Técnicas de Respiração Segundo Flautistas - Victor Faro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA TÉCNICAS DE RESPIRAÇÃO SEGUNDO FLAUTISTAS: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA – DE JOHANN JOACHIM QUANTZ (1752) A MICHEL DEBOST (2002) VICTOR PINHEIRO FARO HOMEM DE SIQUEIRA Salvador 2012

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Técnica de respiração para flautistas; Flute technique; Method for Flute.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MSICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

    TCNICAS DE RESPIRAO SEGUNDO FLAUTISTAS: UMA PERSPECTIVA HISTRICA DE JOHANN JOACHIM

    QUANTZ (1752) A MICHEL DEBOST (2002)

    VICTOR PINHEIRO FARO HOMEM DE SIQUEIRA

    Salvador 2012

  • VICTOR PINHEIRO FARO HOMEM DE SIQUEIRA

    TCNICAS DE RESPIRAO SEGUNDO FLAUTISTAS: UMA PERSPECTIVA HISTRICA DE JOHANN JOACHIM

    QUANTZ (1752) A MICHEL DEBOST (2002)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em msica. rea de concentrao: Execuo Musical. Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto

    Salvador 2012

  • ii

    - AGRADECIMENTOS

    A meus pais e familiares, a cujo apoio devo toda a minha carreira como msico;

    A meu primeiro mestre, Jos Benedito Viana;

    A meu segundo mestre e orientador, Lucas Robatto;

    A Srgio Dias, por todos os ensinamentos;

    A Jos Maurcio Brando, pelas indicaes de bibliografia;

    Aos amigos, pelo apoio extra.

  • iii

    - RESUMO -

    A dissertao que se segue consiste em uma pesquisa acerca das tcnicas de

    respirao empregadas por flautistas ao longo de uma parcela significativa da histria

    documentada do ensino e da prtica da flauta transversal. Vrias publicaes

    diretamente relacionadas flauta foram consultadas a fim de se observar as diversas

    abordagens ao assunto e as possveis modificaes sofridas por essas abordagens

    durante o passar do tempo. Esta pesquisa tambm inclui uma descrio da anatomia do

    sistema respiratrio, bem como de seu funcionamento, englobando apenas os aspectos

    que interessam de forma direta prtica instrumental do flautista.

  • iv

    - ABSTRACT -

    The following dissertation consists of a research concerning the breathing

    techniques employed by flautists throughout a significant portion of the documented

    history of the teaching and the practice of the transverse flute. Many flute-related

    publications were examined in order to observe the diverse number of approaches to the

    subject and how those approaches were modified over time. Also included are

    descriptions of the anatomy of the respiratory system and some of its operation,

    embracing specifically the functions that relate directly to the instrumental practice of

    the flautist.

  • v

    - NDICE DE FIGURAS E TABELAS -

    Figura 1 Pulmes e vias areas 5 Figura 2 rvore bronquial 6 Figura 3 Tronco enceflico: ponte e bulbo 7 Figura 4 A faringe e suas trs subdivises 10 Figura 5 Laringe e traqueia 11 Figura 6 Pregas vocais, glote e epiglote 11 Figura 7 Pulmes e corao 12 Figura 8 Volumes respiratrios 15 Figura 9 O diafragma (viso frontal) 17 Figura 10 O diafragma (viso posterior) e a crista ilaca 18 Figura 11 A caixa torcica (viso frontal), as vrtebras cervicais (formando a coluna vertebral cervical) e as lombares (formando a coluna vertebral lombar) 20 Figura 12 A caixa torcica (viso posterior), as vrtebras cervicais (formando a coluna vertebral cervical), as dorsais (formando a coluna vertebral torcica) e as lombares (formando a coluna vertebral lombar) 21 Figura 13 Um arco costal 22 Figura 14 Em azul, a caixa torcica e o diafragma em posio relaxada; em vermelho, a caixa torcica expandida e o diafragma contrado 22 Figura 15 A cintura escapular 23 Figura 16 O peitoral menor 24 Figura 17 O peitoral maior 25 Figura 18 O serrtil anterior 26 Figura 19 Os msculos supracostais 27 Figura 20 Os msculos espinais 27 Figura 21 Os serrteis posterior superior e posterior inferior, os oblquos do abdome e os intercostais externos (viso posterior do tronco) 28 Figura 22 O esternocleidomastoideo 29 Figura 23 Os escalenos 29 Figura 24 O reto, os oblquos e o transverso do abdome 32 Figura 25 Os intercostais internos e o transverso do trax 33 Figura 26 O quadrado do lombo e o reto do abdome 33 Figura 27 Os intercostais internos e externos Figura 28 Vivaldi: Concerto para flauta doce sopranino em d maior RV443, primeiro movimento, compassos 120-138 44 Figura 29 Vivaldi: Concerto para flauta transversa em r maior RV428, Op.10 N3 Il Gardellino, primeiro movimento, compassos 78-87 45 Figuras 30 e 31 Ilustraes do mtodo de Giovanni Battista Lamperti 84

  • vi

    Tabela 1 Histrico das tcnicas de respirao levantadas (autor[es] / data[s] / tcnica[s]). 87

  • - SUMRIO - AGRADECIMENTOS ii RESUMO iii ABSTRACT iv NDICE DE FIGURAS E TABELAS v INTRODUO 1 CAPTULO I RESPIRAO 4

    I.1 O ato respiratrio e suas funes 4 I.2 Vias areas e pulmes 9 I.3 A ventilao e os volumes respiratrios 13 I.4 O diafragma, a caixa torcica e os msculos inspiratrios 16 I.5 Os msculos expiratrios e os de ao varivel 30 I.6 A inspirao abdominal 34 I.7 A inspirao torcica 36 I.8 As expiraes abdominal e torcica e as respiraes paradoxais 36

    CAPTULO II - MTODOS E TRATADOS DE FLAUTA DOS SCULOS XVIII E XIX 39

    II.1 Fontes consultadas 39 II.2 Como respirar: conhecimento tcito? 42 II.3 Os tradados de Johann Joachim Quantz e Johann George Tromlitz 47 II.4 De Devienne a Alts: os mtodos publicados na Frana entre 1794 e 1880 51

    CAPTULO III PUBLICAES FLAUTSTICAS DOS SCULOS XX E XXI 58

    III.1 De Taffanel e Gaubert a Michel Debost 58 III.2 Uma genealogia flautstica 76

    CAPTULO IV ALGUNS MTODOS DE CANTO E SUAS POSSVEIS INFLUNCIAS NAS TCNICAS RESPIRATRIAS DE FLAUTISTAS 79 CONCLUSO 87 BIBLIOGRAFIA 90

  • 1

    - INTRODUO -

    Em se tratando do ensino de e da performance em instrumentos de sopro, h

    pelo menos uma temtica que concerne em grande grau a todos os msicos que lidam

    com esse tipo de instrumento: a respirao. Enquanto que em outros instrumentos o ato

    respiratrio constitui uma preocupao de cunho musical, praticado a fim de delinear

    fraseados e deixar mais claras as intenes musicais do intrprete, em instrumentos de

    sopro, tal ato, alm disso, imprescindvel para a produo do som o mesmo valendo

    para o canto.

    No de hoje que inmeros estudos so realizados com a inteno de se

    alcanar uma melhor compreenso de como funcionam os mecanismos anatmicos e

    fisiolgicos da respirao humana. Os resultados desses estudos tm sido aplicados no

    s ao campo da sade, mas tambm ao do atletismo e ao das artes performticas

    dana, teatro e msica , ajudando os profissionais das reas citadas a otimizarem suas

    respectivas atuaes. No caso dos msicos que tocam instrumentos de sopro, as

    pesquisas no mbito em questo contriburam para fazer com que estes passassem a ter

    maior conscincia de quais prticas respiratrias so mais eficientes para se obter um

    maior controle dos procedimentos de obteno, armazenamento e expulso do ar.

    Tratando em especfico dos flautistas, supe-se, a partir da leitura de mtodos1 e

    tratados2 de flauta dos sculos XVIII e XIX, entretanto, que as tcnicas de respirao

    eram encaradas como algo muito natural e cuja discusso em detalhe no se mostrava

    necessria, uma vez que pouqussimo foi escrito acerca do assunto. Os tratadistas e 1 (...) conjunto de regras e princpios normativos que regulam o ensino ou a prtica de uma arte (...); (...) compndio que apresenta detalhadamente as etapas desse mtodo (...). HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. 1Ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. p.1910. Mtodos de flauta podem ser definidos como obras que visam mostrar ao leitor uma srie de aes que, se seguidas risca, o levaro a tocar o instrumento a contento. 2 (...) obra que expe de forma didtica um ou vrios assuntos a respeito de uma cincia, arte etc. (...). HOUAISS; VILLAR. p.2756. Tratados de flauta podem ser definidos como obras que visam discutir de forma aprofundada a arte do fazer musical flautstico, levantando questes que vo alm do tocar do instrumento e no necessariamente tendo por objetivo fornecer ao leitor um mtodo de aprendizagem do instrumento.

  • 2

    escritores de mtodos, em sua esmagadora maioria, ativeram-se a tratar do aspecto

    musical da respirao um vasto mundo por si s. Tcnicas de respirao passam a ser

    discutidas com mais frequncia e com embasamento mais slido em mtodos de

    flauta do sculo XX em diante. Apesar disso, seria um equvoco afirmar que o flautista

    de um passado mais distante (princpio do sculo XX para trs) no tinha qualquer

    preocupao com o assunto, bem como qualquer conhecimento.

    Naturalmente, msicos que tocavam outros instrumentos de sopro e cantores

    tambm se interessavam de maneira especial pela temtica, de forma que esses nichos

    musicais influenciavam-se mutuamente no que dizia respeito s suas respectivas

    concepes de respirao. Pela insistente referncia de alguns autores de mtodos de

    flauta (em especial Roger Mather) s tcnicas de respirao adotadas por cantores,

    supe-se que a influncia da escola de canto lrico tenha sido forte a ponto de causar

    mudanas significativas na maneira de respirar dos flautistas.

    A presente dissertao tem por objetivo principal o levantamento de dados

    relativos maneira como, ao longo da histria do ensino e da prtica da flauta

    transversal, os flautistas procediam para acionar um ato respiratrio que atendesse s

    necessidades do tocar do instrumento. Para tanto, vrios gneros de publicaes

    relacionadas flauta vindas a pblico desde o ano de 1500 at a atualidade passando

    tambm por escritos direcionados flauta doce foram consultados. Um objetivo

    colateral a esse consiste no levantamento de um perodo razoavelmente preciso para o

    momento em que a respirao abdominal passou a ser a tcnica de respirao dominante

    entre flautistas. A fim de auxiliar nesta busca, algumas publicaes relacionadas

    pedagogia do canto foram consultadas.

    Um terceiro e final objetivo desta pesquisa o de prestar esclarecimentos acerca

    do ato respiratrio, suas funes, sua anatomia e sua fisiologia, procurando descrever os

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  • 3

    mecanismos envolvidos nos diversos tipos de respirao existentes. Com o

    conhecimento levantado sobre esse assunto, o leitor poder entender melhor como

    funciona o sistema respiratrio e ser capaz de identificar a quais tipos de respirao os

    autores dos mtodos consultados se referem em seus escritos, uma vez que, na maioria

    das vezes, os escritores no se utilizam de termos tcnicos para apresentar o tipo de

    respirao que tinham em mente, descrevendo apenas os movimentos corporais

    envolvidos na tcnica respiratria por eles preconizada.

    Um levantamento de dados referente s tcnicas respiratrias adotadas por

    flautistas ao longo da histria e o esclarecimento acerca dos mecanismos do ato

    respiratrio justificam suas respectivas utilidades por duas razes. A primeira delas o

    fato de que saber respirar com eficincia uma habilidade imprescindvel para qualquer

    instrumentista de sopro sobretudo para o flautista, o qual, conhecidamente, precisa

    lidar com grandes quantidades de ar para ser capaz de tocar seu instrumento a contento.

    A segunda a realidade de que, infeliz e inexplicavelmente, ainda hoje, mesmo o acesso

    ao vasto conhecimento que h disponvel sobre o assunto nunca tendo sido to fcil,

    erros serissimos de concepo referentes ao ato respiratrio ainda permeiam o meio

    flautstico. Por consequncia disso, tcnicas de respirao so ensinadas sem critrio e

    embasamento algum, colocando em jogo o desenvolvimento tcnico e tambm

    musical dos flautistas estudantes.

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  • 4

    - CAPTULO I - RESPIRAO

    O ato respiratrio e suas funes

    A respirao est inserida no rol dos atos imprescindveis manuteno do

    funcionamento do organismo humano. Assim como o bater do corao, o ato

    respiratrio acontece de forma automtica, ou seja, sem que necessitemos dar ordens

    conscientes para que os msculos e rgos envolvidos acionem seu funcionamento.

    Seus ritmos so constantes em indivduos saudveis e em situao de repouso. Se

    qualquer uma das duas atividades cessar por uma determinada (e relativamente curta)

    quantidade de tempo, o organismo entrar em colapso, podendo levar falncia de

    rgos vitais e, consequentemente, morte do indivduo. Ao contrrio dos batimentos

    cardacos, porm, a respirao pode ser interrompida (embora no o possa ser por tempo

    indeterminado), acelerada ou desacelerada de forma voluntria e direta. Em outras

    palavras, podemos acelerar ou desacelerar os batimentos cardacos ao entrarmos,

    respectivamente, em estado de agitao ou repouso, mas no podemos dar uma ordem

    direta aos msculos cardacos para que se contraiam e relaxem no ritmo que queremos

    impor a eles algo que podemos fazer com uma boa parte dos msculos envolvidos na

    respirao.

    O principal objetivo do ato respiratrio realizar trocas gasosas entre a

    atmosfera e o nosso sangue3. Ao inspirarmos, ou seja, ao permitirmos a entrada de ar

    em nossos pulmes, fazemos com que as molculas de oxignio presentes no ar entrem

    em contato com o sangue que corre pelas inmeras veias de nosso corpo. O ar percorre

    as vias areas, das quais fazem parte o nariz (1), a boca (2), a faringe (3), a laringe (4), a

    3 WEST, John B. Fisiologia Respiratria Princpios Bsicos. 8ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. p.10.

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  • 5

    traqueia (5) e os brnquios (6) e suas ramificaes4 (ver figura 1, logo abaixo),

    chegando finalmente aos alvolos.

    4 Respectivamente, pelo caminho que o ar faz desde a atmosfera at chegar aos alvolos: brnquios principais esquerdo e direito; brnquios lobares; brnquios segmentares; bronquolos terminais. WEST. p.13-14.

    Figura 1 Pulmes e vias areas. CALAIS-GERMAIN, Blandine. Respirao: Anatomia Ato respiratrio.Barueri: Manole,

    2005. p.56.

  • 6

    Os alvolos so pequenas estruturas em formato quase esfrico, dotadas de um

    dimetro de aproximadamente 0,3mm. Essas pequenas estruturas, das quais temos cerca

    de 500 milhes5 dentro de nossos pulmes, so revestidas por um tecido repleto de veias

    capilares as de menor calibre dentre as que existem em nosso organismo. O sangue

    conduzido aos alvolos por essas veias extremamente finas conhecido como sangue

    venoso. Ele repleto de gs carbnico, um composto altamente txico para nosso corpo

    produzido por nossas clulas no momento em que elas executam processos metablicos

    durante os quais a participao do oxignio imprescindvel. Chegando aos alvolos, o

    sangue venoso entra em contato com o ar atmosfrico, liberando suas molculas de gs

    5 WEST. p.19.

    Figura 2 rvore bronquial. Imagem retirada do catlogo da exposio O

    Fantstico Corpo Humano, 2010. p.41.

  • 7

    carbnico. O ar inspirado, agora cheio de gs carbnico, expulso para a atmosfera,

    processo ao qual damos o nome de expirao. Enquanto isso, o sangue reabastecido

    com oxignio agora conhecido como sangue arterial percorre novamente todo o

    corpo, participa de diversos processos metablicos, novamente saturado com gs

    carbnico, retorna aos pulmes e, mais uma vez, sujeito troca gasosa em questo,

    participando de um ciclo cuja interrupo irreversvel leva morte do indivduo. Todo

    esse processo de converso do sangue venoso em sangue arterial conhecido por

    hematose6 e o conjunto dos processos que a possibilitam (ou seja, a inspirao e a

    expirao, a entrada e sada do ar nos pulmes) conhecido como ventilao.

    O carter automtico da inspirao e da expirao devido ao controle que

    determinadas estruturas cerebrais exercem sobre os msculos respiratrios. Os

    neurnios localizados na ponte e no bulbo estruturas presentes no tronco enceflico7

    (ver figura 3, logo abaixo) so estimulados por mecanismos denominados sensores, os

    quais recolhem informaes acerca das condies nas quais nosso organismo se

    encontra.

    6 CALAIS-GERMAIN, Blandine. Respirao: Anatomia Ato respiratrio.Barueri: Manole, 2005. p.15. 7 WEST. p.154.

    Figura 3 Tronco enceflico: ponte e bulbo Disponvel em: .

    Acesso em: 27 fev. 2012.

  • 8

    Dentre os sensores h, por exemplo, os quimiorreceptores centrais, cuja funo

    consiste em responder a alteraes na composio qumica do sangue8. Colocando de

    forma simplificada: sempre que tais sensores acusarem que a concentrao de gs

    carbnico no sangue est elevada, as estruturas do tronco enceflico responsveis pela

    respirao automtica faro com que os msculos respiratrios entrem em ao, a fim

    de realizar a ventilao e, por conseguinte, a hematose, processo que culmina no

    reequilbrio das concentraes de oxignio e gs carbnico no sangue.

    Quando desejamos exercer um controle voluntrio sobre a respirao, porm, a

    ao do crtex cerebral pode prevalecer sobre do tronco enceflico, mas vlido

    ressaltar que tal controle limitado9. Sem dvida, podemos provocar um estado de

    apneia, ou seja, de suspenso de quaisquer movimentos respiratrios10, mas no

    podemos permanecer nele por tempo indeterminado. Em dado momento, os estmulos

    dos sensores ponte e ao bulbo se tornam to fortes, que se torna impossvel fazer com

    que a ao do crtex continue prevalecendo do tronco enceflico. A concentrao de

    gs carbnico um fator importante na ativao desses sensores, mas tambm h vrios

    outros fatores que podem interromper uma ao respiratria voluntria, tais como a dor

    e a mudana da temperatura corporal do indivduo em questo11.

    A respirao participa de outros eventos que ocorrem em nosso organismo alm

    daquele da troca gasosa anteriormente descrita. Podemos colocar em ao um jogo

    respiratrio voluntrio visando os mais diversos efeitos, dentre os quais: acompanhar o

    mpeto de um movimento; modificar emoes, saindo de um estado de ansiedade para

    um de calma, por meio da diminuio da velocidade do ritmo respiratrio e, como efeito

    colateral, da frequncia cardaca, por exemplo; aumentar ou diminuir a tenso do tnus

    8 WEST. p.157. 9 Ibid. p.156. 10 CALAIS-GERMAIN. p.21. 11 WEST. p.163.

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  • 9

    corporal; acompanhar sensaes de prazer ou amenizar sensaes de dor; mobilizar as

    vsceras; sustentar a voz falada ou cantada12. Mas, acima de tudo isso, ela pode servir ao

    fim que mais interessa ao leitor desta dissertao: tocar instrumentos de sopro a flauta

    transversal, mais especificamente. Tambm possvel realizarmos movimentos

    respiratrios sem que haja, necessariamente, a passagem de ar13, o que se d atravs da

    ao dos msculos respiratrios aliada ao fechamento das vias areas.

    Vias areas e pulmes

    As vias areas so divididas esquematicamente em duas categorias: as inferiores

    a as superiores. As inferiores so aquelas localizadas ao nvel do trax, como os

    brnquios (e suas segmentaes) e os canais alveolares. As superiores, por sua vez, so

    as que se encontram acima do nvel do trax. Trata-se da boca, do nariz, da faringe, da

    laringe e da traqueia (figuras 1 e 2, pginas 5 e 6). A regio anterior da faringe divida

    em trs diferentes zonas (figura 4, pgina 10): a rinofaringe (1), localizada na regio

    posterior do nariz; a orofaringe (2), localizada na regio posterior da boca; a

    laringofaringe (3), localizada logo acima da laringe. Em inspiraes e expiraes feitas

    pelo nariz, o ar passa pelos trs nveis, enquanto que, quando feitas pela boca, o ar passa

    apenas pelas duas ltimas regies descritas14.

    O ar inspirado pelo nariz passa por estruturas que o aquecem, umedecem,

    purificam e esterilizam antes que o mesmo chegue aos pulmes, fatores que depem a

    favor da inspirao nasal. Respirar pela boca, porm, mostra-se mais vantajoso quando

    surge a necessidade de mobilizar-se uma grande quantidade de ar em pouco tempo

    (como quando se realiza uma atividade fsica intensa ou se toca um instrumento de

    sopro), uma vez que o conduto bucal, por conta de sua largura, demonstra menos 12 CALAIS-GERMAIN. p.16. 13 Ibid. p.17. 14 Ibid. p.64-71.

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  • 10

    resistncia passagem de ar que os condutos nasais15. Alm disso, o caminho

    percorrido pelo ar inspirado pela boca ligeiramente menor, j que apenas duas das trs

    zonas nas quais a faringe dividida participam da respirao nessas condies.

    Para uma boa conduo do ar aos pulmes, necessrio que as vias areas

    estejam desobstrudas. A laringe (ver figura 5, pgina 11) dotada de estruturas que

    podem obstruir seriamente o fluxo areo. Nela esto localizadas as pregas vocais

    (popularmente conhecidas como cordas vocais, responsveis pela formao da voz nos

    seres humanos) e a glote o espao entre elas (ver figura 6, pgina 11). Se as pregas

    vocais estiverem em posio muito prxima, no h espao gltico e o ar no consegue

    seguir para a traqueia. Acima das pregas vocais h outra estrutura potencialmente

    obstrutora, conhecida como epiglote (ver figura 6, pgina 11), responsvel pelo

    fechamento da traqueia no momento em que engolimos algum alimento. graas a ela

    que o bolo alimentar conduzido ao estmago (passando pelo esfago) e no aos

    pulmes. Por fim, o formato da traqueia (ver figura 5, pgina 11) tambm pode

    15 CALAIS-GERMAN. p.77.

    Figura 4 A faringe e suas trs subdivises. CALAIS-GERMAIN, p.70.

  • 11

    influenciar na passagem do ar aos pulmes. Ela um tubo cartilaginoso semirgido e,

    como no se fecha sem a ao das pregas vocais e da epiglote, encontra-se, em boa parte

    do tempo, aberta para o fluxo de ar. No entanto, pode se curvar para frente, para trs, ou

    at mesmo lateralmente16. A sua posio alongada a ideal para uma inspirao sem

    dificuldades.

    16 CALAIS-GERMAIN. p.67-69

    Figura 5 Laringe e traquia. CALAIS-GERMAIN, p.67.

    Figura 6 Pregas vocais, glote e epiglote. CALAIS-GERMAIN, p.69.

  • 12

    Em um indivduo sem deficincias em sua formao fsica, encontramos um par

    de pulmes os principais rgos da respirao. Podemos descrev-los

    simplificadamente como cones abaulados, sendo que damos parte superior deste cone

    o nome de pice, e chamamos de base a sua parte inferior. Sabe-se, porm, que os dois

    pulmes no possuem o mesmo formato: o pulmo esquerdo possui um volume um

    pouco menor, decorrente da concavidade de sua face interna, deformao que tem por

    propsito criar espao para alojar o corao17 (ver figura 7, logo abaixo). Como dito

    anteriormente, dentro deles que se encontram os milhes de alvolos em cujo interior

    acontece a troca gasosa entre o ar atmosfrico (conduzido at eles pelas vias areas) e o

    nosso sangue, atividade vital ao nosso organismo. O corao e os pulmes so os nicos

    rgos pelos quais passam todo o sangue que corre em nosso corpo.

    17 CALAIS-GERMAIN. p.59.

    Figura 7 Pulmes e corao. Disponvel em: . Acesso em: 27 fev. 2012.

  • 13

    O tecido pulmonar possui propriedades altamente elsticas, tendendo a resistir

    expanso e a voltar ao seu estado de repouso passivamente. Cada um dos pulmes

    envolvido por uma membrana denominada pleura, composta por dois folhetos que

    recebem os nomes de pleura visceral (a face interna da pleura, que adere ao pulmo) e

    pleura parietal (a face externa, que adere face interna das costelas e face superior do

    diafragma)18. Essa aderncia da pleura parietal s costelas e ao diafragma que sero

    descritos mais adiante uma das principais responsveis pelo aumento do volume

    pulmonar. A contrao do diafragma e dos msculos aos quais se deve o movimento das

    costelas resulta na trao das paredes dos pulmes de dentro para fora, aumentando

    assim o volume de ambos.

    A ventilao e os volumes respiratrios

    O ato da ventilao composto por dois momentos principais: o da inspirao

    a captao de ar atmosfrico pelas vias areas, conduzindo-o aos pulmes e a

    expirao a expulso do ar previamente inspirado. Na respirao automtica, ambos

    alternam-se incessantemente, havendo um breve momento de apneia entre a passagem

    de um para o outro. Atravs desta alternncia constante, o nosso organismo permanece

    sempre abastecido de oxignio e consegue se livrar do gs carbnico indesejado. A

    inspirao caracterizada por uma expanso do abdome e das costelas; a expirao, por

    um fechamento dos mesmos.

    Quando acionamos os msculos cuja contrao resulta no aumento do volume

    dos pulmes (conhecidos como msculos inspiratrios), fazemos com que seja criada

    no interior destes uma zona de presso mais baixa que a presso atmosfrica,

    mecanismo responsvel pela ativao do fluxo de ar no sentido que caracterstico da

    18 CALAIS-GERMAIN. p.61-63.

  • 14

    inspirao, ou seja, de fora dos pulmes para dentro deles. O inverso acontece na

    expirao: atravs da compresso dos pulmes, a sua presso interna torna-se maior que

    a atmosfrica, ocorrncia que leva expulso do ar de seu interior. Tal compresso se

    d tanto pela contrao dos msculos conhecidos como expiratrios como pelo

    relaxamento dos msculos inspiratrios e pelas j citadas propriedades elsticas dos

    pulmes.

    A cada expirao de carter automtico, cerca de 500mL de ar passam pelas vias

    areas. Se considerarmos que realizamos um ciclo respiratrio completo (ou seja, que

    inspiramos e expiramos) aproximadamente 15 vezes por minuto, um total de 7,5 litros

    de ar participaria das trocas gasosas entre oxignio e gs carbnico a cada minuto.

    Entretanto, nem todo ar expirado passou necessariamente pelos alvolos. Uma parte

    dele (cerca de 150mL dos 500mL j citados) no trafega para alm das vias areas

    desprovidas de alvolos. Essas regies do sistema respiratrio que no participam da

    hematose so denominadas de espao morto anatmico. Assim sendo, dos sete litros e

    meio que transitam nas vias areas a cada minuto, aproximadamente 5,25 litros

    participam efetivamente das trocas gasosas19. importante frisar que os valores citados

    so aproximados. Eles podem variar tanto de indivduo para indivduo (por conta de

    diferenas de estatura), quanto no mesmo indivduo submetido a condies diversas.

    Tambm importante ressaltar que o ar que se encontra no espao morto anatmico,

    embora intil do ponto de vista hematose, precioso para outras atividades dentre

    elas, cantar e tocar instrumentos de sopro.

    Ao volume de ar descrito no pargrafo anterior proveniente da respirao

    automtica e tranquila , damos o nome de volume corrente (VC). Quando realizamos

    uma inspirao forada ficando acima do VC, portanto , podemos mobilizar, em

    19 WEST. p.28-29.

  • 15

    mdia, entre 2 e 3,5 litros de ar a mais, a depender da estatura e da aptido fsica do

    indivduo. A esse volume damos o nome de volume de reserva inspiratrio (VRI). Quer

    estejamos no VC ou no VRI, podemos realizar uma expirao forada, expulsando

    ainda mais ar de nossos pulmes. Quando expiramos uma quantidade de ar que coloca

    nossos pulmes abaixo do VC, damos ao volume expirado a partir da o nome de

    volume de reserva expiratrio (VRE). O VRE nos permite expirar aproximadamente um

    litro de ar alm do VC, podendo variar graas s mesmas causas que fazem variar o

    VRI. No entanto, no nos possvel expirar todo o ar que h em nossos pulmes. Um

    volume residual (VR) ainda permanece em seu interior20. Ao VRE e ao VR somados d-

    se o nome de capacidade residual funcional (CRF); o volume expirado desde o VRI at

    o VR chamado de capacidade vital (CV); por fim, damos o nome de capacidade

    pulmonar total (CPT) soma de todos os volumes citados21.

    20 CALAIS-GERMAIN. p.26-30. 21 WEST. p.25.

    Figura 8 Volumes respiratrios WEST, John B. Fisiologia Respiratria Princpios Bsicos. 8Ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

    p.25.

  • 16

    O diafragma, a caixa torcica e os msculos inspiratrios

    O diafragma o mais importante dos msculos inspiratrios. Trata-se de uma

    grande membrana muscular e fibrosa, em forma de cpula, inserida nas costelas

    inferiores e localizada logo abaixo da base dos pulmes, com os quais entra em contato

    atravs das pleuras parietais. Ele une e, ao mesmo tempo, serve como divisa entre o

    trax e o abdome (ver figuras 9 e 10, pginas 17 e 18). Abaixo dele encontram-se as

    vsceras abdominais mais altas, sobre as quais se apia e, devido sua maleabilidade

    inerente, se molda. A sua contrao faz com que ele seja puxado para baixo, na direo

    da pelve, o que acarreta em duas coisas: na deformao das vsceras abdominais,

    facilmente visualizada pela projeo do ventre para frente; no aumento do volume

    pulmonar, tracionado pela sua base, graas aderncia da pleura parietal ao msculo em

    questo. Sentir a contrao do diafragma, entretanto, tarefa difcil. Por no ser dotado

    de muitos nervos, sua ao no fcil de ser sentida. As pleuras e as vsceras

    abdominais, entretanto, por serem altamente inervadas, provocam sensaes bem mais

    ntidas22. Numa inspirao em VC, o diafragma move-se cerca de apenas um centmetro

    em relao sua posio de relaxamento. Numa em VRI, entretanto, pode chegar a se

    mover dez centmetros23. Alm de aumentar o volume pulmonar atravs da trao de

    suas bases, a contrao do diafragma tambm provoca o levantamento e a abertura das

    costelas inferiores. Dessa maneira, o diafragma infla os pulmes atravs dos dois

    mecanismos que caracterizam a ao dos msculos inspiratrios, a saber: a trao pela

    base; a trao pelas faces anterior, posterior e laterais.

    22 CALAIS-GERMAIN. p.86. 23 WEST. p.120.

  • 17

    Figura 9 O diafragma (viso frontal).

    SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. Prometheus Atlas de Anatomia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A., 2006. p.135.

  • 18

    Figura 10 O diafragma (viso posterior) e a crista ilaca. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.135.

  • 19

    Os demais msculos inspiratrios so dotados apenas da capacidade de expandir

    os pulmes atravs do segundo mecanismo descrito ao final do pargrafo anterior. O

    grupo de msculos cuja ao nesse sentido mais ativa recebe o nome de msculos

    inspiratrios costais24. Sua contrao resulta no afastamento e levantamento das

    costelas, cujas faces internas aderem ao pulmo atravs da pleura parietal. As costelas

    so ossos chatos, encurvados e flexveis, dos quais temos, normalmente, doze pares (ver

    figura 11, pgina 20). Elas possuem uma capacidade nica dentre as demais estruturas

    sseas das quais dispomos: so deformveis, podendo ser curvadas e at mesmo

    torcidas sobre si mesmas, e so elsticas, tendendo a retornar ao seu formato e sua

    abertura originais sem gasto de energia25. Juntamente com as doze vrtebras dorsais

    (que formam a coluna dorsal, um segmento da coluna vertebral), as cartilagens costais e

    o esterno, elas formam a caixa torcica (ver figuras 11 e 12, pginas 20 e 21), dentro da

    qual se encontram os pulmes e o corao. O esterno, localizado na regio anterior da

    caixa torcica, um osso em formato de espada, e se une s costelas graas s

    cartilagens costais. As vrtebras dorsais, por sua vez, possuem formato semelhante ao

    de discos e encontram-se na regio posterior da caixa torcica. As costelas se encaixam

    no espao existente entre duas vrtebras. Ao conjunto de duas vrtebras, um par de

    costelas, outro par de cartilagens costais e da poro correspondente do esterno, d-se o

    nome de arco costal, justamente por tal estrutura ter formato de arco (ver figura 13,

    pgina 22).

    24 CALAIS-GERMAIN. p.87. 25 Ibid. p.37.

  • 20

    Figura 11 A caixa torcica (viso frontal), as vrtebras cervicais (formando a coluna vertebral cervical) e as lombares (formando a coluna

    vertebral lombar). SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.76.

  • 21

    Figura 12 A caixa torcica (viso posterior), as vrtebras cervicais (formando a coluna vertebral cervical), as vrtebras dorsais (formando a coluna vertebral torcica) e as lombares (formando a coluna vertebral

    lombar). SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.77.

  • 22

    Figura 13 Um arco costal. CALAIS-GERMAIN, p.39.

    Figura 14 Em azul, a caixa torcica e o diafragma em posio relaxada; em vermelho, a caixa torcica expandida e o diafragma contrado.

    SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.134

  • 23

    O dimetro dos arcos costais pequeno na parte mais alta da caixa torcica e vai

    aumentando medida que descemos at o dcimo par de costelas, acompanhando o

    aumento do tamanho das costelas e das cartilagens costais. Os dois ltimos pares so

    bem menores que o dcimo e no se conectam ao esterno tais costelas so chamadas

    de costelas flutuantes. At o nvel do stimo par, cada costela possui sua prpria

    cartilagem costal. Os oitavo, nono e dcimo pares ligam-se ao esterno atravs do

    alongamento das cartilagens do stimo par (ver figuras 11 e 12, pginas 20 e 21). As

    propriedades elsticas das costelas e das cartilagens costais fazem da caixa torcica uma

    estrutura extremamente mvel e flexvel. Tal mobilidade potencializada pela

    flexibilidade da coluna dorsal, cujas tores tendem a deformar a caixa torcica26.

    Os msculos inspiratrios costais podem ser divididos esquematicamente em

    trs categorias: aqueles que elevam as costelas a partir da cintura escapular ou cngulo

    do membro superior (ver figura 15, logo abaixo); os que elevam as costelas a partir da

    coluna dorsal; os que elevam as costelas a partir da cabea e do pescoo27.A cintura

    escapular formada pelo esterno, pelas clavculas (par de ossos localizados na frente do

    trax, entre o esterno e as escpulas) e pelas escpulas (par de ossos achatados e de

    formato triangular localizados atrs e sobre a lateral das costelas mais altas).

    26 CALAIS-GERMAIN. p.45. 27 Ibid. p.87.

    Figura 15 A cintura escapular. CALAIS-GERMAIN, p.52.

  • 24

    Dentro da primeira categoria de msculos inspiratrios costais, enquadram-se os

    peitorais menor e maior e o serrtil anterior. O peitoral menor um par de pequenos

    feixes de msculos que partem das escpulas, formando um leque que termina sobre as

    costelas superiores (ver figura 16, logo abaixo). Sua contrao eleva essas costelas para

    frente. O peitoral maior, vindo da parte superior do brao, cobre por completo o peitoral

    menor, terminando sobre as clavculas, os oito primeiros pares de costelas e o esterno

    (ver figura 17, pgina 25). Sua ao afeta principalmente o esterno, levando-o para

    frente. O serrtil anterior, por sua vez, se estende ao longo da lateral de todos os pares

    de costelas, excetuando-se os dois ltimos (ver figura 18, pgina 26). Ele eleva as

    costelas em um movimento lateral muito amplo, um movimento semelhante ao de uma

    ala de balde.

    Figura 16 O peitoral menor. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.261.

  • 25

    Figura 17 O peitoral maior. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.269.

  • 26

    Dentro da categoria de msculos que elevam as costelas a partir da coluna dorsal

    esto os supracostais, o serrtil posterior superior e, indiretamente, os espinais. Os

    supracostais so pequenos e numerosos feixes de msculos que partem das vrtebras

    dorsais e se ligam parte posterior das costelas, elevando-as a partir da (ver figura 19,

    pgina 27). Os msculos espinais, localizados ao longo de toda a coluna vertebral, tm

    como principal funo a movimentao do tronco (ver figura 20, pgina 27). Entretanto,

    podem agir sobre a respirao, uma vez que as deformaes da coluna dorsal acarretam

    na deformao da caixa torcica (conforme descrito anteriormente). O serrtil posterior

    (ver figura 21, pgina 28) superior origina-se a partir das trs ltimas vrtebras cervicais

    localizadas no pescoo e as trs ou quatro primeiras vrtebras dorsais (ver figuras 11

    e 12, pginas 20 e 21), unindo-se, tal qual os supracostais, regio posterior das

    Figura 18 O serrtil anterior. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.261.

  • 27

    costelas. Ele executa o mesmo tipo de movimento que os msculos supracostais

    executam, porm em costelas mais altas.

    Figura 19 Os msculos supracostais. CALAIS-GERMAIN. p.143.

    Figura 20 Os msculos espinais. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.123.

  • 28

    O serrtil posterior superior, por originar-se, em parte, a partir das ltimas

    vrtebras cervicais, tambm se enquadra na categoria dos msculos que elevam as

    costelas a partir da cabea e do pescoo. Alm dele, h o esternocleidomastoideo e os

    escalenos. O esternocleidomastoideo origina-se na regio logo abaixo do ouvido e

    termina nas partes superiores das clavculas e do esterno, elevando a caixa torcica pela

    Figura 21 Os serrteis posterior superior e posterior inferior, os oblquos internos e externos do abdome e os intercostais externos (viso posterior

    do tronco). SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.140.

  • 29

    trao deste ltimo (ver figura 22, logo abaixo). Os escalenos, por fim, originam-se na

    coluna cervical e ligam-se aos dois primeiros pares de costelas, elevando-as

    lateralmente (ver figura 23, logo abaixo). O esternocleidomastoideo e os escalenos

    tambm so chamados de msculos acessrios da inspirao, uma vez que a sua ao

    em uma respirao tranquila quase que inexistente28.

    28 WEST. p.121.

    Figura 22 O esternocleidomastoideo. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.288.

    Figura 23 Os escalenos. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.133.

  • 30

    Os msculos expiratrios e os de ao varivel

    A ao dos msculos expiratrios leva compresso dos pulmes, tanto por

    meio do fechamento das costelas (atuando sobre as faces anterior, posterior e laterais

    dos pulmes), quanto por uma fora de direo vertical e de sentido de baixo para cima

    a agir sob a base dos pulmes (as vsceras abdominais empurrando o diafragma para

    cima). So diversos os msculos que podem participar desse processo. Antes de

    enumer-los, entretanto, necessrio ressaltar que a principal ao expiratria passiva:

    trata-se da propriedade elstica dos pulmes, resistindo expanso e tendendo sempre a

    retornar ao volume original depois de inflados. Para sairmos de uma inspirao em VRI

    e retornarmos ao VC, basta permitir que a elasticidade pulmonar faa seu trabalho. Os

    msculos expiratrios descritos a seguir s sero ativados caso queiramos fazer uma

    expirao que nos leve at o VRE29.

    Os msculos mais importantes da expirao so os da parede abdominal,

    constituda pelos msculos abdominais, o transverso do abdome, os oblquos e o reto

    abdominal. Os msculo abdominais aqueles que circundam o abdome agem tanto

    sobre as vsceras abdominais quanto sobre determinadas estruturas sseas, tais como a

    coluna vertebral, a pelve e principalmente as costelas. O transverso do abdome (ver

    figura 24, pgina 32), por sua vez, age predominantemente sobre as vsceras. Quando

    ele se contrai, o resultado a diminuio do dimetro do abdome. Ele se insere

    superiormente na face profunda da poro mais baixa da caixa torcica, descendo pelas

    vrtebras lombares e chegando finalmente crista ilaca. As vrtebras lombares so as

    mais baixas da coluna vertebral e a elas fixam-se vrios outros msculos respiratrios

    alm do transverso, dentre eles o diafragma (ver figura 9, pgina 17). A crista ilaca

    29 CALAIS-GERMAIN. p.96.

  • 31

    uma estrutura ssea que tem um formato que lembra um par de orelhas de elefante (ver

    figura 10, pgina 18). Ela compe a pelve, situando-se em sua regio mais alta.

    Os oblquos so de dois tipos: o interno e o externo. O interno fixa-se,

    superiormente, caixa torcica e, inferiormente, crista ilaca (ver figuras 21 e 24,

    pginas 28 e 32), chegando at o pbis (uma das estruturas sseas mais baixas da

    pelve). O oblquo interno pode abaixar as costelas e diminuir o dimetro do abdome,

    agindo freqentemente em parceria com o transverso. O oblquo externo, por sua vez,

    est ligado ao exterior da poro inferior da caixa torcica (ver figuras 21 e 24, pginas

    28 e 32), cobrindo todo o oblquo interno. Sua ao tem resultado semelhante do seu

    msculo homnimo. O reto do abdominal fixa-se sobre o esterno e as quinta, sexta e

    stima cartilagens costais, seguindo at o pbis. o msculo abdominal que tem o

    formato tpico de quadrados (ver figuras 24 e 26, pginas 32 e 33). Ele atua abaixando o

    esterno e elevando o pbis. H tambm alguns msculos expiratrios que agem

    exclusivamente sobre as costelas. Um deles o triangular do esterno igualmente

    conhecido como transverso do trax (ver figura 25, pgina 33). Originado na face

    profunda do esterno (ou seja, voltado para dentro da caixa torcica), suas fibras dirigem-

    se da segunda at a stima cartilagens costais. Sua contrao abaixa essas cartilagens e

    as projeta para trs. Sua ao nitidamente sentida quando tossimos. O quadrado do

    lombo, que vai da dcima segunda costela at a crista ilaca, atua abaixando a costela

    em questo (ver figura 26, pgina 33). Por fim, o serrtil posterior inferior, que se

    origina das vrtebras lombares mais altas e das dorsais mais baixas, age sobre os

    ltimos quatro ou cinco pares de costelas, abaixando-os tambm (ver figura 21, pgina

    28).

    Finalmente, h um grupo muscular cuja ao pode favorecer tanto a inspirao

    quanto a expirao. Trata-se dos msculos intercostais, os quais so divididos em

  • 32

    internos e externos (ver figuras 21, 25, e 27, pginas 28, 33 e 34), tal qual os oblquos.

    Eles localizam-se nos espaos que h entre os dez primeiros pares de costelas, formando

    duas camadas de feixes oblquos. Sua ao primeira de aproximar as costelas umas

    das outras, exercendo um papel expiratrio, uma vez que tal comportamento leva,

    inevitavelmente, diminuio do volume de caixa torcica. Entretanto, sua ao pode

    ser modificada de duas maneiras. Se o par mais alto de costelas estiver fixo ou elevado

    (graas ao dos escalenos) e os msculos intercostais entrarem em ao, o resultado

    ser a elevao das demais costelas, conferindo a eles o papel de msculos inspiratrios.

    Se, por outro lado, o par mais baixo de costelas estiver fixo ou abaixado (por obra do

    oblquo externo), as demais costelas tendero a abaixar, atribuindo aos intercostais o

    carter de msculos expiratrios.

    Figura 24 O reto, os oblquos e o transverso do abdome. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.149.

  • 33

    Figura 25 Os intercostais internos e o transverso do trax. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.133.

    Figura 26 O quadrado do lombo e o reto do abdome. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.129.

  • 34

    A inspirao abdominal

    Tambm conhecida como inspirao diafragmtica ou ventral, a inspirao

    abdominal o tipo de inspirao mais comumente empregado para o VC. Ela acontece

    por meio de dois mecanismos principais, denominados de primeiro e segundo

    mecanismos ou fase um e fase dois. Vale frisar que tal nomenclatura arbitrria, no

    refletindo necessariamente uma sequncia cronologia entre ambas as fases ou

    mecanismos30.

    O primeiro mecanismo, ou fase um, j foi descrito anteriormente aqui em linhas

    gerais. Trata-se do abaixamento do centro frnico do diafragma, a sua poro central,

    tambm conhecido como centro tendnio (ver figura 9, pgina 17), acarretando na trao 30 CALAIS-GERMAIN. p.134.

    Figura 27 Os intercostais internos e externos. SCHNKE, Michael; SCHULTE, Erik; SCHUMACHER, Udo. p.133.

  • 35

    das bases dos pulmes a ele aderidas atravs da pleura parietal, aumentando o volume

    dos mesmos e criando em seu interior uma zona de baixa presso, a qual levar a uma

    demanda de ar para o interior dos pulmes, produzindo, assim, a inspirao. Como

    efeito colateral da contrao do centro frnico, as vsceras abdominais deformam-se,

    projetando-se para frente de modo bastante visvel da o fato de chamarmos a

    inspirao abdominal de ventral. A inspirao de segundo mecanismo, por sua vez,

    caracterizada pela imobilizao do centro frnico. Nesse caso, a contrao se d em seu

    entorno, o qual se levanta e causa a elevao das costelas mais baixas. Como dito

    anteriormente, os dois mecanismos se misturam, podem agir isoladamente e podem agir

    cronologicamente: se o centro frnico se abaixar at o seu nvel mximo (tendo,

    portanto, deformado as vsceras abdominais o mximo possvel em altura), o seu

    entorno levanta-se por conta da deformao das vsceras abdominais em largura.

    Cada um dos mecanismos da inspirao abdominal possui suas vantagens e

    desvantagens. As vantagens da primeira fase constituem: uma ventilao mxima com

    esforo muscular mnimo; a mobilizao das vsceras abdominais, favorecendo sua

    drenagem circulatria e at mesmo otimizando suas funes; maior relaxamento da

    regio superior do tronco. Sua desvantagem maior consiste em seu uso exclusivo, que

    acarreta uma disposio a ventilar apenas as bases dos pulmes em detrimento de seus

    pices, alm de relegar a ltimo plano a ao da caixa torcica, a qual tender a

    enrijecer se no for exercitada. J em se tratando de inspiraes diafragmticas de

    segundo mecanismo, sua maior desvantagem o fato de ser difcil de ser distinguida,

    uma vez que ela atua de uma maneira que pode ser considerada algo intermediria entre

    a inspirao costal e abdominal.

  • 36

    A inspirao torcica

    Na inspirao torcica, tambm conhecida como inspirao costal, o aumento do

    volume pulmonar se d exclusivamente pela abertura e pela elevao das costelas, a

    cuja face interna os pulmes aderem atravs da pleura parietal, acompanhando

    necessariamente todos seus movimentos. O movimento das costelas acontece,

    basicamente, de duas maneiras: em um movimento de ala de balde, abrindo o dimetro

    dos arcos costais atravs de sua elevao, causando um aumento de volume lateral; em

    um movimento de ala de bomba, atravs do qual o esterno eleva-se e causa um

    aumento de volume anteroposterior. Como vimos anteriormente, grande o nmero de

    msculos que agem sobre as costelas. Dessa maneira, a inspirao torcica torna-se

    multiforme, podendo mobilizar regies altas, baixas e intermedirias dos pulmes a

    depender do grau de controle possudo pelo indivduo que a praticar.

    A inspirao torcica aliada abdominal permite a explorao de grandes

    volumes inspiratrios, uma habilidade perseguida por vrios tipos de atletas, por

    cantores e por msicos que tocam instrumentos de sopro. Elas podem tambm

    contribuir para a otimizao do estado de sade de indivduos sedentrios, uma vez que

    conserva a abertura da caixa torcica. Mas utilizada isoladamente, ela no capaz de

    mobilizar uma grande quantidade de ar e, se exagerada, pode promover rigidez na caixa

    torcica e submeter o indivduo a estresse desnecessrio.

    As expiraes abdominal e torcica e as respiraes paradoxais

    As inspiraes abdominal e torcica (ou diafragmtica e costal) encontram seu

    contraponto nas expiraes homnimas. A expirao torcica consiste no fechamento da

    caixa torcica, fim para o qual dispomos de dois principais meios. Um deles

    aproximar as costelas entre si, movimento que pode ser executado graas aos msculos

  • 37

    intercostais e ao triangular do esterno (ou transverso do trax). O outro o abaixar da

    caixa torcica, ou seja, o abaixamento das costelas. Ele ocorre naturalmente graas

    fora da gravidade e ao relaxamento dos msculos que foram contrados durante a

    inspirao, mas tambm pode ser provocado pelos msculos que tracionam as costelas

    em direo pelve.

    A expirao abdominal tambm conta com dois mecanismos principais: o

    apertar da cintura e o subir do abdome, ambos levando deformao das vsceras

    abdominais. Quando apertamos a cintura para expirar, estamos colocando em ao o

    transverso do abdome, empurrando a metade superior do abdome para cima ao mesmo

    tempo em que a metade inferior empurrada para baixo. Esse movimento associa-se

    frequentemente flexo do tronco para frente. Quando expiramos por meio da subida

    do abdome, toda a massa abdominal sobe, desde o assoalho plvico (a regio mais baixa

    da pelve) at o diafragma, no havendo mais a diviso entre vsceras superiores e

    inferiores caracterstica do apertar da cintura.

    Uma respirao na qual podem ser observados movimentos inspiratrios e

    expiratrios se confundindo chamada de respirao paradoxal. Durante uma

    inspirao desse tipo de respirao, as costelas se abrem a tal ponto que o pulmo,

    distendido por essa abertura excessiva, acaba elevando sua base, atraindo a massa

    abdominal em sua direo. Assim, ao mesmo tempo em que a caixa torcica se expande,

    o ventre se retrai fortemente. Na expirao que se segue, a caixa torcica se fecha e o

    ventre se projeta para frente. A respirao paradoxal possui suas vantagens e

    desvantagens. Uma de suas vantagens o desenvolvimento da fora dos msculos

    intercostais. Alm disso, proveitoso utiliz-la em alternncia com a respirao

    abdominal em situaes em que esta ltima muito intensamente empregada, a fim de

    promover o equilbrio dos movimentos viscerais, uma vez que a respirao paradoxal

  • 38

    mobiliza as vsceras das caixas torcica e abdominal em um sentido oposto ao de

    respirao abdominal. Se for o nico tipo de respirao empregado, a paradoxal se

    mostrar muito limitante no que diz respeito variedade de movimentos ventilatrios.

    Por promover contraes muito fortes, ela pode enrijecer a regio torcica.

  • 39

    - CAPTULO II - MTODOS E TRATADOS DE FLAUTA

    DOS SCULOS XVIII E XIX

    Fontes consultadas

    Como dito na introduo a esta dissertao, a metodologia de pesquisa

    empregada para a realizao deste trabalho acadmico firmou-se basicamente em

    consulta bibliogrfica. A esmagadora maioria do material levantado fora publicado na

    Frana do sculo XVI ao XIX, material composto por mais de uma centena de itens

    literrios de temtica flautstica. Foram examinados fac-smiles de mtodos e tratados

    de flauta tanto doce quanto transversal, verbetes em enciclopdias gerais e de msica e

    excertos de tratados gerais de instrumentao, alm de algumas edies mais modernas

    de determinadas publicaes centrais da literatura flautstica do sculos XVIII e XIX.

    A totalidade dos fac-smiles consultados e aproveitados neste trabalho est

    presente nas colees de fac-smiles editadas pela editora Fuzeau sob a coordenao de

    Jean Saint-Arroman.31 As referncias feitas a esse material demandam uma formatao

    ligeiramente diferenciada. Como se trata de coletneas de escritos previamente

    publicados e que podem ser encontrados separadamente por meio de outras fontes ,

    eles so dotados de dupla referncia: uma concernente localizao do fac-smile

    dentro da coletnea e outra relativa ao fac-smile tratado isoladamente. Julguei til

    deixar disposio do leitor ambas as referncias, escrevendo primeiro aquelas

    relacionadas ao fac-smile como material independente32.

    31 Trata-se da coleo Mthodes & Traits. Informaes mais detalhadas sobre tais publicaes sero encontradas ao longo do presente captulo e ao final desta dissertao, na seo dedicada bibliografia. 32 A ttulo de exemplo: DEVIENNE, Franois. NOUVELLE MTHODE Thorique et Pratique Pour la Flte. Paris: Naderman, 1794. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits 10: Flte Traversire France 1600-1800. Vol.II. p.65-143. 2Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a., 2003. p.6/72. Os nmeros de pginas escritos logo aps o nmero do volume da coleo dentro do qual o fac-smile est inserido se referem s pginas ocupadas por ele em sua totalidade no volume em questo. J os nmeros de pginas ao final da referncia dizem respeito pgina onde est a citao qual fao aluso, sendo, neste caso, 6 a pgina do fac-smile se considerado isoladamente e 72 a pgina na qual a citao se encontra dentro do volume da coletnea mencionada.

  • 40

    Renderam maiores frutos a esta pesquisa os mtodos e tratados de flauta

    transversal. Os mtodos de flauta doce consultados33 no trazem quaisquer informaes

    acerca do objeto de interesse deste trabalho ou seja, como respirar. A preocupao

    maior dos autores dos mtodos em questo consistiu em munir o leitor de noes

    bsicas de leitura e teoria musicais, falar sobre a maneira correta de empunhar a flauta

    doce e em elaborar tabelas de dedilhados (para notas simples e para trinados), partindo,

    logo em seguida, para a prtica musical, utilizando-se de melodias populares na poca

    em que foram escritos. Exemplos disso so os mtodos de John Hudgebut34 (c.1650-

    1750) e Jacob van Eyck35 (c.1590-1657). Hudgebut dedica a pequena parcela inicial de

    seu mtodo a ensinar ao leitor os valores das notas, a segurar a flauta e a uma tabela de

    dedilhados, partindo logo para as melodias populares, as quais ocupam mais de quatro

    quintos de seu mtodo. Eyck, em seu longo mtodo em duas partes, por sua vez, nem se

    ocupa da teoria musical: fala logo sobre dedilhados e segue para as melodias populares

    (a maior poro da primeira parte e a totalidade da segunda parte do mtodo consistem

    apenas de melodias).

    Ao ler vrios desses mtodos de flauta doce (especialmente aqueles de autoria

    annima), o leitor notar um alto grau de repetio de contedo entre eles. So muitos

    os mtodos que seguem a mesma estrutura e que ensinam exatamente os mesmos

    preceitos, muitas vezes sequer alterando a escrita: pargrafos inteiros parecem ter sido

    copiados letra por letra de um mtodo para outro. A nica variao substancial est na

    33 SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Bec Europe 1500-1800. Vols. I-IV. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a., 2006-2007. 34 HUDGEBUT, John. A VADE MECUM For the LOVES of MUSICK, Shewing the EXCELLENCY of the RECHORDER. London: N. Thompson, J. Hudgebut, 1679. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Bec Europe 1500-1800. Vol.II. p.141-163. 3Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a, 2001. 35 EYCK, Jabob van. DER FLUYTEN LUST-HOF, Vol Psalmen, Paduanen, Allemanden, Couranten, Balletten, Airs, etc. Amsterdam: P. Matthysz, 1646 (1 parte) e 1654 (2 parte). Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Bec Europe 1500-1800. Vol.II. p.7-124. 3Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a, 2001.

  • 41

    escolha das melodias presentes em cada um deles. Todos os mtodos de autoria

    annima constantes na coleo Fuzeau foram publicados em lngua inglesa e em datas

    espaadas entre 1695 e 1790, sendo que as datas de publicao de alguns no foi

    estimada. muito interessante notar que h pouqussima diferena entre os contedos

    dos mtodos de 169536 e 179037, os quais seguem o padro de apresentao de contedo

    citado neste pargrafo, mesmo que o ttulo deste ltimo mtodo d a entender que, se

    comparado a seus predecessores, o mesmo esteja repleto de novidades.

    Esse tipo de estrutura e contedo tambm caracterstico de grande parte dos

    fac-smiles de mtodos de flauta transversal publicados at meados do sculo XVIII.

    Um bom exemplo o tratado de Jacques-Martin Hotteterre Le Romain (c.1680-

    c.1760)38. Impressa pela primeira vez em 1707, a obra dedicada tanto flauta doce

    quanto transversal (e tambm ao obo), e nela esto contidos conselhos sobre como

    resolver ornamentos, tabelas de dedilhados e direes sobre como segurar corretamente

    os instrumentos sobre os quais versa.

    Os verbetes de enciclopdias gerais e de msica consultados tambm no trazem

    informaes a respeito de tcnicas de respirao para flautistas, muito embora sejam

    dotados de informaes curiosas sobre os diversos tipos de flauta utilizados na poca

    em que foram escritos suas construes, usos e origens, principalmente. Dois

    exemplos dignos de nota so os escritos de Marin Mersenne39 (1588-1648) e Antoine

    36ANNIMO. THE COMPLEAT Flute-Master OR The whole Art of playing on the Rechorder. London: J. Hare, J. Walsh, 1695. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Bec Europe 1500-1800. Vol.II. p.275-306. 3Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a, 2001. 37 ANNIMO. NEW AND Complete Instructions for the COMMON FLUTE, Containing the easiest & most Improved Rules For Learners to Play. London: Preston & Son, c.1790. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Bec Europe 1500-1800. Vol.IV. p.243-259. 1Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a, 2006. 38 HOTTETERRE, Jacques-Martin. Principles of the Flute, Recorder and Oboe. Traduo de Paul Marshall Douglas. New York: Dover Publications, 1968. p.X. 39 MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris, 1636. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Traversire France 1600-1800. Vol.I. p.7-10. 3Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau, s.a., 2001.

  • 42

    Furetire40 (1619-1688). O primeiro fala, dentre outras coisas, sobre as dimenses da

    flauta transversal, dos dimetros de seus orifcios e do uso do pfano na msica militar,

    enquanto o segundo faz distino entre fluste dAllemad (flauta da Alemanha, descrita

    como a flauta transversal) e fluste dAngleterre (flauta da Inglarerra, descrita como a

    flauta doce).

    Por fim, os excertos de tratados gerais de instrumentao nos mostram a que tipo

    de msica os instrumentos da famlia da flauta se prestavam, quais afetos e efeitos os

    mesmos eram capazes de reproduzir bem, em quais tonalidades as passagens a eles

    dedicadas poderiam ser escritas sem provocar grandes problemas de digitao e

    afinao ao instrumentista e quais eram suas tessituras; entretanto, so igualmente

    desprovidos de material referente respirao. Bom exemplo o trecho destinado

    flauta do tratado de instrumentao de Hector Berlioz41 (1803-1869). Alm de versar

    sobre tudo o que foi citado no pargrafo anterior, ele ainda escreve sobre o flautim e, a

    fim de falar sobre as capacidades expressivas da flauta, cita exemplos de solos

    orquestrais famosos para o instrumento, como o grande solo da pera Orfeo ed

    Euridice, de Christoph Willibald Gluck (1714-1787).

    Como respirar: conhecimento tcito?

    Mesmo nos mtodos de flauta transversal consultados, entretanto, nota-se que a

    temtica dos mecanismos respiratrios no frequentemente abordada. Ao falar sobre

    respirao, os autores de todos os mtodos dedicavam um grande nmero de pginas

    40 FURETIRE, Antoine. Harmonie universelle. La Haye, 1690. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Traversire France 1600-1800. Vol.I. p.14. 1Ed. Breissure: ditions J.M. Fuzeau s.a., 2001. 41 BERLIOZ, Hector. GRAND TRAIT DINSTRUMENTATION ET DORCHESTRATION MODERNES. Paris: Schonenberger, 1844. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN. Mthodes & Traits: Flte Traversire France 1800-1860. Vol.V. p.293-310. 1Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a., 2005.

  • 43

    discusso sobre onde respirar, enquanto escreviam pouco sobre a maneira de respirar.42

    De tal fato podemos inferir que o debate sobre o aspecto musical da respirao, tratada

    como demarcadora de limites entre uma ideia musical e outra, tinha, no meio flautstico,

    supremacia em relao ao debate acerca do mecanismos fisiolgicos da mesma.

    Mas no podemos de forma alguma concluir que o assunto era encarado como

    algo sem importncia entre os flautistas da poca apenas por no haver, at o final do

    sculo XIX, escritos mais aprofundados sobre o tema dentro da literatura flautstica.

    Como escreve Harnoncourt:

    preciso ter em mente que os tratados foram escritos para os contemporneos dos autores (...), e que estes autores podem ter imaginado que uma srie de importantes conhecimentos contidos em suas obras fossem evidentes e, por essa razo, no tinham por que explicit-los. (...) O no escrito, o suposto, seria, assim, de valor maior que o escrito!43

    No podemos atribuir esse silncio total inexistncia de conhecimento sobre o

    assunto. A comunidade cientfica j tinha, com toda a certeza, feito importantes

    descobertas sobre a anatomia e sobre o funcionamento do sistema respiratrio quela

    altura44. Ao compararmos mtodos de flauta e de canto45 de fins do sculo XIX e do

    princpio do sculo XX, em especial, vemos um enorme descompasso entre o nvel de

    profundidade em que a discusso se encontrava entre flautistas e cantores, os ltimos

    demonstrando muito mais solidez de conhecimento acerca da respirao do que os

    primeiros. Como, portanto, conhecimento cientfico palpvel sobre o assunto no

    faltava naquela poca, podemos apenas concluir que sua difuso no se deu de forma

    ampla entre flautistas por motivos desconhecidos. 42 Os tratados de Johann Joachim Quantz e Johann Georg Tromlitz, bem como os mtodos de Franois Devienne, Hugot e Wunderlich e Victor Coche so bons exemplos disso. Todas essas publicaes sero discutidas mais adiante neste captulo. 43 HARNONCOURT, Nikolaus. O Discurso dos Sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. p.39. 44 o caso de Hygine de la Voix, escrito por Louis Mandl, publicao discutida com maior detalhamento no captulo quarto da presente dissertao. 45 O mais interessante dos escritos de canto consultados para esta pesquisa o tratado de Henri Lavoix e Thophile Lemaire, o qual ser discutido mais adiante, no captulo quarto.

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  • 44

    No caso dos mtodos de flauta doce, talvez seja mais simples compreender o

    motivo pelo qual a temtica no foi abordada. A flauta doce, graas ao tipo de

    embocadura que requer para ser tocada, um instrumento cuja emisso de som no

    apresenta dificuldades do mesmo nvel das existentes quando tentamos produzir som em

    uma flauta transversal. Essas flautas so dotadas de um bico por isso seu nome

    francs: flte bec, ou flauta de bico que canaliza o ar soprado para a aresta contra

    a qual ele deve colidir, dividindo-se e gerando as vibraes da coluna de ar dentro do

    instrumento. Essa estrutura (muito semelhante dos apitos) faz com que pouco ar seja

    desperdiado, podendo o instrumentista trabalhar com menor volume de ar. Respirao

    no era, consequentemente, uma grande preocupao para quem tocava flauta doce.

    Uma comparao entre alguns dos concertos escritos por Antonio Vivaldi (1678-1741)

    ilustra bem o caso: a frase mais longa caracterizada por um fluxo ininterrupto de notas

    musicais do primeiro movimento do concerto para flauta doce sopranino em d maior

    RV443 (ver figura 28, logo abaixo) muito mais extensa do que a frase da mesma

    natureza do primeiro movimento do concerto para flauta transversal em r maior N3 do

    opus 10 (ver figura 29, pgina 45). As setas demarcam o incio e o fim de frase.

    Figura 28 Vivaldi: Concerto para flauta doce sopranino em d maior RV443, primeiro movimento, compassos 120-138.

    Disponvel em:

  • 45

    Como a emisso de som na flauta transversal (durante o perodo barroco

    conhecida simplesmente como traverso) exigia mais ar do que a mesma atividade

    demandava para a flauta doce, natural, portanto, que as aluses iniciais aos

    mecanismos respiratrios aparecessem nos mtodos e tratados dedicados primeira. O

    assunto comeou a ser tratado com mais frequncia e maior critrio quando as

    condies do fazer musical da poca comearam a sofrer mudanas gradativas,

    acarretando modificaes na construo dos instrumentos. A partir do final do sculo

    XVIII, mais potncia sonora passou a ser exigida aos instrumentistas, uma vez que estes

    eram submetidos a apresentar-se em teatros maiores, para um pblico muito maior e em

    conjuntos musicais mais numerosos. Os instrumentos de corda e de teclas, bem como

    alguns dos instrumentos de sopro, conseguiram adaptar-se com relativa facilidade a essa

    nova tendncia. O traverso, porm, s conseguiu acompanhar os demais instrumentos a

    partir do final da primeira metade do sculo XIX, graas a Theobald Bhm (1791-

    1881).

    Flautista com esprito de cientista, Bhm estudou aprofundadamente as

    propriedades acsticas da flauta, visando aprimorar o instrumento em quatro aspectos

    principais: afinao, homogeneidade de timbre, potncia sonora e facilidade de

    Figura 29 Vivaldi: Concerto para flauta transversa em r maior RV428, Op.10 N3 Il Gardellino, primeiro movimento, compassos 78-87.

    Disponvel em: . Acesso em: 27 fev. 2012.

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  • 46

    digitao em todas as tonalidades. Para atingir seu objetivo, ele fez diversas alteraes

    no design do traverso. Ele aumentou o tamanho do orifco da embocadura e

    experimentou vrios formatos para ele, desde o oval at um formato de retngulo com

    arestas arredondadas; aumentou a quantidade de orifcios da flauta e seus dimetros,

    alm de ter modificado as distncias entre cada um deles; agregou vrios mecanismos

    que permitiam que os numerosos orifcios da flauta fossem tapados ou abertos atravs

    da ao de apenas nove dedos; modificou o formato do tubo: de cnico para cilndrico.

    Tais mudanas exigiam e permitiam ao flautista o uso de maior quantidade de ar,

    alcanando-se a potncia sonora desejada e forando os flautistas a prestarem mais

    ateno na maneira de inspirar e controlar a expirao do ar.

    Todas as caractersticas da sua nova flauta (denominada, hoje, flauta de sistema

    Bhm) esto descritas em seus mnimos detalhes no tratado que Theobald publica em

    187146, mas a primeira flauta que ele constri com essas novas caractersticas data de

    1832. A flauta de sistema Bhm no adquiriu popularidade instantnea, coexistindo,

    durante muito tempo, com flautas de sistema antigo (o traverso) e suas variantes

    (traversos com chaves acrescentadas). Da o fato de alguns mtodos de flauta do sculo

    XIX trazerem tabelas de dedilhados e trinados para flautas de diversos sistemas. o

    caso do mtodo de Bousquet47, o qual traz tabelas de dedilhados para trs tipos de

    flauta: a flauta com uma chave (o traverso), a flauta com cinco chaves e a flauta de

    sistema Bhm48.

    46 BHM, Theobald. The Flute and Flute-Playing in Acoustical, Technical, and Artistic Aspects. Traduzido por Dayton C. Miller. New York: Dover Publications Inc., 1964. 47 Datas de nascimento e falecimento no encontradas. 48 BOUSQUET, N. MTHODE DE FLTE DIVISE EN TROIS PARTIES ELEMENTAIRES ET PROGRESSIVES AVEC DES TABLATURES POUR LA FLTE A UNE CLE, LA FLTE A CINQ CLS ET LA FLTE SYSTEME BHM. Paris: Tondu Simon, 1858. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits: Flte Traversire France 1800-1860. Vol.VII. p.27-55. 1Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a., 2005.

  • 47

    Os tratados de Johann Joachim Quantz e Johann George Tromlitz

    Dentre os escritos consultados referentes flauta transversal, o primeiro a

    abordar o assunto respirao o grande tratado de Johann Joachim Quantz (1697-

    1773). Msico da corte de Frederico II da Prssia (e professor de flauta do monarca),

    publica, em 1752, o seu Versuch einer Anweisung die Flte traversiere zu spielen (ou

    Ensaio sobre um mtodo para se tocar a flauta transversal). Trata-se de uma obra de

    grande flego, a qual trata de um sem-nmero de assuntos concernentes no apenas

    flauta (sua histria, sua construo e a maneira de toc-la), mas tambm ao fazer

    musical corrente em seu tempo, como um todo. Quantz discorre sobre as qualidades que

    algum que almeja seguir a profisso de msico deve possuir caso queira obter algum

    sucesso com ela, fala sobre estilos nacionais, esclarece questes de andamento, versa

    sobre as vrias maneiras de se ornamentar um adagio, d conselhos sobre a disposio

    dos msicos no palco para as mais diversas formaes camersticas, opina sobre o que

    deve ser levado em conta ao julgarmos uma composio musical... Essa riqueza de

    contedo o que afere ao seu tratado a grande importncia que ele tem para o

    movimento da msica historicamente informada: uma das principais fontes de

    conhecimento acerca do fazer musical do perodo barroco.

    Nessa obra, a questo da respirao tratada, principalmente, sob uma tica

    musical e artstica. Quantz explana de forma muito detalhada o que um msico deve

    levar em considerao ao escolher um determinado momento da msica para recobrar

    flego, fornecendo inmeros exemplos para tanto. Em outras palavras, o autor est mais

    preocupado com a relao respirao x fraseado musical, argumentando que um bom

    msico deve saber escolher com bom gosto o momento certo para respirar, a fim de no

    quebrar o sentido musical estabelecido pelo compositor: Ele [o executante] nunca deve

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  • 48

    esperar at o ltimo momento para pegar flego, e muito menos deve peg-lo no

    momento errado.49.

    A questo mecnica da respirao no abordada de forma to sistemtica

    quanto so os demais assuntos discutidos pelo autor. No obstante, Quantz fala

    indiretamente sobre respirao quando d conselhos posturais ao leitor:

    A cabea deve permanecer constantemente ereta, mas de forma natural, a fim de no prejudicar a respirao. Voc deve manter seus braos um pouco levantados e para fora, o [brao] esquerdo mais do que o direito, e no deve pression-los contra seu corpo, evitando manter a sua cabea inclinada para o lado direito; pois isso no apenas produz uma m postura, como tambm impede seu sopro, uma vez que a garganta constringida, e a respirao no to fcil quanto deveria ser.50

    Mais adiante em seu tratado, ele acrescenta: Um iniciante no deve permitir que

    sua cabea caia para frente e para baixo enquanto toca, cobrindo o buraco da

    embocadura alm do ideal, e obstruindo a passagem superior do ar.51. H, entretanto,

    um momento ao longo de seu trabalho, em que Quantz fala de forma mais direta sobre a

    maneira de se respirar:

    Para tocar uma longa passagem musical, voc deve, lentamente, inalar um bom suprimento de ar. Para esse fim, voc deve alargar sua garganta e expandir seu peito completamente, levantar seus ombros e procurar reter o ar em seu peito o mximo possvel, soprando-o de forma bem econmica para dentro da flauta.52

    49 QUANTZ, Johann Joachim. On Playing the Flute. Traduo de Edward R. Reilly. 2Ed. Boston: Northeastern University Press, 2001. p.110. He must never wait until the last moment to take breath, much less take it at the wrong time..Todas as tradues presentes nesta dissertao so de autoria minha, bem como todos os termos entre colchetes presents nas citaes. 50 Ibid. p.37. The head must be held constantly erect, yet naturally, so that respiration is not impaired. You must hold your arms a little outwards and up, the left more than the right, and must not press them against your body, lest you be compelled to hold your head obliquely toward the right side; for this not only produces bad posture, but also impedes your blowing, since the throat is constricted, and respiration is not as easy as it should be. 51 Ibid. p.110. A beginner must not allow his head to fall forwards and down when playing, so that the mouth hole is covered too far, and the upward passage of the wind is obstructed. 52 Ibid. p.88. To play long passage-work you must slowly inhale a good supply of breath. To this end you must enlarge your throat and expand your chest fully, draw up your shoulders, and try to retain the breath in your chest as fully as possible, blowing it very economically into the flute.

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  • 49

    Comparada profundidade com a qual os demais assuntos do tratado so

    abordados pelo autor, essas poucas linhas podem parecer extremamente rasas e at

    desimportantes. No obstante, elas nos do algumas pistas valiosas sobre a maneira de

    respirar do prprio Quantz. Ao que tudo indica, o tratadista levava em considerao

    apenas a ao dos msculos que agem sobre as costelas, levantando-as e expandindo-as,

    acarretando no aumento do volume dos pulmes. Ele, inclusive, aconselha o leitor a

    executar uma ao que ser constantemente criticada em mtodos de flauta posteriores

    (crtica que persiste at nos mtodos mais atuais) e proibida ao estudante de flauta: a de

    levantar os ombros durante a inspirao a chamada inspirao clavicular. O abdome

    no citado sequer uma vez ao longo de todo o tratado. No que diz respeito expirao,

    ele apenas ressalta a necessidade de contrabalancear a ao elstica dos pulmes,

    retendo o ar dentro deles o mximo possvel. Tudo isso nos d base para inferir que

    Quantz pensava em mecanismos torcicos ao respirar, e no em mecanismos

    abdominais.

    Johann George Tromlitz (1725-1805) publica, em 1791, o seu Ausfhrlicher und

    grndlicher Unterricht die Flte zu spielen (ou Guia prtico e completo para tocar a

    flauta). Assim como o tratado de Quantz, uma obra extensa, tratando praticamente

    dos mesmos assuntos abordados e da mesma maneira detalhada. A preocupao maior

    do tratadista tambm dar direes a respeito de como encontrar na msica os

    momentos mais adequados para respirar:

    Eu tenho freqeentemente testemunhado cantores, assim como instrumentistas de sopro, quebrando o sentido da msica ao separar, por meio de respiraes inadequadas, ideias musicais conectadas (...). Esse defeito mais amide encontrado em flautistas; presumivelmente, a razo se apoia no fato de que (...) na flauta mais ar necessrio por conta da maneira artificial pela qual o som produzido, uma vez que o ar que

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  • 50

    produz o som precisa primeiro passar pelo ar exterior [aos pulmes], resultando em muito desperdcio [de ar].53

    Havendo um intervalo de quase quarenta anos entre a publicao de ambos os

    tratados, natural que o de Tromlitz traga algumas novas perspectivas acerca da

    temtica desta dissertao: Deslocar os ombros ao levant-los durante a respirao

    deve ser evitado (...).54. Esse, porm, o nico aspecto em que o autor discorda de

    Quantz no que tange maneira de respirar:

    Uma vez que muito ar necessrio em passagens longas, obviamente importante fazer uma boa reserva dele antes que elas comecem, mas no uma reserva excessivamente grande, evitando-se seu mau proveito por conta de um peito superinflado (...). Para que tais passagens disponham sempre de ar e de fora suficientes, [o ar] deve ser usado economicamente e nunca at a ltima gota, mas sempre necessrio prover-se dele na primeira oportunidade adequada. 55

    Comparado ao que diz Quantz, h, na citao acima, apenas uma novidade

    relevante: o conselho que Tromlitz d ao leitor de no inflar excessivamente os

    pulmes: Ao respirar, uma boa ideia no inflar demais o peito, pois a habilidade de

    utilizar e regular [o ar] com a fora e o vigor adequados prejudicada em tal condio

    (...).56, e segue dizendo que (...) tudo o que necessrio consiste em inspirar com

    relativa fora enquanto se est com a postura devidamente ereta e relaxada e em usar [o

    53 TROMLITZ, Johann George. The Virtuoso Flute-Player by Johann George Tromlitz. Traduo de Ardal Powell. Cambridge e New York: Cambridge University Press, 1991. p.275. I have often witnessed singers as well as wind-players () breaking up the sense of the music by separating connected ideas by means of unsuitable breathing (). This fault is most often heard in flute-players; presumably the reason lies in the fact that () on the flute more breath is needed on account of the artificial manner of tone-production, since the wind that produces the sound must first go through the outer air, and consequently much is wasted. 54 Ibid. p.276. Displacing the shoulders by raising them when breathing is to be avoided (). 55 Ibid. p.281. Since much air is needed in long passages, it is of course important to take in a good reserve of it before they begin, but not too much, so that one is not prevented by an over-filled chest from using it properly (). So that such long passages should always have breath and strength enough, it must be used sparingly and never to the last drop, but one must always provide oneself with it at the first suitable opportunity. 56 Ibid. p.276. When taking breath it is a good idea not to gorge the chest too much, for the ability is thereby forfeited of using and regulating it with proper strength and vigour ().

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  • 51

    ar] economicamente (...).57. Tal recomendao (a de no expandir exageradamente os

    pulmes) extremamente procedente:

    (...) a elevao das costelas no provoca mais um aumento real do dimetro [dos arcos costais] e pode, at mesmo, ao ultrapassar a horizontal, provocar sua diminuio. por essa razo que uma posio de abertura excessiva das costelas no incio da inspirao no permite uma inspirao costal eficaz, contrariamente ao que pensamos frequentemente.58

    interessante averiguar como, mesmo sem os conhecimentos anatmicos e

    fisiolgicos dos quais dispomos hoje, ambos os tratadistas, atravs de suas respectivas

    experincias, foram capazes de pressentir com eficincia determinados aspectos dos

    processos fisiolgicos da respirao. Inclusive, foram capazes de antecipar um conceito

    importantssimo para instrumentistas de sopro: o de air management (ou

    gerenciamento do ar), o qual consiste no controle da sada do ar durante a expirao59.

    De Devienne a Alts: os mtodos publicados na Frana entre 1794 e 1880

    Dos mtodos consultados publicados na Frana, o primeiro a tratar sobre

    respirao o de Franois Devienne (1759-1803). Ele escreve: Deve-se, acima de

    tudo, tomar grande cuidado para no empurrar o ar com o peito, (...) uma vez que isso

    serviria apenas para fatigar [o flautista] sem produzir qualquer efeito.60, agregando

    uma nova perspectiva ao que Quantz escreve em seu tratado. O tratadista, conforme

    citado anteriormente, aconselha o flautista a reter o ar dentro de seu peito o mximo

    57 TROMLITZ. p.277. () all that is necessary is to take breath rather strongly while standing properly straight and relaxed, and use it economically (). 58 CALAIS-GERMAIN, Blandine. Respirao: Anatomia Ato respiratrio. Barueri: Manole, 2005. p.49. 59 O conceito de air management ser esclarecido mais adiante, no captulo referente s publicaes flautsticas modernas pertencente a esta dissertao. 60 DEVIENNE, Franois. NOUVELLE MTHODE Thorique et Pratique Pour la Flte. Paris: Naderman, 1794. Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits 10: Flte Traversire France 1600-1800. Vol.II. p.65-143. 2Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a., 2003. p.6/72. Il faut surtout avoir le plus grand soin de ne pas pousser le vent avec la poitrine,(...) dautant plus que cela ne servirait qu fatiguer sans produire aucun effet.

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    possvel, aludindo contrafora muscular que o instrumentista deve fazer para

    desacelerar o retorno elstico dos pulmes. Devienne acrescenta a isso a recomendao

    de no forar a sada do ar com o peito, acionando os msculos expiratrios costais,

    provocando um esgotamento precoce das reservas de ar do msico e causando-lhe

    cansao desnecessrio.

    J Amand Van der Hagen (1753-1822) escreve: Evite tambm projetar a cabea

    e o pescoo para frente, pois isso prejudica a respirao e d [ao flautista] um aspecto

    pouqussimo gracioso.61. Esse conselho no representa nenhuma novidade em relao

    quilo que escreveram Quantz e Tromlitz, mas o que h de curioso nele seo do

    mtodo dentro da qual ele se encontra: quela dedicada posio dos dedos na flauta, a

    qual trata de questes posturais gerais. No captulo de fato dedicado respirao e ao

    fraseado musical, ele concorda com os tratadistas alemes ao escrever:

    Muitos estudantes tm o defeito de respirar apenas quando o flego lhes falta totalmente. (...) No se deve jamais esperar essa extremidade e [deve-se] respirar em todos os lugares em que possvel faz-lo, por esse meio cansando-se menos e executando-se melhor [a msica].62

    Antoine Hugot (1762-1803) e Johann Georg Wunderlich (1755-1819), co-

    autores do mtodo de flauta adotado no conservatrio de Paris no incio do sculo XIX,

    esto de acordo com Devienne e vo um pouco alm ao escreverem: (...) o sopro ser

    colocado dentro do instrumento sem estocadas ou esforos advindos do peito. Deve-se

    61 VAN DER HAGEN, Amand. Nouvelle MTHODEde Flute. DIVISE EN DEUX PARTIES. Paris: Playel, s.d. (1798). Fac-smile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Mthodes & Traits 10: Flte Traversire Srie I France 1600-1800. Vol.II. p.179-297. 2Ed. Bressuire: ditions J.M. Fuzeau s.a., 2003. p.8/188. Gardez vous aussi dalonger la tte et le cou en avant car cela gne la respiration et donne trs mauvaise grace. Para esclarecer alguma dvida sobre a formatao deste tipo de referncia, reto