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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING ESPM PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO Guy Pinto de Almeida Jr. PELAS RUAS E NAS PÁGINAS DAS REVISTAS Estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de Ocas” e VEJA São Paulo São Paulo 2014

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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – ESPM

PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO

Guy Pinto de Almeida Jr.

PELAS RUAS E NAS PÁGINAS DAS REVISTAS

Estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de

Ocas” e VEJA São Paulo

São Paulo

2014

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Guy Pinto de Almeida Jr.

PELAS RUAS E NAS PÁGINAS DAS REVISTAS

Estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de

Ocas” e VEJA São Paulo

Dissertação apresentada à ESPM como

requisito parcial para obtenção do título de

Mestre em Comunicação e Práticas de

Consumo.

Orientadora: Profa. Dra. Tânia Márcia Cezar Hoff

São Paulo

2014

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Guy Pinto de Almeida Jr.

PELAS RUAS E NAS PÁGINAS DAS REVISTAS

Estratégias de construção da representação do morador de rua no discurso jornalístico de

Ocas” e VEJA São Paulo

Dissertação apresentada à ESPM como

requisito parcial para obtenção do título de

Mestre em Comunicação e Práticas de

Consumo.

Aprovado em 27 de março de 2014

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________

Presidente: Prof. Dra. Tânia Márcia Cezar Hoff, Orientadora, ESPM

____________________________________________________________

Membro: Prof. Dra. Dulcília Helena Schroeder Buitoni, FACULDADE CÁSPER LÍBERO

____________________________________________________________

Membro: Prof. Dr. João Anzanello Carrascoza, ESPM

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O maior apetite do homem é desejar ser.

Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser.

Manoel de Barros

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho é fruto de minha autoria, mas resultado de uma série de contribuições

de pessoas queridas ao longo de minha vida. É a elas que gostaria de prestar meus

agradecimentos:

Em primeiro lugar, a meus pais, Claudete e Guy, pelo apoio e incentivo que sempre

me deram em relação aos estudos.

Às minhas irmãs Fabiana e Tatiana, a minha sobrinha Olívia e a minha companheira

Cecília que tanto me compreenderam nesta trajetória desafiante que é o mestrado.

Aos meus amigos Isaac, Amanda, Nézio, Gordo, Miyoko, Rosi, Marcos, Francisco,

José Paulino, Maria Elisabete, Izolda, Hiran, Emmanuel, Renata, Michele, Manolita, entre

outros pelas mãos estendidas nos momentos mais difíceis da trajetória.

A todos os professores que passaram e que continuarão passando por minha vida.

Aos colegas de classe, os professores e funcionários do PPGCOM-ESPM, pelo

compartilhamento das alegrias e angústias durante os dois últimos anos.

Aos funcionários da Biblioteca da ESPM, das Bibliotecas Municipais Mário

Schenberg e Mário de Andrade (Hemeroteca) e do Arquivo Público do Estado de São Paulo

pela gentileza e cordialidade sempre que me atender. Ao Thiago Massagardi, Marina

Massagardi, Tula Pilar Ferreira e todo o pessoal da Ocas”.

A Gabriela e ao Manoel de Barros.

Um agradecimento especial à minha orientadora Tânia Hoff, por todo o

companheirismo, lealdade e divisão de “viagens teóricas” durante todo o processo.

Por fim, gostaria de dedicar à memória de minha avó, Hemya, que nos deixou no ano

passado, e, que ao longo de seus 88 anos, ensinou muito aos filhos e netos sobre o que é

conviver junto à diferença.

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RESUMO

Esta dissertação tem como tema as representações dos moradores de rua da cidade de São

Paulo no discurso jornalístico veiculado nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo. Nosso

objetivo principal é analisar as estratégias do discurso jornalístico no que se refere à

representação social do sem-teto nas referidas publicações. Já os objetivos secundários são:

conceituar “cidade”, “pobreza” e “diferença”, a fim de relacionar os três conceitos ao

fenômeno do consumo; identificar as representações sociais do morador de rua nos discursos

jornalísticos nas duas revistas; identificar as estratégias de produção de sentidos do discursos

jornalísticos sobre o tema moradores de rua em cada veículo; e comparar as estratégias de

produção de sentidos identificadas, para refletir sobre algumas lógicas de produção do

discurso jornalístico sobre a diferença. Quanto à fundamentação teórica, a análise de discurso

de linha francesa consiste em nosso principal aporte teórico, que será mobilizado em conjunto

com as teorias do jornalismo, da cidade e da diferença. Empreendemos também uma pesquisa

empírica de caráter documental, que resultou num conjunto de 203 textos jornalísticos

publicados nas revistas no período de 2005 a 2012, sobre o tema morador de rua da cidade de

São Paulo, a partir do qual elaboramos dois corpora: de Ocas” (16 textos) e de VEJA São

Paulo (15 textos). Destacamos alguns resultados da análise desenvolvida: em Ocas”, o

morador em situação de rua é representado como um cidadão detentor de direitos; já em VEJA

São Paulo, ele é representado como um indivíduo estranho em relação à normatização da

cidade. Diante desses resultados, podemos afirmar que o discurso jornalístico de ambas as

revistas abriga estereótipos e reproduz desqualificações sociais do morador de rua.

Palavras-chave: Comunicação e Consumo; Discurso jornalístico; Representação da

diferença; Jornalismo impresso; São Paulo.

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ABSTRACT

The theme of this dissertation is the representation of the homeless in São Paulo on

journalistic discourse in magazines Ocas” and VEJA São Paulo. Our main goal is to analyze

the strategies of journalistic discourse in relation to the social representation of the homeless

in these publications. The secondary objectives are: conceptualizing “city”, “poverty” and

“concept of difference” in order to relate the three concepts to the phenomenon of

consumption, identify the social representations of the homeless on journalistic discourse in

both magazines; identify strategies for production of meaning of journalistic discourses on the

subject street dwellers in each publishing, and compare the identified strategies of production

of meaning to think about some logic in production of journalistic discourse about the concept

of difference. As for theoretical reasons, the analysis of discourse is our main theoretical

foundation, to be understood within the theories of journalism, city and the concept of

difference. We also undertook an empirical research of documental nature, which resulted in a

set of 203 journalistic articles published in the magazines from 2005 to 2012 on the theme of

homeless of São Paulo’s city, from which we developed two corpora: the Ocas” (16 texts)

and VEJA São Paulo (15 texts). On the analysis, we highlight the following results: in Ocas” ,

the street dweller is represented as a holder of citizen rights, while in VEJA São Paulo, he is

represented as a strange individual in relation to the regulation of the city. Given these results,

we can say that the journalistic discourse of both magazines houses and reproduces

stereotypes and social disqualification of the homeless.

Keywords: Communication and consumption; Journalistic discourse; Representation of

difference; Printed journalism; São Paulo.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Características editoriais das revistas Ocas” e VEJA São Paulo ............................. 60

Quadro 2: Classificação da população de rua por estágio de permanência .............................. 92

Quadro 3: Corpus de análise em Ocas” .................................................................................. 114

Quadro 4: Corpus de análise em VEJA São Paulo ................................................................. 115

Quadro 5: Resumo da Análise do texto de Ocas” “Carroceiros e mendigos saem de cena”.. 118

Quadro 6: Resumo da análise do texto de Ocas” Revolta, Indignação e uma pergunta: até

quando? ................................................................................................................................... 121

Quadro 7: Resumo da análise do texto de Ocas” E depois da rampa? .................................. 122

Quadro 8: Resumo da análise do texto de Ocas” Luta pela dignidade .................................. 125

Quadro 9: Resumo da análise do texto de Ocas” Um homem (bem) visível ........................... 126

Quadro 10: Resumo da análise do texto de Ocas” Antes que o frio doa... ............................. 128

Quadro 11: Resumo da análise do texto de Ocas” Mercado Subterrâneo ............................. 129

Quadro 12: Resumo da análise do texto de Ocas” A droga nem sempre leva à exclusão, mas a

exclusão é a maior droga ....................................................................................................... 131

Quadro 13: Resumo da análise do texto de Ocas” Um fato, várias versões e o cheiro da

impunidade ............................................................................................................................. 132

Quadro 14: Resumo da análise do texto de Ocas” Em vez de Polícia, Política! .................... 135

Quadro 15: Resumo da análise do texto de Ocas” “Não tinha futuro, só trabalho” ............. 136

Quadro 16: Resumo da análise do texto de Ocas” Adivinhação ............................................ 138

Quadro 17: Resumo da análise do texto de Ocas” O amor está nas ruas .............................. 139

Quadro 18: Resumo da análise do texto de Ocas” Vozes em busca de direitos ..................... 140

Quadro 19: Resumo da análise do texto de Ocas” Escola da Rua: Ensinado e aprendendo .. 143

Quadro 20: Resumo da análise do texto de Ocas” Ouvidoria da ruas ................................... 144

Quadro 21: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez ideias para o centro ........ 145

Quadro 22: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Ele não foge da briga............. 149

Quadro 23: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Cenas de um centro abandonado

................................................................................................................................................ 151

Quadro 24: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Degradação que se esparrama

................................................................................................................................................ 152

Quadro 25: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Vizinhos da Cracolândia ....... 154

Quadro 26: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo A vida no abrigo da Cracolândia

................................................................................................................................................ 155

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Quadro 27: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Em quem o frio dói mais ........ 156

Quadro 28: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez mortes em quatro dias .... 157

Quadro 29: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Estrangeiros sem teto............. 159

Quadro 30: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Crianças de rua ..................... 162

Quadro 31: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O muro do Center 3 ............... 163

Quadro 32: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O cortiço na Oscar Freire .... 164

Quadro 33: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo 1sem-teto=350 reais (por mês)

................................................................................................................................................ 165

Quadro 34: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Uma noite no albergue .......... 167

Quadro 35: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo “Não fujo de uma polêmica” . 169

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LISTA DE SIGLAS

AD ou ADF – Análise de discurso de linha francesa

Cape – Coordenadoria de Atendimento Permanente e de Emergência

Decradi – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância

DEM – Democratas (Partido Político)

DHPP – Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa

ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing

FD – Formações discursivas

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

MNPR – Movimento Nacional da População de Rua

MST – Movimento dos Trabalhadores sem Terra

OCAS – Organização Civil de Ação Social

ONU – Organização das Nações Unidas

PM – Polícia Militar

PMSP – Prefeitura Municipal de São Paulo

PPGCOM/ESPM – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação e Práticas

de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

PT – Partido dos Trabalhadores

SMADS – Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social

ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 13

1.1. TEMA ............................................................................................................... 13

1.2. PROBLEMA .................................................................................................... 15

1.3. OBJETIVOS ..................................................................................................... 16

1.4. JUSTIFICATIVAS ........................................................................................... 16

1.5. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ........................................... 19

1.6. ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO ............................................................... 22

2. DISCURSO E JORNALISMO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

TEÓRICAS ................................................................................................................. 25

2.1. O DISCURSO E O SENTIDO NA SOCIEDADE ........................................... 25

2.1.1. As palavras e a produção de sentidos ........................................................... 26

2.1.2. Esquecer, antecipar e ideologizar: ações do sujeito ..................................... 28

2.1.3. Condições de produção ................................................................................. 32

2.1.4. Ideologia, Formações discursivas e Interdiscurso ........................................ 33

2.1.5. Enunciação, enunciado e enunciador............................................................ 36

2.1.6. Sobre o discurso... ........................................................................................ 37

2.2. RELAÇÕES ENTRE DISCURSO E JORNALISMO ..................................... 39

2.2.1. Discurso jornalístico: Construtor de realidades ............................................ 39

2.2.2. Discurso jornalístico: o jornalês ................................................................... 45

2.2.3. Gêneros jornalísticos .................................................................................... 49

2.3. DIFERENTES ABORDAGENS JORNALÍSTICAS A PARTIR DO

DISCURSO: OCAS” E VEJA São Paulo ..................................................................... 51

2.3.1. Dois espaços para circulação de discursos jornalísticos ............................... 54

2.3.2. Diferentes, mas parecidas ............................................................................. 58

3. A CIDADE DE SÃO PAULO E SUAS RELAÇÕES COM A

COMUNICAÇÃO E O CONSUMO ......................................................................... 62

3.1. A CIDADE: UMA PERSPECTIVA DO CONSUMO .................................... 62

3.1.1. A cidade como espaço de convivência da diferença .................................... 65

3.1.2. Ferro, aço, revitalização e individualização: a cidade moderna ................... 70

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3.1.3. A modernidade e a contemporaneidade paulistanas: a Estação da Luz e sua

próxima parada, a Nova Luz ......................................................................................... 75

3.2. A OUTRA CIDADE DE SÃO PAULO: O MORADOR EM SITUAÇÃO DE

RUA .......................................................................................................................... 84

3.2.1. Zé ninguém ou Zé alguém? .......................................................................... 84

3.2.2. O morador rua: do desejo ao descaso ........................................................... 85

3.2.3. Como se veem e como são vistos pelos outros ............................................. 92

3.2.4. Brancos, negros, índios, tanto faz: um grupo heterogêneo ........................... 95

3.3. A CIDADE COMO ESPAÇO DE COMUNICAÇÃO, CONSUMO E

SENTIDOS ................................................................................................................... 97

3.3.1. Polis ou polifonia? A cidade como instância de comunicação ..................... 99

3.3.2. Consumo midiático e as representações sociais ......................................... 103

4. PRODUÇÃO DE SENTIDOS NAS REVISTAS OCAS” E VEJA São Paulo:

REPRESENTAÇÃO DA DIFERENÇA NO DISCURSO JORNALÍSTICO ..... 110

4.1. APRESENTAÇÃO DOS CORPORA E DOS CRITÉRIOS DE SELEÇÃO 110

4.2. PROTOCOLO DE ANÁLISE DOS CORPORA ........................................... 116

4.3. ANÁLISE DOS DISCURSOS JORNALÍSTICOS NAS REVISTAS OCAS” E

VEJA São Paulo .......................................................................................................... 117

4.3.1. Análise dos discursos em Ocas” ................................................................ 118

4.3.1. Análise dos discursos na Vejinha ............................................................... 145

4.4. SÍNTESE DA ANÁLISE: COMPARAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS

DISCURSIVAS DE OCAS” E VEJA São Paulo ....................................................... 171

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 175

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 179

ANEXO ...................................................................................................................... 187

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Tema

Este projeto tem como tema as representações dos moradores de rua da cidade de São

Paulo nos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo e integra a linha de

pesquisa, Lógicas da produção e estratégias midiáticas articuladas ao consumo, do Programa

de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM.

O objeto da pesquisa são os discursos jornalísticos das revistas Ocas” e VEJA São

Paulo sobre esses sujeitos, que habitam as ruas da cidade São Paulo e são marcadamente

definidos pela diferença. Deste modo, enquanto a primeira publicação é produto editorial de

uma organização não-governamental, com uma linha-editorial de luta pela causa de pessoas

em situação de risco social – em especial, os moradores de rua, que inclusive participam da

produção e distribuição da revista (o que caracteriza a revista como um street paper); a

segunda é de propriedade de uma empresa privada – Editora Abril – tem objetivo comercial,

uma linha editorial voltada para os assuntos que envolvem a cidade de São Paulo, e é um

roteiro de lazer e compras, voltado para as classes mais altas.

Uma das motivações de nossa escolha pelo tema foi que, ao olharmos para a cidade,

entendemos que ela é composta por diferentes grupos, sendo a população em situação de rua

um deles. Por sua vez, as revistas são veículos segmentados que visam atingir público

específico e, neste sentido, formas de ler a cidade e visualizar os diversos grupos que as

compõem.

Vale ressaltar que existem algumas terminologias que podem referenciar a população

que vive nas ruas. Na mídia jornalística, por exemplo, é comumente chamada de ‘moradores

de rua’, em relatórios técnicos, documentos oficiais ou em trabalhos acadêmicos, a mesma é

chamada de ‘moradores em situação de rua’. Há ainda uma terceira terminologia, comum a

todos os casos citados: ‘sem teto’.

Assim, nesta pesquisa, utilizamos as expressões ‘morador de rua’, ‘moradores em

situação de rua’ e ‘sem teto’ como sinônimos, de modo indiferente. Todas as três nos servirão

para denominar as pessoas que vivem nas ruas. Há, ainda, a possibilidade de encontramos,

nos textos estudados e/ou coletados, expressões como mendigos, homem da rua,

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desabrigados, etc. Em todos os casos, as expressões são referentes ao morador em situação de

rua que diz respeito ao grupo que faz das ruas seu espaço de moradia e/ou sobrevivência.1

Excluído e marginalizado da sociedade de consumo, o morador de rua faz do espaço

público seu local para viver. Há um conjunto de motivos pelos quais alguém chega à condição

de sem teto; entretanto a análise dessas causas e dos diferentes grupos que formam o universo

populacional dos moradores de ruas, embora importante, não será realizada em nossa

pesquisa, e sim, a análise dos discursos jornalísticos referentes a diferença concebida, como

enuncia a pesquisadora Tânia Hoff:

Na sociedade de consumo contemporânea, pensar a diferença implica um

olhar múltiplo que considere nas suas entrelinhas a memória social tanto

como resgate de um lugar de sujeito, como de ressignificações e de

legitimação de uma posição de sujeito ainda não constituída. Chamamos a

atenção aqui, para as diferenças em sentido amplo: as práticas sociais, as

práticas discursivas, os grupos sociais, as tragédias, as doenças, enfim, todos

os acontecimentos que não se encontram na ordem do esperado, do

organizado, do controlado. (HOFF, 2012)

Estando nesta situação de rua, ou seja, desviantes do padrão de normalidade do

cidadão, e assumindo a condição de não-cidadão (ROLNIK, 1994), esses indivíduos formam

um grupo que, com base nos estudos sobre identidade da professora da Open University,

Kathryn Woodward –, é demarcado pela diferença e adquirindo sentido a partir sistema

simbólico pelos quais estão representados (indumentária, higiene, estética, dentre outras)

(WOODWARD, 2009).

Assim, investigamos a cidade como um espaço de encontro das diferenças. Tal

entendimento fundamenta-se no conceito de pensadores como Zygmunt Bauman (2009),

Janice Caiafa (2003), Raquel Rolnik (1994), Oskar Negt (2002), Jane Jacobs (2011) e Jacques

Le Goff (1998). Em alguns momentos de suas respectivas obras, esses autores entendem a

cidade como o espaço público onde as diferenças se encontram.

1 Segundo o relatório Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em

Situação de Rua – Centro Pop - SUAS e População em Situação de Rua - Volume 3. Disponível em

http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/secretaria-nacional-de-assistencia-social-snas/cadernos/orientacoes-

tecnicas-centro-de-referencia-especializado-para-populacao-em-situacao-de-rua-centro-pop-e-servico-

especializado-para-pessoas-em-situacao-de-rua-1/05-caderno-centro-popfinal-dez.pdf. Acesso em 25 de maio de

2013.

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1.2. Problema

O problema desta pesquisa é como se realizam as estratégias de produção dos

discursos jornalísticos sobre a diferença, em especial, como os moradores de rua estão

representados nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo.

Chegamos a esse problema a partir de algumas reflexões. A primeira delas é, como já

mencionamos, o entendimento de que a cidade é um espaço público de encontro das

diferenças. Essas diferenças promovem não uma, mas diversas cidades, o que nos dá condição

de dizer, como propõe o antropólogo italiano Massimo Canevacci (2004), que toda cidade é

polissêmica, ou seja, abriga muitos cenários e é habitada por diferentes grupos, comportando,

assim, várias possibilidades de significados.

A segunda reflexão diz respeito ao jornalismo. Considerando a prática jornalística um

modo de produção de sentidos, ela pode trazer (ou não) representações dos temas abordados.

Complementa-se a isso o fato de que o texto jornalístico é formado e produz discursos e esses

são, necessariamente, como enuncia a Análise de Discurso de Linha Francesa (ADF),

atravessados pela historicidade, ideologia e pelo social. Por consequência, os discursos

jornalísticos abrigam representações que podem promover a visibilidade ou não de certos

grupos que compõem a cidade e, a partir dessas representações, sentidos são produzidos. O

que investigamos são as representações dos moradores em situação de rua.

Logo, se a cidade é um espaço público formado pelo encontro das diferenças e o

jornalismo é uma prática que concede visibilidade às representações aos grupos que formam a

cidade, pode-se esperar que um dos grupos diferentes que formam as cidades – os moradores

de rua – estejam representados nos discursos jornalísticos.

Considerando, inicialmente, que as lógicas de produção dos discursos jornalísticos

baseiam na relevância e importância do fato a ser abordado – pelos critérios de noticiabilidade

e valor-notícia –, é por meio da análise desses discursos jornalísticos, presentes nas duas

publicações investigadas, que teremos condições de avaliar aspectos relativos as lógicas de

produção do jornalismo contemporâneo em relação aos modos de construção de representação

de moradores em situação de rua, pois entendemos que o grupo pode ser considerado

diferente, em relação à normatização da cidade, com base na conceituação de biopolítica na

obra do filósofo francês Michel Foucault, já que os indivíduos que o compõe não têm

emprego formal, moradia, encontram-se fora da organização urbana, etc.

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1.3. Objetivos

Nosso objetivo primário de pesquisa é analisar a produção de sentidos e as

representações sociais do morador de rua nos discursos jornalísticos sobre a cidade de São

Paulo nas publicações – de objetivos editoriais distintos –, Ocas” e VEJA São Paulo, veículos

com objetivos editoriais bastante distintos. Para chegarmos a isso, temos alguns objetivos

secundários:

1. Conceituar “cidade”, “pobreza” e “diferença”, a fim de relacionar os três conceitos

ao fenômeno do consumo;

2. Identificar as representações sociais do morador em situação de rua nos discursos

jornalísticos nas duas revistas investigadas;

3. Identificar as estratégias de produção de sentidos dos discursos jornalísticos sobre

o tema moradores de rua em cada uma das revistas investigadas;

4. Comparar as estratégias de produção de sentidos identificados nos dois veículos

investigados, para refletir sobre algumas lógicas de produção do discurso

jornalístico sobre a diferença.

1.4. Justificativas

O discurso, por ser a palavra em movimento, como aponta a linguista Eni Orlandi

(2009), está para além do texto e inserido em um contexto no qual o social, o histórico e a

ideologia atuam.

Assim, ao escolhermos estudar os discursos jornalísticos sobre o morador de rua,

estamos analisando, como entende o jornalista e pesquisador Jorge Traquina (2008), uma

prática discursiva que além de utilizar de uma linguagem própria – a jornalística –, tem como

campo de atuação um contexto específico, a cena midiática.

Nosso projeto também está enquadrado dentro do campo da comunicação e do

consumo, pois o objeto – os discursos jornalísticos – é parte integrante dos estudos de

comunicação. Esses discursos conformam as representações sociais do morador de rua, que,

ao serem consumidas (lidas), promovem sentidos acerca do tema a cidade e do grupo.

Em tempo, a produção midiática, na forma de discurso jornalístico, ao ser

problematizada, implica investir na compreensão da comunicação e sua relação dentro com o

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contexto social, mais precisamente, em nosso caso, com as práticas de consumo, pois

entendemos que discurso jornalístico promove consumo material e simbólico da cidade.

Poderíamos ter escolhido quaisquer outros grupos diferentes que compõem a cidade

(prostitutas, imigrantes, negros, migrantes, homossexuais, etc.), no entanto optamos pelos

moradores de rua, pois esse frequentemente faz parte da agenda pública do urbano e é

analisado por pesquisas de caráter social. A população em situação de rua é, então,

representada com certa regularidade na mídia, especialmente no contexto da problemática

social.

Sob a ótica das práticas de consumo, esse tema se justifica, pois essa população é

considerada diferente por estar, também, à margem da sociedade de consumo. Para além

desse cenário, eles também estão sempre em evidência quando se fala em políticas públicas de

revitalização de centro de grandes cidades.

Este projeto está alinhado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas

de Consumo da ESPM, a partir do momento em que abordamos a cena midiática, em especial

o jornalismo, e como os setores da sociedade estão representados nessa cena. Analisando

como é a produção dos discursos da diferença dentro do campo jornalístico,

compreenderemos como o consumo de produtos jornalísticos produz sentidos sobre a cidade e

sobre o morador de rua.

Justamente por analisarmos como são produzidos os discursos da diferença nas

revistas Ocas” e de VEJA São Paulo, alinhamos nosso objeto à linha de pesquisa Lógicas da

produção e estratégias midiáticas articuladas ao consumo do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM.

Ancoramos, ainda, nosso projeto de pesquisa à linha de pesquisa de nossa orientadora,

Tania Hoff, que investiga as estratégias de produção de sentidos e representações da diferença

na cena midiática contemporânea. O morador de rua é o corpo diferente no ambiente urbano e

promotor da instabilidade neste local – normatizado a partir da noção de semelhança, sob a

ótica do consumo e dos padrões de cidadania. Dessa forma, nossa pesquisa possui total

aderência com o projeto de nossa orientadora:

Nos processos comunicacionais, podemos avaliar, o igual – a identidade –

promove a estabilidade. A diferença tende a desestabilizar, a promover a

tensão, dispersa ou ruptura. A diferença também promove uma visão

múltipla e variada do mundo, pois a semelhança é mais uma das

possibilidades de constituição do ambiente social e não a única. (HOFF,

2012, p. 151)

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Nosso tema também se justifica sob o argumento da relevância acadêmica e social por

trazer os discursos jornalísticos como objeto de estudo. Em uma busca pelos principais bancos

de dados acadêmicos (Google Acadêmico, SciELO, dentre outros), verificamos a pequena

incidência de trabalhos acadêmicos que abordam a diferença no discurso jornalístico.

Justifica-se a partir disso desenvolver uma pesquisa acadêmica com esse tema para que seja

uma contribuição acadêmica ao campo jornalístico.

Dentre as poucas pesquisas sobre o tema, citamos uma pesquisa semelhante, intitulada

Representação discursiva de pessoas em situação de rua no “caderno Brasília”:

naturalização e expurgo do outro, da pesquisadora Viviane de Melo Resende da Universidade

de Brasília. Nessa, Resende (2012) analisa os discursos jornalísticos do caderno Brasília, por

meio da Análise de Crítica de Discurso (ACD), teoria distinta de nosso trabalho, assim como

o recorte geográfico, já que estudaremos a cidade de São Paulo e nos basearemos na Análise

de Discurso de Linha Francesa.

Também de Resende (2008) temos conhecimento do artigo Não é falta de

humanidade, é para dificultar a permanência deles perto de nosso prédio: análise discursiva

crítica de uma circular de condomínio acerca de “moradores de rua” em Brasília, Brasil. Além

dessas, temos as pesquisas da antropóloga Janine Caiafa (2003 e 2004) que abordam

comunicação e diferença nas grandes cidades.

Ainda sobre a temática dos discursos jornalísticos, encontramos uma obra que trata

discursos sobre a diferença, Palavras em movimento: o discurso jornalístico sobre o sujeito

deficiente, de Daniella Haendchen (2006).

Sobre as representações sociais do morador em situação de rua na mídia, é importante

citar a obra da pesquisadora Suzana Rozendo. Ela vem se dedicado a estudar o fenômeno,

com foco especial aos street papers, desde o início da década de 2010, inclusive tendo feito

estudos na própria revista Ocas”.

Dentre seus artigos, podemos citar; Informações da Aurora: voz às pessoas em

situação de rua2; Elas e nós: a representação de mulheres em situação de rua nas notícias

jornalísticas3; A reinvenção dos street papers: publicações em tela

4; População de rua e

2 Publicado na RELEM – Revista Eletrônica Mutações, julho – dezembro, 2011

3 Trabalho apresentado no GT4 - Representação Social e Mediações socioculturais - do VI Congresso de

Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio de Janeiro, outubro de

2013. 4 Trabalho apresentado no GT Cultura e tecnologia do X Seminário de Alunos de Pós-Graduação em

Comunicação da PUC-Rio.

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cidadania: deslizes e acertos na cobertura midiática5; além de sua dissertação para obtenção de

título de mestre, no ano de 2012 intitulada Ocas” e Hecho en Buenos Aires: um outro tipo de

jornalismo na América Latina.

Diferentemente de Rozendo, nosso foco não é apenas estudar os street papers e seus

modos de produção, mas de maneira longitudinal a representação do morador em situação de

rua nos discursos jornalísticos.

Quanto à relevância social, é imperioso observarmos que a cidade é um espaço do

consumo e que o discurso jornalístico promove seu consumo material e simbólico. Dessa

maneira, estamos promovendo a discussão da cidade como local onde o fenômeno do

consumo se desenvolve e o discurso jornalístico é um dos promotores de consumo material e

simbólico da cidade.

Também entendemos que a nossa pesquisa tem relevância social por problematizar o

fazer jornalístico sobre a diferença na cidade. Ao abordarmos um tema específico em nossa

análise de discurso, o morador de rua da cidade de São Paulo, estamos investigando como a

imprensa promove essas representações sociais e visibiliza ou inviabiliza questões urgentes da

cidade.

1.5. Referencial teórico-metodológico

Temos como principal inspiração teórico-metodológica a Análise de Discurso de

Linha Francesa (ADF), pois é uma teoria que nos dará base para a compreensão da produção

de sentidos do jornalismo. Umas das principais autoras nas quais nos basearemos é Orlandi.

Para ela, o discurso trata do homem falando, ou seja, a palavra em movimento, inserida em

determinados contextos, e produzindo sentidos. A materialização do discurso se dá a partir do

texto (2009).

Em nosso caso, a materialização dos discursos serão os artigos jornalísticos,

produzidos dentro de em um contexto histórico, social e político, e concedendo (ou não)

visibilidade a representações sociais (identidades) e dimensões específicas da cidade.

Com base na análise dos discursos jornalísticos das revistas Ocas” e VEJA São Paulo,

faremos um estudo comparativo para observar como os moradores de rua são/estão

representados em suas páginas. Chegamos a esse questionamento, pois consideramos que o

5 Trabalho apresentado na modalidade Artigo Científico na IV Conferência Sul-Americana e IX Conferência

Brasileira de Mídia Cidadã.

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jornalismo é uma forma de representação da cidade. A pesquisadora Maria Helena Weber

compreende a representação urbana da seguinte forma:

As cidades podem ser descritas em mapas, indicações geográficas,

monumentos, sensações, palavras, arte e imagens, mas a imensidão de

sentidos que é capaz de provocar a transformará em muitas. Seus cantos e

acontecimentos ocuparão o imaginário individual de modo diferenciado e

assim serão contados. A cidade vivenciada individualmente não está

disponível e é difícil de ser compartilhada. Ela mesma será reapresentada, a

cada habitante milhares de vezes, sempre que se tornar fator de disputa

política, de argumentos que comprove a adequada governabilidade. Assim

será recortada e devolvida, initerruptamente, pelas mídias ora como

propaganda sedutora, ora como notícia ou tese. (WEBER, 2007, p. 248)

A Análise de Discurso de Linha Francesa servirá, então, como base para o

entendimento dos discursos jornalísticos que perpassam nos fatos noticiosos ou reportagens

jornalísticas das revistas Ocas” e VEJA São Paulo.

Com a ADF, também teremos condições de operar, sistematizar e categorizar os dados

coletados, tornando possível sua análise para compreender como são produzidos os discursos

sobre o morador em situação de rua. Além de Orlandi, para tal análise, nos basearemos em

teóricos do discurso como: Michel Pêcheux, Heloisa Nagamine Brandão, Maria Aparecida

Baccega, José Luiz Fiorin, Mikhail Bakhtin, Cristina Ponte, Dominique Maingueneau, Marcia

Benetti.

Ao final, faremos um estudo comparado entre as duas análises para compreensão e

problematização de ambas as coberturas dentro do contexto social, histórico e ideológico. O

aporte teórico da ADF será articulado aos seguintes eixos:

Os estudos do consumo, em nosso trabalho terão duas frentes: a primeira que trata o

morador de rua como um marginal ao consumo e a segunda – principal e mais importante –,

que versa sobre o consumo midiático como um produtor de sentidos. Três são os autores

importantes Néstor Garcia Canclini (2006) e Jesús Martin-Barbero (2009) que, em

determinados pontos de suas obras abordam o consumo simbólico da mídia como produtor de

sentidos, e Roger Silverstone, a partir de seus estudos sobre a mídia, especialmente na obra

Por que estudar a mídia (2005)?

Em nosso entendimento, será essencial, ainda, abordamos a cidade como instância

comunicacional a partir da obra do antropólogo italiano radicado em São Paulo, Massimo

Canevacci, em especial ao livro Cidades Polifônicas (2004) que trata da antropologia da

comunicação urbana. Janice Caiafa também será muito importante, pois conceitua a cidade,

como um local de encontro da diferença, assim como os outros autores já citados como o

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filósofo polonês Zygmunt Bauman (2009), o historiador francês Jacques Le Goff (1998), a

urbanista americana Jane Jacobs (2011) e o sociólogo francês Henri Lefebvre (2001).

Articularemos ainda às teorias do jornalismo, nas quais conceituaremos com autores

como Nelson Traquina (2008), Jorge Pedro Sousa (2004), Muniz Sodré (2012), Cremilda

Medina (1988), José Marques de Melo (2006) etc. Esses autores nos trarão a elucidação dos

termos técnicos da teoria do jornalismo e explicação de gêneros jornalísticos e modos de

produção jornalística.

Para estudarmos as cidades, a partir de seus processos históricos e de formação,

iniciaremos com base em dois autores Lewis Mumford (1965), que estuda a cidade ao longo

da história e, mais precisamente, e os estudos medievalistas de Le Goff (1998), que faz uma

comparação do funcionamento das cidades modernas e as cidades medievais. Segundo ele,

esses dois conceitos de cidade são muito parecidos, especialmente por ela ser uma vitrine da

produção humana e do consumo.

Walter Benjamim (1985) e sua visão sobre a modernidade na cidade de Paris, no texto

Paris, capital do século XIX, é outro autor que nos fornecerá base para estudarmos e, possível

compararmos, como foi o processo de modernização urbana da cidade de São Paulo e quais

paralelos podemos traçar com a capital francesa. Outro autor que nos base de reflexão sobre a

cidade moderna é Georg Simmel (1967), mais especificamente por sua obra A vida mental da

cidade.

Jane Jacobs (2011) também nos servirá de base para entendermos os processos de

modernização, pois aborda em sua obra os processos reurbanização em grandes cidades. Para

fechar esse trecho da pesquisa, que trata da cidade na história, talvez um dos autores mais

importante deste ponto da pesquisa seja Lefebvre (2001). Em sua obra, o autor busca o

entendimento sociológico da cidade e traz conceitos sobre a evolução delas, cruzando-o com

o desenvolvimento industrial.

Lefebvre é importante para que passemos a observar a cidade sob o aspecto

econômico. Assim, num segundo momento, trazemos ao diálogo autores como o economista

Paul Singer (1990), o geógrafo Milton Santos (1979; 1987; 1994) e especialmente a urbanista

Raquel Rolnik (1994). Com esses nomes, estudiosos da economia urbana, entenderemos

como se deu o processo de exclusão nas grandes cidades e formação de sua população de

moradores de rua.

Outra fonte epistemológica serão os estudos sobre identidade e diferença, nos quais

iremos tomar por base autores de diversas escolas que em alguma de suas obras trataram os

temas como Stuart Hall (2006), Kathryn Woodward (2009), entre outros.

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O morador de rua será conceituado a partir da visão do pesquisador Marcel Bursztin,

socióloga Maria Lúcia Montes; a socióloga e pesquisadora da Fipe, Maria Antonieta da Costa

Vieira; Eneida Maria Ramos Bezerra; a assistente social Cleisa Moreno Maffei Rosa, dentre

outros autores, além de relatórios oficiais de pesquisas sobre o tema. Desde pesquisas

governamentais a trabalhos acadêmicos de áreas como saúde, assistência social, cidadania,

etc.

Por fim, para falarmos sobre as representações sociais para poder avaliar como os

moradores de rua estão representados nos discursos jornalísticos, dialogaremos com os

conceitos do psicólogo romeno Serge Moscovici.

Quanto a metodologia, trabalharemos uma pesquisa de caráter teórico-analítico,

juntamente com a análise do material coletado a partir de pesquisa documental nos arquivos

das duas publicações no período de 2005 a 2012, que formarão nossos corpora.

Mais adiante, na apresentação dos corpora, explicaremos como foi a coleta e

consequentemente a seleção dos corpora.

1.6. Estrutura da dissertação

Com as colocações acima, nossa obra será estruturada da seguinte maneira. No

primeiro capítulo, Discurso e jornalismo: algumas considerações teóricas apresentaremos a

base de nosso trabalho: os discursos. O conceito será apreendido no primeiro item do capítulo

– intitulado O discurso e o sentido na sociedade –, a partir do referencial teórico da Análise

de Discurso de Linha Francesa. Dialogaremos com autores como Eni P. Orlandi, Michel

Pêcheux, Heloísa Nagamine Brandão, José Luiz Fiorin, Mikhail Bakhtin, dentre outros.

Atrelado ao discurso, olharemos no segundo item para uma vertente específica, os

discursos jornalísticos. Esse será intitulado de Relações entre discurso e jornalismo, no qual

articularemos as teorias do discurso às teorias do jornalismo, a partir de autores como Muniz

Sodré, Nelson Traquina, Jorge Pedro Sousa, Cristina Ponte, José Marques de Melo, etc.

Para finalizar o primeiro capítulo traremos o item Diferentes abordagens do discurso

jornalístico: Ocas” e VEJA São Paulo, no qual apresentaremos as características discursivas e

jornalísticas do dois veículos formadores de nossos corpora, as revistas Ocas” e VEJA São

Paulo.

Assim, o primeiro capítulo Discurso e jornalismo: algumas considerações teóricas

está organizado dessa maneira para que possamos explanar sobre o nosso objeto, o discurso,

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sua especificidade o discurso jornalismo, e apresentar os veículos de comunicação formadores

de nossos corpora. E, retomando, será composto dos seguintes itens:

O discurso e o sentido na sociedade

Relações entre discurso e jornalismo

Diferentes abordagens do discurso jornalístico: Ocas” e VEJA São Paulo

A cidade de São Paulo: e suas relações com a comunicação e o consumo será o nosso

segundo capítulo. Pelo capítulo explanaremos os fenômenos que são temas dos discursos que

analisaremos: as cidades, o morador de rua, o consumo midiático e produção de sentidos.

No primeiro item do capítulo, A cidade: uma perspectiva do consumo, pretendemos

expor, de forma sucinta, o conceito de cidade e como ela se constitui, a partir de uma

abordagem histórica. Passaremos pela Idade Média para apontar as heranças medievais da

cidade contemporânea, assim como olharemos para a cidade moderna, pós-moderna (pós-

industrial) e a economia urbana. Toda a explanação terá a cidade de São Paulo como pano de

fundo e sob a perspectiva do consumo. Dialogaremos com autores como Jacques Le Goff,

Walter Benjamim, Jane Jacobs, Raquel Rolnik, Lewis Mumford, Georg Simmel, Max Webber

e Henri Lefebvre.

Nesse ponto do texto ainda abordaremos, os processos de urbanização do Brasil,

também com foco na cidade de São Paulo, e a constituição sociedade de consumo no País,

tomando como referencial teórico a obra de Paul Singer, Eunice R. Durham, Milton Santos,

etc.

No segundo item do capítulo, denominado A outra cidade de São Paulo: o morador

em situação de rua, conceituaremos o morador em situação de rua, à luz dos conceitos da

identidade e diferença, e com base nas teorias de pobreza urbana e exclusão. Trabalharemos

com autores como Maria Lúcia Montes, Marcel Burzztyn, Stuart Hall, Kathryn Woodward.

A intenção, ao final desses dois primeiros itens do segundo capítulo, é deixarmos claro

o conceito da metrópole como o local de encontro dos diferentes, com base na leitura de

Janice Caiafa. Disso, partiremos para o entendimento da cidade como instância da

comunicação e do consumo. No terceiro item, A cidade: comunicação, consumo, sentidos e

representação, apresentaremos a cidade contemporânea toda midiatizada, a partir da leitura de

Massimo Canevacci, que considera a cidade polifônica (com várias vozes) e polissêmica

(vários sentidos).

Também abordaremos o consumo midiático da cidade que será explanado e dialogado

a partir de autores como Néstor Garcia Canclini, Jésus Martin-Barbero e Roger Silverstone.

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Por fim, explanaremos sobre as representações sociais, tomando o caso do morador de rua

como central. Para entendimento das representações sociais dessa população, tomaremos

contato com a obra Serge Moscovici.

Então, o capítulo A cidade de São Paulo: e suas relações com a comunicação e o

consumo está organizado da seguinte maneira:

A cidade: uma perspectiva do consumo

A outra cidade de São Paulo: o morador em situação de rua

A cidade: comunicação, consumo, sentidos e representação

No terceiro capítulo Produção de sentidos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo:

representação da diferença no discurso jornalístico apresentaremos os corpora de nossa

pesquisa e a metodologia; trabalharemos os dados coletados; analisaremos os discursos

jornalísticos dos corpora em relação à população sem teto e os resultados do estudo

comparativo entre esses dois veículos. O terceiro capítulo será configurado da seguinte

maneira:

Apresentação dos corpora e dos critérios de seleção

Protocolo de Análise dos corpora

Análise dos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo

Síntese da análise: comparação dos discursos e das representações do morador em

situação de rua nos dois veículos investigados

A última parte de nosso trabalho será composta de nossas considerações finais.

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2. DISCURSO E JORNALISMO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

2.1. O discurso e o sentido na sociedade

Si o senhor não "tá" lembrado

Dá licença de "contá"

Que aqui onde agora está

Esse "edifício arto"

Era uma casa véia

Um palacete assobradado

Foi aqui seu moço

Que eu, Mato Grosso e o Joca

Construímo nossa maloca

Mais, um dia

Nóis nem pode se alembrá

Veio os homi c'as ferramentas

O dono mandô derrubá

Saudosa Maloca – Adoniran Barbosa

Iniciar um trabalho acadêmico com uma letra de música pode parecer estranho, mas é

uma tentativa de compreendermos melhor nosso objeto de estudo e de tornar o texto mais

próximo da análise de discurso. Por mais que nos acusem de usar o clichê Saudosa Maloca,

talvez uma das composições mais famosas compostas por Adoniran Barbosa sobre a cidade de

São Paulo, há uma explicação.

Escolhemos essa canção por três razões. A primeira é que ela versa sobre a cidade de

São Paulo, e seus contextos sociais. Em seguida, porque traz à luz uma questão central sobre a

cidade: o sem teto. E por último, mas não a menos importante, a letra da música materializa

discursos, e, em nosso trabalho estamos a analisar e problematizar discursos, não

propriamente letras de música, mas o discurso.

Com Saudosa Maloca de pano de fundo, neste item de nossa dissertação, iremos

conceituar a Análise de Discurso, com base os conceitos de Eni P. Orlandi, Michel Pêcheux,

Heloísa Nagamine Brandão, Maria Aparecida Baccega, José Luiz Fiorin, Mikhail Bakhtin,

dentre outros.

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2.1.1. As palavras e a produção de sentidos

Quando falamos em discurso, geralmente relacionamos o termo a diferentes acepções

correntes, como o ‘discurso de posse de um presidente’ ou à expressão ‘está mudando de

discurso’ (quando alguém claramente não assume mais a opinião que assumira

anteriormente). Embora tenham a mesma acepção, trazem sentidos distintos, definidos pela

situação em que as palavras se encontram. Ou seja, só é possível compreender essa distinção

de sentido, considerando o todo com o qual se relacionam na enunciação.

Discursos não são textos, mas o que está para além deles, antes mesmos de serem

escritos. São os sentidos que refletem em instâncias de concretização (materializações) como

textos, falas, som, imagens, etc., e são produzidos a partir de alguns pressupostos, que

exporemos adiante.

Sendo um texto um dos possíveis modos de concretização do discurso, temos que,

para analisar o discurso que atravessa o texto, torna-se necessário um processo de

desmontagem ou desconstrução. Desta forma alcançamos instâncias anteriores dessa

produção de sentidos: o processo de produção e, consequentemente, a produção discursiva.

Ou seja, diante de todo ato de apalavramento do mundo – como nosso caso, em que

olharemos para os textos de duas revistas –, um sujeito fala ou escreve, mas este ato de falar

ou escrever não vem apenas desse sujeito, está na sociedade, na maneira de agir e pensar das

pessoas num determinado contexto.

Refazer este caminho, partindo do texto até chegarmos ao discurso e identificarmos

cada uma dessas etapas, é o que pretendemos no trabalho com apoio teórico-metodológico da

Análise de Discurso de Linha Francesa (ADF ou AD). Esta teoria, desenvolvida a partir dos

anos 1960, pelo filósofo marxista francês Michel Pêcheux, baseia-se, de maneira geral, no

diálogo dos estudos de linguagem com outras áreas do conhecimento, como aponta a linguista

Helena Nagamine Brandão (2012).

Nos anos 60, sob a égide do estruturalismo, a conjuntura intelectual francesa

propiciou, em torno de uma reflexão sobre a “escritura”, uma articulação

entre linguística, o marxismo e a psicanálise. A ADF nasceu tendo como

base a interdisciplinaridade, pois ela era preocupação não só de linguistas

como de historiadores e psicólogos. (p. 16)

Falar da ADF é sempre estar em contato com o pensamento de Pêcheux, que se

dedicou em investigar como a ideologia atua na linguagem. A linguista Eni Orlandi (2005),

pesquisadora brasileira da ADF, o descreve da seguinte maneira.

Ele é o fundador da Escola Francesa de Análise de Discurso que teoriza

como a linguagem é materializada na ideologia e como esta se manifesta na

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linguagem. Concebe o discurso como um lugar particular em que esta

relação ocorre e, pela análise do funcionamento discursivo, ele objetiva

explicitar os mecanismos da determinação histórica dos processos de

significação. Estabelece como central a relação entre o simbólico e o

político. Ou, como diz Courtine (1982), a Análise de Discurso trabalha com

a textualização do político. Com a Análise de Discurso, podemos

compreender como as relações de poder são significadas, são simbolizadas.

É aí que aparece o que esse autor chama de ilusão política no quadro das

preocupações e objetivos da Análise de Discurso. (p. 2)

Assim, com base na ADF, entende-se que todo discurso só é discurso quando inserido

em um contexto sócio-histórico e ideológico. Como colocado, Pêcheux, ao estruturar sua

teoria, entende que a ideologia é materializada na linguagem e vice-versa e concebe o

discurso como um lugar particular onde esta relação ocorre. Logo, a análise do funcionamento

discursivo tem como objetivo demonstrar como os significados são determinados na história.

Pelo exposto até agora, compreendemos que o funcionamento discursivo expressa um

movimento regido por elementos contextuais, ou seja, além de não ser o texto, o discurso não

é a palavra, mas o homem falando. E para afirmar isso, estamos considerando a conceituação

que Orlandi (2009) faz de discurso, como sendo a palavra em curso, ou melhor, dentro de um

percurso no qual é atravessada pelos, invariavelmente por contextos histórico, social e

ideológico.

A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua,

não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do

discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso,

de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em

movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o

homem falando (p. 15)

Se tomarmos essa referência diante do exemplo da música Saudosa Maloca, podemos

observar que, de fato, o discurso é “trabalho simbólico, parte do trabalho social geral,

constitutivo do homem e sua história” (ORLANDI, 2009, p. 15), ou seja, a condição de ser

trabalho simbólico aponto que o discurso, são as palavras exercendo funções em determinados

contextos, e, por meio da análise do discurso, no nível linguístico e extralinguístico algumas

questões como a produção de sentidos podem ser analisadas. Ela e outros conceitos serão

explicados de agora em diante.

Ao consultarmos em um dicionário da Língua Portuguesa (ACADEMIA

BRASILEIRA DE LETRAS, 2008) a palavra ‘linha’, serão apresentados muitos significados

distintos, 18 no total. Dependendo de nossa intenção um deles poderá saciar a nossa demanda

pela consulta, no entanto o que nos interessa é mostrar como dependendo do contexto

buscamos por um significado específico. Quando nos referimos a ‘linha’ em uma conversa

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sobre corte e costura, por exemplo, certamente o significado será bem diferente de ‘linha de

ônibus’ ou ‘linha de trem’.

Utilizamos o exemplo – um tanto quanto simplista – para ilustrar que a mesma palavra

possui significados que só podem ser compreendidos quando inseridos em uma determinada

situação de comunicação e esta é que, grosso modo, concederá sentido a essa palavra, pois as

palavras só têm sentido em suas relações com outras palavras e contextualizadas.

Tentamos mostrar com o exemplo acima que não existem sentidos literais para as

palavras, pois elas, necessariamente, sempre estarão, exercendo um trabalho simbólico, em

curso, inseridas em algum contexto e não em outros e é diante desta inserção que elas ganham

sentidos – a linha de costura não é a linha de trem, evidente. Como aponta a pesquisadora

Maria Aparecida Baccega “a palavra só assume seu significado no contexto, no discurso, é ele

quem desfará a ambiguidade.” (BACCEGA, 2007, p. 16)

Agora, reparem, por exemplo, na letra da música na qual, ao considerarmos a base

linguística, um sujeito que fala de um fato: o despejo e destruição de sua antiga casa. Alguns

enunciados explicitam a questão da não literalidade ‘Mato grosso’, por exemplo, não é um

vegetal largo ou espesso, tampouco o estado da região centro-oeste brasileira, mas o apelido

de um dos amigos que moravam na casa. Quando falamos sentidos não estamos nos atendo

apenas às palavras, mas ao todo do texto. Assim, para compreender os sentidos e,

consequentemente o discurso, percorreremos conceitos de Ilusão Discursiva, Formações

Imaginárias e Formações Ideológicas até chegarmos às formações discursivas.

2.1.2. Esquecer, antecipar e ideologizar: ações do sujeito

Para Pêcheux, as Ilusões Discursivas são determinadas pelo conceito de

Esquecimento, que está dividido em duas frentes. A primeira delas é o Esquecimento

Ideológico: no qual o sujeito do discurso tem ilusão de ser a origem do sentido, quando, apaga

tudo que remeta ao exterior de sua formação discursiva. Esse é também chamado de

Esquecimento Adâmico, pois remete à origem e a Adão. Orlandi (2009) pontua esse

esquecimento da seguinte maneira:

Na realidade, embora se realizem em nós, os sentidos apenas se representam

como originando-se em nós: eles são determinados pela maneira como nos

inscrevemos na língua e na história e é por isto que já se significam e não

pela nossa vontade (p. 35)

Já o segundo, trata do Esquecimento Enunciativo, ou seja, ao escolhermos uma palavra

e não outra, isso indica que escolhemos palavras que poderiam ter sido outras que foram

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esquecidas. Nesse, apaga-se a noção de que todo discurso retoma um já dito. Ou seja, o

sujeito tem a ilusão que detém total domínio sobre o significado do que diz e o que será

entendido pelo outro.

[...] o esquecimento é estruturante. Ele é parte da constituição dos sujeitos e

dos sentidos. As ilusões não são “defeitos”, são uma necessidade para que a

linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos. Os sujeitos

“esquecem” que já foi dito – e este não é um esquecimento voluntário – para,

ao se identificarem com o que dizem, se constituírem em sujeitos. É assim

que suas palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam

retomando palavras já existentes como se elas se originassem neles e é assim

que sentidos e sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre de

muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas mas, ao mesmo tempo

sempre outras. (ORLANDI, 2009, p. 36)

Partindo das Ilusões Discursivas, que em resumo podem ser definidas como a ideia de

um sujeito se considerar senhor fundador de seu discurso e selecionador entre o dito e o não-

dito, chegamos às Formações Imaginárias. Estas compreendem três conceitos importantes, a

saber: Relações de Sentido, Relações de Força e Antecipação.

As Relações de Sentido falam do continuum discursivo: “o discurso aponta para outros

que o sustentam, assim como para dizeres futuros” (ORLANDI, 2009). Os discursos atuam

assim, de um modo contínuo, existem antes, durante e depois dos momentos de fala, são

inesgotáveis, todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para

outro. Essa ideia é compreendida em nosso exemplo introdutório, Saudosa Maloca, que

retoma características orais (sotaque) e faz menção à lembrança, demonstrando que o discurso

vem de uma situação anterior, e ocorrida no passado.

De forma emblemática, as expressões usadas na música fogem à norma culta da

Língua Portuguesa, porém não estão desprovidas de atravessamento histórico, social e

ideológico, pois tratam justamente do homem falando. A própria materialização dessa ação

(texto) mostra isso, pois são grafias fiéis à sonoridade da fala na cidade de São Paulo – com

muitos equívocos gramaticais, por sinal –, em tempos que a população por conta da grande

influência dos imigrantes, em especial o italiano, falavam um idioma híbrido. Exemplo disso

é o fato de não se observar o ‘s’ para marcar o plural das palavras, apenas para demarcarmos

uma das características desta fala coloquial diferenças em relação ao português.

Já as Relações de Força se definem diretamente sobre o local de fala desse sujeito

enunciador. Em Saudosa Maloca, nosso exemplo, o enunciador é o desalojado que narra, com

base na memória, o episódio de demolição de sua casa para dar lugar a um prédio alto. Fosse

o enunciador o construtor do prédio (o edifício arto), certamente ele estaria em outra posição

de sujeito e, portanto, de outro lugar de fala. Como elucida Orlandi (2009):

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Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito

é constitutivo do que ele diz. Assim, se o sujeito fala a partir do lugar de

professor, suas palavras significam de modo diferente do que se ele falasse

do lugar de aluno. O padre fala de um lugar em que suas palavras têm uma

autoridade determinada junto aos fiéis etc. como nossa sociedade é

constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no

poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na comunicação. As fala

do professor vale (significa) mais do que a do aluno. (p. 39 e 40)

Agora, cabe perguntar, por que a letra de Saudosa Maloca, com todas as suas não-

conformidades com a norma culta da Língua Portuguesa, como descrito acima se faz

compreensível ao interlocutor?

Os dois conceitos apresentados: Relações de Força e Relações de Sentido clareiam

uma possível explanação sobre as Formações Imaginárias, no entanto é no terceiro deles, o

da Antecipação, que temos a resposta para esse questionamento, e o complemento da

definição para as Formações Imaginárias.

Ao escrever a letra da música, o autor, que neste caso é o enunciador (iremos

conceituar o termo mais adiante, mas via de regra entende-se como o sujeito do discurso),

vislumbra um ouvinte no horizonte de seu processo criativo, para quem endereça o discurso.

É como se ele realizasse uma emulação de sentidos em si para que o interlocutor compreenda

expressões como ‘edifício arto’ ou ‘se alembrá’. É neste exercício de projeção do ouvinte que

o compositor realiza o procedimento de antecipação, ou seja, o virtualiza, de modo a

enquadrá-lo em um perfil referenciado pelas condições socioeconômicas e culturais, e assim

produz os sentidos com sua fala, mais à frente veremos como esse procedimento é muito caro

ao discurso jornalístico.

Por outro lado, segundo o mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a

capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu

interlocutor “ouve” suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor

quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a

argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro,

segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte. (ORLANDI, 2009, p.

39)

Não necessariamente estamos falando do sujeito da gramática, que é o agente da ação,

mas um sujeito discursivo, como define Brandão (BRANDÃO, 2012)

Assim, esse sujeito essencialmente marcado pela historicidade não é o

sujeito abstrato da gramática, mas um sujeito situado no contexto sócio-

histórico de uma comunidade, num tempo e espaço concretos. É um sujeito

interpelado pela ideologia, sua fala reflete os valores, as crenças de um

grupo social. Não é o único, mas divide o espaço de seu discurso com o

outro, na medida em que, na atividade enunciativa, orienta, planeja, ajusta

sua fala tendo em vista um interlocutor real, e também porque dialoga com a

fala de outros sujeitos, de outros momentos históricos, em um nível

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interdiscursivo. [...] O sujeito se forma, se constitui na relação com o outro,

percebendo sua alteridade: isto é, da mesma maneira que toma consciência

de si mesmo na relação com esse outro, o sujeito do discurso se constitui, se

reconhece como tendo uma determinada identidade na medida em que

interage com outros discursos, com eles dialogando, comprando pontos de

vista, divergindo, etc. (p.26)

Na ADF, sempre que pensamos em seus agentes, devemos fazer uma distinção

importante: indivíduo e sujeito. No discurso, o indivíduo pode vir a ser tornar agente, se

interpelado pela ideologia, como define o filósofo marxista francês Louis Althusser (1985):

“[...] toda ideologia interpela os indivíduos concretos enquanto sujeitos concretos, através do

funcionamento da categoria de sujeito”. (p. 96). Logo, o indivíduo, na teoria do discurso não

materializa sua ideologia a partir do discurso.

Com efeito, toda ação é influenciada pela ideologia, e como o discurso é uma ação,

todo discurso é ideológico. Orlandi, (2009) entende não existir sentido qualquer sem

interpretação e, além disso, diante de qualquer objeto simbólico o homem é levado a

interpretar, e neste ato atesta a presença da ideologia. Assim, quando atravessado pela

ideologia, o indivíduo se faz sujeito:

Podemos começar por dizer que a ideologia faz parte, ou melhor, é a

condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é

interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. Partindo

da afirmação de que a ideologia e o inconsciente são estruturas-

funcionamentos, M. Pêcheux diz que sua característica comum é a de

dissimular sua existência no interior de seu próprio funcionamento,

produzindo um tecido de evidências “subjetivas”, entendendo-se

“subjetivas” não como “que afetam o sujeito”, mas, mais fortemente, como

“nas quais se constitui o sujeito”. Daí a necessidade de uma teoria

materialista do discurso – uma teoria não subjetivista da subjetividade – em

que possa trabalhar esse efeito de evidência dos sujeitos e também dos

sentidos. (p. 46)

Esta distinção entre indivíduo e sujeito se faz necessária para compreendermos as

condições de produção. O mesmo indivíduo pode se fragmentar em diversos sujeitos, a partir

do que Foucault chama de dispersão.

Indivíduo e sujeito não são a mesma coisa. Um indivíduo se fragmenta em

muitos sujeitos, e é o sujeito que fala e fala de um lugar determinado. O

mesmo indivíduo é cindido em diversos sujeitos, que se formam no interior

do processo discursivo e que podem se movimentar de acordo com a maré. É

um processo complexo, porque se assemelha a uma “quebra de identidade”

busca legítima de todo indivíduo e, por isso, é feito de modo inconsciente e

não-reflexivo. Não temos consciência, pelo menos não na maioria das vezes,

de que nos colocamos como sujeitos diferentes em nossos discursos. Essa

mobilidade constante, própria do discurso, é caracterizada por Foucault

como dispersão. (BENETTI e JACKS, 2001)

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Baccega defende que essa interpelação do indivíduo em sujeito se dá na interação

social, por meio da linguagem, a educação, os valores e a classe socioeconômica a qual ele

pertence:

Logo, o sujeito é um indivíduo concreto, que se constitui na interação social.

É esse o lugar de sua prática. É a partir daí que ele interage com o objeto do

conhecimento. Essa interação vai se dar através de da linguagem sobretudo a

verbal; através do aparelho conceptual que ele recebe pelo processo social da

educação; através dos sistema de valores no qual ele se banha e que é

fortemente marcado pela classe social e/ou pelo nível socioeconômico a que

pertence. (BACCEGA, 2007, p. 11)

Assim como o conceito de Antecipação, essa definição nos será importante para

compreendermos o produto jornalístico. Mas antes de chegarmos a ele, falaremos das

Condições de Produção.

2.1.3. Condições de produção

Todo discurso é produzido em determinadas condições que o faz único e seus sentidos

produzidos serão condizentes a esse cenário. Essas são as chamadas Condições de Produção.

Elas compreendem os sujeitos, a situação e a memória e estão divididas em dois contextos:

imediato (sentido restrito) e amplo.

Esses dois contextos são especificados conforme a explanação de Brandão (2012).

A noção de condições de produção pode ser definida como o conjunto dos

elementos que cerca a produção de um discurso. No sentido mais restrito, diz

respeito à situação de enunciação que compreende o eu aqui-agora: num

sentido mais amplo, compreende o contexto sócio-histórico-ideológico que

envolve os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si,

do outro e do objeto de que estão tratando. Todos esses aspectos devem ser

levados em conta quando procuramos entender o sentido de um discurso”.

(p. 22 e 23)

Novamente tentaremos ilustrá-los trazendo para nosso exemplo, em Saudosa Maloca.

As condições de produção imediatas na música podem ser compreendidas como o local, a

cidade de São Paulo; os sujeitos que assinam o discurso (Adoniran Barbosa); o momento no

qual se enuncia, (a demolição da casa), enfim, as imagens que são construídas dos sujeitos e

dos locais.

Já o contexto amplo das condições de produção compreendem as instituições, história,

efeitos de sentido, etc. Por exemplo, podemos considerar na música que o contexto sócio-

histórico é crescimento da cidade de São Paulo, na década de 1950; o sotaque híbrido, que

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caracteriza a oralidade da cidade, dentre outros. “As Condições de Produção constituem a

instância verbal de produção do discurso: o contexto histórico-social, os interlocutores, o

lugar de onde falam e a imagem que fazem do outro de si e do referente” (BRANDÃO, 2004,

p. 105).

Em termos teóricos, o linguista francês Dominique Maingueneau, apresenta alguns

aspectos justificam as chamadas Condições de Produção:

Essa noção, advinda da psicologia social, foi reelaborada, no campo da

análise de discurso, por Pêcheux para designar não somente o meio ambiente

material e institucional do discurso, mas ainda as representações imaginárias

que os interactantes fazem de sua própria identidade, assim como do

referente de seus discursos (MAINGUENEAU, 2006, p. 30)

Já Orlandi (2009) descreve as condições de produção considerando o material, o

institucional e o imaginário.

As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a

equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua

ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos

sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-

histórica. Temos assim a imagem da posição sujeito locutor (quem sou eu

para lhe falar assim?) mas também da posição sujeito interlocutor (quem é

ele para me falar assim, ou para que eu lhe fale assim?), e também a do

objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?). É pois,

todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. (p. 40)

Transpassando o conceito das Condições de Produção para a produção editorial

jornalística, entendemos que se trata de um produto ideológico concebido a partir de uma

situação ideológica, histórica e social anterior a ela e que produz um sentido a posteriori, é

isso que o filósofo russo e pensador da linguagem Mikhail Bakhtin (2006) entende como

sendo produto de um reflexo social e que refrata posteriormente na sociedade.

Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como

todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao

contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é

exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo

situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um

signo. Sem signos não existe ideologia. (p. 29)

2.1.4. Ideologia, Formações discursivas e Interdiscurso

A instância material da ideologia é o discurso (ORLANDI, 2009; BRANDÃO, 2004).

É a partir desta leitura que o conceito de ideologia se inscreve na Análise de Discurso. Mas

qual a importância, de fato, da ideologia no contexto da ADF? A ideologia é essencial para a

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existência da discursividade e dos sentidos, pois ela é responsável para que exista um sujeito,

Como explica Orlandi (2009):

[...] é também a ideologia que faz com que haja sujeito. O efeito ideológico

elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação ideológica do

indivíduo em sujeito inaugura-se a discursividade. Por seu lado, a

interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente o

apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique

produzindo o efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do

sujeito ser a origem do que diz. (p. 48)

Brandão complementa esse raciocínio sobre o sujeito interpelado pela ideologia.

Essa interpelação ideológica consiste em fazer com que cada indivíduo (sem

que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que

é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos

grupos ou classes de uma determinada formação social. (BRANDÃO, 2004,

p. 46 e 47)

Logo, entende-se que analisar o discurso é compreender como a ideologia implica

num sentido e como este é produzido, pois diante de qualquer objeto simbólico o homem é

levado a interpretar, mas não sabe que está interpretando como se o sentido estivesse sempre

lá, ou seja, naturaliza-se simbólica e historicamente.

A esse conjunto de ideias, a essas representações que servem para justificar e

explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que

ele mantém com os outros homem é o que comumente se chama ideologia.

Como ela é elaborada a partir de formas fenomênicas da realidade, que

ocultam a essência da ordem social, a ideologia é “falsa consciência”.

(FIORIN, 2007, p. 28 e 29)

Pensemos agora na ideologia de forma mais ampla na ADF. Michel Pêcheux, afirma

Maingueneau (2006), entende que toda formação social (classes sociais) implica na existência

de formações políticas e ideológicas que não são o feito de indivíduos, mas de grupos. Nas

classes sociais, as formações políticas e ideológicas incluem-se uma ou várias Formações

Discursivas (FD), que determinam o que pode e que não pode ser dito.

Baccega, em sua compreensão de FD, defende que dentro de uma mesma classe social,

diversas delas estão presentes, prevalecendo sempre a do dominante:

Formações ideológicas/formações discursivas constituem, elas próprias,

espaços dialéticos, onde habitam contradições e contrários, em permanente

conflito entre reprodução e transformação, entre conservação e mudança.

É neste jogo que se constitui o discurso. É aí que está estabelecido o sentido:

nessas formações ideológicas, que tanto comportam a reprodução, a

conservação, quanto a transformação, a mudança; nessas formações

discursivas e suas manifestações que tanto poderão se orientar para um ou

outro polo, que tanto poderão servir aos interesses de uma ou outra classe.

No campo das formações ideológicas formações discursivas se estabelecem,

na verdade, as práticas da luta de classes. (BACCEGA, 2007, p. 54)

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Orlandi (2009; 2005) também tributária do conceito de Pêcheux diz que ao se

relacionar as FD com as ideológicas, os sentidos serão determinados a partir das posições

ideológicas, quando estas estão em jogo dentro do processo sócio-histórico, no qual as

palavras são produzidas, estas então serão as formações discursivas.

Logo, quando um discurso produz sentidos o faz porque é também condicionado pela

formação discursiva. Explica Orlandi:

O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se

inscreve em uma formação discursiva e não em outra para ter um sentido e

não outro.[...] As formações discursivas, por sua vez, representam no

discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são

determinados ideologicamente. Não há sentido que não o seja. Tudo que

dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços

ideológicos. E isto não está na essência das palavras mas na discursividade,

isto é, na maneira como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos,

materializando-se nele. (ORLANDI, 2009, p. 43)

Como consequência dessa notação, temos, com efeito, que as palavras mudam de

sentido, passando de uma FD a outra, pois, antes de serem palavras, são discursos e, estes

ideologicamente produzidos.

Para ilustrar, voltemos a nossa introdução. Nela, a palavra Maloca, não possui o

sentido estrito como está em muitos dicionários de ser uma casa de palha que serve de

moradia aos índios.

Porém, na letra de Adoniran Barbosa, de fato Maloca tem o sentido de casa ou lar, no

entanto, mais precisamente, de um espaço privado e confortável, ainda que humilde. Estivesse

deslocada dessa formação discursiva, mesma palavra, poderia assumir também o sentido de

local bagunçado, impróprio para viver, dentre outros sentidos.

É pela referência à formação discursiva que podemos compreender, no

funcionamento discursivo, os diferentes sentidos. Palavras iguais podem

significar diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas

diferentes. (ORLANDI, 2009, p. 44)

Atrelada à noção de Formação Discursiva, há ainda de se considerar a questão do

Interdiscurso. Estes se localizam entre duas ou mais FD:

As formações discursivas podem ser vistas como regionalizações do

interdiscurso, configurações específicas dos discursos em suas relações. O

interdiscurso disponibiliza dizeres, determinando, pelo já-dito, aquilo que

constitui uma formação discursiva em relação a outra. (ORLANDI, 2009, p.

43 e 44)

Para Maingueneau (2006), o Interdiscurso representa as reconfigurações das

Formações Discursivas com elementos que estão fora dela, pois elas não são blocos

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compactos ou herméticos, mas sim interpenetrados por outras Formações. Assim é o

interdiscurso que traz instabilidade à elas, tornando o discurso contraditório e não

individualizado. É o Interdiscurso quem concede a diferença ao discurso. Logo, uma FD é

definida pelo Interdiscurso e não o contrário.

O Interdiscurso ainda aborda o já dito, dentro daquilo que já expusemos quando

falamos do Esquecimento, como aponta Orlandi:

Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido.

E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito

específico, em um momento particular se apague na memória para que,

passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras.

(2009, p. 33 e 34)

Ou, como coloca Brandão (2012):

A noção de interdiscursividade surge para designar o “exterior específico”

que irrompe no interior de uma FD. Ao se colocar a relação da FD com um

exterior e anterior, vê-se obrigado a reconhecer como elementos importantes

a serem considerados na análise de uma FD. (p. 22)

Podemos considerar que Adoniran Barbosa, como coloca Orlandi (2009), escreveu

Saudosa Maloca se inscrevendo como sujeito em determinada “Formação Discursiva e não

em outra para ter um sentido e não outro” (p. 43). Os sentidos das palavras, assim são

determinados pelas formações discursivas as quais estão inscritas.

Pelo conceito da Formação Discursiva, podemos entender que o discurso é mais o

lugar da reprodução que da criação (FIORIN, 2007), pois ao determinar o que deve ser dito,

as Formações Discursivas estão para além do enunciador, ou seja, os discursos não são

propriedades de quem o fala, mas eles atravessam esse enunciador, que será abordado a partir

de agora.

2.1.5. Enunciação, enunciado e enunciador

Nesta última parte da elucidação de Discurso e Análise de Discurso iremos falar sobre

Enunciados, ou o elemento que servirá de base para realizarmos a nossa análise mais adiante.

Em linhas-gerais, o enunciado é produto da enunciação e produzido pelo enunciador.

Para iniciarmos devemos fazer uma distinção entre o locutor, quem fala e que pode ser

identificado pelo enunciado, e o enunciador compreendido como “a pessoa de cujo ponto de

vista são apresentados os acontecimentos.” (Ducrot, 1987)

O locutor é quem fala, o enunciador é aquele “a partir de quem se vê”. Ou

seja: o enunciador deve ser identificado, na análise das vozes, como a

perspectiva a partir da qual o enunciador enuncia. Essa perspectiva está

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diretamente associada a uma posição de sujeito, conformada também por

inscrições culturais, sociais e históricas, que podemos – na estrutura da AD –

reunir nas formações ideológicas. (BENETTI, 2007, p. 119)

Quando um discurso é manifestado, dizemos que ocorre um ato de enunciação, ou

seja, ao falar ou escrever, o enunciador produz um discurso relacionado, evidentemente, com

as formações ideológicas/discursivas.

A enunciação é, portanto, o lugar onde “nasce, o discurso, o lugar de onde

“brota” o discurso. O enunciado é a manifestação desses discurso, quer seja

na modalidade escrita da língua, quer seja na modalidade oral.

A enunciação se relaciona com a formação ideológica. A formação

ideológica relaciona-se com a dinâmica das classes sociais, as quais têm

interesses opostos e conflitantes. Apesar disso, não podemos dizer que cada

classe pratica uma ideologia totalmente diversas da outra classe. Isso porque

há uma ideologia dominante que perpassa todas as formações ideológicas e,

portanto, todas as formações discursivas. (BACCEGA, 2007, p. 53)

Por fim, Brandão (2012) destaca a heterogeneidade do ato enunciativo.

por isso, fornecerem ao analista do discurso instrumental produtivo para

exploração de um modus operandi que possibilite trabalhar imbricadamente

a materialidade linguística e o nível discursivo(na proposição de Pêcheux,

referidos como base linguística e processar discursivo). (p.28)

Assim, portanto, o papel de enunciador só pode ser ocupado por um sujeito, ou seja,

como já explanamos, um indivíduo interpelado por uma ideologia e na condição de sujeito da

enunciação produz o que chamamos de enunciado.

2.1.6. Sobre o discurso...

Em linhas gerais, a Análise do Discurso, incondicionalmente, estuda a linguagem

dentro da sociedade impossibilitando qualquer tentativa de pensá-la fora desse contexto.

(BRANDÃO, 2012) (ORLANDI, 2009). Foi o que tentamos abordar neste item do primeiro

capítulo de nossa dissertação, com base na letra da música, Saudosa Maloca (que nos serviu

de exemplo durante toda esta explanação).

Feito isso, podemos afirmar que dificilmente seria possível analisar a letra (da forma

que fizemos) sem considerarmos alguns aspectos como, a cidade de São Paulo, seus

problemas habitacionais, seu desenvolvimento econômico, seu sotaque claramente

influenciado pela língua italiana (explicitado nas hibridizações fonéticas). E por aí que passa a

análise de discurso, pelo entendimento que o homem fala, sempre inserido em um contexto

social, histórico e ideológico.

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E é por esse motivo que nossa intenção é estudar a produção de sentido dos discursos

jornalísticos sobre os moradores em situação de rua da cidade de São Paulo, a partir da análise

de sua materialidade textual. Entendemos que ao desmontarmos esses textos jornalísticos,

compreenderemos como é a produção de sentidos desses discursos na sociedade. Este é o

grande desafio deste trabalho. Para tanto, a ADF é o nosso principal referencial teórico-

metodológico, pois como entende a linguista Helena Nagamine Brandão (2012):

os estudos na perspectiva discursiva visam descrever como funciona a língua

no seu uso efetivo, como se dá a produção de efeitos de sentidos entre

interlocutores, sujeitos situados social e historicamente (p. 19 e 20).

Ou seja, tanto no produtor como no receptor, sentidos são produzidos, e ambos

realizam o ato de significar por meio de suas condições sociais e históricas, além da

ideológica, que iremos conceber por meio do conceito de formação discursiva.

Entendemos que, ao trazer a análise de discurso como principal referencial teórico-

metodológico para a nossa pesquisa, estamos olhando para o jornalismo de forma a

problematiza-lo, não somente dentro de si próprio – com base nas teorias do jornalismo e seu

ethos –, mas diante de um contexto mais amplo. Mais especificamente, trata-se de uma

problematização do jornalismo e de suas lógicas de produção dentro da sociedade de

consumo. Pois, concordamos com a definição das pesquisadoras Márcia Benetti e Nilda

Jacks:

Não há jornalismo sem aquilo que costumamos compreender como sendo

“exterior”: os fatos, as relações de poder, os contextos sociais, as decisões

políticas, os interesses econômicos, as crenças religiosas, as concepções

estéticas. Tudo isso, que por uma questão de recorte temos por hábito deixar

“fora” do discurso, na verdade o constitui. O discurso é o resultado de tudo

que lhe parece externo. Em um movimento complexo, o jornalismo mostra e

esconde o que convém a seus enunciadores por meio de estratégias

discursivas. Cabe, então, à teoria do jornalismo construir um quadro

reflexivo que permita evidenciar este movimento. (2001, p. 12)

Benetti (2007) ainda nos mostra como e em quais pontos a a ADF pode ser útil à

análise e problematização do jornalismo

Consideramos que a AD é especialmente produtiva para dois tipos de estudo

no jornalismo: mapeamento das vozes e identificação dos sentidos. Esses

dois tipos de pesquisa estão em intima relação, mas podem ser

desenvolvidos em momentos distintos e exigem procedimentos específicos

(p. 107)

Assim, nossa ideia será localizar, a partir da ADF, e sob um ponto de vista crítico os

temas Comunicação, Consumo, Discurso jornalístico, Ideologia.

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A análise do discurso deve desfazer a ilusão idealista de que o homem é

senhor absoluto de seu discurso. Ele é antes servo da palavra, uma vez que

temas figuras, valores, juízos etc., provêm das visões de mundo existentes na

formação social (FIORIN, 2007, p. 78)

No próximo item, Relações entre discurso e jornalismo, conceituaremos o jornalismo,

inserindo-o dentro de uma ambientação da Comunicação e do Consumo em uma tentativa de

buscar a problematização citada acima.

2.2. Relações entre discurso e jornalismo

Vigilantes do momento

Senhores do bom jargão

Façam já soprar o vento

Seja em qualquer direção

Que o jornal é a matéria

E o espírito do mundo

Coisa fútil, coisa séria

Todo escrever vagabundo

Um jornal é tão diverso

Um jornal é tão diverso

Tudo impresso, tudo expresso

Tudo pelo sucesso

É tão diverso um jornal

Não importa a má notícia

Mas vale a boa versão

Na nota um toque de astúcia

E faça-se a opinião

De outra feita, quando seja

Desejo editorial

Faça-se sujo o que é limpo

Troque-se o bem pelo mal

O jornal (Gilberto Gil)

2.2.1. Discurso jornalístico: Construtor de realidades

Para iniciar este item, vamos tomar como referência a canção O jornal, de Gilberto

Gil. Na letra, o compositor baiano faz uma referência ao jornal e à atividade jornalística, com

versos que serão úteis para ajudar refletirmos e explicarmos sobre o discurso jornalístico.

Ainda que esses versos retratem o jornalismo a partir do senso comum.

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Independentemente se são verdades, meia-verdades ou mentiras, olharemos para a

letra da música como uma construção da atividade jornalística, a partir do local de fala do

compositor. Assim, inspirados por ela, neste item, iremos discorrer sobre o discurso

jornalístico, conceito que será concatenado a Teorias do Jornalismo, Teorias do Discurso e

Análise de Discurso de Linha Francesa (ADF), ambas explicitadas no item anterior. Para

tanto, dialogaremos com diversos autores que têm no jornalismo o seu objeto de estudo como

o jornalista e doutor em sociologia, Nelson Traquina; e os professores e pesquisadores da área

da comunicação Cristina Ponte, Muniz Sodré, José Marques de Melo, dentre outros.

Percorreremos o seguinte caminho: a explicitação dos conceitos das Teorias do

Jornalismo – Agenda setting, Fato, Valor Notícia, Gatekeeper, Newsmaker e Teoria

Interacionista –, passando pelo Discurso Jornalístico, com base no que já falamos no item

anterior; e, por fim, classificaremos os Gêneros Jornalísticos, descrevendo seus formatos mais

usuais, para a compreensão de como trabalharemos nossos Corpora.

Acreditamos a pertinência deste percurso, pois, com a abrangência teórica e

contextual da ADF será possível compreendermos a importância de se relacionar o jornalismo

ao social, ou seja, em meio à sociedade de consumo ou a sociedade urbana e industrial, e

democrática, visão em acordo com o colocado pela pesquisadora Cremilda Medina (1988):

“Não é mais possível discorrer sobre a mensagem jornalística como um dado isolado da

realidade” (p. 16).

Consideramos que esse pensar sobre a mensagem jornalística integrada à sociedade,

possa ser justificado a partir do Agenda Setting ou Teoria da Agenda, na qual, o jornalismo é

uma das práticas da comunicação de massa que realiza o agendamento de assuntos na

sociedade.

Essa hipótese defende que os meios de comunicação de massa não

pretendem persuadir, mas apresentam ao público uma lista do que é

necessário ter uma opinião e discutir. A Teoria da Agenda demonstra que a

compreensão que as pessoas têm de grande parte da realidade social é

fornecida predominantemente pelos meios de comunicação de massa. A

imprensa não diz às pessoas o que elas devem pensar, mas sobre que temas

devem pensar, o que também mostra uma forma de controle (PESSOA

TEMER e ALBIERY NERY, 2009, p. 72 e 73)

É na sociedade industrial e urbana, a partir de meados do século XIX, com o

crescimento das cidades que as pessoas passam a ter melhor poder aquisitivo e a demandar

informações usando o jornalismo como um meio para consumi-las em forma de notícias e a

suprir essa demanda (TRAQUINA, 2005). As categorias dos assuntos que lhes interessavam

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eram variadas. Elas desejavam se informar sobre a cidade, o cotidiano urbano, a política, a

economia, etc. É diante dessa prática de consumo de informações, em formato de notícias,

que queremos problematizar a prática jornalística por meio da análise do discurso jornalístico.

Essa época também marca um período de novos objetivos para a atividade jornalística,

segundo o mesmo autor, a intenção a partir daquele momento era:

[...] fornecer informação e não propaganda. Este novo paradigma será a luz

que viu nascer valores que ainda hoje são identificados com o jornalismo: a

notícia, a procura da verdade, a independência, a objetividade, e uma noção

de serviço ao público – uma constelação de ideias que dá forma a uma nova

visão do “polo intelectual” do campo jornalístico. (TRAQUINA, 2005, p.

34)

A sociedade consome informação na forma de notícias dentro dos discursos

jornalísticos, essa é máxima que trabalharemos neste trecho da dissertação. Ao

problematizarmos o consumo jornalístico temos de considerar uma premissa. Em todo ato de

consumo deve haver uma confiança do consumidor e o bem consumido, o primeiro

entendendo que o segundo é de fato o seu deu desejo, sem margem a descrédito de qualquer

natureza. Em outras palavras, um dos principais fatores que propiciam esse consumo de

informações é o acordo tácito entre o jornalista e o público, a chamada credibilidade.

(SOUSA, 2004; TRAQUINA, 2005). Ou seja, deve haver uma relação de confiança do

leitor/consumidor para com o jornalista, produtor que torna a informação, concedida por esse

segundo, fidedigna.

Uma informação ou fato ao serem manuseados pelo jornalista tornam-se a notícia, que

possui características específicas que as diferem de uma informação ou fato comuns. Como

primeira característica, podemos citar a expectativa. Só uma informação esperada por se uma

notícia, como quando alguém chega e fala: “Tenho uma notícia para lhe dar”, certamente o

entendimento do interlocutor, ao ouvir essa expressão, é que o que será contado possui

qualidades que promovem o suspense do anúncio. Quanto a esse aspecto, a notícia em uma

comunicação interpessoal não é diferente do que é a notícia no jornalismo. Mas, então, a

notícia é só algo que gera expectativa? Não, somente.

Para Sodré (2012), a notícia é um fato que possui alguns diferenciais determinados

pelo Valor-Notícia, esse componente as diferem do simples fato em si. Dentre outras

características, a notícia deve possuir relevância não somente no âmbito privado, mas também

no público. São considerados valores-notícia: atualidade, proximidade, impacto, interesse

público, relevância, intensidade, frequência, amplitude, clareza, consonância/conformidade,

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imprevisibilidade, continuidade, composição, referência a nações de elite, menção a pessoas

da elite e pessoas, e negativismo. Sodré (2012) salienta ainda que esses valores não são fixos.

Na prática, os valores que sustentam a noticiabilidade de um fato – ou seja, a

condição de possibilidade para que este venha a transformar-se em notícia –

podem variar segundo o lugar do fato, do nível de reconhecimento social das

pessoas envolvidas, das circunstâncias da ocorrência, da sua importância

pública e da categoria editorial do meio de comunicação (p. 21 e 22)

Gil, em sua composição, faz uma menção a essa ideia com as expressões Coisa fútil,

coisa séria. Uma possível intenção dele é demonstrar que na atividade jornalística o fato ainda

que fútil possa ser compreendido como sério e que tenha uma noticiabilidade que sustente, ou

seja, os Valores-Notícia.

Agora, se compreendidos os Valores-Notícia como conjunto de regras, que regem a

produção jornalística, como aplicá-los? Ou melhor, quem pode aplicar? Ou, ao menos, fazer

com que se respeite esse conjunto de regras? Na produção jornalística, para se chegar à

notícia, um agente é determinante para que se componha o valor-notícia, o Gatekeeper:

O conceito de gatekeeper foi elaborado por Kurt Lewin em 1947, ao detectar

a existência de “zonas” na produção de notícia que podem funcionar como

“cancelas”, nas quais o jornalista atua como porteiro, deixando, ou não

“passar” a informação e dessa forma, determinando se ela será ou não

publicada. Essas zonas são controladas pelos gatekeepers, indivíduos ou

grupo que tem o poder de decidir o que é matéria de interesse e o que não é.

Ao filtrar o que vai ser noticiado, o gatekeeper tem o poder de dirigir os

receptores da mensagem para os temas de seu interesse ou do interesse

daqueles para quem trabalha. (PESSOA TEMER e ALBIERY NERY, 2009,

p. 65)

Assim como um porteiro que concede ou não a passagem de uma pessoa, o gatekeeper

tem o poder de decisão, e esta não é uniforme ou isento, fatores influenciam as escolhas.

Considerem, a partir do colocado acima, o quanto a decisão pela publicação ou não de um

determinado conteúdo jornalístico aos seus receptores pode ser direcionada. Traquina (2005)

compreende esse processo de decisão subjetivo e arbitrário.

Nessa teoria, o processo de produção da informação é concebido como uma

série de escolhas onde o fluxo de notícias tem de passar por diversos gates,

isto é, “portões” que não são mais do que áreas de decisão em relação às

quais o jornalista, isto é o gatekeeper, tem de decidir se vai escolher essa

notícia ou não. (p. 150)

Assim, com o entendimento do que é o Gatekeeper e com o deslizamento de conceitos

que apresentamos no capítulo anterior – sujeito-enunciador, condições de produção do

discurso, formações discursivas e ideológicas, entre outros –, entendemos que o Gatekeeper,

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não é um indivíduo, mas um sujeito, que interpelado pela ideologia, realiza escolhas que são

determinantes para o produto final que é o texto jornalístico.

Ainda trazemos o conceito de Newsmaking, que aborda o jornalismo não como uma

realidade, mas o reflexo dela, ou seja, a construção social de uma realidade específica, dada a

rotina industrial, a polifonia discursiva, etc., como reflete Sodré (2012).

Da cultura profissional dos jornalistas, da organização geral do trabalho e

dos processos produtivos, portanto, de uma rotina industrial atravessada por

uma polifonia discursiva, surgem os relatos de fatos significativos (os

“acontecimentos”) a que se dá o nome de notícias. Em todo esse processo, o

jornalista é apenas parcialmente autônomo, já que tem de obedecer às regras

de uma planejamento produtivo, assim como a uma concepção coletiva do

acontecimento, que em parte o ultrapassa, fazendo com que a seleção das

ocorrências informe tanto sobre o campo profissional do jornalismo quanto

sobre o meio social a que se refere a notícia. (p. 26)

Mais uma vez, trazemos para a discussão a questão do sujeito. Em todas as etapas do

processo de produção jornalística (Pauta, Apuração, Redação e Edição), todas as decisões de

seleção ocorrem por que existem sujeitos que vão operar fato ou informação em estado bruto

de forma a transforma-los em notícia. As pesquisadoras Marcia Benetti e Nilda Jacks colocam

que a expectativa do público ainda é uma “fotografia da realidade”, ainda que sejam os

sujeitos sejam responsáveis por este manuseio.

Sabemos que o jornalismo é uma narração do real mediada por sujeitos (no

exercício de suas subjetividades) e que as escolhas se dão da pauta à edição,

passando pela apuração, pela seleção das fontes e pela hierarquização das

informações. Tendo consciência desse processo ou não, o leitor ainda assim

busca no jornalismo uma porta para o real. (BENETTI e JACKS, 2001, p. 7)

Entretanto, assim como na fotografia, há um recorte, e todo relato jornalístico é um

recorte com feito sob o ponto de vista do profissional. Como explicita Gilberto Gil, em nosso

exemplo inicial. ‘Não importa a má notícia, Mas vale a boa versão’.

Além das teorias citadas acima, faz sentido pensarmos na Teoria Interacionista,

quando estudamos os discursos jornalísticos. Essa, segundo Traquina (2005), se baseia em

uma interação social dentro de uma “tribo” (campo jornalístico), na troca de ideias entre os

que pertencem a esse campo, entre si e com a sociedade, e na rejeição do método

instrumentalista, para a produção da notícia, fazendo do jornalista observador ativo na

construção desse recorte de realidade.

Rejeitando a teoria do espelho e criticando o "empiricismo ingênuo” dos

jornalistas, a teoria interacionista defende que os jornalista não são simples

observadores passivos mas participantes ativos na construção da realidade.

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As notícias devem ser encaradas como o resultado de um processo de

interação social onde a natureza da realidade é um das condições, mas só

uma, que ajuda a moldar as notícias. (p. 204)

Traquina (idem) continua, dizendo que as notícias refletem a “realidade”, os aspectos

organizacionais manifestos no acontecimento; os constrangimentos organizacionais, que

poderão incluir a intervenção direta do(s) proprietário(s); as narrativas que governam o que os

jornalistas escrevem; as rotinas que orientam o trabalho e que condicionam toda a atividade

jornalística; os valores-notícias dos jornalistas; e as identidades das fontes de informação com

quem falam.

Resolvemos considerar, a teoria interacionista, pois a compreendemos que em uma

análise de discurso jornalístico, diversos fatores são influentes dentro do processo de

produção jornalística. “Para a teoria interacionista, o mundo social e político não é uma

realidade predeterminada e “dura” que os jornalistas “refletem”: a atividade jornalística é,

para estes teóricos, bem mais complexa que a ideologia jornalística sugere”. (TRAQUINA,

2005, p. 204)

Assim, o produto final do trabalho do jornalista, é atravessado por ideologia, é feito

em um determinado contexto e produz sentidos, ou seja, é uma atividade intelectual, criativa,

periódica, que inventa novas palavras e que constrói o mundo em notícias.

Os jornalistas são participantes ativos na definição e na construção das

notícias, e, por consequência, na construção da realidade. Há alguns

momentos, ao nível individual, durante a realização de uma reportagem ou

na redação da notícia, quando é decidido quem entrevistar ou que palavras

serão utilizadas para escrever a matéria, de mais poder consoante a sua

posição na hierarquia da empresa, e coletivamente como os profissionais de

um campo de mediação que adquiriu cada vez mais influência com a

explosão midiática, tornando evidente que os jornalistas exercem poder.

(TRAQUINA, 2005, p. 26)

Entendermos que explícitas esses conceitos e com base na teoria interacionista,

conseguiremos trabalhar os discursos jornalísticos, sempre com a premissa exposta por

Marques de Melo (1985): “Recusamos, portanto, a idéia da “objetividade” jornalística naquela

acepção de neutralidade, imparcialidade, assepsia política que as fábricas norte-americanas de

notícias quiseram impor a todo mundo”. (MELO, 1985, p. 57).

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2.2.2. Discurso jornalístico: o jornalês

No dia a dia, é comum atribuirmos o sufixo “ês” para designar um jeito específico de

falar de um determinado grupo, campo ou profissão, por exemplo, o famoso “economiquês”

usado para ironizar o jargão dos economistas. Traquina (2008), com bom humor, utiliza esse

procedimento para tratar a prática discursiva do jornalista: o “jornalês”, o autor explica: “Uma

das características principais desta fala, desta escrita, é a sua qualidade de ser compreensível.

Os jornalistas precisam comunicar através das fronteiras de classe, étnicas, políticas e sociais

existentes numa sociedade.” (p. 46)

Mas qual seriam as especificidades dos discursos jornalísticos? Charaudeau, (1997

apud Ponte, 2005) diferencia o discurso jornalístico ou noticioso de outros discursos

comunicacionais, como o propagandístico e o pedagógico, com base nas diferenças das suas

condições enunciativas. Quanto ao publicitário em relação a verdade, esta compreendida

sempre no que ocorreu e não na promessa de verdade expressada na propaganda. E, em

relação ao pedagógico, pois este se baseia na demonstração lógica, muito mais que o

jornalismo.

Explorando a especificidade do discurso informativo, incluindo o

jornalístico, o investigador francês afirma então que esse discurso

compreende uma duplo processo de construção do sentido: é um processo de

transformação e de transacção que comanda a transformação.” (PONTE,

2005, p. 109)

Diante desse quadro de transformação, Ponte define o discurso jornalístico da seguinte

maneira:

Charaudeau considera que pelo processo transformacional um “mundo pré-

significante” se torna uma “mundo com significado”. Tal ocorre pela

estruturação de categorias de identificação e de qualificação dos

intervenientes, pela caracterização e relato das acções em que estão

envolvidos e pela apresentação de motivos dessas acções. Num triplo

movimento entre descrever, narrar e explicar. Por sua vez, o processo de

transação atribui um significado psico-social a este processo de

transformação. Quem formula o discurso tem conta os parâmetros

relacionais para com o auditório: a sua identidade e os seus conhecimentos, o

efeito de influência que pretende, o tipo de relação e de regulação em que

operam. (PONTE, 2005, p. 109)

Falarmos, então, sobre o discurso jornalístico e suas características, nos leva, a pensar

em suas condições de produção, no campo jornalístico algumas forças atuam dentro das

dinâmicas profissionais. Polos regem a atividade do jornalista, conceito proposto pelo

sociólogo francês Pierre Bourdieu, em sua obra Sobre a televisão (1997). Traquina

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desenvolve esse conceito. Segundo o autor português, o campo jornalístico é dominado, desde

o século XIX, por dois polos o econômico e o ideológico. O qual o autor faz uma analogia o

campo magnético:

Imaginem, por um momento, que o campo é um campo magnético com dois

polos. O polo positivo é o “polo ideológico” em que a ideologia profissional

que se tem desenvolvido ao longo do tempo define o jornalismo como um

serviço público que fornece aos cidadãos com a informação de que precisam

para votar e participar na democracia e age como guardião que defende os

cidadãos dos eventuais abusos de poder. No entanto, tal como os jornalistas

desenvolveram a sua ideologia profissional em consonância com a teoria

democrática e inspirados por ela, concomitantemente, mesmo desde antes do

século XIX, o jornalismo tem sido um negócio e as notícias uma mercadoria

que tem alimentado o desenvolvimento de companhias altamente lucrativas.

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu os dois polos do campo jornalístico

contemporâneo – o polo intelectual e o polo econômico – tornaram-se

dominantes no jornalismo ao longo do século XIX, diminuindo a

importância do “polo político”. (TRAQUINA, 2005, p. 27)

Essa polarização é importante para quando realizarmos a análise dos discursos

jornalísticos. Durante esse momento de análise, devemos ter em mente essa condição de dois

polos exercendo influência sobre o fazer jornalismo. Ressaltamos que nossa escolha teórica

pela Análise de Discurso de Linha Francesa é justamente para poder pensar o jornalismo

como fruto de uma interação do profissional com o seu campo e com a sociedade. Assim

conseguiremos ter as bases teóricas para pensar como um texto significa ou como é a sua

produção de sentidos, como aponta Orlandi (2009).

Diferentemente da análise de conteúdo, a Análise de Discurso considera que

a linguagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o

texto para encontrar um sentido do outro lado. A questão que ela coloca é:

como este texto significa? Há aí um deslocamento, já prenunciado pelos

formalistas russos, onde a questão a ser respondida não é o “o que”, mas o

“como”. (p. 17 e 18)

Outra motivação da escolha é o entendimento que o jornalista é um sujeito que escreve

para outros sujeitos, esse fato vai além de uma simples análise das palavras do texto

jornalística, mas do todo em si. Ponte (2005) sintetiza:

É a linguagem que permite cristalizar e estabilizar a subjectividade. Dotada

de uma facticidade externa ao sujeito, exerce coerção sobre este e força-o a

entrar nos seus padrões. Por outro lado, transcende a realidade da vida

quotidiana e pode referir-se a experiências de outras realidades, de áreas

finitas de significação, construindo uma pluralidade de sistemas de

representação simbólica e fazendo-os retornar a essa realidade quotidiana.

(p. 98)

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Logo o discurso jornalístico é um local onde a subjetividade é cristalizada e

estabilizada. A professora e pesquisadora Márcia Benneti (2007) também defende a Análise

de Discurso, em sua visão como uma tentativa de compreensão do produto jornalístico,

especialmente no que tange a exposição da diversidade social, visto que, considera o texto

jornalístico como fruto de uma pluralidade enunciativa:

Entre as grandes problematizações a serem feitas sobre o jornalismo está a

relação entre sua natureza pública e a exigência de que seja um lugar de

circulação de diferentes saberes sobre os fatos e o mundo. Assim, apenas a

pluralidade de perspectivas de enunciação pode configurar o jornalismo

como um campo plural e representativo da diversidade social. Muitos

locutores não significam, necessariamente, muitos enunciadores. Por trás de

aparentes polifonias, muitas vezes, escondem-se textos em essência

monofônicos. Revelar este funcionamento discursivo é uma das

contribuições que a Análise de Discurso pode oferecer aos estudos de

jornalismo. (p. 120)

Sobre a diversidade enunciativa, a autora complementa, justificando do ponto vista

técnico da análise, considerando sua identificação necessária para o entendimento das

condições de produção e propondo uma metodologia para a análise.

Quem estuda as vozes do discurso jornalístico sabe que é um tipo de

pesquisa de grande complexidade, pois exige muito mais do que meramente

identificar “quem fala”. Mapear os enunciadores requer a incorporação de

conceitos fundantes da Análise de Discurso, associados à compreensão do

jornalismo como um modo de conhecimento que resulta das condições de

produção ou existência aqui já citadas. (BENETTI, 2007, p. 120)

Márcia Benetti em parceria com a também professora e pesquisadora, Nilda Jacks,

apontam ainda as características da produção do texto jornalístico, coincidem com as

produções dos discursos, dados os conceitos de antecipação e esquecimento, citados no item

1.1 desta dissertação. No primeiro caso, todo jornalista, antes de escrever se projeta no leitor.

Claro que considerando o que já explicamos, o jornalista leva em consideração seu jeito de

ver o mundo, as interferências organizacionais, a polaridade, seus calores, etc.

O jornalista fala tendo como horizonte um leitor de sua fala. Pesquisas de

opinião procuram enquadrar esse leitor em certas definições normalmente,

referentes às condições socioeconômicas e culturais. São as formações

imaginárias que possibilitam a diferenciação de linguagens e estilos entre os

veículos. O jornalista tem sempre em mente, mesmo que de modo

internalizado ou intuitivo, o seu “público leitor”. Pensa saber o que este

leitor quer saber e até onde vai o seu interesse. Fala e escreve para um leitor

virtual. (BENETTI e JACKS, 2001, p. 6)

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E em segundo o esquecimento enunciativo, ao fazer as escolhas de umas e não de

outras palavras e pensando que são início do discurso, quando na realidade esse já faz parte de

suas fontes:

No jornalismo, esse apagamento pode ser identificado em muitos momentos,

especialmente na relação com as fontes da informação. É comum que o

jornalista se utilize não só da visão sobre a realidade fornecida pelas fontes,

mas também de suas expressões. Em muitos momentos, assume as

perspectivas de enunciação de outros pensando serem as suas. No momento

em que produz o texto, considera-se o dono deste discurso, seu autor.

(BENETTI e JACKS, 2001)

Assim, a produção do discurso jornalístico proposto pelas autoras acima, é, de certo

modo congruente, com o de construção da notícia, do ponto de vista discursivo, mencionado

por Ponte (2005), que afirma ser o jornalismo como local de seleção e construção de

conhecimento.

Neste contexto, não podemos deixar de situar o jornalismo como lugar de

selecção e de construção desse acervo de conhecimentos, entre as escolhas

do que é dito e do que é silenciado, de quem participa activamente na

definição do conhecimento e de quem é ausentado desse processo. Interessa

saber também a percepção dos esquemas tipificadores para circulação de

conhecimentos, de que formas o discurso jornalístico se articula para

produzir uma interpretação semanticamente coerente. (p. 99)

No primeiro item falamos em desconstrução do texto para realizarmos a análise do

discurso jornalístico. Logo considerando as condições de produção, o modus operandi de

construção da notícia por parte do jornalista, podemos chegar a esta análise. Benetti e Jacks

(2009) a metodologia de análise da seguinte maneira:

É a perspectiva de enunciação, portanto, que dá o tom do discurso

jornalístico. O analista de discurso, partindo da materialidade do discurso,

identifica as formações discursivas, mapeando em seguida as suas

respectivas formações ideológicas para então, a partir destas, chegar aos

enunciadores aqueles que realmente definem o discurso. É com este

movimento, de pesquisa de profundidade e sempre organizada em torno de

elementos que o próprio texto mostra, que a Análise do Discurso pode

mostrar o que no jornalismo habitualmente permanece oculto: quem fala e a

partir de que posição ideológica. (BENETTI e JACKS, 2001, p. 9)

Dada a metodologia, a partir do conhecimento dos enunciadores, endossamos as

palavras de Ponte (2005), sobre a necessidade de se analisar os discursos, mediante a

capacidade de construção de realidade que os jornalistas possuem. Essa é a nossa última

justificativa por usar a Análise de discurso, a de que a construção de realidade propiciada pelo

jornalista é, assim como todos os discursos, carregada pela ideologia:

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Ao considerarmos a linguagem dos media noticiosos como parte integrante dessa

institucionalização da sociedade como realidade objectiva, estamos então a afirmar a

responsabilidade pública e social do jornalismo muito para além da oferta diária de

“notícias” aos seus leitores. Esse menu noticioso é carregado de sentido ideológico, de

que essas são as matérias que “importa saber” e que as formas como se apresentam

são as “naturais e certas” (p. 100)

2.2.3. Gêneros jornalísticos

Pelo exposto anteriormente, já sabemos que os discursos jornalísticos se materializam

em textos, e que esses são regidos por regras, e, mais importante, por contextos e ideologias

que condicionam as decisões dos produtores desses conteúdos informacionais e suas

respectivas construções de mundo. No entanto, essas concretizações textuais não se

constituem sempre as mesmas, uniformes em forma e em como informam. Os textos

respeitam alguns gêneros que os diferencia entre si. Em nosso exemplo introdutório, Gil cita

alguns deles como Editorial, Opinião, Notícia.

Faremos uma explanação dos gêneros jornalísticos do Brasil, que utilizaremos como

referência teórica neste trabalho, conforme a notação colocada pelo professor José Marque de

Melo (2006) e exposta pelo pesquisador Lailton Alves da Costa (2010), a partir dessa,

teremos condições para analisar o discurso em textos de nossos corpora, que apresentaremos

no terceiro capítulo desta dissertação.

Marques de Melo nos apresenta os gêneros divididos da seguinte maneira: Informativo

(Nota, Notícia, Reportagem e Entrevista); Opinativo (Artigo, Caricatura, Coluna, Crônica e

Editorial); Interpretativo (Cronologia, Dossiê e Perfil) e Diversional (História de Interessa

Humano e a História Colorida, Análise, Memória e Texto-Legenda). O pesquisador e

professor de jornalismo Francisco de Assis (2010) apresenta como se deu a formação desses

gêneros:

Essa noção dos gêneros espelha questões históricas relacionadas ao

jornalismo. Partindo de perspectiva funcionalista, como insinuado há pouco,

a proposta prevê a vigência de cinco classes na imprensa brasileira, sendo

duas hegemônicas – gêneros informativo e opinativo, que emergiram nos

séculos XVII e XIX – e três complementares – gêneros interpretativo,

diversional e utilitário, característicos do século XX (Marques de Melo,

2006b). É, então, sobre esse universo que esta reflexão procura se debruçar,

deixando de lado aquilo que se entende por formato (notícia, nota,

reportagem, artigo, crônica, etc.)

Ademais, também é necessário deixar claro que essas categorias buscam tão-

somente sinalizar a principal finalidade dos conteúdos jornalísticos, uma vez

que as fronteiras entre informação, opinião, interpretação, diversão e serviço

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não são extremamente rígidas, a ponto de que um gênero possa ser

considerado puro. (p. 17)

Concordamos com o aspecto colocado por Assis, sobre a linha tênue fronteiriça entre

os gêneros, por isso entendemos que em nossa análise devemos levar em consideração o texto

jornalístico, fruto de um discurso e não somente um ou outro gênero. Também concordamos

com o autor, quando este aponta para a hegemonia de dois gêneros (Informativo e Opinativo).

Desta forma, esses dois gêneros farão a composição de nossos corpora.

O gênero Informativo corresponde à descrição dos fatos, para que assim o leitor saiba

o que está acontecendo: “Corresponde, na percepção de Marques de Melo (2003: 63), à

articulação do jornalismo em função do interesse por “saber o que passa”, cabendo ao gênero

a função exclusiva de descrever os fatos.” (ASSIS, 2010, p. 18)

Costa (2010, p. 55) apresenta o gênero Informativo subdividido nos seguintes

formatos. A Nota é um relato do acontecimento, quando esse se encontra em processo de

configuração; a Notícia é um relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social,

respeita às perguntas do lide (O que? Quem? Quando? Como? Onde? e Por que?) é narrada

em Pirâmide Invertida (informações de maior relevância são colocadas em primeiro plano); já

a Reportagem é relato ampliado sobre um fato que produziu impacto no organismo social. O

formato realiza o aprofundamento dos fatos de interesse público que exigem descrições do

repórter sobre o “modo”, o “lugar” e “tempo”, além da captação das versões dos “agentes”;

por fim, temos a Entrevista que é um relato que privilegia a versão de um ou mais

protagonistas sobre os acontecimentos. Concede voz “voz” aos “agentes”, fazendo com que o

repórter seja o mediador e interprete para o “receptor”.

Já o gênero Opinativo “diferentemente do jornalismo informativo – caracterizado pela

objetividade [...] são fortemente relacionados a expressões subjetivas.” (ASSIS, 2010, p. 21)

Costa (2010, p. 64) descreve que o gênero se configura da seguinte maneira: o

Editorial expressa a opinião oficial da empresa diante dos fatos de maior repercussão no

momento; o Artigo é uma matéria jornalística por meio da qual jornalistas e cidadãos

desenvolvem ideias e apresentam opiniões. Nele, os julgamentos provisórios, pois é quando

os fatos estão se configurando; a Crônica é um formato genuinamente brasileiro, e se trata de

um relato poético do real, que gira permanentemente em torno da atualidade, captando com

argúcia e sensibilidade o dinamismo da notícia que permeia toda a produção jornalística; por

fim, temos as Cartas que são espaços dedicados para que os leitores expressem seus pontos de

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vista, suas reivindicações, sua emoção, rompendo assim com a fronteira entre produtor e

consumidor (leitor e editor).

Costa (2010) ainda comenta esses dois gêneros explorando a ideia que a produção é

condicionada por variáveis, presentes nos dois gêneros.

No jornalismo informativo, o relato terá sua estrutura dependente de

variáveis externas: os acontecimentos e a relação estabelecida entre o

jornalista e os protagonistas do acontecimento. No opinativo, a estrutura

dependeria do controle, pela instituição, da autoria e angulagem (tempo e

espaço) de narração. Por esses critérios, resultaria então que o jornalismo

informativo comportaria os formatos nota, notícia, reportagem e entrevista.

Nos formatos opinativos estão o editorial, o comentário, o artigo, a resenha,

a coluna, a crônica, a caricatura e a carta. (p. 45)

Além do conhecimento dos gêneros, como condição da análise do discurso, também

consideramos estudar o fenômeno a ser analisado. Assim, no próximo capítulo falaremos

sobre a cidade e o morador em situação de rua. O pesquisador português, Jorge Pedro Sousa

(2004), justifica esse procedimento para o entendimento de fenômenos veiculados na

imprensa analisados:

Por isso, a análise do discurso, embora incida sobre o objeto delimitado

pelas hipóteses e perguntas de investigação (texto), deve atender ao contexto

do fenômeno estudado e às circunstâncias em que este ocorre. No campo

específico do jornalismo impresso, normalmente é relevante ter-se em

consideração os seguintes elementos de contexto: jornais e revistas que vão

ser analisados, circunstância do fenômeno que está a ser estudado e

conhecimento científico relevante para a interpretação dos dados recolhidos

durante a pesquisa. (p. 11)

Explicados os gêneros jornalísticos passemos no próximo item a falar de nossos dois

veículos que serão analisados: As revistas Ocas” e VEJA São Paulo.

2.3. Diferentes abordagens jornalísticas a partir do discurso: Ocas” e VEJA São Paulo

E neste dia então

Vai dar na primeira edição

Cena de sangue num bar

Da Avenida São João

Ronda (Paulo Vanzolini)

Em uma de suas mais famosas composições Ronda, de 1951, Paulo Vanzolini narra a

desilusão amorosa de uma mulher, em busca de seu homem amado na noite da São Paulo

boêmia daqueles anos. O final da história, como se pode notar, é trágico. Um homicídio

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motivado pela paixão ou apenas um ato de agressão? O desfecho não importa aqui, porém, a

frase “Vai dar na primeira edição” nos mostra algo muito mais interessante, sob o ponto de

vista dos estudos da comunicação: a importância do jornalismo na vida dos sujeitos e aponta

para o que falaremos nesta parte do capítulo, sobre as características dos veículos jornalísticos

que compõem nossos corpora de pesquisa.

A expressão “Vai dar” revela sobre o possível interesse público no incidente ocorrido

no bar que, a partir da enunciação, podemos compreendê-lo com relevância jornalística para

ser publicado como notícia na primeira edição dos jornais. Neste momento, vale a explicação.

Os jornais, nos anos 1950 ainda circulavam em várias edições diárias, daí o fato de o nome de

alguns deles fazer menção ao período do dia em que eram distribuídos como, Folha da

Manhã, Folha da Tarde, Folha da Noite, etc. Logo, o ethos da população era fortemente

influenciado pelo agendamento do jornalismo, pelas dinâmicas de produção jornalísticos e,

consequentemente, pelo consumo midiático da cidade a partir das notícias.

Também nos anos da década de 1950, a cidade de São Paulo se desenvolvia em

diversos âmbitos (como veremos mais adiantes nos capítulos que falamos da cidade) e

passava de pouco mais de 2 milhões de habitantes, com uma taxa de crescimento de 5,6% (a

maior do período medido, entre 1872 e 2010)6. Pela música, algumas características da cidade

se cristalizam em verso, como a noite, o jornalismo, a avenida São João e a violência urbana.

E assim temos a exata noção de como a produção midiática, no caso a ficcional, mas no

âmbito geral, a jornalística também, propiciam essa produção de sentidos da cidade.

Duas dessas características são destacadas para a nossa análise: a presença da

imprensa na grande cidade e os rituais de consumo midiático propiciados por ela.

Mas, por que a partir da leitura do trecho, podemos compreender a importância do

jornalismo para uma cidade? Seria ele um elemento fundamental para a vida dos cidadãos ou

uma mera exposição dos fatos? Podemos supor que sim pelos motivos citados e pelo que

aponta a pesquisadora Maria Helena Weber (2007), para quem o jornalismo trata de uma das

possíveis representações da cidade, no chamado espaço midiático. Para ela, no jornalismo a

cidade pode ser representada e, consequentemente, significada de diversas maneiras para cada

sujeito que o consome.

A partir da leitura de Weber e com base nas ideias da antropóloga Mary Douglas e do

economista Baron Isherwood em o Mundo das coisas, (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009) e

de Roger Silverstone em Por que estudar a mídia? (2005), podemos compreender que, por

6 Segundo o Histórico Demográfico do Município de São Paulo, disponível em

http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_brasil.php. Acesso em 1 de junho de 2013.

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meio do consumo midiático da cidade, coletivo e ritualizado, sentidos são produzidos das

mais diversas maneiras em seus leitores. Inclusive, podemos ir além e considerar que a noção

de ritual no consumo midiático se dá baseado em ritos temporais nos jornais, revistas e

demais periódicos (diário, semanais, mensais etc.). No jornalismo, a cada regime de

periodização que os veículos estão subordinados, teremos um tipo específico de produto

jornalístico, no qual textos, e consequentemente discursos serão formatados, veiculados e

consumidos conforme suas características. Assim, jornalista e leitor são essenciais para esse

ritual de consumo midiático. Como aponta a pesquisadora Cristina Ponte: “A actualidade não

visa um tempo particular, mas uma forma de co-presença do jornalista e do leitor-espectador,

perante qualquer coisa de novo”. (2005, p. 126)

Voltando a canção Ronda, nela a noção de ritual de consumo que se apresenta no

trecho “Vai dar na primeira edição”, versa sobre periodização das notícias em relação direta

com o significado jornalismo dentro na vida das pessoas, proporcionando-as esse ritual de

consumo, em especial como um agenciador dos acontecimentos da grande cidade, como em

nosso caso, um possível assassinato na avenida São João, um ponto de referência da noite

paulistana nos anos 1950, e que na atualidade sofre com a degradação do Centro.

Existem em São Paulo, diversos periódicos que dão visibilidade ou trazem

representações da cidade. Podemos considera-los como espaços de circulação de discursos

onde a produção, circulação e assimilação desses discursos, significam em quem os consome

– a partir das características de consumo ritualísticas de cada veículo . Como aponta o

linguista José Luiz Fiorin, “O homem aprende como ver o mundo pelos discursos que

assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em sua fala” (FIORIN, 2007, p.

35)

O jornalismo, enquanto uma prática de comunicação de massa proporciona –

referenciada por uma de suas máximas que é o valor-notícia (TRAQUINA, 2008) –,

visibilidade aos fatos e aos atores sociais. Atrelado a isso está o interesse público, que é o que

determina a notícia, e o jornalista, o profissional capaz de identificar o fato noticioso em uma

informação e transformá-lo em notícia. (PONTE, 2005)

No caso do jornalismo local, ou de cidades, como é comumente chamado, a cobertura

que é feita da cidade pode ser considerada uma de suas possíveis representações, assim como

é um mapa ou uma fotografia, por exemplo.

Ao converter a informação em notícia, o jornalista utiliza uma linguagem específica, a

jornalística (TRAQUINA, 2008). Nela, como explicado nos itens anteriores, por mais que

seja afirmada a imparcialidade ou objetividade, há o atravessamento de um discurso. Por esta

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razão, todo texto jornalístico, informativo ou opinativo, é a materialidade de um discurso

jornalístico.

2.3.1. Dois espaços para circulação de discursos jornalísticos

Nossos corpora serão formados a partir de dois veículos de circulação de discursos

jornalísticos na cidade de São Paulo em duas revistas: VEJA São Paulo e Ocas”. Em especial,

trabalharemos com textos que tematizam a população sem-teto.

Os veículos jornalísticos são um dos meios pelos quais os discursos circulam,

materializados em reportagens, artigos, notas, ou em quaisquer outros formatos. Assim, ao

analisarmos os discursos materializados nesses veículos estaremos em contato com diversas

representações da cidade , a partir dos sentidos produzidos.

Entendemos, então, que o morador de rua, enquanto objeto do interesse público ou

temas de fatos noticiosos, deve estar representado nesses veículos, porém indagamos. Como o

morador de rua está representado?

Para entender essa representação iremos analisar os discursos que têm como tema a

população em situação de rua em artigos, matérias e reportagens dessas duas publicações. A

primeira vista, as revistas são totalmente diferentes, mas vale a pena olha observá-las mais a

fundo para que possamos compreender a produção discursiva de cada uma.

Com base nos conceitos do pesquisador português Jorge Pedro Sousa em sua obra

Introdução à análise do Discurso Jornalístico Impressa – um guia para estudantes de

graduação (2004), iremos olhar para os veículos e caracterizá-los.

Enquanto VEJA São Paulo é um suplemento da revista Veja para a cidade de São

Paulo e região e se propõe a um modelo de jornalismo comercial, com fins lucrativos,

pertencente ao Grupo Abril, Ocas” (escrita assim, com aspas) se debruça em torno de um

jornalismo alternativo, e é pertencente a Organização Civil de Ação Social.

A revista VEJA São Paulo, também conhecida como Vejinha, faz a cobertura sobre a

cidade de São Paulo. Com periodicidade semanal, é distribuída na capital e em 111 cidades

num raio de 100 km. Foi publicada pela primeira vez em setembro de 1985 e hoje traz em

suas mais de 150 páginas (em média) a cobertura da cidade de São Paulo, com matérias que

relatam problemas, serviços, cultura, roteiros de consumo gastronômico ou cultural, dentre

outras abordagens. É um semanário, ou seja, traz em suas páginas um resumo dos assuntos da

semana, em matérias especiais sobre temas específicos. Não tem por intenção dar o fato

noticioso.

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No Kit de Mídia7 (material autopromocional de apresentação da publicação a possíveis

anunciantes) o produto editorial se coloca focado em três pilares: Dar um leque de opções

com o que há de melhor na cidade; Visitar os lugares com critério para evitar que o leitor

tenha decepções; e Mostrar as atrações da cidade de um jeito que nenhuma outra publicação

consegue. Segundo a editora Abril, a revista VEJA São Paulo possui:

Foco total nos consumidores que procuram as melhores atrações da sua

cidade. A revista de São Paulo. Além de contar o que acontece de mais

relevante na vida de São Paulo e com seus personagens, Vejinha tem o

compromisso de apresentar ao leitor, em reportagens e Roteiro da Semana,

as melhores opções em matéria de entretenimento, lazer, programas e

serviço.8

Uma das formas muito exploradas por Vejinha é o jornalismo de serviço que “[...] se

estrutura em forma de relato a partir de informações objetivas associadas e orientações

didáticas, esclarecimentos ou guia ao leitor sobre concursos, oportunidades e mudanças em

serviços públicos ou de interesse da comunidade.” (COSTA, 2010, p. 256). Além dele a

cobertura da cidade de São Paulo feita com reportagens sobre problemas urbanos, segurança,

mobilidade, moradia, cultura, qualidade de vida, entre outros.

Com tiragem de 298.871 exemplares, não pode ser vendida separadamente de Veja, ou

seja, todo consumidor de Veja, dentro do recorte geográfico citado acima, tem acesso à

Vejinha. Dessa tiragem, segundo dados oficiais de seu kit de mídia9, 250.319 são enviados

para assinantes e 48.552 para vendas avulsas (bancas de jornal ou quaisquer outros pontos de

venda).

Como se trata de um caderno voltado à prestação de serviço sua parte destina da a

anúncios, classificados e roteiros culturais tomam a maior parte da publicação, restando as

outras páginas para os discursos jornalísticos que serão nosso foco de interesse (reportagens,

entrevistas, notas, dentre outros). Segundo o mesmo Kit de Mídia, Vejinha é destinada ao

mesmo público da revista Veja, ou seja, 86% pertencem às classes A e B. Neste ponto vale o

entendimento que esses leitores ao consumir as notícias produzem um sentido específico

sobre a cidade, com influência dos contextos os quais estão inseridos. Este é o motivo

principal que achamos pertinente a inclusão de VEJA São Paulo para formação de nossos

7 Texto presente no Mídia Kit VJSP 04-03-13. Disponível em

http://www.publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/internet/informacoes-gerais/. Acesso em 5 de maio de 2013 8 Disponível em http://www.publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/revista/informacoes-gerais. Acesso em 26 de

maio de 2013. 9 (idem 7)

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corpora. Segundo dados são 748 mil leitores, sendo 52% mulheres e 69% adultos (entre 20 e

49 anos). O material ainda diz o seguinte:

VEJA São Paulo é uma revista que ama e defende a cidade. Nas reportagens,

são discutidas questões importantes como trânsito, saúde, educação e

segurança, assim como novidades ligadas as áreas de consumo, moda e

comportamento, além de retratar pessoas que fazem a diferença em vários

setores da capital. VEJA São Paulo atua como um grande GPS do lazer do

paulistano, identificando e avaliando o que há de melhor na metrópole na

gastronomia, arte e entretenimento.10

A revista é atualmente composta pelas seguintes seções fixas: VEJA São Paulo

Recomenda, A Opinião do Leitor, Vejasaopaulo.com, Seja o Crítico, #vejasp no Instagram,

Mistérios da Cidade, Memória, Terraço Paulistano, Paulistano Nota Dez, Esquina da Moda,

Bichos, As Boas Compras, Liquidações, Roteiro da Semana, e uma crônica, de Ivan Angelo

ou Matthew Shirts, localizada na última página.

Há ainda as editorias que variam conforme os assuntos da semana, denominadas a

partir do tema abordado na reportagem, como Cidade, Consumo, Comportamento, Comida,

Noite, Moda, Perfil, Turismo, Transporte, Trânsito, Shows, Drogas, Polícia, Solidariedade

entre outras. Geralmente são essas as sessões que nos despertam mais interesse, pois a maior

parte dos textos informativos estão publicados nessas seções da revista. Na época de nossa

pesquisa, entre 2005 e 2009, a revista já era organizada dessa forma.

O outro veículo a ser analisado é a Revista Ocas”. Trata-se de um Street Paper,

publicação jornalística na qual moradores de rua são responsáveis pela produção ou

distribuição, esses veículos buscam a ascensão social das pessoas que vivem em situação de

rua ou de vulnerabilidade social como definido na obra Ecos da Ocas”:

Os street papers foram propostos para as cidades com base em uma lógica

bastante simples: pode se tornar vendedora qualquer pessoa que esteja

dormindo nas rua ou em albergues de acolhimento e queira da sair da

situação de vulnerabilidade por se esforço pessoal. (SEIDENBERG,

SENRA, et al., 2013)

Em Ocas”, os moradores de rua são treinados e fazem parte da distribuição da revista

na cidade de São Paulo. Dos R$4,00 do valor de capa, são repassados a eles R$3,00, essa á

uma forma que a Organização Não-governamental, OCAS(Organização Civil de Ação Social,

sem aspas e com todas as letras em maiúsculo) vislumbra para transformar realidades desses

moradores de rua. Em seu website há o seguinte texto. “A Ocas” possibilita que cada pessoas

10 Texto presente no Mídia Kit VJSP 04-03-13. Disponível em

http://www.publiabril.com.br/marcas/vejasaopaulo/internet/informacoes-gerais/. Acesso em 5 de maio de

2013

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seja o próprio agente da sua transformação”11

. Até a edição 77(mai/jun de 2011), o nome da

publicação era grafado com o slogan da publicação: Ocas” – Saindo das ruas. Após essa

edição, passou a ser grafado apenas como Ocas”

É integrante da Rede Internacional de Street Papers (do inglês International Network

of Street Papers – INSP), que reúne 122 publicações de 41 países, estas possuem 14 mil

vendedores e 6 milhões de leitores ao redor do globo.12

Na visão da pesquisadora Carolina

Cantarino (2005), iniciativas como Ocas” e os Street Papers promovem,

a possibilidade de um olhar único sobre o cotidiano das grandes cidades do

mundo. Veículos de comunicação, muitos dos quais pouco conhecidos, vêm

conferindo visibilidade a esse olhar singular, oferecendo também alternativas

de trabalho remunerado e de subsistência para os moradores de rua. (p. 6)

Com uma estratégia editorial voltada para a exclusão e o risco social, Ocas” publica

reportagens, entrevistas, crônicas e matérias frias, em geral, sem a pretensão de publicar o fato

noticioso o mais rápido quanto possível, ou seja, seu valor-notícia é diferente em relação a

VEJA São Paulo. Segundo informações internas, a tiragem de Ocas” é de 5 mil exemplares e

seu público-alvo são pessoas de 20 a 40 anos (universitários e com nível superior).

A cultura é o tema predominante em sua pauta. Dentro dela há seções específicas para

tratar a questão do morador de rua. Um desses casos é a seção Cabeça sem teto, na qual, os

moradores de rua apuram e escrevem as matérias. Ela é fruto da Oficina de Criação, atividade

em que jornalistas e fotógrafos orientam esse público na produção de conteúdo editorial. Em

nossa análise utilizaremos alguns exemplos de discursos jornalísticos dessa seção, a qual é

apresentada da seguinte maneira pela publicação:

A Oficina de criação Ocas” tem por missão dar voz aos seus integrantes

através construção de ideias, textos e atividades, visando promover a

cidadania, diminuir o preconceito, fortalecer a união do grupo e aprimorar o

canal de comunicação com os leitores da revista e com a sociedade13

Em geral, o Editorial de Ocas” sobre o tema traz uma questão sobre o morador de rua

a ser discutida, por conta disso, também será uma das fontes para o nosso corpus formador,

além, claro, das reportagens em geral. Para o pesquisador José Marques de Melo o Editorial é

um texto do gênero opinativo que expressa a opinião das instituições que mantém o veículo

(2006).

11 Disponível em http://www.ocas.org.br/sobre/ . Acesso em 1º de junho de 2013.

12 Dados obtidos no site International Network of Street Papers. http://www.street-papers.org/. Acesso em 24

de março de 2013. 13

Texto institucional publicado em todo rodapé da seção Cabeça sem teto

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Em Ocas” a edição é geralmente composta por seis seções (editorias), nas quais cada

uma aborda um tipo de assunto. São elas: Editorial, Cabeça sem teto, Capa, País, Carrossel,

Jazz e Cranianas. Há também seções que não são fixas e são publicadas esporadicamente,

como Foco, Delírios Urbanos e Mundo.

Para entendermos por que escolhemos Ocas” como um de nossos Corpus, segue

abaixo o texto institucional que explica a revista Ocas”.

Ocas” é publicada pela Organização Civil de Ação Social. A revista é uma

chance de mudança efetiva na vida das pessoas em situação de rua. A

interação decorrente da compra e da venda da publicação permite que os

vendedores estabeleçam contatos e deem novos e autônomos passos de

reintegração.

O objetivo da organização é fornecer instrumentos de resgate da autoestima

dos vendedores, criando mecanismos para que o indivíduo se torne seu

próprio agente de transformação, de forma que Ocas” seja um ponto de

passagem e não o destino definitivo.

Os vendedores compram a revista por 1 real e a vendem pelo preço de capa,

R$4,00. Todos têm idade mínima de 18 anos, recebem treinamento, assinam

um código de conduta e portam crachá.

Por favor, compre apenas de vendedores identificados.

Ocas” promove a responsabilidade social e publica seções dedicadas a

notícias nacionais e internacionais, comportamento, lançamentos artísticos e

intelectuais e ensaios. Além disso, a publicação reserva espaço para

expressão dos vendedores e aborda problemáticas relacionadas ao tema da

exclusão social. A revista é produzida por jornalistas e não depende de

grupos de comunicação ou está vinculada a interesses comerciais ou

políticos.

A Organização Civil de Ação Social é uma entidade da sociedade civil, sem

fins lucrativos, registrada sob CNPJ no. 04.847.090/0001-01. Toda receita é

reinvestida na melhoria da qualidade dos serviços prestados pela

organização.

Não arrecadamos doações nas ruas. Se abordado para esse fim, não

contribua.14

Uma das motivações para escolhermos Ocas” é por ela ter em sua missão ligada a

questão da rua, objeto o qual gostaríamos de ter a noção de como é a sua representação na

imprensa.

2.3.2. Diferentes, mas parecidas

VEJA São Paulo e Ocas”, as duas publicações que formam nossos corpora, foram

escolhidas por possuírem pontos coincidentes e outros conflitantes, quanto a sua práxis

jornalística.

14 Texto institucional da revista Ocas” encontrado na abertura de cada edição.

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Comecemos pelos coincidentes. Ambas são revistas, o que lhes confere algumas

características. Dentre as que mais nos interessa é que as revistas condicionam um consumo

específico do leitor, graças aos rituais de leitura que o consumo de uma revista exige:

periodicidade, distribuição, tempo de leitura etc.

Os dois veículos, em muitos momentos, abordam a cidade de São Paulo em sua

cobertura e, inevitavelmente o tema morador de rua está representado algumas vezes em

matérias das duas publicações.

Do ponto de vista editorial e comercial, as revistas possuem objetivos extremamente

opostos. Enquanto Ocas” é um veículo que serve como braço de uma iniciativa da sociedade

civil para transformação social da população em situação de rua, VEJA São Paulo tem

objetivos expressamente comerciais, com anunciantes, lucro, etc. No entanto, em muito de

suas matérias VEJA São Paulo possui um discurso específico para falar exclusivamente com o

seu público as já citadas classes A e B.

Esses dois veículos, enquanto suportes para materialização de discursos acerca da

cidade e, mais precisamente sobre a população diferente, o morador de rua, produzem

sentidos a população de rua, da forma mais variada possível.

Nossa intenção, assim, é realizarmos uma comparação desses discursos para

verificarmos quais procedimentos discursivos estão em prática em cada publicação, quais suas

interdiscursividade (ORLANDI, 2009) e em quais pontos eles concordam e discordam sobre

a situação de rua. Assim, teremos noção para entender sobre quais regimes estão os

moradores de rua, estão visíveis ou invisíveis.

Tomaremos como ponto de partida para a análise de nosso corpus o ano de 2005,

início do Projeto Nova Luz, que visa a reurbanização do Bairro da Luz, no Centro da Cidade

de São Paulo. Escolhemos esse marco inicial pela proximidade do tema sobre reurbanização

com a questão do morador de rua, assim, entendemos que discursivamente a partir da

instituição desse projeto o morador de rua passou a ter visibilidade nas publicações e na

sociedade.

O texto oficial do Projeto Nova Luz diz o seguinte.

Um bairro sustentável, dinâmico e diversificado, para morar, trabalhar e se

divertir. Um local onde as pessoas estarão cercadas por elementos históricos

e culturais, entretenimento, espaços abertos convidativos, passeios e parques.

Um bairro que oferece oportunidades de estudo e trabalho, é facilmente

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acessível de toda a cidade e tem mobilidade privilegiada para o pedestre e o

ciclista.15

A partir dessas caracterizações, podemos dizer que VEJA São Paulo é um veículo com

características predominantemente comerciais, nas quais sua parte editorial é associada a

discursos para o consumo, pois sua cobertura é voltada para o público que se identifica com

esses discursos.

Já Ocas” – por ser um veículo que tem não tem fins lucrativos, tendo toda receita

reinvestida na Organização –, ao contrário de VEJA São Paulo, não se associa a discursos

voltados para o consumo de produtos pelo público, mas para sua causa social.

Escolhemos esses dois veículos por entendermos que suas diferenças editoriais e

comercias lhes proporcionam formações discursivas distintas, seja pelos constrangimentos

organizacionais ou as linhas editorias, quando ambos abordam o tema morador de ruas.

Segundo Fiorin (2007) e Orlandi (2009), as formações discursivas tem a ver com as

ideologias nas quais os discursos são produzidos. Essas formações serão analisadas e

comparadas, com intenção de observar como a população sem teto está representada nas

matérias.

Embora estejam diferentes editorial e comercialmente. Entendemos que essa

comparação será produtiva, pois estamos pesquisando os discursos da revista impressa com

maior tiragem da cidade e de outra que tem o tema morador de rua não apenas como tema

essencial em suas páginas, mas como ator principal de sua causa. Talvez outros veículos não

nos trariam formações discursivas tão distintas. Essas diferenças justificam as nossas

escolhas. Assim temos o seguinte quadro comparativo:

Quadro 1: Características editoriais das revistas Ocas” e VEJA São Paulo

Ocas” VEJA São Paulo

Tiragem 5 mil exemplares 300 mil exemplares

Organização

institucional

Veículo da Organização Civil de

Ação Social – entidade civil sem

fins lucrativos – que tem como

objetivo mudar a vida de quem vive

nas ruas. É um Street Paper

produzido e distribuído por

moradores de ruas.

Parte integrante da Revista VEJA, é

propriedade da Ed. Abril. Objetivo é

trazer aos seus leitores consumidores o

“melhor da cidade”, o que acontece de

relevante na vida da cidade e de seus

personagens. Empresa jornalística com

fins lucrativos.

Tipo de Street Paper Revista Semanal e roteiro de consumo

15 Disponível em http://pt.scribd.com/doc/43674498/Projeto-Urbanistico-20101117-NovaLuz-PMSP-SMDU.

Acesso em 5de junho de 2013

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publicação

Distribuição Assinantes e vendas avulsas nas ruas Assinantes e vendas em bancas

Público-alvo 20 a 40 anos (universitários e

formados), sem classe social

definida

Classe A e B (20 a 49 anos)

Preço R$ 4,00 R$ 10,90 (junto com a revista Veja)

Periocidade Mensal e bimestral (após nov/2005) Semanal

Edições

pesquisadas

56 364

Nº de páginas 32 160 (aproximadamente)

Anunciantes Sim Sim

Tipo de papel Jornal Couché

Cores Três Colorida

Regime

trabalhista

dos

jornalistas

Voluntários CLT e Pessoa Jurídica

Local da

redação

(bairro,

cidade)

Jardins, São Paulo Pinheiros, São Paulo

Por fim, faremos um recorte referente aos gêneros jornalísticos conforme coloca

Marque de Melo (2006). Serão analisados textos compreendidos dentro dos seguintes

gêneros. Informativo (nota, notícia, reportagem e entrevista); Opinativo (artigo, caricatura,

coluna, crônica, editorial); Interpretativo (cronologia, dossiê e perfil) e Diversional (história

de interessa humano e a história colorida, análise, memória e texto-legenda). A partir dos

recortes: temático, temporal, geográfico e de gênero, faremos a seleção dos nossos corpora,

para que seja feita a análise a partir de um protocolo específico.

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3. A CIDADE DE SÃO PAULO E SUAS RELAÇÕES COM A COMUNICAÇÃO E O

CONSUMO

3.1. A cidade: uma perspectiva do consumo

São Paulo! Comoção de minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original!...

Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...

Luz e bruma... Forno e inverno morno...

Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...

Perfumes de Paris... Arys!

Bofetadas líricas no Trianon...

Algodoal!..

São Paulo! Comoção de minha vida...

Galicismo a berrar nos desertos da América!

Inspiração – Mário de Andrade

Pauliceia desvairada, escrita por Mário de Andrade em 1922, do ponto de vista estético apresenta,

uma abordagem moderna. Foi essa a forma que o poeta encontrou para falar de sua musa inspiradora, a cidade

de São Paulo. A metrópole cosmopolita, egocêntrica, heterogênea e com a sua burguesia cínica – segundo o

autor –, é expressa nesses versos, em contraposição da vida provinciana, sob um contexto de intensa

transformação social, com inovação formal, rompendo com escolas estéticas anteriores, usando e abusando da

linguagem cotidiana e do coloquialismo. As referências a Paris não são por acaso, são mostras da influência do

modernismo da capital francesa.

O poeta Mário de Andrade, na obra de linguagem simples, uma paisagem do cotidiano, das vivências,

percepções e sensações vindas da cidade de São Paulo que se modernizava lentamente naquela época, fruto da

incipiente industrialização e da maciça chegada dos imigrantes.

Já na década de 1920, a “pauliceia desvariada”, conforme o título da obra de Mario de Andrade,

parecia sintetizar o cenário heterogêneo tal como a metrópole contemporânea o faz. Hoje, segundo o IBGE16

, a

cidade de São Paulo possui 11.253.503 habitantes, conformando um fenômeno urbano que exprime a extrema

complexidade da vida moderna. Neste item, para entendermos esse fenômeno, antes, porém olharemos para o

conceito de cidade, ao longo da história, e assim, tentaremos localizar a cidade de São Paulo, com suas

especificidades neste contexto. Olharemos especialmente para as características que nos ajude a conceituar e

compreender o morador em situação de rua.

16 Dados do Censo Populacional 2010. Disponível em http://www.censo2010.ibge.gov.br/. Acesso em 13 de

janeiro de 2013.

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Para o pleno entendimento da cidade, do ponto de vista histórico, devemos considerar alguns aspectos:

a fixação do homem, o excedente agrícola, o encontro entre as pessoas, a escrita, o mercado e o consumo, e a

organização política. É a partir desses pontos que a cidade será considerada em nossa análise.

Delimitamos essa linha estruturada de pensamento para falarmos sobre as

representações sociais de um grupo específico no ambiente urbano – o morador em situação

de rua –, pois precisamos, antes de tudo, elucidar uma questão, que norteará nossa análise e

servirá de base fundamental para a compreensão da produção de sentidos no discurso

jornalístico: o que é a cidade?

Neste item tentaremos, ainda que de forma sucinta, responder essa questão para

compreender, não somente o que é a cidade, mas também como ela se constitui ao longo da

história até os dias atuais. Definimos um percurso que tomará conceitos sobre a formação do

espaço urbano, passando pela Idade Média, Idade Moderna e a contemporaneidade.

O caminho adotado nos auxilia nos seguintes pontos: as condições que fazem o

homem se fixar; as heranças medievais, que a cidade contemporânea se apropria e re-significa

à sua maneira, atravessada por diversos processos históricos, políticos e ideológicos; o

processo de concepção da cidade industrial, condicionantes para a formação urbana como

conhecemos; e o contexto da contemporaneidade (pós-industrial), justamente a temporalidade

e espacialidade que nos interessa investigar.

Em todos esses aspectos da constituição e transformação urbana, teremos um olhar

formado por dois conceitos defendidos pelo o filósofo marxista francês Henri Lefebvre. No

primeiro, Lefebvre coloca a urbanização total da humanidade como resultado da evolução da

cidade, com as etapas, a saber: cidade política, cidade comercial, cidade industrial e zona

crítica (1999). E o segundo, o qual considera como ponto de partida da urbanização o

processo de industrialização (2001).

Toda a explanação do conceito terá a cidade de São Paulo como principal foco e sob a

perspectiva do consumo, pois na contemporaneidade “a imagem de cidade como centro de

produção e consumo domina totalmente a cena urbana” (Rolnik, 1994:28). Entretanto, desde

já, devemos fazer algumas ressalvas. Ao abordarmos o processo de formação da cidade na

história, e suas distintas temporalidades, como a Idade Média, obviamente estamos

considerando um contexto europeu e, assim, lançando mão de suas heranças no

contemporâneo, como já mencionado. No entanto, ao olharmos para a cidade moderna,

focaremos no contexto brasileiro de industrialização sem, obviamente, desconsiderar o

processo num contexto mundial. Isso será necessário, pois o nosso processo de

industrialização se dá de forma mais intensa a partir da década de 1950, tendo como epicentro

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a cidade de São Paulo. Esse olhar brasileiro e, especialmente paulistano será ainda maior

quando analisarmos a contemporaneidade, temporalidade na qual vive o homem da rua.

Dialogaremos com autores que trataram e tratam as cidades em suas reflexões como o

historiador medievalista francês, Jacques Le Goff; o filósofo alemão Walter Benjamim, a

urbanista norte-americana, Jane Jacobs, a também urbanista, brasileira relatora especial da

Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik; o

historiador norte-americano, Lewis Mumford; os sociólogos alemães, Georg Simmel e Max

Weber; o economista brasileiro, Paul Singer; o geógrafo brasileiro Milton Santos; o já

mencionado, Henri Lefebvre, dentre outros. Todas essas leituras, em determinados momentos,

nos trarão articulações necessários para abordar alguns aspectos do conceito de cidade ao

longo da hitória. Para justificar essa proposta de estudo – a partir da observação histórica –,

tomaremos como justificativa o exposto por Mumford (1965):

Se quisermos lançar novos olhares para a vida urbana, cumpre-nos

compreender a natureza histórica da cidade e distinguir, entre as suas

funções originais, aquelas que dela emergiram e aquelas que ainda podem

ser invocadas. Sem uma longa carreira de saída pela História, não teremos a

velocidade necessária, em nosso próprio consciente, para empreender um

salto suficientemente ousado em direção ao futuro, pois grande parte de

nossos atuais planos, sem exceção de muitos daqueles que se orgulham de

ser “avançados” ou “progressistas”, constituem pouco engraçadas caricaturas

mecânicas das formas urbanas e regionais que ora se acham potencialmente

ao nosso alcance. (p. 11)

De início, falaremos do processo de formação da cidade e daremos enfoque de maior

grau à cidade medieval, pois esta possui muitos pontos de congruência com a cidade

contemporânea, em especial às questões relacionadas ao consumo e mercado, e às divisões

sociais. Alguns aspectos da cidade antiga (Atenas e Roma), como a sua formação política

serão abordados, no entanto é na Idade Média que focaremos, pois tomamos por base o

conceito de Le Goff (1998), um defensor da ideia de que a cidade medieval possui pontos

característicos que se perenizaram e ainda se fazem presentes na cidade atual:

A cidade contemporânea, apesar de grandes transformações, está mais

próxima da cidade medieval do que esta última da cidade antiga. A cidade da

Idade Média é uma sociedade abundante, concentrada em um pequeno

espaço, um lugar de produção e de trocas em que se mesclam o artesanato e

o comércio alimentados por uma economia monetária. É também o cadinho

de um novo sistema de valores nascido da prática laboriosa e criadora do

trabalho, do gosto pelo negócio e pelo dinheiro. É assim que se delineiam, ao

mesmo tempo, um ideal de igualdade e uma divisão social da cidade, na qual

os judeus são as primeiras vítimas. (p. 25)

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3.1.1. A cidade como espaço de convivência da diferença

Quando saímos aos centros das grandes cidades nos deparamos com pessoas de várias

origens, etnias, profissões, ideologias, credo, classes sociais, idades, gêneros, esse é um

cenário normal ao nosso olhar? É o que poderíamos considerar como a normalidade de uma

cidade? Mas e o que foge a esse cenário de normatização?

Realizamos esses questionamentos, pois, o conceito fundador para nossa análise da

cidade é o fato de ela representar espaço para encontro das diferenças (grupos, classes sociais,

pessoas) que podem usá-la de maneiras diversas. Esse conceito toma por base o discurso de

vários autores, como Jacobs (2011). “Para compreender as cidades, precisamos admitir de

imediato, como fenômeno fundamental, as combinações ou as misturas de usos, não os usos

separados” (p. 158).

Como a antropóloga Janice Caiafa (2003), que ao se solidarizar com esse pensamento,

o faz com uma defesa veemente: “O que as cidades nos oferecem de mais atraente é essa

possibilidade de vislumbrar constantemente mundos estranhos, que não são o nosso e que

podemos vir a conhecer.” (p. 96). Ou ainda, o próprio Lefebvre (2001, p. 22): “A vida urbana

pressupõe encontros, confrontos de diferentes conhecimentos e reconhecimentos recíprocos

(inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver, dos “padrões” que

coexistem na Cidade”. Certamente essa é uma herança da polis grega, que tinha na ágora o

espaço para encontros e debates. No entanto, sempre devemos recordar que na polis só eram

considerados os cidadãos, grupo que excluía as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Mais

adiante voltaremos a explorar essa característica da cidade como espaço de encontro da

diferença. Tentaremos agora abordar o processo de formação do espaço urbano.

Outro conceito trazido por Lefebvre (2001) e Santos (1994) é importante para nossa

análise. Ambos os autores abordam conceituação marxista de Valor de Uso e Valor Troca no

contexto da cidade. O primeiro está relacionado à utilização da cidade em analogia a um

serviço, podendo ser lido como espaço de circulação e convivência, ao passo que o segundo

está relacionado à cidade como se esta fosse um produto que pode ser apropriado ou obter o

melhor resultado para quem os produz (os espaços comprados e vendidos, o consumo dos

produtos e dos bens, dos lugares e dos signos, por exemplo).

Ao pensarmos a sociedade urbana, estamos de acordo com Lefebvre (1999), quando

este a considera como decorrente do processo de industrialização, fruto de descontinuidades

históricas:

Essas palavras designam, portanto, a sociedade constituída por esse processo

que domina e absorve a produção agrícola. Essa sociedade urbana só pode

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ser concebida ao final de um processo no curso do qual explodem as antigas

formas urbanas, herdadas de transformações descontínuas. Um importante

aspecto do problema teórico é o de conseguir situar as descontinuidades em

relação às continuidades, e inversamente. (p. 15)

A cidade para se configurar dessa maneira como a conhecemos, passou por intensos

processos, nos quais os indivíduos adaptaram suas vidas ao que lhe era condicionado pelo

ambiente. Essas adaptações são o que podemos considerar as descontinuidades históricas, pois

o homem passou a ver o mundo de outra maneira, como um espaço não só para perambular,

mas, especialmente, para se fixar.

De origem nômade, o homem sentiu a necessidade de fixar em um local, cultivar

terras, assim passou a ter a noção de pertencimento ao território onde se fixava. Desse simples

ato de fixação, desenvolveram-se processos políticos, econômicos, espirituais e culturais, que

favoreceram não só a fixação, mas aglomeração das pessoas. (SINGER, 1990; ROLNIK,

1994)

A vida espiritual é um dos marcos dessa fixação do homem na terra. Antes disso,

grosso modo, a morte não era significada como um processo de ‘passagem do homem na

terra’ e os corpos eram largados no local em que se dava o óbito, sem um fim ritual. Ao

ritualizar a morte e passar a enterrar ou cremar os mortos, o homem transformou sua relação

com o mundo. Essa nova forma de tratar vida, morte, existência e espiritualidade influencia a

formação da cidade. A religiosidade é uma das tendências que fomentaram a união de pessoas

ao redor de um templo. Rolnik (1994) explica isso realizando uma analogia a um imã: “O

templo era o imã que reunia o grupo. Sua edificação consolidava a forma de aliança celebrada

no cerimonial periódico ali realizado. Deste modo, a cidade dos deuses e dos mortos precede a

cidade dos vivos.” (p. 14).

Essa mudança na concepção de vida das pessoas significa uma nova relação com o

local, que passa a ser referenciado como um espaço perene de sobrevivência, por meio da

modelagem da natureza. O viver baseado anteriormente de forma exclusiva no extrativismo e

na caça, aos poucos é substituído pela agricultura e pela domesticação de animais:

A construção do local cerimonial corresponde a uma transformação na

maneira de os homens ocuparem o espaço. Plantar o alimento, ao invés de

coletá-lo ou caçá-lo, implica definir o espaço vital de forma mais

permanente. A garantia de domínio sobre este espaço está na apropriação

material e ritual de seu território. E assim, os templos se somam a canteiros e

obras de irrigação para construir as primeiras marcas do desejo humano de

modelar a natureza. (ROLNIK, 1994, p. 13)

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Dessa maneira, podemos concluir que a relação entre homens e a cidade é inicialmente

marcada pela vida sedentária, condicionada por valores espirituais e culturais. Entretanto,

devemos olhar para esse processo, considerando um terceiro valor essencial: a economia.

Primeiramente, o simples fato de o homem se fixar em um local não garante a

formação da cidade. Para que se dê a formação do urbano em contraste ao rural, devemos

considerar o excedente alimentar. Embora fixado, cultivando a terra e domesticando animais,

essa fixação do homem não necessariamente era urbana.

Em segundo lugar, vale definir que o campo (rural) – em contraposição ao urbano –, é

o local da atividade primária, onde as substâncias são extraídas da natureza para um consumo

de subsistência (SINGER, 2002, p. 8). Essa diferenciação entre campo e cidade é, ainda,

marcada pela divisão do trabalho entre os espaços, a chamada a economia urbana.

Entende-se aqui por economia urbana uma organização da produção baseada

na divisão de trabalho entre campo e cidade e entre diferentes cidades.

Quando esta divisão do trabalho se estabelece, a cidade deixa de ser apenas a

sede da classe dominante, onde o excedente do campo é somente consumido

para se inserir no circuito da produção propriamente dita. Desta maneira, o

trabalho de transformação da natureza é iniciado no campo e completado na

cidade, passando o camponês a ser consumidor de produtos urbanos e

estabelecendo-se então a entre cidade e campo. (ROLNIK, 1994, p. 27)

Logo, a economia, como valor necessário a composição das cidades, compreendia a

organização verificada na troca entre campo e cidade, envolvendo justamente o excedente

agrícola. Ou seja, ao cultivar o campo, o homem passou a produzir além do que era necessário

para o seu consumo próprio, assim o excedente alimentar passou a figurar no processo. Singer

(2002) ressalta a importância do excedente no processo de formação das cidades, no entanto,

não o vê como dínamo único e exclusivo desse:

A produção do excedente alimentar é uma condição necessária mas não

suficiente para o surgimento da cidade. É preciso ainda que se criem

instituições sociais, uma relação de dominação e de exploração, que assegure

a transferência do mais-produto do campo à cidade. Isto significa que a

existência da cidade pressupõe uma participação diferenciada dos homens no

processo de produção e de distribuição, ou seja, uma sociedade de classes.

Pois, de outro modo, a transferência de mais-produto não seria possível.

Uma sociedade igualitária, em que todos participam do mesmo modo na

produção e na apropriação do produto, pode, na verdade, produzir um

excedente, mas não haveria como fazer com que uma parte da sociedade

apenas se dedicasse à sua produção, para que outra parte dele se apropriasse.

(p. 9)

Como proposto acima, além da competência econômica da cidade, temos ainda de

considerar sua competência política de organização urbana. Ou seja, para o surgimento das

cidades se existiam as condições econômicas, estas eram imbricadas com as condições

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políticas. Segundo Singer (2002), sem a organização da sociedade em classes, não seria

possível que a cidade se organizasse. Sob este ponto de vista, podemos considerar pela

primeira vez o conceito de encontro das diferenças, pois, o homem em qualquer convivência

com o outro, já está se organizando politicamente. Rolnik (1994) expõe que na cidade nunca

se está só, o homem é sempre um fragmento do coletivo e explica a como é a relação.

A relação morador da cidade/poder urbano pode variar infinitamente em

cada caso, mas o certo é que desde sua origem cidade significa, ao mesmo

tempo, uma maneira de organizar o território e uma relação política. Assim,

ser habitante da cidade significa participar de alguma forma da vida pública,

mesmo que em muitos casos esta participação seja apenas a submissão a

regras e regulamentos. (p. 21 e 22)

Com efeito, vale mencionar que a cidade política (polis) é anterior à cidade comercial

que estamos focando. Retornando ao excedente agrícola devemos compreender que se atrela a

ele ideia de que na cidade a produção é impulsionada, a partir de tecnologias que

incrementam a produtividade da terra (ROLNIK, 1994), ou seja, como já colocado, é na

cidade que o trabalho de transformação da natureza é completado.

Também devemos levar em consideração a escrita, pois é a partir dela que se registram

as riquezas e os novos conhecimentos (memorização do trabalho coletivo, arquitetura,

documentos, escrituras). Rolnik (idem) explana essa passagem da seguinte maneira: “Na

cidade-escrita, habitar ganha uma dimensão completamente nova, uma vez que se fixa em

uma memória que, ao contrário da lembrança, não se dissipa com a morte.” (p. 16). Assim,

para a autora, construir uma cidade, consiste em construir em uma forma de escrita.

Ao pensarmos a escrita como registro da riqueza, podemos intuir o quanto ela é

importante como instrumento do mercado e do consumo. Além da escrita, da estrutura

política, outra atividade que potencializava o consumo é a aglomeração urbana como forma

de se distribuir os produtos, Rolnik explica (1994):

Isolado, cada indivíduo deve produzir tudo aquilo que necessita para

sobreviver; quando há a possibilidade de obter parte dos produtos

necessários à sobrevivência através da troca, configura-se a especialização

do trabalho e instaura-se um mercado. (p. 26)

Além de propiciarem as práticas de mercado e consumo (valor de troca), a

aglomeração de pessoas diferentes, é essencial para os processos comunicacionais (valor de

uso). Conforme Caiafa “Em todo caso, a experiência do estranho e do inesperado é uma

marca das cidades e precisamente o que a caracteriza como um universo de circulação e

comunicação bastante singular.” (CAIAFA, 2003, p. 91).

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Os conceitos de distribuição e comunicação são cruzados no pensamento de Mumford

(1965), que os apresenta como grandes facilitadores do mercado, e por consequência, do

desenvolvimento da cidade.

Mais importante, afinal de contas, que a distribuição mais amplas dos

produtos no mercado foi o desenvolvimento do sistema de comunicação que

cresceu ao lado dele: o registro permanente parece ser, a princípio, um

subproduto das transações de mercado e a maior invenção, após as notações

linguísticas e numéricas, foi a invenção do alfabeto, obra dos comerciantes

fenícios. Com o comércio, veio o intercurso humano numa escala maior do

que em qualquer outra ocasião anterior. A Suméria era caracterizada como

‘multilíngue’, e a difusão e padronização das linguagens locais deram à

cidade sua situação especial de centro de comunicações, sede de uma

literatura comum, na qual outros centros eventualmente viriam a tomar parte.

(p. 100 e 101)

Esses aspectos mostram o processo de transição dos usos da cidade, meramente, para

uma cidade comercial, que se caracteriza pelo valor de troca. Lefebvre (1999) coloca:

O processo de integração do mercado e da mercadoria (as pessoas e as

coisas) à cidade dura séculos e séculos. A troca e o comércio, indispensáveis

à sobrevivência como à vida, suscitam a riqueza, o movimento. A cidade

política resiste com toda a sua força, com toda a sua coesão; ela sente-se,

sabe-se ameaçada pelo mercado, pela mercadoria, pelos comerciantes, por

sua forma de propriedade (a propriedade mobiliária, movente por definição:

o dinheiro). (LEFEBVRE, 1999, p. 21 e 22)

A partir desse processo de passagem da cidade política para a cidade comercial, é

interessante abordar o olhar de Weber (1979), que considera a cidade essencialmente como

um local de comércio. É importante entendermos aí o que é prioritária a ideia de valor de

troca na cidade. O autor discorre sobre o quanto o mercado propiciou e foi propiciado pelos

encontros de diligências de outros locais formando feiras esporádicas, para suprir as

necessidades dos citadinos:

Outra característica que se teria que acrescentar para poder falar de “cidade”

seria a existência de um intercâmbio regular e não ocasional de mercadorias

na localidade, como elemento essencial da atividade lucrativa e do

abastecimento de seus habitantes, portanto de um mercado. Porém, não é

qualquer mercado que transforma a localidade na qual ele existe em

“cidade”. Mercados periódicos e feiras anuais, nos quais em épocas

determinadas se encontravam comerciantes de regiões distantes para trocar

entre si suas mercadorias, ou colocá-las diretamente em mãos do

consumidor, tinham lugar frequentemente e, locais que hoje reconhecemos

serem “aldeias”. Falaremos de “cidade” no sentido econômico quando a

população local satisfaz uma parte economicamente essencial de sua

demanda diária no mercado local e, outra parte essencial também, mediante

produtos que os habitantes da localidade e a povoação dos arredores

produzem ou adquirem para colocá-los no mercado. (1979, p. 69)

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Com isso, os conceitos de encontro das diferenças, além da distinção entre valor de

uso e troca se mostram essenciais para o entendimento da cidade ao longo da história.

Tentamos neste subitem abordar o processo de formação da cidade e da cidade medieval, e

seus aspectos mais importantes. Antes de termina-lo, é importante que olhemos um grupo em

especial, a classe trabalhadora. Le Goff, (1998) em sua leitura sobre a cidade medieval a

identifica da seguinte maneira:

Mas, seja qual for o status depreciado de numerosos trabalhadores que

evocamos, a grande valorização do trabalho se dá na cidade. Esta é uma das

funções históricas fundamentais da cidade: nela são vistos os resultados

criadores e produtivos do trabalho.

Todos esses curtidores, ferreiros, padeiros... são pessoas que produzem

coisas úteis, boas e, às vezes, belas, e tudo isso se faz pelo trabalho, à vista

de todo mundo. Inversamente, a ociosidade é depreciada: o preguiçoso não

tem lugar na cidade. (p. 49)

Le Goff, ao mesmo tempo em que aponta para a valorização da classe trabalhadora,

fala também do inverso, uma população extremamente pobre e excluída, que não possui o

conhecimento para produzir essas “coisas úteis” e vive à margem da sociedade. É aí que

podemos começar a refletir sobre quem poderia ser os antepassados da população em situação

de rua:

É ao mesmo tempo o movimento demográfico e a economia que criam, a

partir do século XIII, mas sobretudo a partir do século XIV, esse novo tipo

de população urbana que são os marginais, para os quais é extremamente

frágil o limite entre pobreza, miséria e crime, mais ainda para as mulheres,

que se debatem entre a miséria e a prostituição. (LE GOFF, 1998, p. 46)

Essa população pobre vive, segundo Le Goff, do recurso entre a mendicância e o

roubo, pois o trabalho clandestino não faz parte da dinâmica da cidade.

Em linhas gerais, esse é o quadro da cidade comercial, que tentamos explanar no item,

juntamente com o processo de formação da cidade. A partir de agora tomaremos como objeto

de estudo a cidade industrial que também fará o homem ter uma nova relação com o espaço.

3.1.2. Ferro, aço, revitalização e individualização: a cidade moderna

A queda do Império Romano do Oriente, com a tomada de Constantinopla pelos turcos

otomanos em 1453 marca o fim da Idade Média e início da Idade Moderna. Não iremos, no

entanto, considerar de maneira absoluta essa contagem do tempo histórico para nosso

trabalho, pois a compreensão do que é a modernidade se mostra muito relativa, como aponta

uma das hipóteses formuladas pelo antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini (2003)

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sobre o pensamento moderno: “a primeira hipótese é que a incerteza em relação ao sentido e

ao valor da modernidade deriva não apenas do que separa nações, etnias e classes, mas

também dos cruzamentos socioculturais em que o tradicional e moderno se misturam”. (p. 18)

Assim, consideramos, com base no historiador britânico e marxista Eric Hobsbawn

(2007), o ingresso do mundo na modernidade no período entre 1789 e 1848. Esse ingresso

tem como marco e marca a dupla revolução – Francesa e Industrial, respectivamente –, que

significou o triunfo da indústria capitalista, iniciado neste contexto e que se ramificou para

todos os cantos do mundo, modelando e remodelando as cidades e também o modo de vida

nelas.

É nesse contexto que pensaremos a cidade moderna, primeiramente num esboço do

mundo e depois no Brasil, com sua modernidade tardia, iniciada já no século XX. A cidade

moderna se define como um espaço que segue a ordem industrial de produção capitalista, pela

definição de Lefebvre (1999; 2001), e se localiza historicamente no momento da cidade

industrial, marcando o início do que ele chama de sociedade urbana. Abordamos, neste trecho

do texto, como o homem moderno é regido sob influência das dinâmicas sócio-econômico-

tecnológicas que a industrialização trouxe para o mundo.

Para iniciar, trazemos com uma reflexão de Le Goff (1998) sobre a passagem para a

modernidade. Este autor identifica o setor secundário (indústria) como uma função da cidade,

apenas após a Revolução Industrial, no entanto as demais funções essenciais de cidade não

deixam de existir na cidade moderna:

O que significa que, se pensamos na longa duração, se formos além mesmo

do caso de Paris, as funções essenciais de uma cidade são a troca, a

informação, a vida cultural e o poder. As funções de produção – o setor

secundário – constituem apenas um momento da história das cidades,

notadamente no século XIX, com a Revolução Industrial, visível sobretudo

nos subúrbios situados na periferia. Elas podem desfazer-se; a função da

cidade permanece (p. 29).

É a Paris moderna que nos serve de cenário para estudarmos a cidade moderna. Apesar

da permanência da “função cidade”, algumas descontinuidades ocorrem na cidade moderna

em relação ao mundo medieval. Do ponto de vista arquitetônico, por exemplo, saem as

muralhas que cercavam e protegiam a cidade medieval, para a ascensão do vidro e do ferro,

Walter Benjamim (1985), analisa esse último material no contexto das transformações

urbanas, e expondo uma mudança no ritmo de vida das pessoas: “Com o ferro aparece, pela

primeira vez na história da arquitetura, um material artificial. A isto subjaz uma evolução cujo

ritmo se acelera no decorrer do século.” (p. 31).

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Esse ritmo citado se refere a um ritmo de vida diferente da cidade medieval, um ponto

de descontinuidade da modernidade. Benjamim (idem) observa e enuncia que além desse

novo ritmo dele, há o desmembramento entre local de trabalho e de moradia. Assim, as

atividades laborais, antes desempenhadas na terra ou na oficina do artesão, que também

serviam de residências, pela primeira vez na história passam agora a serem feitas fora do lar,

fazendo com que o homem se desloque pela cidade.

Apesar das descontinuidades, a cidade moderna também apresenta heranças da época

medieval. Para nossa análise, vale citar o conceito que mencionamos anteriormente, o

encontro da diferença, que se intensifica na cidade moderna. Frúgoli Jr. (2000) aborda a

evolução desse conceito da seguinte maneira:

A cidade moderna passa a ser o espaço por excelência de uma constante

interação entre grupos sociais, onde a diversidade e os conflitos sociais

decorrentes se intensificam e ganham maior visibilidade e dramaticidade. As

classes populares foram sem dúvida, as mais atingidas por esse processo: os

largos bulevares que rasgaram o tecido urbano – inserindo Paris numa escala

de circulação mais propícia à ordem capitalista industrial de então – puseram

abaixo bairros populares dominados pelas assim chamadas “classes

perigosas”, com uma elevação dos aluguéis que empurrou o proletariado

para a periferia da cidade (p. 20).

Da citação de Frúgoli, destacamos o ponto em que ela fala do proletariado, que não

habitava mais os centros, e tinha de se deslocar para seus postos de trabalho. Empurrada para

a periferia, a classe trabalhadora nem sempre tinha um encontro cordial com a burguesia. A

esse tipo de encontro conflituoso, Caiafa (2003) faz a seguinte reflexão:

Os diferentes grupos não propiciam apenas o encontro pacífico da diferença,

mas também conflituoso. Que os encontros citadinos possam trazer a marca

da colisão é uma excelente pista que nos leva a enfrentar novos problemas. É

mesmo um ritmo que se constrói na exterioridade das cidades e que envolve

experiências subjetivas em contraste com aquelas dos meios fechados. É que

não nos basta atribuir a esse ritmo da colisão a marca da desorganização ou

da destruição. Seria preciso ressaltar também o papel produtivo ou

construtivo do confronto. A fricção pode trazer diferenciação, desafiando o

reconhecimento, tendo um efeito não necessariamente deletério mas

transformador dos processos subjetivos. (p. 95)

Se, de maneira otimista, Caiafa aponta esses pontos de fricção como transformadores

de processos subjetivos, na Paris do século XIX, esse contato entre diferentes classes foi

reprimido, ao máximo, pelo Barão de Haussmann que, como explica Benjamim (1985),

realiza uma série de obras de revitalização, para evitar ainda mais o contato entre as classes:

Haussmann trata de encontrar apoio para a sua ditadura e colocar Paris sobre

um regime de exceção. Em 1864, num discurso na Câmara, expressa o seu

ódio contra a desarraigada população da grande metrópole. Esta aumenta

constantemente através de seus empreendimentos. A elevação dos aluguéis

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empurra o proletariado para os arrabaldes. Através disso, os bairros perdem a

sua fisionomia própria. Surge o cinturão vermelho. Haussmann deu a si

mesmo o nome de “artiste démolisseur” [artista demolidor]. Sentia-se como

que chamado para a sua obra, o que enfatiza em suas memórias. Assim, ele

faz com que Paris se torne uma cidade estranha para os próprios parisienses.

Não se sentem mais em casa nela. Começa-se a tomar consciência do caráter

desumano da grande metrópole. (p. 41 e 42)

Benjamin (idem) conclui que a intenção de Haussmann era tornar a cidade segura em

caso de guerra civil, com largas avenidas que impossibilitariam a construção de barricadas

pelos rebelados. Assim, buscava-se com a revitalização ou remodelação de Paris antecipar e

controlar qualquer rebelião de grupos diferentes. Sobre a intervenção urbana, Frúgoli Jr

(2000) comenta:

Em outras palavras, significa uma intervenção urbanística adequada à nova

ordem econômica, ou seja, uma perspectiva de atuação na qual o arquiteto

ou urbanista passa a atender demandas de grupos distintos de clientes, na

busca de soluções pontuais e locais, pretensamente “personalizadas”,

ecléticas e diversificadas, abrindo mão de soluções abrangentes – típicas do

ideário modernista (p. 22).

Essa nova configuração arquitetônica faz a Paris moderna se esvaziar. Esse aspecto

pode ser transposto para qualquer cidade que faz do ideário modernista seu fim de intervenção

urbanística. Diante do contexto e considerando a reflexão de Caiafa sobre a alteração na

subjetividade do homem moderno, a partir dos encontros na cidade, esse mesmo homem passa

a buscar seu refúgio no lar. A vida na cidade traz ao indivíduo novas experiências que são

observadas por Georg Simmel (1967) da seguinte forma:

Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que

faz o indivíduo de preservar a autonomia e a individualidade de sua

existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica, da

cultura externa e da técnica de vida. A luta que o homem primitivo tem que

travar com a natureza pela sua existência física alcança sob esta forma

moderna sua transformação mais recente. O século XVIII conclamou o

homem a que se libertasse de todas as dependências históricas quanto ao

Estado e à religião, à moral e à economia. A natureza do homem,

originalmente bom e comum a todos, devia desenvolver-se sem peias.

Juntamente com maior liberdade, o século XVIII exigiu a especialização

funcional do homem e seu trabalho; essa especialização torna o indivíduo

incomparável a outro e cada um deles indispensável na medida mais alta

possível. Entretanto, esta mesma especialização cada homem

proporcionalmente mais dependente de forma direta das atividades

suplementares de todos os outros. (p. 13)

Com base no exposto por Simmel (idem), compreendemos que é na cidade moderna

que a individualidade e autonomia se intensificam. O autor ao entender que na cidade

moderna as pessoas são reduzidas ao mecanicismo sócio-tecnológico, à objetividade, à

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mensuração da vida, ao uso extremo de consciência e ao distanciamento entre a produção e

consumo de produtos, aponta que o resultado disso é uma extrema impessoalidade das

relações do indivíduo, inclusive em suas relações comerciais. Ele explica:

[...] ao passo que a metrópole é de fato caracterizada por sua independência

essencial até das mais eminentes personalidades individuais. Isso é a

contrapartida da independência e é o preço que o individuo paga pela

independência que desfruta pela metrópole. A característica mais

significativa da metrópole é essa extensão funcional para além de suas

fronteiras físicas. E essa eficácia reage por seu turno e da pessoa,

importância e responsabilidade à vida metropolitana. O homem não termina

com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua atividade

imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que

emana dela temporal e espacialmente. Da mesma maneira, uma cidade

consiste em seus efeitos totais, que se estendem para além de seus limites

imediatos (p. 23 e 24).

Sobre o distanciamento entre produção e consumo, e o economicismo que toma conta

da vida do indivíduo, proposições de Simmel (1967), vale a pena expor o poder do comércio

ainda na cidade:

[...] a esfera da psicologia do pequeno grupo, é importante que, sob

condições primitivas, a produção sirva ao cliente que solicita a mercadoria,

de modo que o produtor e o consumidor se conheçam. A metrópole

moderna, entretanto, é provida quase que inteiramente pela produção para o

mercado, isto é, para compradores inteiramente desconhecidos, que nunca

entram pessoalmente no campo de visão propriamente dito do produtor. [...]

A economia do dinheiro domina a metrópole; ela desalojou as últimas

sobrevivências da produção doméstica e a troca direta de mercadorias; ela

reduz diariamente a quantidade de trabalho solicitado pelos clientes. [...] A

mente moderna se tornou mais e mais calculista. A exatidão calculista da

vida prática, que a economia do dinheiro criou, corresponde ao ideal da

ciência natural: transformar o mundo num problema aritmético, dispor todas

as partes do mundo por meio de fórmulas matemáticas. (SIMMEL, 1967, p.

16)

Ainda como espaço de encontro das diferenças e de trocas comerciais, a cidade

moderna funda o indivíduo, em meio à multidão. Ela também passa a intensificar situações de

marginalização, com a colocação das classes trabalhadoras para a periferia, por exemplo.

Movida pelas chaminés das fábricas, ao mesmo tempo em que essa cidade “impessoaliza”

seus citadinos, os aglomera, os faz serem engrenagens de um processo frio e automatizado,

que produz riquezas e desigualdades de todas as naturezas. O homem continua a viver nesses

espaços e sempre se adaptando. Ou seja, produzindo diferentes subjetividades, como sugere

Caiafa:

Mas mesmo o sujeito é um episódio dessa subjetividade processual, que não

é nunca resultado, mas constantemente processo. São componentes os mais

diversos que entram na produção da subjetividade. Assim, os processos

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sociais e materiais na cidade – a relação com o espaço construído – são

componentes subjetivos também. A experiência com a variedade de

estímulos nas ruas, com esses desconhecidos que cruzam nosso caminho – e

com quem uma comunicação em alguns casos pode se estabelecer –

modeliza afetos, perceptos, produz, enfim, subjetividade. (p. 92 e 93)

Esse é o homem que se adapta produzindo subjetividades na cidade moderna, que

ainda lhe faz encontrar com os outros e é um lócus privilegiado para o consumo, ainda que

mais distante da fonte produtora dos produtos. Mas e no Brasil? Como que o processo de

industrialização se deu e como passamos para a modernidade, ainda que não tenhamos em

nosso país a experiência de uma cidade medieval? Seguiremos, a partir de agora para falar do

Brasil, mais precisamente da cidade São Paulo, e traremos como um fértil exemplo, o bairro

da Luz.

3.1.3. A modernidade e a contemporaneidade paulistanas: a Estação da Luz e sua

próxima parada, a Nova Luz

O bairro da Luz é localizado próximo ao centro da cidade de São Paulo. Seu ponto de

referência é a Estação da Luz, criada em 1867, para sediar a Companhia São Paulo Railway.

De muitos pontos do bairro é possível avistar o alto da torre do relógio, da atual estação,

construída em 1901, que não deixa dúvidas sobre a influência britânica em sua concepção.

Essa influência é apenas um dos sinais das ramificações da Revolução Industrial ao redor do

mundo que comentamos acima, e que tem sob o simbolismo da locomotiva o principal

expoente.

A instalação significa a intenção de modernização da cidade e do estado de São Paulo,

visto que, a industrialização sempre busca locais para que, por alguma razão, que terá maior

rentabilidade. Santos (1979) comenta esse aspecto: “Com efeito, a cidade é o lugar

privilegiado do impacto das modernizações, já que estas não se instalam cegamente, mas nos

pontos do espaço que oferecem uma rentabilidade máxima.” (p. 17 e 18)

Para o leste, a estação ligava à cidade de Santos, no litoral, a Oeste, à cidade de

Jundiaí, no interior do estado. Essa linha teve grande influência no escoamento da produção

de café, assim como a chegada de imigrantes no início do século XX. Em um processo

dialético de ruptura e manutenção de sua vocação inicial, hoje, a estação é um dos principais

entroncamentos de linhas de trens e metrôs da cidade, com a passagem de centenas de

milhares de passageiros por dia, vindos de diversas regiões da cidade, muitos deles oriundos

de diversos lugares do Brasil e do mundo.

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Essa diversidade de origens da população paulistana é resultado do processo brasileiro

tardio de industrialização, em relação às nações que desenvolveram sua industrialização no

final do século XIX. O café, as imigrações e, principalmente os investimentos na indústria na

década de 1950, fomentaram um lento e errante processo de desenvolvimento no país.

Errante, pois no Brasil os ciclos migratórios são consequências das políticas desiguais de

investimento regional, que de uma forma ou de outra, se concentraram na Grande São Paulo.

O que refletiu em desequilíbrios de todas às ordens à região, e mais especificamente à cidade

de São Paulo, como aponta o Singer (1990):

No Brasil, o processo de industrialização tardio fez com que um grande

fluxo migratório tivesse como destino a cidade de São Paulo. Esse

crescimento acelerado levou a cidade a uma série de desequilíbrios,

principalmente entre procura e oferta de habitações e serviços urbanos, que

compõem uma problemática urbana específica. (SINGER, 1990, p. 117).

Pelo que já expusemos, compreendendo o processo de formação da cidade, é

compreensível o êxodo para regiões mais providas economicamente. Caiafa (2003), com base

no pensamento de Mumford, aponta “que a cidade, em oposição ao pequeno povoado, se

caracterizou desde o início por atrair gente de fora, “não-residentes”, que ali vinham por

interesse em alguma atividade de ordem religiosa ou social, mais que no comércio, segundo

esse autor.” (p. 92)

Uma das consequências desse processo é que as características da força de trabalho na

cidade se modeliza a partir de um modelo desigual e desequilibrado. Como Santos (1994)

enuncia:

A enorme e populosa São Paulo é, pois, operosa e operária, mas também não

há outra aglomeração no Terceiro Mundo onde as atividades intelectuais

ofereçam tantos empregos e onde a classe média seja tão numerosa. Estes

dois últimos fenômenos se afirmam quando, paradoxalmente, aumenta na

cidade o número de pobres. Cidade abastada e cidade pobre formam uma só

cidade. (SANTOS, 1994, p. 14)

As questões que provocaram o desequilíbrio em São Paulo ocorreram, conforme

Singer, por meio de diferentes níveis de investimentos regionais nas primeiras décadas do

século XX, grandes colaboradoras para um processo duplo de degradação. A degradação tanto

econômica do local que envia, como urbana para o local que recebe os trabalhadores parece

um cenário previsível neste quadro de desigualdades sociais e econômicas entre regiões do

País. Uma das figuras que identificam essa degradação é certamente o morador em situação

de rua, pois esse pode – não em todos os casos –, ser fruto de um problema crônico de

moradia na cidade.

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Olhar para um processo de diferenças sociais, nos leva a tentar entender o processo de

pobreza urbana no qual, para Santos (1979, p. 37), os pobres não têm acesso a um grande

número de mercadorias modernas. Então, por que não pensar que esses também não tem

acesso à cidade? Ou ainda, a qual cidade eles têm acesso?

Podemos ainda conceber a industrialização da cidade São Paulo como um processo

inacabado de inserção da cidade no contexto moderno o qual, além de produzir as diferenças

sociais citadas, também serve de base para transformações do ponto de vista informacional,

que embora, não necessariamente sejam da ordem industrial, se baseiam nesta ordem:

São Paulo é a única entre as grandes cidades do Terceiro Mundo a ter bem

perto dela uma zona agrícola dinâmica. Ao longo de um século, e desde o

início do seu processo de modernização cosmopolita, tanto a cidade como a

sua região foram aceitando todos os instrumentos de modernidade que se

criavam na Europa e nos Estados Unidos e com os quais cidade e campo, a

cada etapa, iam inserindo-se vantajosamente na divisão internacional do

trabalho: estradas de ferro e de rodagem, portos, plantações, bancos,

modelos de consumo, escolas, modernização administrativa, urbanismo etc.

Desse modo, a expansão do campo e o desenvolvimento urbano se

influenciam, criando um conjunto dinâmico que impulsionou a economia do

País, e fazendo crescer uma classe média na capital e no interior. Por isso,

São Paulo foi a cidade dos trópicos com maiores taxas de crescimento

industrial e econômico. (SANTOS, 1994, p. 14)

A partir do exposto acima, Santos (1994) ainda aponta que a base industrial deu a São

Paulo o alicerce para que se tornasse uma cidade informacional, um centro internacional de

serviços e referencial para todo o País. (p. 15)

A acumulação de atividades intelectuais ligadas à nova modernidade

assegura a essa área a possibilidade de criação de numerosas atividades

produtivas de ponta. Ambos os fatos garantem preeminência em relação às

demais subáreas e atribuem, por isso mesmo, novas condições de

polarização. Atividades modernas presentes em diversos pontos do País

necessitam apoiar-se em São Paulo para um número crescente de tarefas

essenciais. São Paulo fica presente em todo o território brasileiro graças a

esses novos nexos geradores de fluxos de informação indispensáveis ao

trabalho produtivo. (SANTOS, 1994, p. 39)

Para finalizar a conceituação de Santos sobre a São Paulo moderna, devemos

compreender que a cidade sofre uma mudança em sua característica produtiva e de centro

influenciador a partir da década de 1980.

Sem deixar de ser a metrópole industrial do País, apesar do movimento de

desconcentração da produção, recentemente verificado, São Paulo torna-se,

também a metrópole dos serviços, metrópole terciária, ou, ainda melhor,

quaternária, o grande centro de decisões, a grande fábrica de ideias que se

transformam em informações e mensagens, das quais uma parte considerável

são ordens (SANTOS, 1994, p. 40)

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Da cidade que se inicia em sua modernidade a partir da industrialização, e que tem

como decorrência disso uma alta diferença social, assim como um duplo processo de

desenvolvimento versus a degradação, tomamos por exemplo a Luz. Hoje, o bairro é

caracterizado como uma localidade que passa por um processo de gentrificação ou

gentrification, que trata de um fenômeno que afeta a composição dos bairros, ao atrair

investimentos de alto valor e expulsando as pessoas de menor poder aquisitivo (os pobres) do

local. O antropólogo Heitor Frúgoli Jr. e a pesquisadora Jessica Sklair (2009) explanam a

região da seguinte maneira, sob o aspecto da gentrificação e dos equipamentos culturais:

A região central de São Paulo é marcada pela aglutinação de vários bairros, e

um deles vem obtendo crescente visibilidade quanto a aspectos

tradicionalmente abrangidos pelas temáticas ligadas ao tema da

gentrification. Trata-se do bairro da Luz, de forte densidade urbanística e

social, assinalado pela presença de vários prédios e instituições culturais

tombadas pelo patrimônio estadual, cujo marco histórico inicial foi a Estação

da Luz (sua construção atual foi inaugurada em 1901) – que passou por

reforma recente, com a implantação, em suas dependências, do Museu da

Língua Portuguesa. Em torno da mesma, um conjunto significativo de

instituições culturais foi recentemente reabilitado, como o prédio da

Pinacoteca do Estado, ou parcialmente reutilizado, como no caso da criação

da Sala São Paulo, hoje sede da Orquestra Sinfônica do Estado, na estação

ferroviária Júlio Prestes. Tais instituições têm sido responsáveis por um novo

afluxo de pessoas ligadas às classes médias e altas à região central. As casas,

ruas e praças de tal região, entretanto, têm sido há muito definidas por forte

ocupação popular, com uma quantidade significativa de cortiços, bem como

práticas recorrentes de comércio informal, prostituição e tráfico e consumo

de crack em vários espaços públicos. Mais recentemente, a atual gestão local

de São Paulo tomou tal área como prioritária para uma política mais ampla

de requalificação, dando continuidade a uma política iniciada pelo governo

do Estado há duas décadas, de transformar a Luz num “bairro cultural”.

(FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 121 e 122)

Temos então o bairro da Luz como uma região degradada que é marcada, por esses

grupos citados pelos autores. Um deles é composto pelos moradores em situação de rua, que

vivem ali em uma região chamada emblematicamente de “Cracolândia”, a Terra do Crack. O

Crack é uma pedra produzida a partir da cocaína para ser fumada em um pequeno cachimbo,

seu efeito é mais rápido que a cocaína, cerca de cinco minutos, e atualmente a droga ilegal

mais consumida nas ruas São Paulo.

Ao circular pela região, em qualquer horário do dia, centenas de pessoas literalmente

perambular com seus cobertores pendurados, em pleno estado de efeito ou de abstinência da

droga – popularmente chamado de “fissura”. Quando não estão nessa condição estão

dormindo ou consumido crack. Os usuários são popularmente chamados de nóias e são

estigmados de várias maneiras. Como explicam Frúgoli Jr. e Sklair (2009):

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Dessa forma, Luz e Centro se entrelaçam enquanto representações espaciais,

embora a primeira categoria remeta claramente, como vimos, aos “nóias” –

marcados pela sua presença física nas ruas e associados simbolicamente a

uma série de estigmas– sujeira, perigo, ameaça à segurança (principalmente

à noite), drogas, encrenca, vergonha, etc. (p. 125)

Os pesquisadores caracterizam o método utilizado para investigar o grupo, objeto de

sua pesquisa, como etnografia urbana:

De um modo geral, a maioria dos usuários é negra ou mulata, predominam

homens, há pessoas de várias faixas etárias e alguns deles, tatuados. Sua

aparência não difere tanto de muitos que integram a chamada população em

situação de rua. Tal roteiro permitiu a constatação da permanência da

presença física dessa população nos espaços públicos do bairro, tendo apenas

realizado um pequeno deslocamento espacial após as recentes intervenções.

(FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 128)

De outro lado da análise, sobre o que representa o bairro, há os equipamentos

culturais, que são parte do investimento dos governos estaduais e municipais, para propiciar a

revitalização da região a partir da utilização do espaço público por um público de classe

média e alta. Os mesmos pesquisadores explicam que o processo de gentrificação se dá

especialmente a partir dessa intenção dos governos de revitalizar o bairro, tornando-o ponto

da cena cultural paulistana, pois os equipamentos culturais não são frequentados pela

população do bairro (p.26).

É sob esse contexto que surge, em 2005, sob a gestão do então prefeito, José Serra

(PSDB) e de seu vice, Gilberto Kassab (DEM) o projeto Nova Luz. Um plano para

revitalização da região que tem como base alterações no uso do espaço urbano e que não

promove uma solução concreta e de caráter humanitário para os moradores em situação de rua

e viciados, ao contrário, em diversas ações no ano de 2012, o poder público abusou da força

policial, reprimindo essa população, o evento foi batizado como “Operação Sufoco” 17

.

Frúgoli Jr. e Sklair (2009) analisam: “A “Cracolândia” tem sido fortemente acionada nos

discursos dos responsáveis pelas intervenções urbanas locais e vem também sendo alvo de

ações recorrentes de repressão.” (FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 124)

O folheto explicativo do Projeto Nova Luz 18

diz o seguinte:

O “Projeto Nova Luz” constitui as bases para a transformação urbanística

futura dessa área de cerca de 500 mil metros quadrados no coração do

Centro de São Paulo. Esta região é a mais acessível da cidade e tem um

comércio especializado vibrante. Pelas condições excepcionais de transporte

público, a Nova Luz tem potencial para abrigar ainda mais atividades

17 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1029307-pm-faz-operacao-contra-o-trafico-na-regiao-

da-cracolandia-em-sp.shtml. Acesso em 18 de janeiro de 2013. 18

Disponível em http://pt.scribd.com/doc/157633427/20110811-folhetoA4. Acesso em 17 de janeiro de 2013.

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econômicas e mais moradias, o que deve ser acompanhado da qualificação

urbanística e ambiental da área.

Além de criar opções de moradia e novos equipamentos públicos, o projeto

desenvolvido recupera e preserva o patrimônio arquitetônico existente,

respeita e estimula a vocação econômica e comercial da região e abre

horizontes para a instalação de novas atividades.

Entre as melhorias de infraestrutura urbana propostas estão a abertura de

praças e espaços de convivência públicos, a instalação de escolas, creches,

posto de saúde e equipamentos de cultura e assistência social, a adequação

do sistema de drenagem, o alargamento de calçadas, a instalação de

mobiliário urbano e o plantio de árvores.

O projeto também viabiliza a implementação da maior Zona Especial de

Interesse Social (ZEIS) na área central, garantindo a provisão de habitação

de interesse social e de mercado popular para cerca de 2.000 famílias.

A implementação do projeto urbanístico em desenvolvimento atrairá novos

moradores, oportunidades de negócios e mais empregos, estabelecendo

assim, os alicerces para a melhoria do ambiente urbano beneficiando a

população local.

É importante destacar que este é o primeiro projeto que segue a diretriz de

reversão do esvaziamento populacional da região central, além de promover

a melhoria da qualidade dos espaços públicos e do meio ambiente, o

estímulo às atividades de comércio e serviços e a preservação e reabilitação

do patrimônio arquitetônico nas áreas subaproveitadas de urbanização

consolidada.

Como pode se perceber na apresentação do projeto, pouco ou nada se fala da

população que vive naquelas ruas. Do ponto de vista humanitário, fala sobre as zonas

especiais de interesse social (ZEIS) e ainda da criação de creches, escolas e postos de saúde.

A arquiteta e urbanista Lucia Zanin Shimbo (2011) sintetiza e comenta algumas das ações

tomadas contra essa população pelo do Projeto Nova Luz, ao qual considera o processo de

limpeza urbana.

Desde 2005, para transformar a chamada região da “Cracolândia” em Nova

Luz foram realizadas uma série de ações, mas que não chegaram a compor

um projeto urbano claramente definido. A principal delas estava voltada à

ideia de “limpeza urbana”, ao policiamento e à repressão à presença de

catadores de materiais recicláveis, comerciantes informais, moradores de

rua, imigrantes ilegais e usuários de crack – que integraram a “Operação

Limpa”. Além disso, foi instituída a Lei de Incentivos Seletivos (2005), que

passou a conceder incentivos fiscais para atrair novas empresas de comércio

e serviços para uma área de aproximadamente 250 mil m2, com cerca de

1500 imóveis, na região da Santa Ifigênia. Ainda em 2005, foi desapropriada

uma área de 105.000 m2, posteriormente aumentada para 270.000 m2, em

2007, igualando-se ao perímetro da Lei de Incentivos Seletivos, com o

objetivo de se implantar um plano urbanístico, fundamentado na criação de

um polo comercial e de serviços, a fim de se trair, principalmente, empresas

da área tecnológica. Apesar de decretada a desapropriação, ela não se

concretizou inteiramente até 2010.

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Ou seja, pelo exposto acima, podemos considerar que o Valor de Uso da região da Luz

é significado, num movimento duplo de renúncia e confusão com o Valor de Troca, no qual se

privilegia empresas e a especulação imobiliária. Sobre esse fenômeno, Santos (1994) aponta:

A partir de um equipamento seletivo do território, dá-se uma urbanização

corporativa rapidamente crescente e despontam metrópoles e cidades

corporativas, onde, de um lado, a modernização do meio ambiente

construído favorece as grandes empresas e, de outro, o êxito das

reivindicações dos grupos sociais vai depender de pressões corporativas.

Nessas condições, parcela importante dos recursos públicos se dirige a um

equipamento urbano seletivo, do interesse da economia hegemônica e das

camadas sociais hegemônicas. (p. 143)

Ao nosso contexto pesquisa, o que interessa a pensar sobre o projeto Nova Luz é a

forma como esse insere o morador de rua na discussão e como o representa na mídia. Pois,

diante do contexto do Projeto Nova Luz, a pergunta que não nos quer calar é: e como fica

quem já vivia ou trabalhava estava no bairro? Quanto ao uso diversificado do bairro, qual é a

intenção do Projeto Nova Luz?

Percebemos que a diversidade, defendida por Jacobs (2011), como algo importante

para o desenvolvimento urbano, está pouco ou muito mal explorada pelo Projeto Nova Luz. A

visão da autora sobre a diversidade é exposta da seguinte maneira:

Isso é necessário para que a vida urbana funcione adequada e

construtivamente, de modo que a população das cidades possa preservar (e

desenvolver ainda mais) a sociedade e a civilização. Os órgãos públicos e

semipúblicos são responsáveis por alguns dos empreendimentos que ajudam

a construir a diversidade urbana – como parques, museus, escolas, a maioria

dos auditórios, hospitais, certos escritórios, certas moradias. Todavia, a

maior parte da diversidade urbana é criação de uma quantidade inacreditável

de pessoas e de organizações privadas diversas, que têm concepções e

propósitos bastante diversos e planejam e criam fora do âmbito formal da

ação pública (p. 267)

Caiafa (2003) corrobora com esse ponto de vista, apontando para a ocupação coletiva

do espaço público.

É a aglomeração urbana, onde há necessariamente a criação de espaços

coletivos. Porque a ocupação privada do espaço, como nos mostram casos

concretos, leva a uma segmentação da população e a uma compartimentação

do espaço urbano que inviabilizam a cidade. Poucos ocupam as áreas

residenciais segregadas ao mesmo tempo em que se geram habitações

precárias de excessiva concentração. O espaço público é desativado, não se

oferece à ocupação coletiva. A rua já se torna inviável para a caminhada – e

os mais pobres são os mais penalizados porque vão ter que se deslocar ali ao

menos para poder se amontoar no transporte coletivo precário. (p. 93)

Sobre o uso do espaço público pela diversidade, cabe lembrar que isso acaba gerando

um processo natural de concorrência pelo uso do espaço acarretando na autodestruição da

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diversidade. Ou seja, se o projeto Nova Luz, priorizar diversos usos do espaço público, com o

tempo um deles suplantará os demais.

Seja qual for a forma de autodestruição, em pinceladas gerais, é isto o que

ocorre: uma combinação diversificada de usos em determinado local na

cidade torna-se nitidamente atraente e próspera como um todo. Em virtude

do sucesso do lugar, que invariavelmente se deve a uma concorrência

acirrada por espaço. Ela adquire uma dimensão econômica equivalente à de

uma coqueluche [...]

Os vencedores da concorrência por espaço representarão apenas uma

pequena parcela dos muitos usos que geraram o sucesso conjuntamente.

Sejam quais forem, o uso ou os usos que se destacaram como mais lucrativos

na localidade se reproduzirão cada vez mais, expulsando e suplantando os

tipos de uso menos lucrativos. (JACOBS, 2011, p. 269)

O projeto Nova Luz já foi tema de algumas pesquisas, entre elas a de Frúgoli Jr. e

Sklair (2005), que aplicaram a etnografia urbana para coletar e observar as falas de

moradores, comerciantes e frequentadores das ruas do bairro. Os mesmos deram interessantes

depoimentos sobre as ações do projeto, as quais os pesquisadores analisaram da seguinte

maneira.

[...] quando perguntados sobre as demolições recentemente havidas, situadas

no perímetro da “Nova Luz”, a maioria entende que intervenções como essas

não resolvem tal problema, pois apenas promovem o deslocamento desses

grupos, o que é corroborado pelas inúmeras matérias de imprensa que

atestam que, frente a ações de repressão, os usuários de crack tendem a

migrar para locais das cercanias e aos poucos retornar aos espaços originais,

embora no caso da “Nova Luz” pretenda-se uma expulsão “definitiva” dos

mesmos, com a construção de uma nova paisagem urbana. De um modo

geral, tais demolições têm suscitado dúvidas e interrogações quanto à sua

extensão e ao que será efetivamente construído no local. (FRÚGOLI JR. e

SKLAIR, 2009, p. 125)

Na visão de alguns dos comerciantes entrevistados as ações não trouxeram muitas

mudanças. Os pesquisadores apontam que para esse público. “o atual estado dos quarteirões

atingidos piorou a situação do local ao deixá-los desertos, o que, por enquanto, afastou ainda

mais os fregueses.” (FRÚGOLI JR. e SKLAIR, 2009, p. 125)

Já o Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na

municipalidade de São Paulo (2011) apresentou os seguintes resultados em relação à

Operação Cracolândia:

Em janeiro deste ano foi iniciada a “operação Cracolândia” no centro da

cidade de São Paulo (principalmente na Rua Helvetia), onde até o mês de

março de 2012 (momento em que este relatório é composto) a polícia está

restringindo a circulação de usuários e traficantes de drogas naquela região.

Dos indivíduos em situação de rua entrevistados, 83,2% ficaram sabendo ou

assistiram a operação, 16,0% não e 0,8% não lembravam. Para os 83,2% que

responderam afirmativamente, 40,9% circulavam ou pernoitavam próximo a

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Região da Cracolândia. (57,4% não e 1,7% se recusaram a responder). Para

estes a vida dos indivíduos em situação de rua foi afetada por essa operação

de forma positiva (para 10,5%), de forma negativa para 17,2% e os restantes

72,3% acham que não interferiu na sua vida, foi, portanto, indiferente.

(2011)

Ao explanarmos o contexto da região do bairro da Luz, em momento algum tentamos

reduzir o cidadão em situação de rua à representação do dependente químico do Crack ou de

demais entorpecentes. Sabemos que essa população tem grande índice de dependência

química e, especialmente alcóolica, até como uma forma de socialização, no entanto, vale-nos

mais olhar para esse grupo como pessoas em condição de risco social, que estão lá por

diversas razões de ordem familiar, financeira, social, etc.

Ao explanarmos o grupo inserido nesse contexto, nossa intenção é apenas expor uma

das condições da população de rua, especialmente essa que ficou evidenciada pelo projeto

Nova Luz, para o melhor entendimento do que colocam Vieira et al. (1992), vive sob a

opressão de uma dupla solidão: a do passado, na qual rompe com sua família e a sua história;

e a do grupo social, onde por mais que viva acompanhado nas rua, muitas vezes está só em

suas relações sociais, não tendo amigos. No próximo item iremos caracterizar essa população,

para que possamos ter base teórica para a nossa análise de discurso.

Vale refletir ao final deste item sobre os três tipos de urbanismo proposto por Lefebvre

(2001), a saber:

a) O urbanismo dos homens de boa vontade (arquitetos, escritores) com base em

um planejamento humanista da cidade;

b) O urbanismo dos administradores ligados ao setor público, baseado na ciência;

c) O urbanismo dos promotores de venda, que o concebem para o mercado

visando o lucro.

Para a nossa análise, ter em mente esses tipos de urbanismo será de suma importância,

pois, como define Caiafa (2003):

A cidade também promove integração (ela não é só dispersão), mas local,

não global como faz o Estado. A recodificação urbana, as marcas que se

formam (e que estriam, delimitam, hierarquizam) são constantemente

redistribuídas porque a cidade não cessa de receber outros fluxos que

modificam seu espaço social e físico e portanto de se transformar e se

produzir por eles. (p. 92)

No item seguinte, traremos uma explanação sucinta do que é o morador de rua e como

o fenômeno será tomado em nossa análise.

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3.2. A outra cidade de São Paulo: o morador em situação de rua

3.2.1. Zé ninguém ou Zé alguém?

Nasceu da miséria

E se sente o cheiro daí

Se encheu de cachaça e saiu por ai

Não trabalha, mas também não explora

Não consegue compreender multidões contando horas

Na praça demonstra a sua fé

Babando satisfeito

E é movido com os pés

Zé Ninguém (Garotos Podres)

Ninguém ou alguém? Quem é esse cidadão que vive nas ruas de São Paulo e de tantas

cidades do País? Homem do saco, vadio, noia, sem-teto, mendigo ou vagabundo? Cidadão,

morador em situação de rua, desabrigado, desventurado ou todas as anteriores? Quem são

essas pessoas que, como muitas, tiram da rua o seu sustento, mas que, diferentemente das

outras, não voltam para suas casas e vagam pelas ruas, praças, muitas dormindo por lá mesmo

sobre a “maciez” da cama de cimento, forrada por papelões, e se aquecendo pela fogueira,

pela sensação de calor da aguardente ou, muitas vezes pelo cobertor das edições dos jornais

dos dias anteriores?

Optamos por iniciar esse texto, sobre a população em situação de rua, com a canção da

banda de punk rock Garotos Podres, intitulada Zé ninguém. E isso não é por acaso. Muitas

vezes, é assim que os moradores de rua são identificados nos discursos que circulam pela

cidade, e é dessa forma que esses indivíduos são marcados pela diferença com seus corpos

que fogem às normas que configuram o urbano. Para entendermos o conceito sobre os corpos,

tomamos o conceito do filósofo francês Michel Foucault (2008), que reflete sobre o controle

dos corpos como uma forma de controle social, pois um corpo dócil pode ser submetido,

utilizado, transformado e aperfeiçoado. Assim, refletimos se este corpo que não é dócil

nem é aperfeiçoado não pode ser associado ao morador de rua. O pensador explica as

diferenças dessa política voltada ao corpo, em relação a outros momentos históricos.

Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de

apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação

custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente

grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de

dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida

sob a forma da vontade singular do patrão, seu “capricho”. Diferentes da

vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas

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longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os

produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do

ascetismo e das “disciplinas” de tipo monástico, que têm por função realizar

renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em

obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de

cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das disciplinas é o

momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente

o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas

a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais

obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT, 2008, p. 118 e

119)

Esse diferente também constitui a cidade (por vezes outra cidade) resistindo naquele

âmbito, contra a violência, à perseguição policial, ao desdém da população, à fome, ao frio, às

doenças, a tantas mazelas...

O mendigo, o indigente, o marginal são vistos por outros segmentos sociais

como transgressores de uma ordem socialmente dada de organização do

espaço. O modo de ser e de agir da população de rua espelha uma desordem.

Eles ficam na frente das casas, bebem, ficam horas conversando, gritando,

empilham montes de lixo, obstruindo a circulação, dormem nos bancos das

praças durante o dia. (VIEIRA et al., 1992, p. 135, grifo do autor)

Neste item, tentaremos caracterizar quem é essa população, por que são corpos

diferentes em relação à normatização do urbano e por que ele constitui essa “outra cidade”, no

que concerne à cena midiática. Para chegar a esses objetivos tomaremos por base alguns

conceitos de cidade, cidadania, assistência social, identidade e diferença, dentre outras teorias

das ciências sociais. Dialogaremos com os alguns autores como a socióloga Maria Lúcia

Montes; a socióloga e pesquisadora da Fipe, Maria Antonieta da Costa Vieira; a assistente

social Cleisa Moreno Maffei Rosa; o teórico cultural jamaicano, Stuart Hall; o pesquisador

Marcel Burzstin; o geógrafo Milton Santos; o filósofo Zygmunt Bauman; além dos já citados

Henri Lefebvre e Jacques Le Goff. Antes, porém, vale ressaltar o que já falamos na

introdução deste trabalho, que não faremos distinção às terminologias “morador de rua”,

“morador em situação de rua”, “sem teto”, “homem da rua”, “população em situação de rua”

etc. Todas as expressões são referentes às pessoas que vivem nas ruas das cidades brasileiras.

3.2.2. O morador rua: do desejo ao descaso

Na cidade de São Paulo há uma população de 11 milhões de pessoas, das quais,

1447819

são moradores em situação de rua. A composição desses dados se dá considerando as

19 Segundo dados do Censo da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo (2011)

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pessoas que vivem nas ruas ou abrigadas nos centros de acolhida da prefeitura do Município

de São Paulo, os chamados albergues.

Esses números são controversos, pois é sempre muito difícil de contabilizar a

população de rua, especialmente por conta das metodologias utilizadas. Por exemplo, a

metodologia do Censo Populacional Brasileiro, do IBGE, que toma por base a residência, ou o

fato a população de rua está sempre em trânsito, sem local fixo, abrigadas ou não. Diante

desse contexto, fontes extraoficiais e especulativas falam de um número muito superior, 40

mil pessoas vivendo nas ruas de São Paulo. As pesquisadoras Vieira et al. (2006), explicam a

dificuldade.

Por tratar-se de uma população móvel e bastante heterogênea, que se desloca

não só geograficamente, mas também econômica e socialmente, torna-se

difícil precisar o número de pessoas que se encontram nas ruas da cidade.

Em função de suas condições de vida, tais pessoas podem alternar a rua com

outras situações habitacionais precárias e o trabalho na rua através de bicos

com o trabalho regular. Na rua misturam-se o morador tradicional e os que

ficam temporariamente nela e que, por vezes, percorrem vários pontos do

País em empregos na construção civil e em trabalhos agrícolas (p. 48).

Há ainda a condição definida pela ONU (Organização das Nações Unidas) que trata

como homeless (talvez a tradução do inglês mais aplicável a morador de rua) todas as pessoas

que vivem em habitações sem os padrões mínimos de habitalidade. No entanto, em nosso

caso, trabalharemos com os dados oficias de pesquisa, e o morador será apenas esses que

moram nas ruas e tiram dela seu sustento, não consideraremos moradores de favelas,

ocupações e ou depósitos de materiais reciclados (ferros-velhos), que muitas vezes possuem

quartos onde os trabalhadores podem pernoitar.

Ao olho nu, os moradores em situação de rua são facilmente reconhecidos pelas ruas

da cidade, por conta da indumentária em estado precário, por carregarem em suas trouxas

cobertores e outros pertences, pelos cabelos e barbas enormes e nada convencionais, enfim,

por muitos fatores demonstrativos que sua sobrevivência está nos limiares da dignidade e das

condições mínimas de saúde, higiene, educação, alimentação, etc. Esses condicionantes

demonstram como seus corpos estão desviados do padrão corporal do cidadão que tem

moradia fixa, emprego etc. Os sem-teto são, assim, marcados pela diferença justamente por

não terem seus corpos disciplinados, não estão controlados do ponto de vista de sua

distribuição, pois não estão em local definido, mas nas ruas ou de sua atividade, pois não tem

mais referências de horários ou compromissos. (FOUCAULT, 2008)

Bursztyn (2000) compreende esses cidadãos como excluídos do processo de geração

de riquezas (emprego) e da distribuição de seus frutos (consumo) (p. 20) e, assim,

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marginalizados, sobrevivem à custa de subemprego (catadores de lixo ou materiais recicláveis

em geral), de pequenos delitos, ou da solidariedade das pessoas e instituições.

Um dos marcos iniciais para compreendermos a configuração dessa população é a

condição de pobreza extrema, ou seja, uma ruptura, com os parâmetros que constroem uma

noção ordem de vida legítima, e passível de transformar quem vive nessas condições em

marginalizados de várias ordem (TELLES 1990 apud VIEIRA et al., 1992, p.18)

Diante desse aspecto, no qual a pobreza se sobrepuja como o fator econômico, Santos

(1979) explica: “Pobreza não é só privação material, mas um conjunto duradouro e complexo

de relações e instruções sociais, econômicas, culturais e políticas criadas para encontrar

segurança dentro de uma situação de insegurança” (p. 10). Então, quando pensamos a pobreza

em relação à situação de rua, estamos refletindo sobre questões que tem a ver com o dinheiro,

entretanto, também para muito além disso, sobre condições mínimas para uma vida que não se

torne marginalizada, ao ponto de se perder a referência de localidade, família e tempo.

A pobreza não se reduz, portanto, a uma questão meramente econômica, se

constituindo também num parâmetro de avaliação social. Neste contexto a

população de rua, que indiscutivelmente se encontra numa situação de

extrema pobreza, tem seu lugar social demarcado, sendo estigmatizada pela

sociedade como um todo e pela classe trabalhadora em particular (VIEIRA

et al., 1992, p. 18)

Alheios à sociedade de consumo, os moradores de rua são tidos, por alguns setores da

sociedade, como párias ou representantes do atraso, não somente de seu próprio

desenvolvimento econômico como também o da cidade, assim, argumentações de cunho

higienizador são comumente expressadas, em especial na cena midiática. Do outro lado do

debate público, há diversas entidades da sociedade civil que buscam a recuperação desta

população, como Associações, Organizações não governamentais e entidades ligadas a

instituições religiosas, como a Pastoral do Povo da Rua, em São Paulo, liderada pelo Padre

Júlio Lancellotti. Como já mencionamos, as causas de estarem nessa situação variam e

podemos considerá-las de diversas ordens, que também vão além da ordem econômica, elas

podem ser de ordem pessoal, da saúde mental, de dependência química, familiar ou social.

Na urbe, espaço de consumo, o morador vive à margem da sociedade de consumo, no

entanto não deixa de consumir, ainda que embora única e exclusivamente para sua

subsistência imediata.

Viver na rua não significa necessariamente viver sem dinheiro, mas em

grande parte significa adquirir o essencial à sobrevivência sem passar pelo

mercado. Não significa a eliminação do trabalho, mas o abandono do

compromisso constante e cotidiano do emprego, substituído por outras

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formas de trabalho, como os bicos, a coleta e venda de material reciclável

etc. (VIEIRA et al., 1992, p. 97)

Os moradores de rua também são demarcados pela diferença em relação às suas

práticas de consumo. Para Santos (1979) a sociedade urbana está particionada em duas,

caracterizadas e diferenciadas entre si, diante desse pensamento, compreendemos o morador

de rua como os que não têm acesso a mercadorias e consumo:

A sociedade urbana é dividida entre aqueles que têm acesso às mercadorias e

serviços numa base permanente e aqueles que, embora tendo as mesmas

necessidades, não estão em situação de satisfazê-las, devido ao acesso

esporádico ou insuficiente ao dinheiro. Isso cria diferenças quantitativas e

qualitativas de consumo (p. 37)

Na situação de rua, trabalho e consumo são significados de uma maneira diferente para

essa população que, em oposição ao que julga o senso comum, 2/3 dela possui o trabalho

como fonte de renda. Mais de 90% mescla isso entre trabalho e esmola e apenas 3,9% “não

faz nada” 20

.

Embora trabalhadores, esses homens e mulheres da rua, não veem na atividade laboral

como algo que construa sentido para sua vida, mas que apenas lhe propicia esse consumo

imediato e necessário. Fazem um “bico” aqui e acolá, por um prato de comida, uma garrafa de

pinga, ou qualquer outra recompensa que lhe faça sentido naquele instante. Como diz a letra

da música Zé Ninguém, o morador de rua “Não consegue compreender multidões contando

horas”.

De maneira geral, os moradores de rua se concentram nas áreas centrais da cidade,

pois é lá que se incluem de forma arbitrária ou alternativa ao ciclo do consumo, valendo-se da

aglomeração e circulação de pessoas durante o dia e o vazio noturno, fatos que podem lhes

conceder o contexto para viver suas atividades de subsistência: dormir sob marquises, pedir

esmolas ou comida, atuar em subempregos e, até, furtar objetos. Em suma, as ruas concedem

aos moradores de rua explorar criativamente diversas formas de sobrevivência. Vieira et al.

explicam (1992):

A concentração da população de rua no centro da cidade parece estar ligada

às oportunidades de garantir a sobrevivência através de pequenos bicos e

obtenção de alimentação gratuita, distribuída por entidades filantrópicas e

por restaurantes e bares. Além disso, pelo fato de o centro da cidade vir

sofrendo um processo de deterioração progressiva, torna-o também um lugar

de agregação da população de rua pela oportunidade de utilização de imóveis

abandonados, viadutos, além dos abrigos, albergues e inúmeras marquises de

20 Principais Resultados do Perfil Socioeconômico da População de Moradores de Rua da Área Central da

Cidade de São Paulo, 2010

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lojas e prédios públicos; a grande circulação de pessoas nessa área facilita a

prática da mendicância. (p. 50)

Usar a rua como moradia não é um fato novo no mundo. Existe desde os primórdios

daquilo que Lefebvre (1999) considera a cidade comercial, dentro de seu pensamento de

urbanização total da sociedade. Isso significa pensar que, embora nosso estudo seja com foco

para o morador de rua contemporâneo da metrópole moderna, esse fenômeno não é uma

exclusividade da modernidade e, tampouco da pós-modernidade. Temporalmente o conceito

de Lefebvre nos leva à cidade da Idade Média. Em diálogo com Le Goff (1998), se confirma

que o fenômeno dos sem-teto já ocorria naquela época, sendo inclusive uma prática

incentivada pela igreja e pelos governos, com o pretexto religioso da salvação dos homens

bons.

A respeito da mendicância urbana, nossa mentalidade evoluiu

completamente: eis um ponto em que sopra o espírito de continuidade. Até a

crise do século XIV, o pleno emprego predomina, mais ou menos, na cidade

medieval; e se o pobre deve recorrer à mendicância, esta é, se não louvada,

ao menos reconhecida. Na Igreja, as novas ordens do século XIII,

dominicanos e franciscanos, denominam a si mesmas ordens mendicantes. O

mendicante é quase que desejado na cidade, ele permite ao burguês trabalhar

pela sua salvação oferecendo esmolas. Hoje nos submetemos a um sistema

totalmente distinto. Nas cidades medievais, se os conselhos de cidade

tivessem tomado resoluções proibindo a mendicância, teriam sido

completamente incompreendidos e, provavelmente, teriam suscitado

rebeliões. A mendicância tinha, com efeito, um duplo mérito: de um lado,

coloca em evidência a miséria do homem, e, de outro, para aqueles que se

acham do lado bom da roda da Fortuna, ela dá a oportunidade de trabalhar

por sua salvação mediante a esmola, que persiste, e até se desenvolve, como

a forma de caridade que é, de longe, a mais recomendável. Praticamente se

ia à procura dos pobres, fazendo-os migrar para a cidade para oferecer ao

burguês a possibilidade de fazer a caridade. (LE GOFF, 1998, p. 52 e 54)

Notem que, para o bem ou mal a diferenciação entre os cidadãos e população de rua

faz sentido desde a idade média como uma dinâmica própria da cidade. Daquela época aos

dias atuais, se mantém a noção de corpos diferentes para o morador de rua, no entanto se

descontinua essa significação de benefício trazido pela população de rua à cidade e ao cidadão

comum, normatizado, pois diferentemente dos tempos medievais, quando, como vimos com

Le Goff, quando os moradores de rua eram desejados pelas lideranças citadinas, sejam como

justificativa de tributos a suas crenças cristãs – como controle social por parte do governo –,

atualmente despertam um problema de ordem social para a gestão das cidades. Notem que na

Idade Média havia um inusitado contexto, eram os próprios corpos diferentes usados como

instrumento de normatização da sociedade.

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Já se olharmos para a contemporaneidade, e com base em Bauman (2009), pensar não

somente no morador de rua, mas pessoas em pobreza absoluta, chamada por ele de

underclass, significa pensar que essa população é formada por indivíduos, digamos “inúteis”

à vida social, sendo dispensáveis para sociedade.

Hoje, apenas uma linha sutil separa os desempregados, especialmente os

crônicos, do precipício, do buraco negro da underclass (subclasse): gente

que não se soma a qualquer categoria social legítima, indivíduos que ficaram

fora das classes, que não desempenham alguma das funções reconhecidas,

aprovadas, úteis, ou melhor, indispensáveis, em geral realizadas pelos

membros “normais” da sociedade; gente que não contribui para a vida social.

A sociedade abriria mão deles de bom grado e teria tudo a ganhar se o

fizesse. Não menos sutil é a linha que separa os “supérfluos” dos criminosos;

underclass e “criminosos” são duas subcategorias de “elementos anti-

sociais” que diferem uma da outra mais pela classificação oficial e pelo

tratamento que recebem que por suas atitudes e comportamentos.

(BAUMAN, 2009, p. 7, grifo do autor)

Despossados e indesejados na sociedade contemporânea, o povo da rua têm o corpo

como um dos poucos bens, além de seus pertences, geralmente uma sacola, chamada galo ou

trouxa, que facilita sua locomoção, pois podem dormir cada dia em um local distinto. Para

zelar pelo corpo e sob o temor da violência, que assola essa população nos grandes centros,

procuram dormir em grupos, mas quanto maior o grupo, mais fácil de serem alvo da polícia,

pois ficam mais expostos aos citadinos que os veem como geradores de algazarras e sujeira,

ou seja, o grupo torna-se mais indesejado. Segundo o relatório, Principais Resultados do

Perfil Socioeconômico da População de Moradores de Rua da Área Central da Cidade De

São Paulo, 2010 (SCHOR e VIEIRA, 2010), 2/3 da população de rua de São Paulo já foi

vítima de algum tipo de violência, seja de seus pares, ou de policiais, transeuntes e

comerciantes. Já no Censo e caracterização socioeconômica da População em situação de

rua na municipalidade de São Paulo (2011) o número de pessoas que dizem já terem sofrido

agressões é de 52,8%.

A violência é apenas uma das consequências, pelas quais, está sujeita a população de

rua. Segundo Vieira et al. (1992), o desapego, ou a perda de referenciais, é uma consequência

que ocorre de forma natural e gradativamente ao sem-teto. O conjunto de novas significações

laborais familiares e habitacional, motivadas pelas perdas de referencial, favorecem a

instabilidade e transitoriedade, e dificultando a possibilidade de laços permanentes, pois o

indivíduo acaba se tornando uma pessoa cada vez mais “descompromissada” e sem vínculos.

O morador de rua não paga a residência, e não assume os compromissos que

isto implica: aluguel, taxas, pagamento de água e luz, consegue roupas

doadas e se serve de uma rede filantrópica que distribui alimentação. Além

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disso, recorre a instituições assistenciais, a fim de obter auxílio financeiros e

orientação. (p. 97 e 98)

Quanto à referência familiar o dado demonstra que apenas cerca de 1/3 (33,1%)21

dos

moradores de rua vive acompanhado da família. Dessa maneira intuímos que essa população

aos poucos adquire outros referenciais em relação à família, moradia e trabalho.

Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à condição de

espoliação, enfrentando carências de toda sorte, mas significa, também,

adquirir outras referências de vida social, diferentes dos anteriores baseados

em valores associados ao trabalho, à moradia, às relações familiares

(VIEIRA et al., 1992, p. 96)

Essa nova relação de referenciais para sua vida é obtida mediante muita dificuldade, e

essa dificuldade é um fator importante para nossa análise. Levamos em consideração que a

dificuldade em se viver na rua, em hipótese alguma pode ser naturalizada, desconsiderada,

pelo fato de as pessoas não terem mais compromisso com coisas básicas da vida. Pelo

contrário, a dificuldade é uma evidência que nos ajuda a compreender o fenômeno, pois se

trata de uma nova compreensão do viver a essas pessoas:

A inserção no mundo da rua não se dá de forma repentina. Gradativamente o

indivíduo vai abandonando hábitos, costumes e conceitos, para pouco a

pouco ir vivenciando e adquirindo um novo entendimento da rua e – por que

não dizer? – da vida. (VIEIRA et al., 1992, p. 98)

As autoras ainda complementam:

A rua deixa de ser o contraponto negativo da casa entendida como proteção e

cooperação, passando a ser percebida como espaço possível de

sobrevivência, como lugar de trabalho e moradia. Trata-se, na verdade, de

um processo de perdas, por um lado, e de novas aquisições, por outro.

(VIEIRA et al., 1992, p. 98)

Assim, morar na rua confere ao morador uma reutilização dos espaços públicos com

novos significados, atividades que são do âmbito privado como lavar-se, dormir ou comer são

realizadas no espaço comum. Diante de uma relação tão complexa como é essa de estar na

rua, Vieira et al. (1992), classificaram os estágios dessa situação, com base no fato de que:

A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de se constituir num abrigo para

os que, sem recurso, dormem circunstancialmente sob marquises de lojas,

viadutos ou bancos de jardim ou pode constituir-se em um modo de vida,

para os que já têm na rua o seu habitat e que estabelecem com ela uma

complexa rede de relações. (p. 93)

21 Principais Resultados do Perfil Socioeconômico da População de Moradores de Rua da Área Central da

Cidade De São Paulo, 2010

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As mesmas autoras definem o estágio inicial, no qual o indivíduo circunstancialmente

dorme nas ruas, como Ficar na rua; na sequência quando a pessoa está há pouco tempo

ficando toda a sua jornada nas ruas como Estar na rua; e o último e terceiro estágios se

configuram quando a pessoa já está totalmente habituada à rua e esta se torna a sua referência

principal. A este estágio as autoras denominam como Ser da rua. No quadro abaixo, proposto

por Vieira et al. (1992) uma síntese de como é a relação desses três estágios com a moradia, o

trabalho e os grupos de referência.

Quadro 2: Classificação da população de rua por estágio de permanência22

Esquema das situações de permanência na rua

Ficar na Rua Estar na rua Ser da rua

Moradia Pensões, albergues,

alojamentos

(eventualmente rua)

Rua, Albergues, pensões

(alternadamente)

Rua, mocós

(eventualmente albergues

e pensões)

Trabalho Construção civil, empresas

de conservação e

vigilância

Bicos na construção

civil, ajudante geral,

encartador de jornal,

catador de papel

Bicos, especialmente de

catadores de papel,

guardador de carros,

encartador de jornal

Grupo de

referência

Companheiros de trabalho,

parentes

Companheiros de rua e

trabalho

Grupos de rua

3.2.3. Como se veem e como são vistos pelos outros

Sem documento, sem identidade, assim está o morador de rua da cidade de São Paulo,

segundo pesquisa sobre a o perfil da população de rua na cidade de São Paulo, das

pesquisadoras Silvia Maria Schor e Maria Antonieta Costa Vieira (2010), quase metade não

possui documento algum:

Quase a metade dessa população não possui qualquer documento, o que as

exclui da vida civil, deixando de ter direitos e de serem reconhecidas como

cidadãos. Outros têm alguns documentos, mas é alta a proporção dos que

não têm documentos essenciais como a carteira de identidade, o CPF, título

de eleitor e carteira de trabalho. (2010)

22 Fonte: Vieira et al. (1992)

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Sem o documento que os identifica formalmente, qual é a identidade desse morador de

rua? Ele possui uma identidade? Se sim, como reivindicar a sua cidadania? Essas questões é o

que tentaremos explicar a partir de agora.

É do imaginário popular a expressão: “Se você não se comportar, o homem do saco

vai vir te pegar!”, desta forma, algumas mães chantageavam seus filhos que se comportavam

mal. Homem do saco é uma das alcunhas possíveis para o morador de rua. Em especial, serve

para identifica-los às crianças. Por mais que pareça uma inocente expressão, essa prática

discursiva revela como a identidade do morador de rua, é significada para as pessoas, ou seja,

como um delinquente, um marginal ou alguém que possa representar uma ameaça à

ingenuidade das crianças.

Para falar dessa identidade significada dessa maneira, iremos tomar como referência o

pensamento de Stuart Hall (2006) sobre a questão da identidade nacional e realizar um

transporte análogo deste conceito para compreender a identidade do morador em situação de

rua. Visto que uma cultura nacional pode ser representada por meio das práticas discursivas

são nos discursos os locais onde as identidades nacionais são defendidas, imaginadas,

expostas, significadas e reproduzidas:

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais,

mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um

discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto

nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...] As culturas

nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais

podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão

contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que

conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.

Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma

“comunidade imaginada”. (HALL, 2006, p. 50 e 51)

Grosso modo, compreendendo essa nação como as ruas, e considerando que o

discurso será o local no qual a identidade é imaginada, exposta, significada e reproduzida,

compreende-se que o simples fato de se falar às crianças que o “Homem do saco vai pegar”

ou mesmo uma canção como Zé Ninguém – que por mais que defenda a dignidade população

de rua –, já demonstram que as práticas discursivas são perpassadas pelo imagético produzido

sobre o morador de rua na sociedade. No caso do morador de rua, mesmo em situação de

pesquisa, em que as práticas discursivas são auto expressivas (fala-se de si ou do próprio

grupo), essas significações de identidade demonstram traços parecidos sobre a identidade do

povo da rua, como afirmam Vieira et al (1992).

É comum os moradores de rua referirem-se a si mesmos como trabalhadores

e a seus companheiros como maloqueiros, gente que não quer trabalhar.

Nesse sentido, evitam identificar-se com seus iguais quando estes revelam a

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face do estigma, preservando para si a identificação com os valores

constituídos. (p. 101)

Ao pensarmos no morador de rua a partir desse conceito, obviamente, não estamos

apontando uma identidade nacional, mas uma identidade coletiva e essa não se difere

conceitualmente da identidade nacional, no que diz respeito à forma como são significadas.

Por outro lado, temos a população que não é moradora de rua, essas se identificam e são

identificadas, como outro grupo específico, normatizadas em relação ao urbano. Podemos

apreender com essa observação o que diz Kathryn Woodward (2009), que a identidade é,

assim, marcada pela diferença.

Se é por meio dos discursos, especialmente os midiáticos, que uma identidade – a de

morador de rua, a nacional ou qualquer outra – é imaginada, expressada, constituída,

reproduzida, representada, etc., é também, por meio da relação entre o que está dentro

(identidade) e fora (diferença) que ela se demarcada (WOODWARD, 2009). A autora ainda

expõe que a complexidade da vida moderna permite a existência de diversidades de posições

disponíveis, que se manifestam, também, pelas práticas discursivas. Os discursos da cultura

nacional são caracterizados da seguinte forma por Hall:

O discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser.

Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o

passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias

passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As

culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a

recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a nação era

“grande”; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este constitui o

elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas

frequentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para

mobilizar as “pessoas” para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem

os “outros” que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma

nova marcha para a frente. [...] Alguma coisa do mesmo tipo pode estar

ocorrendo na Europa Oriental. As áreas que se separam da antiga União

Soviética reafirmam suas identidades étnicas essenciais e reivindicam uma

nacionalidade sustentada por "estórias" (algumas vezes extremamente

duvidosas) de origens míticas, de ortodoxia religiosa e de pureza racial.

Contudo, elas podem também estar usando a nação como uma forma através

da qual possam competir com outras “nações” étnicas e poder, assim, entrar

no rico “clube” do Ocidente. (HALL, 2006, p. 56 e 57)

Esse resgate de tradições muitas vezes perpassa os discursos que constroem a

representação do morador de rua, sejam essas construções com base em representa-los como

cidadãos de direitos, sejam para diferenciá-los, por meio da higienização. Especialmente por

esse motivo último, em muitas falas do cidadão normatizado, o morador de rua é considerado

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alguém não legítimo a viver em determinado local. A antropóloga Maria Lúcia Montes aponta

para a questão, questionando as construções sociais:

Essas representações evidentemente são construídas diferentemente, segundo

diferentes tipos de sociedade, segundo o lugar diferencial que o indivíduo

ocupa nessa sociedade, segundo o conjunto de valores, de ideias, de normas

etc. que pautam o código de leitura, através do qual ele interpreta a sua visão

de mundo, ele interpreta sua vida, ele organiza sua percepção da realidade.

O que eu quero dizer com isso é que não há, portanto, identidade que não

seja socialmente construída, simbolicamente construída, no plano simbólico

da cultura; nós estamos falando de alguma coisa que é, antes de tudo, não

uma coisa, mas um feixe de relações. Identidade não é coisa, identidade é

relação. (MONTES, 1995, p. 194)

Quanto ao significado do morador em situação de rua para a população em geral, eles

serão identificados como outro, o sujeito que é marcado pela diferença, por desestabilizar o

urbano com o seu corpo fora do esperado. Assim, um discurso higienizador como medida

para resolução do problema parece ser sempre o indicado.

Consideradas essas características, não é de admitir que o comportamento

mais geral da sociedade em relação à população de rua seja inspirado pelo

desejo de não olhar para as suas próprias mazelas. Inscreve-se nesse

contexto a forte pressão dirigida aos vários órgãos da Prefeitura do

Município de São Paulo, por parte da grande parcela da população, a fim de

que remova para longe de suas casas os habitantes alojados nos vários

lugares públicos. (VIEIRA et al., 1992, p. 132)

No entanto, conforme o assunto se coloca na agenda política, também propiciado pelo

agendamento do jornalismo na sociedade, o morador passa a ser significado de outras formas.

Ocas”, por exemplo, propõe isso em sua missão, como uma tentativa de fazer o público rever

o sentido do que é o moradia na rua e o risco social. Ou seja, o morador de rua como um

sujeito que detém direitos.

Por sua vez, a população de rua vem de forma lenta constituindo seus

espaços de luta, através de manifestações em protesto pela falta de moradia,

de emprego. Em vez de mendigo, indigente, maloqueiro, denominações

como sofredores de rua, povo da rua, começaram a substituir a identidade

estigmatizada de caído, criando condições para que esses indivíduos se

vejam como grupo social e não apenas como fracassados solitários, únicos

responsáveis por sua situação, e para que possam ser vistos não como

clientes, carentes, mas como sujeitos, com direito à cidadania. (VIEIRA et

al., 1992, p. 102 e 103)

3.2.4. Brancos, negros, índios, tanto faz: um grupo heterogêneo

Ao olharmos para a população de rua da cidade de São Paulo e das grandes cidades do

Brasil, deparamos com uma grande diversidade no que diz respeito a questões de gênero,

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religião, raça, etnia, geração, etc. Essa diversidade, especialmente a étnica, no entanto não é

considerada diferenciadora da identidade do grupo. A população de rua é sempre considerada

homogênea para, quem está fora dela.

Embora o senso comum possa intuir que as minorias étnicas sejam percentualmente

quem mais forma esses grupo, esse não é um fator determinante, há uma distribuição igual

entre brancos (36,7%), pardos (34,0%) e negros (26,7%). Indígenas (1,7%) e orientais (0,3%),

ficam mais atrás na lista. Adultos predominam nas ruas, sendo oito a cada 10 pessoas23

. A

indiferença em relação a isso é percebida inclusive nos atos de violência.

Constatou-se que não há diferença ou discriminação por idade, sexo ou cor

das vítimas, quando se trata de morador de rua. A violência é praticada por

vários agentes contra os moradores de rua em geral, porque nessa condição,

eles formam uma massa de pessoas iguais, o que reforça a perda da própria

identidade e a situação de total exclusão social. Tornam-se também, alvo

fácil da violência praticada por vários agentes, inclusive por moradores de

rua, porque passam a disputar entre eles, um espaço vital e também as

migalhas que restam para que continuem sobrevivendo. (SCHOR e VIEIRA,

2010, p. 6)

Quanto ao aspecto econômico, será que a questão social está em evidência na

identidade da população de rua, sendo essa composta apenas por pobres? Ou melhor, as

questões acima mencionadas estão compreendidas nas representações e, por consequência, na

identidade e nos regimes de visibilidade do morador em situação de rua? As respostas para

essas questões são simples, porém problematizadas.

A população de rua das grandes cidades do Brasil é sim composta por uma grande

diversidade cultural, ou seja, é multicultural, tomando por base o conceito de

multiculturalidade trabalhado por Hall (2003).

São pobres, negros, brancos, pardos, nordestinos, paulistanos, pessoas do interior do

Brasil, homens, mulheres, velhos, jovens, homossexuais, crianças que vivem nas ruas. Por

isso, qualquer discurso que pasteurize a identidade da população em situação de rua como

uma única cultura e homogênea pode ser perigoso e tratar-se de um discurso essencialista, ou

seja, com propriedades essenciais. O morador de rua não é essencialmente o homem pobre,

negro, viciado em drogas, o Zé Ninguém ou o Homem do Saco. Talvez o único ponto a ser

evidente na população de rua é a pobreza extrema. Ela é uma das possibilidades de se

identificar o homem da rua, ao menos para o que entendemos serem fatores que os

demarquem como diferentes em nossa análise.

23 Dados do (Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na municipalidade de São

Paulo (2011) – Principais Resultados, 2011)

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Neste texto tentamos mostrar quem é o morador de rua, como é caracterizado e

identificado como um corpo diferente frente a normalidade do urbano. As causas de estarem

nessa situação variam e podemos considerá-las de diversas ordens: pessoal, econômicas,

saúde mental, dependência química ou social. Enfatizamos conceitos que servem de base

teórica para o encadeamento teórico com a Análise de Discurso de Linha Francesa.

Resolvemos tratar do assunto caracterizando o morador em situação de rua, seu modo de vida

e sua identidade da analogia do conceito de identidade nacional, abordado por Stuart Hall e

vimos que são nas práticas discursivas que as identidades são imaginadas, expostas e

defendidas.

Mais a frente, os discursos midiáticos nos servirão de base para o entendimento de

quem é esse homem da rua, ou melhor, como é construída sua a identidade. Defendemos as

práticas discursivas durante todo o trabalho, pois são elas que constroem e, ainda, promovem

a identidade, em especial para o homem de rua. Portanto é a partir de locais discursivos, como

a mídia que podemos entender essa população. Montes coloca:

[...] a gente percebe, para além das diferenças, que afinal de contas estão

presentes, algumas coisas que constroem a identidade desse homem de rua:

são discursos muitos específicos que a sociedade produz. Significações com

as quais meu olhar vai enfrentar aquele outro, e aquele outro olha e aceita ou

não o código de identificação a partir do qual estou lendo. (MONTES, 1995,

p. 195)

Para finalizar este item e introduzirmos o seguinte, no qual falaremos da cidade sob o

aspecto midiático, fazemos uma indagação a partir de Canclini (2002).

Diferentemente da cidade delimitada, “fornecedora de identidade, proteção e

sentido” (Campra, 1994:39), cabe perguntar como são formadas agora as

identidades nessas urbes que não se opõem à natureza nem a outras cidades

tão rigidamente como no passado. (p. 45)

Esta é a história de Zé ninguém

Na porta dos bares

À cama de cimento

Zé ninguém não é excremento

Zé Ninguém (Garotos Podres)

3.3. A cidade como espaço de comunicação, consumo e sentidos

São Paulo, menino grande

Cresceu não pode mais parar

E o pátio do colégio quem lhe viu nascer

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Um velho ipê parece chorar

Não vejo a sua mãe preta

Na rua com seu pregão

Cafezinho quentinho, sinhô,

Pipoca, pamonha e quentão.

Lembrar, deixa-me lembrar, laiarálalaiálaiá

São Paulo, Menino Grande (Geraldo Filme)

Um dos grandes nomes do samba paulistano, Geraldo Filme – assim como Adoniram

Barbosa e Paulo Vanzolini –, traz, em muitos momentos de sua obra, representações da cidade

de São Paulo, com um olhar especial para o que se transforma lentamente com o tempo.

Rupturas, continuidades, identificações e descaracterizações marcam as transformações da

cidade e as composições desses músicos, que, nostálgicos, retomam uma cidade que se

descaracteriza com o passar dos tempos.

Nos versos de São Paulo, Menino Grande, Filme constrói, a partir de seu ponto de

vista, uma representação da transformação urbana da cidade de São Paulo, que segundo ele,

não cessa em crescer e que já não é mais a mesma. A cidade está marcada por encontros e

desencontros típicos de uma grande metrópole. Mas esse processo não é por acaso, aconteceu

devido a um modelo específico de desenvolvimento econômico em nosso País, como

apontamos anteriormente.

Essa construção da representação da cidade, feita pelo compositor na obra, está

localizada no que o antropólogo italiano, Massimo Canevacci (2004) considera um “processo

contínuo de dissolução”:

Inúmeros testemunhos recolhidos sobre São Paulo confirmam como esta

metrópole está inserida num processo contínuo de dissolução, um eterno

repensar e reconstruir a mesma cidade que também se apresenta a cada

geração como sempre diferente e sempre idêntica (p. 33)

Se, nos dois itens anteriores caracterizamos a cidade e o morador em situação de rua,

agora tentaremos mostrá-la de forma ampliada e gigante, por meio de suas reconstruções

simbólicas, como espaço de comunicação, de consumo midiático, produção de sentido e de

representações sociais.

Justificamos este pensamento, pois estamos considerando a cidade como um ambiente

propício de e para a comunicação. Ruas, prédios, parques, todos os cenários e os elementos da

cidade comunicam; também os jornais, revistas, enfim, todos os veículos de comunicação são

meios de circulação de discursos e, por consequência, de produção de sentidos e de

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representações sociais da e sobre a cidade. Note-se que, nesta perspectiva, a cidade é uma

instância comunicacional. A cidade é signo que significa.

Nosso percurso, neste item da dissertação, será realizado da seguinte maneira: a

caracterização da metrópole comunicacional, o papel das revistas impressas neste cenário, o

consumo midiático e, enfim, as representações sociais do morador de rua.

3.3.1. Polis ou polifonia? A cidade como instância de comunicação

Estar na cidade é estar diante de uma miríade de sentidos, produzidos em um espaço

onde os indivíduos se encontram e se relacionam. Um desses sentidos produzidos pela cidade

é o fato dela ser compreendida como um ambiente comunicacional. Mas o que nos leva a

compreensão desse sentido?

Para chegarmos a essa compreensão é necessário olharmos para o espaço urbano com

foco nos mais precisos detalhes e realizando as mais complexas conexões interpretativas,

como indica Canevacci (2004) “Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E

lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma

pluralidade de significados. Ou de encruzilhadas herméticas.” (p. 35)

Ao refletirmos diante da pluralidade de sentidos da cidade, sendo um deles o ambiente

comunicacional, enxergamos um duplo processo. O primeiro deles se refere à comunicação

como uma extensão do urbano e o segundo à comunicação como uma forma de representar o

urbano.

Chegamos a essa observação com base nos conceitos de Orlandi (2004), pelo fato de a

cidade introduzir uma dimensão da representação sensível de suas formas, e, simultaneamente

ser de um espaço de cidadania.

No território urbano, o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um,

estando o corpo do sujeito do sujeito atado ao corpo da cidade, de tal modo

que o destino de um não se separa do destino do outro. Em suas inúmeras e

variadas dimensões: material, cultural, econômica, história etc. O corpo

social e o corpo urbano formam um só. (p. 11)

É importante que não nos esqueçamos, o que já falamos a respeito da cidade como

espaço para encontro da diferença. Ao relacionarmos o conceito de encontro das diferenças ao

da instância comunicacional, temos o que Caiafa (2003) defende. Para a autora é justamente

no encontro com o diferente que se dá, de forma mais intensa, o ato comunicativo, pois, esses

encontros sendo uma marca das cidades a caracteriza como um universo de circulação e

comunicação único.

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No caso dos processos de comunicação no meio heterogêneo da cidade, a

exposição a uma variedade imprevisível parece intensificar esse

investimento na diferença. Também uma experiência subjetiva singular pode

acontecer por essa exposição à heterogeneidade. Deixar-se afetar por

estranhos é de certa forma já mudar ou sair um pouco de si. (p. 96)

Retomamos a ideia de duplo processo no qual se dá a comunicação no ambiente

urbano. Para o primeiro caso – da extensão do urbano –, pensamos que quanto maior a cidade

e sua população, mais dependente da comunicação ela se torna, devidos à necessidade de se

lidar suas grandezas e complexidades. Por isso, tomamos como perspectiva que observar a

cidade vai muito além de simplesmente olharmos para a Polis – o espaço do fazer política na

antiguidade –, mas para a polifonia, ou seja, para os vários sentidos que compõem sua

instância comunicacional. Embasamos esse entendimento no que aponta Canclini (2002),

sobre a reorganização do político e da cidade por meio da comunicação:

Na segunda metade do século XX, quando a concentração demográfica e a

expansão territorial das megacidades debilitam a conexão entre suas partes e,

ao mesmo tempo, as redes comunicacionais levam a informação e o

entretenimento aos domicílios, os usos das cidades são reorganizados: a

desordenada explosão rumo às periferias, que faz com que os habitantes

percam o sentido dos limites de “seu” território, é equilibrada com os relatos

dos meios de comunicação sobre o que acontece nos lugares mais distantes

dentro da cidade. Do passeio do flâneur que reunia informações sobre a

cidade para depois transferi-las às crônicas literárias e jornalísticas,

passamos, em cinquenta anos, ao helicóptero que sobrevoa a cidade e

oferece a cada manhã, através da tela do televisor e das vozes do rádio, o

panorama de uma megalópole vista em conjunto, sua unidade recomposta

por quem vigia e nos informa. Os desequilíbrios e incertezas engendrados

pela urbanização que desurbaniza, por sua expansão irracional e

especulativa, parecem ser recompensados pela eficiência tecnológica das

redes de comunicação. A caracterização sócio-demográfica do espaço

urbano não consegue dar conta de seus novos significados se não incluir

também a recomposição que a ação midiática lhes imprime. (p. 41)

Pelo exposto acima, entende-se ainda que paradoxalmente a urbanização é uma

motivação para uma “desurbanização”, pois distancia os homens de sua participação política

na cidade. Assim, a comunicação substitui ou complementa os espaços destinados ao fazer

política e, por meio dela, é possível viver, praticar a cidadania e consumir a cidade a partir do

consumo das representações dela que circulam nos meio de comunicação. Em linhas-gerais,

podemos intuir que, o que antes era discutido na praça, ganha espaço na mídia. Um exemplo

disso seria dizer que quando lemos uma reportagem em um jornal ou uma revista sobre um

acidente, uma política pública ou uma tendência de consumo, é como se estivéssemos

vivenciando esses episódios, por meio de representações da cidade que foram construídas

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nestes espaços midiáticos. É, com efeito, essa representação do urbano que complementa o

duplo processo comunicacional da cidade que comentamos.

No entanto, devemos ter o cuidado para não tomarmos as construções de

representações da cidade e confundi-las com o que é a cidade de fato. Canevacci (2004) nos

alerta a isso, quando pensa a cidade como objeto etnográfico:

Qualquer representação de um objeto, e particularmente a do objeto

etnográfico, não poderá nunca coincidir com a suposta “essência” do próprio

objeto. Será sempre uma reconstrução aproximativa, historicamente

estabelecida pela compreensibilidade dos códigos que assinalam as

diferenças, exatamente como o mapa e o território. Uma carta geográfica que

se ambicione ser totalmente idêntica ao seu objeto só poderia resultar numa

sua onipotente reprodução. Um segundo território. Mas uma carta geográfica

igual a Roma não tem utilidade alguma. Nela se condensa somente um

narcisismo sem fronteiras nem limites, de um eu que gostaria de coincidir

com o objeto da própria pesquisa, para identificar-se com ela e,

definitivamente, absorver e anular este objeto dentro de uma ambiciosa

dilatação de si próprio. (p. 138, grifo do autor)

É importante observarmos a relação que existe entre a representação do urbano e o

discurso urbano. Em nossa pesquisa os discursos do urbano considerados serão os discursos

jornalísticos, que consequentemente propiciam a produção de sentidos pela cidade e, por meio

dessa produção é que são trazidas as representações da cidade. Ou seja, com a produção de

sentido é que são construídas as representações da cidade. Entretanto há outras materialidades

para o discurso urbano, como lembra Orlandi (2004):

Constrói-se ao mesmo tempo o efeito do fato na história e no sentido em sua

forma de dizer. A cidade não tem um narrador, um seu contador de histórias

(como o cego nordestino, o violeiro, o velho indígena etc). A narratividade

urbana tem vários pontos de materialização. Moventes. Fulgurações.

Materialidade dispersa. E é nas suas relações que podemos compreender os

seus sentidos. (p. 31)

Como mencionamos, iremos considerar apenas o discurso jornalístico, pois, ao

abordá-lo, entendemos ser ele uma das materialidades que produzem sentidos sobre a cidade.

Mais especificamente, as revistas impressas serão os suportes materiais para a análise das

representações da cidade. Entendemos que com a escolha desse tipo de gênero impresso,

teremos condições de observar a cidade como instância comunicacional, seja como o local

para se fazer a política, seja como representação, no duplo processo citado anteriormente. A

importância dos meios de comunicação (como um todo) para a representação e consumo da

cidade é explicada por Canclini (2002):

Os relatos mais influentes sobre o que significa a cidade emergem agora da

imprensa, do rádio e da televisão. No tumulto heterogêneo e disperso de

signos de identificação e referência, os meios não propõem tanto uma nova

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ordem, mas sim oferecem um espetáculo reconfortante. Mais do que

estabelecer novos lugares de pertencimento e de identificação de raízes, o

importante para as mídias é oferecer certa intensidade de experiências. Em

vez de oferecer informações que orientem o indivíduo na crescente

complexidade de interações e conflitos urbanos, os meios de comunicação

ajudam a imaginar uma sociabilidade que relaciona as comunidades virtuais

de consumidores midiáticos: os jovens com outros jovens; as mulheres com

suas iguais; os que se interessam por algum esporte com outros praticantes

em diferentes lugares da mesma cidade e do mundo; os gordos com os

gordos; os que gostam de salsa ou bolero ou rock com outros que têm as

mesmas preferências. As comunidades organizadas pela mídia substituiriam

então os encontros nas praças, os estádios ou os salões de baile pelos não-

lugares das redes audiovisuais. (p. 42)

Mais precisamente, o mesmo autor trata da imprensa, como “o primeiro recurso

tecnológico moderna para informar-se sobre a cidade”. Segundo Canclini (2002) o surgimento

do jornalismo impresso é capital para “a instauração da noção moderna de esfera pública, e

este meio continua oferecendo mais oportunidades que os demais para a elaboração do debate

sobre os assuntos públicos”, sem se esquecer da diversidades dessas vozes:

A dispersão da imprensa em uma grande cidade [...] já oferece uma primeira

idéia da variedade de atores que intervêem nessa disputa, a partir de

diferentes interesses e posições. A esta diversidade de enunciadores é

necessário somar ainda a multiplicidade de vozes internas (jornalistas,

publicidade, editores com posições diferentes), nacionais e internacionais

(agências, correspondentes) existentes em um jornal. Esta diversidade

costuma ser maior e sofrer menos censura na imprensa que nos outros meios

de massa. (p. 44)

Uma das justificativas que nos leva a escolher revistas como o suporte material dos

discursos jornalísticos, que comporão nossos corpora, é característica deste tipo de veículo.

Estamos seguindo a caracterização que a pesquisadora Ana Luiza Martins (2001) faz do

gênero e da importância que vê nele como documento de pesquisa.

Fonte preferencial para pesquisas de teor vário, a revista é gênero de

impresso valorizado, sobretudo por “documentar” o passado através de

registro múltiplo: do textual ao iconográfico, do extratextual – reclame ou

propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários àquele de seus

consumidores. (p. 21)

O extratextual citado pela pesquisadora é pertinente ao nosso processo de pesquisa,

especialmente quando tomamos o nosso principal referencial teórico, a ADF que, dentre as

suas características metodológicas, uma das mais relevantes e a possibilidade de se analisar o

contexto no qual o discurso é produzido, o ponto de vista de Martins, justifica a nossa ideia.

Nesse sentido, a constância do uso de revistas como fonte histórica vem

revelando que frases e imagens de periódicos pinçadas aqui e acolá,

descosturadas do mergulho em seu tempo – vale dizer, no imaginário

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construído ao seu tempo – não iluminam suficientemente o passado. A

pertinência desse gênero de impresso como testemunho do período é válida,

se levarmos em consideração as condições de sua produção, de sua

negociação, de seu mecenato propiciador, das revoluções técnicas a que se

assistia e, sobretudo, da natureza dos capitais nele envolvidos. (idem)

Além das motivações acima, a revista, tem como característica “passar em revista” a

diversos assuntos para serem lidos de maneira fragmentada, não contínua, e por vezes

seletiva” (MARTINS, 2001, p. 45). Por essas caracterizações entendemos as revistas como

espaços para materializações do discurso jornalísticos, e, consequentemente das

representações da cidade.

Neste ponto vale relembrarmos que, embora os discursos jornalísticos possam trazer

representações da realidade, devemos tomar cuidado em considerar suas objetividades. Sobre

as reconstruções da realidade, Canevacci aponta:

Qualquer descrição do objeto é uma sua transfiguração simbólica. O objeto

não será nunca representável a partir dele próprio, mas sempre a partir de

uma passagem de nível lógico, que é também uma passagem de nível

comunicativo. É esta passagem, transformada em códigos, que se inscreve

no mapa. [...]

Isto quer dizer que não existe reconstrução da objetividade sem

subjetividade; e que esta subjetividade é também abstração, cujos níveis

cognitivos são plasmados por razões e emoções, reflexões e expressões, cujo

resultado final será a passagem para uma “outra” classe de conceitos. A

transfiguração do objeto-território em mapa-subjetivo é o resultado de tais

passagens (CANEVACCI, 2004, p. 139)

A representação da cidade nas revistas é, então, consumida e assim os sentidos sobre

a cidade são produzidos. Agora tentaremos explanar como se caracteriza esse consumo

midiático.

3.3.2. Consumo midiático e as representações sociais

Nesta etapa do texto, iremos observar uma especificidade bem particular do consumo,

o consumo midiático. Para explaná-lo tomaremos como base conceitual as leituras sobre

consumo de Canclini, da antropóloga Mary Douglas e do economista Baron Isherwood, o

pesquisador Roger Silverstone e antropólogo hispano-colombiano Jesús Martín-Barbero e

faremos assim um deslizamento de suas teorias para o consumo midiático.

É a partir do consumo midiático que se dá apreensão dos sentidos produzidos pela

cidade. Em nosso caso de pesquisa, a apreensão de sentido se dá na forma de leitura, ou seja,

no momento em que os cidadão leem as notícias da leitura dos veículos impressos. A relação

entre consumo e leitura se dá a partir do que expõe o Martín-Barbero (2009):

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Se entendemos por leitura “a atividade por meio da qual os significados são

organizados num sentido”, resulta que na leitura – como no consumo – não

existe apenas reprodução, mas também produção, uma produção que

questiona a centralidade atribuída ao texto-rei e à mensagem entendida como

lugar da verdade que circularia na comunicação. Levar a centralidade do

texto e da mensagem à crise implica assumir como constitutiva a assimetria de

demandas e competências encontradas e negociadas a partir do texto. Um texto

que já não será máquina unificadora da heterogeneidade, um texto já não-

cheio, e sim espaço globular perpassado por diversas trajetórias de sentido.

(p. 293, grifo do autor)

Retornando ao conceito de consumo, primeiramente temos de pensar seu modo de

funcionamento, segundo a leitura Douglas e Isherwood (2009) os bens consumidos não

somente concedem subsistência como comida e abrigo, mas também como estabelecedores de

relações sociais. Canclini (2010) estende essa compreensão ao defender a tese de que o

consumo pode representar a condição de cidadãos aos indivíduos:

Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos

cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me

informar, que representa meus interesses – recebem sua resposta mais

através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação do que

pelas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em

espaços públicos. (p. 29)

Canclini ainda considera que a vinculação entre consumo e cidadania demanda um

reposicionamento do mercado na sociedade tentar a reconquista imaginativa dos espaços

públicos, do interesse pelo público. Neste momento, retomamos o que citamos no item

anterior da dissertação, quando defendemos a cidade a interrelação de cidade e consumo.

“Assim o consumo se mostrará como um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e atuar

significativa e renovadoramente, na vida social.” (CANCLINI, 2010, p. 72)

Tanto Canclini, como Douglas e Isherwood, quando tomam o consumo como base de

seus pensamentos, o consideram simbólico ou que produz sentidos nos consumidores. Mesmo

as práticas de consumo mais elementares e classificadas como subsistentes são consideradas

como uma forma simbólica de consumo:

A comida é um meio de discriminar valores, e quanto mais numerosas as

ordens discriminadas, mais variedades de comida serão necessárias. O

mesmo quanto ao espaço. Atrelado ao processo cultural, suas divisões são

carregadas de significados: casa, tamanho, o lado da rua, a distância de

outros centros, limites especiais – todos são categorias conceituais.

(DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009, p. 113 e 114)

Numa aproximação simplista podemos entender que as pessoas consomem uma e não

outro de vinho, pois o que consome lhe concede alguma significação. O mesmo vale para um

passeio por um parque da cidade, ou de um específico meio de comunicação. Vale ressaltar

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105

que a conceituação de consumo que utilizaremos para a compreensão do consumo midiático

não deve, em hipótese alguma, ser compreendida como consumismo ou o consumo conspícuo

(ostentação).

Essas duas exceções são importantes para a compreensão do que chamamos de

consumo midiático. Pois, assim como propõe Canclini, o consumo midiático também se

caracteriza como um conjunto de processos socioculturais:

Proponho partir de uma definição: o consumo é o conjunto de processos

socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Esta

caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais consumimos como algo

mais do que simples exercícios de gostos, caprichos e compras irrefletidas,

segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais, tal como

costumam ser explorados pelas pesquisas de mercado. (CANCLINI, 2010, p.

60)

Ou seja, consumimos notícias, por meio das revistas, e estas, em seus discursos

jornalísticos, trazem representações sobre a cidade, porque esse ato faz parte de um processo

sociocultural. Assim, ao consumirmos notícias estamos consumindo a cidade e, de alguma

forma, participando ou exercendo nosso papel de cidadão.

Mas devemos nos atentar que o consumo, enquanto simbólico, também é regido pelas

forças que compõem a sociedade. Assim, o consumo é também compreendido na

modernidade como algo “eminentemente social, correlativo e ativo”, que também não deixa

de se apresentar a partir do ponto de vista hegemônico das elites, como aponta Canclini

(2010):

Ainda em situações plenamente modernas, o consumo não é algo “privado,

atomizado e passivo”, sustenta Appadurai, mas sim “eminentemente social,

correlativo e ativo”, subordinado a um certo controle político das elites. Os

gostos dos setores hegemônicos tem um função de “funil”, a partir da qual

vão sendo selecionadas as ofertas exteriores e fornecidos modelos políticos-

culturais para administrar as tensões entre o próprio e o alheio. (p. 66)

Apesar de ser regido pelo hegemônico, há espaços para negociações nesses nas

práticas de consumo. Martín-Barbero (2009) problematiza a questão entre hegemonia e

consumo, trazendo o conceito de espaço de lutas:

O consumo não é apenas reprodução de forças, mas também produção de

sentidos: lugar de uma luta que não se restringe à posse dos objetos, pois

passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes dão forma social e nos

quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação provenientes de diversas

competências culturais. (p. 292, grifo do autor)

Assim, nem não necessariamente, ao consumirmos as representações da cidade, nas

revistas, estamos atuando de forma passiva. Seja lendo uma publicação alinhada aos valores

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burgueses como VEJA São Paulo, ou supostamente alternativa como Ocas”, os sentidos

produzidos serão alinhados aos valores da publicação.

Vale citar ainda que o consumo midiático é regido por rituais. Especialmente as

revistas impressas que possuem uma periodicidade específica (mensais, semanais, quinzenais,

bimestrais, etc.). As revistas impressas são, com efeito, acessórios rituais:

Viver sem rituais é viver sem significados claros e, possivelmente, sem

memórias; Alguns são rituais puramente verbais, vocalizados, não

registrados; desaparecem no ar e dificilmente ajudam a restringir o âmbito da

interpretação. Rituais mais eficazes usam coisas materiais, e podemos supor

que, quanto mais custosa a pompa ritual, tanto mais forte a intenção de fixar

os significados. Os bens, nessa perspectiva, são acessórios rituais; o

consumo é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo

incompleto dos acontecimentos. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009, p.

112)

Neste trecho do texto tivemos a intenção de mostrar como mercadorias (revistas) e o

consumo servem para ordenar a sociedade. Ao realizarmos a aproximação de consumo

midiático – da imprensa em nosso caso –, como uma forma de apreender os sentido da cidade

e que propicia uma participação como cidadão como indivíduos, estamos em acordo com

aquilo que enuncia Canclini:

A imprensa contribui para a imagem de uma cidade massiva, cujas

particularidades se concentram no centro histórico ou em outras regiões

centrais. Às vezes, os jornais publicam informações sobre lugares pouco

conhecidos, mas com maior freqüência, principalmente em fotografias,

mostram cenários facilmente identificáveis, que tendem a reproduzir saberes

convencionais. Estamos, portanto, diante de um meio que oferece mais

elementos discursivos que outros para refletir sobre a cidade e elaborar a

condição de cidadão, mas que não contribui para expandir a visão sobre a

cidade em uma proporção comparável ao crescimento de seu território e sua

complexidade. A despeito da ênfase sobre a novidade e, em alguns jornais,

sobre o insólito, a maioria termina por concentrar-se no conhecido. Embora

se descrevam como informadores de fatos atuais e, portanto, como meios

que privilegiam o presente, a maioria dos jornais insiste no já habitual,

prolongando estereótipos formados historicamente. (CANCLINI, 2002, p.

45)

Falamos muito sobre o consumo da cidade, e sobre o consumo de representações da

cidade. Um dessas representações é a do morador em situação de rua? Sua representação na

mídia é consumida e assim, são produzidos sentidos sobre eles. Para tentar explicar o conceito

de representação, tomaremos como referência o que fala o psicólogo social francês Serge

Moscovici sobre representações sociais:

As representações sociais são entidades quase tangíves. Elas circulam

cruzam-se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um

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encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais

estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações

trocadas, delas são impregnados. (MOSCOVICI, 1978, p. 41)

Com base no descrito acima, e tomando a nossa pesquisa como foco, as representações

sociais circulam pelos discursos jornalísticos e impregnam nos sentidos produzidos. Então, se

na cena midiática a circulam representações sociais do sem-teto como um corpo diferente em

relação ao urbano, ou um cidadão de direitos é assim que os sentidos sobre essa população

serão produzidos.

No entanto, o mesmo autor faz uma distinção entre o que a representação social, que

ele chama de algo tangível e o mito. Logo, as representações sociais sobre o morador de rua

estão relacionadas diretamente aos sentidos produzidos por eles e não naquilo que se acredita

que eles são. Assim, Moscovici, faz uma distinção necessária entre representação social e

mito.

Enquanto que o mito constitui, para o chamado homem primitivo, uma

ciência total, uma filosofia única em que se reflete sua prática, sua percepção

da natureza das relações sociais, para o chamado homem moderno a

representação social constitui vias de apreensão do mundo concreto,

circunscrito em seus alicerces e em sua consequências. Se os grupos ou os

indivíduos a ela recorrem – na condição de que não se trate de uma escolha

arbitrária – é certamente para tirar proveito de uma das múltiplas

possibilidades que se oferecem a cada um. (MOSCOVICI, 1978, p. 44)

Em relação a nossa pesquisa, as representações sociais poderão ser o produto de nossa

análise, pois “atuam por meio de observações de análises dessas observações e de noções e

linguagens de que se apropriam à esquerda e à direita, nas ciências e nas filosofias, e tiram as

conclusões que se imponha [...]Observações análogas aplicam-se a outros conceitos da série:

ideologia, visão de mundo. etc., que tendem a qualificar globalmente um conjunto de

atividades intelectuais e práticas. (MOSCOVICI, 1978, p. 45).

Quanto ao consumo de representações sociais do morador de rua, essa pode sim

diferente daquilo que é imaginado (mito), no entanto, a partir do momento em que

categorizações ideológicas como o trabalho, a reabilitação das drogas, a exclusão social são

presentes na linguagem, consideramos que essa sim faz parte de uma representação social e

não de um mito.

Neste ponto apontamos para uma situação interessante. O homem da rua muitas vezes

é caracterizado no senso comum por características fenotípicas que aproximam a

representação social do mito. Muitas vezes na impressa isso pode ser evidenciado. Esse senso

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comum, com base na representação e no mítico pode ser um sintoma da produção midiática,

como afirma Silverstone.

É no mundo mundano que a mídia opera de forma mais significativa. Ela

filtra e molda realidades cotidianas por meio de suas representações

singulares e múltiplas fornecendo critérios, referências para a condução da

vida diária, para a produção e a manutenção do senso comum.

(SILVERSTONE, 2005, p. 20)

Embora pensamos no senso comum, a negociação se coordena nos processos

comunicativos, Hall aponta da seguinte forma.

É esse processo de coordenação dos interesses de um grupo dominante aos

interesses gerais dos outros grupos e à vida do estado corno um todo

constitui “hegemonia” de um bloco histórico particular (CP, p. 182). É

somente em momentos como esse da unidade do “nacional popular" que a

formação daquilo que ele denomina ''vontade coletiva” se torna possível .

(HALL, 2003, p. 293)

Interessa-nos colocar exemplos da mídia, pois como aponta Silverstone.

O papel circulante da comunicação e das referências, assim como seu

vínculo com o social, impede respostas totalizantes – “não se pode obter uma

única teoria da mídia”. Aponta-se, assim, o “ponto de partida. A experiência.

(SILVERSTONE, 2005, p. 19)

A representação social do morador de rua é construída na imprensa a partir dos valores

dessas práticas discursivas. Assim, esse sem-teto de forma mista entre a representação e o

mito. Ainda assim, embora exista essa tentativa de construção de representação identidade

dessa maneira, não podemos ainda cravar que a mídia não é hegemônica, mas transforma o

que passa por ela. Embora possamos até discutir a forma como a revista coloca esses

moradores de rua e não outros. Vale a pena observar, que ela, embora com um discurso

dominante (representando o branco, estrangeiro, etc.) não podemos negar que há uma

negociação para não estereotipar o morador de rua como o pobre, negro ou pardo, viciado,

desempregado, etc. O que fica como observação de nossa análise é que a mídia pode exercer

uma dominação, mas uma dominação articulada. Para a nossa reflexão vale trazer mais uma

vez Silverstone:

[...] A mídia depende do senso comum. Ela o reproduz, recorre a ele, mas

também o explora e o distorce. [...] Os preconceitos de nações e gêneros. Os

valores, atitudes, gostos, as culturas de classes, as etnicidades etc, reflexões e

constituições da experiência e, como tais, terrenos-chave para a definição de

identidades, para a nossa capacidade de nos situar no mundo moderno.

(SILVERSTONE, 2005, p. 21)

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E sobre a complexidade de se afirmar uma representação identitária para o morador de

rua e a dificuldade de uma definição única, refletimos com Hall:

O próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, é

demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco

compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente

posto à prova. Como ocorre com muitos outros fenômenos sociais, é

impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos seguros

sobre as alegações e proposições teóricas que estão sendo apresentadas.

(HALL, 2006, p. 8)

Agora que o menino cresceu

Perdeu sua simplicidade

Desprezou o seu amor-perfeito

E um cravo vermelho, amigo do peito

São Paulo de Anchieta

E de João Ramalho

Onde estão teus boêmios,

A sua garoa, cadê seu orvalho?

Lembrar, deixa-me lembrar, laiarálalaiálaiá

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4. PRODUÇÃO DE SENTIDOS NAS REVISTAS OCAS” E VEJA São Paulo:

REPRESENTAÇÃO DA DIFERENÇA NO DISCURSO JORNALÍSTICO

4.1. Apresentação dos corpora e dos critérios de seleção

Para realizarmos a análise dos discursos jornalísticos a respeito da representação dos

moradores em situação de rua das duas publicações, definimos alguns critérios de seleção, a

saber: tema, recorte temporal, valor-notícia, vozes enunciativas.

Fizemos primeiramente um recorte temático. Escolhemos os textos que, de alguma

forma, tenham como tema o sem-teto. Em princípio todos os textos que abordavam a temática

direta ou indiretamente foram selecionados. Em resumo, fizemos um levantamento

quantitativo sobre a incidência do tema “moradores de rua” e/ou “moradores em situação de

rua” e/ou “sem teto”, ou termos correlatos nos dois veículos. Salientamos que assuntos que

apresentam aderência com o tema, como risco social, revitalização urbana, moradia e

habitação, esmolas, violência, políticas pública, assistência social, reinserção social etc. foram

considerados em nosso recorte temático.

Após delimitarmos o tema, realizamos um recorte temporal das veiculações do tema,

compreendido entre janeiro de 2005 e dezembro de 2012. A motivação do recorte foi analisar

todo o período da gestão do prefeito Gilberto Kassab (2006-2012), mais o ano de 2005 no

qual Kassab foi vice-prefeito da cidade e um dos idealizadores do projeto de revitalização do

Bairro da Luz, intitulado Projeto Nova Luz, realizado pela Prefeitura do Munícipio São Paulo

(PMSP).

Consideramos, assim, o projeto como marco temporal à nossa pesquisa, pois é um

marco social para a cidade de São Paulo. Segundo seu site oficial, o Projeto Nova Luz é

descrito como:

O Projeto Urbanístico Específico da Nova Luz propõe a requalificação de

uma área localizada na região central do Município de São Paulo fazendo

uso da Concessão Urbanística, um Instrumento de Política Urbana, previsto

no Plano Diretor Estratégico da cidade.

O que se busca com a implantação do Projeto é diversificar os usos

instalados, intensificando o uso residencial e mantendo a dinâmica da região.

Um local para morar, trabalhar e se divertir, no qual as pessoas estejam

cercadas por elementos históricos e culturais, com espaços públicos

convidativos, para circulação e convívio de moradores e daqueles que fazem

uso da área, privilegiando pedestres e ciclistas.24

24 Disponível em http://www.novaluzsp.com.br/projeto.asp?item=projeto. Acesso em 5 de maio de 2013.

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Esse marco temporal se justifica, pois o projeto teve grande repercussão na imprensa a

partir do momento em que foi anunciado, especialmente no que tange a questão dos

moradores de rua da região e, consequentemente pelas ações coordenadas pelos governos

municipal e estadual para remoção dessa população do local, gerando um debate entre os

grupos que defendem ações sociais para resolução do problema do morador de rua e alguns

setores da sociedade paulistana que os entendem como uma das marcas da degradação do

bairro da Luz, justamente pelo alto número de viciados em crack, numa região que a mídia

convencionou a denominar Cracolândia. Ou seja, para se resolver o problema basta retirar

essa população do local.

Temos ainda um indício que motiva nossa curiosidade em relação ao tema. Entre

2005 e 2009, houve um aumento em 30% da população de rua na cidade de São Paulo25

,

atingindo o número de 13 mil pessoas, nessa situação. Este aumento nos faz pensar que a

temática do sem-teto passou a gerar interesse do público, e assim, temos a expectativa que o

tema passe a estar em evidencia na mídia e no agendamento da mídia (agenda setting), ou

seja, a ter o valor-notícia, fato que nos aguçou a curiosidade em saber, não somente que eles

“viraram notícia”, mas sim como viraram.

Além do critério temático, há um recorte geográfico. Somente serão analisadas as

matérias que abordam a situação de rua na municipalidade de São Paulo.

Nossos corpora são assim definidos por tema, por tempo e por recorte geográfico.

Embora extenso como mostraremos adiante, consideramos que isso foi necessário, como

aponta a pesquisadora Márcia Benetti (2007)

Por isso, sugerimos que os pesquisadores que analisam o discurso

jornalístico escolham uma amostragem considerável de textos, capaz de ser

representativa do funcionamento de um tipo de discurso em um período

determinado. Ao contrário dos estudos iniciais de AD, que tratavam em

profundidade de um único texto, a tendência hoje é buscar compreender de

forma mais exaustiva os mecanismos de construção do discurso jornalístico.

Sendo a AD um gesto de interpretação do pesquisador, a representatividade

do corpus em análise é um dos mecanismos de vigilância epistemológica que

podem permitir conclusões mais contundentes a respeito dos discursos. (p.

121, grifo da autora)

Diante os critérios para definição dos corpora, iniciamos a pesquisa documental na

qual, trabalharíamos inicialmente com um universo de 58 edições de Ocas” (periodicidade

mensal e bimestral) e de 416 edições de VEJA São Paulo (periodicidade semanal) – dado que

25 Disponível em http://vejasp.abril.com.br/materia/cada-morador-de-rua-custa-r-350-por-mes-para-prefeitura.

Acesso em 11 de maio de 2013.

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112

Ocas” até o mês de agosto de 2006 tinha periodicidade publicação mensal e depois passou a

ser bimestral.

Algumas de nossas expectativas durante a coleta foram frustradas. Verificamos a

ausência de alguns exemplares de ambos os veículos, a saber: não conseguimos encontrar

cinco edições de VEJA São Paulo e duas de Ocas”. Entretanto, para os termos de nossa

análise, essa ausência, não implica em um problema de pesquisa, pois não estamos a analisar

sob uma abordagem quantitativa o fenômeno pesquisado.

As pesquisas nos documentos da revista Ocas” foram realizadas com o apoio da

OCAS, que edita a revista e nos emprestou os exemplares necessários à pesquisa, da edição

31 (fevereiro de 2005) a 87 (dezembro de 2012). Tivemos duas exceções, as edições 30

(janeiro de 2005) e 53 (mai/jun de 2007) não estavam disponíveis.

Durante o percurso de pesquisa, verificamos que algumas características estruturais da

revista foram se modificando. Por exemplo, a edição 78 (jul/ago de 2011), que apresentou um

novo projeto gráfico, e a alteração da identidade visual do nome que passou a não ter mais o

slogan, “Saindo das ruas”. Vale mencionar que após essa alteração, também observamos que

o conteúdo teve uma leve alteração. O morador de rua em São Paulo nas matérias exclusivas

passa a ser substituído por personalidades consagradas, especialmente na capa, que teve

Ariano Suassuna, Lenine, dentre outros. Esse aspecto nos chamo muito a atenção.

Já as pesquisas documentais na revista VEJA São Paulo foram realizadas em três

locais diferentes, conforme a disponibilidade dos exemplares. Iniciamos no Arquivo Público

do Estado de São Paulo, passamos pela Hemeroteca da Biblioteca Mario de Andrade e

finalizamos na Biblioteca da ESPM-SP. Nessas buscas não localizamos as seguintes edições:

1989 (1, ano 40); 2143 (38, ano 42); 2262 (1, ano 45); 2277 (16, ano 45); e 2299 (38, ano 45).

Na revista VEJA São Paulo também observamos uma alteração de projeto gráfico,

precisamente na edição 39, do ano 42 (30 de setembro de 2009). Nesta mesma época, a

tiragem informada apresentava 370 mil exemplares, cerca de 23% a mais do que atualmente o

kit de mídia apresenta, atualmente. Um ponto que achamos interessante foi a incidência

recorrente do tema Cracolândia na revista, com uma sequência 7 incidências de junho/2010 a

maio de 2012.

Encontramos em Ocas” uma incidência de 176 textos jornalísticos (informativos e

opinativos) com a temática do morador em situação de rua, desses, 133 eram, de alguma

forma, referente ao recorte geográfico da cidade de São Paulo.

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Na pesquisa da revista VEJA São Paulo, 70 incidências de textos jornalísticos

(informativos e opinativos) com o tema morador em situação de rua foram observadas, todas

elas referentes à cidade de São Paulo.

Do resultado da pesquisa em Ocas”, verificamos 63 incidências de textos opinativos

(47,37%) e 70 incidências de textos do gênero informativo (52,63%) o que nos faz considerar

que o morador de rua em Ocas” está representado, em textos dos gêneros informativos ou

opinativos, basicamente na mesma proporção.

Em Veja essa mesma divisão em gêneros se dá da seguinte forma, das 70 incidências,

11 (15,71%) são do gênero opinativo e 59 informativo (84,29%). Ou seja, observamos aqui a

primeira diferença comprovada da diferença da abordagem entre os dois veículos. Ocas”,

como de era de se esperar, assume uma postura mais opinativa em relação ao tema morador

de rua, que VEJA São Paulo.

Como parte de nossa análise, sob aspecto jornalístico, aplicamos a este universo de

203 incidências do tema morador em situação de rua, nas duas publicações o critério de

Valor-Notícia, expostos no item 1.2. Esse procedimento nos fez filtrar somente os discursos

jornalísticos que entendemos ter relevância de noticiabilidade para cada um dos veículos.

Assim, chegamos em VEJA São Paulo a um número de 41 incidências (58,57% do

total) de discursos jornalísticos compreendo o tema morador de rua e com o valor-notícia.

Dessas 37 (90,24%) eram do gênero informativo e 4 (9.76%) do gênero opinativo.

Em Ocas”, ao aplicarmos o critério de valor-notícia, dos 133 artigos jornalísticos

encontrados 71, ou 53,38% das matérias selecionadas de Ocas” tinham noticiabilidade

considerada pelos critérios descritos acima. Foram encontradas 30 artigos do gênero opinativo

(42,25%) e 41 do gênero informativo (57,75%).

Após a aplicação do critério valor-notícia, percebemos que no geral, os resultados

percentuais referentes aos gêneros jornalísticos se mantiveram. Uma proporção 4 para 6 em

Ocas” e 1 para 9 em Veja. Proporção entre textos opinativos e informativos, respectivamente.

Num segundo momento, aplicamos conceitos da análise de discurso, como meio para

triar o material a ser analisado. A partir do mapeamento das Vozes enunciativas que traziam

representações sobre o morador de rua e o interdiscurso entre as duas publicações

pesquisadas. Com o resultado desse critério pudemos filtrar as matérias que traziam

representações do morador de rua a partir dos enunciadores e que tinham temas recorrentes,

os quais fizemos a conversação de discursos dos dois veículos. Nossa intenção com essa

triagem foi chegar a um número que consideramos satisfatório e aplicável para a nossa

análise. Assim chegamos ao seguinte quadro para a análise em Ocas”:

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114

Quadro 3: Corpus de análise em Ocas”

Ed. Mês Ano Pg Seção Gênero Título Autor

35 jun 2005 12 Cabeça

sem teto

Artigo “Carroceiros e

mendigos saem de

cena”

Oficina de

Criação Ocas”

33 abr 2005 30 Cranianas Artigo Revolta, Indignação e

uma pergunta: até

quando?

Rodrigo Ciríaco

43 mar 2006 13 O País Reportagem E depois da rampa? Alan de Faria

73 set/out 2010 15 Capa Reportagem Luta pela dignidade Alex Anunciato

50 nov/dez 2006 23 Carrossel Reportagem Um homem (bem)

visível

Viviane Águia

65 mai/jun 2009 9 Cabeça

sem teto

Reportagem Antes que o frio doa... Sebastião

Nicomedes

72 jul/ago 2010 19 O País Reportagem Mercado subterrâneo Ana Lígia

Scachetti

33 abr 2005 10 Cabeça

sem teto

Reportagem A droga nem sempre

leva à exclusão, mas

a exclusão é a maior

droga

Antonio César

Andrade et al.

37 ago 2005 16 Capa Reportagem Um fato, várias

versões e o cheiro da

impunidade

Kenia Rezende e

Alan de Faria

81 jan/fev 2012 27 Em

questão?

Crônica Em vez de Polícia,

Política!

Raquel Rolnik

79 set/out 2011 27 Em

questão?

Crônica Adivinhação Neide Duarte

45 mai 2006 10 Cabeça

sem teto

Reportagem “Não tinha futuro, só

trabalho”

Oficina de

Criação, Tula

Pilar, Dário

Bertolutti

46 jun 2006 14 O País Reportagem O amor está nas

ruas...

Jaqueline

Máximo e

Leandro

Conceição

61 set/out 2008 8 Cabeça

sem teto

Reportagem Vozes em busca de

direitos

Márcio

Seidenberg

64 mar/abr 2009 8 Cabeça

sem teto

Reportagem Escola da Rua:

Ensinado e

aprendendo

Márcio

Seidenberg

73 set/out 2010 5 Editorial Opinativo Ouvidoria das ruas Ocas”

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115

Os 16 textos acima, compõem o corpus de análise da revista Ocas” e os 15 textos

abaixo o corpus de análise em VEJA São Paulo.

Quadro 4: Corpus de análise em VEJA São Paulo

Ed. Dia Mês Ano Pg Seção Gênero Título Autor

1896 16 mar 2005 12 Urbanismo Reportagem Dez ideias

para o centro

Alessandro

Duarte,

Marcos

Buarque de

Gusmão

2045 16 jan 2008 24 Perfil Reportagem Ele não foge

da briga

Camila

Antunes e

Alessandro

Duarte

2148 28 out 2009 28 Cidade Reportagem Cenas de um

centro

abandonado

Giovana

Romani

2153 2 dez 2009 26 Assistência Reportagem Degradação

que se

esparrama

Henrique

Skujis

2235 29 jun 2011 47 Imóveis Reportagem Vizinhos da

Cracolândia

James

Cimino

2277 9 mai 2012 22 Cidade Reportagem A vida no

abrigo da

Cracolândia

Maurício

Xavier

2020 8 ago 2007 54 Cidade Reportagem Em quem o

frio dói mais

Edison

Veiga

2177 19 mai 2010 29 Criminalidade Reportagem Dez mortes

em quatro

dias

Daniel

Salles

2276 2 mai 2012 26 Cidade Reportagem Estrangeiros

sem teto

Claudia

Jordão

1941 1 fev 2006 126 Ivan Angelo Artigo Crianças de

rua

Ivan Angelo

1959 7 jun 2006 8 Mistérios da

cidade

Nota O muro do

Center 3

Edison

Veiga,

Regina

Cazzamatta

e Roberto

Gerosa

1998 7 mar 2007 38 Cidade Reportagem Cortiço na

Oscar Freire

Maria Paola

de Salvo

2026 19 set 2007 26 Assistência Reportagem 1sem-

teto=350

reais (por

mês)

Edison

Veiga

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116

2238 20 jul 2011 41 Cidade Reportagem Uma noite no

albergue

Pedro

Henrique

Araújo

2252 26 out 2011 39 Perfil Perfil “Não fujo de

uma

polêmica”

Daniel

Bergamasco

4.2. Protocolo de Análise dos corpora

Após selecionarmos nossos corpora, com base nos critérios citados no item anterior,

realizamos a análise dos discursos jornalísticos. Para isso, além de termos como referencial

teórico a Análise de Discurso de Linha Francesa, associadas às teorias da comunicação e

consumo, jornalismo, cidades, etc., tomaremos por base um protocolo de análise que

compreenderá os seguintes aspectos:

Compreensão do Valor-notícia de cada matéria que tiver o tema morador de rua;

Identificação das vozes enunciativas que trazem as representações do morador de rua;

Interdiscurso no discurso jornalístico sobre os moradores de rua nos veículos

investigados (política; social; diversidade/diferença);

Produção de sentidos da cidade e dos moradores de rua, a partir da identificação das

formações imaginárias e das formações discursivas. Buscam-se, aqui, as

representações da cidade e dos moradores de rua;

Identificação das representações do morador de rua;

Comparação das representações nas duas publicações.

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117

4.3. Análise dos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo

Sem São Paulo

Oh! Oh! Oh!

O meu dono é a solidão

Diga "sim"

Que eu digo "não"...

Quem é seu dono?

Ninguém, São Paulo

Quem é seu dono?

Ninguém, São Paulo...

São Paulo (365)

Quem é o dono da cidade de São Paulo? Para a Banda 365, ninguém. Em uma

metrópole, ponto de encontro das diferenças, com suas especificidade e complexidades, é

difícil imaginar um dono ou, simplesmente uma característica latente e única.

No entanto, são nos discursos jornalísticos, em seus contextos de produção, em suas

memórias e formações discursivas, e especialmente nas interdiscursividades que a cidade,

embora não possa ser determinada, é compreendida e representada a partir da produção de

sentidos sobre ela. Como expõe Eni Orlandi:

A cidade tem assim seu corpo significativo. E tem nele suas formas. O rap, a

poesia urbana, a música, os grafitos, pichações, inscrições, outdoors, painéis,

rodas de conversa, vendedores de coisa-alguma, são formas do discurso

urbano. É a cidade produzindo sentidos. Como flagrantes de um olhar (um

corpo) em movimento. São formas de significar com sua poética, por assim

dizer, incluídas na própria forma material da cidade. Não se destacam dela

senão para funcionar como lembretes (chamadas) para o exterior. E isso é

que faz com que aí se inaugurem outras formas de narratividade que não têm

um narrador com seu “conteúdo”, nem são textos fechados, destacados das

condições de que fazem parte. (ORLANDI, 2004, p. 31)

Conforme enuncia Orlandi, as músicas utilizadas na construção desta dissertação

podem ser uma forma de “corpo significativo da cidade” e do “discurso urbano”. A essas

noções, associamos o discurso jornalístico que também participa na constituição dos sentidos

da cidade. É justamente por meio da produção de sentidos do discurso jornalístico que

buscamos compreender a representação do morador em situação de rua nos dois veículos

pesquisados. A partir da identificação dos valores-notícia, das vozes enunciativas e da

interdiscursividade desenvolvemos nossa análise a partir do mapeamento de alguns assuntos

relacionados ao tema morador de rua, a saber: consumo do sem-teto; drogas, dependência

química e Cracolândia; esporte e reinserção social; estrangeiros nas ruas; frio; habitação,

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118

cidadania, direitos e políticas públicas; infância; relacionamento amoroso entre moradores em

situação de rua; remoção da população em situação de rua e revitalização urbana; e violência

contra a população de rua.

Vale observar que alguns dos textos selecionados em nossa pré-análise são compostos

por mais de um dos assuntos mencionados no parágrafo anterior e que, alguns assuntos, como

o trabalho, embora não eleito como categoria ou procedimento discursivo por nós, é

recorrente em muitos dos casos em Ocas”, pois o morador em situação de rua é

frequentemente apresentado como um trabalhador nessa publicação.

Quanto às representações sociais do morador de rua, iremos apresentá-las a cada

exemplo. Também identificaremos o valor-notícia, as Vozes Enunciativas e os interdiscursos,

quando esses forem importantes para encontrarmos a representação social do sem-teto. Com

intenção de facilitar a compreensão, antes de cada texto analisado apresentaremos um

pequeno quadro com as informações do texto e o resumo da análise.

Ordenamos as análises dos textos de forma aleatória a partir do que compreendemos

como relevância dos assuntos, de forma a propiciar uma leitura contextualizada por assuntos

ao leitor.

4.3.1. Análise dos discursos em Ocas”

Iniciaremos nossa análise com base nos discursos jornalísticos da revista Ocas”.

Como resultado de nossa etapa prévia de análise chegamos a dez assuntos relacionados ao

tema sem-teto, que ancoram as representações sociais do morador em situação de rua

consideramos pertinentes para a compreensão do fenômeno estudado.

Quadro 5: Resumo da Análise do texto “Carroceiros e mendigos saem de cena”26

Título Autores Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representações

do morador de

rua

“Carroceiros e

mendigos saem de

cena”

Oficina de Criação

Ocas” Autores

(Ocas”)

Andrea

Matarazzo

Vejinha

Resposta à

Vejinha Cidadão de

direitos;

Oprimido;

Fora da lei

26 Quadro elaborado pelo autor.

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119

O primeiro texto que iremos analisar é o artigo “Carroceiros e mendigos saem de

cena”27

, publicada no mês de maio de 2005, e de autoria dos participantes da Oficina de

Criação de Ocas”, explanado no item 1.3. Ao analisarmos os enunciados, percebemos as

seguintes vozes enunciativas, por ordem de importância: prioritariamente os autores,

participantes da Oficina de Criação; em segundo lugar a revista VEJA São Paulo, que

inclusive, enuncia as palavras que formam o título deste artigo e, por conseguinte, o então

subprefeito da Sé Andrea Matarazzo.

Este texto, fruto de um debate dos membros da Oficina de Criação, propõe-se a fazer

uma replica a um artigo publicado na Revista VEJA São Paulo intitulado Dez ideias para o

Centro (2005)28

, publicado na Vejinha, em 16 de março de 2005, que também será analisado,

quando focarmos nos discursos jornalísticos da revista. Caracterizamo-lo como um texto

reportagem, pois se trata de um relato informativo sobre um fato ocorrido – o texto da revista

VEJA São Paulo, sendo esse o seu valor-notícia –, no entanto, entendemos que suas fronteiras

de gênero entre informativo e opinativo são muito tênues. (ASSIS, 2010)

Os autores buscam apresentar o morador de rua como um cidadão de direitos e não

apenas deveres, mas também como um sujeito oprimido pelas políticas públicas. O trecho

abaixo aponta para essa afirmação:

É muito comum que aqueles considerados “mendigos” busquem apenas

viver suas próprias vidas, mas, como nem esse direito é respeitado, só lhes

sobram deveres, ou melhor, imposições a cumprir. Não se permite isso nem

aquilo, não se tem liberdade de escolha, e se a ida para a rua fora causada

pelos dissabores da vida, pode se transformar não na busca de meios de

sobrevivência, mas numa eterna fuga. (PARTICIPANTES DA OFICINA

DE CRIAÇÃO, 2005, p. 12, grifo do autor)

Ao colocar a palavra “mendigos” entre aspas, o autor realiza a transposição de sentido.

Essa transposição se trata de uma ironia para com o sentido da palavra produzido por VEJA

São Paulo. Como já mencionamos “Mendigo” é uma das possíveis expressões que designam

o morador de rua, que em determinados contextos produzem um sentido menor sobre o

homem da rua. Assim, a palavra, ao ser colocada entre aspas, tem seu significado deslocado

para um sentido irônico, especialmente em Ocas”, na qual geralmente são utilizadas

expressões como moradores em situação de rua.

27 Anexo A

28 Anexo Q

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120

Mais adiante no texto verificamos que a crítica é direcionada aos argumentos

higienizador, autoritário e especialmente elitista utilizado em VEJA São Paulo. O argumento

elitista, por exemplo, é criticado no trecho abaixo, que reivindica políticas de inclusão:

Revitalizar o centro de São Paulo criando uma situação favorável para o

comércio e para a geração de empregos pode mudar a cara da região, mas

não diminui o problema das pessoas que permanecem no local em situação

de rua. Boas intenções nem sempre corroboram os pensamentos em atitudes

públicas. Cidadania se conquista com ações eficazes, ainda mais quando

tratamos de exclusão e excluídos. (PARTICIPANTES DA OFICINA DE

CRIAÇÃO, 2005, p. 12)

Quanto às condições de produção (ORLANDI, 2009), esse texto ao ser redigido pelos

moradores de rua, que são integrantes da Oficina de Criação Ocas”, produz sentidos a partir

do ponto de vista de quem vive nas ruas, ou seja, sua formação discursiva é de quem defende

os interesses do povo da rua. Por conta dessa inclinação de cunho ideológico, fortalece as

enunciações que apresentam o morador de rua como cidadão e oprimido, desqualificando a

associação do morador de rua com a marginalidade.

Outra condição de produção importante de citarmos é o fato de o texto ser uma

resposta à matéria publicada em VEJA São Paulo. Ao considerarmos isso, intuímos que as

estratégias produção de sentido estão voltadas para a defesa irrestrita e incondicional deste

cidadão, por conta do veículo.

Ainda no texto, a cidade é representada como um local público, ponto de encontro da

diferença e também um espaço de direito a ser composto pela diferença, em concordância

com o entendimento que já expusemos. Neste espaço de convivência, o uso da cidade não é

digno apenas das elites, mas sim para a prática de direitos. Assim, todos podem e devem usar

e consumir a cidade e não apenas aqueles que têm carros ou que podem comprar em lojas

chiques, uma menção aos valores de uso e de troca, expostos no item 2.1 desta dissertação.

O tensionamento entre deveres e direitos é recorrente por todo o texto, com os

enunciadores reclamando uma política pública de inclusão do morador de rua, dentro do

discurso e das ações de revitalização do centro de São Paulo. Um aspecto claro disso é quando

questiona o uso da cidade que só favorece a elite utilizando a expressão “interesse do

comércio e de pessoas” – certamente essas pessoas não são os moradores de rua, embora seja

interessante refletir, pois ele também é uma pessoa e o próprio autor do texto, uma voz em

defesa da causa da situação de rua, coloca o indivíduo a parte da condição de pessoa. Em

suma, com o questionamento sobre o uso e consumo da cidade, reivindica o direito de ter

direitos do morador em situação de rua.

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Quadro 6: Resumo da análise do texto Revolta, Indignação e uma pergunta: até quando?29

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Revolta,

Indignação e uma

pergunta: até

quando?

Rodrigo Ciríaco Autor;

moradores de

rua;

assessorias de

imprensa do

Metrô e da

Subprefeitura.

Remoção dos

barracos Cidadão de

direitos;

Marginalizado.

Essa representação do morador de rua como cidadão de direitos aparece também no

texto, Revolta, Indignação e uma pergunta: até quando?30

(CIRÍACO, 2005), publicado na

Ocas em abril de 2005. Trata-se também de um artigo (gênero opinativo), produzido pelo

voluntário da Ocas”, Rodrigo Ciríaco, e aborda a remoção de barracos de moradores em

situação de rua, instalados próximos à Estação Brás do Metrô, no centro de São Paulo.

Neste caso, o valor-notícia é a remoção de barracos e os enunciadores são o próprio

Ciríaco, moradores de rua que moram nos barracos e as assessorias do metrô e subprefeitura.

Logo no primeiro parágrafo, a enunciação é assumida pela voz de um morador de rua

que questiona a ação dos agentes do metrô que operam a remoção. “O que marca é isso aí:

tem os mano que mora tudo na rua! Nós não rouba ninguém, não mexe com ninguém, não

desrespeita a mulher de ninguém, por que vai mexer com nós?” (CIRÍACO, 2005), diz

Wellington Nascimento da Silva. O fato de o texto não respeitar a norma culta do português,

durante a enunciação de Silva, é proposital, dentro do texto de Ciríaco, para produzir um

sentido de proximidade e fidelidade à fala do morador de rua.

Compreendemos que esta estratégia enunciativa expõe a fragilidade do morador de

rua, ressaltando sua apresentação como vítima e como injustiçado. Vale observar aqui, como

a memória discursiva é mobilizada a fixar o morador de rua na situação de desqualificação e

desrespeito.

A truculência da autoridade pública também está ressaltada quando outro enunciador

morador de rua, José Gelciano da Silva, faz o seguinte relato: “Veio uns policial e começaram

a desmontar tudo, junto com uns caras ajudantes da prefeitura. Não quiseram nem saber.

Começaram a desmontar tudo, jogar as coisas no chão”. É curioso percebermos o

interdiscurso com a letra da música Saudosa Maloca, composição de Adoniran Barbosa do

ano de 1951, abordada no início deste trabalho, e que narra um despejo na cidade de São

29 Quadro elaborado pelo autor.

30 Anexo B

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122

Paulo, daquela época. Na letra, o método narrado para a remoção também é a destruição

truculenta, o interdiscurso que nos referimos é latente no trecho. “Veio os homi c'as

ferramentas. O dono mandô derrubá”.

As falas dos representantes oficiais, das assessorias do metrô e da subprefeitura da

Mooca são baseadas simplesmente na legitimidade da ação e são colocados no texto por

Ciríaco, fazendo uma contradição às falas de caráter humanitário, manifestas pelo autor ao

longo de todo o texto.

No caso da assessoria da subprefeitura, esta é ainda indagada se houve uma

preocupação sobre o destino dos moradores, questão que é respondida fria e laconicamente

pelo seu representante, que apenas disse. “Nesse caso, não teve”.

A marginalidade associada ao homem de rua, na enunciação do autor é evidenciada

quando ele menciona que questões como essa de desigualdade são tratadas como caso de

polícia, pela sociedade e novamente, ao final, faz uma reivindicação, em tom de protesto e

com palavras de ordem por moradias, com base em uma interdiscursividade com a

Constituição Federal, que garante esse direito a todos os brasileiros. “Moradia, trabalho,

saúde, educação são direitos de todos, garantidos pela Constituição. É lei! Não pedimos

favores, exigimos respeito, dignidade e cidadania” (CIRÍACO, 2005).

Quanto às representações nos dois textos, vale mencionar que o homem da rua, estar

representado como um cidadão é uma premissa da OCAS (Organização Civil de Ação

Social), que edita a revista Ocas” e assim sendo, é esperado que os discursos sejam

atravessados por uma ideologia humanista que reivindica, em quase todos os momentos os

direitos da população de rua, ainda que em alguns casos essa demanda e a representações

como cidadão sejam exageradas, como veremos adiante.

Quadro 7: Resumo da análise do texto E depois da rampa?31

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representação do

morador de rua

E depois da

rampa?

Alan de Faria Autor;

Autoridades;

especialistas;

ativista.

Instalação da

rampa que impede

moradores de ficar

sob viaduto

Cidadão

direitos, mas

descartável

Em outros textos, veremos variações desse tipo de representação como cidadão para o

homem de rua, como é o caso da matéria E depois da rampa?32

(2006), escrita por Alan de

31 Quadro elaborado pelo autor.

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123

Faria, que também aborda a remoção de moradores em situação de rua de um determinado

espaço público regido por lógicas de uso privado, no complexo viário que dá acesso à avenida

Doutor Arnaldo.

Valor-notícia dessa reportagem gira em torno da instalação de rampas de concreto

embaixo dos viadutos, nos cantos, para que sirvam de obstáculos, impossibilitando as pessoas

de dormirem no local.

Embora a rampa seja o valor-notícia, logo na linha-fina (breve resumo do texto),

temos o sentido da matéria, que diz o seguinte: “Polêmica envolvendo construção de

obstáculos em viaduto próximo à av. Paulista ofusca um debate maior: há políticas de

reintegração social para quem está nas ruas?” (FARIA, 2006, p. 13). É esse questionamento

que produz o sentido do texto.

Há neste trecho do texto um posicionamento político-ideológico, por parte do

enunciador, que representa os interesses da publicação, ao cobrar das autoridades políticas

públicas. Assim como há também o posicionamento ideológico em torno dos possíveis usos

da cidade.

Esse enunciação se materializa desde o início da reportagem por meio da ironia, pois

os paulistanos terão “mais uma obra a apreciar e que não se tratam de obras de arte”.

Outras vozes estão presentes no texto, cada uma mobilizando representações dessa

população e de suas condições como cidadãos, por meio de distintas práticas discursivas.

Como a entrevista de Floriano Pesaro, então secretário municipal SMADS, cuja fala é

autoritária ou irônica ou desqualificadora, como no trecho no qual afirma que “não se deve

reduzir a política social da cidade à discussão da rampa”; ou nos comentários de Silvia Maria

Schor, pesquisadora da Fipe, cuja fala aciona o discurso científico. “Realmente muitas

pessoas em situação de rua não querem ir para albergues e precisam de outro tipo de

atendimento, mas há uma demanda latente de pessoas em situações vulneráveis, ou seja, com

dificuldades de pagar aluguel ou moram com outros familiares, e que viveriam nesses locais,

se fosse possível”; ou ainda a fala de Sebastião Nicomedes de Oliveira, integrante do

Movimento Nacional de Luta em Defesa dos Direitos da População em situação de Rua, ex-

vendedor da revista Ocas, cuja fala é exemplo de um discurso político marcado por

reivindicação dos direitos de cidadania dos sem teto; “os moradores de rua reclamam que,

paralelamente às ações (da Prefeitura), não foi implementada nenhuma política de

32 Anexo C

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124

acolhimento e habitação”; além do discurso político-institucional por meio da assessoria de

imprensa da Subprefeitura da Sé.

Quanto às falas das autoridades, todas assumem o discurso político-institucional,

mostrando que a prefeitura faz tudo que está ao alcance para o cumprimento de sua função,

como exposto no trecho abaixo:

Contactada pela reportagem e Ocas”, a assessoria da Subprefeitura da Sé

informou que a população que estava no complexa viário das avenidas

Paulista e Doutor Arnaldo “recebeu constantes abordagens da equipe da

Assistência Social para encaminhamento a albergues, mas as recusaram”

(FARIA, 2006, p. 14)

A redação é atravessada por uma estratégia discursiva de contestação, perceptível em

expressões como ‘Retiradas dali, onde estão agora?’, ‘prova de estupidez’, ‘não basta’. Elas

mostram que apesar de o texto ser do gênero informativo, o autor lança mão de expressões

qualificadoras em sua fala, ou seja, comprova a forte presença de um componente ideológico,

comprovando a diluição de fronteiras entre o gênero informativo e o opinativo, e vice-versa,

no texto jornalístico (ASSIS, 2010).

A matéria explicita ainda, na fala do subprefeito da Sé, que a instalação das rampas é

por conta de assaltos na região. No box intitulado Assalto como causa: truculência como

consequência, o texto expõe esse argumento, mas ao dar a voz aos moradores de rua, estes são

apresentados como vitimas de violência praticada pela Polícia Militar e Guarda Civil

Metropolitana. Segue o trecho “Ex-moradores do local acusam a Polícia Militar e a Guarda

Civil Metropolitano de agirem com truculência durante as ações que resultaram em suas

expulsões” (FARIA, 2006, p. 15)

Neste texto, o morador de rua também é apresentado como um cidadão de direitos,

que necessita de um mínimo de dignidade para sair das ruas. No entanto, é clara a crítica à

noção de descartabilidade do povo da rua, enunciada pelas vozes dissonantes do texto

(autoridades públicas).

Neste texto, a cidade é apresentada como espaço de convivência, mas que não pode ou

está organizado para comportar o morador de rua em suas políticas públicas, ou seja, há uma

tensão entre a situação real e o dever ser.

Curiosamente, na edição de novembro de 2005, a questão da rampa apareceu em

outros três textos da publicação: no editorial A rua como palco de transformações

(SEIDENBERG ET AL., 2005), publicada em novembro; na reportagem Arquitetura X

Arquitortura (BARROS ET AL., 2005); e no perfil Perdeu a barraca, ganhou a rua

(SEIDENBERG, 2005), em todos os casos, a instalação da rampa serve como pretexto para

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125

argumentações e questionamentos sobre as condições da população de rua, ao planejamento

urbano. Nota-se que, nestes textos, o discurso de Ocas” em momento algum retira ou nega a

condição de diferente para o morador em situação de rua, assim a representação desses

indivíduos é demarcada e enfatizada por essa condição de corpos diferente à normalidade do

urbano.

Quadro 8: Resumo da análise do texto Luta pela dignidade 33

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Luta pela

dignidade

Alex Anunciato Autor;

Nilson Garrido

(criador da

academia);

Alexsandro do

Rosário;

(coordenador da

academia);

Roms da Leste

(rapper e usuário

da academia).

Academia de boxe

para a população

de rua

Cidadão

recuperável;

“Guerreiro”;

Resiliente;

Lutador.

Mas como os veículos trazem a reinserção social dos moradores em situação de rua?

De várias formas, inclusive por meio da prática esportiva. A reportagem Luta pela

dignidade34

(ANUNCIATO, 2010), faz parte de uma edição especial da revista que tem como

tema o esporte como um dos principais instrumentos para transformação de vidas da

população de rua, e apresenta o cotidiano da academia de boxe, criada pelo ex-pugilista,

Nilson Garrido.

O objetivo do projeto, exposto no texto é retirar as pessoas “das drogas e de outras

atividades ilícitas”. Temos as enunciações do jornalista Alex Anunciato; de Nilson Garrido;

do coordenador de uma das unidades, Aleksandro do Rosário; e do rapper Roms da Leste, um

dos lutadores que exploram a característica transformadora do esporte, ou seja, a prática

desportiva é “uma alavanca para transformar vidas” (ANUNCIATO, 2010, p. 15).

Não é a primeira vez que a mesma revista OCAS’ faz uma matéria sobre o tema. Em

O ringue de cada um (ALVES ET AL., 2006), já tinha abordado o tema. Por meio da

interdiscursividade com este texto, podemos perceber que a representação do boxe como

instrumento de recuperação e de resiliência para a população de rua, assim o praticante é

33 Quadro elaborado pelo autor.

34 Anexo D

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126

apresentado como lutador, não somente dentro do ringue, mas na vida. Por outro lado,

também podemos ver o boxe como método para domesticar esses corpos.

Dentre os aspectos que nos chamam a atenção, podemos citar a forma como Garrido

chama seus alunos: “Guerreiros”. Outro elemento presente no texto que dá margem ao

entendimento do discurso da superação é o fato das instalações do local serem improvisadas.

Na segunda parte do texto são apresentados dois perfis de pessoas que convivem neste

ambiente. Aleksandro do Rosário e Roms da Leste

Em ambos os casos, os perfis mostram pessoas que superaram dificuldades e estão ali,

envolvidos numa prática esportiva que lhes concede cidadania e dignidade, como o próprio

título da reportagem sugere.

Especialmente no caso de Roms da Leste observamos exemplo de resiliência

associado a explicações de caráter religioso, no trecho em que o lutador é descrito pelo

jornalista e por si próprio.

Ele conta que foi criado sem pai, junto com mais dois irmãos e uma irmã,

teve um dos irmãos morto por traficantes, usou drogas, morou embaixo de

viaduto e chegou ao projeto “acabado”. “Eu também já estive perdido, né?”,

lembra. “Eu chorava toda hora e dizia para o professor Garrido: Os caras

estão matando e está assim...e assim...as drogas estão acabando com a

periferia.” Foi então que Garrido sugeriu que ele praticasse boxe. [...]

Religioso, Roms acredita que ninguém supera sozinho uma fase ruim. “a

gente traz pro projeto e é um primeiro passo para a pessoa parar de usar

droga e começar a luta. Aí, após isso, é bom a pessoa ter também um lado

espiritual para ter mais força anida. Pra largar o vício”, diz, recordando sua

trajetória (ANUNCIATO, 2010, p. 17)

Como comentamos mais acima, o que chama a atenção no texto é a capacidade de

superação do morador de rua por meio do esporte, mas sem deixar de lado a religião e a

perseverança. Essas marcas discursivas são produtoras de sentidos positivos, de modo que o

morador de rua é caracterizado como resiliente e lutador (não só nos ringues, mas também na

vida).

Quadro 9: Resumo da análise do texto Um homem (bem) visível35

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Um homem (bem)

visível

Viviane Águia Autora;

Sebastião

Nicomedes;

ator

Peça escrita por

ex-morador

encenada em

circuito comercial

Resiliente;

sujeito

desvinculado e

35 Quadro elaborado pelo autor.

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127

protagonista. sem referência.

Outro texto que aborda a reinserção do morador de rua e o apresenta como um sujeito

que pode ser reintegrado à sociedade, é a reportagem da edição 50 (novembro/dezembro de

2006), intitulada Um homem (bem) visível36

, escrita pela jornalista Viviane Águia. Publicada

na seção Carrossel, o texto tem como valor-notícia a peça Diário dum carroceiro, escrita pelo

ex-morador de rua, vendedor e colaborador de Ocas”, Sebastião Nicomedes. A peça, que

chegou a ser produzida e encenada no circuito profissional, é um monólogo que conta as

agruras do morador de rua Quim.

O valor-notícia é o lançamento da peça no circuito profissional, o texto menciona as

questões que ela suscita, como a invisibilidade do homem da rua. As vozes enunciativas

presentes são de Sebastião Nicomedes; da jornalista autora, Viviane Águia; do ator

protagonista, Antonio Carlos de Nigro; do produtor da peça Max Mu; e da diretora da peça,

Iara Brasil. Sendo os dois primeiros os mais importantes e que serão analisados, pois

enunciam como é a capacidade do homem da rua de se reinserir socialmente.

Nas enunciações de Nicomedes, por exemplo, sua trajetória de entrada e saída das ruas

é destacada, fato que o apresenta como um sujeito resiliente, ou seja, com capacidade de

superação por conta de ter lidado com diversos obstáculos durante a vida. Atrelada a essa

caracterização, Nicomedes surge também como uma pessoa esperançosa, como no trecho em

que fala de suas intenções: “Quero tirar os moradores de rua dessa situação. Pobre não precisa

de albergue, precisa de oportunidade real de trabalho para poder ter sonhos. Eu nunca deixei

de sonhar”. (ÁGUIA, 2006)

Para além dessas características, a enunciação da autora, traz o morador de rua como

um sujeito desvinculado e sem referências, tanto da vida social como de sua própria

intimidade. Águia (2006) para narrar isso se expressa partindo da peça, até cruzar com a

biografia de Nicomedes.

O desligamento que o morador de rua sente em relação à sociedade é

mostrado por meio das perdas, que marcam quase todas as cenas da peça.

Mas saber que a falta da mulher, do cachorro, do emprego e até da dignidade

de fazer as necessidades físicas com privacidade são fatos contados por

alguém que encontrou uma solução para tudo isso é uma ponta de esperança.

(ÁGUIA, 2006, p. 23)

Observando a citação acima, vemos como o procedimento discursivo da jornalista é

pegar elementos da ficção (peça) e trazê-los para a realidade (a vida de Sebastião Nicomedes,

36 Anexo E

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128

enquanto morador de rua). O sentido produzido com isso é a humanização da personagem e

notabilidade do morador de rua.

Quadro 10: Resumo da análise do texto Antes que o frio doa...37

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Antes que o frio

doa...

Sebastião

Nicomedes Autor;

Oficina de

Criação

(Ocas”);

moradores de

rua;

funcionária da

SMADS.

Frio nas ruas nos

meses de inverno Ser-humano;

Rebelde.

Um dos assuntos que apresentou destaque em nossa análise foi o frio. Dada as baixas

temperaturas nos meses de maio e junho, a equipe da Oficina de Criação da revista Ocas”

entendeu que uma matéria que teria relevância seria uma que abordasse o sofrimento da

população de rua com o frio. Assim, publicaram na edição de maio e junho de 2009 a

reportagem Antes que o frio doa...38

(NICOMEDES, 2009)

Além do autor, Sebastião Nicomedes, ex-morador de rua, há outros enunciadores:

outros moradores de rua e da funcionária da Secretaria Municipal de Assistência e

Desenvolvimento Social (SMADS), Isabel Cristina Bueno da Silva. Nicomedes narra em

primeira pessoa e de modo dramático como era sua vida nas ruas nos dias de frio. Por meio da

metáfora da dor, o autor relata o sofrimento com as baixas temperaturas:

Sabe o que é sentir as costas geladas por dentro e por fora, ter dores de

dente, de ouvido, com a cabeça dando pontadas ao mesmo tempo, com fome

e a gripe perigando virar pneumonia ou tuberculose? Tem espirros que só

faltam explodir a gente por dentro.[...] Frio dói de verdade; dói o corpo, dói a

alma. Tem noites em que se tem a impressão de que a morte vai chegar de

madrugada, transformar a gente em pedra de gelo. (NICOMEDES, 2009)

Dadas às condições de produção, o contexto histórico e ideológico da publicação

sugere que o relato seria o recurso argumentativo mais adequado. Já o título da matéria

“Antes que o frio doa...” anuncia. No entanto essa relação entre população de rua, frio e

sofrimento, parece ser algo que vai além das formações discursivas de um e outro veículo.

Identificamos na análise uma interessante interdiscursividade com a matéria, Em quem o frio

37 Quadro elaborado pelo autor.

38 Anexo F

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129

dói mais39

(VEIGA, 2007), de VEJA São Paulo, texto publicado anteriormente ao texto de

Ocas”, e que será analisado mais adiante.

Outro aspecto que nos chama a atenção é o modo como os moradores de rua

analisam à remoção para albergues. A descrença com esse tipo de instituição, que lhes impõe

regras, está presente na fala de um deles que caracteriza os albergues como lugar “sem

futuro”, pois lá eles são apenas um número e não pessoas e estas instituições estão

interessadas somente em receber o dinheiro da prefeitura. Essa critica corrobora a ideia

bastante recorrente de que o morador de rua é um rebelde em relação aos albergues.

Compreendemos que o fato de a reportagem ser organizada com depoimentos da população

em situação de rua, em relação ao frio e ao sofrimento, faz com que se humanize o relato que

tende a sensibilizar o público leitor, o que se percebe a seguir:

“Eu queria falar para arrumar uma coberta para mim. Vixe, meu, coisa ruim

o frio! Tem gente que se embebeda, se embebeda tanto, não consegue nem

catar um papelão para se cobrir. O chão já é gelado. Se você não se protege,

o frio mata, todo ano o frio mata.” Gilson, 40

“[...] O frio é triste. É triste. Agora não, mas quando chega lá pelas duas da

manhã, a gente sente na pele, tem que sair andando. Isso quando não jogam

água na gente, no cobertor, em tudo” Genivaldo da Silva Jatobá, 40,

motorista, porteiro e segurança, há dois anos em situação de rua

Ao final, vale comentar o box, no qual a funcionária da SMADS, comenta Operação

Frentes Frias, projeto da Prefeitura para que a população vá para albergues. Trata-se de uma

fala protocolar que explica as ações da administração pública quee a apresenta como uma

instituição que ao menos tenta sanar o problema.

Quadro 11: Resumo da análise do texto Mercado Subterrâneo40

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representação do

morador de rua

Mercado

Subterrâneo

Ana Lígia

Scachetti Autor;

Sem-teto e

frequentadores

da feira;

Coord. da

ONG Minha

Rua, Minha

Casa;

especialista em

moeda social

Feira solidária Consumidores

39 Anexo W

40 Quadro elaborado pelo autor.

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Em muitos dos textos de Ocas”, observamos a preocupação com a cidadania da

população em situação de rua. Muito para além dos direitos garantidos por lei, como aborda

Canclini (2006), o consumo também é uma condição específica para a garantia de cidadania.

A matéria Mercado Subterrâneo41

(SCACHETTI, 2010), aborda a relação do morador de rua

com o consumo, ao mostrar a Feira de trocas Solidárias, promovida pela Associação Minha

Rua, Minha Casa, realizada mensalmente sob o viaduto do Glicério, na região central da

cidade, na qual é utilizada uma moeda alternativa, a Miruca. Quando da realização da

reportagem, a feira estava em sua 40ª edição. Majoritariamente o público que frequenta a feira

é composto pela população em situação de rua que pode trocar produtos por meio dessa

moeda.

Dentre os procedimentos argumentativos encontrados no texto, verificamos que o

consumo está representado como uma necessidade, associado a valores “justos”, “éticos” e

“sustentáveis”, além do aspecto solidário. A matéria demonstra um circuito fechado de

consumo, que possui carta de princípios, elaborada de forma coletiva e que visa ao bem

comum:

A Feira de Trocas possui um carta de princípios que, assim como a miruca,

foi elaborada coletivamente; determina, por exemplo, não tirar vantagem,

decidir amigavelmente os impasses, ser leal, compartilhar e evitar o acúmulo

de bens ou moedas. (SCACHETTI, 2010, p. 21)

O texto ainda traz exemplos que ilustram as transações, o empreendedorismo, por

meio do microcrédito e outros exemplos de troca. Também há um boxe, no qual a Miruca

(moeda local é apresentada).

Neste texto, a questão do consumo para a população de rua está atrelada a uma forma

de conquista da cidadania. Os enunciados expõem que, por meio de práticas éticas, leais,

solidárias e sustentáveis é possível promover a cidadania por meio do consumo e sem a

necessidade desse ser mediado pelo dinheiro.

O dinheiro não chega a ser demonizado, mas o acúmulo dele não é interessante à

prática de consumo proposta pela ONG e enunciada no texto. Tanto que modelo de moeda

social é desenhado para que não ocorra a acumulação. A Miruca pode ser conseguido com

Reais, mas que não pode ser “destrocada”, ou seja, a ideia é que a ela circule apenas naquele

espaço e, assim, não propicie a acumulação, pois até o final da feira, as pessoas tentar gastar

todas. O trecho abaixo expõe essa ideia:

41 Anexo G

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“A moeda social não tem finalidade de acumulação, serve para estimular a

produção de outra pessoa criando um círculo virtuoso”, comenta o

pesquisador André Miani, aficionado pelas redes de trocas. Para que a

moeda social seja um sucesso, ele diz, é essencial que seja baseada na

confiança. (SCACHETTI, 2010, p. 20)

Quadro 12: Resumo da análise do texto A droga nem sempre leva à exclusão, mas a exclusão

é a maior droga 42

Título Autores Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representação do

morador de rua

A droga nem

sempre leva à

exclusão, mas a

exclusão é a maior

droga

Antonio César

Andrade, Cláudio

Bongiovani, Fábio

Santos e Tula Pilar

Ferreira

Equipe Oficina

de Criação

moradores de rua

dependentes

químicos

Antonio César

Andrade

Consumo de

Drogas pela

população em

situação de rua

Dependentes

químicos, porém

recuperáveis

A Droga nem sempre leva à exclusão, mas a exclusão é a maior droga43

(ANDRADE

ET AL., 2005), publicado na edição 33 (abril de 2005), aborda o uso de drogas e narra a

conversa que a equipe da Oficina de Criação da revista Ocas” teve com dependentes

químicos moradores de rua. Diferentemente do consumo entendido como transação comercial

e prática que integra o sujeito à sociedade, desta vez a questão do consumo de entorpecentes é

discutida como algo que leva à exclusão.

O texto é produzido por várias mãos, o que bem representa o caráter ideológico da

publicação e suas condições de produção. Especialmente pelo fato de a reportagem ter sido

produzida por moradores de rua, compreendemos que o local de fala é privilegiado,

especialmente por terem de entrevistar dependentes químicos, que muitas vezes são arredios a

dar entrevistas a jornalistas. Dentre os enunciadores estão os usuários, o menor A.C.A. e José

Gelciano da Silva. Ambos enunciam um desejo em sair da dependência química. Silva, em

especial, diz que só usa droga como forma de esquecer as mazelas da rua. “Ah, é para

aguentar um pouquinho a raiva que a gente tem, né meu?” (ANDRADE ET AL., 2005).

A continuação da reportagem ainda é marcada por um debate da Oficina de Criação

sobre o tema e os resultados das entrevistas. Na fala dos integrantes da Oficina de Criação,

percebe-se que eles assumem um duplo papel, o de jornalista e o de morador de rua. “Eu no

lugar dele [do garoto], não daria entrevista, não. O morador de rua que usa droga já é um

42 Quadro elaborado pelo autor.

43 Anexo H

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132

preconceito. A sociedade não enxerga como gente, e sim como lixo”, enuncia Andrade que

tem um box dedicado a sua trajetória na rua.

Dentre os pontos a se chamar a atenção, ele aponta as drogas como forma de alienar e

demonstra revolta com a classe média, que considera discriminatória. “Hoje eu vendo a

revista e as pessoas ainda escondem a bolsa. Estou trabalhando e sou discriminado.”

Na análise de A Droga nem sempre leva à exclusão, mas a exclusão é a maior droga

temos um morador em situação de rua dependente químico, o qual, em momento algum é

chamado de drogado ou viciado, ao contrário. Ele é colocado, dadas as características

editorias do veículo, como alguém que vive nessa condição de risco social, mas é recuperável,

só precisa de oportunidades.

Por se tratar de um texto escrito a partir do ponto de vista de quem viveu nas ruas e,

mais especialmente, já foi usuário de drogas, como é o caso de Antônio César Andrade, o

enunciador se privilegia do ponto de vista da facilidade com o tema, no entanto, do ponto de

vista jornalístico ficou um quanto vaga, pois negligenciou vozes que poderiam ser importantes

para uma melhor compreensão da questão das drogas.

Quadro 13: Resumo da análise do texto Um fato, várias versões e o cheiro da impunidade 44

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representação do

morador de rua

Um fato, várias

versões e o cheiro

da impunidade

Kenia Rezende e

Alan de Faria Autores

Advogada;

Padre Júlio

Lancellotti;

Sebastião

Nicomedes;

Advogado Hélio

Bicudo;

DHPP;

comerciantes

anônimos;

Dr. Fábio

Guedes Rosa;

PM e coronel

Jorge Luís;

uma das vítimas

Aniversário da

chacina que

vitimou sete

moradores de rua

em 2004

Vítima da

violência

O texto seguinte a ser analisado Um fato, várias versões e o cheiro da

impunidade45

(REZENDE e FARIA, 2005) foi reportagem de capa da edição de agosto de

44 Quadro elaborado pelo autor.

45 Anexo I

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133

2005 e discorre sobre o aniversário de um acontecimento violento que vitimou 16 moradores

de rua (sete mortos e nove feridos) no centro de São Paulo, esse é valor-noticia.

Dentre as vozes enunciativas estão os autores do texto, a advogada Michael Mary

Nolan, o padre Júlio, o morador de rua, colaborador de Ocas” e representante da Casa de

Oração do Povo da Rua, Sebastião Nicomedes; o advogado e ex-vice-prefeito de São Paulo,

Hélio Bicudo; a assessoria de imprensa do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa

(DHPP) e seu delegado Dr. Fábio Guedes Rosa; comerciantes anônimos; o, assessoria da PM

e coronel Jorge Luís, um dos sobreviventes da chacina, que não tem seu nome revelado.

Dentre os procedimentos discursivos presentes no texto, destacam-se: protesto e

crítica, pois o caso ainda não foi solucionado; também podemos identificar um procedimento

discursivo que remete a memória e politização do fato. O lide, primeiro parágrafo da

reportagem, reflete isso:

Passou-se um ano, e a polícia ainda não tem uma solução para as mortes e

agressões contra as pessoas que dormiam no centro de São Paulo ocorridas

em agosto de 2004 na região da Praça da Sé. Na época foram assassinadas

setes pessoas e nove ficaram feridas. As investigações continuam, mas ainda

não foi possível identificar os assassinos. Os sobreviventes fogem e se

escondem, preferem não ficar nas instituições da prefeitura, já que na rua o

anonimato ainda os protege e aí podem desfrutar de liberdade – as regras

impostas pelos albergues são sempre alvo de grande reclamação por parte

dos usuários. (REZENDE e FARIA, 2005)

Por ser um veículo com direcionamento ideológico para a causa do povo da rua, a

formação discursiva (FIORIN, 2007) está localizada em defesa dessa causa. Assim é esperada

a visibilidade da linguagem de protesto e crítica, claramente identificável no trecho ‘e a

polícia ainda não tem uma solução’. O discurso político também chama a atenção,

primeiramente pelo uso de palavras como ‘pessoas que dormiam no Centro’, ao invés de

‘morador de rua’; ‘assassinos’ ao invés de ‘culpados’; e, especialmente pelo uso da palavra

‘liberdade’, em uma crítica direta aos albergues, locais nos quais os moradores de rua podem

passar as noites, mas que não são locais onde eles têm de seguir normas rígidas.

O texto segue referendado por depoimentos de autoridades e especialistas em crimes e

em situação de rua. Esses depoimentos estão divididos em duas partes, na primeira (e mais

importante) delas, depõem pessoas ligadas à causa sem-teto, o padre Júlio Lancellotti,

coordenador da Pastoral do Povo da Rua.

Em uma segunda parte, inter-intitulada O outro lado, depõem representantes da classe

policial e o Ministério Público. A polícia, além de ser, desde o início do texto, muito criticada

pela não resolução do crime, também representa o grupo de alguns dos suspeitos que foram

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presos temporariamente e depois soltos. A polícia está apresentada em duas frentes, a civil e a

militar. Quanto à civil, representada pelo delegado Fábio Guedes Rosa que chega a criticar os

procedimentos do Ministério Público, corroborando o tom crítico da reportagem.

Já a Polícia Militar, na figura de seu porta-voz, Coronel Jorge Luís, é apresentada

como se estivesse defendendo seus três integrantes que foram presos. Segue o trecho:

O Coronel Jorge Luís confirma que há indícios de participação dos três, mas

ressalta que isso não comprova a participação deles nos assassinatos. “De

qualquer forma, é preciso ressaltar que a corporação não compactua com

esse tipo de comportamento (matar moradores de rua)”, diz Luís. “Nosso

objetivo é realizar um trabalho de prestação de serviço ao cidadão.”

(REZENDE e FARIA, 2005)

Vale ressaltar alguns pontos sobre a fala do Coronel Luís. Além de defender a seus

colegas da, o trecho entre parênteses (matar moradores de rua) é colocado pelo jornalista e

não compõe a fala da autoridade policial, que fala apenas em comportamento. Esse

procedimento é utilizado para reforçar a ideia do crime, ainda que a fala do entrevistado não

diga isso. Por último, o termo cidadão referencia o morador de rua e faz parte de uma fala

protocolar da autoridade policial, que não indica que o sentido produzido pelo policial para

apresentar o sem-teto seja que ele é um cidadão. No texto, ainda que que a publicação reforce

essa ideia de reivindicação de cidadania, o autor se refere a esta população como “pessoas”.

Essa referencia ao morador de rua como cidadão e pessoa que merece respeito é

perceptível ao longo de todo o texto, o que se justifica e é plenamente esperada em uma

publicação como Ocas”. Na última parte da matéria há um Box que traz relatos de

sobreviventes, intitulado Depois da tempestade, o anonimato. Dois são os personagens

sobreviventes da violência, mas que na ocasião da publicação da reportagem viviam no

anonimato. Esse anonimato é compreensível para a preservação das fontes da prática

jornalística, porém esses depoimentos fecham o texto com críticas às autoridades sobre a

questão dos sem teto, à burocracia dos albergues, à insegurança das ruas e à ineficácia da

proteção às testemunhas. Essa crítica dá visibilidade a uma representação de cidade que,

embora deva ser o local da convivência, ainda não possibilita que todos conquistem a

cidadania.

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Quadro 14: Resumo da análise do texto Em vez de Polícia, Política! 46

Título Autor Voz Enunciativas Valor-notícia Representação do

morador de rua

Em vez de Polícia,

Política!

Raquel Rolnik Raquel Rolnik Ação policial

contra população

de rua e demais

insurgentes

Vítima da

violência;

Sujeito

desprovido de

direitos;

Retomando a temática da violência para com essa população, vamos analisar agora um

texto que trata essa temática sob a óptica do projeto Nova Luz. Em vez de polícia, política47

(2012). Escrito pela urbanista Raquel Rolnik para a revista Ocas”, publicado na edição de

janeiro/fevereiro de 2012, traz a visão da especialista sobre três ações policiais contra

insurgentes em situações específicas de ocupação de espaço urbano: a ocupação do

Pinheirinho, em São José dos Campos; a Operação Cracolândia, em São Paulo; e a invasão da

reitoria da USP, também em São Paulo.

Tendo nosso tema como foco, nos ateremos ao segundo caso. O título, já aponta uma

reivindicação da urbanista para a abertura de um debate sobre a gestão e ocupação do

território urbano.

Sobre o caso da Cracolândia, em especial, esta autora faz uma crítica ao que ela chama

de operação limpeza, com alto uso da violência como instrumento de repressão do estado para

com aquela população.

Em 14 dias de ação, mais de 103 usuários de drogas e frequentadores da

região foram presos pela polícia com uso de cavalaria, spray de pimenta e

muita truculência. Em seguida, mais de 30 prédios foram lacrados e alguns

demolidos. Esta região é objeto de um projeto de “revitalização” por parte da

prefeitura de São Paulo, que pretende concedê-la “limpinha” para a iniciativa

privada construir torres de escritório e moradia e um teatro de ópera e dança

no local. (ROLNIK, 2012, p. 27)

No trecho acima, a urbanista critica a ação do governo para “revitalizar” a região do

bairro da Luz. Observe-se o uso de aspas nas palavras revitalização e limpinha, é essencial

para compreender a crítica que Rolnik faz às ações do governo, pois enuncia uma

transposição de sentidos e ironiza as falas de autoridades que defendem a reforma para limpar

e revitalizar o centro.

46 Quadro elaborado pelo autor.

47 Anexo J

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Quanto às condições de produção, devemos levar em conta que o texto foi escrito,

logo no início da Operação Sufoco, em janeiro de 2012, assim seu valor-notícia é a

proximidade temporal do acontecimento.

No texto, Rolnik ainda coloca que a violência é uma forma de supressão do diálogo:

Ou seja, para quem promoveu a reintegração ou a limpeza, o fundamental é

ter o local vazio, e não o destino de quem estava lá, muito menos as razões

que levaram aquelas pessoas a estar naquela condição e seu enfrentamento e

resolução. “Resolver” a questão é simplesmente fazer desaparecer o

“problema” da paisagem

Mais grave ainda, nessas situações a suposta “ilegalidade” (ocupação de

terra/uso de drogas) é motivo suficiente para promover todo e qualquer tipo

de violação de leis e direitos em nome da ordem, em um retrocesso

vergonhoso dos avanças da democracia no país. (ROLNIK, 2012)

Algumas representações são observadas diante dos sentidos produzidos no texto

de Rolnik. A cidade é representada como um espaço a ser ocupado e essa ocupação é

problematizada, sendo a política uma forma de se resolver essa questão. No entanto, a

instância governamental, outra representação presente no texto, suprime essa possibilidade de

diálogo por meio do uso da força e promovendo “violações de leis e direitos em nome da

ordem”, o que a autora classifica como “retrocesso vergonhoso dos avanços da democracia no

país”. Já o povo da rua está representado, justamente como essa população para quem o

diálogo é suprimido, assim como outros direitos.

Quadro 15: Resumo da análise do texto “Não tinha futuro, só trabalho”48

Título Autores Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representação do

morador de rua

“Não tinha futuro,

só trabalho”

Oficina de Criação

de Ocas”, Tula

Pilar, Dário

Bertolutti

Oficina de

Criação

(Ocas”);

Felix Rafael

(peruano

morador de rua);

Juan Plaza

(coordenador);

Candelária

(boliviana

moradora de

rua).

Estrangeiros em

situação de rua Trabalhador;

Escravo;

Lutador.

Um diferente grupo dentro do universo da diferente população de rua é retratado na

reportagem “Não tinha futuro, só trabalho”49

(BARROS ET AL., 2006), texto produzido pela

48 Quadro elaborado pelo autor.

49 Anexo K

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137

Oficina de Criação de Ocas” e publicado na seção Cabeça Sem Teto que aborda a situação de

moradores em situação de rua de São Paulo que são estrangeiros. Na primeira parte do texto,

o personagem principal é o peruano Félix Rafael, que conta sua trajetória nas ruas de São

Paulo. Além dele, outras vozes estão presentes no texto: os autores, o coordenador da Casa do

Migrante, o chileno Juan Plaza, a boliviana moradora de rua Candelária; e o vendedor de

Ocas”, Sérgio Borges. Essas pessoas aparecem na continuação da matéria, intitulada Ilegais,

com o sonho de uma vida melhor? Há vagas.

Neste caso, o valor-notícia – que gera interesse pelo público – é o fato de uma cidade

cosmopolita como São Paulo contar com um número de moradores de rua oriundos de outros

países. Reparamos também uma interdiscursividade com a matéria Estrangeiros sem teto

(JORDÃO, 2012), publicada na revista VEJA São Paulo, em maio de 2012.

Observamos que o morador de rua estrangeiro é apresentado como trabalhador e como

uma pessoa em risco social. Para chegar a essa conclusão sobre a representação social,

estamos considerando a sequência discursiva que apresenta assuntos como escravidão,

ilegalidade, falta de cidadania, violação de direitos humanos e reinserção social.

Foi complicado. Não sabia nada de costura, me puseram de ajudante. Fiquei

quatro meses. A patroa não pagava direito, falava que eram R$300, depois

disse que eu dava despesa, comia muito. Quando eu queria sair, dizia: “Não

pode”. Só aos domingos. Comigo trabalhavam 20 bolivianos, todos em pé,

durante 14 horas, as costureiras não comiam bem, a patroa cobrava

produção, a gente virava máquina. Só faltavam as chibatadas. Ia dormir

pensando: amanhã é mesma história, não tinha futuro, só trabalho.

(BARROS ET AL., 2006, p. 11)

No trecho acima, o enunciador é o peruano morador de rua, Félix Rafael, seu discurso

expressa a situação desumana, análoga à escravidão, na qual ele e outros imigrantes se

encontravam e assim a rua foi uma alternativa a essa vida.

Na reportagem, é interessante a ênfase que o veículo dá sobre a condição de

escravidão pela qual os imigrantes passam. Além do depoimento de Félix Rafael, destacado

acima, na segunda parte do texto, os enunciadores apontam para um contexto de escravidão e

relatam a história de Sérgio Borges e Candelária, que passaram por uma situação semelhante à

escravidão nos locais em que trabalharam.

O discurso da revista, embora defensor de condições dignas de cidadania aos

estrangeiros em situação de rua, coloca um enunciado interessante de Juan Plaza, que

relativiza o processo de escravidão denunciado nas páginas. Analisando a fala do coordenador

da Casa Migrante, percebe-se que ele relativiza a situação ao afirmar que muitas vezes a

situação de escravidão é vista por quem está de fora e não por quem está “escravizado”, pois,

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138

apesar de muito ruim, essa condição é melhor daquela que a pessoa viveu anteriormente e é

uma escolha. Segue a fala de Juan Plaza sobre a escravidão na íntegra:

“É um conceito submetido a certa subjetividade, apesar de a sociedade

definir, objetivamente, parâmetros precisos do que vem a ser uma condição

de trabalho escravo. Todo mundo vem para cá atrás do sonho de construir

uma vida melhor. É por essa busca que, muitas vezes, a pessoa se sujeita a

determinadas condições de trabalho. E a aceita porque vê adiante a

possibilidade de uma realidade diferente da miséria que deixou para trás. É

uma decisão. Para nós, essa situação é de semi-escravidão. Mas pessoas que

se submetem a essa rotina têm uma visão e uma dimensão diferente da

nossa.” (BARROS ET AL., 2006, p. 12)

Como já pudemos verificar em alguns dos textos analisados da revista Ocas”, há

frequentemente a defesa do morador de rua como um oprimido em busca de direitos, no

entanto, o veículo abre espaço para visões diferentes e relativizadas de suas proposições.

Outro aspecto a ser observado no texto é que os estrangeiros, embora de outra nacionalidade,

não são apresentados como “especiais” no contexto da publicação, ao contrário, estão também

representados em situação de pobreza iminente e de risco social. Mais adiante, analisaremos

como a revista VEJA São Paulo trata do mesmo assunto em suas páginas.

Quadro 16: Resumo da análise do texto Advinhação50

Título Autor Voz Enunciativa Valor-notícia Representação do

morador de rua

Advinhação Neide Duarte Neide Duarte Crianças de rua Crianças

marginalizadas

Em Adivinhação51

(2011), teremos a apresentação da crianças de rua na revista Ocas”,

a partir da enunciação da repórter especial da Rede Globo de Televisão, Neide Duarte.

O texto aborda a infância no mês do dia das crianças. A autora enuncia as condições

das crianças carentes do país, abordando a situação da criança marginalizada, esquecida pelo

Estado e que não tem condições dignas de alimentação, educação e abrigo. A estratégia

discursiva adotada para apresentar essa criança carente foi descrever uma lista de violências e

privações. O título é uma forma de criticar o Estado brasileiro, pois quatro dentre os oito

parágrafos que compõem o texto eram iniciados com a expressão “Era uma vez um país

onde...”, numa referencia ao início dos contos de fadas.

Analisando a sequência discursiva, até o final do texto – no post-sriptum (P.S.), Duarte

aponta para um caso de violência envolvendo menores infratores. A autora busca expor, numa

relação de causa e consequência, que em um país onde crianças passam por tanta situação de

50 Quadro elaborado pelo autor.

51 Anexo L

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139

privação e violência, a consequência é que elas sejam cada vez mais cedo envolvidas em

situações de violência.

Entre os trechos que relatam a violência podemos citar: “Era uma vez um país onde as

mães, assim que seus filhos nasciam, jogavam as crianças no lixo”, ou “Algumas crianças

costumavam se exibir nos faróis fazendo um número circense de malabarismo para não deixar

a bola cair. Outras batiam nos vidros dos carros tentando dizer alguma coisa para as pessoas,

mas ninguém abria a janela”. (DUARTE, 2011, p. 27)

Essas crianças, moradoras de rua, são apresentadas como carentes de condições

mínimas para crescerem como as outras crianças, e, por algum motivo continuam marginais à

sociedade. Algumas delas, inclusive presas – existem cerca de 12 mil delas no Brasil

cumprindo penas. Com seu texto, Duarte critica a sociedade brasileira que ainda trata as suas

crianças com indiferença.

Quadro 17: Resumo da análise do texto O amor está nas ruas 52

Título Autores Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representação do

morador de rua

O amor está nas

ruas

Jaqueline Máximo

e Leandro

Conceição

Autores

Casal Deusdete

de Almeida e

José Santana;

Assistente social

do Albergue São

Francisco;

Casal Paulo

Cesár de Souza e

Vanderleia

Azevedo.

Amor no contexto

dia dos namorados

Casais

apaixonados

Analisamos o texto sobre as crianças de rua produzido no contexto do dia das crianças.

Agora, analisaremos como Ocas” aborda outro assunto em suas páginas: o dia dos

namorados. A reportagem de título O amor está nas ruas53

(MÁXIMO e CONCEIÇÃO, 2006)

publicado em junho de 2006 relata histórias de casais que vivem nas ruas ou albergues. Junho

é o mês do dia dos namorados (12) e provavelmente este é o valor-notícia.

Este texto dá visibilidade uma questão da afetividade. Além dos jornalistas, dois

casais representam as vozes do texto: José Santana da Silva Filho e Deusdete de Almeida

Santana da Silva; e Paulo César de Souza e Vanderléia Ângela de Azevedo. Ambos vivem no

Albergue São Francisco, na Baixada do Glicério em São Paulo.

52 Quadro elaborado pelo autor.

53 Anexo M

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140

Nesse exemplo temos uma abordagem que humaniza as pessoas que vivem nas ruas,

expondo suas histórias de vida e seu cotidiano. Traz à tona algo que também está presente nas

ruas, a vida conjugal. Esta colocada como também uma necessidade básica das pessoas, assim

como a alimentação, saúde ou educação. O depoimento do casal José Santana da Silva Filho e

Deusdete de Almeida Santana da Silva é relevante:

O casal faz questão de demonstrar os sentimentos que tem um pelo outro:

“Sinto muito amor e carinho por ele. Peço muito a Deus que continue

iluminando nosso caminho, diz ela. Já tive quatro mulheres, mas com ela me

casei e quero passar o resto de minha vida a seu lado, não importa como e

onde”, diz ele. (MÁXIMO e CONCEIÇÃO, 2006, p. 15)

O texto tem um tom de resiliência – apesar de todo o sofrimento e as dificuldades de

se viver nas ruas, ainda é possível viver com amor. Algo uma interdiscursividade com o

Saúde e doença, riqueza e pobreza, que são valores passados pelo sacerdote no matrimônio

católico.

O texto apresenta ainda uma breve descrição da vida nos albergues e, especialmente

sobre seus códigos de comportamento, em relação a uma vida de casal. No caso do albergue

em que vivem os casais, a relação de casal é totalmente controlada pelas regras do local.

Há alguns meses, eles descobriram os albergues. Já passaram por vários.

Hoje estão alojados no albergue São Francisco, na Baixada do Glicério.

Todos os dias saem pela manhã, passam o dia nos faróis da cidade vendendo

balas retornam à instituição para jantar e dormir, cada um em um quarto,

pois o albergue não permite que casais durmam juntos. “Essa é uma forma

de proteger o próprio casal, assim evitamos uma série de problemas.

Podemos ter casos de prostituição, maridos ciumentos, homens que podem

cobiçar a mulher do próximo... Não é que a gente veja as pessoas como

assexuadas. É para manter o controle”, diz Luiz Antônio Khüll, assistente

social do São Francisco. (MÁXIMO e CONCEIÇÃO, 2006, p. 15)

Quadro 18: Resumo da análise do texto Vozes em busca de direitos 54

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor(es)-notícia Representações

do morador de

rua

Vozes em busca de

direitos

Márcio

Seidenberg Autor;

Anderson

Miranda

(MNPR);

Debatedores do

encontro;

Jornalistas;

Representantes

dos moradores;

Irmã Regina;

Encontro do

MNPR e Operação

Limpeza

Cidadão com

direitos;

Vítimas da

violência.

54 Quadro elaborado pelo autor.

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141

Secretário

municipal;

Associação

Viva Centro;

Carlos Loureiro

(defensor

público);

Sec. de

Gabinete;

Coronel

Camilo.

A questão dos direitos para a população de rua aparece latente no texto Vozes em

busca de direitos55

. A reportagem é dividida em duas partes, na qual a primeira traz um relato

sobre a reunião do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), que encerra um ciclo

de seis encontros de entidades ligadas ao tema para a discussão de contribuições para a

Política Nacional para Inclusão Social da População de Rua.

O texto se inicia com a expressão “Hoje é dia de comemorar uma conquista e é com

muita alegria que vamos apresentar a nossa participação”, fala do líder do MNPR, Anderson

Lopes Miranda, um dos enunciadores do texto ao lado do autor da reportagem.

O sem-teto é apresentado como um cidadão de direitos, reforçada pela redação de uma

uma espécie de inventário de informações relevantes ao tema morador de rua, como a lei

municipal 12.316 que obriga o Poder Público a prestar atendimento à população de rua e

dados referentes ao número dessa população no país.

A reportagem relata como foi a reunião e traz listadas diversas reivindicações da

população, por meio da fala dos participantes da audiência. Assuntos como Gênero, Direitos

Humanos, Cotas, Moradia, Capacitação, Trabalho e Bolsa-Aluguel são colocados na plenária.

O Miranda, líder do MNPR, é apresentado como personagem principal da matéria e

fala dentre outras coisas do processo de saída das ruas. Em sua posição de fala como líder

social, também defende que a inserção da população de rua se dá não com medidas que

reforcem a diferenciação.

“A gente não quer escolas nos albergues, pelo amor de Deus! A gente quer

entrar na USP”, afirma Miranda à Ocas”. Porém, ele defende cursos de

alfabetização dentro dos abrigos, “porque não é preconceituoso”. “é que

muita gente tem vergonha de voltar a estudar. O que a gente quer é que todos

participem da escola. A gente não quer AMA – Assistência Médica

Ambulatorial – nos abrigos. A gente quer é que a população seha atendida

pelo SUS e pelo SAMU [serviços de saúde] sem discriminação”, diz.

(SEIDENBERG, 2008, p. 10)

55 Anexo N

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142

Diferentemente do que apresentamos no item 3.2, quando falamos da falta de

referências do sem-teto, o mesmo Miranda expõe que essas pessoas “tem uma história e um

vínculo com a rua”, mostrando um argumento político de muitas reivindicações para a

população de rua.

Na segunda parte do texto, intitulada Vozes em Busca de Justiça, é apresentado um

relato sobre uma manifestação contra a violência em relação a população de rua. A exemplo

da primeira parte, esta também se inicia com palavras de ordem durante a manifestação pelas

ruas de São Paulo: “Hoje é dia de protesto e de luta”

Em geral, o texto apresenta uma linha de crítica em relação às práticas que consideram

higienizadoras para remoção da população de rua, como no trecho. “Não queremos manter o

povo nas ruas, nem mostrar uma cidade que não existe, escondendo pobres e a

incompetência” (SEIDENBERG, 2008, p. 11)

Essa crítica é enfatizada em trechos seguintes, nos descrevem em detalhes o caráter

higienista das políticas públicas em relação ao morador de rua, executadas pela polícia e em

favor de projetos como Aliança pelo Centro Histórico, que tem como uma de suas

argumentações “dar qualidade total” ao centro antigo.

O texto do jornalista, com forte teor opinativo e ironia, tende, a se expressar de um

local de fala e como uma formação discursiva do interior do movimento, como no trecho:

Na prática, ineficaz em esclarecer de que forma se dariam tais intervenções,

a medida foi sentida nas ruas através de ações truculentas e vista com

preocupação por fóruns sociais, entidades, movimentos e organizações que,

unidos no compromisso com a “qualidade de vida das pessoas em situação

de rua”, criaram a Aliança Pela Vida. (SEIDENBERG, 2008, p. 11)

Reparem que durante todo o texto se ironiza tanto o nome do projeto quanto a forma

como ele se expõe propondo qualidade.

O texto segue relatando a forma como o protesto se dirigiu até a prefeitura e

simbolicamente fez uma limpeza na calçada do local. Ao final, o texto traz o relato da

audiência Pública que reuniu os membros da Aliança pelo Centro Histórico e da Aliança pela

Vida.

Pela leitura do texto, percebemos que o morador de rua é apresentado tanto como

cidadão e vítima da violência. Também é exaltada a sua capacidade de organização, inclusive

com a revista Ocas”, claramente fazendo coro ao movimento.

A cidade aparece como o palco de discussões políticas e espaço de manifestação de

direitos. Há ainda uma característica marcante de desvalorização do discurso que vise a

revitalização do centro.

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Quadro 19: Resumo da análise do texto Escola da Rua: Ensinado e aprendendo56

Título Autor Vozes

Enunciativas

Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Escola da Rua:

Ensinado e

aprendendo

Márcio

Seidenberg Autor;

Professores;

Alunos;

Presidente do

Arsenal da

Esperança

(albergue)

Educação e

cidadania à

população de rua

Estudante;

Resiliente;

Sujeito em

busca de

reinserção social

Na reportagem Escola da rua: ensinando e aprendendo57

(SEIDENBERG, 2009) é

abordado o Projeto Caminho Novo, que promove educação à população em situação de rua. O

que chama a atenção na matéria (valor-notícia) é a possibilidade de retorno da população em

situação de rua aos estudos e à cidadania.

Dentre as vozes enunciativas mais marcantes do texto estão a do jornalista, de

professores, alunos, e do vice-presidente do Arsenal da Esperança, Antonio Paladino. São

vários os sentidos identificados como o da descoberta, quando este é enunciado pelos

estudantes ou da realização, por parte dos docentes:

“Aqui os alunos começam a construir o processo de escrita”, revela Sandra

Regina Fernandes Westin, professora. “Já sei escrever meu nome. Um

pouquinho, pelo menos”, comemora Zé Carlito, que, após uma avaliação de

conhecimento – a qual foram submetidos todos os alunos no segundo dia de

aula – passou para a série seguinte. “Não sei ler, nem escrever. Sou doido

para uma carta pra mulher, assim”, revela um dos alunos. “Consegui apanhar

um ônibus, afirma outro, ao poder identificar o itineráriodo coletivo.

(SEIDENBERG, 2009, p. 8)

Há ainda a publicação de um texto coletivo com as palavras dos moradores sobre

como é voltar a estudar, do ponto de vida dos anseios e das expectativas. Respondendo a duas

perguntas: o que tenho a ensinar? O que eu tenho a aprender? (SEIDENBERG, 2009, p. 9)

Sobre o projeto em si, quando questionado, vice-presidente do Arsenal da Esperança,

Antonio Paladino, tem um comentário procura fugir da ideia de albergue, mas como espaço

para acolhimento da população de rua, no qual a educação é uma das vertentes. Paladino

também sustenta o argumento da educação como pilar da inclusão social e da cidadania. “Nós

só vamos obter a paz no dia em que nosso povo for educado.”

56 Quadro elaborado pelo autor.

57 Anexo O

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144

Esse procedimento é semelhante ao que enuncia, nas palavras finais, o morador de rua,

José Ivan Francisco da Silva, em poema de sua autoria. Para ele voltar a estudar lhe dará a

condição de voltar a ser um cidadão de bem.

Volta às aulas

Quem tem dez só vale dez

Quem tem cem só vale cem

Para a sociedade O povo da rua não vale um vintém

Mas eu voltei a estudar

Para ser um cidadão de bem

O que nos chama a atenção no poema acima é que o “cidadão de bem”, enunciado por

Silva é uma antítese do morador de rua. Ou seja, a projeção do cidadão que não vive à

margem da sociedade.

Assim, o morador em situação de rua é apresentado na matéria como alguém que se

esforça para voltar à condição de cidadania. Esta que lhe é devolvida por meio da educação.

Quadro 20: Resumo da análise do texto Ouvidoria da ruas 58

Título Autor Voz Enunciativas Valor-notícia Representação

do morador de

rua

Ouvidoria da

ruas

Ocas” Editorialista (Ocas”) Ouvidoria

Comunitária da

População em

Situação de Rua

Cidadão de

direitos

O texto agora analisado trata do editorial Ouvidoria da ruas59

(OCAS”, 2010),

publicado em setembro/outubro de 2010. Escolhemos este texto, pois ele fala da Ouvidoria

Comunitária da População em Situação de Rua, parceria da OCAS com o Centro Acadêmico

XI de Agosto, da USP; o Movimento Nacional da População de Rua; e o Fórum Permanente

de Acompanhamento das Políticas Públicas da População em Situação de Rua.

Trata-se de uma ouvidoria oferecida gratuitamente por estudantes de direito da USP

para “recolher e sistematizar denúncias sobre todo e qualquer tipo de violação de direitos

humanos praticadas tanto por agentes públicos quanto privados contra a população de rua”

(OCAS”, 2010). Além disso, também pode orientar os moradores sobre seus direitos como

cidadãos. O texto diz o seguinte:

A compilação e análise do material – com detalhes que apontam dados, fatos

e provas – construirá um instrumento importante de pressão para a

58 Quadro elaborado pelo autor.

59 Anexo P

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145

implantação de políticas públicas e para investigação e responsabilização dos

atores que, de alguma forma, agridem a população de rua. Apesar de ainda

não ter sido realizado mapeamento completo das demandas recebidas,

relatos de abuso policial e de atendimento discriminatório nos albergues

predominam entra as queixas, que podem ser encaminhadas pela Ouvidoria à

Defensoria Pública quando requererem atendimento jurídico. Pretende-se

ampliar essa possibilidade, firmando-se, futuramente, termo de cooperação

com este órgão público para evitar que violações aos direitos dessa

população fiquem sem solução por conta da falta de assistência jurídica.

(OCAS”, 2010)

O texto é marcado pela enunciação da Ocas”, pois é o editorial. Embora tenha

essas características, se mostra bem informativo para explicar a Ouvidoria, semelhante a um

texto do gênero informativo. O valor-notícia é a existência da Ouvidoria.

Neste texto observamos a instância ideológica do veículo que, não só defende os

interesses da população de rua, como mostra que ela é sim, parte integrante desse movimento,

como já demonstramos no item 1.2 desta dissertação.

4.3.1. Análise dos discursos na Vejinha

Quadro 21: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez ideias para o centro 60

Título Autores Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Dez ideias para

o centro

Alessandro

Duarte e Marcos

Buarque de

Gusmão

Autores;

Presidente da

Associação Viva

Centro;

Jaime Lerner;

Andrea Matarazzo.

Ideias para

revitalização do

Centro de São

Paulo

Sujeito

descartável;

Indigente;

Culpado pela

degradação do

Centro.

O primeiro texto da revista VEJA São Paulo que iremos analisar é a reportagem

intitulada Dez ideias para o centro61

, redigida pelos jornalistas Alessandro Duarte e Marcos

Buarque de Gusmão (2005), publicada no periódico em 16 de março de 2005.

Essa matéria foi escolhida pois aborda a temática dos moradores de rua e também

apresenta intertextualidade e interdiscursividade com o texto “Carroceiros e mendigos saem

de cena” (2005) publicado na revista Ocas” e já analisado aqui.

Trata-se de uma reportagem na qual o enunciador principal é o então subprefeito da Sé,

(região central de São Paulo), Andrea Matarazzo. Ele expõe suas ideias para o que chama

60 Quadro elaborado pelo autor.

61 Anexo Q

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146

‘revitalização do centro de São Paulo’ após a obtenção de um empréstimo de cem milhões de

dólares do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Iniciamos nosso processo de análise identificando os argumentos utilizados na matéria.

O primeiro deles surge logo na linha-fina, trata-se de um argumento otimista em relação à

cidade, segue o trecho: “[...] tem uma oportunidade de ouro para resgatar a importância e o

glamour da cidade” (DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 13).

Esse tipo de argumento exalta as possibilidades de revitalização da cidade, no entanto é

um argumento mais sedutor que informativo. Essa argumentação vai de acordo com o que é

exposto na Análise de Discurso Francesa sobre as formações discursivas que produzem

sentidos nos discursos. (ORLANDI, 2009). A formação discursiva do veículo e apresentada

com ideias de higienização limpeza urbana e normatização.

Sobre a apresentação do morador de rua, na matéria, este é reduzido a quem pratica a

mendicância, ou quem trabalha, mas com uma ocupação menor – carroceiro –, e que está fora

dos padrões de trabalho que é esperado naquela região da cidade. Assim, o sentido produzido

sobre ele é a de um marginal, ou quase um estorvo ao contexto de revitalização do centro da

cidade, visto que a enunciação da VEJA São Paulo aponta para uma situação de retomada da

estabilidade para que “o centro de São Paulo recupere o antigo brilho e volte a ser orgulho dos

paulistanos.”

Outro procedimento discursivo identificado é o argumento político. Em especial quando

o texto faz menção ao partido político do sub-prefeito, o PSDB – Partido da Social

Democracia Brasileira – e a nomes consagrados da sigla como o ex-presidente Fernando

Henrique Cardoso e a José Serra (então prefeito). Há também, em outras passagens do texto,

menções críticas a gestão municipal, anterior 2001-2005, na qual a prefeita era Marta Suplicy,

do PT – Partido dos Trabalhadores. “Logo que assumiu o cargo, em 2001, a prefeita Marta

Suplicy anunciou sua Operação Belezura. Prometia que em seis meses livraria a cidade da

sujeira, das pichações e dos anúncios que se multiplicavam por todo canto. Não conseguiu.”

(p. 19)

O terceiro procedimento discursivo identificado é uma junção de argumentos

personalista, autoritário e tradicional. Apesar de se tratar de uma reportagem sobre a cidade

(espaço público) todas as ideias são personificadas no subprefeito, e este é colocado como um

ser onipotente para pensar as questões do centro da cidade. Além disso, há um trecho do texto

em que o personagem é apresentado a partir de sua família, seus hábitos e costumes:

Bisneto do senador italiano Andrea Matarazzo (Irmão do conde Francisco

Matarazzo, fundador do antigo império industrial da família), ele se lembra

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147

do tempo em que passeava pelas ruas Xavier de Toledo e Barão de

Itapetininga, que eram então muito chiques, ao lado de seu tio Ciccilo, o

criador da Bienal, do Museu de Arte Moderna e do Museu de Arte

Contemporânea. Orgulhoso dessa herança, partiu dele a sugestão para que

Serra voltasse a chamar a sede da prefeitura, no Vale do Anhangabaú, de

edifício Conde Francisco Matarazzo. Como seus ancestrais, usa ternos sob

medida com tecidos italianos (DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 14)

O próximo sentido produzido é que poderíamos chamar de ‘politicamente correto’.

Este é verificado quando a prefeitura teria de contribuir com 65 milhões de dólares, valor que

não possui naquele momento. O discurso é materializado da seguinte forma.

É sabido que hoje a administração regional não conta com essa verba em

caixa. Por isso, os projetos não sairão todos de uma vez. Matarazzo mandou

rever as 130 ideias elaboradas pela gestão anterior e pretende centrar forças

em problemas de grandes dimensões como a deterioração da área conhecida

como Cracolândia, a falta de estacionamentos e o acumulo de camelôs.

(DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 14)

Este trecho acima ainda nos mostra uma prática discursiva que permeia toda a

reportagem, o argumento elitista, que fica claro quando se fala da falta de estacionamentos no

centro de São Paulo. Mais à frente iremos observar que em diversos pontos do texto o

argumento é extremamente elitista, pois evita ações visando o equilíbrio em questões

públicas, como é o caso dos transportes coletivos. Ou seja, em diversos momentos a

reportagem, sobre urbanismo, privilegia benefícios voltados apenas para as classes mais

abastados. Outro exemplo que corrobora essa análise e para a abordagem sobre o fim dos

passeios públicos do centro da capital conhecidos como ‘Calçadões’, segundo o texto, “[...] o

trânsito estrangulado entra as praças da Sé e República expulsou os consumidores de maior

poder aquisitivo e comércio de melhor qualidade. Em seus lugares surgiram os ambulantes e

estabelecimentos especializados em artigos populares.” (p. 14 e 15)

Vale ainda um destaque especial para o ponto em que a região da Cracolândia é

destacada. É justamente nesta região que o Projeto Nova Luz, ainda embrionário, em março

de 2005, tem foco. Sob o aspecto da memória discursiva, iremos encontrar mais adiante textos

que tratam essa questão e dão visibilidade à população de rua. Neste texto podemos citar.

“Uma terra de ninguém. Os 25 quarteirões nas imediações das ruas Aurora e Santa Ifigênia,

ao lado da São Paulo, são redutos de baixo meretrício, traficantes e viciados em crack.”

(DUARTE e GUSMÃO, 2005, p. 20) é dessa maneira que a reportagem descreve a região,

com ênfase ao já citado discurso elitista, quando menciona as proximidades da Sala São

Paulo, auditório de música clássica localizado na região da Luz.

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O texto apresenta então as dez ideias, que são temas de boxes na reportagem, a saber:

O fim dos calçadões; Como melhorar a segurança; Um novo centro comercial; Banho de

Limpeza; Carroceiros e mendigos saem das ruas; shopping para os camelôs; Parcerias com

empresas; Mais garagens subterrâneas; Não à poluição visual; e Universidade na Cracolândia.

Além do aspecto elitista, em alguns pontos a publicação utiliza de um discurso neo-

liberal, ao assumir a necessidade de esvaziamento do Estado em questões sobre o espaço

público, como estacionamentos e calçadas.

Há ainda, pelo mesmo texto a prática discursiva de um discurso higienizador, ou seja,

que coloca o centro como um local fétido e sujo, e que precisa de ações para mudar esse

status. O morador de rua está representado nesses discursos como alguém que proporciona

essa situação ao centro da cidade. Abaixo o trecho da ideia intitulada Carroceiros e mendigos

saem de cena (DUARTE e GUSMÃO, 2005) na íntegra:

Como é hoje – das 10000 pessoas que vivem nas ruas em toda a cidade,

2000 estão no centro. Estima-se que 400 sejam crianças. Na Praça da Sé, por

exemplo, famílias cozinham ao ar livre, lavam roupa e se banham nas fontes.

Outro problema é a presença de 2000 catadores de lixo e de sua carroça.

Apesar de contribuírem para a coleta seletiva, eles atrapalham o trânsito e

prejudicam o comércio.

O que se pretende fazer – Firmar parcerias com instituições de assistência

social para encaminhar os mendigos aos 36 albergues municipais e montar

programas de inclusão social. Atualmente, 30% dos moradores de rua

voltam a ter uma vida normal após ser atendidos pela prefeitura. As vagas

nos albergues (7336 em toda a cidade) devem ser ampliadas. No caso dos

catadores que circulam pelo centro, a intenção e obrigá-los a guardar a

carroça em estacionamentos. Algumas ruas terão tráfego de carroceiros

proibido (p. 16).

No trecho, a relação entre esse argumento higienizador e o morador de rua é direta,

pois faz menção ao fato de esses cidadãos realizarem as atividades privadas em locais

públicos. A retirada desses seria então uma das soluções para o problema do centro da cidade,

mas não necessariamente do morador de rua, pois pelo próprio dado apenas 30% dos

moradores de rua atendidos pela prefeitura voltam a ter uma vida normal.

Quanto aos carroceiros, há uma abordagem de caráter autoritário. Expressões como “e

obrigá-los a guardar a carroça” mostra que, embora a atividade auxilie na coleta seletiva de

lixo, a intenção é tirá-los do centro de São Paulo.

A partir desta análise, entendemos que esta reportagem destina-se ao público das

classes A e B, e as formações discursivas são perpassadas por uma ideologia conservadora.

Assim, a presença de um argumento conservador parece estar condizente com o veículo em

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149

que a reportagem foi veiculada: o lugar de enunciação é o da terceira pessoa, ou seja, aquele

que aborda o problema (o político, o jornalista) e não de quem vive o problema.

Quadro 22: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Ele não foge da briga 62

Título Autores Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Ele não foge da

briga

Camila Antunes

e Alessandro

Duarte

Autores;

Andrea Matarazzo;

Gilberto Kassab.

Perfil do

secretário das

subprefeituras

Andrea

Matarazzo

Problema a ser

enfrentando;

Infrator;

Sujeito a ser

“caçado”.

A primeira observação que temos antes de analisar o próximo texto é a memória

discursiva, a reportagem Ele não foge da briga63

(2008), escrita pelos mesmos autores da

reportagem acima três anos mais tarde, também traz a figura do então secretário das

subprefeituras, Andrea Matarazzo. Percebemos neste resgate vários procedimentos

discursivos semelhantes, embora a distância temporal entre as duas reportagens.

Em Ele não foge da briga, a revista faz um perfil de Matarazzo, enfatizando

especialmente suas características repressivas e intolerantes, com o que julga estar errado na

cidade.

No contexto, surge a figura do morador em situação de rua como um dos problemas a

serem enfrentados. Logo nas primeiras ele está representado na figura do usuário de drogas e

do carroceiro, na região da Luz, mais precisamente na Cracolândia, foco do Projeto Nova

Luz. Os discursos atribuídos a Matarazzo, que confirmam essa estratégia de produção dizem,

“Muita gente ainda vem aqui para usar drogas.” Ou “Outro problema grave são os carroceiros

que descarregam entulho de madrugada no meio da rua”.

Essa problematização da população de rua é uma marca presente em todo o discurso

da reportagem, ao passo que o mesmo identifica Matarazzo como o homem que vai reprimir e

resolver todos esses problemas.

Ao mesmo tempo em que é colocado como uma espécie de controlador da situação –

na própria matéria de capa é tachado sob a alcunha de “O xerifão da cidade”, o secretário é

visto como um homem de gosto refinado. Assim como no texto Dez ideias para o Centro

(DUARTE e GUSMÃO, 2005), o personagem principal é tido também como um Tucano de

Alta Plumagem, em referência ao animal símbolo de seu partido, o PSDB. Essa construção de

62 Quadro elaborado pelo autor.

63 Anexo R

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150

imagem é atrelada a partir da dialética entre o rígido xerife e o bem talhado executivo, que

briga em nome da sociedade, mas com elegância. “O homem gosta de brigar com quem

considera infrator. Pode, às vezes, parece demagogia, mas o que ele faz em geral é bom para a

vida da cidade”, julga assim o discurso do jornal, que apresenta um caráter político-partidário

favorável à imagem de Matarazzo e sua legenda.

Ao longo do texto, o caráter implacável do secretario, especialmente contra a

população da rua, tida como marginal, é revisitado. “(Andrea Matarazzo) Mandou derrubar

um barraco que havia sido construído em uma praça...”

O ponto da matéria que chama mais a atenção, do ponto de vista da Análise de

Discurso, em relação à representação da população de rua é o trecho em que, de forma

explicitamente opinativa, o jornalista explica sobre os enfrentamentos do personagem com

“ONGs que atendem a população de rua”, segue o trecho abaixo:

Entrou em confronto direto com o notório Padre Júlio Lancellotti. O líder da

Pastoral do Povo da Rua implicou com seus métodos de fechar

estabelecimentos ilegais com blocos de concreto e suas tentativas de retirar

os sem-teto das calçadas. Chamou-o de fascista e higienista. Elegante, agora

que pesam dúvidas sobre a conduta do padre, Matarazzo prefere encerrar a

polêmica. (DUARTE e ANTUNES, 2008, p. 28)

Podemos verificar no texto, acima, que apesar de ser informativo, uma intensa

adjetivação. Do ponto de vista discursivo, trata-se de uma forma se produzir sentido por meio

da qualificação ou desqualificação de algo ou alguém. No caso, o Padre Júlio Lancellotti é

colocado como a figura da oposição à elegância do subprefeito, pois o ataca e o ofende.

O que nos chama a atenção, é a prática discursiva utilizada pela revista no trecho

“agora que pesam dúvidas sobre a conduta do padre”. Em tempo, naquela época, o Padre teria

sido vítima de extorsão de um suposto ex-morador de rua que o ameaça em tornar pública

uma denúncia sobre o sacerdote. Independente, a isso, o discurso da revista, se apropria de

uma procedimento julgador e moralista em relação ao sujeito que defende a população de e

euforia em relação ao homem responsável em botar “ordem na casa”.

Além de termos como enunciadores os autores do texto e Andrea Matarazzo, o então

chefe de Matarazzo é outra voz presente no discurso. O então prefeito Gilberto Kassab que o

elogia, especialmente a sua capacidade de trabalho.

É importante observar que o discurso da revista valoriza o caráter repressivo,

perseguidor e intolerante de Matarazzo, a determinados grupos diferentes da cidade, como

prostitutas, vendedores ambulantes e, especialmente, ao morador de rua. Essa valorização é

concretizada por meio discurso higienista de parte de Matarazzo enquanto enunciador, e por

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151

parte das enunciações dos jornalistas. Como resultado disso, o sentido produzido é que o

morador em situação de ruas está colocado em uma condição de pária e degradador da cidade,

que necessita ser retirado daquele local, para o pleno desenvolvimento da urbes.

Quadro 23: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Cenas de um centro

abandonado64

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Cenas de um

centro

abandonado

Giovana Romani Autora;

Turista francesa;

Coronel da PM;

Associação Viva

Centro;

Diretor do CCBB.

Abandono do

centro de São

Paulo nos finas

de semana

Culpado pela

degradação do

Centro;

Sujeira;

Causa do

abandono.

O morador é também representado como causador da degradação urbana no texto

Cenas de um centro abandonado65

(2009), a jornalista Giovana Romani narra como fica o

Centro de São Paulo nos finais de Semana. O texto foi publicado na edição de 28 de outubro

de 2009.

Pelas práticas discursivas utilizadas, há uma relação explicita entre o a população de

rua e o lixo. “Aos domingos, quando o comércio fecha as portas e as ruas se esvaziam, o lixo

e os mendigos saltam aos olhos de quem anda pela região”, diz a linha-fina do texto.

Além da revista traz uma edição de imagens que discursam a degradação. Como uma

imagem editada na matéria, que mostra um varal com roupas secando na praça da Sé, expõem

um tensionamento na relação espaço público e hábitos privados, condição essa que o morador

em situação de rua não tem mais referência, pois a ele espaço público e privado não fazem

mais sentido algum.

A representação do morador de rua na reportagem é de alguém que espanta o público,

que poderia estar circulando no local. Isso é perceptível não somente na enunciação da

jornalista, mas também na de transeuntes, como a turista francesa Elisabeth Gomis. “Vi tantos

mendigos que deu medo de usar a câmera fotográfica”, diz relacionando a situação de rua

com a marginalidade.

Outra voz que marca polifonia discursiva da reportagem é do coronel da Polícia

Militar, Marcos Chaves, que embora classifique que o medo está no inconsciente da

64 Quadro elaborado pelo autor.

65 Anexo S

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152

população, afirma a maioria dos moradores em situação de rua só fiquem nos locais para

descansar, alguns são oportunistas e se aproveitam para “praticar atos criminosos”, em uma

clara demonstração de um discurso protocolar da corporação.

Por todo o restante do texto, há uma construção imagética da sujeira, por meio de um

discurso descritivo relacionado a fotos. O morador em situação de rua é atrelado a esse

discurso como uma metáfora da sujeira.

Neste segundo momento do texto, o problema maior é a sujeira e não o morador de

rua, no entanto, esse não deixa de estar associado a esse quadro. E ao final do texto, o

discurso volta a também associar essa população à marginalidade. Isso aparece em mais uma

enunciação. Desta vez do diretor Marcelo Mendonça do Centro Cultural Banco do Brasil,

localizado na rua Álvares Penteado, na região central.

Em meio ao caos, há quem tome iniciativas por conta própria para agradar

aos visitantes. É o caso do Centro Cultural Banco do Brasil, que depois de

quatro anos voltou a oferecer, em setembro, um serviço de transporte

gratuito de um estacionamento na Rua da Consolação até lá. “Era um pedido

recorrente do nosso público”, afirma Marcelo Mendonça. “A van traz mais

conforto, comodidade e segurança.” (ROMANI, 2009, p. 30)

Além da relação com a segurança, é curioso perceber que na reportagem há uma

componente crítica em relação ao poder público, isso é perceptível na expressão “iniciativas

por conta própria”. Ou seja, o sentido produzido é que embora não existam políticas públicas

consistentes para tratar do problema, a iniciativa privada tenta melhorar a situação. Em linhas-

gerais as pessoas até tentam, mas é não dá para usar o centro de São Paulo, salvo em

iniciativas de uso privado do espaço.

Quadro 24: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Degradação que se esparrama 66

Título Autor Vozes Enunciativas Valor(es)-

notícia

Representação

do morador de

rua

Degradação que

se esparrama

Henrique Skujis Autor;

Presidente

Associação Paulista

Viva;

Associação de

moradores;

Floriano Pesaro;

Silvia Maria Schor.

Degradação do

Centro de São

Paulo e política

de albergues

Causador e

espalhador da

degradação

66 Quadro elaborado pelo autor.

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153

Ainda no que se refere à remoção/revitalização urbana, abordados em VEJA São

Paulo temos o texto Degradação que se esparrama67

(SKUJIS, 2009), que fala sobre o

fechamento de dois albergues, no final do mês de novembro de 2009, e aponta que isso é a

causa de a população em situação de rua, migrar para diversos bairros da cidade, trazendo a

esses os aspectos da degradação. “Não é apenas no centro que moradores de rua dominam a

paisagem”, diz a linha-fina do texto.

No sentido produzido pela reportagem, a presença do morador de rua degrada a

localidade onde ele se instala. Ainda que naturalize a presença da população de rua no centro

da critica a ida a outras regiões, como a Avenida Paulista. Logo no primeiro parágrafo do

texto, o jornalista aborda o vão livre do Museu de Arte de São Paulo, Masp, e o caracteriza da

seguinte forma. “[...] merecia um uso menos degradante.”, referindo-se a população de rua

presente naquela situação.

Quando fala do sem-teto, o discurso é julgador e autoritário ao considerar que o fato

de a população de rua se espalhar pela cidade é uma situação grave. Os outros enunciadores

são representantes de Associação de Moradores, o então vereador e ex-secretário da

Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), Floriano Pesaro, a economista da Fipe,

Silvia Maria Schor, além de representantes de associações de moradores e os próprios

moradores em situação de rua. A polifonia gerada por esta reportagem faz com que a

produção de sentidos seja mais complexa, em relação a textos sem a mesma característica.

O interdiscurso, como de costume na prática jornalística da Revista, apresenta dados

oficiais, como os da Fipe, no intuito de corroborar as hipóteses presentes no texto. Entretanto,

o que chama a atenção é que o morador de rua, na reportagem parece estar no centro de uma

discussão de ordem político-partidária. Entre a então gestão atual SMADS – liderada por Alda

Marco Antônio –, e a anterior, com Pesaro à frente.

Assim, a presença, ou melhor a visibilidade do morador em situação de rua, em

bairros, que não só o centro, seria tida como uma espécie de termômetro da eficiência de

políticas públicas de assistência social, ou pior, de controle social, ou seja, da capacidade da

gestão do município, manter esse grupo diferente em determinada área.

Quanto às vozes dos próprios moradores – caso raro em VEJA São Paulo –, eles

criticam o fato de serem transferidos para bairros distantes do centro, ao passo que a atual

gestão da SMADS, reforça que o fechamento de albergues no centro não influenciou no

67 Anexo T

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154

número de vagas, embora o próprio texto já sinalize para uma dificuldade em se contabilizar o

número de sem-teto, na cidade.

Diante desse quadro de extensa disputa política, no qual, o que chama atenção na

matéria (valor-notícia) sobre a degradação do centro é apenas um pretexto para uma discussão

ainda maior, o morador de rua é representado como um indivíduo que causa a degradação dos

locais e está no centro de uma complexa discussão político partidária.

Por essas razões, por meio de uma leitura mais cautelosa e examinando as vozes

antagônicas, graças ao fato, como já citado de a reportagem ser bem completa do ponto de

vista das vozes, podemos concluir que a representação social do morador de rua é essencial

para entendermos a dinâmica política que regia a cidade naquele momento. Esse grupo

diferente é um dos determinantes para discussões políticas sobre qual a medida mais cabível

de política pública em prol da sociedade.

Quadro 25: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Vizinhos da Cracolândia 68

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação

do morador de

rua

Vizinhos da

Cracolândia

James Cimino Autor;

Nova moradora;

Agentes de saúde;

Arquiteto Arnold

Pierre;

Recepcionista de

hotel

Revitalização da

Cracolândia

(Nova Luz)

Viciado

Ainda vale mencionar que a revista VEJA São Paulo trouxe à visibilidade, pela

primeira vez em 29 de junho 2011, o projeto Nova Luz. Em Vizinhos da Cracolândia69

(2011), o jornalista James Cimino realizou uma reportagem em um dos prédios revitalizados

da região, o San Fernando. Podemos compreender que o valor-notícia está relacionado ao

antes e depois da região

Pelo texto, uma nova moradora, agentes de saúde, o arquiteto Arnold Pierre

Mermelstein, além de um recepcionista de um hotel são os sujeitos dos discursos, que

produzem os sentidos com suas enunciações.

Embora seja um espaço revitalizado, os discursos não se atêm apenas às rupturas com

o passado, mas também às permanências do caos da região, descrevendo as cenas de sujeira e

a “vizinhança” dos dependentes químicos, enfatizando do título. Essa tensão entre novo e

68 Quadro elaborado pelo autor.

69 Anexo U

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155

velho se mantém por todo o texto. Ao se observar as práticas discursivas, verificamos que

estão presentes tanto a descrição do local como um espaço degradação humana e social e de

uma área que ao ser revitaliza terá destino a classe média.

Assim, podemos intuir que a questão humanitária fica para o segundo plano.

Justamente por essa prática, o fala é crítica em relação à revitalização da área, pois tende a se

preocupar mais com o valor de troca (especulação imobiliária e privatização) do que com o

valor de uso da região (políticas públicas), como mostrado no trecho:

Enquanto a transformação do entorno prometida pela prefeitura não se

concretiza, o funcionário de uma indústria cosmética, Hugo Maritan e sua

mãe, a dona de casa Maria Dercília, capricharam no conforto de sua

quitinete no San Fernando, com móveis novos e TV de tela plana. “A

decoração custou 12000 reais”, conta ela. Durante o dia, são obrigados a

suportar o mau cheiro da sujeira deixada pelos viciados. Perambulando pelas

calçadas enrolados em cobertores, muitos deles parecem inofensivos e, até

agora, convivem em paz com os novos vizinhos. (CIMINO, 2011, p. 48)

Nesta reportagem, muito mais que identificarmos a representação social do morador

de rua, que no caso é o dependente químico, ou o viciado ou ‘noia’ como colocados pelas

vozes do texto, é importante olharmos para a representação do espaço público e como uma

política de revitalização do centro é vista sob um olhar elitista.

Essa ideologia, que chamaremos de classe média, segue a uma lógica liberal, pois a

matéria enfatiza que alguns dos novos proprietários buscam os empreendimentos da área para

investimentos e não necessariamente moradia. No entanto, a representação da cidade como

espaço dessa abordagem liberal, é colocada em xeque. A matéria coloca a classe média como

intrusa naquele espaço, isso é atrelado a uma produção de sentido de desesperança em relação

às melhorias da região. Chama a atenção o trecho final da reportagem:

Em um lugar onde o poder público é pródigo apenas em fazer promessas,

esses tipo de situação mostra quanto os pioneiros do San Francisco ainda se

sentem como intrusos na área ocupadas há tempos pelos viciados. (CIMINO,

2011, p. 48)

Quadro 26: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo A vida no abrigo da

Cracolândia70

Título Autor Vozes Enunciativas Valor(es)-

notícia

Representação

do morador de

rua

A vida no abrigo

da Cracolândia

Maurício Xavier Moradores;

Psiquiatra Ronaldo

Laranjeiras;

Reabilitação de

dependentes

químicos e

Ex-viciados

70 Quadro elaborado pelo autor.

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156

Agentes

comunitários;

Secretária da

SMADS, Alda

Marco Antônio.

política de

albergues

O texto A vida no abrigo da Cracolândia71

(XAVIER, 2012) fala sobre o abrigo

Complexo Prates, intitulado como “o primeiro centro de tratamento de viciados que reúne

albergue e clínica no mesmo espaço. Tem como enunciadores o jornalista, os atendidos pelo

centro (os quais são brevemente apresentados nos primeiros trechos do texto), o psiquiatra

responsável, além de agentes comunitários.

Uma das ênfases do discurso é mostrar como o local dispõe de espaço de sobra para

atendimento, isso é convocado por meio de dados em uma tabela intitulada como “Espaço de

sobra”.Esse discurso eufórico em relação às ações do governo em relação aos moradores em

situação e albergues não é exclusividade deste texto, em diversos textos analisados sobre

abrigos para sem-teto, o sempre mostra que governo “está fazendo a sua parte”.

Por meio de uma prática discursiva exalta a Operação Cracolândia, como algo

importante para a recuperação das pessoas, ainda que com falhas:

Desde a ocupação policial na região, o ritmo de abordagens ficou mais

intenso. De janeiro para cá (a matéria foi publicada em 9 de maio de 2012), a

média diária foi de 298, 50% maior que a do período anterior à operação. O

que ainda não resolve o problema, pois os usuários, antes concentrados nos

mesmos pontos, espalharam-se para outras áreas. (XAVIER, 2012)

A representação do morador é exclusivamente o dependente químico que deixou-se

recuperar, pois dentre as vozes, há depoimentos de internos que falam de suas vidas. Como

produção de sentidos da matéria fica a impressão de quem quer, é ajudado, pois o governo

indispõe e não mede esforços para isso.

Quadro 27: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Em quem o frio dói mais 72

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Em quem o frio

dói mais

Edison Veiga Autor;

Morador de rua;

Assistente social;

Secretário da

SMADS, Floriano

Pesaro

Frio nas ruas nos

meses de inverno Rebelde;

Sujeito

lançado à

própria sorte.

71 Anexo V

72 Quadro elaborado pelo autor.

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157

No mês de agosto, com as temperaturas mais baixas por conta do inverno no

hemisfério sul, o jornalismo que faz a cobertura das cidades, costuma abordar pautas sobre o

frio nas ruas. Em 2007, a VEJA São Paulo, apontou o tema na Em quem o frio dói mais73

(VEIGA, 2007), que se inicia narrando a negação de um morador de rua em ser encaminhado

a um albergue em dia de frio.

A produção de sentido dos discursos jornalísticos presentes na matéria aponta para a

dificuldade em se enviar as pessoas ao albergue nas noites de frio. Na enunciação do

jornalista Edison Veiga, percebemos que o morador de rua está representado como uma

pessoa que apesar de estar em situações precárias, prefere continuar nela, lançado a própria

sorte.

O texto ainda traz números da operação da Central de Atendimento Permanente da

Prefeitura (Cape), assim como da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento

Social (SMADS). Ao tomar dados como base argumentativa, o texto produz um sentido de

que as instâncias governamentais estão quites com as obrigações público, ou seja, “fazendo

sua parte”, e que o mais difícil mesmo é convencer o morador de rua a ir pro albergue nos

dias frios. Como nas palavras de um dos enunciadores do texto, a coordenadora da Cape,

Grasiella Fernandes Basso. “A cada quatro pessoas abordadas, só uma aceita ir” ou “Não

podemos forçar ninguém a ir”.

Em linhas gerais, analisando as vozes e as condições de produção do texto, além da

interdiscursividade com o texto de Ocas”, Antes que o frio doa (NICOMEDES, 2009),

percebe-se que o sentido produzido no texto é o de que o morador de rua é principal culpado

por passar frio. No entanto, há um silenciamento sobre o porque ele não quer ir ao albergue.

Esse silenciamento deve ser entendido, dentro da Análise de Discurso, como uma indicação

de que as vozes do povo da rua não é relevante nesta discussão.

Assim, o morador em situação de rua é caracterizado como teimoso, enquanto a

atuação da SMADS e Cape, como alternativas seguras para se sair da rua com dignidade.

Como apontado nas palavras do secretário municipal de Desenvolvimento Social, a época,

Floriano Pesaro, que fogem bastante do tema do frio: “Metade de nossos albergues oferece

cursos de qualificação profissional”.

73 Anexo W

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158

Quadro 28:Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Dez mortes em quatro dias74

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação

do morador de

rua

Dez mortes em

quatro dias

Daniel Salles Autor;

Vendedor da região

dos crimes;

PM.

Assassinatos de

moradores de rua

Vítimas da

violência

Além do sofrimento causado pelo frio, um dos grandes medos da população em

situação de rua é a violência urbana. A reportagem Dez mortes em quatro dias75

(SALLES,

2010), publicada em 19 de maio de 2010, traz para VEJA São Paulo a questão da violência

contra moradores de rua. Dessa vez, o sem-teto no veículo sai de sua representação como

elemento de degradação da cidade ou marginal, para ser apresentado como vítima.

Vale mencionar que essa representação é muito mais pautada pelo valor notícia do

assunto – no caso a criminalidade e a violência –, do que por parte do ponto de vista

ideológico do veículo em posicionar diante de um quadro de intolerância com as minorias.

Chegamos a essa observação acima, pois a matéria além de noticiar o assassinato de

pessoas que não são sem-teto, não coloca essa população como voz protagonista da

reportagem, nem dá o destaque esperado. Prova disso ainda é a linha-fina que fala de

assassinatos sob um aspecto bem genérico, sem sequer mencionar o povo da rua.

Dentre as vozes enunciativas que podemos destacar, além do jornalista Daniel Salles,

temos um vendedor da região e um policial militar. Apesar de compreendermos uma

produção de sentido na qual o morador de rua é apresentado como protagonista e como

vítima, a sequência do texto enfatiza a questão da segurança pública deixando o assunto da

violência contra a população de rua para o segundo plano.

O vendedor Orlanar Mendes, que trabalha próximo a cena do crime, narra como os

moradores de rua foram vítimas. “Eles sempre pediam água e para trocar o dinheiro

arrecadado, mas jamais fizeram mal a ninguém”. O tom de mistério das mortes coexiste com

o medo da população em relação à violência. Quanto ao ocorrido, há hipóteses para as mortes,

ou comandadas por moradores e ou por uma mulher que teria tido sua bolsa roubada por um

dos moradores.

Apesar dessa criminalização de um suposto morador, o discurso jornalístico não se

posiciona de modo a ser marcado por um procedimento de higienização. Nesta oportunidade,

há uma busca por isenção, e mesmo em relação aos moradores de rua, não se posiciona.

74 Quadro elaborado pelo autor.

75 Anexo X

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159

Assim, podemos considerar que a apresentação do morador de rua neste texto é a de vítima.

Esse sentido é produzido pela habilidade do jornalista que consegue fazer de sua isenção a

maior virtude no texto.

Quadro 29: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Estrangeiros sem teto 76

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Estrangeiros sem

teto

Cláudia Jordão Jornalista;

Personagens

estrangeiros.

Estrangeiros em

situação de rua Trabalhador;

Limpo;

Vítimas da

crise financeira.

Em um exercício de interdiscursividade com o texto “Não tinha futuro, só trabalho”

(BARROS ET AL., 2006) (já analisado), iremos agora analisar a reportagem da revista VEJA

São Paulo de 2 de maio de 2012, intitulada Estrangeiros sem teto (JORDÃO, 2012)77

, sobre

pessoas de outras nacionalidade que moram nas ruas de São Paulo. Ela traz depoimentos de

três homens moradores de rua o italiano Daniele Carbone, de 37 anos; o canadense Ron

Stephen White, de 67 anos; e o japonês Kiyoshi Ishimaru, de 79 anos.

Quanto aos aspectos descritivos segundo a matéria, Daniele veio ao Brasil, no início

de 2011, para tentar se livrar das drogas e sobrevivia vendendo produtos falsificados. Acabou

caindo nas drogas, quando descobriu a Cracolândia, mas conseguiu se reabilitar, citando que

foi com ajuda das palavras do Evangelho. Entre idas e vindas das drogas, na ocasião da

matéria morava em um albergue da prefeitura e buscava sair de lá e alugar um apartamento.

Segue parte de seu depoimento:

Há um ano e meio, quando vim da Itália, eu era um homem em busca da

sobrevivência. Pouco antes da viagem, havia passado quatro meses numa

clínica de reabilitação no meu país. Saí de lá e voltei a injetar cocaína e

heroína na veia. Para tentar me salvar, resolvi mudar de ares. Desembarquei

em Cumbica e me hospedei no hotel Marabá, na República. Na bagagem,

trouxe um remédio para aliviar as crises de abstinência. Mas a disposição de

levar o tratamento a sério acabou quando conheci a Cracolândia.

Frequentando a região, cheguei ao ponto mais baixo da minha vida. [...]

Vestia roupas de grife, dirigia carros bacanas e frequentava restaurantes

badalados, até ter de vender tudo por causa do vício. Quando cheguei a São

Paulo, trouxe comigo alguns produtos falsificados, comprei outros na

Galeria Pagé e enganava os clientes. A condição de italiano também me

ajudou bastante. Parava as pessoas na rua, contando a história de que, no

caminho para o aeroporto, havia sido assaltado e, por isso, precisava de

auxílio para retornar à Europa. Como o brasileiro é generoso, muitos caíram

76 Quadro elaborado pelo autor.

77 Anexo Y.

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160

no conto. Eu pegava o dinheiro e comprava um, dois, até três papelotes de

crack. As pedras acabaram comigo. Cheguei a um ponto em que não me

restavam forças para trabalhar e passei a morar na rua. [...] Estou limpo há

um ano. Nesse período, sofri apenas uma recaída. Dias atrás, consegui um

trabalho como garçom. Deixei de ligar tanto para a vaidade e para as coisas

materiais. Sou feliz? Não tenho nada, mas estou em paz. Não pretendo voltar

para a Itália, pois minha família desconhece a situação. Daqui a dois meses

quero alugar um apartamento e sair do abrigo da prefeitura.

O canadense Ron Stephen já morava no Brasil desde 1996 e tinha uma vida normal até

enfrentar problemas financeiros. Pela sua idade teve dificuldades em encontrar um emprego.

Faz questão de andar limpo, dá aulas de inglês aos amigos e também mora em um albergue.

Segue parte de seu depoimento:

Os três primeiros meses do ano passado foram os mais difíceis da minha

vida. Eu já morava no Brasil quando comecei a enfrentar grandes problemas

financeiros. É praticamente impossível um homem da minha idade arrumar

emprego em São Paulo. [...] Acabei indo parar na rua. Para sobreviver,

durante o dia comia os restos de comida deixados nas praças de alimentação

de shoppings. É impressionante como o brasileiro desperdiça coisas. Bastava

esperar um pouco nesses locais para colocar a mão em pratos inteiros de

sushi, por exemplo. À noite, aproveitando que sou idoso e não pago

passagem, entrava num ônibus em direção a Cumbica. Dormia no aeroporto.

Sempre fiz questão de andar limpo para não ser enxotado dos lugares. Com

uma parte do dinheiro das esmolas que recebia, comprava sabonetes para

tomar banho direito. [...] Depois de um tempo vivendo assim, fiquei fraco e a

cabeça começou a falhar. Até que uma noite eu vagava próximo do Hospital

São Paulo (na Vila Clementino), quando um PM me encaminhou para o

médico. De lá, fui levado para o albergue onde vivo até hoje, na Cidade

Ademar. As pessoas são cuidadosas, como e durmo muito bem. Não penso

em voltar para a minha terra: tenho apenas um irmão por lá, além de não

gostar nada de frio. Sou chef de cozinha, estudei em uma escola de culinária

em Nova York e trabalhei em hotéis como o Fairmont Royal Park, em

Toronto. [...] Meu sonho é trabalhar para a comitiva canadense na Copa do

Mundo e na Olimpíada no Brasil.

Kiyoshi, a exemplo dos outros dois, também vive em albergues e os motivos que os

levaram para a rua foram também financeiros, o Plano Collor e um golpe de um contador são

alguns dos agravantes dessa situação. Sem dinheiro passou a vender produtos de limpeza

buscou um albergue para viver. Veja o depoimento

Quando terminou meu contrato de trabalho numa lavoura em São Joaquim,

Santa Catarina, eu não quis voltar ao Japão. Havia chegado ao Brasil

sozinho, aos 22 anos, em 8 de novembro de 1955. Deixei a província de

Yamaguchi, onde nasci, peguei um navio e desembarquei em Santos. Eu e

um amigo resolvemos juntar as nossas economias e investir em dois

negócios: uma fábrica de detergente em Santo Amaro, aqui na cidade, e um

sítio para policultura em Santo Antônio da Platina, no norte do Paraná.

Enquanto eu trabalhava em São Paulo, meu sócio ficava no sul. Todo o

dinheiro da fábrica ia para o campo. [...] Depois disso, vendi a empresa e me

mudei para o Paraná. Tudo ia bem, até que o Plano Collor bloqueou as

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161

nossas economias. Naquele tempo, tínhamos 300 alqueires e sessenta

funcionários. Peguei um empréstimo atrás do outro para tentar manter os

negócios, mas acabamos quebrando. Voltei para São Paulo em 2000, aluguei

uma casa no bairro da Aclimação e comecei a vender produtos de limpeza.

Dois anos depois, a situação piorou ainda mais. Soube que havia levado um

golpe do contador que contratei para fechar minha empresa. Ele embolsou o

dinheiro, não pagou os impostos devidos pela firma e sumiu. Fiquei com o

nome sujo e uma dívida enorme. Sem dinheiro para manter uma casa,

procurei um albergue. Desde então, moro num deles e nunca consegui pagar

o que devo. Vivo de uma aposentadoria especial de um salário mínimo e da

venda de produtos de limpeza, que me rende cerca de 300 reais por mês.

Descritas as histórias de vida das personagens, vamos analisá-las apontado as questões

de identidade e diferença de Woodward (2009). Em um cenário que as nacionalidades

estrangeiras predominantes são a haitiana e a boliviana, seguido de outros países da América

Latina78

, esse recorte da revista soa superficial para representar e identificar a população de

rua. No entanto, podemos chegar a conclusões interessantes sobre a identidade imaginada do

morador de rua na VEJA São Paulo.

Do ponto de vista racial esses moradores não representam o morador de rua da cidade,

visto que segundo o Censo e caracterização socioeconômica da População em situação de rua

na municipalidade de São Paulo (2011) cerca de 60% dessa população é considerada negra ou

parda. Estaríamos falando da diferença, então? Talvez.

Também é interessante notar que as três nacionalidades utilizadas de exemplo são de

países que possuem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) superior ao do Brasil79

(0,718). O Canadá está na sexta colocação com índice de 0,908; o Japão na décima segunda

posição com 0,901; e a Itália em 24ª (0,874).

Todos os três possuem emprego, embora o italiano viva de golpes, ou seja, brancos,

trabalhadores, mas que por algum descaminho foram levados a morar na rua e atualmente

todos são moradores de abrigos da prefeitura. Essa é a representação do estrangeiro morador

de rua que está significada nas páginas da revista.

A partir dsses aspectos, podemos destacar as seguintes procedimentos discursivos: a

reabilitação das drogas, limpeza, terceira idade, superação, trabalho, e talvez o mais

significativo a ideia de que esses cidadãos estrangeiros estão nesta situação por crise

financeira e não por conta da miséria.

78 Segundo dados do Censo da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo.

79 Ranking disponível em

http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH_global_2011.aspx?indiceAccordion=1&li=li_Ranking2011.

Acesso em 10 de julho de 2013.

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Quadro 30: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Crianças de rua 80

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação

do morador de

rua

Crianças de rua Ivan Angelo Ivan Angelo;

Interlocutores.

Crianças

moradoras de rua

Carente, mas livre

Já o texto Crianças de rua81

(ANGELO, 2006) é uma crônica do jornalista e

romancista, Ivan Angelo, que escreve na última página da revista a cada quinze dias, desde

1999. A crônica publicada, logo no início do ano de 2006, 1º de fevereiro, exprime sua visão

sobre crianças em situação de risco social.

Angelo contextualiza sua crônica espacialmente em uma reunião social com amigos.

Como elemento que o motiva a refletir sobre o tema, cita a enunciação de um comentário em

uma mesa ao lado, que contamina sua mesa. Trata-se do número de crianças de rua em São

Paulo. Esse dado motivo questionamentos de seus companheiros de mesa que enunciam suas

dúvidas sobre o tema:

O número se refere só às crianças que moram nas ruas? E as crianças de rua

da periferia, foram contadas? E aquelas que a gente vê, ao passar de carro

por bairros afastados, empinando pipa na hora da escola, jogando bola –

contaram? Ou será que só contaram as que perambulam pelo centro e por

bairros próximos pedindo dinheiro, furtando e cheirando cola? Contaram

aquelas que são levadas por mulheres adultas para pedir dinheiro, ou só as

que vivem soltas, por si? E aquelas que buscam nas ruas um magro dinheiro,

encenando penosos shows de malabares, vendendo pacotinhos de bala,

lavando vidros dos carros, catando latinhas, esmolando – contaram essas?

Ou essas não são de rua? (ANGELO, 2006, p. 126)

Embora o trecho acima reflita uma dúvida em relação aos métodos de contagem da

população de rua, é interessante apontarmos para o sentido que o discurso produz. A

estereotipação da criança de rua sob a representação do marginal. Em outros trechos do texto,

comentários extremamente preconceituosos que dão conta inclusive da esterilização dos pais,

justificam essa ideia.

Mesmo sendo uma crônica e o enunciado acima expressar o discurso de outrem, é

importante pensarmos que Angelo se apropria da fala de outro enunciador e, é a partir de seu

ponto de vista, que o sentido é produzido. Há ainda de se considerar que esse sentido

produzido silencia outros tipos de representações que a criança pode ter, por exemplo, a

criança carente.

80 Quadro elaborado pelo autor.

81 Anexo Z

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163

Se analisarmos até aqui somente, certamente concluiríamos, que a crônica produz um

sentido exclusivamente negativo em relação às crianças. No entanto, em um segundo

momento do texto, o autor, com habilidade discursiva, relembra dos tempos em que era

criança e via crianças do reformatório para arrancar o mato que crescia no paralelepípedo das

ruas. Do outro lado portão, Angelo dava água aos garotos, mas era reprimido pela mãe, que

não permita conversas compridas.

Angelo (2006) fecha o texto da seguinte maneira:

Não sei se era um bom sistema, nada sei dos resultados nem do alcance. Meu

mundo não passava da esquina. Os meninos pareciam tranquilos, assumindo

a obrigação. Eu também não gostava de muita coisa que tinha de fazer, mas

fazia. O mundo era maior, o problema era menor.

Com essas palavras o autor apresenta outra representação dessa criança, que agora é

carente, mas ainda assim é livre. Ao contrário das crianças de hoje e das crianças “do outro

lado do portão”.

Quadro 31: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O muro do Center 382

Título Autores Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

O muro do

Center 3

Edison Veiga,

Regina

Cazzamatta e

Roberto Gerosa

Autores;

Administração do

Shopping Center;

Arquiteto Ruy

Otakhe.

Instalação de

tapumes de

madeira para

conter que

moradores de rua

durmam sob

marquise de

shopping

Problema;

Mendigo.

A partir de agora iremos abordar as análises que integram aquela ancoragem de

assuntos a ligados habitação, cidadania, direitos e políticas públicas. Como na pequena nota O

muro do Center 383

(VEIGA, CAZZAMATTA e GEROSA, 2006) que apresenta a enunciação

de três vozes sobre o fato de moradores de rua dormirem sob a marquise do shopping center

localizado na avenida Paulista. Para evitar isso, a administração do centro de compras instala

tapumes de madeira no período noturno, o fato que possui o valor-notícia na matéria.

Assim, as vozes da administração e dos jornalistas trazem um discurso de proteção

para o local da ação dos mendigos (representação do morador de rua), assim o discurso é

higienizador, pois se baseia na exclusão dessa população do convívio.

82 Quadro elaborado pelo autor.

83 Anexo AA

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164

Curiosamente, o arquiteto responsável pela obra, Ruy Ohtake surge como enunciador

na nota e defende, sob o ponto de vista arquitetônico e urbanístico mais idealista, permitindo o

acesso o dia todo. Diz o enunciador: “É preciso encontrar uma solução que não comprometa o

diálogo com a rua.”, uma alusão a o diálogo entre o espaço privado e o espaço público. Esse é

só um dos exemplos analisados de fatos relacionados à expulsão da população de rua dessa

região da cidade (próximo a avenida Paulista, a reportagem de Ocas” E depois da rampa?

(FARIA, 2006), já analisada, trata também dessa questão e inclusive se localiza muito

próximo ao shopping.

Quadro 32: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo O cortiço na Oscar Freire84

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

O cortiço na

Oscar Freire

Maria Paola

Salvo Moradores de rua;

Autores;

Dono de

apartamentos;

Representante dos

outros proprietários

Formação de

cortiço em bairro

nobre

Fora da lei;

Marginal;

Corpo diferente.

Também na mesma região e com a mesma temática temos O cortiço na Oscar Freire85

(SALVO, 2007). O título da matéria, de maneira sucinta sintetiza a ideia do valor-notícia, pois

um cortiço na região do bairro dos Jardins, mais precisamente na rua conhecida por ter lojas

de grifes internacionais, não é uma situação esperada.

A reportagem conta a história de um prédio localizado na esquina das ruas Oscar

Freire e Peixoto Gomide, o qual o proprietário de seis das nove unidades, Álvaro Moreira,

permitiu que os sem-teto vivam lá. Os donos das outras três unidades o acusam de fazer isso

para que ocorra a degradação do espaço. Estando os apartamentos desvalorizados, Moreira

poderia comprar o restante dos apartamentos dos outros proprietários a um preço menor e

negociá-los no mercado imobiliário.

Moreira aparece como um dos enunciadores do texto e se defende argumentando ser

uma forma de evitar que os apartamentos sejam invadidos.

A questão que nos interessa corresponde à representação do morador de rua. Em

ambas as falas, tanto de Moreira, como de seus oponentes, essa população é colocada como

um corpo diferente àquela situação – os Jardins – e, assim sendo, degrada o espaço e é alguém

a ser evitado.

84 Quadro elaborado pelo autor

85 Anexo AB

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165

Percebemos que na fala de Moreira, os interesses da população não são defendidos, ao

contrário essa população é apenas instrumental para ações posteriores. Vale ainda destacar

que logo no início, o texto faz uma comparação entre os bairros de Itaquera, na Zona Leste da

cidade, com os Jardins, obviamente valorizando o segundo. O discurso ainda se utiliza de um

procedimento ideológico e preconceituoso na expressão: “Não, não foi mais uma invasão de

algum MST (Movimento Sem-Terra) ubarno”.

Dentre as demais vozes que enunciam no texto, temos a gerente de um restaurante da

região. Ela afirma que os moradores fazem algazarras a noite e pede comida de graça,

constrangendo sua clientela. O discurso da revista ainda é preconceituoso ao abordar as

enunciações dos sem-teto instalados no prédio, a saber:

Hoje, sete famílias espalham seus colchões surrados e mudas de roupas pelos

oito cômodos do apartamento 32, com paredes pichadas e manchadas pela

sujeira. Não há chuveiro (apenas um de cano de onde jorra água) nem

mobília, mas os novos moradores não querem outra vida. “Adoro os Jardins.

Aqui é cheio de gente bonita e estou perto do meu trabalho”, comemora

Tiago Aparecido da Silva, guardador de carros em frente ao Suplicy Cafés

Especiais na Alameda Lorena. “Para que não tem nada, estamos no lucro”,

diz o catador Davi, enquanto empurra sua carrocinha pela Oscar Freire.

O trecho acima explora a criação da imagem da sujeira e das condições mínimas de

sobrevivência, no entanto coloca o sem-teto como alguém que qualquer situação é melhor da

que já possui. Irônica, a jornalista enunciadora, Maria Paola de Salvo, atribui uma memória

discursiva da elite, na fala do guardador de carros, Tiago Aparecido da Silva – o qual,

estranhamente, tem seu local de trabalho descrito. Por fim, a jornalista para produzir um efeito

de menosprezo, atribui o diminutivo à carroça de Davi dos Santos. Entretanto, se pegarmos o

termo fora do contexto sabemos que ‘carrocinha’ é o famoso carro do Centro de Zoonoses que

pega animais na rua.

A reportagem mostra que a questão da habitação para a população de rua na cidade é

um tabu. Nas próximas três análises, iremos abordar essa questão, realizando um cruzamento

com políticas públicas, direitos e cidadania.

Quadro 33: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo 1sem-teto=350 reais (por mês)86

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representação

do morador de

rua

1sem-teto=350

reais (por mês)

Edison Veiga Autor;

Moradores de rua;

Custo da

assistência social

Vadio (não

trabalhador)

86 Quadro elaborado pelo autor.

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166

Secretário da

SMADS

De forma direta, a reportagem intitulada 1sem-teto=350 reais (por mês)87

(2007),

escrita pelo jornalista Edison Veiga, traz a sua produção de sentido logo na linha-fina da

reportagem “Quase um salário mínimo. Quanto cada morador de rua custa à prefeitura”.

Esse é o tom do discurso que por toda a matéria, utiliza de um procedimento crítico

para falar dos valores gastos em assistência social da prefeitura com o morador de rua. A

partir do trecho, temos uma comparação com o salário mínimo, ou seja, se a pessoa estivesse

trabalhando estaria produzindo esse valor e não dando gastos ao governo. Ou seja, a

representação do morador de rua é o do indivíduo que além de não produzir, ainda gera gastos

ao dinheiro do contribuinte.

Como é recorrente em muitas reportagens do veículo, verificamos a

interdiscursividade com os dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento

Social – SMADS, que buscam corroborar as afirmações explicitadas.

A matéria mostra os albergues que mais custam à prefeitura, em uma crítica explícita à

política de assistência social do município. Há até uma tabela que mostra os cinco mais caros.

Como já falamos, o sentido produzido é que trabalhando essas pessoas não dariam esses

custos. Ao descrever uma das casas de acolhimento, o jornalista qualifica-o da seguinte

forma:

No topo do ranking está o Lar Transitório Batuíra, na Bela Vista.

Mantenedor do espaço, o Grupo Espírita Batuíra recebe da prefeitura 13 340

reais por mês para disponibilizar as dez vagas da casa, quem nem parece um

albergue, diga-se. No portão, há um interfone e uma câmera de segurança. O

visual, limpo, lembra uma clínica médica particular, com paredes e pisos

brancos. Na recepção, há um computador com monitor de tela plana,

cadeiras estofadas e um funcionário solícito. (VEIGA, 2007)

As opiniões emitidas pelo jornalista no texto, dão a significar um certo espanto que

serviços públicos possam ser de qualidade, traço de uma ideologia liberal de esvaziamento do

estado, presente na empresa que dirige a publicação.

Mas apesar disso, há também uma expectativa quanto às características desses locais.

Isso é expresso no seguinte trecho:

Com orçamento proporcionalmente parecido (115 185 reais para 250 vagas),

o Vivenda da Cidadania, no Pari é o único albergue nos moldes tradicionais

que figura entre os cinco mais caros da cidade. A justificativa está na ponta

da língua da coordenadora, a assistente social Márcia Martins Miranda:

87 Anexo AC

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167

“Como temos enfermaria, mais da metade dos que são trazidos tem algum

problema de saúde”. (VEIGA, 2007)

Ao final do texto, mais uma voz é trazida para mobilizar mais uma vez o sentido

produzido de que o gasto de dinheiro público está sendo desperdiçado. Do secretário Floriano

Pesaro:

Floriano Pesaro não acredita que haja abusos nos valores pagos às entidades.

“O repasse se diferencia porque há peculiaridades em cada licitação”, diz

ele. “Além de os serviços oferecidos variarem, há entidades que ocupam

imóveis alugados, outras que estão em prédios próprios e até as que se

instalaram em espaços públicos cedidos pela prefeitura.” (VEIGA, 2007)

Quando o jornalista coloca que o secretário não acredita que haja abusos, está

implícito que a pergunta feita a Pesaro foi se havia abuso nos valores. Este questionamento,

embora silenciado representa muito do sentido principal da reportagem, de que anda se

investindo muito dinheiro na assistência social.

A assistência social é sempre tratada de forma problematizada na revista VEJA São

Paulo. O próximo exemplo expressa essa condição ao continuar falando da política de

albergues para a cidade.

Quadro 34: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo Uma noite no albergue 88

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

Uma noite no

albergue

Pedro Henrique

Araújo Moradores de rua;

Jornalista;

Secretária da

SMADS, Alda

Marco Antônio.

Política de

albergues

Resistente ou

rebelde

A resistência do morador em situação de rua em relação a sua remoção a centro de

acolhidas ou albergues é também uma representação para essa população presente na

reportagem de 20 de julho de 2011, intitulada Uma noite no albergue89

(ARAÚJO, 2011).

Mais uma vez o assunto é tratado diante de um contexto de frio pela publicação.

Uma reunião social da população de rua marca o início do texto, que por meio de

práticas descritivas narra o quanto aquilo incomoda ao público. São descritas desde as

vestimentas ao odor da situação. “O cheiro da bebida, que se misturava a outros odores

88 Quadro elaborado pelo autor.

89 Anexo AD

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168

desagradáveis da sujeira acumulada na calçada, não lhes causava nenhum incomodo”.

(ARAÚJO, 2011).

Como na matéria Em quem o frio dói mais (VEIGA, 2007), de quatro anos antes, há a

representação do morador de rua como um rebelde que rejeita em ser acolhido e encaminhado

a um albergue. Fato esse que nos supõe a considerar uma interdiscursividade entre as duas

reportagens.

Essa recusa é oriunda da imposição de regras às quais o povo da rua estará sujeito em

um albergue, visto que na rua ele já perdeu todas essas referências de higiene, horário para

alimentação, dormir, etc. (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992).

Tomando isso como pretexto, há uma espécie de propaganda institucional da política

de albergues do município, mostrando o quanto a prefeitura, por meio da SMADS e Cape atua

junto à população de rua. Como na passagem abaixo, que ressalta euforicamente as ações:

Depois de um percurso de dez minutos, a Kombi estacionou na porta de um

prédio de dois andares, com fachada azul, no Brás, na Zona Leste. Trata-se

do Centro de Acolhimento Emergencial Alcântara Machado, o mais recente

endereço da rede de 55 abrigos mantidos pela administração municipal.

(ARAÚJO, 2011)

Valorizando o espaço, a reportagem ainda descreve em detalhes o cardápio e a

ambiência do local. Chegando a inclusive a expor dois estrangeiros moradores de rua,

presentes. Eles são haitianos e vieram ao Brasil após o terremoto de 2010 na ilha do caribe.

Outra voz presente ao contexto é o da então secretária Alda Marco Antônio, que fala

sobre as características do albergue. “Ele é destinado a pessoas que precisam de um pronto

atendimento”.

Sobre a relação, moradores em situação de rua e albergues, o texto coloca:

No início da madrugada, quando os hóspedes foram se recolher, apenas nove

vagas dos dormitórios estavam ocupadas. Sobravam portanto 71.

Essa disponibilidade de leitos contrasta com a estimativa de que existam

atualmente 13000 moradores de rua na cidade. A prefeitura vem aumentando

seus investimentos para atender essas pessoas. Neste ano, o orçamento para

cuidar das pessoas abrigadas é de 102 milhões de reais, ou 20% a mais do

que o ano anterior. Há previsão de inauguração de mais três abrigos, na

capital até o fim deste mês. A rede tem capacidade para acolher 10000

pessoas por noite. Em tese, a maior parte dos sem-teto não precisaria passar

a madrugada ao relento. Mas o problema é complexo. Existe uma resistência

a sair das ruas, principalmente porque boa parte dessa população é viciada

em drogas ou tem algum comprometimento de saúde mental. Com isso,

grande parte prefere viver na via pública para não seguir nenhum tipo de

regra. (ARAÚJO, 2011, p. 42)

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Como mencionamos, o discurso jornalístico enfatiza a capacidade da política pública

de abrigar os moradores, que lançados à sua própria rebeldia se recusam. Preconceituoso o

discurso ainda o é ao apontar que boa parte da população de rua é dependente química – com

a utilização da expressão viciado –, ou possuidora de algum problema mental. O texto

generaliza, sem apontar dados, assim sua produção de sentido é a de que, a prefeitura faz sua

parte, porém o morador de rua é rebelde, viciado e com problemas mentais.

Quadro 35: Resumo da análise do texto de VEJA São Paulo “Não fujo de uma polêmica”90

Título Autor Vozes Enunciativas Valor-notícia Representações

do morador de

rua

“Não fujo de

uma polêmica”

Daniel

Bergamasco Jornalista;

Promotor Maurício

Lopes;

Secretária da

SMADS, Alda

Marco Antônio;

Advogado Luis

Carlos Tucho.

Declaração de

promotor sobre

população que é

contra o sem-teto

Cidadão de

direitos;

Opositor à

classe média.

O último exemplo que iremos analisar também trata das políticas de albergues da cidade. O

texto “Não fujo de uma polêmica”91

(BERGAMASCO, 2011) é um perfil do promotor

Maurício Lopes. A primeira vista, o tema parece não ter relação com o tema morador de rua,

no entanto ele será analisado, pois o promotor ficou conhecido ao negar o recebimento de um

abaixo-assinado dos moradores do bairro de Pinheiros, com 1104 nomes, que não desejavam a

instalação de um albergue na Rua Cardeal Arco Verde, esse foi o fato que gerou interesse

público.

Além de recusar o documento, o promotor o encaminhou à Delegacia de Crimes

Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), com a seguinte declaração. “Tal demonstração de

insensibilidade é de provocar inveja a qualquer higienista social do Terceiro Reich”,

(BERGAMASCO, 2011, p. 39)

A partir dessa explanação do fato, vamos à análise do texto. A revista tratou o assunto

da seguinte forma em sua linha-fina: “Exagerado e com o pavio curto, o promotor Maurício

Lopes escorrega de novo ao comparar moradores de Pinheiros a nazistas”

Observando a expressão “escorrega de novo”, consideramos que, no perfil, o

magistrado é colocado como alguém polêmico e que cerceia o direito da sociedade reclamar,

90 Quadro elaborado pelo autor.

91 Anexo AE

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como exposto no texto: “No meio jurídico, enquanto isso, a discussão é outra: o promotor não

estaria cerceando o direito de reclamar?” (BERGAMASCO, 2011, p. 39)

Ao expor a voz do promotor, o texto ainda enuncia comentários e o faz parecer como

uma pessoa debochada, com expressões como “Abrindo um sorriso”, “Com um reluzente

brinquinho e um toque de celular simula um assovio fantasmagórico, não costuma passar

despercebido”, ou ainda como no seguinte trecho:

Uma de suas características é produzir frases de efeito. “Tratam os pobres

como se fossem pombos”, diz. “Nesse caso da Cardeal, me chocou a falta de

pudor demonstrar a discriminação”, continua, abrindo em seguida um sorriso

ao mostrar uma dezena de e-mails de cidadãos (cerca de 1% dos que

firmaram o abaixo-assinado) em apoio a suas declarações.

(BERGAMASCO, 2011, p. 39)

Quanto às práticas discursivas utilizadas no trecho acima, duas nos chamam a

atenção. A exploração da imagem do promotor em criar frases de efeito e a comparação do

número de pessoas que a apoiam suas ações, muito menor que os abaixo-assinados.

As representações do morador de rua na reportagem são marcadas por expor um

cidadão detentor de direitos, mas que está em oposição à classe média. Isso está presente no

discurso de Lopes, quando este fala sobre a operação Cracolândia. “Essas pessoas não podem

simplesmente ser varridas de lá” ou no caso do metrô em Higienópolis, “A burguesia anda

muito preocupada com a presença dos pobres”.

Vale ressaltar o fato de o texto produz um sentido de polarização, entre quem

supostamente defende o interesse das minorias versus a classe média. O texto da revista Veja

SP, além de colocar o promotor como alguém polêmico, ainda deixa dúvidas sobre sua

integridade de caráter, relacionada à acusação de plágio de sua tese de livre-docência ou o

fato de ter pedido exame de alfabetização ao então deputado Tiririca. Assim, a revista

posiciona-se como questionadora não da ação dos moradores, mas da reação do promotor.

O que fica deste texto é que assim, como mencionado sobre o Padre Júlio Lancellotti

na matéria Ele não foge da briga (2008), é que nas páginas da revista VEJA São Paulo a

apresentação de personagens que, por alguma razão, defenda o interesse das minorias – em

ambos os casos o povo da rua –, é feita de forma a desmoralizar as personagens e, assim,

desprestigiar a causa que visa a defesa dos direitos de cidadão para o povo da rua.

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4.4. Síntese da análise: comparação das estratégias discursivas de OCAS” e VEJA São

Paulo

Após realizarmos as análises, chegamos no momento de sintetizá-las para comparar o

que encontramos nos dois veículos estudados. Começaremos por Ocas”, veículo no qual o

morador em situação de rua é geralmente representado como um cidadão, detentor de direitos,

e também trabalhador.

Essa evidência confirma uma expectativa que tínhamos em relação à pesquisa, dada as

condições de produção do discurso de Ocas”, pois a publicação tem como objetivo editorial

dar voz e defender o interesse da população sem-teto.

Tal representação do morador de rua em Ocas” faz consonância com os objetivos

editoriais da revista Ocas”: dar voz e defender o interesse da população sem-teto. Esses dois

objetivos evidenciam-se no corpus selecionado desta publicação. Nele há uma equiparação

muito clara entre textos jornalísticos dos gêneros informativo e opinativo. Podemos

considerar que os textos informativos dão voz a essa população, enquanto os opinativos

carregam opiniões a respeito da mesma.

Podemos dizer que, em Ocas”, os moradores de rua são representados como sujeitos e

não como indivíduos, na medida em que aparecem como enunciadores, ou seja, têm seu ponto

de vista apresentado nos textos da revista e em muitos casos são protagonistas das matérias.

Sendo uma publicação identificada com a causa do morador de rua, Ocas” mantem-se atenta

aos seus objetivos de “dar voz”.

Na revista Ocas”, há uma ambiguidade no modo de representar o morador de rua,

tanto ela o apresenta como cidadão detentor de direitos quanto como cidadão marginalizado,

ou seja, como alguém que teve seus direitos limitados ou encontra-se excluído da vida urbana.

Embora participe da dinâmica da vida urbana e ocupe espaço físico nas praças e em outros

lugares da cidade, o morador de rua não está contemplado nos projetos de prefeitura, nem nas

políticas sociais como um grupo para o qual se vislumbre transformação. As ações do

governo, seja municipal, estadual ou federal, são na sua maioria de caráter emergencial e

assistenciais, visando solucionar um problema imediato e de modo imediato. Essa

ambiguidade presente no modo de representar o morador de rua em Ocas” pode ser explicada

como uma manifestação dos valores hegemônicos da sociedade ou ainda como uma

manifestação da ideologia: embora a proposta editorial da publicação seja defender e fazer

falar o morador de rua, o lugar em que o sem-teto está fixado na memória social se impõe no

texto jornalístico. Neste caso, o jornalista não se descola das práticas discursivas e dos

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sentidos já existentes e reproduz no seu texto argumentos “velhos” para uma publicação que

se propõe a ser uma voz dissonante.

Alguns órgãos oficiais têm suas enunciações presentes nos discursos jornalísticos de

Ocas”. Dentre eles, temos a PMSP, SMADS ou Cape. Em todos os casos de enunciação

analisados, as vozes dessas instituições aparecem extremamente contestadas nos discursos

jornalísticos da revistam como no texto E depois da rampa?92

(FARIA, 2006). Esta é uma

situação em que a publicação faz reivindicação ou revela as discrepâncias ou não diálogo

entre o morador de rua e as políticas públicas a ele destinadas.

Quanto à prática discursiva mais presente em Ocas” temos a predominância do

discurso polêmico. Segundo Orlandi (2009), nessa categoria a polissemia é controlada, o

referente é disputado pelos interlocutores, que presentes disputam os sentidos, como no final

da reportagem Vozes em busca de direitos93

, no qual é apresentado um debate entre a Aliança

pelo Centro Histórico e da Aliança pela Vida, organizações de interesses opostos.

Vale ressaltar que o discurso de Ocas” não é puramente polêmico, há também o

discurso lúdico no qual a polissemia “está aberta, o referente está presente como tal, sendo

que os interlocutores se expõem aos efeitos dessa presença inteiramente não regulando sua

relação com os sentidos” (ORLANDI, 2009, p. 86). O exemplo mais evidente por nós no qual

aparece o discurso lúdico é no artigo “Carroceiros e mendigos saem de cena”94

É,

especialmente, por meio, desses dois discursos que a publicação luta pela causa do homem da

rua. O sentido produzido é aquele que conversa com o seu público, ou, a população que

simpatiza com a população de rua.

Já em VEJA São Paulo, o morador em situação de rua é geralmente representado como

um corpo estranho, não normatizado em relação ao ambiente urbano, ou seja, é representado

como um marginal, no sentido de criminoso ou de viciado, por exemplo.

Ressaltamos que essa representação se dá com base em argumentos higienizadores e

elitistas, isso se deve ao fato de que a prática discursiva é autoritária e, portanto, o discurso é

autoritário (ORLANDI, 2009), no qual a produção de sentidos é contida, o referente é

apagado pela relação de linguagem que se estabelece e o locutor se coloca como agente

exclusivo. Ou seja, não se abre espaço para outro tipo de sentido produzido que não se baseie

na visão e no poder dos órgãos oficiais e seus representantes. Algo que nos chama a atenção é

92 Anexo C

93 Anexo N

94 Anexo A

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o fato de não haver uma instância de diálogo entre o sem-teto e as instituições. Efetivamente,

nesta publicação, o morador de rua não tem voz.

Quanto ao argumento da higienização, ele é utilizado todas as vezes que a publicação

aborda que a solução é retirada da população das ruas para ser colocada em um albergue ou,

simplesmente, não ficar mais no centro. Já o elitismo se revela, pela ideia recorrentemente

presente nos textos da revista de que o centro da cidade deve ser exclusivamente consumido

por pessoas com alto poder aquisitivo. Além disso, há muitos casos em que as falas dos

entrevistados ou enunciadores da revista são de caráter moralista e condenam as pessoas que

vivem nas ruas.

Além dos jornalistas, também temos como enunciadores frequentes em VEJA São

Paulo, a SMADS e a PMSP. Diferentemente do que ocorre em Ocas”, neste veículo as

instâncias governamentais de assistências social e administração pública são valorizadas em

detrimento à população.

No entanto, não verificamos silenciamento em questão da população em situação de

rua nas páginas da publicação. Na ADF, o conceito de silêncio é importante para a

compreensão da produção de sentidos. Ele pode ser pensado como “a respiração de

significação, lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça

sentido” (ORLANDI, 2009, p. 83). Há o silenciamento da condição de cidadão do morador de

rua, como por exemplo no fato de que em todos os textos analisados, em poucos casos o sem-

teto foi protagonista ou personagem das reportagens publicadas.

No caso que citamos, estamos falando do tipo de silenciamento em que o enunciador

deixa de mencionar algo, ou diz uma coisa e não diz outra, pois as autoridades falam da

situação ideal da cidade “limpa” e não abordam porque há a “sujeira”. Ou ainda, falam das

ações tomadas, mas não falam dos problemas dos projetos, falam do cidadão que merece ter

as ruas limpas, mas não falam do cidadão morador de rua que deveria ter condições de viver

com dignidade, ter residência e trabalho, por exemplo.

Alguns aspectos nos chamaram a atenção durante a análise do corpus de VEJA São

Paulo, como o fato de termos encontrado sete textos que faziam a menção à Cracolândia

entre junho de 2010 e maio de 2012. Nesses casos, a publicação toca no tema do projeto Nova

Luz, que justamente naquela época apresentava algumas ações. Por fim, podemos sintetizar

que o morador de rua é representado, na Vejinha como culpado pela degradação do centro e

marginal a ser descartado da composição do urbano. Entendemos que isso se dá pela

característica editorial de VEJA São Paulo, que busca conversar diretamente com o seu

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público, classe A e B, e talvez, para este tipo de publicação, o povo da rua não demande uma

representação diferente de um indivíduo estranho em relação à normatização da cidade.

Ao compararmos os resultados de nossa análise das duas publicações, percebemos

que há discrepâncias entre os discursos das duas revistas para tratar as questões da rua. Como

já mencionamos, em Ocas” temos há predominância do discurso polêmico e lúdico e em

VEJA São Paulo, do autoritário.

Assim, compreendemos que não somente as características editoriais e comerciais dos

dois veículos são distintas, mas também a forma como representam a cidade, especialmente a

partir da análise da questão da moradia na rua.

Relembrando os assuntos que identificamos para analisar os discursos, em apenas um

deles, o frio, a representação é coincidente. Em ambos os veículos o morador em situação de

rua é tido como alguém que fica ao relento, pois se rebela em ir para o albergue. Entretanto, o

albergue é representado de maneira diferente pelas revistas. Como uma instituição

controladora em Ocas” e como uma instituição necessária em Veja. Instituição controladora

em Ocas” porque nela temos a enunciação do morador de rua que mostra sua opinião sobre

ela. Instituição necessária em VEJA São Paulo, porque aos olhos do governo municipal e das

outras instituições que na revista enunciam vozes, o ideal seria que não houvesse morador de

rua, mas como existe, então foram criados os albergues para abriga-los em dias frios.

Sobre o assunto Drogas, enquanto na Ocas”, o morador de rua é representado como

dependente químico e, em Vejinha, como viciado. Já no caso dos estrangeiros, é importante

ressaltar que, enquanto em Ocas” o estrangeiro é essencialmente oriundo de países que

possuem situação financeira pior que o Brasil (Bolívia e Peru), em Vejinha esta métrica é

inversa. São apresentados personagens de países do chamado primeiro mundo . Vale

mencionar ainda que enquanto em Ocas” os estrangeiros sem-teto são associados à pobreza

como causa da situação em que se encontram, em Vejinha, encontramos o termo “dificuldades

financeiras”.

Em alguns textos de Ocas” aparece a representação do morador de rua como vítima da

violência, e esta serve de mote para a reclamação de políticas públicas para a população de

rua como nos textos Um fato, várias versões e o cheiro da impunidade95

(REZENDE e

FARIA, 2005) ou Vozes em busca de direitos96

(SEIDENBERG, 2008), publicados em

Ocas”. Já em Vejinha, há um único caso encontrado e analisado que aborda a violência em

95 Anexo I

96 Anexo N

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relação à população de rua. No texto Dez mortes em quatro dias (SALLES, 2010), a questão

da violência é abordada e silenciada, abrindo espaço para a violência urbana.

Há ainda alguns tensionamentos mais contundentes em relação à representação dos

sem-teto nas publicações. No caso das crianças, estas estão representadas como

marginalizadas em Ocas”; já em Veja, são representadas como carentes, mas livres em Veja.

Há ainda a representação do trabalhador, em Ocas” e do Vadio em Vejinha.

Por fim, vale mencionar que quanto às questões políticas, ambos os veículos

reivindicam políticas para solucionar os problemas dessa população. No entanto, Ocas”

defende a necessidades de políticas públicas e VEJA São Paulo se limita a dar visibilidade às

políticas de albergues, ou seja, espaços onde essa população possa ser isolada do restante da

cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema desta dissertação são as representações dos moradores de rua da cidade de São

Paulo nos discursos jornalísticos nas revistas Ocas” e VEJA São Paulo. Como as duas

publicações representam os moradores de rua, considerando as estratégias de produção do

seus discursos jornalísticos sobre a diferença, consiste em nosso problema de pesquisa.

Para ser possível alcançar os resultados definidos por nossos objetivos, organizamos o

texto em quatro capítulos, o primeiro destinado ao projeto de pesquisa; o segundo, à Análise

de discurso, nosso principal referencial teórico com enfoque no discurso jornalístico; o

terceiro relaciona consumo, cidade e o quarto contempla a análise do corpus que nos permite

identificar as representações do morador de rua e as estratégias discursivas utilizadas pelas

publicações para produzir tais representações.

O caminho teórico adotado em nossa pesquisa, Análise de Discurso de linha francesa,

nos auxiliou no entendimento dos seguintes pontos: as condições, formadas por diversos

processos históricos, políticos e ideológicos, que levam as pessoas a se fixarem no espaço

urbano e os modos como elas se fixam; as heranças medievais da cidade contemporânea que

as re-significa à sua maneira, a partir da concepção e da organização de cidade industrial,

condicionantes para a formação urbana como conhecemos; e o contexto da

contemporaneidade (pós-industrial), justamente a temporalidade e espacialidade, que traz à

tona relações de consumo, bem como de consumo da cidade e das representações veiculadas

nos discursos jornalísticos das duas revistas estudadas.

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A partir de da análise, identificamos as representações sociais do morador de rua

construídas no e pelo discurso jornalístico das revistas Ocas” e VEJA São Paulo: em certa

medida, as publicações constroem uma imagem do sem-teto por meio de características

generalizantes. Tal modo de caracterizar o outro é revelador da ação da ideologia, de

preconceitos, pois nem todo morador de rua é viciado, ou ladrão, por exemplo. Os dois

veículos constroem duas representações principais: Em Veja, o sem-teto é um indivíduo

estranho em relação à normatização da cidade e; já em Ocas”, é um cidadão detentor de

direitos e uma vítima.

Isso evidencia que os interesses editorias de ambas as publicações são distintos. Em

Ocas”, os processos de produção de notícias, ou de produção do discurso midiático, são

permeados por reivindicações de melhores condições de vida para os moradores de rua, e

consequentemente, pela promoção de políticas públicas para essa população. Por sua vez, em

VEJA São Paulo, a produção da notícia segue outras estratégias que resultam em

esclarecimento sobre os trabalhos da prefeitura e das autoridades que atuam junto aos

morador de rua

Quanto aos temas explorados no corpus analisado, ao mesmo tempo em que Ocas” se

preocupa com a situação e direitos da população de rua, Vejinha enfatiza, de certa forma,

interesses opostos, pois muitas vezes a leitura é de que para uma existir, a outra deve ser

suprimida

Foi muito enriquecedor para nossa pesquisa a utilização da Análise de Discurso

Francesa, uma vez que pudemos interpretar o material coletado de forma qualitativa e chegar

a resultados sobre a representação social do sem-teto que, de certa forma, foram de encontro

às nossas expectativas.

A ADF nos deu condições para alcançar os sentidos produzidos, por meio da análise

das vozes dos textos, que serviu de caminho para alcançarmos a identificação das

representações sociais dos sem-teto nesses dois veículos. Foi também por meio da ADF que

pudemos problematizar a produção jornalística e compreender que todo discurso jornalístico é

permeado por condições de produção histórica-social-ideológica que constroem

representações sobre seus objetos. Com isso, entendemos que a imparcialidade é impossível

para qualquer jornalista, pois todo sujeito é interpelado pela ideologia que se manifesta na sua

produção.

Sobre os critérios de pesquisa, o período extenso que delimitamos, ao mesmo tempo

em que nos trouxe dificuldades operacionais com a pesquisa, dado o tempo restrito de análise

(24 meses), deu-nos a noção da importância de trabalharmos com corpus complexos para a

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compreensão da produção de sentidos em veículos como as revistas impressas investigadas.

Deste modo, o marco temporal definido para a pesquisa, o Projeto Nova Luz, ao contrário de

nossa expectativa inicial, não trouxe o morador de rua para lócus privilegiado do discurso

jornalístico sobre a cidade de São Paulo.

A respeito dos gêneros jornalísticos, confirmamos nossas reflexões teóricas de que há

uma linha tênue entre os gêneros informativos e opinativos. Alguns textos, embora

informativos, apresentavam grande teor opinativo e vice-versa. Também o valor-notícia não

remete necessariamente à questão da rua, pois encontramos uma diversidade de valor-noticia

sem que se pudesse encontrar uma explícita relação entre o morador de rua e elemento

motivador do texto jornalístico. Comparando os dois veículos, vale citar que, em Ocas”, o

valor-notícia das matérias apresenta mais relação com a população de rua, que em VEJA São

Paulo.

Outro aspecto a se considerar sobre a construção dos textos, ambos os veículos

analisados utilizam-se de dados de pesquisas e de falas de autoridades para obtenção uma

versão oficial do fato.

Quanto aos enunciadores, em todos os casos consideramos o jornalista autor da

matéria como uma voz importante a ser analisada. Isso se deu porque compreendemos que

para analisarmos as estratégias de produção dos discursos jornalísticos, devemos considerar

que as condições de produção desses discursos incluem o jornalista, sua formação e o

contexto de desenvolvimento da atividade profissional.

Sobre a cidade, entendemos que ela é um ambiente comunicacional e que ela é

consumida tanto a partir da mídia quanto por meio da experiência urbana. No entanto, o

conceito de encontro das diferenças, embora defendido como necessário, por muitos teóricos

é pouco praticado, haja vista, como os discursos retratam a população diferente, por exemplo.

Outro ponto que percebemos foi que a pobreza é marcada como um distintivo do

morador em situação de rua nos discursos jornalísticos das duas revistas analisadas. Seja

como sinônimo de vulnerabilidade social ou de miséria.

Sobre a miséria, e analisando o caso da cidade de São Paulo, observamos ao

cruzarmos os resultados iniciais da pesquisa com a teoria, que a industrialização da cidade

culminou num duplo processo de desenvolvimento e de desigualdade social, assim temos a

demarcação da diferença em certos ambientes urbanos.

Sobre as práticas discursivas: em Ocas”, predomina o discurso polêmico, por vezes

irônico e em VEJA São Paulo, o discurso autoritário, segundo a conceituação de Orlandi.

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Já as condições de produção do discurso jornalístico, Ocas”, por pertencer a uma

ONG que defende os interesses da rua, possui uma estratégia de construção da representação

do morador de rua alinhada com os objetivos da Organização, ou seja, defender a causa. Já

Vejinha, por ser um veículo comercial, preocupada em atingir um público diversificado, não

mostra a mesma preocupação e representa o morador de rua conforme as visões mais

sedimentadas e, portanto, mais preconceituosas também. Assim, a ideologia da cidade limpa,

organizada e protegida está manifesta, em maior ou menor grau, nos corpora analisados.

Depreende-se também que o silenciamento sobre a situação do morador de rua existe: pouco

verificamos nos veículos a preocupação em debater ou esclarecer sobre os motivos da

existência de tantos sem-teto na cidade de São Paulo, ou ainda, não observamos debates sobre

projetos de promoção humana, de cuidados que promovam a saída das ruas e condições para

que o sujeito viva uma outro tipo de vida, integrado à regras de normalidade das cidades,

conforme argumentamos ao longo do trabalho. O discurso jornalístico produzido pelas

revistas analisadas permanecem no âmbito das questões superficiais, não ultrapassam os

limites do que pode e do que deve ser dito; parecem muito afeitos à uma cordialidade que não

condiz com o discurso jornalístico, principalmente o da revista Ocas”.

Sobre a comunicação e consumo, defendemos a ideia de que o consumo midiático é de

suma importância para a cidadania. Assim, é por meio das representações sociais veiculadas

na mídia que a sociedade também se mobiliza em torno da cidadania e do fazer política.

Para finalizar, a partir da análise desenvolvida, podemos afirmar que o discurso

jornalístico de ambas as revistas abriga estereótipos e reproduz desqualificações sociais do

morador de rua, apesar das diferenças editoriais, de objetivos e de ideologias existentes entre

os dois veículos.

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ANEXO97

97 Para a leitura dos textos analisados (na ordem em que foram apresentados), aconselhamos que a consulta das

matérias seja feita via DVD-ROM, que também é parte integrante desta dissertação.