Teologia da adoção e adoção de filhos.
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POR UMA TEOLOGIA DA ADOÇÃO
José Neivaldo de Souza1
RESUMO
Sob o tema Por uma Teologia da adoção propomos uma reflexão acerca desta realidade no
Brasil; uma teologia que, a partir da história da Salvação, traga luzes para uma pastoral
familiar mais envolvida na formação de agentes e comprometida, sem preconceitos, com os
mais necessitados e desfavorecidos da sociedade. Tal reflexão faz parte dos desígnios de Deus
que em Cristo, nos amou e nos adotou e “por meio do qual clamamos: “Aba Pai””.
Palavras-chave: Adoção. Teologia. Bíblia. Salvação. Família.
INTRODUÇÃO
“Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temerem,
mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: “Aba, Pai””
(Rm 8,15). A carta de Paulo aos romanos provoca uma séria reflexão sobre a adoção, numa
sociedade onde há casais que, muitas vezes, sem possibilidade de terem filhos biológicos,
recorrem a clinicas de inseminações artificiais em busca de uma solução. Em muitos casos é
compreensível que isso aconteça, pois nossa cultura cultiva a ideia de que uma família se
realiza quando é capaz de gerar filhos. Até ai tudo bem, quando pesa a ideologia de que
“filhos de sangue” são melhores que “filhos adotivos”, então é questão de preconceito e urge
uma reflexão ética que venha transformar tal pensamento.
A adoção, apesar de toda burocracia que a envolve, é legalizada, teologicamente
falando. O próprio Deus, chamado de Pai, em Jesus Cristo, nos adotou. Não somos chamados
de filhos “do sangue”, mas filhos na “adoção”, pois em Jesus, Deus, por pura graça, nos tirou
das trevas para a luz.
A partir destes pressupostos podemos pensar teologicamente o problema da adoção.
Nosso procedimento metodológico será simples: ver a realidade da adoção e suas
dificuldades, morais ou legais; depois, pensá-la à luz da Bíblia e da teologia cristã a fim de
compreendê-la melhor e, por último traçar planos para uma pastoral comprometida com a
1 Doutor em Teologia. Mestre em Psicologia e Filosofia. Professor no Curso de Mestrado da Faculdade
Teológica Batista do Paraná - FTBP e na Faculdade Evangélica do Paraná - FEPAR. E-mail:
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adoção e que venha desburocratizar o processo. Não podemos impedir a ninguém de ter um
lar, uma família que o adote e ame.
ADOÇÃO: UMA REALIDADE A SER PENSADA
No primeiro momento o que nos importa é ver a realidade da adoção. Podemos
entender como adoção o ato pelo qual alguém aceita como filho, nos conforme da lei, o filho
de outrem (Nunes, 1993, p. 48). Há muitos filhos, crianças e adolescentes abandonados,
muitas vezes por falta de condições físicas ou psíquicas dos pais, que esperam por ser
adotados em um novo lar. O problema se estabelece quando há uma “exigência” dos casais
em relação aos adotáveis, tal exigência aponta muito mais para um perfil de pessoas egoístas e
preconceituosas do que para a prática do amor e compaixão. Como se não bastasse este
problema se fortalece ainda mais quando a justiça age de forma morosa e burocrática ao
dificultar o que deveria ser facilitado, devido sua urgência: a adoção.
As informações do CNA (Cadastro Nacional de Adoção) não nos assustam.
Atualmente, podemos comemorar, as dificuldades eram bem maiores e a lei da adoção se
desenvolveu. Antes, visitando o código de 1916, aos que não tinha filhos biológicos era
facilitado a adoção, pois havia muito preconceito em relação ao adotado. E, se mais tarde, o
casal gerasse filhos, este estaria excluído da sucessão hereditária. A partir de 1988, com a
nova constituição, novos ares apareceram na jurisdição brasileira substituindo o antigo
ordenamento jurídico. Hoje, legalmente falando, não há distinção entre filhos legítimos e
adotivos, principalmente no que diz respeito à partilha da herança.
São inúmeras as famílias nas filas de adoção. Pela estatística do Conselho Nacional de
Justiça, este número é bem superior ao número de crianças necessitadas à espera de um novo
lar. Os dados de 2011 revelam que são 4.932 crianças para 27.183 pretendentes (BARBOSA,
2012, p. 14). Por que então, a adoção no Brasil, parece uma utopia? Eis uma questão a ser
analisada. Ainda que haja inúmeras dificuldades, podemos ressaltar algumas que emperram o
processo de adoção: Preconceito, Idade da criança e a Lentidão da justiça.
Quanto ao preconceito, ao tratarmos deste assunto, nos encontramos em debates.
Como julgar se uma família é preconceituosa quanto à questão da escolha de um bebê, branco
e do sexo masculino, para adoção? Hoje, numa sociedade plural, não cabe mais preconceitos,
sejam eles ligados à questão de gênero ou de raça. Infelizmente, nos deparamos com o fato
que muitos pretendentes são criteriosos na preferência. Por outro lado, há uma grande
quantidade de crianças, meninas e negras, à espera de uma família que preze pelo amor e
despreze o preconceito.
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Outra dificuldade é o fator “idade”. A maioria das famílias, que aguardam na fila,
prefere adotar crianças recém-nascidas ou com pouca idade, porém a maioria das crianças,
destituídas das famílias de origem e liberadas para a adoção são maiores de cinco anos ou
próximas da adolescência, com mais irmãos. Eis uma dificuldade a ser considerada. Quanto
aos recém-nascidos, os abrigos estão de mãos atadas enquanto aguardam uma liberação
judicial. Não são poucos os lugares superlotados de crianças e adolescentes à espera de uma
família e, se fizermos uma pesquisa, veremos que somente 10% destes são passíveis de
adoção.
A última e mais complicada dificuldade diz respeito à lei. A lei da adoção existe para
que crianças e adolescentes tenham a chance de crescerem em uma família que os acolham e
amem, porém o que deveria facilitar parece dificultar, pois funciona como o maior empecilho.
O que é uma criança adotável? Para a justiça, enquanto a criança tem um pai e uma mãe, não
está para adoção. Porém, não é questão de lei, mas de ética, que muitas vezes a criança, apesar
de uma relação filial de “sangue” não foi adotada no coração, isto é, não foi desejada. Vítimas
de violência e rejeição familiar, estas crianças, esperam na morosidade da justiça, serem
declaradas aptas, mas enquanto isso, muitas são abandonadas nas ruas ou em abrigos.
Desburocratizar o processo de adoção, eis uma questão que, não só diz respeito ao
poder político, mas também ao poder religioso, na medida em que há uma espiritualidade e
uma pastoral voltadas para os menos favorecidos de nossa sociedade, principalmente crianças
e adolescentes abandonados, sem família. Lembramos que a igreja primitiva, à luz da Boa
noticia do Reino de Deus, prezava pelos órfãos e viúvas, entendendo que Jesus, apesar de ter
sido rejeitado pela humanidade, não ficou desamparado, mas foi adotado por Deus, ao qual
chamou “Aba” paizinho.
UMA REFLEXÃO TEOLÓGICA SOBRE A ADOÇÃO
Ao tratarmos da adoção, numa perspectiva teológica, devemos necessariamente ligá-la
ao tema do amor de Deus, como escreveu Proudhon: “Por traz de todo problema político há
um problema teológico”. Em outras palavras, para um problema finito, uma solução do
infinito. A. Gesché escreve acerca disso: “A teologia, falando de Deus, falando ‘de um ponto
de vista de lugar nenhum’ (Thomas Nagel), propõe uma compreensão pelo alto e pelo infinito,
e essa maneira de fazer pode apresentar-se como hermenêutica (revelação) do ser humano
pelo infinito” (2005, p. 156). Nesta perspectiva podemos tratar o problema da adoção.
Para os hebreus o ‘ahab é uma escolha, é livre e voluntária. Não são poucos os casos
apresentados pelo Primeiro Testamento. No livro do Êxodo, a história de Moisés deve ser
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entendida a partir da adoção: “Tendo o menino crescido, ela o levou à filha do Faraó que o
adotou e lhe deu o nome de Moisés, dizendo: ‘Porque eu o tirei das águas’” (Ex 2,10).
Através deste herói o Espírito divino libertou Israel da escravidão e o conduziu à liberdade.
Aquele que, com amor, foi tirado das águas no Nilo, por amor, também tirou Israel, amado
por Iahweh (Ex 4,22), das profundezas do mar vermelho. Além de Moisés, podemos lembrar
outros casos, entre eles, do rei Davi que ao cantar: “Proclamarei o decreto do Senhor. Ele me
disse: ‘Tu és o meu filho; eu hoje te gerei’” (Sl 2,7), expressa a alegria da adoção divina e a
certeza de que, com o mesmo amor com que foi amado, deveria amar o seu povo.
O tema da adoção perpassa o Segundo Testamento. A pregação de Jesus aponta para
isso e o termo grego hyiothesia utilizado pelo apóstolo Paulo na evangelização dos gentios,
aponta para os direitos. No mundo greco-romano o órfão ou o escravo, legalmente acolhido
no seio da família (Pátrio poder), gozava dos mesmos direitos do filho “de sangue”.
Podemos confrontar essa ideia ao fato que Jesus foi adotado por uma família humana.
Na genealogia de Mateus não temos nenhuma indicação que ele seja filho “de sangue” de José
(Mt 1,16), mas adotivo. Justificado por Deus, José acolheu aquela vida e deu a ela um nome.
No ato da adoção Jesus se tornou juridicamente filho de José, participando indiretamente da
herança davídica.
Assim como em Moisés, o Espírito de Deus resgatou o antigo Israel, também através
de Jesus Cristo, o Espírito de Deus (Aba) redime a humanidade tornando-a herdeira. Assim
como Moisés fora tirado das águas, no batismo, o novo símbolo da adoção divina, o fiel é
salvo, “por Cristo”, “com Cristo” e “em Cristo” tornando-se participe da herança divina como
verdadeiro filho de Deus (Jo 1).
Tanto o Primeiro quanto o Segundo Testamentos apontam a adoção como fruto do
amor de Deus. Moises, Davi e Jesus, o Cristo, heróis da história da salvação apontam para a
graça da adoção divina. Exceto em Davi, o próprio Deus, através de Moisés e em Jesus, de
maneira diferente, foi adotado por pais humanos: uma princesa pagã e um operário judeu.
Paulo quer incluir todos nessa eleição, não só os judeus participam da herança divina,
mas também os gentios, sem preconceito algum, são passíveis dessa adoção. A eleição que
antes era um privilégio dos hebreus, em Jesus cristo se torna universal, isto é, se estende a
todos os povos, pois a justificação não vem pela lei, mas pela graça de Deus.
Ao ser adotado, o fiel tem uma nova vida, é uma nova criatura e detém, ainda que em
promessa, a herança divina escrita no Cristo, o próprio testamento. Nele, Deus escondeu o
verdadeiro tesouro que leva à salvação: o amor; um tesouro a ser partilhado e não enterrado.
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Se a lógica do mercado está em acumular para enriquecer, a dinâmica do Reino de Deus anda
na contramão: é no desprendimento e na partilha que o amor se multiplica.
Na história da teologia cristã a adoção segue interpretações diferentes, porém sempre
na linha evangélica: somente no amor divino há a certeza de uma adoção verdadeira. Tanto
Agostinho, quanto Tomás de Aquino observam que “Amar é querer o bem” e isso se expressa
em obras: a adoção é uma bela obra.
Agostinho, em sua conversão, descobriu a grandeza da adoção. Segundo ele, ainda na
ignorância, antes de termos a consciência da eleição, Deus já nos adotou, pois nos fez
participar de seus dons. O fato é que passamos nossa vida buscando a verdade com base em
nossos sentidos, pensamos que isso é um dom natural, mas nos vem da pura bondade de Deus.
Feliz daquele que descobre esta dádiva. Pela adoção, o próprio Deus nos dá condição de
existir: “Graças a ti, Ó minha doçura, minha glória, minha confiança, meu Deus, pelos dons
que me deste. Conserva-os, pois. E assim me conservarás. Então crescerá e se aperfeiçoará
tudo o que me deste. E eu mesmo viverei contigo, porque foste tu que me deste a
possibilidade de existir” (Livro I, 30, 20). O que diz Santo Agostinho aparece na interpretação
de A. Gesché ao dizer que no domínio da fé tudo pode ser vivido de forma incondicional:
“tudo é graça, mesmo que seja útil e necessário. Tudo deve ser recebido como louco e
gratuito, mesmo que haja contrato e obrigação. A vida é dom, somente isso” (2005, p. 7)
Tomás de Aquino, na mesma linha, observara que, quando alguém acolhe em sua casa
um estranho e o faz participante dos bens daquela casa, já é uma adoção.2 Segundo ele, Deus
submete toda criatura à participação nos bens divinos, porém as criaturas racionais, isto é, os
seres humanos, criados à sua imagem, vão gozar do maior bem: a felicidade divina. Ao
contrário dos humanos, Tomás observa que a adoção divina, sem preconceitos, torna a pessoa
apta para receber a herança, mas a humana leva o pretendente a escolher o merecedor da
herança (III, q. 23, a. 1).
À luz da Trindade, observa que a adoção é um ato dinâmico e contínuo: “ao Pai é
atribuída a filiação adotiva, ao Filho o exemplo de tal adoção e ao Espirito Santo a função
tornar nosso exemplo semelhante ao do Filho” (III, q. 23, a. 2, ad 3). Na teologia do Angélico
entendemos que as criaturas racionais, à semelhança do Verbo, procedem segundo a operação
intelectual que é própria de quem está unido a Deus mediante a graça (III, q. 23, a. 3).
Na Reforma Protestante, João Calvino observou que, só podemos entender a teologia
paulina da adoção, a partir da consciência do pecado e da Graça. Com o pecado, segundo ele,
2 Adoptio est extraneae personae in filium vel nepotem, legitima assumptio. (IV Sent. D42, q.2, a.1, ob.1)
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a pessoa se torna desnaturada, isto é, perde o modelo original do qual a constituía imagem e
semelhança, porém não perde a capacidade de se libertar das trevas, entendendo que, na
lógica divina, só há liberdade na servidão a Deus. Ao olhar para Cristo, Calvino observa, na
esteira paulina, que ele é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Cl 1,15), o Filho bem
amado de Deus, através do qual podemos dizer “Aba, Pai”. Em Jesus Cristo, segundo o
reformador de Genebra, podemos expressar o amor do Pai que nos tirou do lamaçal das trevas
e nos reconciliou. De graça recebemos, de graça devemos dar: “Assim como Jesus Cristo deu-
se por nós, também comuniquemos ao próximo, com amor, as graças que recebemos,
ajudando-o na sua pobreza e socorrendo-o na sua miséria. Isso é o que nos cabe fazer” (Cf.
BIÉLER, 2009, p. 60).
A teologia da adoção ao confrontar-se com a bíblia encontra ali uma bela reflexão
sobre a realidade daqueles que em Cristo foram chamados de Filho. Tanto Agostinho, quanto
Tomás de Aquino e Calvino deram uma boa contribuição para que a teologia entendesse
melhor o mistério da adoção na comunidade terrena. Também a partir deles podemos falar de
uma pastoral voltada para a adoção, já que esta proposta está no coração do próprio Deus.
ADOÇÃO: UM DESAFIO DA PASTORAL FAMILIAR
Diante dos pressupostos anteriores onde nos deparamos com a realidade da adoção e
uma reflexão teológica sobre ela, propomos que haja uma ação mais eficaz diante do
preconceito e da dureza da lei. Trata-se de um projeto que considere o amor de Deus e aponte
necessariamente para a questão da adoção espiritual, ligada à pastoral da família.
A encíclica Familiaris Consortio, além de outras questões, nos ajuda a pensar o
problema da adoção no seio da família e da Igreja. Esta orientação é fundamental numa Igreja
preocupada em exercer fielmente o “Ide” de Jesus diante dos novos desafios sociais. É
fundamental na formação da consciência cristã que o direito à vida e a um lar, mais que um
item da Declaração dos Direitos Humanos, é o desejo de Deus, que em Cristo, nos foi
revelado: é puro dom do amor.
A família, segundo o documento, é a “primeira comunidade” responsável pelo anuncio
da “boa noticia” da salvação. Por isso, à luz da Santíssima Trindade, deve contribuir para que
a formação intelectual e espiritual leve os membros à maturidade cristã. Esta formação é
essencial.
As afirmações do documento papal nos leva a considerar que o artigo XXII da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais que uma lei política é constituinte da
missão que o próprio Cristo nos designou:
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Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à
realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a
organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade
(DIREITOS HUMANOS).
Ao iniciar o seu ministério em Nazaré, Jesus revelou sua missão nos moldes dos
Direitos Humanos. A lei foi feita para servir às pessoas. Cabe à Igreja levar e garantir que a
boa nova de Jesus Cristo seja uma realidade na vida familiar. Inserida neste mundo, as
famílias são provocadas a tomarem decisões e a discernirem sobre o justo e injusto, o certo e
o errado, o bem e o mal. Diante desta realidade ressoam os apelos espirituais e, a Igreja,
procurando a verdade e guiada pelo mistério de Cristo, traz “uma intelecção mais profunda do
inexaurível mistério do matrimônio e da família a partir das situações, perguntas, ansiedades e
esperanças dos jovens, dos esposos e dos pais de hoje” (FAMILIARIS CONSORTIO).
Quanto à consciência perante a vida e ao direito de viver, os fiéis, ligados à igreja e
participes do mistério de Cristo, consultam os dados históricos e sociológicos, porém isso não
é o suficiente para julgar uma realidade onde a mentalidade consumista e o bem-estar
egoístico vale mais do que a generosidade dos esposos em acolher novas vidas humanas.
Assim, os fiéis, sob a escuta do Espírito e não dos poderes deste mundo, podem compreender
o sentido de sua missão: em Cristo somos chamados a defender os pobres e desprezados.
A favor da vida, em oposição à acumulação de riquezas, a consciência cristã se põe
diante da ciência e tecnologia. Com suas inúmeras soluções materiais, o poder político e
econômico decidem sobre os investimentos, investigações e aplicações científicas e
tecnológicas e, na maioria das vezes, são mais arautos da morte do que da vida.
Cabe à família cristã driblar o preconceito e reinaugurar uma nova postura onde a vida
é essencial e deve sobrepor a qualquer ideologia que venha favorecer a alguns em prejuízo de
muitos. Na segunda parte da Encíclica, sobre o desígnio de Deus, o matrimônio e a família,
João Paulo II, à luz de Gênesis 1,26-27, observa que a pessoa, criada à imagem e semelhança,
foi chamada por amor e ao amor. Por amor Deus chama a humanidade à existência, pois ele,
em si mesmo é amor, mas infunde no homem e mulher a capacidade e a responsabilidade do
amor e da partilha. O amor é, nesta perspectiva, a vocação originária do ser humano e deve
ser motivo de acolhida aos mais necessitados e excluídos da sociedade.
Os pais, chamados pelo amor de Deus, são também chamados ao amor ao próximo e à
comunhão. Seu amor deve ser transmitido, à semelhança do amor de Deus, que ama sem
acepção de pessoas, tanto aos filhos naturais quantos aos adotivos. Ainda que a procriação
seja impossível, a vida conjugal não deve ser desmerecida, o cônjuge pode prestar um grande
serviço à vida humana adotando outras formas de edificação familiar e a santificação dos pais:
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“A esterilidade física, de facto, pode ser para os esposos ocasião de outros serviços
importantes à vida da pessoa humana, como por exemplo, a adopção, as várias formas de
obras educativas, a ajuda a outras famílias, às crianças pobres ou deficientes” (FAMILIARIS
CONSORTIO).
A família é bombardeada todos os dias e a Igreja a defende e aponta para os seus
direitos. João Paulo II ressalta entre muitos, alguns direitos, muitas vezes usurpados pela
sociedade e o Estado. Para ele, o pobre tem o direito de fundar o seu lar, sua intimidade
conjugal, sustentar e educar sua pequena comunidade em suas necessidades físicas, psíquicas
e espirituais. Entre estes direitos há o direito de proteção do menor em relação aos
medicamentos prejudiciais, à pornografia, ao alcoolismo. Independente de serem do próprio
ventre ou não, o que faz alguém ser filho de alguém é o desejo de tê-lo como filho. Quantos
são os pais que, apesar de terem filhos biológicos, não os adotaram?
A partir destas orientações, traçamos três dificuldades a serem refletidas numa pastoral
cujo objetivo é trabalhar com casais que desejam filhos, sejam naturais ou por adoção:
1. Conscientizar para a missão inclusiva da Igreja. Ela é responsável para combater a
exclusão e acolher os mais necessitados e desprezados da sociedade. Isso, não porque é seu
dever fazê-lo perante o Estado, mas porque esta é a missão que o próprio Deus nos designou
em Jesus Cristo, “para que todos sejam um”;
2. Trabalhar para que não haja preconceito. Ainda que a sociedade e a cultura cultive
uma ideologia preconceituosa em relação às pessoas, relacionada à raça e sexo, não podemos
fazer acepção de pessoas. Deus nos adotou como dizia Calvino, sem que tivéssemos qualquer
coisa a trocar pela nossa salvação;
3. Uma pastoral familiar, consciente desta missão, deve capacitar os leigos para o
trabalho junto às instituições legais e à justiça a fim de “facilitar” aquilo que muitas vezes se
torna um empecilho: a adoção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Igreja, enquanto corpo de Cristo acolhe, em pé de igualdade, a todos os filhos
tornando-os herdeiros, “significando que, mediante o evangelho, os gentios são coerdeiros
com Israel, membros do mesmo corpo, e coparticipantes da promessa em Cristo Jesus” (Ef
3,6). Mais adiante, o próprio Paulo vai indicar que sua missão é fruto desta eleição, isto é, da
adoção em Cristo: “Deste evangelho me tornei ministro pelo dom da graça de Deus, a mim
concedida pela operação de seu poder” (Ef 3,7).
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O termo Igreja vem do grego ekklesia e quer dizer reunião dos eleitos; assembleia
daqueles que, em Cristo, foram amados, resgatados e adotados. A missão da igreja está
enraizada no próprio Cristo e ninguém pode ser excluído deste mistério. Esta consciência
deve estar viva na Igreja, Corpo de Cristo, pois ela, “enquanto mistério de comunhão é
missionária e, cada um, no seu próprio estado de vida, é chamado a dar uma contribuição
incisiva para o anúncio cristão” (VERBUM DOMINI, 2010, p. 175).
Do ponto de vista teológico, assim como a Igreja a família é chamada adotar seus
filhos, pois só pela adoção se pode falar de filiação. O filho, ainda que seja “de sangue”, antes
de se formar no ventre materno, deve ser amado e adotado, como escreve o profeta Jeremias
ao expressar as palavras de Iahweh: “Antes de formá-lo no ventre eu o escolhi, antes de você
nascer, eu o separei e o designei profeta às nações” (Jr 1,5).
Jesus, no inicio de seu ministério em Nazaré da Galileia, traçou sua missão: pegou o
livro do profeta Isaias e escolheu a leitura: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele
me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos
presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça
do Senhor” (Lc 4,18-19).
Quem tem certeza da adoção filial e a recebe em seu coração se sente nova criatura
capaz de amar sem preconceito e transcender toda justiça humana. A psicanalista Maria Rita
Kehl observa que há mudanças na família e, muitas vezes, é preciso cultivar os vínculos com
pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas, como é o caso da “família
tentacular”, formada por separações e novas uniões. Ali, apesar de ser mais aberta ao diálogo
há situações bem delicadas em relação à educação dos filhos. Aqui se pode falar também de
adoção, não sentido legal da palavra, mas ético, pois pais, avós, tios precisam assumir
responsabilidades sobre as crianças agregadas na segunda união e amá-las principalmente.
Partindo do pensamento de Prudhon que todo problema é anteriormente teológico, é
possível elaborar um projeto que parta do infinito e se encarne como solução para aqueles que
mais necessitam: as crianças abandonadas e carentes. O evangelho de João expressa esta
novidade ao afirmar: “contudo, aos que o receberam; aos que creram em seu nome, deu-lhes o
direito de se tornarem filhos de Deus, os quais não nasceram por descendência natural, nem
pela vontade da carne nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus” (Jo 1,12-
13).
REFERÊNCIAS
193
AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984.
BARBOSA, R. Amor sem exigências. Familia cristã, ano 78, v. 914, p.14, fev. 2012.
BENTO XVI. Verbum Domini. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2010.
BÍBLIA de estudo NVI. São Paulo: Editora Vida, 2003.
BIÉLER, A. O Humanismo social de Calvino. São Paulo: Edições Oikoumene, 2009.
DIREITOS HUMANOS. Disponível em: www.gaasp.org.br. Acesso em: 22 mar. 2013.
FAMILIARIS CONSORTIO. Disponível em: www.vatican.familiaris-consortio. Acesso em:
22 mar. 2013.
GESCHÉ, A. O Sentido. São Paulo: Paulinas, 2005.
MACKENZIE, J. L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983.
MONDIN, B. Dizionario enciclopédico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna,
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NUNES, P. Dicionário de tecnologia jurídica. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1993.