. Elas não têm escrúpulos e agem de um jeito

diferente daquele que a gente acha certo. E eu tenho orgulho de dizer que quando a gente começou o

trabalho vocês eram iguaizinhas! Umas menos e outras mais, mas porque a gente passou oito meses na

batalha! Olha onde vocês estavam e onde vocês estão!

S- Por isso que eu tenho orgulho do professor!

J- Eu avisei: faz uma cortina na frente porque vocês vão ver o espelho do que a gente é e vão sentir

vergonha. Ninguém aqui tem o direito de exigir que qualquer pessoa que estivesse ali tivesse que ter

moral, decência, educação. Porque tem gente que nunca foi no teatro, nunca pegou num livro, tem gente

que não conseguiu separar realidade da ficção. E tem gente que quer vir de novo! Gente que ria e chorava

ao mesmo tempo! E outra coisa: a gente tem que ser forte! Pra ficar de seio de fora não pode ficar tão

frágil, foi uma decisão sua e você sabia que estava sujeita a qualquer coisa que a platéia pense! E as falas

são engraçadas mesmo! A gente gosta de rir da miséria e todo mundo vai rir do sotaque da Grethel! Você

tem que ficar contente com isso! É bom pro espetáculo.

S- Eu tinha vontade de rir o tempo todo.

L- Na hora que o revólver quebrou, elas riam, mas a Cícera e o Sérgio não pararam, e o riso foi

diminuindo.

J- A segunda parte tem mais fluência, já está todo mundo no pique. O 1º ato está lento, a voz está baixa, e

isso está um pouco nas suas costas do Berrão. Se ele chega muito calmo, tudo fica lento, se chega

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acelerando, todo mundo acelera. As interrupções de fala, a gente tem que ser mais generoso, pois as

pessoas só tiveram duas semanas pra ensaiar com o papel.

S- Mas se ela não tivesse cortado, não tinha acontecido! Maria Helena, eu não estou te criticando. Eu só

quero que você pare de ficar com o barato gravado na mente, escuta os outros falar, e aí tudo vai ficar

melhor!

J- Sandra, uma coisa que está vindo à tona é: tenta ser mais flexível!

S- O que é isso?

J- Mais maleável, mais compreensiva. O que falta pra você, MH, é entender a sua fala no contexto. Se ela

não falar a sua fala não quer dizer que ela não deu a sua deixa. Se você entende a história, uma ou outra

pode atravessar que não tem problema.

S- Mas vocês deixaram ontem a desejar nessa fala, vocês não entraram no clima da comemoração.

J- Aí é que tá. Isso não vai parar.

S- Não está certo.

J- Calma, a questão não é está certo ou errado. Ninguém tem o controle de tudo. Hoje lembraram que tem

que avançar em determinados pontos. Por que você entrou atrasada ontem, Ester?

E- Por que o Tião tinha duas falas e ele só falou uma...

J- E o que tem que fazer? Se o outro não falou, não é que isso é erro! A gente não pode ficar preso,

atrelado ao texto. Você já sabe a história, e o que a gente não deve é reforçar o erro. A gente tem que ser

flexível um com o outro.

S- Deixa eu falar uma coisa. Eu não tô criticando ninguém, eu acho que todo mundo aqui tem capacidade

de fazer melhor. Eu só estou expondo o que eu acho que a gente pode melhorar.

J- Mas tem que tomar cuidado com a forma que você expõe as críticas.

V- Parece eu você está acusando, e não colocando na roda pra gente resolver.

S- Ninguém é melhor do que ninguém aqui. A gente faz o que faz porque tá todo mundo junto, não é

individual.

Essa roda revela muitos de nossos segredos, e um deles é que não temíamos a

estréia, mesmo sabendo que o espetáculo poderia melhorar.

Nós havíamos chegado a um ponto em que já havíamos discutido o sentido do

texto, o tempo e o ritmo da peça, a concentração dos atores em cena. Sabíamos que os

ensaios haviam atingido um certo limite. As respostas para a maioria das questões que

eram levantadas precisavam ser respondidas por outras pessoas, e essas pessoas eram o

público.

Assumimos esse limite, mas ainda discutíamos, no dia seguinte à estréia, o velho

problema do apego às falas, em oposição a um tratamento do texto dentro da lógica das

personagens na situação criada pelo autor. Discutíamos, após a experiência, e não só

como um aviso da direção, o problema do volume das vozes, a falta de clareza em

algumas cenas.

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Pudemos sentir a reação verdadeira da platéia ao encarar, após o linchamento do

Coco, a visão do cadáver nu, cena que não aconteceria sem a defesa da Sandra. Ela não

aceitou a mudança da cena sob o argumento de que poderia haver confusão se as

detentas vissem um nu masculino. Segundo a atriz, as presidiárias teriam que começar a

entender que, na arte, aquilo era permitido.

O espetáculo foi apresentado para as presas que tinham interesse de assisti-lo. E

foi aberto a um público de fora, formado por amigos e familiares das integrantes, por

funcionários da FUNAP e da Secretaria de Administração Penitenciária e ainda artistas

e estudantes interessados.

O grupo sentiu a repercussão positiva do trabalho nos comentários que ouviu de

suas colegas de pavilhão. E todos percebemos a mudança no tratamento que nos era

dispensado pelos agentes de segurança, que agora nos chamavam pelo nome dos

personagens e nos tratavam com mais respeito e generosidade.

No entanto, a direção do presídio preferiu esforçar-se em sentido contrário às

nossas necessidades. Negou-se a se responsabilizar pela saída do grupo, sob alegação de

que as componentes eram presas de alta periculosidade, com penas muito altas,

impedindo nossa participação no encontro do IBCCRIM.

Ainda assim, a FUNAP decidiu manter o projeto, realizando uma temporada do

espetáculo até o final de novembro. Abria, assim, uma possibilidade de apresentações

em outros presídios, como havia acontecido com as montagens do COC.

Mas na data da primeira apresentação do mês de outubro, a unidade fez uma

inspeção e deteve uma das integrantes do grupo, pois havia encontrado em sua cela uma

resistência elétrica, usada para esquentar alimentos e que existe em todas as celas,

apesar de proibida pelo sistema.

Naquele dia, o espetáculo seria apresentado para alunos de psicologia de uma

faculdade particular da cidade. Não houve tempo de avisá-los do cancelamento da

apresentação, pois a gerência da FUNAP negociou até o último instante a liberação da

atriz, ao menos para que a peça fosse realizada.

Diante da impossibilidade de negociação com a direção da PFT, a FUNAP

decide cancelar o projeto. Tinha razões para isso: a demora do presídio em ceder um

lugar apropriado ao nosso trabalho; a ausência de apoio para que o grupo realizasse o

espetáculo no encontro do IBCCRIM; o desrespeito demonstrado pelos funcionários no

trato com o público que entrava na prisão para assistir a peça. Por fim, a utilização da

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infame estratégia dos presídios, quando desejam encerrar uma atividade: a perseguição a

seus componentes.

No embate entre as instituições, do qual não havia a mínima chance de

participarmos, vencia o presídio, que se viu livre do grupo de teatro. Mas, no fim,

podemos dizer que a FUNAP saiu vitoriosa, pois a Coordenadoria Geral dos Presídios,

provavelmente ao saber das razões que levaram a Fundação a retirar o projeto da

unidade, substituiu os membros componentes da diretoria.

Para o grupo, que recebeu a notícia com enorme tristeza, não interessava aquele

embate, pois saíamos derrotados de qualquer maneira.

Na euforia de cada apresentação, quando o samba do Gonzaguinha embalava o

final de nosso espetáculo, enquanto as atrizes desfilavam com roupas por elas

desenhadas e confeccionadas em material reciclável, a platéia era convidada a dançar

conosco e celebrar um momento muito especial na vida daquelas mulheres.

Celebrávamos não de forma escapista, mas conscientes de que havíamos

dividido com uma platéia generosa um pedaço de sentido construído entre as grades da

cela e o anseio de mostrar que não havia razões para que aquelas pessoas seguissem

recebendo os maus-tratos que lhes eram dispensados diariamente.

Ao perceber o quanto o teatro mostrava os abusos da cadeia, seus dirigentes nos

fizeram recordar de que aquilo tudo acontecia atrás das grades, e dali fomos expulsos.

Não interessavam a eles as opiniões daquelas pessoas, nem o que haviam

descoberto. Não estavam dispostos a ouvir da boca das detentas o que haviam

aprendido, os significados daquela experiência.

Na opinião de Sandra: É bom. Você nunca espera que as pessoas vão poder te aplaudir. Ver as pessoas chorando,

aquele nervoso, você tá nervosa, sobe aquele calor todo, é muita emoção. Não dá pra explicar ver as

pessoas aplaudindo, gostando do que você está fazendo. Eu não tinha palavras. As pessoas vinham me

abraçar. Sabe quando você fica aberto, assim? Você sente que tudo aquilo que fez valeu a pena, que as

pessoas se emocionaram. Então isso contribui muito, principalmente pra gente, que sofre nesse lugar.

Ver pessoas de outros lugares se emocionarem com o que a gente faz. Porque a sociedade pensa que a

gente é um bicho, que a gente não tem educação, mas a gente tem sentimento também. Eu sei que o

coração fica aberto. É emoção e você se entrega a tudo e a todos.

Para Cícera, Eu não sou boa de leitura, se eu pegar um livro pra ler, eu vou demorar quase um mês! Quando

o professor trouxe o texto pra bater as falas e foi difícil, eu me irritava, eu não conseguia ler, eu ficava

angustiada. Mas aí eu decidi que ia conseguir. Eu chegava na cela, batia o texto. Eu chegava e fazia

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aquilo, e na minha cela, eu acendia a luz, pegava o texto e ia batendo. Vinha a tranca e eu ali. Eu

cheguei a ficar ate três horas da manhã! O pessoal achava que eu tava ficando louca. Mas eu sabia que

se eu não decorasse, eu não ia conseguir fazer, então eu decidi dar um pouco de mim pro trabalho. Eu

evito a encrenca porque eu não quero que um dia o professor chegue, todo mundo aqui e eu subi de cana.

Vai faltar alguém. E eu não pensava muito não. Que nem uma vez que eu discuti com a Sandra e eu

joguei a carteirinha e saí. Aquilo doeu dentro de mim, sabe quando chega alguém e te dá uma pancada?

Eu cheguei na cela chorando dizendo que eu abandonei o teatro. Acabei descontando minha raiva em

alguém que não tinha nada a ver com isso. É tão difícil! É tanta coisa que a gente vive. Sabe, não tem

como vendar os seus olhos em um lugar desses. Quem nunca passou por aqui não sabe o que é esse

lugar. Você não sabe se alguém vai te jogar uma água quente, se vai levar ma facada nas costas. Eu

fiquei mais reservada. Agora eu penso e mim, penso nos meus filhos na minha vida.

E Josenita encerra: O que eu mais gosto é da roda. Eu gosto porque lá a gente põe tudo em pratos limpos. O que

não foi bom pra você, que não foi bom pra mim, a gente coloca onde que tá o erro, a gente tenta ver,

enxergar. Tem a crítica, que é ótimo, pra melhorar, pra ver se o povo vai gostar de ver a mudança que a

gente pode fazer. Eu gosto de estar em cena, porque eu saio daqui, eu não tô aqui. Eu estou presa, mas

não sou presa, das duas às seis eu posso fazer outras coisas. Agora, vai eu fazer isso lá dentro? Eu vou

ser linchada! Tem suas regras lá dentro. Aqui tem, mas não é tão imposta assim. Você é o que você é.

Você pode mostrar seu lado bom. Você fala dos seus planos, da sua vida, com pessoas que você conheceu

aqui há quatro meses. Eu não falaria tudo pra alguém que eu conheço há tão pouco tempo se eu não

tivesse aqui. Hoje eu falo, eu troco, eu não tenho medo de ser criticada.

Uma amostra da reflexão que o presídio preferiu abolir, quando decidiu cancelar

uma apresentação por conta de uma simples resistência elétrica.

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Capítulo 4 - Humilhados e Ofendidos: Muros

Depois do encerramento absurdo de nosso trabalho na PFT, a FUNAP estava

disposta a apoiar uma proposta que Jorge vinha elaborando há algum tempo e que não

envolvia mais a tarefa de lidar diretamente com uma instituição penal.

Sua proposta estaria vinculada ao Departamento de Promoção Humana e ao

Programa de Apoio ao Egresso, e o objetivo seria o de oferecer a Oficina de Montagem

Teatral a presos em regime semi-aberto e a ex-presidiários.

Assim, ele reuniu novamente a equipe de atores formadores para que, juntos,

fundássemos um grupo junto à Cooperativa Paulista de Teatro, pois seria através dela

que a verba disponibilizada pela FUNAP chegaria até os atores formadores e aos

egressos.

Depois de extenso debate, o grupo recebe o nome de Núcleo Panóptico de

Teatro, pois o termo panóptico, que designa um recurso tecnológico próprio da

arquitetura prisional, uma torre da qual muitos são observados sem saber quem observa,

interessava-nos. Gostaríamos de inverter a sensação: muitos nos observando, muitos nos

analisando, muitos olhares interessados em nosso trabalho e ação.

A proposta era a criação de um espetáculo teatral a partir de um conto do

filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, O Muro, uma idéia que ele já tinha há muito

tempo: Em 1997, quando eu fui para o COC, eu queria montar O Muro, a adaptação que eu havia

escrito a partir do conto do Sartre. Eu já estava tão saturado com a opressão dos presídios que eu tinha

a idéia de montar O Muro pra dar uma resposta.

A diretora de reabilitação então me chamou para uma reunião e me disse que eu não podia

montar coisas que viessem dos presos, porque eles não queriam em cena reivindicações, críticas ao

presídio, e eles achavam que era isso que sairia se eles pudessem fazer o texto. Então tinha que ser uma

coisa que o presídio aprovasse. Mesmo assim eu falei sobre O Muro, e ela me pediu o texto. Eu tinha

feito uma maquete do cenário, na maior ingenuidade, pintei uma caixa de sapato. Falei pra ela: essa é a

maquete, acontece em uma cela, numa prisão, eles são presos políticos. No momento em que eu disse

isso, ela falou: pode procurar outra coisa!

A solicitação de que não se dê voz aos presos explicita as contradições

enfrentadas por um processo artístico que se insere no universo prisional. Sobretudo

quando os limites do trabalho está pautado em critérios como esse, de que fornecer aos

presos a possibilidade de expressão significa necessariamente deixá-los reclamar

publicamente da maneira com que são tratados.

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Com essa visão, a referida diretora impediu a encenação do texto e instaurou

uma espécie de censura em relação ao teatro, cujo material deveria possuir aprovação da

unidade penal para ser apresentado. Tratava-se de uma situação extremamente delicada

para Spínola, que poderia não insistir em seu projeto teatral, alegando nunca se

submeter a tais princípios.

Mas ele deve ter percebido que era cedo demais para tratar de temas tão

contundentes ao sistema prisional. E prosseguiu, como vimos no capítulo anterior,

criando espetáculos que diziam muito sobre as condições dos presos, sem que isso fosse

avaliado, pelo corpo funcional dos presídios, como sendo “coisa de preso”.

Muros esperaria seis anos para começar a ser ensaiado. Este é o tema do

presente capítulo As diferenças entre os integrantes, as dificuldades em encontrar um

local definitivo para ensaio, a construção de um contrato de grupo e a concepção

artística do espetáculo, tudo constitui material para analisar esse processo.

Respeito aqui o desenvolvimento cronológico do trabalho, pois acredito que

demonstra a conquista de profundidade e densidade pelas questões que mereceram

destaque ao longo do processo.

4.1 Os Desterrados: primeiros desafios e acordos

Um de nosso primeiros desafios foi encontrar um espaço para a realização dos

ensaios. Era uma batalha contra o preconceito direcionado às pessoas com quem

trabalharíamos. Ninguém se mostrava disposto a receber diariamente um número de

vinte pessoas cujas vidas estavam marcadas pela passagem pela prisão.

Com intervenção da FUNAP, foi-nos cedida uma sala da Oficina Cultural

Oswald de Andrade, no Bom Retiro, da Secretaria Estadual da Cultura.

Era uma sala grande, porém seu espaço útil era consumido pelas janelas, que se

abriam para dentro, e por alguns móveis escolares, que foram sendo retirados ao longo

do tempo em que ensaiamos por lá.

Em março, os encontros começaram. Nas duas primeiras semanas, enquanto a

Fundação firmava o contrato junto aos presídios, contávamos apenas com a presença

dos egressos, homens e mulheres que haviam deixado a prisão por haverem cumprido a

totalidade da pena ou que ainda estavam sob tutela da justiça, em liberdade condicional.

Depois chagaram os presos em regime semi-aberto: seis homens da Penitenciária de São

Miguel Paulista e quatro mulheres da Penitenciária do Butantã.

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Éramos inicialmente cinco atores formadores: Lígia Borges, Sérgio Oliveira,

Sissi Schucman, Maria Aparecida e eu. Nossas principais funções eram: participar das

improvisações e dos ensaios; compartilhar técnicas e saberes referentes ao trabalho de

interpretação e expressão vocal; assumir a responsabilidade pela criação e pelo

processo, colaborando com os debates e, quando necessário, assumir a coordenação dos

encontros.

Nós, atores formadores, exercitávamos a cada encontro a dupla função de atuar

e, ao mesmo tempo, estar atento às possibilidades de intervenção no trabalho de todos

os outros integrantes. Tínhamos que descobrir maneiras de provocar descobertas e

despertar o interesse de todos os outros integrantes pelo teatro e tudo o que lhe dizia

respeito.

Naquele início de processo, o primeiro elemento causador de tensão estaria

ligado à aparentemente mais simples questão do processo: o horário de chegada.

Estabelecido às duas horas da tarde, percebemos que, diariamente, meia hora de

trabalho era desperdiçada, à espera da chegada de todos.

Um fator que agravava esse problema estava vinculado às normas relativas ao

trato com os presos em regime semi-aberto. Diariamente eles vivem a possibilidade de

sair do confinamento para trabalhar mas, no fim da jornada, devem retornar ao presídio.

Não há permissão para visitar a família, para ir ao médico ou para qualquer outra

atividade que não o emprego. A unidade confia então aos empregadores a

responsabilidade de zelarem por esse controle. Se um preso faltar ao trabalho ou chegar

atrasado ao presídio, perde o emprego e o direito de sair da unidade. Ele volta ao final

da lista de empregáveis da unidade e deve aguardar o surgimento de uma nova vaga.

Assim, a lista de presença era um instrumento de controle que precisava ser

preenchida todo dia no início do trabalho. Deveríamos notificar a unidade penal em caso

de atraso e ausência, mas sabíamos que, se isso fosse feito, estaríamos retirando do

projeto alguém que já fazia parte do trabalho.

Vivíamos diariamente o embate sobre a impossibilidade de aceitarmos os atrasos

do semi-aberto, e não demorou para percebermos que era injusto aceitar os atrasos e

ausências não justificadas dos outros integrantes.

A situação de Maria Aparecida, uma das atrizes formadoras, por exemplo,

tornou-se insustentável. Ela saiu do processo, devido aos atrasos e ausências constantes,

pouco depois que um dos presos em regime semi-aberto, consciente de que não

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conseguiria cumprir os acordos estabelecidos entre nós, decidiu abrir mão de seu

envolvimento com o trabalho.

Ele havia tomado uma decisão muito séria: renunciava à possibilidade de sair do

presídio, pois não conseguia deixar de visitar sua família antes do ensaio. Diante do

risco de perder seus benefícios junto ao sistema, ele decidiu que não se sentia pronto

para encarar aquela rotina. Preferiu a prisão ao desafio da liberdade.

O fato era que os integrantes se sentiam cobrados como artistas profissionais,

pois recebiam salário, mas na verdade eles estavam ali para participar de um processo

de aprendizagem, que obviamente não era sua motivação primordial. Os presos do

regime semi-aberto queriam o emprego para sair da penitenciária; os egressos realmente

encaravam o desafio de fazer teatro pelos 120 reais e os vales, transporte e refeição, que

recebiam.

Nesse contexto, nos esforçávamos para obter uma coesão própria daquele

coletivo, acreditando na importância do diálogo. Por isso nos esforçávamos para ouvir a

voz de todo mundo, sempre que nos reuníamos para discutir qualquer questão.

Permanecemos até meados de junho naquele espaço. Eram encontros diários,

muitas vezes desgastantes e tensos, diante da profusão de problemas.

Houve dia em que alguns do semi-aberto não chegaram, pois foram abordados

por policiais na rua; houve ensaios realizados sob forte tensão, quando percebíamos que

algum dos participantes estava alcoolizado; houve ensaios inteiramente dedicados ao

debate sobre as regras estruturais do espaço de ensaio; houve encontro cancelado pois

todos os presos do regime semi-aberto haviam sido transferidos para o interior.

No entanto, foi o momento em que estruturamos nossa rotina de ensaios,

elaborando as bases do tipo de processo que desejávamos realizar.

Foram momentos de muitas descobertas de possibilidades físicas e expressivas,

elaboradas e conduzidas em sua maioria pelos atores formadores, a partir de jogos que

possibilitassem o despertar dos recursos expressivos do corpo, exercícios de

aquecimento e improvisações, além de propostas que visassem a construção da

percepção do corpo no espaço.

4.2 Desterrados com texto

Simultaneamente a esse processo, pouco a pouco éramos apresentados ao

universo do texto, que ia chegando ao nosso conhecimento a partir da dramatizações de

situações propostas pelo Jorge.

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Os temas dessas improvisações procuravam destacar as forças de poder inseridas

nessas situações: um grupo deve esconder alguém que está sendo procurado pelo

exército. Até quando esse grupo resiste sem ceder? Quem são os integrantes desse

grupo? Quem é essa pessoa tão procurada e por que razão o grupo se arrisca tanto por

ela?

As cenas da peça chegavam uma a uma e eram improvisadas de maneira muito

semelhante ao ocorrido em Mulheres de Papel: líamos determinadas cenas do texto em

voz alta, sentados em roda, cada um responsável por um personagem diferente,

distribuído de acordo com o interesse do ator por determinada figura ou por indicação

da direção.

Era comum certa dificuldade de concentração devido aos problemas de leitura

apresentados por muitos dos integrantes: alguns não conseguiam dizer o texto em voz

alta e muitos liam em ritmo lento, demonstrando dificuldade em entender as palavras e

em construir sentidos com as frases e trechos lidos.

Por isso, sempre debatíamos sobre o que acabávamos de ler. Era necessário

encontrar as intenções dos personagens, procurando situações similares às propostas

pela ficção nas experiências vividas por cada um.

Tínhamos de decifrar as ações propostas pela cena, compreender sua fábula,

inserir os acontecimentos em um contexto. Então, definíamos quem jogaria em que

papel, quem seria responsável por determinadas ações, e então partíamos para a

improvisação.

Algumas vezes, havia uma divisão entre atores que improvisavam e outros que

assistiam, com a responsabilidade de comentar posteriormente o que haviam visto.

Outras vezes, dois grupos ficavam responsáveis por versões diferentes da mesma cena.

Com o decorrer do processo e a ampliação do número de contextos abordados pelas

cenas, pequenos núcleos foram sendo criados, e cada um deles foi se especializando

gradativamente nos desafios próprios de cada cena.

O debate sobre o texto não surgia apenas das improvisações. Foram espalhados,

pelas paredes de nossa sala de ensaio, treze grandes cartazes e, em cada um deles, uma

das seguintes palavras: miséria, poder, julgamento, sentença, ilusões, cela, desespero,

horror, humilhação, diversão, resistência, vingança, pátio.

Esses eram os títulos de cada cena que compunha a dramaturgia da peça. O

objetivo dos cartazes era que fôssemos trazendo imagens que estabelecessem relações

com aquelas palavras e, portanto, com o texto.

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Não demorou para percebermos que revistas eram artigos completamente

ausentes do cotidiano das pessoas envolvidas com o trabalho. Diante da permanente

brancura dos cartazes e o risco da proposta tornar-se inócua, decidimos reunir um

número razoável de fontes iconográficas e passamos a dedicar momentos iniciais de

nossos encontros a uma busca por imagens significativas.

Elaboramos um pequeno mosaico em cada um daqueles cartazes, e debatíamos a

relevância e o sentido de cada uma das imagens para cada quadro. Algumas vezes,

imagens selecionadas para determinado cartaz acabavam sendo colocadas em outro,

após debate entre os integrantes do trabalho. Ao mesmo tempo, estabelecíamos relações

entre fatos importantes de nosso presente e o universo abordado por Muros.

O momento geopolítico mundial e, particularmente, o brasileiro, forneciam

material vasto para nossa pesquisa: as invasões promovidas pelo Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra (MST) durante o chamado Abril Vermelho, a guerra do Iraque

e as denúncias de tortura promovidas pelas tropas americanas contra os prisioneiros de

guerra, atentados terroristas no metrô, em Madri, e em uma escola na Rússia, fotos da

campanha eleitoral para a prefeitura, que então se iniciava. Todas as imagens feitas a

partir desses eventos construíam um panorama vasto do nosso momento presente, que

usávamos como ponte entre a vida e a ficção.

O conto de Sartre, narrado em primeira pessoa pelo rebelde Pablo Ibbieta, é a

análise e descrição da série de torturas físicas e psicológicas vividas por ele, enquanto

esteve preso como guerrilheiro durante a Guerra Civil Espanhola. Na prisão, ele resiste

em declarar o paradeiro do líder do grupo, o rebelde Ramón Gris.

Diante da pena de morte, ele mente aos torturadores, dizendo que Ramón está no

cemitério. Para sua surpresa, ele realmente estava lá. O líder é capturado e morto, e

Pablo ganha a liberdade, por haver contribuído com a repressão à guerrilha.

Para salvar alguns momentos de sua vida, Pablo comprometeu todo o

movimento revolucionário. Uma mentira que, por um acaso trágico, resulta em verdade.

Ele terá que conviver o resto de sua vida com a culpa de ter sido o responsável pela

morte do líder.

Trata-se de um texto extremamente reflexivo, através do qual Sartre aborda um

tema caro ao existencialismo, a situação-limite. Até que ponto um homem pode

permanecer fiel a suas crenças, respeitando suas opções e as idéias que defende?

Por isso a tortura se configura através de diversas formas ao longo do conto,

criando um momento decisivo para que o homem tenha oportunidade de demonstrar que

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pratica as idéias que defende. Enfim, a tortura põe à prova o discurso; configura-se uma

situação-limite em que o homem vai provar a realidade das opções que diz ter feito ao

longo de toda sua vida.

No caso do conto, Pablo resiste às torturas, mas diante da pena de morte, inventa

um paradeiro para o líder perseguido. Isso apenas atrasaria sua execução. No entanto,

uma fatalidade, uma coincidência faz com que sua mentira resulte em desgraça. E o

conto acaba com muitas possibilidades de interpretação: qual o sentido dessa

coincidência? Por haver mentido, Pablo acabaria sendo punido? Ou o fato dele haver

mentido abriu uma nova possibilidade de realizar a captura de Ramón? Ou estariam os

guerrilheiros sendo punidos por acreditarem que o movimento revolucionário só daria

resultado com a ação de um só líder, ao invés de atuarem de modo mais coletivo?

Essas perguntas e muitas outras surgiriam do contato com o original, após a

leitura coletiva do conto, realizada no início de agosto, quando já ensaiávamos no salão

nobre da Escola de Administração Penitenciária, a EAP, um edifício projetado por

Ramos de Azevedo e que hoje, após a realização de uma ampla e necessária reforma, é a

sede da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo.

Na época, o prédio ainda era utilizado como sede da EAP, e em suas salas eram

definidas as políticas de formação dos agentes penitenciários e diretores de cadeia, que

freqüentavam aulas e cursos criados naquele ambiente.

Acompanhávamos, do salão, o trabalho daqueles funcionários, realizando tarefas

burocráticas e pouco estimulantes, conferindo listas de chamada e folhas de inscrição,

emitindo certificados e planejando calendários. Enquanto isso, tratávamos de ocupar

aquele espaço, buscando descobrir possibilidades de utilização cênica

A mudança de local causou profunda alteração em nossa rotina de trabalho. O

espaço era pequeno para a maioria das atividades que estávamos habituados a realizar

coletivamente, e sentíamos o receio inicial de circular, descalços e com roupas de

ensaio, por aquele ambiente austero.

A EAP é o centro irradiador das possibilidades de transformação em política

carcerária, pois ela é formadora dos agentes que terão contato diário e direto com a

população carcerária. No entanto, seus funcionários pouco conhecem a realidade das

prisões e de sua população.

Ao receber o Núcleo Panóptico de Teatro para realizar uma temporada em seu

salão nobre, a EAP promovia encontros significativos e até então improváveis: presos

cumprimentando burocratas do sistema, ex-presidiários esbarrando-se nos corredores

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com agentes em formação, atores e atrizes ensaiando ao lado dos advogados que

elaboram apostilas, tudo isso provocando uma alteração muito forte na rotina daquela

instituição.

Notávamos o incômodo causado por nossa ação naquele ambiente. Tentamos

amenizar o impacto de nossa presença, abaixando o volume de nossas vozes,

diminuindo nossa área de atuação. Mas a situação ficou insustentável. Aos poucos, não

éramos mais recebidos com cordialidade, com sorrisos educados. Não nos era mais

servido café no meio da tarde, e pressentíamos que a qualquer minuto alguma atitude

seria tomada em relação a nossos ensaios.

Não demorou para que fôssemos alvo de muitas reclamações, e certamente só

permanecemos naquele lugar graças ao apoio do diretor da EAP, o professor Francisco

de Assis Santana.

É necessário esclarecer que a relação dos funcionários da EAP com o nosso

trabalho não poderia ser diferente, dadas as condições em que ele foi implantado. De

uma hora para outra, sem que fossem consultados, eles passaram a dividir seu espaço

com um grupo de vinte e seis pessoas que realizavam um trabalho ruidoso, agitado,

oposto ao tipo de atividade individual e rotineira que produziam. Eles também não

sabiam, no início, que os integrantes do trabalho eram egressos do sistema e pessoas

ainda presas, e tomar ciência desse fato certamente ajudou a ampliar a tensão que se

avolumava.

O resultado foi a alteração de nossos horários para que pudéssemos continuar

ensaiando no espaço em que realizaríamos as apresentações. Passaríamos a ensaiar aos

sábados à tarde, e às terças e quartas os encontros aconteceriam a partir das quatro e

meia e seriam encerrados às oito e meia da noite.

Nos outros dias, ensaiávamos em um outro casarão do enorme terreno que

compõe o complexo da Penitenciária do Estado, um sobrado residencial cuja

distribuição dos aposentos restringia bastante a criação da encenação, mas que

possibilitou o aprofundamento do modelo de trabalho que se desenvolveu durante o

processo: os ensaios por núcleos.

A dramaturgia construída por Jorge não se limitava a descrever as situações

vividas pelos presos políticos na cela e nos ambientes da prisão em que estavam

confinados. Escrita para um grupo de muitos integrantes, a obra abarcava também cenas

em que as familiares dos revoltosos se manifestavam, clamando pelo retorno dos

parentes presos. Além disso, ela se apropriava de duas cenas escritas por Jean Genet em

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seu texto mais famoso, O Balcão, inseridas ao longo da peça para complementar a

crítica ao sistema penal que a encenação pretendia realizar.

Assim, após encontros dedicados à improvisação a partir do texto e a situações

de jogo dramático que buscassem contextualizar os universos abarcados por ele,

acabávamos definindo a que papéis os atores deveriam dedicar especial atenção,

procurando decorar suas falas, investigar seu contexto, buscar suas intenções. Esses

personagens estavam inseridos em cinco situações que resultaram na divisão dos

núcleos de trabalho: o núcleo da cela, o das mulheres, dos soldados, o núcleo do bordel

e o núcleo da Chantal.

Como estávamos ensaiando em espaços reduzidos, a divisão do trabalho em

núcleos possibilitava o engajamento de todos os integrantes com a prática cênica a

maior parte do tempo, participando das discussões e improvisações concernentes à cena

a que se dedicavam.

No encerramento dos encontros, cada núcleo mostrava os resultados de seu

trabalho e, conforme a disponibilidade de tempo, realizávamos um “passadão”, tentando

encadear uma cena na outra e, com isso, completar a encenação.

4.3 Sobre rodas e pessoas

Foi ficando cada vez mais evidente a responsabilidade dos atores formadores

nesse processo, pois podíamos, dentro dos núcleos que coordenávamos, conduzir o

processo que julgássemos mais interessante e, assim, contribuíamos para o

enriquecimento do espetáculo e para aprofundar o envolvimento de cada um dos

participantes com a criação.

Os atores formadores acabaram, dessa forma, constituindo uma base segura, em

um processo que sofria com a excessiva variação na composição dos integrantes, ao

longo do tempo em que os ensaios aconteceram e mesmo depois da estréia de Muros.

Afinal, além de atuarmos, éramos co-diretores, e isso nos proporcionava um grau

diferenciado de conscientização a respeito da encenação.

Os compromissos assumidos pelo projeto criavam prazos que, naturalmente, não

correspondiam às incertezas de nosso trabalho. Desde que começaram os ensaios, até às

vésperas da estréia, integrantes do semi-aberto ou egressos abandonavam o processo ou

eram obrigados a deixá-lo por condições adversas.

Os integrantes do sistema semi-aberto deixavam o trabalho basicamente por

descumprirem suas obrigações junto à instituição penal, e nesse quesito o fato de

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retornarem ao presídio fora dos horários estabelecidos foi uma das maiores causas de

desvinculamento dos integrantes do trabalho. No entanto, muitos ganharam a liberdade

e continuaram no projeto.

A principal causa da saída dos participantes egressos era o valor de meio salário

mínimo que recebiam. A maioria deles possuía uma outra fonte de renda, em postos de

trabalho informal: eram ambulantes, mecânicos, empregadas domésticas ou motoristas

de lotação. Assim, aparecendo uma oferta de emprego, abria-se mão do teatro, e o grupo

se dividia entre a compreensão pela opção feita e a tensão de reconstruir o trabalho com

um novo integrante.

Essa situação teve que ser encarada como componente do processo, cabendo a

todos a responsabilidade de inserir um novo participante a qualquer momento.

Uma de nossas maiores dificuldades era construção do vínculo com a natureza

própria do projeto, compreendendo o tipo de trabalho que um processo teatral exige

para acontecer e atingir seus objetivos, sendo o mais evidente a construção do

espetáculo.

Os desafios que o teatro apresentava para aquelas pessoas eram muito diferentes

dos problemas colocados pela maioria dos empregos que lhes eram oferecidos.

Acostumados a trabalhos de outra natureza, não compreendiam por que razões o

diretor não dizia logo o que era para ser feito e assim, resolver rapidamente a

configuração das cenas. Não aceitavam que se passasse tanto tempo em roda, discutindo

questões relacionadas a atrasos e ausências: em muitos momentos exigiam que se

tomassem medidas drásticas, como expulsão de quem errasse, ou que se criasse um

sistema de descontos salariais para quem descumprisse os acordos.

Era um desafio enorme para grande parte do grupo, entender que discutíamos

sobre essas questões com o intuito de aprofundarmos nossos princípios de trabalho e de

confiança. Assim como em Mulheres de Papel, reforçávamos a relevância das

discussões realizadas em um espaço que garantisse a troca de opiniões entre todos os

integrantes.

Precisávamos do cumprimento dos horários e dos acordos de grupo. Era

essencial que ninguém se ausentasse dos ensaios e que os presos do regime semi-aberto

retornassem no horário para a prisão. Queríamos também um compromisso sincero e

engajamento real na criação de um espetáculo que solicitava a participação de todos

para ser construído.

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A roda se transformava em uma arena de debates relevantes, pois era esse o

espaço responsável pela manutenção das propostas cênicas. Se isso era claro para a

direção e para os atores formadores, essa constatação exigia um outro grau de

elaboração para os outros componentes do grupo.

A diversidade dos integrantes era uma característica essencial ao projeto, e o

objetivo da roda não era promover uma coesão de propostas de pensamento, o que seria

simplista. O que se estimulava era a expressão de opiniões, confrontando propostas

diferentes para, assim, realizarmos um processo mais instigante para o grupo todo.

Mas esse espaço demorou a se articular. Em princípio, debates fervorosos se

davam, sobretudo, entre os atores formadores e o diretor, enquanto a maior parte do

grupo parecia não se considerar apta a opinar.

Ao perceber isso, Jorge pediu a nós, atores formadores, que prestássemos mais

atenção aos debates, cedendo mais espaço às opiniões dos presos e egressos, que até

então se demonstravam satisfeitos em apenas assistir às discussões.

Essa medida surtiu efeito, e a roda foi pouco a pouco ganhando relevância para o

processo. Em termos artísticos, foram sendo estabelecendo critérios de avaliação para as

cenas improvisadas, indicados desafios e sugestões a determinados núcleos de trabalho

e seus respectivos artistas e diretrizes para as escolhas dos atores responsáveis pelos

personagens, após as improvisações e a curingagem.

Já com relação às decisões referentes ao trabalho, a roda foi o espaço do

aprendizado, para todos, do trato com as diferentes condições e perspectivas de cada um

dos grupos integrados ao processo; os presos em regime semi-aberto, os egressos e os

atores formadores.

Todos estavam ligados ao processo por um contrato financeiro, que estabelecia

um vínculo de trabalho a uma proposta de criação artística. Dentro desse grupo,

existiam artistas profissionais (atores formadores) e não-profissionais (presos e

egressos), o que evidencia diferentes perspectivas de vínculo.

Os atores formadores, na sua maioria, já haviam trabalhado com o diretor e,

apesar do aporte financeiro, estavam mais interessados nas possibilidades estéticas do

trabalho, com especial interesse na questão pedagógica, já que assumiriam

responsabilidades de proporcionar a formação artística do grupo.

Os egressos vinham, em sua maioria, em busca do salário. Eram indicados pela

FUNAP e, devido ao baixo valor pago, muitos deixavam o processo quando conseguiam

emprego. Os presos em regime semi-aberto possuíam vínculo empregatício com a

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FUNAP, mas diante do valor pago, podemos considerar que a principal motivação para

sua integração ao processo era a possibilidade de sair do presídio.

Para eles, o projeto deveria representar uma oportunidade de aprendizado em um

processo teatral, mas essa não era a principal motivação que os atraía para o trabalho.

Enquanto isso, cabia ao Jorge a direção do trabalho e a responsabilidade pelo

projeto perante as diversas instituições que o abarcava: FUNAP, SAP, três diferentes

penitenciárias, EAP e, mais tarde, a Secretaria da Juventude, Esportes e Lazer.

Todos reunidos em roda, munidos de expectativas e motivações distintas e com

diferentes trajetórias de vida e experiências com a prática da reciprocidade, tentavam

estabelecer acordos mútuos para conseguirem trabalhar juntos.

Não podemos deixar de mencionar também, que os presos em regime semi-

aberto ainda estavam submetidos a uma série de restrições e regras próprias do sistema

penitenciário, que não estão sujeitas a debate no universo de nossa prática teatral.

Assim como em Mulheres de Papel, foi no interior desses debates que um

trabalho instigante tomou corpo, revelando diariamente muito das nossas dificuldades

em ouvir propostas dos outros e, mais do que isso, em deixar de pensar em interesse

próprio para refletir em termos de significado coletivo.

Os primeiros efeitos da roda nascem do respeito a seu espaço e da confiança na

escuta dos seus participantes. Isso dá sentido ao esforço individual de expor as próprias

idéias, sem medo de vê-las desprezadas durante o debate que se segue.

Há, portanto, um despertar do sentimento de pertencer a um grupo com interesse

compartilhado. A aprovação ou desaprovação de uma proposta é um acordo decidido

em favor de uma conquista coletiva, decidida através de um debate que, se não ruma

para o consenso, no mínimo atende à opinião da maioria, sendo que o objetivo em

comum é a qualidade do trabalho conjunto.

Construir esses parâmetros, inspirados em valores tão diferentes daqueles que

regem a maior parte dos ambientes a que comumente estamos submetidos, requer um

esforço imenso e uma prática contínua de valorização das discussões úteis e de

atribuição de autonomia aos componentes do grupo.

Trata-se de um processo baseado na certeza de que as discussões rumam para

ampliar a qualidade do trabalho, já que todos estão interessados em fazer melhor. Isso

porque a roda torna coletivos os resultados cênicos e o contrato grupal, a despeito da

divisão das funções (atores, atores formadores e diretor) e da conseqüente

hierarquização que isso pode suscitar.

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Uma direção que compartilha suas sugestões e submete suas propostas e idéias à

avaliação grupal é muito diferente de uma direção que traz cenas e marcações prontas

para os atores executarem. Assim como é muito mais difícil construir regras através do

debate em grupo do que obrigar todos a assinarem um estatuto que define prazos,

limites e punições.

Optar por um ou outro é escolher entre uma linha de trabalho heterônoma ou

uma proposta que se compromete com ideais promotores de construção de

conhecimento crítico e autonomia.

Escolher o primeiro é abraçar os valores da prisão.

Decidir pelo segundo é romper com a lógica instaurada não só na prisão, mas

que na prisão encontra seus mais eficientes métodos de consolidação. Esta foi nossa

opção.

4.4 Desterrados com peça

Quando a estréia aconteceu, em 30 de setembro, no Salão Nobre da EAP,

suspeitávamos das qualidades e dos defeitos da encenação. Sabíamos que era evidente a

diferença entre os níveis de envolvimento dos integrantes do grupo. Sabíamos também

que estávamos desafiando aquelas pessoas a um nível de exposição muito grande e

assumíamos uma grande responsabilidade perante elas e perante todas as instituições

que haviam apoiado aquele projeto.

Mas naquele momento, não nos era mais possível ampliar os prazos. O grupo

havia obtido duas conquistas muito significativas e, cada uma delas, à sua maneira,

apressava nossa estréia.

O Núcleo Panóptico de Teatro foi um dos grupos da cidade de São Paulo

contemplados com a Lei de Fomento ao Teatro, assumindo um compromisso, junto à

Secretaria Municipal de Cultura, de realizar cento e onze apresentações gratuitas do

espetáculo Muros e, portanto, permanecer com o projeto por mais um ano, oferecendo

maior possibilidade de consolidação do trabalho junto aos integrantes que, agora,

passariam a receber praticamente seis vezes mais.

Além disso, a FUNAP conseguiu negociar, junto à Secretaria Estadual da

Juventude, Esporte e Lazer, a cessão de um pavilhão desativado do Carandiru,

possibilitando a realização de uma temporada no Pavilhão II, enquanto se aguardava o

início das obras que transformariam aquela área no Parque da Juventude.

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Como a FUNAP não possuía disponibilidade total da verba, poderíamos utilizar

as parcelas do Fomento para financiar aquela empreitada que, aos nossos olhos,

concretizava a possibilidade de oferecer um grande número de apresentações a uma

população variada, que poderia visitar o Carandiru antes de sua demolição e, ao mesmo,

tempo conhecer o nosso trabalho.

A estréia de Muros na EAP expôs as dificuldades do grupo diante da freqüente

mudança na composição dos integrantes e abriu muitos questionamentos referentes ao

tipo de processo realizado para chegarmos ao espetáculo.

Em primeiro lugar, era evidente a diferença da qualidade do trabalho

desenvolvido pelos atores formadores em relação ao dos demais integrantes, e isso não

significa necessariamente que o trabalho dos profissionais era melhor.

O acordo desenvolvido para a definição de quem ficaria responsável por

determinado personagem era pautado pelo princípio de que, através da curingagem,

seria escolhido o melhor para desempenhar o papel. Mas o que aconteceu foi que os

atores formadores acabaram conquistando os personagens mais significativos, diante

das muitas mudanças na composição dos integrantes.

Justamente os integrantes que acompanharam o processo por mais tempo

assumiram papéis de maior relevância naquelas apresentações na EAP, enquanto os que

haviam chegado mais tarde contentavam-se em exercer papéis junto ao coro de soldados

e de mulheres.

Mas a estréia aconteceu mesmo assim e surtiu um efeito muito interessante no

processo. Uma única apresentação parecia finalmente definir a idéia de teatro que

lutamos tanto tempo por construir. Os ensaios pareciam encontrar seu objetivo, a

realização da peça diante de um público que demonstrava, através dos aplausos, ter

compreendido o resultado de tanto esforço.

Muros era um espetáculo muito violento, construído principalmente em

linguagem naturalista, conquistada a partir de uma dramaturgia fragmentada em quadros

cujos títulos evidenciavam o cerne da questão tratada pela cena. A configuração do

espaço cênico distribuía o público em uma arena dupla, ou seja, metade do público

ficava de frente para a outra metade e, entre eles, um corredor era utilizado como palco.

O espetáculo se iniciava com o quadro A Miséria. Uma mendiga começava a

pedir esmola, o que confundia a platéia, que não sabia se aquela situação fazia parte do

espetáculo ou não. Isso ficava claro quando o Hino Nacional invadia o ambiente e ela se

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agregava a um grupo de mulheres que entrava em cena, carregando uma bandeira

brasileira coberta de lama.

Iniciava-se a segunda cena, O Poder, com essas mulheres exigindo uma resposta

para o paradeiro de seus maridos e filhos. São tratadas com violência pelos militares,

que as interrogam sobre o paradeiro de Rodrigo Soares. “Onde está Rodrigo Soares?” é

a pergunta que será repetida por diversas vezes ao longo da peça, para qualquer um que

possua envolvimento com a revolta. No fim da cena, uma das mulheres é levada como

prisioneira, sendo obrigada a carregar a “verdadeira” bandeira brasileira, a que os

soldados utilizam.

Essa segunda cena era um momento muito importante do espetáculo, pois ela

deixava claro para o público os dois grupos opostos sobre os quais a peça iria se

debruçar, dando indícios da natureza autoritária e bélica daquele grupo que era detentor

do poder e mostrando a situação frágil em que se encontrava a parcela da população que

se opunha àquele regime. Restavam fora da prisão apenas as mulheres e o líder dos

revoltosos, o tal Rodrigo Soares.

Também nesse momento o público via a totalidade dos integrantes, pois

compunham a cena todos os participantes do projeto, os homens como soldados e as

mulheres na situação de suplicantes. Essa foi, sem dúvida, uma das cenas mais

ensaiadas de todo o processo, ponto de partida para as indagações que construíram

aquele universo de guerra civil abordado pela peça.

Na cena III, O Julgamento, o público acompanha a primeira sessão de

interrogatório a que os presos políticos são submetidos. Aos berros do comandante,

respondem sobre questões relativas a um suposto saque e ao envolvimento com o

movimento revolucionário.

Na cena seguinte, A Sentença, eles são condenados à morte e levados à cela. O

público conhece então Paulo Degino, figura que podemos considerar o protagonista do

espetáculo, sobre quem recaem todas as suspeitas de conhecer o paradeiro do líder,

Rodrigo Soares.

Na cena seguinte, uma mudança de clima e cenário quebra com o contexto

erigido anteriormente. É a primeira das intervenções d´O Balcão, de Genet no

espetáculo. Denominada Ilusões, essa cena se inicia com a chegada de um dos

comandantes a um bordel. Ele negocia com a dona do estabelecimento e pede sua roupa

de juiz. Inicia-se então um ritual em que o comandante se veste de juiz e dá início a um

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jogo em que ele simulará o julgamento de uma prostituta que finge ser uma ladra,

enquanto o outro comandante representa um policial.

Nesse jogo, o prazer do juiz será obtido através da confissão da ladra, que deve

negar sua culpa até determinado momento. Enquanto ela nega, o policial a espanca e a

tortura, para deleite do magistrado. No entanto, ao longo da cena, a ladra vai percebendo

o poder de seu papel naquela situação, obrigando o juiz a avaliar sua função.

Ele então se percebe completamente dependente dela. Sem ladrão não há porque

ele existir, assim como não há necessidade do policial. Implorando pela confissão, sem

a qual ele não pode dar sua sentença ou, na situação criada pela cena, não poderá obter

prazer, o juiz é carregado para fora aos berros, enlouquecido diante da insistente

negativa da ré.

Na peça de Genet, a cena com o juiz tinha a intenção de configurar, ao lado das

cenas com o general e o bispo, as três principais instituições que, por sua importância na

composição social, eram objeto de desejo e, portanto, eram papéis encenados no bordel

de Madame Irma, cenário onde se passa O Balcão. Assim, no contexto criado pelo autor

francês, interessava-lhe criticar os grandes poderes sociais, satirizando o desejo do chefe

de polícia em se tornar também objeto de representação, ao mesmo tempo em que deve

conter uma revolução popular que ganha cada vez mais adeptos do lado de fora do

bordel.

Em Muros, essa cena era uma estratégia para inserir, no corpo do espetáculo,

uma crítica à atuação do sistema judiciário, dependente dos delitos e fascinado com

condenações espetaculares. Assim, esse momento surgia como um delírio dos

comandantes, como uma fantasia que eles realizavam para agregar um poder maior ao

seu já consolidado autoritarismo.

Por outro lado, era uma cena de difícil conexão com o todo do espetáculo. Suas

críticas ao sistema judiciário eram mais que claras, e obviamente nos interessávamos

pela oportunidade de realizá-la, mesmo cientes das dificuldades de compreensão que ela

poderia trazer para o público.

Foi uma cena que exigiu muita dedicação e trabalho, pela complexidade de seu

texto e pelo grau de exposição que ela exigia dos atores, sobretudo por lidar com temas

referentes à sexualidade e por traduzir-se cenicamente através de muito contato físico.

Esse núcleo acabou sendo assumido por mim e por Lígia Borges, depois que o ator e a

atriz que haviam se dedicado a ela abandonaram o processo.

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Era um texto muito longo. Decorá-lo e estudá-lo demandava muito trabalho e,

inicialmente, ficamos responsáveis por improvisá-lo a fim de trazermos aquele universo

aparentemente tão difícil para um plano mais concreto, que fornecesse subsídios para

que outros integrantes ousassem experimentá-lo.

No entanto, mesmo às vésperas da estréia, todo aquele jogo envolvendo

sexualidade repelia a participação dos outros integrantes. Isso era evidente a cada

tentativa de inserirmos na cena a participação de outras pessoas, a fim de ambientar o

prostíbulo: os homens temiam ser chamados de bicha e as mulheres temiam ser

chamadas de galinha. Mais tarde, quando a estréia já havia acontecido, ainda tínhamos a

esperança de que outros pudessem assumir a cena, mas como sempre estávamos às

voltas com tantas transformações, essa proposta não aconteceu.

A partir da cena VI, A Cela, passando pelas cenas VII, O Desespero e cena

VIII, O Horror, toma-se contato efetivo com o material apropriado do conto de Sartre.

O espaço é um cárcere onde os prisioneiros julgados na terceira cena aguardam a

execução de sua sentença de morte. Estão em evidente tensão psicológica, discutem

sobre suas angústias.

Falam sobre a iminência da morte e revelam seus medos e fragilidades,

conversando sobre seu envolvimento com a luta revolucionária. Entra em cena uma

funcionária da prisão, aparentemente alguém com o intuito de examinar os ferimentos e

o estado de saúde daqueles homens. Em verdade, seu objetivo é o de obter informações

daqueles prisioneiros, aproveitando as fragilidades evidenciadas por cada um deles em

seu desespero.

Nasce então uma espécie de enfrentamento entre essa figura e Paulo Degino,

preocupado que está em evitar que alguém revele algum segredo.

O desespero cresce com a entrada dos militares carregando o corpo de uma

mulher desfalecida, com evidentes sinais de tortura, a mesma que foi obrigada a

carregar a bandeira na segunda cena. Os homens reconhecem aquela mulher e o

desespero atinge níveis insuportáveis para eles, que começam verdadeiramente a

questionar os objetivos de todo aquele esforço.

Em que momento os homens começam a sacrificar um ideal de transformação

social e coletiva para preservar sua própria vida? Essa é a grande interrogação embutida

nesse contexto ficcional, e Paulo Degino, portador da desejada informação, vai

simbolizar esse homem que tem o direito de escolher entre preservar sua vida ou

preservar a luta revolucionária.

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Como se percebe, não era uma cena simples de ser feita, sobretudo por abordar

um universo tão próximo da realidade dos próprios artistas que a encenavam.

Era um momento muito rico, em que eles compartilhavam suas primeiras

impressões da prisão, reavaliando momentos tão difíceis da própria história de vida e

dividindo-os com o grupo que improvisava aquelas cenas. Mas era necessário também

compreender que aqueles personagens não eram presos comuns. Eles eram criminosos

por agirem a favor de uma luta por justiça social, sendo vítimas de um Estado que os

transformava em delinqüentes por não estarem de acordo com os princípios daquele

regime político.

Tomar consciência dessa realidade evitava que a cena se transformasse em uma

cela de “injustiçados coitadinhos”, esforçando-se por provocar a piedade da platéia, o

que esconderia a verdadeira face daqueles revolucionários. Essa qualidade ampliava a

dimensão daquelas figuras e deixava mais interessante a disputa de poderes que estava

em jogo na peça: a fúria dos militares pela manutenção do poder e a estratégia de luta

dos revoltosos.

A cena da cela demandou muito trabalho, e por ser construída basicamente

através de diálogos ágeis, excetuando algumas falas mais reflexivas de Paulo Degino,

possibilitou constantes exercícios de experimentação e curingagem entre os artistas

envolvidos. Mas Ao mesmo tempo era longa, e por muitas vezes considerei que a

cobrança constante por ritmo não permitia a exploração de todas as nuances da cena.

Essa demanda por ritmo, agilidade, “não deixar buraco” consolidava uma

impressão nos integrantes de que uma cena, para ser boa, devia sobrepor uma fala à

outra e um ator, para desempenhar bem um papel, deveria falar alto, agir o tempo todo

com rapidez e ter como única motivação a velocidade da cena.

Esses critérios construíam uma noção do trabalho cujo resultado eu não

apreciava, mas que respondia a um temor de que a cena resultasse chata, perdida na

lentidão e no comodismo dos atores, satisfeitos em simplesmente decorar suas falas.

Com o tempo, percebi que aquilo era uma solução transitória, para a qual

tecemos diversas considerações e críticas ao longo de nossas temporadas, apoiados pela

percepção que cada um construiu da relação com o público e da própria dinâmica de seu

trabalho cênico, tanto em relação à construção de seu personagem, quanto do jogo que

estabelecia com os outros atores durante o espetáculo.

Na cena IX, A Humilhação, o grupo das mulheres aparece novamente exigindo

notícias de seus companheiros. São tratadas com ironia por um comandante que,

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dizendo provar sua preocupação com a situação vivida por elas, oferece-lhes comida.

Ele joga pães no chão, e elas se debatem para pegar as migalhas. Em troca, elas

deveriam revelar o esconderijo de Rodrigo Soares. Não o fazendo, terminam presas.

O quadro seguinte, A Diversão, era a segunda cena emprestada de Genet. Trata-

se da cena em que Chantal, uma prostituta que abandona a casa de Madame Irma e se

torna cantora dos hinos que agregam cada vez mais populares à causa revolucionária, é

espancada até a morte.

No original, ela é assassinada pelo Chefe de Polícia, que precisa conter a

revolução para se tornar mais um símbolo de poder digno de representação no bordel de

Madame Irma.

Em Muros, essa cena demonstrava a capacidade ilimitada de produção de terror

por aqueles comandantes, submetendo aquela mulher a toda sorte de humilhações e

indignidades: ela era estuprada, espancada, chutada, xingada e finalmente morta com

um tiro, diante de sua negativa em revelar o paradeiro de Rodrigo Soares. Assim,

Chantal escolhia morrer em favor da revolução, negando-se a sobreviver com a culpa de

ter entregado o líder e desistido da esperança na transformação social que ele

simbolizava.

Essa era uma cena muito forte, muito violenta e alvo de diversos problemas ao

longo do processo. Diante de uma cena também pautada por uma encenação naturalista,

quem acabou fazendo o papel de Chantal foi uma das atrizes formadoras, Alexandra

Tavares, que teve a difícil tarefa de coordenar esse núcleo de trabalho ao mesmo tempo

em que protagonizava a cena.

A violência trazida pelo texto encontrou um correspondente muito mais forte no

trabalho de improvisação que ela conduziu para se chegar à cena final: por exemplo, o

estupro nasceu dos ensaios, e não do texto. Assim, foi de uma proposta feita pelo

núcleo, e não da direção de Jorge, que surgiu uma das cenas mais agressivas do

espetáculo.

Uma vez aceito o desafio de encarar a violência de forma explícita, os atores

então se debruçaram sobre a realização cênica do espancamento e do estupro, já que o

objetivo era conseguir um grau de realismo contundente, que não desse a impressão de

que os atores tivessem “coreografado” as cenas de violência.

O resultado dessa opção era o debate diário sobre os limites de cada ato de

violência e a construção da consciência da própria força e da relação estabelecida entre

os gestos de cada ator e os movimentos dos parceiros de cena.

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Além disso, os atores enfrentavam o desafio de encenarem algo visivelmente

desconfortável e incômodo para eles. No universo prisional, o estupro é um ato

imperdoável, e o contato físico que sua simulação promovia provocava muitos debates

em relação à validade de tal cena.

Em minha opinião, o seu nível de realismo provocava um envolvimento de outra

ordem no espectador. Muitas vezes o público deixava de se preocupar com a cena e o

contexto da peça e passava a se preocupar com a atriz, certo de que ela estava realmente

se ferindo. A violência era tão excessiva que passava a ser um fim em si mesma,

evitando que o público passasse a questionar as causas de atitudes tão desmesuradas,

tanto por parte de Chantal, quanto por parte dos militares.

Era, certamente, muito motivador para nós percebermos que ainda era possível

provocar reações tão inflamadas na platéia a partir de uma cena teatral, em um tempo

em que perseguimos um envolvimento genuíno do público com qualquer manifestação

artística. Mas ela exigia um tipo de sacrifício muito difícil de ser mantido por seus

artistas e uma confiança muito grande nas opções feitas pela direção em mantê-la com

aquele tom tão brutal.

Se, por um lado, o núcleo que mais sofreu alterações na composição do elenco

foi o da cela, por outro, a cena da Chantal foi a que demandou maior quantidade de

brigas e discussões, tanto de seus atores entre si, quanto dentro do grupo. E não é

exagero dizer que, praticamente até a última apresentação, ela ainda era fonte de tensão

e preocupação para o grupo, preocupados com a ocorrência de algum acidente entre os

atores e com a possibilidade de precisar de mais uma roda para debater aquela cena.

Depois da morte de Chantal, acontecia a cena XI, A Resistência. Chegávamos

ao clímax da peça, o momento em que não havia mais “estratégia” para se obter a

informação que só Paulo Degino possuía. Ele era sumariamente torturado, através de

choques elétricos, depois de ver todos os seus companheiros rumarem para a morte e

passar por tanta privação naquele tempo de confinamento. Como última estratégia, ele

mente. Rodrigo Soares está no cemitério. Ele sorri de satisfação, sabendo que não evitou

sua morte, mas a adiou em troco da satisfação de imaginar todos aqueles soldados

revirando túmulos e mais túmulos.

No momento seguinte, O Pátio, Paulo Degino se encontra com outros

prisioneiros. Um soldado grita: “É hora da bóia!”, anunciando a refeição. E lá ele recebe

a notícia de que Rodrigo Soares foi encontrado no cemitério. Ao mesmo tempo, entram

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os soldados carregando o corpo do líder assassinado. O espetáculo termina com os

presos gritando de desespero diante dos olhar dos militares vencedores.

4.5 O Espetáculo

Não era um espetáculo otimista. Terminava atestando o fracasso da investida

revolucionária. Sua cena final era seca, desesperada, não preocupada em provocar falsas

esperanças ou um mínimo de otimismo no futuro. O espetáculo acabava com a morte do

líder. A morte do líder enterrava os esforços de todos, inutilizava todos os sofrimentos

pelos quais eles passaram. E fim.

Era um tom bastante diferente do final dos outros espetáculos dirigidos pelo

Jorge, que sempre se preocupavam em exibir uma mensagem de esperança e alegria,

encerrando com música e procurando demonstrar uma crença na construção de um

futuro melhor.

O Rei da Vela encerrava com Vai Passar, de Chico Buarque, e todos os

integrantes sambando em um carnaval de esperanças. Mulheres de Papel terminava com

o desfile glorioso das integrantes em roupas feitas de papel reaproveitado,

especialmente confeccionadas para cada uma delas, a partir de seus próprios desenhos,

ao som de O que é, o que é de Gonzaguinha. Mas Muros acabava no silêncio. Solo le

Pido a Dios, na voz de Mercedes Sosa, entrava apenas nos agradecimentos.

Também entrava em discussão a opção pela estética naturalista e pela temática

abordada na montagem. Tínhamos consciência de que um processo cujo resultado era

portador de um discurso tão contundente sobre um sistema autoritário, como é o

universo prisional, só poderia acontecer com a liberdade de trabalhar fora de um

presídio.

Mas, ao mesmo tempo, surgia um questionamento sobre a natureza das escolhas

feitas pelos integrantes do processo, e sobretudo das opções feitas pela direção. Era um

questionamento saudável, intrínseco a qualquer processo artístico que pretende

permanecer vivo e pleno de sentidos para seus integrantes, interrogando constantemente

sua prática .

Sabíamos que aquele processo havia começado antes dos ensaios. A realização

de um espetáculo, antes de nascer a partir dos ensaios e da criação de um grupo de

pessoas reunidas em torno de um desejo de investigação cênica, era uma condição

essencial para que a FUNAP, a SAP e as unidades penais se interessassem pelo projeto

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Teatro nas Prisões. Assim, já assumíamos um compromisso de antemão, que era a

estréia de um espetáculo.

Obviamente, para cada uma das instituições envolvidas, o espetáculo era tomado

segundo os critérios que fossem mais interessantes para seus objetivos. Para a

Fundação, para os presídios, enfim, para a SAP, era essencial que aquela estréia

acontecesse, pois só assim o projeto adquiriria uma visibilidade que comprovasse, para

um público maior, a existência de projetos culturais direcionados para a população

carcerária.

Para nós, que lutávamos não só pela permanência, mas também pela própria

existência do projeto, restava assumir a realização de um espetáculo como condição e,

dessa forma, elaborarmos as melhores maneiras de lidar com os prazos e limites

impostos por esse fator.

Assim, não éramos literalmente obrigados a realizar um espetáculo, mas

entendíamos a sua importância no corpo da dinâmica institucional e optávamos pela sua

realização, tomando o cuidado de não sacrificar o caráter pedagógico do processo.

Lutávamos, diariamente, contra a tentação de resolver a encenação de modo

eficiente às custas da ausência de debates e de discussão coletiva das decisões artísticas.

Jamais deixávamos de lado a experimentação e a troca de opiniões relativas à peça e

seus personagens, impedindo o prevalecimento de uma direção que submetesse os

atores à obediência, alijados de parte essencial do exercício de criação.

Submeter atores, egressos, profissionais ou presos a respeitar marcações,

simplesmente porque a direção assim deseja, equivale, em última análise, a agir como a

própria prisão.

E por isso nosso processo muitas vezes se debruçava sobre as dificuldades reais

de optar pela construção, em todos os integrantes, da valorização de cada opinião a

respeito de tudo que envolvesse a criação artística.

No caso, essa construção era mediada pela criação de um espetáculo cujo texto

já veio escolhido pelo diretor do trabalho, e essa opção nunca deixou de ser questionada.

O texto, contundente e favorável ao trabalho cênico, era uma obra extremamente

vinculada ao cotidiano daqueles homens e mulheres.

O discurso da peça era completamente contra o autoritarismo e suas

manifestações violentas, como a tortura institucionalizada, denunciando a incapacidade

dos governos em lidar com as pressões populares, transformando-as em práticas

criminosas.

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O espetáculo mostrava os detentores do poder como torturadores violentos,

preocupados em manter sua posição à custa da contenção das revoltas populares, que

procuram mudar aquela estrutura política. Os populares estavam presos em uma cela, e

passavam todo o tempo sofrendo torturas físicas ou psicológicas. Esperavam a morte e

atribuíam à figura de Rodrigo Soares a última esperança de mudança daquela situação.

Como ele acabava assassinado, o espetáculo se encerrava em tom pessimista.

Não dava sinais de possibilidade de transformação, mas entregava à platéia a pergunta

que nós mesmos nos fizemos muitas vezes ao longo de todo trabalho: E agora, que a

última esperança ruiu?

As opiniões sobre o espetáculo foram bastante divergentes. Louvava-se mais

uma vez a qualidade do trabalho conquistado pelos artistas que iniciavam. Ou então

éramos elogiados pela coragem em abordar aqueles temas de forma tão direta no

contexto mais obviamente associado à situação representada pelo espetáculo. Mas o

incômodo provocado pela situação apresentada gerava questionamentos ao uso tão

explícito da violência.

Será que, ao colocar homens e mulheres saídos do contexto prisional em cenas

que aconteciam ou em uma cela, ou em situações violentas, carregando armas,

cometendo estupro e espancamentos, não estaríamos reforçando o estereótipo do preso

violento do qual eles precisariam se libertar?

Ao mesmo tempo, precisamos compreender esse espetáculo no momento em

que o diretor pôde, pela primeira vez, abrir mão de subterfúgios para tratar da realidade

prisional. Se os temas abordados por Muros estavam subentendidos nas peças

anteriormente encenadas por Jorge, agora ele obtinha estrutura para apresentar de forma

explícita sua crítica ao modelo prisional.

Nota-se que, na medida em que ele conquistou espaços de autonomia, os

espetáculos foram ganhando um vínculo maior com a linguagem naturalista. No

contexto repressor do COC, ele emprestou da comédia popular de Suassuna e da acidez

de Oswald de Andrade o contexto que validou a crítica às estruturas de poder ante aos

olhos atentos da instituição. Na PFT, a repercussão positiva de Mulheres de Papel já

demonstrava uma abertura ao naturalismo no trato de questões outrora embutidas em

uma poética cômica. Em Muros, finalmente, Jorge assumiu sua crítica, assinando

direção e adaptação do texto e optando por encarar o risco de desagradar a muitos.

O espetáculo realizaria sua estréia oficial em dezembro, dia 8, para uma platéia

seleta, na qual se esperava inclusive a presença do governador do Estado, que não veio.

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Mas lá estavam o Secretário da Administração Penitenciária, Doutor Nagashi Furukawa,

diretores de presídio, dirigentes da FUNAP e funcionários da SAP, para assistirem ao

que se tornou o último evento aberto ao público no Carandiru.

O espetáculo, apresentado oito vezes no Pavilhão II, teve uma repercussão

razoável, com lotação esgotada todos os dias, chegando a comportar quase cem pessoas

na última apresentação, sendo a lotação de sessenta pessoas.

Antes dessa pequena temporada, o espetáculo foi apresentado na III Mostra de

Licenciatura em Artes Cênicas da USP, para uma platéia formada principalmente por

universitários e professores do departamento de Artes Cênicas da Escola de

Comunicações e Artes, interessados no debate proposto por Muros.

O grupo também foi convidado a realizar uma apresentação, seguida de debate,

na histórica sede da Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, centro de

São Paulo e berço dos mais renomados profissionais da área em nosso país. Foi a

primeira vez que um grupo de presos entrou naquele lugar, que inauguraria, em 2005, a

primeira disciplina voltada para os Direitos Humanos na história do curso de Direito.

Foi uma apresentação muito significativa, e a platéia pouco ocupada simbolizava

a distância entre os técnicos do Direito e uma parcela significativa da população alvo de

sua ação profissional.

Essas apresentações atendiam nosso interesse em levar para diferentes

segmentos o resultado do trabalho, ampliando o debate que o projeto instaurava através

do próprio espetáculo e da natureza de nossa prática. Obviamente, nossa esperança era

de que essa repercussão atingisse o maior número de pessoas, e certamente a

possibilidade de uma grande temporada no Carandiru nos teria sido favorável nesse

aspecto.

Mas a infra-estrutura necessária era dispendiosa. Era preciso alugar todo o

equipamento de som e iluminação, incluindo aí um gerador, e providenciar banheiros

químicos para o conforto do público, já que lá não havia mais encanamento ou

instalações elétricas.

A FUNAP não tinha mais como pagar aqueles custos. Restava-nos esperar a

verba conquistada através da Lei de Fomento, que só chegou em maio de 2005, com

oito meses de atraso, em razão da desordem financeira do município e de um processo

judicial que impossibilitou o pagamento à Cooperativa Paulista de Teatro. Em abril

deixamos o Carandiru, cujas obras para a construção do Parque logo seriam iniciadas.

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Em julho daquele ano, o Pavilhão II seria implodido, em claro esforço de provocar a

falsa impressão de que aquele presídio nunca existira.

4.6 Em 2005

Todo o processo que sucedeu à temporada do Carandiru foi uma tentativa de

fazer com que o projeto não acabasse, apoiado no esforço da FUNAP em renovar os

contratos dos atores formadores e dos presos em regime semi-aberto, enquanto

aguardávamos a verba que nos era de direito junto à Secretaria Municipal de Cultura.

Foi um tempo dedicado a fazer valer todas as conquistas obtidas até ali, a

despeito dos integrantes que deixaram o processo pelas mais diferentes razões.

O contrato com o presídio de São Miguel estava extremamente fragilizado. Os

presos do regime semi-aberto haviam chegado atrasados por algumas vezes e alguns dos

integrantes não demonstravam interesse real pelos objetivos do trabalho. Mas a decisão

de romper o contrato e definitivamente excluir aquelas pessoas do trabalho foi muito

difícil de aceitar. Afinal, sempre lidamos com os diferentes níveis de interesse

apresentados pelos integrantes.

Mas naquele ponto do processo, em um momento em que tantos desistiam, era

arriscado demais manter uma situação tão instável. O nosso trabalho agora era

reconstruir cada uma das cenas, pois praticamente todas haviam perdido algum

integrante. E diante daquele momento de crise, optou-se por consolidar uma espécie de

segurança que nunca tivemos, que estava apoiada no compromisso de cada um com

relação ao grupo e ao espetáculo.

Na conversa final com os três integrantes do presídio de São Miguel, os limites

de nossa atuação acabaram todos expostos. Marcos, um deles, consciente da situação

que se apresentava, foi muito lúcido ao nos expor por que preferia realmente retirar-se

do processo. Por mais que ele entendesse o valor de seu compromisso diante do grupo,

sua vida nem sempre o deixava optar pelo que considerávamos certo para o trabalho.

Entender e até aceitar os acordos definidos em relação ao grupo não queria dizer

necessariamente que ele conseguiria, ou estaria disposto a cumpri-los o tempo todo.

Porque nem sempre isso era tão simples.

Assumir um compromisso perante um coletivo e fazê-lo valer não era tarefa fácil

para nenhum dos integrantes do grupo. Mas os presos, além de prestar contas para o

grupo, tinham de prestar contas a uma instituição. E, diferente de nós, a prisão não pede

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explicações, não desculpa, não oferece espaço para trocas de opinião e não considera o

erro uma possibilidade.

Na instituição punitiva, aqueles homens viviam submetidos a um número

infinito de regras e punições, num sistema tão regrado que não há como imaginar uma

equivalência com o mundo externo, onde estamos o tempo todo sujeitos a nossas

próprias decisões.

No processo teatral, construímos experimentações que abrem imensas

possibilidades. E selecionávamos, através de categorias que iam sendo elaboradas a

partir de muitos debates, os resultados que julgávamos mais interessantes para o

espetáculo.

Não havia, portanto, como imaginar criação artística sem entender o

compromisso junto aos parceiros, traduzido na participação prática nos ensaios e na

elaboração e esforço do cumprimento das regras. E essas regras deveriam atender aos

interesses de todos os envolvidos, dentro das disponibilidades oferecidas, sobretudo,

pelas instituições às quais devíamos prestar contas.

A procura pela consolidação desse processo de construção do grupo foi a grande

batalha do grupo em 2005. Um trabalho constante, que devia atribuir às discussões a

mesma relevância da criação cênica, a fim de efetivar a importância dos debates, e o

espaço para isso era a roda E mesmo que ela tenha estado presente desde o início, foi

demorado deixar de enxergá-la apenas como um espaço para discussões de cunho

pessoal.

Também era complicado retirar daquele espaço a suspeita de que servia apenas

para acusações. Havia um medo de que, se alguém levasse qualquer assunto para

discussão, o tema poderia acabar se voltando contra algum integrante do processo, que

invariavelmente centralizava o debate em sua defesa.

Era difícil, por exemplo, extrair de uma situação incômoda um tema mais amplo

e de interesse coletivo. Por exemplo, se sumisse o material de cena de alguém, resolver

aquela situação era um problema do grupo. Não interessava apenas descobrir um

eventual culpado, mas sim compreender a importância de não descuidar do próprio

material e também de não mexer no material de cena de outra pessoa, para evitar

problemas.

Essa era uma situação típica, que gerava discussões acaloradas e úteis para o

trabalho, e nos esforçávamos para não resolvê-las sem antes deixar que o próprio grupo

se manifestasse em relação ao caso. Em muitos aspectos as discussões eram cansativas,

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redundavam nas dificuldades específicas de cada participante e consumiam muito do

nosso tempo, que poderia ser dedicado a mais ensaio, mais processo de criação.

Mas o tempo atribuído a essas questões não podia ser encarado como

desperdício. Se aconteciam com freqüência, era por acreditarmos na importância da

transparência no trato das questões que diziam respeito ao grupo e pela certeza de que,

quando todos tinham a possibilidade de se manifestar, estávamos evidenciando a

importância do papel do teatro na vida daquelas pessoas.

Não é sem razão que a convivência grupal era apontada como uma grande

oportunidade oferecida pelo teatro. Mariângela, que já havia trabalhado conosco quando

estava presa no Tatuapé, valoriza essa questão: Eu acho bom as regras. Aqui tem que ter também, porque a gente veio de um lugar que tem suas

regras e ao mesmo tempo nada funciona, e aqui também muitas regras às vezes funciona, às vezes não,

porque nem sempre todo mundo anda pela linha certa. Eu aprendi uma coisa que é que a gente tem que

saber lidar com as pessoas diferentes, que eu era muito ignorante. Tinha aquela coisa de não esperar a

vez pra falar, de querer tudo na hora, então o grupo me vez perceber que não é sempre assim. E me

melhorou em outras coisas, que como eu sou vendedora, não dá pra tratar na ignorância. Tem gente que

diz que isso não é nada, mas eu tiro como uma lição de vida, pois eu estou me dando bem. E antes eu não

conversava com as pessoas.

Renato, do semi-aberto, também: Foram dez meses eletrizantes da minha vida. Eu estou aprendendo. Tipo assim, o teatro não é só

a gente estudar um texto e subir num palco e passar pras pessoas a nossa mensagem. A gente tem uma

relação de grupo, a gente conversa, a gente se espelha e sem querer a gente se pega analisando a vida do

outro e vai vivendo experiências novas. O que eu aprendi no teatro é que eu nunca tinha vivido uma vida

honesta. Eu trabalhei uma vez na minha vida, e fui preso com 18, roubava desde os 16. No teatro eu

aprendi a valorizar pequenas coisas. Eu achava que tinha que ter e pronto, e eu sei que o teatro é

resultado do meu trabalho, então você percebe o retorno. O grupo é muito louco! Ele é complexo. A

gente tem pessoas de A a Z, de todos os tipos, então é da hora. Cada um tem o seu jeito particular, e você

tem que ver os defeitos de cada um e superar e caminhar pra acontecer.

Nas palavras de Marcos, que provavelmente já cumpriu sua pena: Aprendi e resgatei algumas coisas, como o companheirismo, que você vê o tempo todo. Aprendi

a ter muita paciência, aprendo a ouvir, aprendi a falar, aprendi a criticar, aprendi a ouvir crítica. Há um

tempo atrás, se alguém viesse me criticar eu já agredia, coisa bem da mente pequeninha, fechada. Faz

diferença ser de em grupo, pois cada um tem uma opinião, um ponto de vista diferente. É claro que pra

mim cabe acatar o que eu acho certo, porque de repente o que é certo pra ele não é certo pra mim, e é

válido estar escutando, estar refletindo.

E nas palavras de Kely, uma síntese do esforço e da transformação que o

processo instigou em uma pessoa que nunca sequer teve vontade de fazer teatro na vida.

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No começo eu achava muito esquisito, fazer uma coisa que fosse do clima do presídio e ao

mesmo tempo não. No começo eu não entendia nada! Mas muita ficha está caindo agora. Eu estou

aprendendo que você tem que dar de si pros outros, tem que tirar de você pra platéia. Você tem que se

manusear pra fazer a peça e isso é bom demais. Eu aprendi a superar meu nervoso e conseguir ver o

outro lado das coisas. Ter paciência. Eu não sei explicar direito. Tem a realidade e a não realidade, o

personagem, e ao entrar na peça você tem que ser o personagem, mas aí você sai e tem que pensar em

você mesmo. Na discussão, você tem aquela raiva, mas tem que se acalmar, se controlar pro outro te

entender. O que me fez superar foi minha força de vontade, de aprender a gostar, pelo menos um

pouquinho. Ter a responsabilidade com o grupo, com os horários. Eu tinha um gosto e ao mesmo tempo

um desgosto, e eu me segurava por causa do dinheiro, mas aí eu faltava, ia no médico no horário do

ensaio. Hoje eu não faço mais isso. Durante o ano de 2005, o grupo cumpriu os objetivos previstos no projeto

aprovado pela Secretaria Municipal de Cultura. Realizou uma temporada de dois meses

no TUSP – Teatro da USP e uma longa temporada no Teatro Studio das Artes. Foram

ao todo 90 apresentações.

É importante destacar o valor da temporada em um bairro central de São Paulo,

na Pompéia, zona oeste da cidade. Ali o espetáculo atingiu um público potencialmente

diferente daquele que atingiria caso o foco se mantivesse restrito à população carcerária.

Isso redimensionou o espetáculo, apresentado agora para um público

improvável, cujo posicionamento crítico frente a atual situação de violência em nosso

país nasce dos lugares-comuns professados por uma imprensa pouco interessada em

levar a fundo o debate em que se insere o contexto prisional, ou professa uma

compreensão limitada do abismo social materializado nas esquinas de nossa cidade, em

que convivem o carro importado e a criança que pede esmola.

De certa forma, é a esse público que o espetáculo se dirige, é a esse público que

se pretende dar novas dimensões de nossa crise social, revelando a outra face do

estereótipo do crime e do criminoso, de forma a entender por que razões o sistema penal

não pode ser compreendido como única solução para as transgressões legais em um país

com tamanha desigualdade social como o nosso.

O grupo também realizou o Ciclo de Debates Teatro/Prisão, um primeiro passo

na tentativa de agregar pessoas interessadas em discutir o terreno de propostas estéticas

e sociais sobre as quais o Núcleo Panóptico de Teatro se debruça, ampliando os

significados e sentidos de nossa prática artística.

O primeiro encontro, realizado em 03 de novembro, contou com o psicólogo e

doutor pelo Instituto de Psicologia da USP Luiz Carlos Rocha, professor da UNESP em

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Assis, e com Manuel Portugues, sociólogo e mestre em Educação pela USP. Ambos

discorreram sobre o tema “A Instituição Penal”, objeto de suas pesquisas e experiência

profissional, inserindo a prisão em uma perspectiva histórica e contribuindo para a

crítica das perspectivas da “ressocialização”, que ela tanto preconiza.

O segundo encontro, realizado no dia 10 de novembro, contou com a presença

de Jorge Spínola, Valéria di Pietro, atriz, diretora e dramaturga, que relatou sua

trajetória na coordenação de projetos artísticos e cênicos dentro da FEBEM-SP, e da

professora do Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP Maria Lúcia Pupo,

compondo a mesa que tinha como enfoque o tema “Teatro nas Instituições Penais”.

No último dia, 17 de novembro, o tema debatido foi “Ação Cultural X Ação

Social”, e a mesa foi composta pelo professor da ECA/USP Flávio Desgranges, o

diretor do Grupo XIX de Teatro Luiz Fernando Marques, que relatou o processo de

construção do mais recente espetáculo do grupo, Hygiene, e ainda por Georgette Fadel,

atriz e diretora da Cia. São Jorge de Variedades, que relatou a experiência de seu grupo

em albergues municipais, onde o espetáculo As Bastianas foi concebido.

De temas de abrangência específica, caso das prisões, ao mais amplo, referente a

perspectivas de apropriação da arte por ações de cunho social, o ciclo de debates

agregou idéias que permeiam a prática de muitos profissionais da arte na cidade de São

Paulo, além de representarem uma arena instigante para integrantes do Núcleo

Panóptico.

Atualmente, o grupo luta pela sobrevivência financeira, ao mesmo tempo em que

cria, agora sob direção da até então atriz-formadora Lígia Borges, uma versão do texto

Marat-Sade, do dramaturgo alemão Peter Weiss, que versa sobre arte e opressão em um

ambiente manicomial.

Jorge Spínola agora atua, ao lado dos treze integrantes que sobreviveram aos

dois anos de trabalho encabeçados por Muros, vivenciando um outro papel dentro do

projeto resultante do sonho que o levou a produzir arte em presídios, o que muitos

consideravam loucura. Loucura é, em verdade, um dos temas de Marat-Sade.

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Notas de Inverno sobre Impressões de Verão: Conclusões

A prisão é um mundo construído com a missão de reeducar infratores, para

devolvê-los, disciplinados, ao convívio social. O processo que ela professa desenvolver,

a ressocialização, acontece fora do convívio social, em um espaço gradeado, isolado,

chumbado e vigiado onde resta aos infratores pouco a fazer senão lutar por sua

sobrevivência, enquanto convivem com outros condenados em um ambiente que acaba,

realmente, promovendo um processo de ressocialização. Mas não para o convívio entre

cidadãos livres.

O indivíduo submetido à prisão aprende a sobreviver lá dentro. Aprende como

deve se portar ante o corpo funcional, se quiser sofrer menos agressões. Aprende a

ganhar dinheiro dentro da cadeia, se quiser continuar se alimentando decentemente e

manter a cela limpa, pois precisa comprar os artigos que a prisão não oferece. Aprende

como arranjar facilmente um celular para manter contato com o mundo externo.

Aprende a lógica e a ética que regem os jogos de poder dentro da prisão, dos presos

entre si e dos presos em relação aos funcionários do sistema.

Aprende, enfim, a ser um preso. E é exatamente para isso que o presídio se

esforça: presos são previsíveis. Presos são reconhecíveis. Seus códigos de conduta

permitem que eles se matem sozinhos, permitem que eles cometam cada vez mais

crimes e assim sigam o resto de suas vidas entre o crime, a prisão e a ilusão da

liberdade.

Ilusão porque uma vez soltos, não lhes restam muitas alternativas a não ser

voltar para o crime. Não existem vagas de trabalho disponíveis para quem tem uma

ficha de antecedentes criminais, não há possibilidade de apagar o estigma que o tempo

perdido na cadeia marca na história do indivíduo, reduzido a ser sempre um criminoso.

Pode ter cumprido sua pena, mas será sempre um criminoso.

E a sociedade reconhece no ex-presidiário os horrores que acompanha pela

televisão a cada notícia de rebelião em cadeia. Ela se lembra dos 111 mortos no

Carandiru real e no Carandiru da ficção, ela se recorda das imagens de carcereiros com

a cabeça decepada, de colchões pegando fogo nos pátios da prisão, de funcionários de

presídio apanhando e sendo atirados do alto das muralhas de unidades penais. E,

definitivamente, não aceita a possibilidade de que aquele lugar produza qualquer

vestígio de melhora em quem tenha cumprido pena.

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O processo de construção da delinqüência (Foucault, 2004) é a definição que

melhor explicita o sentido da prisão dentro da ordem social hoje estabelecida. Essa é a

sua dupla função: fingir que protege a sociedade ao mesmo tempo em que confirma a

existência de um grupo social passível de constante vigilância. O atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve talvez ser substituído pela

hipótese de que a prisão conseguiu muito bem produzir a delinqüência, tipo especificado, forma política

ou economicamente menos perigosa - talvez até utilizável – de ilegalidade; produzir os delinqüentes,

meio aparentemente marginalizado mas centralmente controlado; produzir delinqüente como sujeito

patologizado. O sucesso da prisão: nas lutas em torno da lei e das ilegalidades, especificar uma

“delinqüência”. (Foucault, 2004: 231).

A cadeia aparenta estar em crise. Isso não significa que seu fim esteja próximo,

muito pelo contrário. A cada dia exigem-se mais e mais unidades, na medida em que

diferentes setores da sociedade civil se apóiam na desumanidade da prisão com o intuito

de fazer a “justiça” prevalecer.

E a tentativa de fazê-la prevalecer justifica os imensos gastos com construção de

muitas outras unidades penais, cada vez mais e mais complexas e seguras. Justifica o

valor despendido com todo o aparato policial e de vigilância e compromete uma quantia

insustentável, em médio prazo, da verba do Estado, que vai precisar desenvolver

alternativas paliativas para a atual demanda por penalização e criminalização que

contamina os discursos professados por diferentes setores da sociedade.

Se há um ponto de acordo entre eles, dos mais conservadores aos mais radicais,

está relacionado à prisão. E quando se constata que os grupos mais radicais da

sociedade civil não conseguem pensar em outras formas de justiça que não o

aprisionamento, temos ciência do grau do vínculo estabelecido entre o sistema

penitenciário e o corpo social, e da dimensão da luta que é preciso travar contra a

naturalidade com que a prisão é enxergada na dinâmica punitiva da sociedade.

Entrar em um presídio e propor um processo teatral é, em muitos aspectos, o

avesso do tipo de trabalho que é feito naquele espaço, preocupado que está seu corpo

funcional em manter o equilíbrio da instituição através de muita vigilância, medo e

punição.

E é também o avesso do que se preconiza para um processo artístico, pois em

uma prisão a arte sempre vai esbarrar nos limites impostos pela política institucional

que a permite existir e, para muitos, seguir fazendo arte nessas condições é render-se ao

sistema que se pretende criticar.

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Ninguém é ingênuo nesse jogo. A instituição coíbe, mas permite, pois sabe que

lhe faz bem mostrar um lado humano de seu papel punitivo, uma face estimuladora de

criatividade em seu ambiente, um produto artístico em seu espaço onde só há lugar para

o que é mensurável em termos de produção de artigos nas fábricas que lá se instalam.

Nos processos que vivenciei, resistíamos às pressões da instituição imaginando o

tipo de resultado que seu corpo dirigente esperava de nosso trabalho, e nos

esforçávamos para mostrar o quanto éramos capazes de satisfazê-lo.

Respondíamos às críticas do corpo institucional sempre com “grande”

propriedade: O texto é muito forte? Mas o autor é um cânone da literatura nacional! Há

um nu em cena? Mas o efeito daquela cena é de um valor poético inestimável para o

espetáculo, que está sendo muito elogiado pelas pessoas que visitam a unidade. E assim

o espetáculo ficava mais próximo de como gostaríamos que ele fosse e o processo

permanecia sob nossa regência.

Isso é essencial para que se perceba a dimensão da responsabilidade dos

condutores do processo atrás das grades: tão importante quanto o espetáculo, é o desafio

de construir um grupo.

Porque esse desafio, que atinge qualidade correspondente ao nível das

discussões produzidas pelos integrantes ao longo do processo, consolida um exercício

de tomada de consciência da importância de cada contribuição para a constituição do

grupo, indicando a capacidade de produzir reflexão conectada com a prática diária junto

ao texto, ao espaço cênico e aos companheiros de empreitada.

Piaget e, mais tarde, Kohlberg se debruçaram sobre o processo riquíssimo de

construção da consciência das regras pelos seres humanos. E comprovaram que, para

um indivíduo desenvolver-se rumo à autonomia, ele precisa entrar em relação com o

universo moral de seu próprio grupo social, instaurando um processo constante de

atribuição de sentidos aos desafios propostos pelo cotidiano, à luz das regras instituídas

pela sociedade.

Autonomia é uma palavra que compreende a idéia da cooperação, e cooperação

existe na relação entre indivíduo e grupo. Outra vez o avesso da cadeia, que prima pela

individualidade e pela massificação dos comportamentos. E outra vez o teatro persegue

o oposto: ele precisa da descoberta dos potenciais individuais, mas amparados e

colocados a serviço de um esforço coletivo.

O processo, conduzido aparentemente rumo a um espetáculo, está protegendo

seu cerne, pois sua intenção não-declarada é gerar debates, é produzir posicionamento

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crítico, é conduzir ao respeito mútuo, é fazer com que as regras sejam respeitadas não

por coerção, mas pelo seu sentido de preservação do esforço coletivo, por respeito

sincero aos outros que também se esforçaram para chegar ao ensaio no horário, que

também abriram mão de outros afazeres para estudar o texto e que decidiram melhorar

as condições do ensaio, do espetáculo e do convívio.

Melhorar: para isso os integrantes devem elaborar as regras de funcionamento do

grupo e se esforçar para consolidá-las; para isso eles combinam diferentes

possibilidades de improvisação para a cena que vão criar. Porque é possível

compreender mais profundamente os significados das regras que vão ser preservadas e

dos movimentos e falas que vão ser encenados, quando se participa de sua criação.

E um processo de criação, principalmente dentro de um presídio, que seja

conduzido com a intenção de investigar a profunda relação entre liberdade e arte não

pode agir como a cadeia: não pode obrigar ninguém a chegar no horário às custas de

terrorismo, não pode obrigar ninguém a fazer o que não quer em cena e não pode

permitir que as pessoas permaneçam, durante os ensaios, apenas caladas, obedecendo.

Fazer com que as pessoas se exponham, emitam suas opiniões, engajem-se nos

desafios do texto e da encenação, percebam e construam quantos sentidos forem

possíveis de se associar ao fazer teatral é, sem duvida, um exercício muito maior que

montar um espetáculo.

Mas fazíamos as duas coisas: construíamos um espetáculo ao mesmo tempo em

que nos voltávamos para a construção de um vínculo sincero entre os integrantes e o

texto, entre os integrantes e a encenação e, no fim, entre os integrantes e o compromisso

com o público.

O espetáculo não era só o momento do deleite, não era só o resultado de meses

de ensaio. Era o momento crucial da conquista da relação com as mais variadas platéias.

Ele concentrava, em uma hora de apresentação, um momento de surpresa para público e

artistas.

Era o último desafio que a arte teatral trazia para o grupo, o de transmitir algo

muito maior que o texto, muito mais surpreendente que a cena: mostrar que eram

capazes de fazer algo significativo; exibirem-se no desafiador momento de provar que

eram capazes de ser artistas, de mostrarem que eram mais que bandidos.

E a platéia aplaude esse momento surpreendida por seus próprios preconceitos.

Por ver que, realmente, as imagens dos presos em atos odiosos resulta não de uma

natureza maligna inerente aos criminosos, mas se configura como resposta ao próprio

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sistema, que produz aquele desespero todo. Por ver que, em resposta a um outro

tratamento, presidiários podem realizar uma obra de arte e outras imagens,

provocadoras de emoções de outra ordem, aplausos e lágrimas.

O espetáculo é um ciclo que se conclui. A satisfação, ou não, dos envolvidos

agora tende a ficar clara. Os esforços agora se traduzem na manutenção e multiplicação

da obra, na esperança de que cada pessoa da platéia se mobilize a partir daquele

encontro. Que ela consiga enxergar o prisioneiro com outros olhos e se interesse em

desvelar os terrores da prisão, para criticar esse produto da ação humana que, como tal,

pode e precisa ser reavaliado.

“Diante das contradições e limites de uma prática teatral com presidiários, é

possível que ela provoque fissuras, rupturas no sistema que a comporta?” foi a pergunta

que me propus a investigar, a partir da análise de minha experiência com teatro nas

prisões, acompanhando o trabalho do diretor Jorge Spínola e do Núcleo Panóptico de

Teatro.

Sim, o trabalho teatral provoca inúmeros questionamentos à estrutura da

instituição prisional. Não é sem razão que o teatro luta para sobreviver em um contexto

dominado pela ausência de interesse por aquele que deveria ser seu único objeto de

atenção, o processo de ressocialização dos apenados, e é encarado como opositor aos

princípios de disciplina e segurança da unidade penal.

O desconforto da instituição perante o trabalho teatral, e vice-versa, é um

princípio de trabalho, é parte integrante do contexto, e deve ser assumido como uma

realidade a ser enfrentada diariamente por quem decide produzir arte atrás das grades.

Não adianta reclamar da falta de apoio do presídio, não adianta perder tempo se

insurgindo contra o tratamento pouco amigável dispensado pelos funcionários. Na

maioria das vezes, o trabalho está apoiado no interesse pessoal dos artistas envolvidos e

na crença de que aquele processo vai fazer sentido para os que dele participam.

Sobreviver à indiferença, ou o que é pior, às pressões da instituição, valorizando

o espaço conquistado com um processo que restabeleça o sentido crítico de homens e

mulheres habituados pela prisão a não demonstrarem vontade própria e a não emitirem

opinião, é um outro meio de provar o que o teatro pode mobilizar.

Em lugar algum é possível considerar um trabalho teatral autoritário, pautado na

obediência dos artistas às marcações do encenador, como um processo relevante. Mas

na cadeia, um processo assim é cruel, por não trazer nenhuma contribuição para os

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envolvidos, que só encontrarão um outro lugar para se sentirem alijados de capacidade

crítica a partir de um tratamento que os reduz a “seres que seguem regras”.

Por isso a relevância do espetáculo e do seu significado, do discurso que ele

produz sobre aquela realidade prisional. Porque a história do aprisionamento daquelas

pessoas é algo tão forte que já constitui um signo da encenação: presos conseguiram

realizar um trabalho teatral.

O espetáculo assusta o universo institucional, pois ele é a prova da capacidade

de mobilização dos aprisionados. É um momento em que o sucesso da empreitada

depende do envolvimento e da confiança no esforço coletivo, e isso é contrário ao

esforço individualista que a prisão tenta produzir no apenado.

Por um momento, o artista, e não o preso, está em primeiro plano. E a beleza que

o teatro é capaz de provocar só faz ampliar a terrível condição que é estar preso. Assim

como a desgraça de estar preso amplia a beleza que o teatro é capaz de provocar.

E produzir arte, em última instância, ofende a missão não-declarada, a função

real, mas pouco enobrecedora da instituição prisional, que é seu caráter punitivo.

Receber aplausos, elogios e atenção não é para os presos; é para a cadeia, é para o

diretor da unidade. Afinal, ele se arriscou muito ao permitir que um grupo de presos

tomados por artistas ensaiasse dentro de suas dependências.

E aí surge o esforço da instituição em encerrar o projeto. Foi-se o tempo de

expulsões escandalosas, como acontecera com Ruth Escobar, que estampou notícias em

jornais e, acusada de incitar uma rebelião, tornou-se alvo de ação judicial. Foi-se

também o tempo do descuido envolvendo o projeto de Maria Rita Freire Costa, que

obteve permissão para realizar uma apresentação fora do presídio mas, acompanhada de

apenas uma policial, acabou assistindo à fuga de algumas integrantes na porta do Centro

Cultural São Paulo.

Essas experiências ganharam, em sua época, notoriedade e apoio. Foram

exemplos da possibilidade de realização artística dentro da prisão. Mas, ao mesmo

tempo, serviram de justificativa para que práticas teatrais em cadeia fossem

desestimuladas. Afinal, deram visibilidade às condições de vida dos apenados e, na

lógica do corpo funcional, de alguma forma estimularam a revolta e o desejo de fuga de

algumas presas.

Hoje, o teatro não é impedido de entrar na prisão; ele é impedido de permanecer,

de se consolidar. O espetáculo pode até estrear, mas se ele vai conseguir atingir um

número razoável de apresentações é uma outra questão. E assim o esforço redunda em

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uma certa sensação de desperdício, de impotência, de incapacidade de enfrentar o

inimigo fatal que é a instituição.

E corre-se o risco de desistir.

O breve panorama histórico dos processos teatrais descritos no capítulo dois

ostenta trajetórias de realizações marcadas tanto pela coragem, como pelo cansaço de

seus protagonistas.

Frei Betto percebeu, realizando encenações, a possibilidade concreta de produzir

reflexão significativa a partir das experiências de vida de homens presos.

A partir do depoimento do diretor Roberto Lage, percebe-se como as práticas

avançam na medida em que os processos conquistam possibilidades de se desenvolver

em prazos de tempo maiores. Ele é o primeiro a mencionar a importância do valor

agregador da arte teatral, e de como a consciência de pertencimento a um coletivo capaz

de realizações significativas perturba a relação entre o corpo institucional e os presos.

Da longa parceria entre Elias Andreato e Maria Rita Freire Costa, deve-se

destacar um modelo de criação coletiva que conquistou notoriedade não só pelo âmbito

social da ação realizada, mas também pela qualidade artística dos espetáculos

concebidos junto às atrizes da PFC.

Nesse caso, a relação entre a continuidade e a qualidade do trabalho, realizado

durante seis anos consecutivos, traz à tona justamente a triste conclusão dispensada ao

Projeto Drama: Processos Educativos Através do Teatro, que foi abruptamente

interrompido, após uma série de incursões bem sucedidas em penitenciárias de todo o

Estado de São Paulo.

O Projeto Drama, ao propor oficinas de teatro-fórum com prisioneiros para

tratar de temas polêmicos como Direitos Humanos, foi um marco do reconhecimento da

utilização de técnicas dramáticas e do teatro como instrumento pedagógico em prisões.

Pode-se questionar a pouca atenção dispensada ao caráter artístico dessas

experiências, mas realmente questionável é o encerramento desse projeto, finalizado

sem maiores satisfações após seis anos de um trabalho que envolveu presos, agentes

penais, monitores educacionais e técnicos da FUNAP, artistas e instituições nos âmbitos

federal e estadual.

Mulheres de Papel foi um exemplo da insensibilidade de um sistema interessado

em manter sua rotina, que não hesitou em fomentar o encerramento de dois anos de

trabalho. A cada apresentação, sessenta pessoas viam as condições de vida daquelas

mulheres. Sessenta pessoas sentiam medo de compartilhar um espaço construído para

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conter quinhentas criminosas, e se perguntavam seriamente se aquelas condições seriam

capazes de produzir alguma mudança positiva em alguém. Sessenta pessoas assistiam a

um espetáculo e deixavam o presídio certamente avaliando o tipo de relação

estabelecida entre aquelas mulheres e público, comparando-o ao tipo de cuidado que

lhes fora dispensado pelos funcionários da unidade, no curto percurso trilhado para

chegar ao pavilhão em que a peça era apresentada.

Não interessava nada disso ao presídio, sobretudo quando ele se percebe diante

da capacidade da arte em construir muito mais sentidos do que aqueles que seu corpo

funcional pode prever. Por isso fomos expulsos.

Essa habilidade da arte em produzir sentidos além dos explicitados pelos

elementos materiais e textuais da cena, essa capacidade de construir significados outros

diante do espectador constitui-se em uma das fissuras possíveis que escapam ao controle

do sistema penal.

Por essa razão o cuidado com a temática e a qualidade estética da obra realizada

atrás das grades: como toda obra, é na sua capacidade de reverberar sentidos que ela

será apreciada. E na prisão, onde se objetiva tanto controle, a arte fornece matéria

impalpável e alheia a submissões.

Muitas vezes, avaliei a opção de trabalhar fora do presídio, com egressos e com

presos em regime semi-aberto, como uma desistência. Eu enxergava naquela estrutura

uma fuga do local em que nosso trabalho fazia mais sentido, de uma escolha arriscada

em prol de uma facilidade que comprometeria nossos objetivos e nossa opção por fazer

teatro na prisão.

Mas me assustei quando percebi que nosso trabalho era muito mais difícil fora

da prisão do que dentro dela. Todas os componentes do grupo, em verdade, se

assustaram. Nós ensaiávamos com pessoas sobre as quais nada sabíamos, que estavam

recomeçando a construir sua vida em liberdade, e muitas vezes discutíamos para fazê-

las obedecer às leis da cadeia, em nome de sua permanência no processo.

A estratégia superou nossas expectativas: o Núcleo Panóptico ainda existe, sem

os presos do regime semi-aberto, mas com muitos dos atuais atores integrados ao grupo

quando ainda se encontravam nessa fase da progressão da pena.

Pudemos vivenciar a possibilidade de apresentar muitas vezes o espetáculo, e

acompanhamos os desdobramentos das fases do processo: um momento que durou até

depois das primeiras apresentações, quando era novidade para a maioria dos

participantes; não sabíamos tudo sobre o espetáculo, não sabíamos tudo sobre o texto,

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não sabíamos tudo sobre o que estávamos fazendo em cena. Mas as apresentações

aconteceram assim mesmo.

E ao longo do ano de 2005, dedicado a muitas apresentações, não só o texto foi

ficando mais claro, não só a peça foi ficando melhor. O interesse pela prática teatral,

pela linguagem cênica, também passou a existir de forma real. Não era mais assunto de

domínio da direção e dos atores formadores; não era um tipo de assunto que só surgia

através de intervenções “profissionais”.

Podíamos reavaliar as opções estéticas feitas em Muros e decidir o que nos

motivava a continuar encenando. O grupo podia questionar a linguagem naturalista,

podia duvidar das opções da direção, e no meio de tantas interrogações, uma certeza se

consolidava: estavam dispostos a seguir com o teatro. E agora o discurso tinha que ser

mais do grupo que do Jorge. Menos cadeia e mais outras possibilidades.

Mas não se pretende distância da cadeia para esconder a própria história. Esse

passado é patrimônio significativo, essencial para provar o valor de um grupo de

egressos que trabalha por opção própria em um desafio arriscado, inseguro e que os

expõe excessivamente ao perigo. Estão em cena. Porque decidiram que é isso que

querem. Porque enxergam no teatro uma maneira de responder à cadeia e provar que ela

não os venceu.

Esse foi um passo significativo, conquista do trabalho de Spínola ao longo dos

quase dez anos em que ele se dedicou a processos teatrais com população carcerária.

Munido da filosofia pedagógica de Paulo Freire e de uma experiência teatral bastante

vinculada às práticas do Teatro do Oprimido, seu trabalho não construiu uma

metodologia. Porém ele viabilizou uma seqüência de práticas teatrais que foram

construindo uma crença profunda na criação de espaços em que homens e mulheres

presos encontravam a possibilidade de valorizar sua capacidade de produzir idéias e

debatê-las.

Precisavam avaliar e construir seu vínculo com um grupo e, portanto, não apenas

reaprender a respeitar regras, mas ter consciência da sua necessidade e fazer valer seu

cumprimento, se realmente se interessassem em concluir um projeto coletivo.

A palavra consciência possui um peso muito grande quando o que está em jogo

são pessoas submetidas a um regime de coerção e obediência. Para a prisão, a

obediência é suficiente. Para o teatro, obedecer pode ser bom, mas a consciência do

pertencimento a um grupo com objetivo comum é melhor.

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O teatro na prisão constrói um espaço que estimula a autonomia em um

ambiente marcado pela heteronomia. No entanto, cientes de que o teatro não vai mudar

todo o sistema penal, qual seria o sentido de se promover um processo artístico coletivo

dentro de uma penitenciária?

A possibilidade de interação com o processo de construção do contrato de

trabalho e, no caso do teatro, com as decisões estéticas levadas para a cena, promove

uma reflexão no âmbito da coletividade.

O que as práticas teatrais aqui analisadas propuseram foi a possibilidade de

infratores tomarem decisões e, com isso, entrarem em contato com regras e leis, de tal

forma que pudesse ser percebida a importância não só do seu cumprimento, mas

sobretudo da participação coletiva nos debates que lhes deram origem.

Esse tipo de relação pode nascer de um processo teatral, ou de qualquer outra

prática que acredite no potencial de desenvolvimento da autonomia pelo homem.

A cadeia não produz essas práticas. E nem vai produzir. Elas podem acontecer

com o esforço dos que ainda se aventuram por aquele mundo, cada vez mais perigoso e

hostil, nos espaços restritos de resistência ainda encontrados por lá: suas salas de aula,

suas oficinas culturais e, por que não, nos postos de trabalho que ela oferece a homens e

mulheres aprisionados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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