Teatro Vocacional e a Apropriação da Atitude Épica Dialética

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1 MARIA CECCATO

TEATRO VOCACIONAL E A APROPRIAO DA ATITUDE PICA/DIALTICA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas, rea de Concentrao em Pedagogia do Teatro, Linha de Pesquisa em Teatro e Educao, da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do Ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao do Professor Doutor Flvio Desgranges.

So Paulo 2008

2 CECCATO, Maria. Teatro Vocacional e a Apropriao da Atitude pica/Dialtica. 2008. Dissertao. rea de concentrao em Pedagogia do Teatro, Linha de pesquisa em Teatro e Educao. Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas, Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo.

RESUMO

Este trabalho registra criticamente a experincia de implantao e coordenao do Projeto Teatro Vocacional do Departamento de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo, entre os anos de 2001 e 2004. Para tanto, analisa alguns

princpios de ao, abordando pressupostos tericos e prticos. Orienta esta anlise a avaliao dos fatores envolvidos na efetivao da proposta artstico-pedaggica do Projeto, principalmente no que concerne ao processo de apropriao pelos artistas vocacionados dos meios de produo esttica - atravs da articulao do discurso cnico-, a partir de uma pedagogia emancipatria e visando a ocupao do espao pblico. Nossa principal suposio de que estes objetivos podem ser alcanados atravs do entendimento de uma atitude pica/dialtica em relao matria cnica.

Palavras-chave: teatro vocacional, teatro pico, poltica cultural, pedagogia teatral.

3 CECCATO, Maria. Teatro Vocacional e a Apropriao da Atitude pica/Dialtica. 2008. Dissertao. rea de concentrao em Pedagogia do Teatro, Linha de pesquisa em Teatro e Educao. Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas, Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo. .

ABSTRACT

This paper critically records the experiment of implanting and coordinating the Projeto Teatro Vocacional do Departamento de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo from 2001 to 2004. For that, it analyses action principles approaching theoretical and practical assumptions. This analysis is guided by the assessment of factors involved in the effectiveness of the projects artistic and pedagogical proposal, mainly in that it regards the process to be held by the called artists in the aesthetic production field through the articulation of a scenic speech from an emancipating pedagogy and aiming the occupation of the public space. It is strongly believed that these goals can be achieved through the understanding of an epic and dialectic attitude concerning the scenic topic.

Keywords: Teatro Vocacional, epic theater, cultural politics, theater-pedagogy.

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Para minha me, Ins Knaut (in memorian).

5 Agradecimentos Em primeiro lugar, ao meu marido Paulo Barcellos, por quem me apaixonei ao ouvi-lo descrever seu trabalho com um grupo vocacional de adolescentes do bairro do Bexiga. Ele fez parte da equipe de coordenadores artsticos pedaggicos do Projeto e compartilhou comigo cada momento desta escrita. parceria calma e sabia de meu orientador Flvio Desgranges. minha irm Joana Ceccato pelo apoio imprescindvel. Ao meu pai, Flvio Porto. Celso Frateschi, pela confiana em mim e pala sabedoria compartilhada a cada dia da nossa coordenao do Projeto Teatro Vocacional. Agradeo muito especialmente equipe de coordenadores artsticos pedaggicos sem os quais no seria possvel, hoje, refletir sobre esta experincia: as parceiras para sempre Cristina Rocha, Ded Pacheco, Mariana Leite, Nelli Sampaio, Renata Deuse e Samantha Precioso. Aos meus companheiros de teatro pico da Cia. do Lato e a todos os alunos que tive desde ento. s professoras que me acompanham desde a graduao Ingrid Dormien Koudela e Maria Lcia de Souza Barros Pupo. Ao professor Lus Fernando Ramos pela orientao e compreenso, quando eu interrompi um primeiro projeto de mestrado por estar trabalhando 12 horas por dia na coordenao do Projeto Teatro Vocacional. Aos meus professores durante a ps-graduao, Silvia Fernandes (durante a elaborao do primeiro projeto de dissertao de mestrado), Jos Teixeira Coelho Netto e Maria Lourdes Motter (in memorian). toda a equipe da Secretaria Municipal de Cultura, especialmente aos diretores do Departamento de Teatro, Reinaldo Maia (que no me deixou desistir) e Kil Abreu. Ftima da Luz Viscarra e Rui Martins pelo companheirismo e por me ensinarem a ver verdadeiramente as pessoas. Branca Ruiz por nos guiar nos caminhos tortuosos da administrao pblica. Aos parceiros do Departamento de Teatro: Sulla Andreatto, Gustavo Trestini, Deborah Serritiello, Ana Souto e Gisele Valeri. Ser difcil agradecer a tantas pessoas que consideramos parte constituinte da realidade da construo do Projeto Teatro Vocacional. Salientamos sempre que este foi um Projeto criado coletivamente a partir da contribuio de cada integrante da equipe. Por tanto no podemos deixar de agradecer a cada artista orientador que participou desta equipe: Adrana Fortes, Aglaia Pusch, Ana Flvia Chrispiniano, Ana Maria Andreatta, Andr Blumenschein, Anie Welter, Bernadete Alves, Ctia Pires, Chico Villa (in

6 memorian), Cnthia Almeida, Cludia Alves Fabiano, Cristina Lozano, Daniela Schittini, Deborah Lobo, Edilson Castanheira, Eduardo Silva, Elvis Freitas, rica Montanheiro, Ernandes Arajo, Eucir de Souza, Evill Rebouas, Expedito Arajo, Fernando Faria, Flvia Bertinelli, Gisele Ramos, Gisella Mills, Guilherme Marbac, Heitor Goldfluss, Henrique Guimares, Ingrid Ferreira,Ipojucan Pereira, Ivan Delmanto Jacqueline Obrigon, Joelson Medeiros, Johana Albuquerque, Jos Ferro, Juliana Jardim, Juliano Pereira,]Kely de Oliveira, Lcia Capuchinqui, Luciana Schwinden, Luciano Carvalho, Luciano Gentile, Luiz Fernando Marques, Lus Mrmora, Magali Biff, Manuel Boucinhas, Mara Elisa, Mara Heleno, Marcelo Andrade, Marcelo Braga, Marcelo dos Reis, Marcelo Romanholi, Mrcio Martins, Marcos Bulhes, Graa Andrade, Mariana Loureiro, Mario Santana, Melissa Migueles Panzutti, Mica Winiaver, Miriam Rinaldi, Mrtes Mesquita, Mnica Sucupira, Ndia de Lion, Natlia Lorda, Nilson Muniz, Olimaris de Freitas, Patrcia Guifford, Paula Klein, Pedro Felcio, Raissa Gregori, Raquel Anastcia, Rodrigo Sanches, Rodrigo Velloni, Roger Muniz, Rogrio Moura, Sandro Sollaz, Sidnei Caria, Soledad Yungue, Olimaris de Freitas, Soraya Aguillera, Tadashi Kono, Tatiane Floresti, Valter Lagoa, Vanderlei Bernardino, Vnia Terra, Vicente Conclio, Vicente Latorre, Vilma Campos, Walmir Pavam, Walter Portela, Wilson Julio, Wladimir Mafra. todos os artistas participantes do Projeto Teatro Vocacional. Beatriz de Paoli, minha colaboradora virtual. Zeca Capellini e equipe da Escola Municipal de Iniciao Artstica de Santo Andr pela compreenso.

7 SUMRIO INTRODUO...............................................................................................................9 CAPTULO 1 - ASPECTOS DE UMA POLTICA CULTURAL 1. A Proposta Poltica da Gesto e a Questo da Identidade Cultural.....................17 1.1 Organograma do Departamento de Teatro...............................................18 1.2 Identidade Cultural.....................................................................................26 1.3 Produo oculta............................................................................................37 2. Dilogo com as Administraes dos Equipamentos e Arte como Crtica da Cultura............................................................................................................................41 2.1 Ecos de uma poltica cultural......................................................................44 2.2 O Teatro Vocacional....................................................................................52 2.3 O direito apenas incluso no mercado....................................................59 2.4 Influncias de Brecht e Benjamin...............................................................63 2.5 A compartimentalizao dos conhecimentos ............................................66 2.6 Relato das dificuldades................................................................................68 2.7 A arte como crtica da cultura....................................................................79 CAPTULO 2 - UMA PEDAGOGIA EM BUSCA DO TEATRO COMO AO NO ESPAO PBLICO 1. Idia de Coletivo:O Teatro de Grupo e a Coletivizao dos Meios de Produo87 1.1 Valores recorrentes no teatro de grupo.....................................................89 1.2 Identidade.....................................................................................................96 1.3 Coletivizao dos meios de produo.......................................................101 2. Idia de Coletivo: A Comunidade..........................................................................112 2.1 Grupos amadores.......................................................................................112 2.2 Movimentos culturais................................................................................118 2.3 Encontro com o vazio................................................................................121 2.4 Comunidade e Campo Pblico.................................................................122 3. As Imagens de Grupo..............................................................................................136 3.1 Primeiros procedimentos para nucleao................................................137 3.2 A imagem do Outro...................................................................................140 3.3 Experincia do excesso..............................................................................142

8 3.4 Superfcie do corpo....................................................................................145 3.5 Unidos somos teatro...............................................................................150 4. Autonomia ou Emancipao?.................................................................................157 4.1 Formar um grupo......................................................................................157 4.2 Seguir em Frente........................................................................................171 4.3 Emancipao..............................................................................................174 4.4 Estratgias para uma criao crtica.......................................................181 CAPTULO 3 - TEATRO VOCACIONAL E ATITUDE PICA/DIALTICA 1. Atitude pica............................................................................................................189 1.1 Citao........................................................................................................190 1.2 Fbula.........................................................................................................197 1.3 Fico..........................................................................................................200 1.4 Narrativa.....................................................................................................210 1.5 O rapsodo....................................................................................................212 1.6 A exibio do discurso...............................................................................219 CAPTULO 4 A CONSTRUO DO DISCURSO 1. Fico e gesto esttico..............................................................................................223 1.1 A fico do bobo ou a tragdia de um rei................................................224 1.2 A interveno na moldura ou a histria de Alpio..................................246 1.3 A escrita como montagem ou a Sociedade Annima..............................254 CONCLUSO EM PRIMEIRA PESSOA................................................................266 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................270 ANEXOS.......................................................................................................................276

9 INTRODUO

Durante a gesto da Prefeita Marta Suplicy (2001-2004), criamos, implantamos e coordenamos o Projeto de Teatro Vocacional na cidade de So Paulo. Pretendemos, nesta dissertao, realizar um registro crtico desta experincia e analisar alguns princpios de ao, abordando pressupostos tericos e prticos. Contudo, antes de abordarmos estes pressupostos, ser necessrio descrever, sucintamente, o Projeto Teatro Vocacional durante nossa coordenao. O Projeto de Teatro Vocacional foi criado em maio de 2001 e teve suas atividades prticas iniciadas em junho do mesmo ano. O ento diretor do Departamento de Teatro, Sr. Celso Frateschi, elaborou o Projeto dentro de uma perspectiva de atender aos trs eixos da poltica cultural propostos pelo Secretrio de Cultura, Sr. Marco Aurlio Garcia: sociabilizao dos bens culturais, veiculao e difuso de uma produo oculta e elaborao de um pensamento esttico crtico que refletisse as questes mais relevantes do sculo XX. A partir destes primados, o Programa de Teatro Vocacional foi elaborado para possibilitar um intercmbio entre a produo teatral no-profissional nos bairros da cidade e os outros dois eixos demandados pelo gabinete desta pasta e aqui representados pelos demais ncleos deste Departamento: pelo Ncleo de Projetos Especiais, responsvel pelo Programa de Formao de Pblico, as Mostras Teatrais e a conferncia O Teatro e a Cidade, e pelo Ncleo dos Teatros Distritais, responsvel pela administrao da ocupao dos teatros de bairro e pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro. A proposta do Projeto era, atravs de uma equipe de artistas-orientadores (artistas atuantes no cenrio do teatro paulista com um entendimento de pedagogia atravs da encenao), que trabalhassem em rede pela cidade, formar novos grupos de teatro no-

10 profissional e orientar os j existentes. O propsito era oferecer uma gama de informaes que possibilitassem, alm da veiculao de suas produes, um acesso elaborao de um pensamento esttico conseqente e autnomo. Quando iniciamos o trabalho em 2001, fizemos uma verificao prvia dos equipamentos em que gostaramos de comear a ao. Relatamos, ento, ao final do ano, a seguinte situao: Antes de 2001, o Ncleo de Teatro Vocacional no existia e no havia uma poltica especfica voltada para o Teatro Amador. Porm, independentemente do Ncleo, a situao da produo teatral nos equipamentos era de semi-abandono. Fora algumas excees, como os grupos vocacionais mais estveis que participavam de oficinas contratadas e freqentavam as Casas de Cultura, tomando a frente nas discusses propostas em cada equipamento, tnhamos uma situao bastante precria. Pontos tradicionais de prtica teatral, como a Biblioteca Infanto-Juvenil Viriato Corra e a Biblioteca Pblica Francisco Pati, estavam completamente paralisados, tendo seus auditrios em desuso ou deteriorados. Terminamos o primeiro semestre do projeto trabalhando em 23 pontos da cidade, sendo doze Casas de Cultura, nove Bibliotecas Pblicas e dois EMEFs. Em dezembro de 2001, havamos atendido por volta de 500 pessoas e assessorado pelo menos 80 grupos vocacionais (entre recm criados e j existentes). No dia 15 de dezembro de 2001, realizamos a I Jornada de Teatro Vocacional, no Tendal da Lapa, com a participao de vinte diretores teatrais e por volta de 300 artistas vocacionais que trabalharam conosco nos bairros, para um dia de criao coletiva. Em 2002, ampliamos os pontos atendidos para 30 e mantivemos uma equipe de 30 artistas-orientadores. Atendemos 938 artistas no-profissionais de 8 a 80 anos.

11 Formamos e dirigimos 47 grupos teatrais e assessoramos mais diretamente 22 grupos j formados. Encenamos 58 espetculos de teatro vocacional e organizamos 20 encontros teatrais durante o ano. Nesse ano tivemos um aprofundamento conceitual do programa e aes propositivas, que visavam oferecer um aprofundamento da reflexo sobre teatro, foram sistematicamente implantadas, tais como: leituras dramticas acompanhadas de palestras sobre filosofia, mostras de cenas curtas, jornadas regionais, grupos de estudo de histria do teatro, idas a espetculos profissionais. No comeo de 2003, os grupos que trabalharam no ano anterior se encontraram para a II Jornada de Teatro Vocacional, no Vale do Anhangaba, e apresentaram cenas-presente para a cidade dentro de uma perspectiva da Paulicia Desvairada, de Mrio de Andrade. Tivemos a presena de quase 400 pessoas fazendo teatro no Vale dentro da Mostra So Paulo, organizada pelo Departamento de Teatro da Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo. O ano de 2003 marcou uma nova fase no Projeto. Priorizamos a verticalizao da ao e iniciamos um processo de reflexo para a criao de um modelo de formao para os artistas-orientadores. Mantivemos os 30 pontos, mas ampliamos a equipe, propondo o trabalho em duplas em algumas localidades. Somvamos 35 artistas-orientadores. Formamos grupos regionais separando a cidade em sete regies: Centro, Norte, Oeste, Sul, Sudeste, Leste e Extremo Leste. Cada regio tinha um coordenador artstico-pedaggico (igualmente artista-orientador), que participava de um ncleo de reflexes sobre as diretrizes do Projeto, sua operacionalidade, encaminhamento e metas, alm de priorizar um pensamento sobre a qualificao continuada dos profissionais que trabalhavam na equipe. Este ncleo caracterizou-se como uma forma de melhoria da comunicao entre a coordenao e o trabalho na ponta. Nesse ano, decidimos que todos os grupos trabalhariam refletindo em suas montagens um pensamento sobre o conceito de cidade. Estabelecemos Planos Artstico-

12 Pedaggicos para os trabalhos com cada grupo. Na metade de 2003, realizamos a III Jornada de Teatro Vocacional, enfocando a troca de experincias de trabalho entre os grupos. Em dezembro de 2003, realizamos uma Mostra de Teatro Vocacional sobre o tema Cidades no Centro Cultural So Paulo, com cerca de 800 participantes. Atendemos, neste ano, por volta de 1.120 pessoas nas sete regies da cidade. Em 2004, participamos de um grande desafio: implementar uma equipe de artistas para trabalhar na rea cultural dos Centros Educacionais Unificados 1 . Nossa equipe, que era de 35 artistas-orientadores, foi mais do que duplicada, chegando ao nmero de 79 contratados, havendo entre eles oito artistas trabalhando, agora exclusivamente, como orientadores artstico-pedaggicos de grupos com at nove artistas-orientadores. No comeo de 2004, iniciamos um trabalho de capacitao continuada com a equipe, tendo como primeira contribuio um trabalho prtico com a Professora Doutora Maria Lcia de Souza Barros Pupo sobre as interseces do texto e do jogo teatral, focando a encenao de textos no-dramticos. Ao final de 2004, havamos ampliado o Projeto para 49 pontos e atendemos por volta de 2.500 pessoas. Em trs anos e meio de Projeto, calculamos o alcance direto de quase 5.000 artistas vocacionais. Em relatrio de gesto, computamos os seguintes nmeros: ESTATSTICAS DO PBLICO ATENDIDO Observao importante: Os clculos foram feitos com base nos participantes que permaneceram nos grupos ao final de cada ano. O Projeto acaba atingindo um pblico flutuante muito maior, mas que no pode ser1 1

O Centro Educacional Unificado, da gesto Marta Suplicy, parte de um projeto poltico-pedaggico elaborado a partir de um estudo sobre as chamadas zonas de excluso social, identificadas na periferia da capital paulista. Cada CEU tem trs unidades educacionais: Centro de Educao Infantil para bebs e crianas de zero a trs anos, Escola Municipal de Educao Infantil para as de quatro a seis anos e Escola Municipal de Educao Fundamental, entre sete e quatorze anos. Tambm possui ampla infra-estrutura de esporte (com quadras, piscina e equipamentos esportivos) e espao destinado a atividades culturais (salas para oficinas de artes plsticas, oficinas de udio-visual, sala de dana e dois teatros).

13 objetivamente mensurado sem o auxlio de profissional tcnico especfico. A prpria caracterstica vocacional do Projeto prev uma liberdade de participao que repele procedimentos como matrcula ou lista de freqncia. O controle interno do grupo feito atravs de pacto grupal, estabelecido entre os participantes, que deve reger e determinar as regras de participao e freqncia. Diretamente: 4.920 participantes 2001: (a partir de junho) 23 equipamentos atendidos 500 participantes 80 grupos criados 2002: 28 equipamentos atendidos 800 participantes 69 grupos criados 2003: 33 equipamentos atendidos 1.120 participantes 96 grupos criados 2004: 49 equipamentos atendidos 2.500 participantes 103 grupos criados Indiretamente: 58.150 pessoas

14 2001 Pblico estimado do circuito teatral 1.600 pessoas 2002 Pblico estimado nas apresentaes vocacionais 3.600 pessoas 2003 Pblico estimado nas apresentaes vocacionais 14.400 pessoas 2004 Pblico estimado nas apresentaes vocacionais 25.750 pessoas Pblico estimado na Mostra do Extremo Leste 2.800 pessoas Pblico estimado na I e II Mostra Cenas So Paulo do CEU Aricanduva 4.500 pessoas Pblico estimado nas 12 Jornadas de Teatro Vocacional 5.400 pessoas.

Orientar nossa analise a avaliao dos fatores envolvidos na efetivao da proposta artstico-pedaggica do Projeto, principalmente no que concerne ao processo de apropriao pelos artistas vocacionados dos meios de produo esttica atravs da articulao do discurso cnico , a partir de uma pedagogia emancipatria e visando reavivar a convivncia no espao pblico. Nossa principal suposio de que estes objetivos podem ser alcanados atravs do entendimento de uma atitude pica/dialtica em relao matria cnica. Deste modo, perscrutaremos a prtica realizada no perodo de nossa coordenao. Nosso intuito no esgotar o registro de um trabalho to extenso como o que foi desenvolvido durante os quase quatro anos iniciais do Projeto Teatro

15 Vocacional 2 , muito menos abarcar as especificidades da prtica to distinta de cada artista-orientador que coordenava o Projeto junto aos grupos teatrais no-profissionais, mas problematizar alguns aspectos que influram os pressupostos adotados por nossa coordenao. Assim sendo, dividimos a presente dissertao em quatro captulos ligados a perspectivas diferentes de anlise. No primeiro captulo, abordaremos questes relacionadas concepo de uma poltica cultural a partir das idias de Identidade Cultural e da Arte como possvel crtica da Cultura. Analisaremos, tambm, algumas resistncias encontradas na estrutura administrativa da Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo para a efetivao do Projeto. O segundo captulo concentra-se em aspectos de uma pedagogia emancipatria pautada pela experincia do teatro de grupo em So Paulo e os aspectos problemticos relacionados a esta experincia como a busca de uma identidade coletiva que no oblitere os desejos individuais dos integrantes de cada coletivo , bem como aponta a necessidade de um repovoamento 3 do espao pblico como lugar de encontro entre diferentes e questiona as caractersticas especiais do fenmeno teatral como estratgia desta busca. O terceiro captulo pretende avaliar alguns princpios de construo de um discurso ficcional a partir das proposies de um coletivo rapsodo, no qual a atitude pica/dialtica orienta as escolhas que possibilitam a apropriao pelo grupo vocacional dos meios de produo do discurso cnico.

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O Programa Teatro Vocacional ainda existe ligado Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo. Termo empregado por BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

16 O quarto captulo analisa a experincia de efetivao de uma atitude pica/dialtica em trs encenaes realizadas no contexto do Projeto. Sigamos, pois, para o nosso registro crtico propriamente.

17 CAPTULO 1 ASPECTOS DE UMA POLTICA CULTURALO Pelicano O Capito Jonathan, Com a idade de dezoito anos, Captura, um dia, um pelicano Em uma ilha do Extremo Oriente. O pelicano de Jonathan, Na manh, pe um ovo totalmente branco E desse ovo sai um pelicano Que se parece espantosamente com o primeiro pelicano. E o segundo pelicano Pe, por sua vez, um ovo tambm branco De onde sai, inevitavelmente, Um outro do mesmo jeito. Isto pode durar muito tempo Se, antes, no for feita uma omelete. 4 ROBERT DESNOS

1. A Proposta Poltica da Gesto e a Questo da Identidade Cultural Exporemos neste captulo alguns aspectos relacionados s questes de poltica cultural que influenciaram a construo do Projeto de Teatro Vocacional no mbito da Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo (doravante referida apenas por SMC). Para tanto, determinaremos como espectro destas questes no apenas o histrico de polticas culturais propostas pela Prefeitura de So Paulo, como tambm definies conceituais a respeito de cultura, que influenciam certas perspectivas de uma poltica almejada. Tais aspectos se relacionam a duas instncias: 1. poltica implementada pela gesto Marta Suplicy, na pasta da Cultura, como proposta pelo Secretrio Marco Aurlio Garcia, e especificamente sua proposio para o Departamento de Teatro, na direo de Celso Frateschi; 2. proposio de um dilogo produtivo como as administraes dos equipamentos em que atuamos e com o corpo de funcionrios de SMC, passando necessariamente por um

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DESNOS, Robert. Apud: BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reproduo. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.

18 reconhecimento dos elementos cristalizados por proposies de poltica cultural anteriores nossa atuao. Nosso intuito no ser o de esgotar as questes que diretamente se relacionam efetivao de uma proposta de poltica cultural, mas destacar, dentre alguns conceitos com os quais tivemos contatos (evocados tanto pela formulao da pasta, quanto pelos funcionrios), aqueles que possam ser produtivos, positiva ou negativamente, para a compreenso da proposta do Teatro Vocacional de trabalhar com arte no mbito de uma poltica cultural.

1.1 Organograma do Departamento de Teatro Iniciamos por uma breve exposio do organograma do Departamento de Teatro conforme foi proposto nossa chegada na SMC. At o ano 2000, o Departamento de Teatro chamava-se Departamento de Teatros e era encarregado da administrao e da programao dos edifcios teatrais da cidade (Teatros de Bairro ou Distritais), assim como do Theatro Municipal de So Paulo. Na reestruturao de 2001, o Departamento passou a chamar-se Departamento de Teatro e os rgos ligados ao Theatro Municipal destacaram-se, formando um novo Departamento chamado Departamento do Theatro Municipal. A mudana de nomenclatura poderia caracterizar uma diferenciao apenas administrativa. Uma reestruturao do organograma se fazia necessria primeiramente para atender a uma demanda de criao de novos cargos para administrar o corpo dos teatros municipais, j que o nmero de servidores sempre aqum das necessidades da administrao (e isso fica ainda mais evidente quando o trabalho vai alm da manuteno de espaos e da programao de eventos). Mas, ademais de uma reviso administrativa, operou-se uma transformao de conceito das atribuies do Departamento de Teatro. Teatro, como

19 doravante ficar entendido, referia-se linguagem teatral e no apenas ao edifcio onde ocorrem as apresentaes teatrais. A mudana demandava a construo de um pensamento consistente e amplo em relao poltica cultural voltada para a linguagem teatral na cidade de So Paulo. Este pensamento foi formulado e capitaneado por Celso Frateschi nos anos de 2001 e 2002 e, posteriormente, pelos demais diretores do Departamento durante a gesto 2001-2004, Reinaldo Maia e Kil Abreu. Na organizao do Departamento reestruturado, o diretor Celso Frateschi procurava atender linha geral da poltica cultural proposta pelo Secretrio Municipal de Cultura de So Paulo, Sr. Marco Aurlio Garcia, orientada por trs eixos a serem desenvolvidos pelos Departamentos especficos, a saber: a. A sociabilizao dos bens culturais; b. A veiculao e a difuso de uma produo oculta na/da cidade; c. A elaborao de um pensamento esttico crtico que refletisse as questes mais relevantes do sculo XX. 5 Estes eixos foram traduzidos nos programas do Departamento de Teatro, a princpio, de forma esquemtica, mas antevendo um movimento de

complementaridade.Juntos, os programas constituam um todo orgnico que visava atender a trs momentos indissociveis para uma real ampliao quantitativa e qualitativa do teatro na cidade: o fazer teatral em si, sua difuso e sua apreciao crtica. Cada um dos programas, ainda que inicialmente concentrados em um destes mbitos, na dinmica da implantao e da execuo da poltica proposta, complementavam-se, refletindo em si desdobramentos de cada uma das etapas apontadas. Deste modo, podemos ainda muito esquematicamente apontar a que eixos se relacionavam os programas na sua constituio inicial.Na formulao no estavam dadas a priori quais seriam as questes mais relevantes. Traduzimos, portanto, este eixo, como a formulao de um pensamento crtico que dialogasse com a arte contempornea.5

20 Programas ligados ao Ncleo de Projetos Especiais (Ncleo coordenado at incio de 2004 por Ftima da Luz Viscarra e, posteriormente, por Gustavo Trestini): Ainda no ano de 2001 foi realizado o simpsio O Teatro e a Cidade, que gerou posteriormente uma publicao com o mesmo nome e que contou na sua programao com nomes especialssimos 6 para discutirem as interseces da cidade com o teatro desde a Grcia clssica at nossos dias, gerando uma reflexo bastante conseqente sobre o papel do teatro na cidade. Nos anos seguintes foram realizadas trs Mostras So Paulo de Teatro que visavam agremiar a produo teatral de So Paulo e oferecer apresentaes gratuitas populao. Foi criado, sob a coordenao do Ncleo de Projetos Especiais, o Programa de Formao de Pblico, numa resposta hbrida aos eixos de sociabilizao dos bens culturais e de elaborao do pensamento esttico crtico que refletisse as questes mais relevantes do sculo XX. Constituiu-se como um programa amplo de formao de pblico que contava com montagens de espetculos, aulas e debates envolvendo jovens estudantes e a populao em geral. Tinha como curador principal o encenador Gianni Ratto, encarregado inicialmente de selecionar textos e diretores para as montagens e espetculos j prontos nos dois ltimos anos do Programa 7 . Uma equipe de

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Participaram do simpsio como palestrantes: Gerd Borheim, Rachel Gazolla, Michel Kobialka, Roberto Tessari, Franklin de Mattos, Joo Roberto Faria, Jean Pierre-Sarrazac, Elena Vssina, Wolfgang Storch, Michael Denning, Edward Bond, Tnia Brando, In Camargo Costa e Augusto Boal. Como debatedores: Olgria Mattos, Moacyr Novaes, Beti Rabetti, Slvia Fernandes, Maria Silvia Betti e Fernando Kinas. 7 Espetculos participantes e encenados por encomenda do Projeto: Em 2001: Caiu o Ministrio, de Frana Junior; Gerao Trianon, de Anamaria Nunes; Pedro Mico, de Antnio Callado; Nossa Vida em Famlia, de Oduvaldo Vianna Filho. Em 2002: Mandrgora, de Nicolau Maquiavel; A Farsa do Advogado Pathelin, de autor annimo; Birosca Bral, de Tiche Vianna (tambm realizado em 2003). Espetculos participantes j encenados: Em 2003: Auto da Paixo e da Alegria, da Fraternal Cia. De Artes e Malas Artes; Incrvel Viagem, da Cia. Estvel; Hysteria, do Grupo XIX de Teatro; As Roupas do Rei, da Bendita Trupe; Bzzz... O Retrato de Janete, da Cia.Coisa Boa. Em 2004: A Mulher do Trem, da Cia. Os Fofos Encenam; Bispo, solo do ator Joo Miguel, dirigido por Edgard Navarro; Agreste, da Cia. Razes Inversas; La Carte, da Cia. La Mnima; Macbeth, da Cia. Fbrica So Paulo; O Beijo no Asfalto, do Crculo de Comediantes; Borand, da Fraternal Cia. De Artes e Malas Artes; Bidermann e os Incendirios, da

21 orientao pedaggica preparava monitores, que deveriam realizar um trabalho junto aos alunos e professores da rede pblica municipal de ensino. Esta equipe, at 2003, era orientada pelos Professores Doutores Flvio Aguiar e Maria Silvia Betti. Nestes trs primeiros anos o Programa contava com 13 monitores e atingiu um pblico total de 294.780 pessoas. Ao final de 2003, a Professora Maria Silvia se desligou do projeto e, sob a coordenao geral do professor Flvio Aguiar, os Professores Doutores Luis Fernando Ramos e Flvio Desgranges passaram a integr-lo. O Programa contou tambm com a colaborao, neste perodo, da Professora Doutora Slvia Fernandes, para a definio dos espetculos participantes em 2004. O Formao de Pblico foi ampliado, neste ltimo ano, para atender os Centros Educacionais Unificados (CEUs) e a equipe cresceu para 7 coordenadores de monitoria e 42 monitores. O pblico de 2004 foi estimado em 257.000 pessoas. Em sua verso original, o Programa poderia ser traduzido como uma escola de espectadores. Tinha como alvo o cidado que nunca entrara em uma sala de espetculo e o objetivo era seduzi-lo para a prtica teatral e para as especificidades da linguagem, gerando prazer e conhecimento. Ao longo da gesto, vrias contribuies foram incorporadas e, no ltimo ano, o professor Flvio Aguiar descrevia os objetivos do Programa: A finalidade desse processo a de que cada escola atingida pelo projeto disponha de um grupo de educadores capacitados a incluir o fenmeno teatral em suas atividades e na prtica pedaggica. Quando falamos em "incluir o fenmeno teatral" estamos tomando-o em toda a riqueza e pluralidade que ele contm. Importam aqui tanto ver no teatro a face deCia. So Jorge de Variedades; Mire Veja, da Cia. do Feijo; Casa de Orates, do TAPA; e Mundus Immundus, com Nani de Lima, de Nanna de Castro e direo de Olayr Cohn.

22 entretenimento criativo, inseparvel da reflexo crtica e organizada que capaz de suscitar, quanto a relao igualmente criativa que um espetculo pode despertar com o espao em que se apresenta (no caso, a cidade de So Paulo) e a riqueza de uma srie de outras manifestaes culturais disponveis. A ida ao teatro pode despertar interesse por temas correlates presentes em exposies, no cinema, em concertos, em prticas desportivas e tantas outras atividades criativas. O projeto pensa, desta forma, contribuir para que os que assistem suas peas, freqentam seus cursos e tambm aqueles mesmos que o executam, possam ver o teatro como "uma janela para o mundo". Podemos discernir no teatro e atravs dele uma vivncia democrtica da cultura, como conquista individual e patrimnio coletivo. 8 O processo pedaggico desenvolvido pelos monitores junto aos educadores e aos alunos da rede municipal (em 2004) inclua oficinas de investigao artstica baseadas na experimentao de exerccios dramticos que permitissem o contato com os elementos que constituem a cena. Assim, operava-se uma formao gradativa na linguagem, aprimorando a capacidade de conceber um discurso teatral e interpretar os signos cnicos. Este processo era complementado por atividades especficas, voltadas para a explorao de determinada encenao e pelas idas aos espetculos. Em 2003, implantou-se um projeto piloto de um Programa Formao de Pblico complementar voltado ao pblico infantil. Sob a coordenao de Deborah Serritielo, e com orientao da Professora Doutora Maria Lcia de Souza Barros Pupo, o Projeto funcionou em 2003, na Biblioteca Pblica Paulo Setbal, Vila Formosa. No ano deAGUIAR, Flvio Wolf. Histria do Projeto. In: Caderno Projeto Formao de Pblico 2001-2004. So Paulo: PMSP/SMC/SME/Departamento de Teatro, 2004.8

23 2004, os espetculos infantis foram incorporados ao Projeto Formao de Pblico nos CEUs. Programas ligados ao Ncleo de Teatros Distritais (Ncleo coordenado por Sula Andreato) Uma poltica de difuso de uma produo de qualidade, voltada ao atendimento de uma sociabilizao dos bens culturais, foi implementada atravs de editais de ocupao dos Teatros de Bairro (posteriormente substitudos pelas produes apoiadas pala Lei Municipal de Fomento ao Teatro na Cidade de So Paulo, N 13.279, 8 de janeiro de 2002). O intuito era garantir uma manuteno qualificada para esses espaos e otimizar seu potencial desenvolvendo um projeto artstico de alta qualidade e ampliando significativamente seu pblico O critrio de ocupao dos espaos foi totalmente revisto e o sistema antigo de locao dos espaos por editais bimestrais foi substitudo pela ocupao semestral, prorrogvel por igual perodo, por grupos que desenvolvessem projetos significativos tanto do ponto de vista artstico quanto do retorno social de sua atividade. Os grupos selecionados exerceriam, em parceria com o Departamento de Teatros, a direo artstica desses espaos, tendo o compromisso firmado de propor a pauta dos espetculos abertos ao pblico, otimizando o seu uso e eliminando espaos ociosos. Alm dos espetculos, os grupos seriam responsveis por propor para a cidade cursos, oficinas, ciclos de palestras, debates, encontros, ensaios abertos, mostras e demais atividades no sentido do desenvolvimento teatral. Tambm deveriam produzir e apresentar espetculos prprios durante o perodo de ocupao. A escolha dos grupos seria regida por critrios pblicos rgidos, julgados por comisso representativa dos movimentos e das entidades sociais relacionadas com a

24 atividade teatral, bem como por representantes da Secretaria Municipal de Cultura e por personalidades notveis da rea teatral a fim de garantir a qualidade artstica profissional e o retorno social do projeto. Os critrios qualitativos para a escolha dos projetos de ocupao eram: a investigao e o aprimoramento da linguagem cnica e artstica; a criao de espaos onde a atividade cnica fosse referencial e de excelncia em cada um dos Teatros Distritais; o oferecimento de cursos, oficinas, ciclos de palestras, debates, encontros, ensaios abertos, mostras e demais atividades no sentido do desenvolvimento teatral. Programa ligado ao Ncleo de Teatro Vocacional Ficou a nosso cargo o Ncleo de Teatro Vocacional, que deveria fomentar a ampliao e a qualificao da produo teatral no-profissional. Tinha como objetivo, primeiramente apontado, atender ao eixo voltado para a produo oculta do teatro na cidade, mas que, como nos demais programas, ampliava seu espectro de atuao no entendimento de uma dinmica mais ampla da poltica para a linguagem teatral na cidade. Toda a poltica formulada pelo Departamento de Teatro tinha um horizonte de complementaridade entre os Programas, cada um se alimentando das ampliaes do outro. A qualificao de uma produo teatral no-profissional dependia igualmente do incentivo dado pesquisa e continuidade da mesma dos grupos profissionais e, conseqentemente, da difuso de suas produes e de seus contedos de pesquisa. Uma produo de qualidade socializada atravs das programaes dos Teatros Distritais e do Programa de Formao de pblico contribua igualmente para uma ampliao do acesso dos artistas no-profissionais aos bens culturais. O Programa de Formao de Pblico trazia, ainda, em sua conformao, o compartilhamento de uma olhar crtico para a criao teatral, dando acesso, para alm da obra acabada, aos processos de criao. O

25 trip produo/fruio/crtica se articulava como uma poltica geral para o teatro na/da cidade 9 . Outra caracterstica de uma proposio que visava ampliao de uma idia de poltica cultural para a linguagem teatral para alm dos limites compartimentados em Departamentos especficos da SMC, era a proposta de atuao do Projeto de Teatro Vocacional em equipamentos que respondiam coordenao de outros Departamentos: Bibliotecas Pblicas ao Departamento de Bibliotecas Pblicas, Bibliotecas InfantoJuvenis ao Departamento de Bibliotecas Infanto-Juvenis e Casas de Cultura ao Departamento de Ao Cultural Regionalizada (criado em 2002, para receber do Gabinete, entre outras acepes, a coordenao das Casas de Cultura). Esta proposio de um trabalho integrado da SMC, que a princpio pode parecer bvia e simples, era extremamente contrria s conformaes histricas da Secretaria, trazendo dificuldades atvicas na efetivao de um dilogo interdepartamental. Assim sendo, sofremos diretamente os entraves causados por anos de compartimentalizao de poderes, como exporemos mais adiante. Mas voltemos aos eixos propostos para a poltica da gesto em SMC. Se inicialmente nos associamos a este eixo, no podemos nos furtar a avaliar o que exatamente significa, dentro da poltica cultural proposta, associar a produo artstica da periferia a uma produo que est oculta. Cremos que este termo, produo oculta, relaciona-se a um conceito de identidade cultural, muito em voga nos ltimos anos nos discursos de poltica cultural e que deve ser avaliado nos termos em que aparece, no s nas formulaes mais gerais de poltica cultural no mundo hoje, como tambm no discurso da poltica proposta pelaEm 2005, ao pedirmos exonerao do cargo de Coordenao do Ncleo junto com grande parte da equipe de artistas orientadores, a nova gesto alegou publicamente que os programas bem sucedidos, como o Projeto de Teatro Vocacional, continuariam. Seria revisto o Programa de Formao de Pblico, e a Lei de Fomento estava ameaada por falta de verba. No havia, portanto, uma compreenso de que os programas existiam em uma complementaridade e de que um era alimentado pelo outro.9

26 gesto e at mesmo em nossas formulaes para o Projeto. A seguir tentaremos mapear seu aparecimento e justificar sua associao ao eixo proposto pela gesto, ao qual, inicialmente, o Ncleo de Teatro Vocacional se associou.

1.2 Identidade Cultural Reconhecemos na formulao veiculao e difuso de uma produo oculta na/da cidade no apenas seu aspecto programtico, mas tambm sua associao a um pensamento bastante difundido nas proposies de poltica cultural hoje, que uma prevalncia dos conceitos de identidade cultural e diversidade cultural. No nosso entender, estes conceitos, que tm uma origem bastante legtima, quando se reproduzem acriticamente, contribuem, por vezes, para o estabelecimento de alguns equvocos sobre as reas focais de atuao de uma poltica cultural desejvel. Caminhando um pouco alm, podemos perceber que a prpria noo de identidade possui hoje conotaes determinantes para o entendimento da lgica de nossa modernidade, nas palavras de Zygmunt Baumann 10 , fluidificada. Diante desta lgica, a boa identidade aquela que pode ser consumida e descartada com a rapidez das oscilaes da bolsa. O direito identidade , assim, um direito de consumidor, como traduo contempornea de uma idia de liberdade: a liberdade do consumo. Neste sentido, a noo de identidade caracteriza no apenas o que prprio de cada indivduo ou grupo, mas tambm o que lhe decodificvel; portanto, substituvel. Pregar uma busca pela identidade e pela diversidade de identidades talvez aponte para uma necessidade de traduzir o diverso em algo homogneo, compreensvel e apaziguvel 11 . No mbito das polticas culturais e dos direitos culturais versados em uma srie de pactos internacionais, este conceito, a nosso ver, alimenta igualmente uma10 11

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. Falaremos mais destes aspectos no Captulo 2.

27 busca imperativa pela legitimao e pela convivncia com o outro, mas tambm uma tentativa de enquadrar o diverso num espectro conhecido e controlvel. Mas no pretendemos aqui desqualificar a real necessidade de garantir estes direitos, apenas relativizamos o termo para entender como esta idia pode influenciar equivocadamente uma poltica que se pretenda plenamente democrtica. Na formulao do Projeto Teatro Vocacional, estes conceitos, identidade cultural e diversidade cultural, influenciaram-nos no poucas vezes, a ponto de o termo identidade aparecer como um dos trs objetivos principais do Projeto (sendo os outros dois a autonomia e a reflexo crtica) em um texto escrito por ns j no ltimo ano de gesto, sobre a funo de ao cultural do Projeto: 3. Identidade: Consideramos o indivduo como um ser em estado de possibilidade, como afirma acima Hans Thies-Lemann, e o estimulamos na construo de sua identidade nica e no apenas o enquadramos no nosso espectro de alternativas. Colocar esta pessoa em cena potencializar este estado de iminente possibilidade e, assim, acreditar no olhar reflexivo dela sobre sua prpria realidade. (...) Trabalhamos para viabilizar atravs da arte teatral o redimensionamento de indivduos livres e autnomos, capazes de refletir criticamente sobre suas realidades e, por isso mesmo, possuidores de uma identidade nica e real enquanto cidados ou integrantes de um grupo de teatro. Evidentemente, o conceito, aqui, aparece menos ambicioso que a proposio de revelar uma identidade cultural da cidade, ou mesmo de uma periferia, ou comunidade perifrica. Falamos em uma identidade local, quase individual se no for

28 contraposta posio do indivduo num grupo de teatro. E falamos de uma identidade potencial, nica, almejada, em construo pela experincia esttica. Em verdade, falamos de uma identidade esttica estabelecida dentro de um coletivo de trabalho de criao artstica. Mas no podemos nos iludir que o termo, quando expresso no contexto de uma poltica cultural para a cidade, carrega em si um sentido mais genrico que encontra eco num pensamento sobre as acepes de uma poltica cultural no mbito de uma megalpole como So Paulo. E tal pensamento, entendemos, deve ser olhado de maneira crtica, porque incorpora no seu interior uma proposio que leva, no poucas vezes, a ao cultural para o campo da ao da assistncia social. Faamos um pequeno recuo para compreender o papel central que o direito a identidade cultural ocupa nas formulaes de poltica cultural, no s no mbito da cidade, mas como questo geral de poltica no mundo hoje. A noo de direito cultural, internacionalmente prevalente, surge com o final da II Guerra Mundial. O processo da descolonizao, como veremos adiante, condicionante desta emergncia, assim como uma expanso do mercado de consumo de bens culturais com a ampliao do acesso educao formal e os meios de reproduo tcnica. Tambm podemos considerar a fora de um conceito antropolgico de cultura, que toma forma neste momento, ampliando o espectro das preocupaes internacionais para a necessidade de defesa das culturas autctones, frente dominao cultural dos pases ricos, e a defesa das minorias tnicas. Esta noo de direito cultural est vinculada aos valores apontados inicialmente na Declarao dos Direitos Humanos (1948). Consta nesta, nos artigos 22 e 27, o princpio de que todos devem ter o direito de participar livremente da vida cultural das

29 comunidades, e que este direito indispensvel dignidade dos homens e ao desenvolvimento de suas personalidades. Em 1966, no Pacto Internacional pelos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, o Estado toma um lugar de destaque ao ter por obrigao identificar e tomar medidas especficas para melhorar a posio dos grupos mais vulnerveis ou em posio de desvantagem na sociedade" 12 . Assim, os Estados pactuantes comprometem-se a promover a efetuao destes direitos e garanti-los aos grupos mais frgeis. Este princpio, que deve desde sempre ser observado, em alguns casos pode gerar um discurso paternalista por parte das polticas de Estado e legitimar equvocos: desde uma falta de clareza entre ao cultural e ao de segurana social, at a sedimentao de um olhar onipotente que determina o domnio exclusivo por uma classe privilegiada (representada no Estado) das representaes culturais que realmente interessam em detrimento das demais. Olhar que se reveste de um verniz de comprometimento zeloso, em um falso relativismo que pretende determinar as caractersticas exclusivas de certa identidade cultural. Ou seja, ao tentar garantir o direito a uma identidade cultural aos grupos minoritrios, as polticas culturais podem induzir determinado grupo a ocupar um lugar cristalizado no panorama cultural mais amplo. A questo do acesso ao bem cultural proposta no segundo eixo da poltica cultural da gesto Marco Aurlio Garcia frente da SMC como componente constitutivo da identidade, por sua presena ou ausncia, assim como a valorizao do

12

SYMONIDES, Janusz. Cultural rights. Strasbourg: International Institute of Human Rights, 1993, p 5. In: DIAS, Fernando Correa. Humanismo latino e poltica cultural. In: Dal Ri Junior, Arno; Paviani, Jayme. (Org.). Humanismo Latino no Brasil de Hoje. Belo Horizonte: PUC Minas Gerais, 2001, p. 194.

30 bem cultural advindo das identidades especficas de grupos minoritrios, como vemos, torna-se central na discusso da poltica cultural. E tal questo apontada como primeira dentre as determinaes da UNESCO sobre os Direitos Culturais. A UNESCO determina algumas categorias (como as citadas por Fernando Correia Dias a partir do livro de Janusz Symonides) como componentes da lista de direitos culturais. A primeira categoria que nos interessa defendida em 1976, pela Recomendao sobre a Participao dos Povos na Vida Cultural: Por acesso cultura, entendemos as oportunidades concretas disponveis a quaisquer pessoas, particularmente por meio da criao de condies socioeconmicas apropriadas, para que possam livremente obter informao, treinamento, conhecimento e discernimento, e para usufruir dos valores culturais e da propriedade cultural. 13 E mais adiante: Garantir as oportunidades concretas a todos grupos e indivduos para que possam expressar-se livremente, comunicar, atuar, engajar-se na criao de atividades com vistas ao completo desenvolvimento de suas personalidades, a uma vida harmnica e ao progresso da sociedade. 14

13

SYMONIDES, Janusz. Cultural rights. Strasbourg: International Institute of Human Rights, 1993. In: DIAS, Fernando Correa. Humanismo latino e poltica cultural. In: Dal Ri Junior, Arno; Paviani, Jayme. (Org.). Humanismo Latino no Brasil de Hoje. Belo Horizonte: PUC Minas Gerais, 2001, p. 195. Ibidem, p. 5.

14

31 Uma segunda categoria refere-se propriamente ao direito identidade cultural e foi defendida na Conferncia Mundial sobre Polticas Culturais, no Mxico, em 1982, trazendo tona a problemtica diretamente relacionada aos valores deterministas da tradio, das culturas isoladas ou grupos identitrios. Esta Conferncia, conhecida como MONDIACULT, gerou frutos para o que hoje conhecemos como polticas preocupadas com a diversidade cultural. Em um esforo conceitual, a UNESCO prega que cultura e desenvolvimento fazem parte de um mesmo corpo e que, para que os pases possam se desenvolver, necessrio que se crie uma rede de tolerncia entre as diversas identidades culturais, com visada numa chamada Cultura de Paz. Defende-se que os governos apiem as especificidades das diferentes identidades culturais como forma de garantir no s a coexistncia pacfica dos diversos povos, mas como um meio de desenvolvimento econmico sustentvel. No site da UNESCO no Brasil encontramos o seguinte texto, num tpico chamado Cultura e Desenvolvimento: Cultura e Desenvolvimento Em 1995, os trabalhos da Comisso Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento, convocada pela Assemblia Geral das Naes Unidas, resultaram no relatrio denominado Nossa Diversidade Criadora. Esse documento trouxe tona estudos que concluram que cultura e desenvolvimento so sinnimos e que, ao mesmo tempo em que as atividades culturais promovem o desenvolvimento econmico, as polticas de desenvolvimento devem ter uma face humana que leve em conta a prpria cultura. Trs anos depois, em Estocolmo, a Conferncia Intergovernamental sobre Polticas Culturais para o Desenvolvimento permitiu

32 transformar essas idias em polticas e prticas de desenvolvimento humano. A Declarao da Diversidade Cultural reconheceu como universais vrios desses princpios e, em 2003, a Cpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentvel enfatizou os vnculos entre a diversidade cultural, a diversidade biolgica e o desenvolvimento. 15 Tais princpios ficam bastante definidos na Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural, na qual destacamos o pargrafo que faz meno necessidade do respeito a diferentes identidades, a fim de ampliar as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; uma das fontes do desenvolvimento, entendido no somente em termos de crescimento econmico, mas tambm como meio de acesso a uma existncia intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatria. 16 Articulam-se assim, no mbito das recomendaes internacionais para as polticas culturais geridas pelos Estados, dois vetores principais: o acesso da populao aos bens culturais, seja como usurios (uso cultural), seja como consumidores (consumo cultural), visando uma ampliao das possibilidades de escolha que garantam o desenvolvimento dos povos e a construo de sua identidade cultural nica; e a revelao e o compartilhamento das especificidades das diferentes identidades culturais, a fim de garantir a coexistncia pacfica em meio diversidade. Javier Perez de Cuellar 17 defende que a questo da identidade cultural foi especialmente relevante numa formulao da poltica internacional ps-colonial, durante a dcada de 1970, por razo da independncia de diversas populaes. Entendia-se que a preservao e a promoo de formas autctones de vida eram centrais15

www.unesco.org.br/areas/cultura/areastematicas/culturaedesenvolvimento/index_html/mostra_documento 16 Artigo 3 A diversidade cultural, fator de desenvolvimento Declarao Universal Sobre A Diversidade Cultural. www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decunivdiversidadecultural.doc P. 2. 17 CULLAR, Javier Prez de. Nossa diversidade criadora: relatrio da Comisso Mundial de Cultura e Desenvolvimento. 2 ed. Campinas: Papirus, 1997.

33 para o estabelecimento do sentimento de orgulho e para a confiana destas populaes. Segundo Cuellar, a gama das manifestaes culturais escolhidas como relevantes pelos governos e suas polticas ampliou-se na medida em que a demanda e a produo dos bem artsticos de consumo de massa expandiram-se juntamente com a conscincia de que a identidade cultural forjada por formas distintas de expresso cultural18 . Tal mudana originou uma reviso de um perfil normativo da cultura, pautado pelos conceitos clssicos eurocentrados. Toma lugar na agenda das preocupaes de poltica cultural no mundo a busca de uma poltica que encampe um perfil multi-tnico, plurilingstico, representante de diferentes pontos de vista religiosos. Preocupado, especialmente, com uma viso da cultura entendida como base para o desenvolvimento das diversas populaes, o autor insiste numa absoro das diversas expresses culturais como forma de enriquecimento cultural de todos os cidados do globo. A mundializao das polticas culturais (se que podemos forjar este termo), contudo, diversamente da mundializao das polticas econmicas, reveste-se de um carter relativista em que a diversidade cultural o valor forte. Em 1995, a Conferncia de Informao do G7, no sem dificuldade, concorda com o texto que defende que a economia da informao global deve servir ao enriquecimento cultural de todos os cidados por meio da diversidade de contedo, que reflete a diversidade cultural e lingstica de nossos povos. Na busca, no entanto, de uma poltica que caminhe na contramo da massificao cultural imposta pelo mercado mundializado, a Comisso Mundial de Cultura e Desenvolvimento da UNESCO admite que o papel dos governos locais seja limitado.

18

Ibidem, p 307.

34 Contudo, bem verdade que a mundializao dos gostos e dos estilos limitou o papel que o governo pode ter no fornecimento de produtos culturais no pas e no exterior. A interveno governamental deve ser menos direta. Seu papel no mercado ser o de apoiar cada vez mais os produtores e os distribuidores, corrigindo os efeitos de mercado e cooperando para o desenvolvimento da regulamentao internacional. Como corolrio, faz-se necessrio o apoio do governo a iniciativas que no estejam ligadas ao mercado, que impliquem nfase na promoo de cooperao entre instituies culturais, grupos e indivduos. Os governos devem abandonar a interveno direta como forma de diplomacia cultural em favor de um papel mais facilitador em relao a outros atores. 19 Ento, se temos por um lado o apelo de defesa das culturas locais e minoritrias pelo Estado, caminhando para uma regulao do poder do mercado de determinar quais bens culturais devem ser consumidos, temos, por outro lado, uma recomendao clara de uma poltica no intervencionista e mais facilitadora. Isto reflete diretamente a posio atual de um Estado menos forte, que carrega o nus de garantir certa segurana social sem interferir diretamente na livre regulamentao do mercado mundializado. Temos ento, por um lado, a necessidade de manter os grupos minoritrios em uma posio de livre expresso que os mantenha atuantes e coesos, mas, por outro, um enfraquecimento do Estado como promovedor deste entre outros direitos. No difcil explicar, diante desta formulao, o enorme interesse pela parceria dos governos com organizaes no-governamentais de apoio a culturas locais. Em nome de um no19

Ibidem, p. 313.

35 intervencionismo e diante do enfraquecimento poltico e econmico das instituies pblicas, o discurso do apoio diversidade cultural de diferentes grupos tnicos, ou comunidades, economicamente carentes, por organizaes civis, tornou-se discurso e prtica adequadamente satisfatrios. Uma crescente preocupao com relao s polticas culturais voltadas para os centros urbanos tambm acompanha os efeitos da mundializao sobre as polticas culturais. Para alm das identidades culturais de povos ou etnias, busca-se hoje, cada vez mais, a definio das identidades culturais dos pequenos grupos urbanos, seja pela sua conformao em guetos tnicos, ou por sua caracterizao perifrica e regional dentro dos grandes centros. A cidade aproxima pessoas de diferentes origens e padres culturais. Essa particularidade , ao mesmo tempo, sua maior fora, como centro de criao e de inovao cultural, e seu calcanhar-deaquiles. A mistura de estilos de vida e de formas de expresso em reas urbanas pode ser uma fonte tanto de criao e de inovao quanto de conflito. A consolidao da integrao social relativa diversidade tnica e cultural, e o incentivo expanso constituem um desafio de poltica pblica da maior relevncia enfrentado pelas cidades de hoje e do futuro. 20 Assim como o prprio surgimento de nossa idia moderna, iluminista, de direito nasce da necessidade da convivncia nas cidades, a idia de direito a uma diversidade cultural surge do crescente inchao populacional dos grandes centros, com seus problemas de imigrao e de flagrante m distribuio de renda.20

Ibidem. Pg. 315.

36 Javier Perez de Cullar apropria-se do discurso de Cline Sachs-Jeanet 21 para defender que uma poltica cultural que entenda cultura como desenvolvimento essencial para promover a integrao social e a democracia comunitria, e que estes dois aspectos criam no indivduo a sensao de que ele faz parte da sociedade e que tem responsabilidade sobre ela. A implementao de polticas culturais, neste sentido, no deve visar somente a melhora da qualidade de vida dos cidados, mas tambm uma estabilidade social que impea o crescimento da excluso social, da violncia, da segregao nos centros urbanos. A cultura neste aspecto toma um carter, tambm bastante disseminado e incorporado por nossos discursos, de cimento social. Para Cullar, a formao de artistas amadores (especificamente o campo de atuao do Projeto Teatro Vocacional) e o acesso gratuito aos bens culturais tm sido formas eficazes de incluir membros anteriormente excludos da sociedade 22 . Mais uma vez vemos a poltica cultural tomar lugar de destaque como poltica de ao social. Se, anteriormente, a idia de uma ao de Estado atravs de uma poltica cultural versava sobre a necessidade de uma poltica de incluso dos pobres, agora ela atinge mais precisamente seu foco como necessidade de conteno da violncia crescente e como meio para a o avano de um comunitarismo que d conta de um inevitvel pluralismo cultural. Evidentemente, no era este nosso intuito. Arriscamo-nos a dizer que no era mesmo o intuito da proposio geral de poltica cultural proposta pelo Secretrio Marco Aurlio Garcia. Todavia, no podemos nos furtar a reconhecer a importncia que polticas voltadas para a cultura ocupam no espao de ausncia de outras reas de

SACHS-JEANTET, Cline. Managing social transformation in Cities. A challenge to social sciences. Management of Social Transformations (Most), Discussion Papers Series 2, UNESCO, 1995. 22 CULLAR, Javier Prez de. Nossa diversidade criadora: relatrio da Comisso Mundial de Cultura e Desenvolvimento. 2 ed. Campinas: Papirus, 1997. p. 316.

21

37 atuao do poder pblico, como a prpria assistncia social, a educao e a segurana. Infelizmente, devemos reconhecer que por vezes obtivemos apoio a nossas propostas, no apenas por parte dos agentes pblicos da SMC, como tambm da prpria populao, em razo deste abandono das demais reas pblicas. Mas, se no nos constrangemos em atuar nestes espaos vazios, embora no estivssemos a servio destes fins desejados, tambm no deixamos de renovar um esforo para esclarecer, a partir da ao efetiva do trabalho, que no atuvamos para operar um apaziguamento das tenses sociais causadas pela falta de ocupao de jovens e adultos (desemprego e abandono da escola) ou pela ausncia de valores positivos transmitidos pela educao (no-violncia, combate ao uso de drogas, educao sexual, princpios de cidadania). Tambm no pretendamos realizar um resgate da auto-estima da populao esquecida pelas polticas pblicas. Propnhamos um trabalho de criao esttica que operava atravs da arte pela arte. E este era o meio e o objetivo final de nossa ao: o processo de construo potica da arte. Nem sempre fomos compreendidos pelos agentes, o que dificultou por vezes nossa atuao, mas, principalmente com o passar dos dois primeiros anos, focamos a compreenso destes aspectos pelos artistas vocacionados que trabalhavam conosco.

1.3 Produo oculta Cremos ser produtivamente incmoda a escolha do termo produo oculta para nomear a criao artstica realizada no profissionalmente. Isto porque, ao dizer que uma produo est oculta e que a des-ocultao desta produo desejvel, deveremos determinar a quem est oculta esta produo e qual o sentido de sua desocultao. Evidentemente que, ao relacionar esta produo oculta produo artstica

38 realizada na periferia, estamos determinando que a necessidade desta produo seja a sua revelao para o pblico e para a produo da regio central da cidade. No sem motivo, em diversas ocasies de contato com a populao, ao reproduzir o discurso programtico da Secretaria Municipal de Cultura, fomos desafiados com o popular jargo: Oculta para quem, cara plida?. Isto posto, percebemos que a escolha deste termo nos d um amplo espectro de questes a serem avaliadas numa proposio de poltica cultural que se pretendesse em movimento crtico e contnuo no contato com a realidade da cidade. Como explicitaremos nos captulos seguintes, o Programa de Teatro Vocacional (sintomaticamente chamado de Projeto de Teatro Vocacional durante os quatro anos de nossa coordenao, explicitando seu carter processual de concepo) caracterizou-se, em sua construo e reviso continuada durante os quatro anos da gesto, por qualificar esta produo dita oculta atravs do questionamento crtico das concepes poticas das montagens dos grupos, por fomentar a formao de novos grupos e por criar uma rede de comunicao no horizontal centro-periferia e sim radial cada grupo como um plo gerador e agremiador entre os grupos da cidade. Esta concepo de comunicao radial, de certo modo, problematiza os termos usados na formulao do eixo veiculao e difuso de uma produo oculta na/da cidade. Isto porque, se optarmos por uma viso horizontalizada da troca centroperiferia, teremos que, inevitavelmente, conjugar duas vises bastante esquemticas dos objetivos desta troca. Algo que no daria conta da proposta mais vertical do Projeto. Observando a proposio da troca neste sentido horizontal (a partir de uma leitura no crtica da proposio), poderamos entender o carter de desocultamento desta produo como um trao de uma poltica apenas assistencialista, que entende como necessria a viabilizao do reconhecimento desta produo por um centro

39 detentor do conhecimento esttico. Ou seja, uma poltica comprometida com a circulao desta produo no sentido da periferia para o centro. Uma poltica cultural que entende a necessidade de um desvelamento, para este centro, de uma produo artstica desconhecida e estranha a ele, com o intuito de democratizar a cultura consagrada, cannica, propondo seu intercmbio com as manifestaes populares espontneas. Ou seja, se a leitura rasa desta proposta revela um comprometimento com o reconhecimento pblico da produo perifrica, ela tambm aponta para um ideal (ou seja, para algo idealizado) de construo de uma identidade prpria da arte na cidade, que mescle o que consagrado s manifestaes mais marginais. No sentido inverso, mas ainda numa direo horizontal, poderamos compreender limitadamente este desocultamento como trao embrionrio de uma poltica iluminista que antev a necessidade de levar a cultura, no nosso caso a arte, aonde ela no chega; difundir as manifestaes consagradas, assim como seu pensamento gerador, para a periferia desconhecida. Ou seja, propor um intercmbio no sentido do centro para a periferia. Ambas as leituras no devem ser descartadas e guardam ambas expectativas legtimas da poltica proposta na gesto 2001-2004. Contudo deveremos olhar criticamente para os riscos envolvidos, tanto no olhar apenas assistencialista que pode ser demasiado condescendente e at demaggico ou apenas iluminista que pode pecar por um centralismo autoritrio e elitista, conseqentemente limitado e ingnuo. O Projeto de Teatro Vocacional, todavia, conjugou uma formulao que no abandonava os dois aspectos, mas reformulava os sentidos periferia-centro/centroperiferia num encontro no apenas espacial e pr-determinado, mas crtico. A base para a discusso, doravante, no deveria ser legitimada pela posio da produo da

40 obra teatral frente ao seu reconhecimento pblico ou confluncia em si de um referencial consagrado, mas frente sua coerncia esttica interna. Mas, para tanto, no podem ser desconsiderados estes dois aspectos a difuso e a apreciao da obra criada e a confrontao da mesma com conhecimentos sedimentados como ferramentas importantes para a qualificao e a verticalizao da potica das obras teatrais realizadas pelos artistas no-profissionais. Assim, aprimorando o olhar para os eixos propostos pelo Secretrio Marco Aurlio Garcia, percebemos que a adoo do segundo eixo veiculao e difuso de uma produo oculta na/da cidade deu-nos, por um lado, um norte para estabelecer uma tenso necessria ao questionamento das prticas e expectativas dos grupos noprofissionais ocupantes dos espaos pblicos, e, por outro, a conscincia da necessidade de refletirmos sobre uma poltica formulada para a conformao, ou revelao, de uma identidade cultural. Ao aceitar a necessidade de uma reflexo crtica a respeito destes aspectos, inscrevemo-nos diretamente no terceiro eixo proposto elaborao de um pensamento esttico crtico que refletisse as questes mais relevantes do sculo XX. Em relao s expectativas dos grupos vocacionais, a proposio de uma reflexo que revelava no apenas as questes internas ao grupo, mas sua prpria veiculao ao sculo XX (incio do sculo XXI), ou seja, a sua existncia e inscrio no contemporneo, evidenciava um paradigma distinto que realocava a pertinncia do teatro no-profissional no em funo do teatro profissional, mas em funo da prpria linguagem teatral. Em relao proposta de uma poltica voltada para questes de identidade cultural, a indicao de um filtro de reflexo esttica nos reposicionava diante de uma elaborao no apenas cultural, mas artstica, portanto estrategicamente distante das questes de poltica social.

41 2. Dilogo com as Administraes dos Equipamentos e Arte como Crtica da Cultura Percebemos, desde o incio de criao do Ncleo de Teatro Vocacional, a enorme dificuldade que teramos em propor aes diferenciadas e crticas dentro dos equipamentos em que atuaramos (lembrando que estes equipamentos eram parceiros do Departamento de Teatro, mas estavam subordinados a outros Departamentos, como o de Ao Cultural Regionalizada, de Bibliotecas Pblicas ou de Bibliotecas InfantoJuvenis). Esta dificuldade no se refere somente ao estabelecimento de novas aes, por vezes impossibilitadas de efetivarem-se pela mquina pblica, extremamente burocratizada e lenta, mas principalmente tarefa rdua de estabelecermos um dilogo com as proposies j consagradas (porque basicamente inalteradas em diversas gestes) de ao cultural na SMC, ou de estabelecermos comunicao no mutismo criado pelo total acomodamento dos agentes pblicos dos equipamentos a uma ausncia de proposies. Esta dificuldade diz respeito, portanto, necessidade de estabelecer um dilogo produtivo com o quadro de funcionrios da casa para a real efetivao de nossas propostas. Mas por que to difcil realizar este dilogo? Isto ocorre, no nosso entender, por diversos fatores, dos quais no podemos excluir uma natural antipatia do funcionrio de carreira, que permanece no quadro independentemente da gesto, pelo funcionrio nomeado em comisso, que normalmente no permanece nas trocas de gesto e ocupa cargos de chefia (e vice-versa). Mas o que nos salta aos olhos , verdadeiramente, uma dificuldade gerada pela ausncia de uma idia compartilhada do conceito de cultura e de polticas a ela voltadas. E aqui no fazemos defesa, de modo algum, de uma idia cristalizada de cultura, e sim referimo-nos a uma dificuldade de estabelecermos um dilogo verdadeiro, crtico e conseqente, a respeito de uma poltica

42 cultural desejvel, causada pela ausncia de termos referenciais, em relao aos quais pudssemos nos posicionar. Para que estes termos existissem e pudessem ser evocados, seria necessria a existncia de um acmulo conceitual organizado em prticas sistemticas de ao cultural no mbito da Prefeitura e articulados por seus gestores. Infelizmente (principalmente para a populao), as sucessivas gestes da rea de cultura na cidade no compartilharam entre si idias programticas, ao menos conscientes e verbalizadas, que visassem uma progresso acumulativa, ou que vislumbrassem um horizonte para alm dos quatro anos de mandato. Na verdade, se o fizeram, no nosso entender, padeceram de uma real continuidade nas gestes posteriores e de um esforo bem sucedido de documentao das prticas implantadas. Muito perdido ou abandonado nas mudanas da equipe de gesto 23 , tradicionalmente formada por funcionrios que ocupam cargos em comisso. E o que ocorre que os funcionrios de carreira, no geral, so notadamente funcionrios tcnico-administrativos, que pouco ou nada entendem da rea cultural. Quase nada se investe numa verdadeira formao para estes funcionrios e, com isso, as mudanas de gestes se tornam rupturas traumticas que mais se assemelham, para os que chegam, a expedies de busca em terra arrasada. Por outro lado, os funcionrios nomeados nem sempre tm um histrico de acompanhamento doO caso da criao das Casas de Cultura na gesto Luiza Erundina exemplar neste sentido. Todo o acmulo das discusses de implantao das Casas sumiu dos arquivos da SMC. Segundo testemunho de uma funcionria de carreira, na Casa de Cultura Espao Cultural do Tendal da Lapa, por exemplo, havia sido feito um relato sobre o histrico das utilizaes do prdio (um antigo entreposto de carnes) e todas as atividade culturais dos primeiro anos tinham sido organizadas em um arquivo. Esta documentao nunca pode ser localizada por ns. Ela simplesmente desapareceu. Marilena Chau, em seu livro sobre a gesto (CHAU, Marilena. Cidadania cultural, O Direito Cultura. So Paulo, Editora Fundao Perseu Abramo, 2006), d conta do desconforto que a proposio das Casas de Cultura causou na estrutura da SMC, explicando, em parte, o descuido subseqente com estes documentos: Muitos programas das Casas de Cultura (...) no conseguiam viabilizar-se sob o argumento jurdico de que no so cultura. O que tal declarao significava? Que a lei que criou a SMC restringia as atividades culturais ao campo das belas artes e, por conseguinte, tudo quanto no pertencesse ao escopo destas ltimas no seria administrativa e legalmente cultural! (...) somente em 1991, quando finalmente, a assessoria jurdica do Gabinete do(a) Secretrio(a) entendeu o que era e o que pretendia a poltica de Cidadania Cultural, pudemos modificar o campo funcional da SMC por meio de um decreto da prefeita, que redefinia a idia de cultura e o espao de atuao da Secretaria Municipal de Cultura Ibid, p. 80.23

43 que estava sendo realizado antes de sua chegada. Muitas vezes, os novos gestores so ou tcnicos e artistas da rea cultural, que nunca tiveram real relao com a coisa pblica, ou polticos que pouco conhecem da rea cultural, a exemplo dos funcionrios de carreira. Trata-se da, tradicionalmente lembrada, falta de quadros especializados em arte e cultura dentro dos partidos ou do rgo pblico. Isto no significa, contudo, que se parta do zero em relao a uma idia de poltica cultural a cada nova gesto. O que encontramos so resqucios de discursos consagrados, no articulados conscientemente pelos funcionrios ou pela populao, mas agregados a idias mais ou menos comuns sobre cultura, que so amplamente divulgadas nos discursos miditicos (na televiso, nos jornais, nos discursos polticos mais genricos, desde aqueles dos membros do executivo e legislativo, at aqueles, to comuns atualmente, das instituies culturais ligadas a bancos ou empresas de capital privado). Estas idias, evidentemente, atendem a um posicionamento ideolgico especfico e aparecem na contramo da proposta que desejvamos implementar. Iniciar, neste contexto, uma ao cultural dentro dos equipamentos pblicos da SMC torna-se, por vezes, algo intermedirio entre o incio de um dilogo surdo e improdutivo e uma construo de um esquema rgido demais, para abarcar as variantes envolvidas, fundeado no terreno do lugar comum. Lutamos por desarmar ambas as armadilhas na implantao do Projeto, sendo mais ou menos bem sucedidos em uma ou outra ocasio. Tentaremos a seguir explicitar alguns aspectos do nosso entendimento de cultura e a dificuldade de confront-los com o j estabelecido (por proposio ou por inrcia) na SMC.

44 2.1 Ecos de uma poltica cultural Em um texto de Celso Frateschi redigido logo no incio da gesto (e que no primeiro ano de atuao serviu como uma espcie de carto de visita do Departamento de Teatro), dispem-se muito claramente os elementos envolvidos nas dificuldades de relao com a administrao dos equipamentos. Segundo Frateschi: Durante muitos anos, as aes do poder pblico para a rea de teatro desenvolvem-se por inrcia. As demandas da sociedade civil so acomodadas ao que j existe e nada se prope de novo. Durante os ltimos oito anos 24 , houve uma capitulao das polticas municipais, transformando os espaos pblicos em locais de aluguel sem nenhum critrio artstico e social. (...) Uma poltica de ausncia, de retrao do governo em relao s decises de direcionamento de incentivo s produes culturais, gerou uma ocupao dos espaos pela iniciativa privada. O hbito de uma relao clientelista com estes espaos pblicos deu origem a duas posturas correntes por parte da classe teatral. Por um lado, encontramos uma resistncia ao dilogo vinculada a uma antiga poltica autoritria, associada a uma viso mercantilista da arte, determinada, quase totalmente, pelo seu retorno quantitativo e no qualitativo. Entendemos como natural este receio, com relao determinao do poder pblico, porm viemos para deixar claro, atravs de nossa atuao, que temos uma poltica conseqente e ampla para o teatro na cidade. Por outro lado, seremos bastante rgidos com este vcio de favorecimento individual aos grupos e

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Gestes Paulo Maluf e Celso Pitta, consecutivamente.

45 artistas no seu relacionamento com a atuao pblica. preciso que haja um entendimento da poltica proposta como uma poltica para a cidade, e no para espaos isolados. 25 Aqui fica claro que no apenas o dilogo com os gestores pblicos era difcil, mas que, tambm, havia certa conformidade, por parte da populao e da classe artstica (como veremos no captulo 2), em relao aos vcios de relao com a coisa pblica, causados pela ausncia de proposies. Mais difcil se tornava nosso dilogo, tendo em vista que no atenderamos a uma demanda existente, j habituada a certas acepes do equipamento, mas desejvamos criar uma demanda diante de uma nova proposio: que os equipamentos pblicos, onde atuaramos, fossem caracterizados por serem espaos abertos populao que desejasse compartilhar com os artistas contratados, e com os demais artistas vocacionados, de um ambiente de criao semelhante a um atelier de criao. Em contraposio idia de oficinas profissionalizantes, tecnicistas, compostas por estgios acumulativos, propnhamos uma formulao pedaggica livre, baseada no encontro dos artistas profissionais com os artistas vocacionados semelhana de um aprendizado, no de uma profisso, mas de um ofcio, servisse ele ou no para a insero de seus aprendizes no mercado. Definitivamente, o modelo conhecido pela gesto dos equipamentos e pela populao, mesmo que no declarado, era baseado nestes princpios de estgios sucessivos e de oficinas modulares voltadas para tcnicas especficas. Como a administrao sempre esteve preocupada com nmeros de usurios, e a demanda para iniciar um curso de teatro enorme e renovada a cada semestre, o que ocorria nos equipamentos era um oferecimento contnuo de cursos de Iniciao Teatral. Ao andarmos pelas periferias da cidade, percebemos que existia um sem nmero de artistas vocacionais, praticamente formados em oficinas de Iniciao. Quando o artista FRATESCHI, Celso. Secretaria Municipal de Cultura Departamento de Teatro Poltica Pblica 2001. 2001. Arquivo pessoal.25

46 no suporta mais freqentar as mesmas oficinas com contedos introdutrios linguagem teatral, ele passava a se oferecer como oficineiro (s vezes voluntrio) de oficinas similares. Tratava-se de uma perpetuao de um modelo tecnicista, esvaziado dos contedos transgressores e esteticamente elaborados ligados criao artstica propriamente dita. Versa sobre esta caracterstica o texto que enviamos para as Bibliotecas e Casas de Cultura, em 2003 26 , quando ainda lidvamos com desentendimentos (se que um dia os superamos) por parte das coordenaes dos equipamentos sobre os reais objetivos do Projeto. Tomamos a liberdade de cit-lo quase na ntegra (com alguns grifos nossos): SOBRE O TEATRO VOCACIONAL E OS EQUIPAMENTOS ONDE OCORRE SO PAULO, MARO DE 2003.

O que este tal de Teatro Vocacional? Basicamente, o Programa de Teatro Vocacional foi criado para incentivar o teatro amador nos bairros da cidade. Ns o chamamos de Teatro Vocacional, e no amador, por duas razes: Porque assim que chamado o teatro amador no resto da Amrica Latina e ns gostamos de considerar a vocao como um desejo, uma vontade de fazer teatro. Porque o teatro que chamamos amador est passando por um momento de decadncia em relao ao que ele j foi no passado: bero para grandes grupos de teatro que modificaram a produo cnica desta cidade e que contriburam enormemente para o

CECCATO, Maria. Termo de Entendimento para o Teatro Vocacional e os Equipamentos onde ele ocorre. SMC (material didtico) 2003.

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47 compartilhar de reflexes entre o pblico e os artistas. Assim, consideramos necessrio dar uma chacoalhada neste conceito. Por este segundo motivo, ns achamos muito importante realizar este Programa. Pois no basta ceder lugar para as pessoas se expressarem; preciso permitir que elas tenham acesso s informaes artsticas que uma classe privilegiada tem. Temos que preservar a identidade cultural 27 de cada grupo, mas podemos dividir conhecimentos tcnicos com estes indivduos. Consideramos, tambm, que os cidados (principalmente os jovens) devem perceber que os espaos pblicos foram criados em razo deles e que existem para eles usufrurem de suas possibilidades. Da a importncia de estar realizando este projeto nos equipamentos da SMC. A expresso atravs de arte um direito de todos, e garantir este direito j razo suficiente para a existncia deste projeto. (...) Mas como trabalhamos nos equipamentos? Temos uma equipe formada por artistas de teatro de diferentes grupos e lugares da cidade. Estes artistas criam grupos de teatro vocacional com as pessoas da regio do equipamento onde trabalha. Neste grupo, ele tenta dividir seus conhecimentos tcnicos de artista com os artistas no-profissionais. Achamos que esta forma se aproxima de um ateli de criao, mais do que de um simples curso. Num curso transmitimos conhecimentos prdeterminados: tcnicas de interpretao, iniciao ao teatro,

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Vemos o termo novamente evocado.

48 histria do teatro. Nos grupos vocacionais no. O trabalho contnuo e os contedos aparecem a partir de propostas dos prprios participantes. Lgico que quando voc trabalha com pessoas que nunca fizeram teatro, no princpio a atividade se parece bastante com um curso de iniciao, mas isto se transforma com a evoluo do grupo. (...) O que podemos fazer conjuntamente? Todas essas idias s so exeqveis se ocorrerem de comum acordo entre a equipe do teatro vocacional e as

direes/coordenaes dos equipamentos. Nossa inteno nunca foi realizar uma ingerncia nos equipamentos, mas acho que algumas vezes no nos fizemos entender perfeitamente. Por isso, muito necessrio que nos compreendamos bem. Temos certeza de que no existe vantagem em realizarmos uma ao isolada. Se acreditamos que o teatro pode ser uma porta possvel para todo o tipo de conhecimento, no seria nem razovel que ficssemos trabalhando apenas entre ns. Temos a convico, tambm, de que cada um dos trabalhadores desta Secretaria possui suas competncias. Ns defendemos as necessidades do teatro, mas precisamos pensar juntos como agregar o maior nmero possvel das aes culturais que empreendemos enquanto Secretaria. Acho que podemos ajudar-nos uns aos outros. O Teatro Vocacional pode usufruir dos acervos das Bibliotecas, as Bibliotecas usufrurem da presena dos jovens do teatro, a Casa de Cultura da ao cultural dos grupos e o Teatro Vocacional da

49 circulao de conhecimentos artsticos que a Casa proporciona. Precisamos entender que o espao que devemos compartilhar muito mais um espao de pensamento, um lugar abstrato de criao, do que apenas o espao fsico. 28 As dificuldades encontradas no encontro com os funcionrios dos equipamentos parecem bastante bvias se formos pensar na velha imagem do funcionrio pblico acomodado e inativo, e poderia parecer ingenuidade nossa expectativa de que este dilogo se efetivasse. Mas tentemos fugir do lugar comum e dos preconceitos em relao mquina pblica. A verdade que conhecemos nos quatro anos, alm destes funcionrios j largamente caricaturados, profissionais com uma enorme disposio para o trabalho. Graas a estes a mquina sobrevive, embora todas as condies do entorno nos levem a vislumbrar um futuro de paralisao e falncia completa da organizao da administrao pblica. Contudo, deveremos destacar aqui,

necessariamente, as dificuldades. No por pessimismo ou para fazer um exerccio catrtico de depurao das vicissitudes sofridas, mas porque percebemos nestes entraves aspectos extremamente ideolgicos que, se no forem desarmados como pensamento fechado, impedem-nos de olhar mais criticamente para uma ao que se proponha ao dilogo democrtico. Tentaremos analisar o que nestes entraves responde a iderios que se mantm historicamente arraigados, embora no articulados em termos conscientes, na conformao dos servios pblicos, impedindo uma fluidez nas propostas inovadoras. Estes iderios respondem necessariamente a algumas concepes de poltica cultural que se consolidaram na mquina. Para tanto, optamos por partir do relato de Marilena Chau sobre a poca em que esteve frente, como Secretria da pasta, da SMC. Usaremos assim a terminologiaCECCATO, Maria. Termo de Entendimento para o Teatro Vocacional e os Equipamentos onde ele ocorre. SMC (material didtico), 2003.28

50 empregada pela filsofa. Para Chau 29 , trs concepes de poltica cultural se impetraram nas ltimas dcadas nos rgos pblicos 30 . A primeira a chamada cultura oficial de Estado. Segundo esta concepo, o poder pblico assume o papel de sujeito cultural, de produtor de cultura. So os dirigentes de Estado que definem suas formas e contedos. Geralmente, estas proposies tm o objetivo de reforar a ideologia oficial e bons exemplos desta prtica podem ser encontrados nas ditaduras do Estado Novo e das dcadas de 1960/1970. A cultura passa ento a operar como instrumento justificador do regime poltico. A censura, o apoio e financiamento de obras monumentais em louvor s idias de uma Identidade Nacional, a supervalorizao do folclore e o uso das mdias de comunicao de massa para divulgao destas formas e contedos so caractersticos deste tipo de poltica cultural. O objetivo glorificar a autoridade de Estado vendendo uma imagem pr-determinada, estereotipada, da cultura nacional para dentro e fora do Pas. A segunda concepo a tradio populista. Foi caracterstica nas polticas culturais do final da dcada de 1950 e incio de 1960. Entende que o rgo pblico tem um papel pedaggico sobre as massas populares e tende a valorizar a cultura popular em uma contraposio a uma chamada cultura de elite. uma poltica de separao entre as duas formas de manifestaes culturais, a erudita e a popular, tendendo para uma consagrao um tanto messinica das prticas populares como expresso da cultura

CHAU, Marilena. Cidadania cultural. O Direito Cultura. So Paulo: Editora fundao Perseu Abramo, 2006. 30 Embora, em 2001, a ao mais bvia no sentido de rearticular aes feitas anteriormente nossa chegada SMC, orientadas para um norte mais prximo do nosso Projeto, fosse a busca das proposies efetivadas na gesto Luiza Erundina/ Marilena Chau, durante nossa coordenao do Projeto, no tivemos contato com nenhum texto relativo gesto petista anterior. S pudemos contar com relatos verbais de funcionrios e ex-colaboradores e algum material regimentado por lei, mas de difcil acesso nos arquivos da SMC. O Departamento Jurdico da pasta muito zeloso em relao s normas e s leis regimentais da Prefeitura e, a cada necessidade jurdica (para consulta ou redao de pareceres administrativos), o gestor deve necessariamente pedir auxlio aos procuradores de carreira, que nem sempre disponibilizam materiais. Apenas aps o trmino de nossa coordenao entramos em contato efetivo com estas idias atravs de publicaes exteriores SMC.

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51 verdadeira do povo e que, portanto, deve ser a ele levada como forma de libertao do jugo dominador das culturas de elite. Os rgos pblicos aparecem, deste modo, como agentes de libertao do povo. Por fim, segundo Chau, temos a concepo neoliberal, que tem seu momento de entrada nos rgo pblicos no final da dcada de 1980. Esta concepo diminui a funo do Estado no espectro das aes culturais. O papel do Estado tende a se reduzir apenas legitimao de um patrimnio histrico (que visa celebrao do prprio Estado) e viabilizao de um amplo campo para a entrada de contedos e padres definidos pala cultura de massa e pelo mercado. Este perfil acredita na parceria da iniciativa privada para as aes culturais e a v como ideal da cultura administrada. Suas aes almejam principalmente a quantidade de pblico atingido e dedicam-se a consagrar o j consagrado pelo mercado, realizando, especialmente, eventos efmeros, que no visam a uma processualidade ou a um real dilogo de construo com o pblico. Embora os termos neoliberalismo e populismo tenham origens bem distintas e carreguem consigo diversas conotaes exteriores nossa descrio, consideramos adequada a descrio de Chau atravs do emprego dos termos para a reflexo crtica das dificuldades de implantao do Projeto Teatro Vocacional junto Administrao Pblica. Para tanto, necessrio nos atermos s caractersticas gerais associadas por Chau a cada um dos traos em uma poltica cultural31 .

O termo populismo tem sua origem na Rssia no final do sculo XIX para designar uma transferncia de poder s comunas camponesas e, na mesma poca, nos Estados Unidos, para descrever uma poltica de incentivo pequena agricultura. O sentido do termo que mais conhecemos relacionado a certas polticas implementadas na Amrica Latina, na dcada de 1930, que visavam dissolver os poderes das polticas oligrquicas e ampliar uma industrializao e urbanizao destes pases. Hoje, o termo associado pejorativamente aos governos populares de esquerda, na Amrica Latina, como o governo Hugo Chvez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolvia. O termo neoliberalismo empregado em dois momentos distintos da nossa Histria recente para doutrinas econmicas diferentes: no comeo do sculo XX, por franceses, alemes e norte-americanos para caracterizar a adaptao dos princpios do liberalismo clssico s exigncias de um Estado regulador e assistencialista; e, a partir de 1970, como doutrina econmica que defende a absoluta liberdade de mercado. No caso da descrio de Chau, aplica-se o segundo significado.

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52 Partindo desta terminologia, quando chegamos na SMC, terminava-se um longo perodo de oito anos em que uma poltica cultural com traos neoliberais, como descritos, havia sido a tnica. E aqui importante salientar que, acreditando que o mercado o nico responsvel pelas dinmicas culturais, os agentes desta poltica, no mbito pblico, viam diminuda a sua funo e facilitado o seu trabalho 32 . A reflexo fora abolida e as escolhas se voltavam para o que j era dado como expresso desejada das manifestaes culturais pelos meios de comunicao de massa. Era apenas uma questo de ter ou no ter dinheiro para contratar os artistas consagrados, ou cpias destes, e esperar a alegria da populao em receber o que de melhor a cultura pode oferecer. A cpia referida em uma perspectiva qualitativa pautada pela aceitao de mercado predominante nesta concepo neoliberal. Portanto, no de se estranhar que ela regesse tambm as concepes de um ensino nas oficinas culturais oferecidas nos equipamentos. Em relao s oficinas teatrais oferecidas, uma imagem de um teatro amador como cpia do teatro profissional mais comercial se apresentava como parmetro. Nossa primeira ao, portanto, seria questionar a imagem cristalizada do