Tema Banalidade Do Mal

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COLETÂNEA 1.A banalidade do Mal Há alguns anos, em relato sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, mencionei a “banalidade do mal”. Não quis, com a expressão, referir-me a teoria ou doutrina de qualquer espécie, mas antes a algo bastante factual, o fenômeno dos atos maus, cometidos em proporções gigantescas – atos cuja raiz não iremos encontrar em uma especial maldade, patologia ou convicção ideológica do agente; sua personalidade destacava-se unicamente por uma extraordinária superficialidade. (Hannah Arendt, Conferência) 2. “O que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?” A resposta está no mal banal. Trata-se de uma prática do mal promissora nas sociedades massificadas, possuidoras de organizações econômicas, políticas e sociais potentes, nas quais os seres humanos tendem a se sentir sem poder, solitários, submissos e quase condicionados. Vivendo apenas como animal laborante, os homens tecnificam e burocratizam as suas obrigações e se tornam, desse modo, incapazes de pensar as conseqüências das ordens dadas pelos seus superiores ou grupos. Eichmann, segundo Arendt, agiu igual ao cão de Pavlov, que foi condicionado a salivar mesmo sem ter fome. Ele não praticou o mal motivado pela ambição, ódio ou doença psíquica. Nada disso foi encontrado em Eichmann. A única coisa que chamou atenção de Arendt foi a sua incapacidade de pensar. Ao renunciar ao pensamento, Eichmann destituiu-se da condição de ser dotado de espírito que lhe possibilitaria o descondicionamento e, assim, dizer: não, isso eu não posso. (Odilio Aguiar, Violencia e banalidade do mal Revista Cult) 3. O mal banal e a ausência do pensamento O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor. Buscar o sentido não é apenas se informar, não é algo da ordem do conhecimento nem da aferição da eficácia. Trata-se de medir e buscar a estatura do que está acontecendo a partir do crivo da dignificação dos envolvidos. Quem pensa resiste à pratica do mal. A busca da significação encontra muita dificuldade quando a pressa, os mecanismos e procedimentos técnicos, burocráticos e os processos econômicos auto propelidos engolfam tudo. O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das

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COLETÂNEA

1.A banalidade do Mal

Há alguns anos, em relato sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, mencionei a “banalidade do mal”. Não quis, com a expressão, referir-me a teoria ou doutrina de qualquer espécie, mas antes a algo bastante factual, o fenômeno dos atos maus, cometidos em proporções gigantescas – atos cuja raiz não iremos encontrar em uma especial maldade, patologia ou convicção ideológica do agente; sua personalidade destacava-se unicamente por uma extraordinária superficialidade.

(Hannah Arendt, Conferência)

2. “O que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?”

A resposta está no mal banal. Trata-se de uma prática do mal promissora nas sociedades massificadas, possuidoras de organizações econômicas, políticas e sociais potentes, nas quais os seres humanos tendem a se sentir sem poder, solitários, submissos e quase condicionados. Vivendo apenas como animal laborante, os homens tecnificam e burocratizam as suas obrigações e se tornam, desse modo, incapazes de pensar as conseqüências das ordens dadas pelos seus superiores ou grupos. Eichmann, segundo Arendt, agiu igual ao cão de Pavlov, que foi condicionado a salivar mesmo sem ter fome. Ele não praticou o mal motivado pela ambição, ódio ou doença psíquica. Nada disso foi encontrado em Eichmann. A única coisa que chamou atenção de Arendt foi a sua incapacidade de pensar. Ao renunciar ao pensamento, Eichmann destituiu-se da condição de ser dotado de espírito que lhe possibilitaria o descondicionamento e, assim, dizer: não, isso eu não posso.

(Odilio Aguiar, Violencia e banalidade do mal Revista Cult)

3. O mal banal e a ausência do pensamento

O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor. Buscar o sentido não é apenas se informar, não é algo da ordem do conhecimento nem da aferição da eficácia. Trata-se de medir e buscar a estatura do que está acontecendo a partir do crivo da dignificação dos envolvidos. Quem pensa resiste à pratica do mal. A busca da significação encontra muita dificuldade quando a pressa, os mecanismos e procedimentos técnicos, burocráticos e os processos econômicos auto propelidos engolfam tudo. O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu comportamento. Não se reconhece dotado de

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vontade, capaz de iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros. Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades espirituais: pensar, querer e julgar.

Ao relacionar o mal ao vazio reflexivo, Arendt aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Nessas sociedades, o mal realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza. Ao relacionar o mal ao vazio reflexivo, Arendt aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Nessas sociedades, o mal realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza. A partir dessas teses, vemos emergir, na autora, formas de contraposição ao mal radical e ao mal banal. Na primeira, a autora propõe a recuperação da política, do mundo comum, principalmente, em A condição humana (1958); na segunda, aponta a retomada da dimensão ética em A vida do espírito (1971). Pensar, julgar e querer desembocam no cuidado com o mundo comum, no amor mundi, para usar a terminologia de Arendt, no respeito aos espaços onde os homens podem circular e se sentirem amparados pela presença dos iguais e dos diferentes. Nesse mundo comum os homens mostram que nasceram para começar e não para morrer.

(Odilio Aguiar, Violencia e banalidade do mal Revista Cult)

4. Sócrates: “a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”.

Talvez alguém diga: “Sócrates, será que você não pode ir embora, nos deixar em paz e ficar quieto, calado?” Ora, eis a coisa mais difícil de convencer alguns de vocês. Pois se eu disser que tal conduta seria desobediência ao deus e que por isso não posso ficar quieto, vocês acharão que estou zombando e não acreditarão. E se disser que falar diariamente da virtude e das outras coisas sobre as quais me ouvem falar e questionar a mim e a outros é o bem maior do homem e que a vida que não se questiona não vale a pena viver, vão me acreditar menos ainda. E assim é, senhores, mas não é fácil convencê-los. (Platão, Apologia de Sócrates)**Ao que parece, a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o mal e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza, ajustiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto que, reciprocamente, aqueles que amam a investigação e, assim, 'fazem filosofia' são incapazes de fazer o mal. (Hannah Arendt, Conferencia)

5. Kant: Sapere aude! (Ouse saber)

Esclarecimento é a saída do homem da menoridade pela qual é o próprio culpado. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio entendimento sem direção alheia. O homem é o próprio culpado por esta incapacidade, quando sua causa reside na falta, não de entendimento, mas

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de resolução e coragem de fazer uso dele sem a direção de outra pessoa. Sapere aude! [ouse saber!] Ousa fazer uso de teu próprio entendimento! Eis o lema do Esclarecimento.

Inércia e covardia são as causas de que uma tão grande maioria dos homens, mesmo depois de a natureza há muito tê-los libertado de uma direção alheia, de bom grado permaneça toda vida na menoridade, e porque seja tão fácil a outros apresentarem-se como seus tutores. É tão cômodo ser menor. Possuo um livro que faz as vezes de meu entendimento; um guru espiritual, que faz às vezes de minha consciência; um médico, que decide por mim a dieta etc.; assim não preciso eu mesmo dispender nenhum esforço. Não preciso necessariamente pensar, se posso apenas pagar; outros se incumbirão por mim desta aborrecida ocupação. Que, junto à grande maioria dos homens (incluindo aí o inteiro belo sexo) o passo rumo à maioridade, já em si custoso, também seja considerado muito perigoso, para isso ocupam-se cada um dos tutores, que de bom grado tomaram para si a direção sobre eles. Após terem emburrecido seu gado doméstico e cuidadosamente impedido que essas dóceis criaturas pudessem dar um único passo fora do andador, mostram-lhes em seguida o perigo que paira sobre elas, caso procurem andar por própria conta e risco. Ora, este perigo nem é tão grande, pois através de algumas quedas finalmente aprenderiam a andar; mas um exemplo assim dá medo e geralmente intimida contra toda nova tentativa.

É, portanto, difícil para cada homem isoladamente livrar-se da menoridade que nele se tornou quase uma natureza. Até afeiçoou-se a ela e por ora permanece realmente incapaz de servir-se de seu próprio entendimento, pois nunca se deixou que ensaiasse fazê-lo. Preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de um uso, antes, de um mau uso racional de suas aptidões naturais, são os entraves de uma permanente menoridade. Também quem deles se livrasse, faria apenas um salto inseguro sobre o fosso mais estreito, visto não estar habituado a uma liberdade de movimento desta espécie. Por isso são poucos os que conseguiram, através do exercício individual de seu espírito, desembaraçar-se de sua menoridade e, assim, tomar um caminho seguro. (Immanuel Kant, “O que é Esclarecimento”)

Ao que parece, a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o mal e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza, ajustiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto que, reciprocamente, aqueles que amam a investigação e, assim, 'fazem filosofia' são incapazes de fazer o mal.

(Immanuel Kant, “O que é Esclarecimento”)

6. Nós, os sonsos essenciais...

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta

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irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”. Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos (...).

(Clarice Lispector, Mineirinho)

7. Violência em série

Qual o conteúdo dessas séries, originalmente disponíveis apenas na TV fechada (AXN e FOX), mas que podem ser vistas também nos DVDs – piratas ou não – vendidos a preços acessíveis em todo o país?

No site sobre a série Dexter encontra-se a seguinte descrição:Como um homem cujo trabalho é ajudar a solucionar os piores

crimes de Miami durante o dia comete os mesmos atos brutais durante à noite? O que acontece numa cidade onde serial killers são perseguidos por um deles? Onde começa e termina a linha que separa um serial killer de um herói incomum? ‘DEXTER’ é uma história cheia de reviravoltas sobre um especialista em medicina forense da polícia que passa parte de seu tempo perseguindo assassinos que ultrapassaram os limites da justiça. Mas será esse um caminho possível para um serial killer?

(…) Dexter é um personagem complexo cujo código moral e ações talvez sejam chocantes para alguns — e totalmente injustificáveis para outros. Na superfície, Dexter é um homem bom e charmoso. Durante o dia, ele é um especialista em sangue que trabalha ao lado da equipe da divisão de homicídios do departamento de polícia de Miami e vai além do seu trabalho para solucionar os assassinatos. Seu trabalho na verdade serve

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para ocultar sua verdadeira ocupação, a de serial killer, que consiste em matar aqueles que conseguiram escapar da polícia. Logo se descobre as origens do seu comportamento: após ficar órfão aos 4 anos e guardar um traumático segredo, Dexter é adotado por Harry Morgan, um policial que reconhece as tendências homicidas dele e guia seu filho para mudar sua terrível paixão em dissecar humanos para algo mais construtivo. Como todos os serial killers, o lado obscuro de Dexter é escondido das pessoas com quem ele passa mais tempo, principalmente daqueles que ele ama. (…)

(Venício Lima, Mídia comercial: a lógica implacável da mercadoria)

6. “Bandido bom é bandido morto!”

Existem dois tipos de estúpidos, de acordo com o filósofo esloveno Slavoj Žižek. O primeiro é o sujeito superinteligente que simplesmente não compreende muito bem a realidade para além da obviedade literal. Ele consegue entender a situação do ponto de vista lógico, simplesmente ignora a existência de regras sociais implícitas num certo jogo linguístico. Suponham, para ilustrar a ideia, alguém respondendo com sinceridade a pergunta: tudo bem? O segundo tipo é aquele perfeitamente capaz de se identificar com o senso comum. Alguém que encontra a correspondência absoluta entre um dado de identificação social e si mesmo. Trata-se do sujeito que, sem qualquer constrangimento, absorve discursos, vocabulários, títulos e funções terceirizados, e passa a reproduzi-los como opiniões autenticamente próprias. O perfeito burocrata, por exemplo. Algo muito próximo do que Sartre chamou de má fé. A fuga para o “em si”, ou melhor, uma estratégia frustrada de fugir da angustia da decisão recolhendo-se na insignificância de uma vivência terceirizada.

Se você não se enquadra em nenhuma das duas categorias, provavelmente já percebeu onde quero chegar. Não se sabe ao certo o autor ou mesmo quando começou a circular a popular expressão “bandido bom é bandido morto”. Lembro ter escutado a primeira vez no começo dos anos 90. Naquela altura, ela já era repetida pelo mesmo perfil dos que hoje gostam de repeti-la: sujeitos com muita pose e alguma limitação cognitiva. Ela foi francamente proclamada em todas as ocasiões onde a violência urbana pareceu ter chegado ao limite do tolerável.

Nessa semana, graças à divulgação de boçalidades na internet (principalmente nas redes sociais), a frase voltou, acompanhada dos muitos elogios ao grupo de “motoqueiros” que resolveu “fazer justiça” ao prender um “pivete” pelo pescoço em um poste no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. O adolescente de 15 anos cometia crimes na região – ele tinha ficha na polícia, já havia praticado dois furtos e sido autuado também por agressão. Na última segunda (3), o rapaz foi surpreendido por um grupo de, segundo ele, 30 homens musculosos, quando andava por uma das ruas do bairro. Ele e um amigo foram espancados pelo grupo e acabou preso, nu, pelo pescoço, em um poste, por uma tranca de bicicleta.

(Bruno Garcia, Bandido bom é... oi?)

7. Facebook e os reprodutores do senso comum

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Na plateia, enfileirados, estão os reprodutores do senso comum, prontos para proclamarem corajosas palavras de ordem no seu Facebook (!). O clima parece entusiasmar a cooperação prática, e todos então se sentem seduzidos a oferecerem suas sugestões logo após proclamarem seu mantra: bandido bom é bandido morto. O que se segue é um conjunto de frases rabiscadas pelo contra senso e apresentadas como prognóstico de solução. “Não é a melhor justiça, mas é melhor do que justiça nenhuma!”, “é porque não foi contigo! Quando for, você vai querer fazer o mesmo com eles”.... Como se não bastasse a ignorância ao admitir publicamente um jargão protofascista como sua própria opinião, o discurso machão não se caracteriza como um erro de cálculo, mas como cálculo nenhum. A reprodução automática endossa passivamente um comportamento mais do que praticado, mas que salta aos olhos de um ignorante dessa natureza como uma ilusão de retribuição pelas injustiças que testemunha diariamente. Trata-se, portanto, de um delírio de vingança traduzido por um entendimento rasteiro sobre interações sociais.

Como gostava de lembrar George Orwell, “a vingança é um ato que se quer cometer quando se está impotente e porque se está impotente”. Nesse caso, uma dupla impotência. A primeira, assumida, diz respeito à constatação de que existe injustiça. Em outras palavras, que de fato estamos cercados de uma estrutura social nociva que normaliza patologicamente um sentimento perene de injustiça. A segunda se refere precisamente à impossibilidade desse tipo de discurso oferecer qualquer diagnóstico coerente. Ele é perfeitamente capaz de identificar a violência mais óbvia, aquela que se manifesta como perturbação da ordem, mas falha miseravelmente em perceber que a própria ordem depende de muita violência para se impor.

(Bruno Garcia, Bandido bom é.... oi?)