Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia - Capítulo

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Primeiro capítulo do livro Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia, de Neil Postman.

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Tecnoplio: a rendio da cultura tecnologia - Captulo I (Neil Postam, 1993)

O JULGAMENTO DE THAMUS

Voc encontrar em Fedro de Plato uma histria sobre Thamus, o rei de uma grande cidade do Alto Egito. Para pessoas como ns, inclinadas (na frase de Thoreau) a ser ferramentas de nossas ferramentas, poucas lendas so mais instrutivas do que esta. A histria, como Scrates contou para seu amigo Fedro, desenrolou-se da seguinte maneira: um dia Thamus recebeu o deus Theuth, que foi o inventor de muitas coisas, inclusive do nmero, do clculo, da geometria, da astronomia e da escrita. Theuth exibiu suas invenes para o rei Thamus, afirmando que elas deviam ser amplamente conhecidas e disponveis aos egpcios. Scrates continua: Thamus indagou sobre o uso de cada uma delas, e, enquanto Theuth discorria sobre elas, expressava aprovao ou desaprovao, medida que julgasse as afirmaes de Theuth bem ou mal fundamentadas. Levaria tempo demais repassar tudo o que se relatou sobre o que Thamus disse a favor ou contra cada inveno de Theuth. Mas quando chegou na escrita, Theuth declarou: "Aqui est uma realizao, meu senhor rei, que ir aperfeioar tanto a sabedoria como a memria dos egpcios. Eu descobri uma receita segura para a memria e para a sabedoria". Com isso, Thamus replicou: "Theuth, meu exemplo de inventor, o descobridor de uma arte no o melhor juiz para avaliar o bem ou dano que ela causar naqueles que a pratiquem. Portanto, voc, que o pai da escrita, por afeio a seu rebento, atribuiu-lhe o oposto de sua verdadeira funo. Aqueles que a adquirirem vo parar de exercitar a memria e se tornaro esquecidos; confiaro na escrita para trazer coisas sua lembrana por sinais externos, em vez de faz-lo por meio de seus prprios recursos internos. O que voc descobriu a receita para a recordao, no para a memria. E quanto sabedoria, seus discpulos tero a reputao dela sem a realidade, vo receber uma quantidade de informao sem a instruo adequada, e, como consequncia, sero vistos como muito instrudos, quando na maior parte sero bastante ignorantes. E como estaro supridos com o conceito de sabedoria, e no com a sabedoria verdadeira, sero um fardo para a sociedade". Comeo meu livro com essa lenda porque na resposta de Thamus h vrios slidos princpios, com os quais podemos comear a aprender a pensar com sbia circunspeco sobre a sociedade tecnolgica. Na verdade, h inclusive um erro no julgamento de Thamus, com o qual tambm podemos aprender algo importante. O erro no est em sua afirmao de que a escrita ir prejudicar a memria e criar uma falsa sabedoria. demonstrvel que a escrita tem tido esse efeito. O erro de Thamus est em sua crena em que a escrita ser um fardo para a sociedade, e nada mais que um fardo. Com toda a sua sabedoria, ele falha ao no imaginar quais poderiam ser os benefcios da escrita, que, como sabemos, tm sido considerveis. Podemos aprender com isso que um erro supor que qualquer inovao tecnolgica tem um efeito unilateral apenas. Toda tecnologia tanto um fardo como uma bno; no uma coisa ou outra, mas sim isto e aquilo. Nada poderia ser mais bvio, claro, especialmente para aqueles que pensaram mais de dois minutos sobre a questo. No obstante, atualmente estamos cercados por multides de zelosos Theuth, profetas de um olho s que veem apenas o que as novas tecnologias podem fazer e so incapazes de imaginar o que elas iro desfazer. Podemos chamar essas pessoas de tecnfilos. Elas olham para a tecnologia como um amante para a amada, vendo-a sem defeitos e no sentindo apreenso alguma quanto ao futuro. Por conseguinte, elas so perigosas, e devem ser abordadas com cuidado. Por outro lado, alguns profetas de um s olho, como eu (ou pelo menos do que me acusam), esto inclinados a falar apenas de fardos (ao modo de Thamus), e se calam sobre as oportunidades que as novas tecnologias tornam possveis. Os tecnfilos precisam falar por si, e o fazem por toda a parte. Minha defesa a de que s vezes preciso uma voz discordante para moderar a gritaria feita pelas multides entusisticas. Se temos que errar, melhor errar pelo lado do ceticismo de Thamus. Mas, ainda assim, um erro. E eu poderia observar que, com exceo de seu julgamento sobre a escrita, Thamus no repete esse erro. Ao reler a lenda, voc pode notar que ele d argumentos a favor e contra cada inveno de Theuth. , pois, inevitvel que cada cultura precise negociar com a tecnologia, fazendo-o de maneira inteligente ou no. Chega-se a um acordo no qual a tecnologia d e toma. O sbio sabe muito bem disso e raras vezes se impressiona com as dramticas mudanas tecnolgicas, e jamais se enche de satisfao. Aqui temos Freud, por exemplo, sobre a questo, de seu sombrio Civilization and its Discontents.1

Gostaramos de perguntar: ento no h nenhum ganho positivo no prazer, nenhum aumento inequvoco em minha sensao de felicidade, se posso ouvir, quantas vezes quiser, a voz de um filho meu que est vivendo a centenas de quilmetros de distncia, ou se posso saber no tempo mais curto possvel que um amigo chegou a seu destino e que percorreu a longa e difcil viagem so e salvo? No significa coisa alguma que a medicina tenha tido um enorme sucesso na reduo da mortalidade infantil e no perigo de infeco para mulheres em trabalho de parto e em aumentar consideravelmente a mdia de vida do homem civilizado? Freud sabia muito bem que os avanos tcnicos e cientficos no deviam ser encarados com leviandade, motivo pelo qual ele comea essa passagem reconhecendo-os. Mas ele termina lembrando-nos do que eles desfizeram: Se no houvesse nenhuma estrada de ferro para conquistar as distncias, meu filho jamais teria sado de sua cidade natal, e eu no precisaria de telefone para ouvir a voz dele; se no tivesse sido iniciada a viagem de navio pelos oceanos, meu amigo no teria embarcado em sua viagem pelo mar e eu no precisaria de telegrama para aliviar minha ansiedade em relao a ele. De que adianta reduzir a mortalidade infantil quando precisamente essa reduo que nos impe a maior limitao para gerar mais filhos, de forma que, em geral, ainda assim no temos mais filhos do que nos tempos antes do reinado da higiene, ao passo que ao mesmo tempo criamos condies difceis para nossa vida sexual no casamento. E, por fim, de que nos serve uma vida longa, se ela difcil e pobre de alegrias, e se to cheia de desgraa que s podemos acolher a morte como uma libertadora? Ao analisar o custo do progresso tecnolgico, Freud assume uma postura bastante depressiva: a de algum que concorda com a observao de Thoreau, de que nossas invenes nada mais so que meios aperfeioados para se chegar a um fim no melhorado. Sem dvida o tecnfilo responderia a Freud dizendo que a vida sempre foi pobre de alegrias e cheia de desgraa, mas que o telefone, os navios de carreira e em especial o reino da higiene no apenas aumentaram o tempo de vida, mas tambm tornaram-na uma proposta mais agradvel. Esse , com certeza, um argumento que eu apresentaria (desse modo, provaria que no sou um tecnfobo de um olho s), mas nesse momento no necessrio seguir essa linha. Eu trouxe Freud para a conversa apenas para demonstrar que um sbio mesmo algum com um semblante to triste precisa comear sua crtica tecnologia reconhecendo seus sucessos. Se o rei Thamus fosse to sbio como demonstrava sua reputao, no teria esquecido de incluir em seu julgamento uma profecia sobre os poderes que a escrita ampliaria. H um clculo da mudana tecnolgica que requer uma medida de imparcialidade. Chega do erro de omisso de Thamus. H uma outra omisso digna de nota, mas que no um erro. Thamus simplesmente aceita como certo e, por conseguinte, no acha necessrio dizer que a escrita no uma tecnologia neutra, cujo bem ou dano depende do uso que se faa dela. Ele sabe que os usos de qualquer tecnologia so determinados, em grande parte, pela estrutura da tecnologia em si, isto , que suas funes resultam de sua forma. Esse o motivo pelo qual Thamus no est preocupado com o que as pessoas vo escrever; ele est preocupado com o fato de que as pessoas iro escrever. absurdo imaginar Thamus avisando, maneira do tecnfilo-padro de hoje, que os malefcios da escrita poderiam ser minimizados desde que ela fosse usada apenas para a produo de certos tipos de textos (digamos que para a literatura dramtica, mas no para a histria ou para a filosofia). Ele veria tal aviso como uma extrema ingenuidade. Imagino que ele permitiria que se impedisse uma tecnologia de entrar em uma cultura. Mas podemos aprender o seguinte com Thamus: uma vez que uma tecnologia aceita, ela atua de imediato; faz o que est destinada a fazer. Nossa tarefa compreender o que esse desgnio; vale dizer que, quando aceitamos uma tecnologia nova, devemos faz-lo com os olhos bem abertos. Podemos deduzir tudo isso do silncio de Thamus. Mas podemos aprender mais ainda com o que ele diz do que com o que no diz. Ele observa, por exemplo, que a escrita mudar o significado das palavras "memria" e "sabedoria". Ele receia que a memria v ser confundida com o que ele chama desdenhosamente de "recordao", e se preocupa com que a sabedoria no possa ser diferenciada do mero conhecimento. Devemos levar a srio esse julgamento, posto que uma certeza que as tecnologias radicais criam novas definies para velhos termos, e que esse processo ocorre sem que tenhamos plena conscincia dele. Desse modo, insidioso e perigoso, bem diferente do processo em que novas tecnologias introduzem novos termos na linguagem. Em nosso tempo, temos acrescentado, de forma consciente, nossa linguagem, milhares de palavras e frases novas que tm a ver com tecnologias novas "VCR", "dgito binrio", "software", "trao nas rodas dianteiras", "janela de oportunidade", "walkman" etc. No somos tomados de surpresa por isso. Coisas novas requerem palavras novas. Mas as coisas novas tambm modificam palavras velhas, palavras que tm significados com profundas razes. O telgrafo e o jornal dirio mudaram o que antes chamvamos de "informao". A televiso muda o que antes chamvamos de "debate2

poltico", "notcia" e "opinio pblica". O computador muda a "informao" mais uma vez. A escrita mudou o que antes chamvamos de "verdade" e "lei"; a imprensa mudou-as mais uma vez e agora a televiso e o computador tornam a mud-las. Essas mudanas ocorrem com rapidez, sem dvida, e em certo sentido em silncio. Os lexicgrafos no fazem plebiscitos sobre a questo. No se escrevem manuais para explicar o que est acontecendo, e as escolas esto desatentas a isso. As velhas palavras ainda parecem ser as mesmas, ainda so usadas nos mesmos tipos de frases. Mas no tm mais os mesmos significados; em alguns casos, tm o significado oposto. E isso o que Thamus nos deseja ensinar que a tecnologia se apodera imperiosamente de nossa terminologia mais importante. Ela redefine "liberdade", 'Verdade", "inteligncia", "fato", "sabedoria", "memria", "histria" todas as palavras com que vivemos. E ela no para para nos contar. E ns no paramos para perguntar. Esse fato sobre a mudana tecnolgica requer alguma elaborao e voltaremos ao assunto em um captulo mais adiante. No momento, h vrios outros princpios a serem explorados pelo julgamento de Thamus, que precisam ser mencionados porque pressagiam tudo sobre onque escreverei. Por exemplo, Thamus adverte que os discpulos de Theuth iro desenvolver uma reputao de sabedoria no merecida. Ele quer dizer que aqueles que cultivam a competncia no uso de uma tecnologia nova tornam-se um grupo de elite ao qual aqueles que no tm essa competncia garantem autoridade e prestgio imerecidos. H maneiras diferentes de expressar as interessantes implicaes desse fato. Harold Innis, o pai dos estudos da comunicao moderna, falou repetidas vezes dos "monoplios do conhecimento" criados por importantes tecnologias. Ele referia-se precisamente ao que Thamus tinha em mente: aqueles que tm o controle do funcionamento de uma tecnologia particular acumulam poder e, de maneira inevitvel, formam uma espcie de conspirao contra aqueles que no tm acesso ao conhecimento especializado, tornado disponvel pela tecnologia. Em seu livro The Bias of Communications Innis oferece muitos exemplos histricos de como uma tecnologia nova "dissolveu" o monoplio de um conhecimento tradicional e criou um novo, presidido por um grupo diferente. Uma outra maneira de dizer isso que os benefcios e dficits de uma tecnologia nova no so distribudos por igual. H, por assim dizer, ganhadores e perdedores. intrigante e comovente que em muitas ocasies os perdedores, por ignorncia, tenham aplaudido os vencedores, e alguns ainda aplaudam. Vamos tomar como exemplo o caso da televiso. Nos Estados Unidos, onde a televiso se firmou mais profundamente do que em qualquer outro lugar, muitas pessoas acham-na uma bno, sobretudo aquelas que nela conquistaram carreiras bem pagas e gratificantes, como executivos, tcnicos, locutores e artistas de programas de variedades. No deveria surpreender ningum o fato de essas pessoas que formam um novo monoplio do conhecimento aplaudirem, defenderem e promoverem a tecnologia da televiso. Por outro lado, a longo prazo, a televiso pode pr um fim gradual nas carreiras dos professores, posto que a escola foi uma inveno da prensa tipogrfica e deve-se manter de p ou cair conforme a importncia que tenha a palavra impressa. Durante quatrocentos anos os professores fizeram parte do monoplio do conhecimento criado pela prensa tipogrfica, e agora esto testemunhando o colapso desse monoplio. Ao que parece, eles pouco podem fazer para impedir esse colapso, mas com certeza h algo de perverso nos professores entusiasmados com o que est acontecendo. Esse entusiasmo sempre evocou em minha mente a imagem de algum ferreiro da virada do sculo, que no apenas canta os elogios ao automvel, como tambm acredita que seu negcio crescer com ele. Ns sabemos agora que o negcio dele no cresceu; tornou-se obsoleto, como talvez o soubessem os ferreiros lcidos. O que eles poderiam fazer? Chorar, se no tivessem outra opo. Temos uma situao semelhante no desenvolvimento e difuso da tecnologia do computador, pois aqui tambm h vencedores e vencidos. No pode haver discusso sobre o fato de o computador ter aumentado o poder de organizaes de larga escala, como as foras armadas, ou as empresas areas, bancos e rgos coletores de impostos. E tambm est claro que agora o computador indispensvel para pesquisadores de alto nvel na fsica e em outras cincias naturais. Mas em que extenso a tecnologia do computador tem sido uma vantagem para as massas? Para os operrios siderrgicos, proprietrios de quitandas, professores, mecnicos de carro, msicos, pedreiros, dentistas e a maioria das pessoas cujas vidas o computador est invadindo agora? Seus assuntos particulares foram tornados mais acessveis para instituies poderosas. Eles so seguidos e controlados com mais facilidade; so submetidos a mais exames; so mistificados cada vez mais pelas decises tomadas sobre eles; muitas vezes so reduzidos a meros objetos numricos. So inundados por correspondncia intil. So alvos fceis das agncias de publicidade e de organizaes polticas. As escolas ensinam seus filhos a operar sistemas computadorizados, em vez de ensinar coisas mais valiosas para crianas. Resumindo, para os perdedores no acontece quase nada do que precisam. E pr isso que so perdedores. Espera-se que os vencedores estimulem os perdedores a se entusiasmar com a tecnologia do computador. a maneira de ser dos vencedores, e assim s vezes desdizem para os perdedores que com o3

computador pessoal a mdia das pessoas pode verificar o saldo no talo de cheques com mais exatido, pode acompanhar melhor receitas e fazer listas de compras mais lgicas. Tambm dizem que suas vidas sero conduzidas com mais eficincia. Mas discretamente deixam de dizer do ponto de vista de quem ser garantida a eficincia, ou qual pode ser seu custo. Se os perdedores ficam cticos, os vencedores os ofuscam com as maravilhosas faanhas dos computadores, a maioria das quais tem apenas relevncia marginal para a qualidade de vida dos perdedores, mas que mesmo assim so impressionantes. Em dado momento, os perdedores capitulam, em parte porque acreditam, como profetizou Thamus, que o conhecimento especializado dos mestres de uma tecnologia nova seja uma forma de sabedoria. E, como Thamus tambm profetizou, os mestres tambm passam a acreditar nisso. O resultado que certas questes no so levantadas. Por exemplo, a quem a tecnologia dar maior poder e liberdade? E o poder e a liberdade de quem sero reduzidos por ela? Talvez eu tenha feito tudo isso parecer uma conspirao bem planejada, como se os vencedores soubessem muito bem o que est sendo ganho e o que est sendo perdido. Mas no bem assim que acontece. Em culturas que tm um esprito democrtico, tradies relativamente fracas e alta receptividade a tecnologias novas, todo o mundo est inclinado a se entusiasmar com a mudana tecnolgica, acreditando que seus benefcios se espalharo, em um dado momento, por igual sobre toda a populao. Sobretudo nos Estados Unidos, onde no tem limites a nsia pelo que novo, encontramos mais amplamente difundida essa convico infantil. De fato, na Amrica, raras vezes a mudana social de qualquer tipo vista como resultando em vencedores e perdedores, condio essa que se origina em parte do otimismo muito documentado dos americanos. Quanto mudana causada pela tecnologia, esse otimismo nativo explorado por empresrios, que trabalham duro para insular na populao uma unidade de esperana improvvel, posto que sabem que do ponto de vista econmico no sbio revelar o preo a ser pago pela mudana tecnolgica. Ento, poder-se-ia dizer que, se h conspirao de algum tipo, a de uma cultura conspirando contra si mesma. Alm disso, e mais importante que tudo, nem sempre est claro, pelo menos nos estgios iniciais da invaso de uma tecnologia em uma cultura, quem ganhar mais e quem perder mais. Isto se d porque as mudanas forjadas pela tecnologia so sutis, quando no so completos mistrios; e poder-se-ia dizer que so imprevisveis. Entre as mais imprevisveis esto aquelas que podem ser rotuladas de ideolgicas. o tipo de mudana que Thamus tinha em mente, quando advertiu que os escritores passariam a confiar em sinais externos em vez de confiar em seus prprios recursos internos, e que iriam receber grandes quantidades de informao sem instruo adequada. Ele quis dizer que as novas tecnologias mudam aquilo que entendemos como conhecimento" e "verdade"; elas alteram hbitos de pensamento profundamente enraizados, que do a uma cultura seu senso de como o mundo um senso do que a ordem natural das coisas, do que sensato, do que necessrio, do que inevitvel, do que real. Como essas coisas so expressas em sentidos modificados de velhas palavras, deixarei de lado, at discusso posterior, a macia transformao ideolgica que est ocorrendo agora nos EUA. Por enquanto, gostaria de dar apenas um exemplo de como a tecnologia cria novas concepes do que real e, durante o processo, mina as concepes mais velhas. Refiro-me prtica aparentemente inofensiva de atribuir notas ou graus s respostas que os estudantes do nos exames. Esse procedimento parece to natural para a maioria de ns que mal temos conscincia de seu significado. Podemos achar difcil imaginar que o nmero e a letra sejam ferramentas, ou, se quiserem, uma tecnologia; contudo, quando usamos tal tecnologia para julgar o comportamento de algum, fazemos algo peculiar. Na realidade, o primeiro exemplo de se dar nota a papis dos estudantes ocorreu na Universidade de Cambridge, em 1792, por sugesto de um tutor chamado William Farish. Ningum sabe muita coisa sobre William Farish; apenas um punhado de pessoas j ouviu falar dele. No entanto, sua ideia de que um valor quantitativo deveria ser atribudo aos pensamentos humanos foi um grande passo em direo construo de um conceito matemtico de realidade. Se se pode dar um nmero qualidade de pensamento, ento, pode-se atribuir um nmero qualidade da compaixo, do amor, da beleza, do dio, da criatividade, da inteligncia e at mesmo da sanidade. Quando Galileu disse que a linguagem da natureza estava escrita em matemtica, ele no tencionava incluir o sentimento humano, a realizao ou a perspiccia. Mas agora a maioria de ns est inclinada a fazer essas incluses. Nossos psiclogos, socilogos e educadores acham quase impossvel fazer seu trabalho sem os nmeros. Acreditam que sem eles no podem atingir ou expressar o conhecimento autntico. No vou discutir aqui se essa ideia estpida ou perigosa, apenas que peculiar. O que mais peculiar ainda que muitos de ns no acham essa ideia peculiar. Dizer que algum devia estar fazendo um trabalho melhor porque tem um QI de 134, ou que algum tem 7,2 na escala de sensibilidade, ou que o ensaio de Fulano sobre o crescimento do capitalismo merece nota 10 e o de Beltrano merece 6, teria parecido4

algaravia para Galileu, Shakespeare ou Thomas Jefferson. Se faz sentido para ns, porque nossas mentes foram condicionadas pela tecnologia dos nmeros, de forma que vemos o mundo de maneira diferente da deles. Nosso entendimento do que real diferente o que uma outra maneira de dizer que toda ferramenta est impregnada de um vis ideolgico, de uma predisposio a construir o mundo como uma coisa e no como outra, a valorizar uma coisa mais que outra, a amplificar um sentido ou habilidade ou atitude com mais intensidade do que outros. Foi isso que Marshall McLuhan quis dizer com seu famoso aforismo "O meio a mensagem". Foi o que Marx quis dizer quando afirmou: "A tecnologia revela a maneira como o homem lida com a natureza" e cria as "condies de intercurso" com as quais nos relacionamos uns com os outros. Foi o que Wittgenstein quis dizer quando afirmou, ao referir-se nossa tecnologia mais fundamental, que a linguagem no apenas um veculo do pensamento, mas tambm o motorista. E foi o que Thamus quis que o inventor Theuth visse. Resumindo, essa uma sabedoria antiga e persistente, expressada talvez da maneira mais simples no velho adgio, segundo o qual tudo parece prego para um homem com um martelo. Sem sermos literais demais, podemos estender o trusmo: para um homem com uma caneta, tudo parece uma lista. Para um homem com uma cmera, tudo parece uma imagem. Para um homem com um computador, tudo parecem dados. E para algum com uma folha pautada, tudo parece nmero. No entanto, tais preconceitos nem sempre so aparentes no comeo de uma jornada da tecnologia, motivo pelo qual ningum pode conspirar com segurana para ser o vencedor numa mudana tecnolgica. Quem iria imaginar, por exemplo, que interesses e que viso de mundo avanariam em ltima instncia com a inveno do relgio mecnico? O relgio tem sua origem nos mosteiros beneditinos dos sculos XII e XIII. O impulso por trs da inveno era proporcionar uma regularidade mais ou menos precisa nas rotinas dos mosteiros, que requeriam, entre outras coisas, sete perodos de devoo no decorrer do dia. Os sinos do mosteiro deviam ser tocados para anunciar as horas cannicas; o relgio mecnico era a tecnologia que poderia proporcionar preciso para esses rituais de devoo. E de fato proporcionou. Mas o que os monges no previram foi que o relgio viria a ser um meio no apenas para acompanhar as horas, mas tambm para sincronizar e controlar as aes dos homens. E, assim, em meados do sculo XIV, o relgio foi alm das paredes do mosteiro, levando uma nova e precisa regularidade vida do trabalhador e do mercador. "O relgio mecnico", como Lewis Munford escreveu, "tornou possvel a ideia da produo regular, das horas de trabalho regular e de um produto padronizado." Resumindo, sem o relgio teria sido impossvel haver capitalismo. O paradoxo, a surpresa e a curiosidade foi que o relgio foi inventado por homens que queriam dedicar-se mais rigorosamente a Deus; ele terminou como a tecnologia de maior uso para os homens, que desejavam dedicar-se acumulao de dinheiro. Na eterna luta entre Deus e os bens materiais, o relgio favoreceu estes ltimos, de maneira bastante imprevisvel. Consequncias imprevistas esto no caminho daqueles que pensam que vem, com clareza, a direo para a qual uma nova tecnologia nos levar. Nem mesmo aqueles que inventam uma tecnologia podem presumir que so profetas confiveis, como Thamus advertiu. Gutenberg, por exemplo, foi em todos os aspectos um catlico devoto que teria ficado horrorizado ao ouvir que o execrvel herege Lutero descreveu a imprensa como "o ato de graa mais alto de Deus, com o qual a causa do Evangelho foi impulsionada para a frente". Lutero compreendeu, ao contrrio de Gutenberg, que o livro produzido em massa, ao colocar a Palavra de Deus na mesa de cada cozinha, tomava cada cristo seu prprio telogo pode-se inclusive dizer seu prprio sacerdote ou, melhor ainda, do ponto de vista de Lutero, seu prprio papa. Na luta entre a unidade e a diversidade de crena religiosa, a imprensa favoreceu esta ltima, e podemos supor que essa possibilidade jamais ocorreu a Gutenberg. Thamus entendeu muito bem as limitaes dos inventores para compreender a tendncia social e psicolgicaisto , ideolgica de suas prprias invenes. Podemos imagin-lo dirigindo-se a Gutenberg da seguinte maneira: "Gutenberg, meu exemplo de inventor, o descobridor de uma arte no o melhor juiz do bem ou dano que pode ser causado queles que a pratiquem. Portanto, voc, que o pai da imprensa, por afeio a seu rebento, passou a acreditar que ele favorecer a causa da Santa S Romana, ao passo que na verdade vai propagar a discrdia entre os fiis; ir danificar a autenticidade de sua amada Igreja e destruir seu monoplio". Podemos imaginar que Thamus teria observado para Gutenberg, como fez para Theuth, que a nova inveno criaria uma vasta populao de leitores que "iro receber uma quantidade de informao sem a instruo adequada... [que estaro] supridos do conceito de sabedoria e no da sabedoria verdadeira"; em outras palavras, que a leitura ir competir com outras formas de aprendizado. Este outro princpio da mudana tecnolgica que podemos deduzir do julgamento de Thamus: as novas tecnologias competem com as antigas - pelo tempo, por ateno, por dinheiro, por prestgio, mas sobretudo pela predominncia de sua viso de mundo. Essa competio implcita, uma vez que reconheamos que um meio contm uma5

tendncia ideolgica. uma competio feroz, como apenas as competies ideolgicas conseguem ser. No mera questo de ferramenta contra ferramentao alfabeto atacando a escrita ideogrfica, a prensa tipogrfica atacando o manuscrito iluminado, a fotografia atacando a arte da pintura, a televiso atacando a palavra impressa. Quando a mdia faz guerra entre si, um caso de vises de mundo em coliso. Nos Estados Unidos podemos ver essas colises por toda a parte na poltica, na religio, no comrcio mas as vemos com mais clareza nas escolas, onde duas grandes tecnologias confrontam-se em uma perspectiva descomprometida pelo controle das mentes dos estudantes. Por um lado, h o mundo da palavra impressa, com sua nfase na lgica, na sequncia, na histria, na exposio, na objetividade, na imparcialidade e na disciplina. Por outro lado, h o mundo da televiso, com sua nfase na fantasia, na narrativa, na presena, na simultaneidade, na intimidade, na gratificao imediata e na resposta emocional rpida. As crianas vo para a escola depois de haver sido profundamente condicionadas pela influncia da televiso. L elas encontram o mundo da palavra impressa. Ocorre uma espcie de batalha psquica, e h muitas baixas crianas que no conseguem ou no querem aprender a ler, crianas que no conseguem organizar seu pensamento em uma estrutura lgica mesmo em um nico pargrafo, crianas que no conseguem prestar ateno s aulas ou s explicaes orais por mais de alguns minutos de cada vez. So fracassos, mas no porque sejam estpidas. So fracassos porque est havendo uma guerra da mdia, e elas esto do lado errado pelo menos, por enquanto. Quem sabe como as escolas sero daqui a vinte e cinco anos? Ou cinquenta? At l, o tipo de estudante que no momento um fracasso pode ser considerado um sucesso. O tipo que agora bem-sucedido pode ser visto como um estudante deficiente lento na resposta, desapaixonado demais, carente de emoo, incapaz de criar imagens mentais da realidade. Considere: o que Thamus chamou de "conceito de sabedoria" o conhecimento irreal adquirido por meio da palavra escrita em dado momento tornou-se a forma de conhecimento preeminente apreciada pelas escolas. No h nenhuma razo para supor que tal forma de conhecimento deva ser sempre apreciada em alta conta. Para tomar um outro exemplo: ao introduzir o computador pessoal na sala de aula, estaremos rompendo uma trgua de quatrocentos anos entre o gregarismo e a abertura, fomentados pela oralidade, e a introspeco e o isolamento, fomentados pela palavra impressa. A oralidade d nfase ao aprendizado em grupo, cooperao e a um sentido de responsabilidade social, que o contexto dentro do qual Thamus acreditava que a instruo adequada e o conhecimento verdadeiro deviam ser comunicados. A imprensa enfatiza o aprendizado individualizado, a competio e a autonomia pessoal. Durante quatrocentos anos, os professores, enquanto enfatizavam a imprensa, permitiram que a oralidade ocupasse seu espao na sala de aula e, por conseguinte, atingiram uma espcie de paz pedaggica entre essas duas formas de aprendizado, de tal modo que pudesse ser maximizado aquilo que era apreciado em cada forma. Agora chega o computador, carregando mais uma vez a bandeira do aprendizado privado e da soluo individual do problema. Ser que o uso difundido dos computadores derrotar de uma vez por todas as pretenses do discurso comunal? Ir o computador elevar o egocentrismo categoria de virtude? Esses so os tipos de perguntas que a mudana tecnolgica traz mente quando se percebe, como Thamus percebeu, que a competio tecnolgica desencadeia uma guerra total, que significa que no possvel confinar os efeitos de uma tecnologia nova em uma esfera limitada da atividade humana. Se essa metfora apresenta a questo de maneira brutal demais, podemos tentar uma mais suave e delicada: a mudana tecnolgica no nem aditiva nem subtrativa. ecolgica. Refiro-me "ecolgica" no mesmo sentido em que a palavra usada pelos cientistas do meio ambiente. Uma mudana significativa gera uma mudana total. Se voc retira as lagartas de dado habitat, voc no fica com o mesmo meio ambiente menos as lagartas, mas com um novo ambiente e ter reconstitudo as condies da sobrevivncia; o mesmo se d se voc acrescenta lagartas a um ambiente que no tinha nenhuma. assim que a ecologia do meio ambiente funciona. Uma tecnologia nova no acrescenta nem subtrai coisa alguma. Ela muda tudo. No ano de 1500, cinquenta anos depois da inveno da prensa tipogrfica, ns no tnhamos a velha Europa mais a imprensa. Tnhamos uma Europa diferente. Depois da televiso, os Estados Unidos no eram a Amrica mais a televiso; esta deu um novo colorido a cada campanha poltica, a cada lar, a cada escola, a cada igreja, a cada indstria. E por esse motivo que a competio entre os meios de comunicao to feroz. Cercando cada tecnologia esto instituies cuja organizaopara no mencionar sua razo de ser reflete a viso de mundo promovida pela tecnologia. Por conseguinte, quando uma tecnologia velha atacada por uma nova, as instituies ficam ameaadas. Quando as instituies so ameaadas, uma cultura se encontra em crise. Trata-se de um assunto srio, que o motivo pelo qual nada aprendemos quando os educadores perguntam: os estudantes aprendero matemtica melhor com computadores ou com livros didticos? Ou quando os homens de negcios perguntam: por que meio podemos vender mais produtos? Ou quando os pregadores perguntam: podemos atingir mais pessoas por meio da televiso ou do rdio? Ou quando os polticos perguntam: que eficincia tm as mensagens enviadas pelos diferentes meios6

de comunicao? Essas perguntas tm um valor prtico imediato para aqueles que as fazem, mas so dispersivas. Elas desviam nossa ateno da sria crise social, intelectual e institucional que o novo meio fomenta. Talvez aqui uma analogia ajude a sublinhar a questo. Ao falar sobre o significado de um poema, T. S. Eliot observou que o principal uso do contedo patente da poesia "satisfazer um hbito do leitor, manter sua mente distrada e quieta, enquanto o poema trabalha nele: assim como o ladro imaginrio est sempre munido de um belo pedao de carne para o co da casa". Em outras palavras, ao fazerem suas perguntas prticas, os educadores, empresrios, pregadores e polticos so como o cachorro da casa, que masca pacificamente a carne enquanto a casa saqueada. Talvez alguns deles saibam disso e no tomem nenhum cuidado especial. Afinal de contas, um belo pedao de carne oferecido de graa resolve o problema de como conseguir a prxima refeio. Mas para ns outros no aceitvel que a casa seja invadida sem protesto ou pelo menos sem conscientizao. O que precisamos para refletir sobre o computador nada tem a ver com sua eficincia como ferramenta de ensino. Precisamos saber de que maneira ele vai alterar nossa concepo de aprendizado e como, em conjuno com a televiso, ele minar a velha ideia de escola. Quem se importa com a quantidade de caixas de cereal que pode ser vendida pela televiso? Precisamos saber se a televiso muda nossa concepo da realidade, o relacionamento entre ricos e pobres, a ideia de felicidade em si. Um pregador que se confina para pensar como um meio de comunicao pode aumentar sua audincia deixar de notar a questo significativa: em que sentido um novo meio de comunicao altera o significado de religio, de igreja e at mesmo de Deus? E se o poltico no consegue pensar alm das prximas eleies, ento temos que nos perguntar sobre o que o novo meio de comunicao faz com a ideia de organizao poltica e com o conceito de cidadania. Para ajudar-nos a fazer isso temos o julgamento de Thamus, que, maneira das lendas, nos ensina o que Harold Innis tentou sua maneira ensinar. As novas tecnologias alteram a estrutura de nossos interesses: as coisas sobre as quais pensamos. Alteram o carter de nossos smbolos: as coisas com que pensamos. E alteram a natureza da comunidade: a arena na qual os pensamentos se desenvolvem. Como Thamus falou para Innis atravs dos sculos, essencial que ouamos a conversa deles, que entremos nela, que a revitalizemos. Pois aconteceu na Amrica algo que estranho e perigoso, e s h uma percepo vaga e at estpida do que foi em parte porque no tem nenhum nome. Chamarei de tecnoplio.

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