Teologia e Antropologia - UMBRASIL€¦ · a cultura vocacional e o despertar do jovem para a...

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Teologia e Antropologia Diretrizes da Animação Vocacional

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Teologia eAntropologiaDiretrizes da Animação Vocacional

União Marista do Brasil (UMBRASIL)SCS – Quadra 4 – Bloco A – 2º Andar

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Coordenação da publicação - Área de Vida Consagrada e Laicato:Coordenador: Ir. Inácio RowedderAssessor: Ricardo Spíndola MarizAnalista: Sonia Vidal

Elaboração da publicação - Grupo de Trabalho Animação Vocacional:Ir. Alvanei Aparecido FinamorIr. André NosiniCarlos Macedo RomeiroFabio Vivurka CorreiaIr. Inácio RowedderIr. José Augusto JúniorJunior Luis FranckRicardo MarizSonia Vidal

Projeto gráfi co e diagramação:Válvula Agência Interativa - www.valvulainterativa.com.br

Impressão: Gráfi ca Ipanema

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Sumário APRESENTAÇÃO 4

1. A CENTRALIDADE DE JESUS DE NAZARÉ 71.1 JESUS É O VOCACIONADO DO PAI 81.2 JESUS E O ABBA 101.3 JESUS E O REINO 121.4 O SEGUIMENTO A JESUS 14

2. CHAMADOS NA HISTÓRIA 172.1 AS PESSOAS 172.2 O MUNDO DAS PESSOAS 202.3 VOCAÇÃO DAS PESSOAS NO MUNDO 23

3. HISTÓRIA DO CHAMADO 273.1 MOISÉS - VOCAÇÃO É UM SERVIÇO PARA TODOS 273.2 JEREMIAS – VOCAÇÃO COMPORTA CRISES E CONFLITOS 303.3 PEDRO – VOCAÇÃO COMO PROCESSO DE MUDANÇA DE VIDA 323.4 MARIA – VOCAÇÃO É ABERTURA FECUNDA AO ESPÍRITO 343.5 MARCELINO CHAMPAGNAT – VOCAÇÃO COMO SERVIÇO À SOCIEDADE 37

4. CHAMADOS PARA A HISTÓRIA 394.1 “IDE E PRODUZI MUITOS FRUTOS” (Jo 15, 16) 404.2 “MUITOS MEMBROS E UM SÓ CORPO” (Rm 12, 2) 42

5. CONCLUSÃO 46

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 48

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Apresentação

Ir. Inácio Rowedder

A Animação Vocacional Marista é uma atividade cuja fi nalidade é trabalhar a cultura vocacional e o despertar do jovem para a vocação no sentido amplo, apresentando as diferentes vocações como opção de vida, de seguimento na vocação de ser pai ou mãe, leigo consagrado, vida religiosa e sacerdotal. Assim como existem em nossas unidades educacionais a Pastoral Escolar e a Pasto-ral Juvenil Marista (PJM), há o desejo que, na comunidade educativa e religiosa marista, exista um serviço especifi co destinado à animação vocacional.

A missão da animação vocacional marista é, fundamentalmente, desper-tar, animar e acompanhar os vocacionados e vocacionadas, oferecendo-lhes orientação para o despertar vocacional e o seguimento de Jesus Cristo na vida religiosa marista. Jesus Cristo disse: “A messe é grande, mas os ope-rários são poucos.” (Lc 10, 2). O trabalho de animação vocacional precisa de pessoas dispostas a continuar a missão de Jesus, que entendam a grandeza de ser integrante da missão do Cristo e que estejam dispostos a levar a Boa Nova ao mundo.

Na Igreja e na Instituição Marista, o serviço de animação vocacional é mis-são de todo o batizado. Ou seja, os Irmãos e Leigos Maristas são responsáveis pelo despertar, animar e acompanhar os vocacionados e vocacionadas, ofere-cendo-lhes orientação para o despertar vocacional e o seguimento de Jesus Cristo. Logo, todos, Irmãos e Leigos Maristas são chamados para orientar por meio da construção e implantação da cultura vocacional em nossas unidades educativas, pela oração pelas vocações e pelo testemunho de vida.

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Cada Irmão, Sacerdote e Leigo, é chamado a viver uma vocação e realizar-se plenamente nela e como pessoa. Para tanto, é importante pensarmos e refl etirmos sobre o primeiro chamado que Deus nos faz, o chamado à vida, e neste contexto somos convidados a dar nossa res-posta vocacional e o chamado à missão de anunciar Jesus Cristo. Não podemos esquecer que a priori, o chamado vocacional está relacionado ao seguimento de Jesus Cristo, compreensível só pelos olhos da fé, que envolve uma resposta pessoal de adesão a um projeto de vida em cola-boração de outrem.

“[...] fi ca evidente que a condição do homem é semelhante à da árvore. De fato, assim como uma árvore frutífera pode crescer sozinha e por virtude própria, mas uma árvore silvestre só dá fru-tos silvestres, ao passo que para produzir frutos doces e maduros é preciso que um agricultor experiente a plante, irrigue e pode” (COMENIUS, Didática Magna, 1631).

A vocação parte de um desejo íntimo e profundo de se relacionar com o divino, a resposta é humana, ou seja, a pessoa sente-se convidada, mas a resposta do vocacionado exige intimidade e aliança com Jesus que o atrai. Essa comunhão suscita, no coração do vocacionado, uma decisão e uma resposta, cujo desejo se expressa no seguimento de Jesus e no as-sumir o seu projeto de vida e missão, doando-se no e por amor e servindo a Deus, nas pessoas necessitadas, esquecidas e abandonadas, que me-recem atenção, cuidado e respeito a sua dignidade de pessoa humana.

Vivemos num tempo de transformação social, cultural e religiosa, mas o que mais nos atinge em nossa missão é a formação das crianças, adolescentes e jovens, razão do nosso existir e da nossa missão. O que exige atenção e sintonia dos animadores vocacionais com as novas situa-ções que envolvem nossos vocacionados, que estão fazendo a opção pela vida consagrada marista.

Portanto, é objetivo da animação vocacional evangelizar a partir do encontro com Jesus Cristo, a luz da evangélica opção pelos pobres, para que todos tenham vida e vida em plenitude, com as pessoas res-peitadas em sua dignidade, auxiliando-os na construção de um mundo justo e fraterno.

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Neste contexto, as Diretrizes da Animação Vocacional do Brasil Marista querem apresentar a novidade e a importância dos espaços formativos para a implantação da cultura e da pastoral vocacional marista, cuja fi -nalidade é despertar, animar, promover e coordenar a ação vocacional e orientar e acompanhar os jovens vocacionados no seu discernimento vocacional e comunhão com todas as atividades pastorais desenvolvidas em nossas unidades educacionais.

Deseja-se que a pastoral vocacional seja organizada e articulada em parceria com a pastoral educativa e a pastoral juvenil, sob a coordenação e o apoio do Serviço de Animação Vocacional Marista em nível Provincial.

As Diretrizes procuram abordar os seguintes aspectos: História da Animação Vocacional no Brasil Marista, Bases Antropológicas e Teoló-gicas da Vocação, Realidade Juvenil e as Diretrizes da Animação Voca-cional, com destaque para o desejo de implantar a cultura vocacional em nossas unidades e espaços educativos. Procuram ainda abordar alguns aspectos no que diz respeito à pedagogia e ao itinerário do despertar vocacional, com destaque a formação do ser, do saber e do servir. No que diz respeito à formação do ser, a pastoral vocacional como primeiro espaço auxilia os jovens no despertar vocacional e na formação humana e cristã. Quanto a formação do saber, a pastoral vocacional incentiva o vocacionado para a formação acadêmica e contribui para o despertar, animar e acompanhar o vocacionado até a entrada na casa de formação. Sobre a formação para o servir, a pastoral vocacional auxilia os vocacio-nados a crescer na disponibilidade e no servir, características fundamen-tais de quem se coloca ao serviço do Reino.

Por fi m, as Diretrizes trazem elementos que auxiliam a pastoral voca-cional a contribuir no processo de discernimento vocacional dos jovens, passando a considerar o itinerário vocacional como parte da cultura vo-cacional e o primeiro espaço de formação para o vocacionado. A indica-ção das Diretrizes coloca a pastoral vocacional como integrante da pas-toral educativa marista, merecendo atenção e investimento no processo de execução e formação de seus agentes.

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Flavio Luís Rodrigues Sousa

Em nossa fé, desde os primeiros discípulos até hoje, passando pelos grandes mártires, pelos santos, pelos fundadores de congregações (en-tre eles, sem dúvida, Marcelino Champagnat), o que nos congrega é o seguimento a Jesus de Nazaré, chamado por nós de Cristo.

Exatamente, por isso, começamos nossa refl exão, evocando a CEN-TRALIDADE DE JESUS, em nossa vida, nossa fé e, claro, em nossa ação evangelizadora, seja qual for a missão com a qual nos comprometemos. Nada se sustentaria de pé, caso no centro não estivesse JESUS, sua his-tória e sua proposta.

Observemos bem, relembrando uma insistência recente de papas e de documentos da Igreja: as doutrinas, dogmas, ritos, liturgias constituem uma grande riqueza e merecem seu valor, mas o centro é Jesus, de tal modo que nossa fé não nasce da adesão a alguma lei religiosa. Nossa fé nasce e se sustenta a partir do encontro com Jesus de Nazaré, confessa-do, por nós, como Cristo de Deus.

Por causa disso, precisamos nos aproximar bem de Cristo, para sa-ber quem é e, consequentemente, fazer crescer nosso encanto, nossa paixão por ele. Queremos apresentar Jesus aqui, a partir de três as-pectos de sua vida: o Abba – seu relacionamento de amor com Deus, a quem ele chama de Pai; o Reino de Deus, que é sua proposta concreta de missão; e o Seguimento como discípulos, que é nossa resposta co-

1. A Centralidade deJesus De Nazaré

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rajosa. Antes de tudo, será preciso reconhecer que Jesus é o grande vocacionado do Pai.

1.1 JESUS É O VOCACIONADO DO PAI

1.1.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

Em muitos lugares nos Evangelhos, ouvimos Jesus confi rmando sua vocação fundamental. Essas afi rmações são muito conhecidas: “Minha vontade é fazer a vontade Daquele que me enviou” (Jo 8, 29); “Pai... faça a tua vontade, não a minha” (Lc 22, 42), e muitas outras. Um trecho bíblico, em especial, coloca o próprio Jesus narrando, a partir dos textos antigos, o que ele considera ser sua vocação-missão. É o famoso texto lido na Sinagoga de Nazaré:

Jesus foi à cidade de Nazaré, onde se havia criado. Conforme seu costume, no sábado entrou na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus encontrou a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimi-dos, e para proclamar um ano de graça do Senhor.” Em seguida Jesus fechou o livro, o entregou na mão do ajudante, e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fi xos nele. En-tão Jesus começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura, que vocês acabam de ouvir”. (Lc 4, 16 - 21)

Nas entrelinhas do texto, já nos encontramos com o misterioso amor trinitário de Deus, algo bem específi co de nossa fé. Pelo sopro do Espíri-to, o Pai consagra seu Filho muito amado e o envia para assumir a voca-ção de ser a concretização visível e palpável de seu amor e misericórdia, dirigidos a todas as pessoas.

As palavras podem soar muito sofi sticadas, mas a realidade é bem simples: Jesus, homem nascido de Maria, é enviado pelo Pai, especial-mente aos últimos, aos mais desprezados da sociedade. Vive radical-mente essa sua vocação; realiza, de modo tão generoso e fi el sua missão que, observando sua vida, sua história, seus gestos de compaixão, sua

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coragem, nós, os seus discípulos - desde o início até hoje - olhamos para esse homem e dizemos: Ele é o próprio Filho de Deus.

O próprio Jesus reconhece essa sua união plena com Deus, a unidade com Deus. Em muitas ocasiões, ele afi rma: “Eu e o Pai somos um! ” (Jo 10), ou ainda: “Quem me vê, vê o Pai! ” (Jo 14).

Olhando desse modo, podemos compreender Jesus como quem nos revela melhor do que qualquer doutrina, mandamento ou dogma, quem é e como age o Deus em quem acreditamos. É olhando para Jesus que sabemos quem é Deus de verdade. E pela prática de Jesus, o que apren-demos é que Deus é Amor (1Jo 1).

Sendo vocacionado do Deus-Amor, o que Jesus faz é muito coerente: chama a todos para seu convívio, especialmente os esquecidos pela so-ciedade; convive e celebra a vida, inclusive na companhia e na casa de pe-cadores; acolhe mulheres e crianças, personagens de segunda categoria, em sua época. Na prática vivida por Jesus, não há dúvidas: Deus é amor.

Por outro lado, se prestarmos mais atenção a Jesus, o enviado do Pai, também aprendemos muito sobre qual é nossa vocação fundamental. Jesus nos mostra qual é o caminho para nos tornarmos verdadeiros e plenamente humanos, tais como Deus mesmo nos sonhou.

A abertura para o encontro com as pessoas, a prática da compaixão e da misericórdia, o exercício da profecia, o desejo de vida plena para todos e a profundidade espiritual de Jesus revelam quem nós podemos chegar a ser, isto é, qual é a nossa verdadeira vocação.

É desse modo que afirmamos que Jesus é o Vocacionado do Pai e a vocação de Jesus é a medida com a qual devemos medir todas as vocações.

1.1.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

A vocação de Jesus é aquela que devemos ter diante de nós como modelo e inspiração, no trabalho da Animação Vocacional. E o primeiro olhar deve ser mesmo em direção à nossa própria vocação fundamental, isto é, a vocação de nos “revestirmos de Cristo” (Ef 4).

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Para ajudar no despertar, discernir, cultivar e acompanhar vocações, os animadores precisam cuidar de si, aprofundar seu desejo de vida ple-na e identifi car os sinais concretos de que essa busca esteja realmente em nossos projetos de Vida.

Precisamos ampliar, com a medida de Jesus, nossa compreensão de Deus, ultrapassando aquela visão equivocada de um Deus vigilante, ri-goroso com nossa vida e nossa liberdade e chegar à compreensão de Deus como Amor, infi nita misericórdia e compaixão, capaz de nos amar sempre, mesmo quando nossos caminhos não são retilíneos.

Da mesma forma, também precisamos ampliar, na medida de Jesus, nosso modo de ser gente, cultivando a abertura dialogal com as pessoas diferentes, praticando o profetismo transformador, aprofundando nossa espiritualidade, através da simplicidade de vida, do cuidado com os mais fracos e da oração sincera.

A fi delidade de Jesus ao seu projeto vocacional, como enviado pelo Pai e movido pelo sopro amoroso do Espírito, também deve inspirar nossa fi delidade. E nossa fi delidade, assim como a de Jesus, se concentra em dois polos, como dois lados da mesma moeda: o Abba-Pai e o Reino.

1.2 JESUS E O ABBA

A palavra ABBA não encontra tradução literal em nosso português, mas podemos captar o seu sentido. Ao tratar Deus de Abba, Jesus revela uma grande intimidade com Deus, como um membro da família, que tem as liberdades para aproveitar bem a presença do outro. Em nossa língua, diríamos papai, papaizinho. No entanto, ainda é mais do que isso.

1.2.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

Em muitos episódios, Jesus se dirige ao Abba-Pai. O episódio mais conhecido, talvez esteja na oração que ele ensina aos discípulos e que nós herdamos: O Pai Nosso (Mt 6 e Lc 11). Outro momento muito bonito em que Jesus reza ao Abba-Pai, é aquele narrado por Mateus: “Eu te lou-

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vo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25). Dessa relação de Jesus com seu Abba há muito que se aprofundar.

Jesus não apenas falava de Deus, mas antes, falava a Deus, na inti-midade do nome Abba, assim como numa sincera atitude de escuta de sua vontade. Trata-se de uma diferença de atitude. Falar de Deus, sem antes falar a Deus, pode soar como falso, artifi cial. Ao contrário disso, os discípulos reconheciam que Jesus falava com autoridade (Mc 1, 21), exa-tamente porque suas palavras expressavam sua intimidade com Deus e, portanto, eram carregadas de sentido.

Jesus se sente íntimo de Deus e, nessa intimidade, sente-se muito amado por Ele. A intimidade e o amor asseguram a inteireza da pessoa de Jesus e, amparado por isso, Jesus pode ser fi el. Fiel a si mesmo e, especialmente, fi el – até a morte e morte de Cruz – ao projeto de amor de Deus por todas as pessoas.

Além de falar a Deus e daí beber a intimidade e o amor necessários para sua missão, Jesus ensina quem de verdade é Deus. Ele não ensina uma nova doutrina sobre Deus, mas revela – esta é a novidade nesse caso – um novo modo de se relacionar com Deus, na intimidade e na par-tilha da vida. Para Jesus, Deus não é posse de um ou outro grupo religio-so ou político. Deus é, antes, transbordamento de ternura e de cuidado com suas criaturas. Preocupa-se com nossas necessidades (multiplica-ção dos pães), confere-nos um valor incomparável e incalculável (ovelha perdida) e não nos quer longe nem perdidos (fi lho pródigo).

1.2.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

Além de ser um desafi o, é também estimulante saber que uma das mis-sões da Animação Vocacional é ajudar as pessoas irem ao encontro à von-tade de Deus para suas vidas. Para isso, nós não prestamos atenção, mas a primeira pergunta deveria ser: De que Deus eu devo fazer a vontade?

Aqui está a tarefa: ajudar as pessoas a se desfazerem de algumas ima-gens distorcidas de Deus, normalmente aprendidas muito inocentemente e substituí-las pelo Deus de Jesus, o Abba de amor, compaixão e misericórdia.

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Deus não é uma ideia, uma força sem forma, ou nome. Deus é alguém com quem entramos numa relação de profundo amor. Foi essa compre-ensão de Deus que garantiu a fi delidade de Jesus e que o inspirou a ser quem Ele foi.

Nós também estamos nesse projeto vocacional. Assim como Jesus, também podemos nos envolver numa fecunda relação de amor com o Abba. Contudo, toda relação de amor exige uma resposta concreta de transformação da pessoa que é amada e do mundo dessa pessoa.

Nessa relação de amor que somos chamados pelo Abba e que man-tém de pé nosso projeto de vida, precisamos ultrapassar o puro intimis-mo, o Deus só para mim, o Deus que faz o que eu quero. Envolvidos pela intimidade com o Abba, precisamos fazer sua vontade, colaborar para a construção do Reino.

Essa tarefa da Animação Vocacional é extraordinária e não pode ser mantida em segundo plano. As pessoas que estão conosco – jovens, adultos, colaboradores, consagrados – precisam entrar nesse caminho de descoberta do Deus de Jesus.

1.3 JESUS E O REINO

O Reino de Deus é uma espécie de núcleo central da mensagem de Jesus. A razão não é difícil de entender. Na relação de intimidade e fi de-lidade ao Abba, e conhecendo que essa relação nasce e se sustenta no amor gerador de compaixão e misericórdia, Jesus deseja que isso alcan-ce a todos e a tudo. Relações humanas, sociais, ecológicas, existenciais, tudo penetrado pelo amor transformador de Deus. Assim é o desejo de Reino, em Jesus.

1.3.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

O Reino está no centro da mensagem de Jesus de um jeito muito es-pecial. Não se trata, novamente, de uma doutrina que é ensinada como se fosse uma disciplina dentro do currículo da escola.

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Primeiro porque o ensinamento sobre o Reino é fundamentado nos gestos de Jesus – a acolhida às pessoas, as curas, as partilhas, o cha-mado para uma vida mais plena. Jesus faz o que está pregando.

Em segundo lugar, porque Jesus aproxima o ensinamento com a realidade do povo simples de sua região, através das histórias-parábolas que ele nar-ra. É muito comum ouvir Jesus dizer: “Com que podemos comparar o Reino de Deus...”. E ele compara com à semente de mostarda, o joio e o trigo, o fermento na massa, a pérola perdida, entre muitas outras fi guras (p.ex. em Mt 13).

Todo poder de Jesus manifestando o Reino em gestos e palavras, não é poder de domínio sobre alguém ou sobre um grupo de discípulos. O po-der de Jesus é uma autoridade que vem de dentro, brotando de sua vida, da fi delidade e da coerência com que assume a sua vocação.

Quais seriam as principais novidades trazidas nessa pregação do Rei-no de Deus? Pelas palavras e pelos gestos de Jesus entendemos que o Reino é um caminho a ser percorrido, precisa ser descoberto e provo-car nosso encanto, nossa adesão. O Reino não é um espetáculo que vai acontecer ao som de multidões emotivas, mas é uma pequena semente, merecedora de nosso cuidado diário.

Ao contrário do que pensavam alguns do tempo de Jesus – e que ainda alguns podem pensar até hoje – o Reino de Deus não é uma conquista na base do grito ou de outro artifício qualquer, mas é uma sedução, um en-cantamento. Não é a destruição do mundo, como se esse mundo criado por Deus fosse ruim e errado, mas é a transformação desse mundo num mundo renovado pela força e presença do amor, que é o próprio Deus.

Além disso, o Reino não é uma realidade apenas espiritual com um endereço no céu. Nada disso. O Reino é uma busca de transformação concreta do mundo em que estamos, especialmente na prática da justi-ça, da solidariedade, da acolhida aos mais pobres e aos mais necessita-dos da sociedade.

O Reino não é uma promessa só para o futuro, ele começa no presen-te. É claro, como sempre ensinou o cristianismo, mesmo que consiga-

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mos mudar tudo para melhor, ainda assim o Reino continuará sendo uma promessa para o futuro. Não é difícil de entender: temos que trabalhar e colaborar com o Reino hoje, aqui e agora; mas temos consciência de que sua plenitude é num futuro que pertence somente a Deus.

1.3.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

O que é o Reino, seu alcance e sua proximidade com o nosso dia a dia são temas que não podem ser esquecidos na Animação Vocacional.

Temos a missão de promover um encontro autêntico com o Deus de Jesus e também temos que insistir em incluir as pessoas que estão co-nosco na dinâmica do Reino, com o cuidado de não transformar esse discurso num engodo meramente espiritual.

Despertar, convidar, convocar para o Reino é exercer nossa criativida-de para que outro mundo seja possível, começando com as coisas mais simples de nosso cotidiano. E não será Deus com uma intervenção do céu, que vai fazer isso sozinho. Colaboramos com nossas decisões, ati-tudes, trabalhos. É bem apropriado o que está na linda canção: “Sim, Senhor, nossas mãos vão plantar o Teu Reino...”

O Reino de Deus é uma proposta para a vida toda e são nossas mãos que vão colaborar lançando essa semente.

1.4 O SEGUIMENTO A JESUS

Descobrimos que Jesus não faz de si mesmo o centro das aten-ções e de sua vida. Jesus é “descentrado” em duas direções: em ser todo referenciado ao Abba-Pai e em estar todo envolvido na inaugu-ração do Reino de Deus entre nós. Esses são os dois polos da vida de Jesus. Não se trata apenas de algo bonito, poético. Mas é algo comprometedor, por isso nos convoca a um generoso seguimento. Vamos ouvir Bento XVI, em uma mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações:

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A proposta, que Jesus faz às pessoas ao dizer-lhes “Segue-Me!”, é exigente e exaltante: convida-as a entrar na sua amizade, a es-cutar de perto a sua Palavra e a viver com Ele; ensina-lhes a dedi-cação total a Deus e à propagação do seu Reino, segundo a lei do Evangelho: «Se o grão de trigo cair na terra e não morrer fi ca só ele; mas, se morrer, dá muito fruto» (Jo 12, 24); convida-as a sair da sua vontade fechada, da sua ideia de auto-realização, para em-brenhar-se noutra vontade, a de Deus, deixando-se guiar por ela; faz-lhes viver em fraternidade, que nasce desta disponibilidade total a Deus (cf. Mt 12, 49 - 50) e se torna o sinal distintivo da co-munidade de Jesus: “O sinal por que todos vos hão-de reconhecer como meus discípulos é terdes amor uns aos outros” (Jo 13, 35). Mensagem para o dia mundial de oração pelas vocações - 2011.

1.4.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

O “Vem e Segue-me”, muitas vezes repetido por Jesus em situações variadas, é um convite de adesão integral. Não é apenas insistir para se conhecer uma doutrina ou para participar de um determinado grupo ou determinada religião ou, até mesmo, para optar por determinada voca-ção. Pode ser isso tudo, mas é também muito mais do que isso.

O convite ao SEGUIMENTO é um convite de adesão à pessoa de Je-sus, em suas duas referências fundamentais, o Abba e o Reino. No se-guimento o discípulo reconfi gura sua vida integralmente nas dimensões do Deus do Reino e do Reino de Deus. Não é uma relação escolar em que fi camos um tempo com o mestre e, aprendida a lição, vamos embora. É uma relação existencial para toda a vida. O seguimento a Jesus passa a constituir a raiz de nossa vocação, nossa inspiração para a vida plena.

E seguimento é ainda mais do que imitação. Mesmo que seja uma questão apenas de palavra, é ilustrativo para nosso aprendizado. Pode acontecer de quem IMITA apenas repetir – com boa intenção evidente-mente – a proposta de Jesus, em nossos dias. Há situações em que isso pode até ser possível, mas na maioria dos casos, pode ser desastroso simplesmente IMITAR Jesus, porque estamos em outro mundo, outros tempos, outra cultura.

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Por isso, SEGUIR é mais dinâmico. Quem SEGUE, aprende com Jesus, inspira-se em Jesus e avalia as condições culturais, históricas e sociais de hoje para exercer seu discipulado. O seguimento é criativo, respeita a história e o contexto do lugar e respeita também as condições de liber-dade da pessoa.

Sem dúvida, SEGUIR JESUS é a forma mais autêntica, para não dizer a única realmente verdadeira, de aprender quem é Jesus.

1.4.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

O seguimento é um desafi o para todos os que se colocam nesse ca-minho do discipulado de Jesus. Na Animação Vocacional é um desafi o, inclusive para os animadores e animadoras, além das pessoas que estão conosco nos grupos vocacionais.

O seguimento exige respeitar o processo de adesão que cada pessoa é capaz. Não é à toa que os primeiros cristãos eram chamados daqueles que são DO CAMINHO. O seguimento é um caminho a ser feito, exige paciência e perseverança.

Muito importante é a Espiritualidade do Seguimento, capaz de alimentar o discípulo, nas várias etapas em que ele se encontrar, oferecendo os ele-mentos certos para cada qual ir avançando para “águas mais profundas”.

Essa espiritualidade do seguimento não pode ser irrealista. O discípu-lo precisa saber que haverá confl itos, desânimos, dúvidas, e precisa se preparar para isso. Também essa espiritualidade não se realiza apenas em oração. A oração é um elemento importantíssimo, mas para ser in-tegral, precisamos ajudar os discípulos a “rezar sua vida”, praticar o que se aprende, ter chances de ajudar de algum modo, a transformação do mundo, ainda que seja com situações muito simples.

No fundo, poderá ter sido essa a inspiração de Marcelino Champagnat quando estabeleceu como divisa de sua obra “tornar Jesus Cristo conhe-cido e amado”. É assim mesmo que se alicerça o seguimento a Jesus.

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O que buscaremos aprofundar nesse momento é esse mistério cha-mado HISTÓRIA. Estamos no mundo, fazemos parte da história desse mundo, de suas belezas, mas também de seus desafi os. Não há outro lugar para realizar nossa vocação a não ser nesse mundo em que vi-vemos. A ideia de que VOCAÇÃO é uma eleição que Deus faz para se-parar as pessoas do mundo e reservá-las para Si pode ser enganosa. Ao contrário disso, Deus chama e envia exatamente para transformar o mundo.

Além disso, todos reconhecemos que não somos anjos. Exatamente por estarmos dentro da história participando dela integralmente, somos constituídos de desejos, bondade, beleza, pecado, inquietudes e dúvidas. Somos humanos. E é assim, desse jeito, que Deus nos chama, sabendo mais do que ninguém que não somos anjos nem demônios. Cada qual é uma pessoa, cheia de riquezas e dúvidas, dentro de um mundo cheio de belezas e iniquidades.

2.1 AS PESSOAS

“O que é o homem, Senhor, para que dele se lembre?” (Sl 8), per-gunta o salmista bíblico. Mesmo que em razão do contexto da época, a pergunta seja o que é o homem, na verdade o que o salmista está preo-cupado é saber de Deus sobre o mistério que nos cerca como pessoas, homens e mulheres.

2. Chamados na História

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2.1.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

A compreensão contemporânea sobre quem somos nós, essas cria-turas dotadas de inteligência e liberdade, que habitamos o planeta Terra, tem se aprofundado muito.

Do lado das ciências astrofísicas somos colocados na perspectiva do universo com milhões de galáxias, bilhões de estrelas e planetas, en-tre estes últimos, o planeta Terra, minúsculo se comparado com outros. Olhando por esse ângulo, percebemos que somos mesmo um grão de poeira no infi nito, tamanha nossa pequenez diante de um universo mila-grosamente tão grande.

Curiosamente, do ponto de vista das ciências do comportamento, da medicina genética e neurológica, cada um de nós constitui por si só um universo de mistérios. Em nós habitam sonhos, desejos e angústias nem sempre diagnosticadas com facilidade. Desejamos a liberdade, mas os caminhos que devemos percorrer para alcançá-la nem sempre conhece-mos. Vez ou outra, somos tocados pela paixão avassaladora por alguém ou por algo e nossa criatividade alcança níveis inimagináveis. De fato, o salmista tinha razão em perguntar “O que é homem, Senhor...”.

Na verdade, desde que nascemos estamos nos perguntando sobre quem nós somos. E essa nossa pergunta existencial permanece aberta até os últimos momentos de nossa vida. É curioso que morremos sem vislumbrar uma resposta defi nitiva. Isso tudo porque nunca nos conten-taremos plenamente com uma resposta. Encontramos uma resposta agora e, imediatamente, surgem novas perguntas, pois nosso espírito quer ir sempre além do óbvio, ir para além da rotina, além do comum.

Queremos todos os dias ultrapassar nossos limites existenciais em busca de plenitude. A palavra sofi sticada para isso é TRANSCENDÊNCIA. Somos seres de transcendência. Em nosso “DNA existencial” há um de-sejo de ir além sempre.

E aqui podemos entrar na dimensão da FÉ. Para os que crê, fomos criados por Deus. Moldados pelas mãos do Pai recebemos o sopro de seu Espírito (Gn 2). Essa metáfora do sopro do Espírito é uma lembrança de

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que nossa vocação é sempre transcender o barro de que somos consti-tuídos. O sopro de Deus nos arremessa para horizontes mais amplos e quanto mais nos superamos, quanto mais transcendemos, mais huma-nos nos tornamos.

O que nos constitui é a Graça do Deus-Amor, representada por esse sopro. Esse Amor é nossa “matéria-prima”, o mais essencial que há em nossa existência. É claro que existem pecados, fraquezas, sofrimentos, mas essas coisas não são nossa matéria-prima existencial. Além do mais, para que a beleza desse projeto de Deus fosse ainda maior, Ele não nos fez para a solidão, mas para a comunhão. Comunhão simbolizada na missão de cuidar das demais criaturas e, especialmente, na voca-ção de compartilhar sua vida com outras pessoas: “Homem e mulher, os criou...” (Gn 1, 21).

Para a fé somos constituídos por Deus, por amor e para o amor. Um amor aberto a todas as criaturas, dialogante com o mundo. Um amor especialmente aberto e criativo com as pessoas que, próximas ou distan-tes, viajam conosco nessa aventura do viver.

2.1.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

Se o que desejamos é ser uma Animação Vocacional verdadeiramente relevante na vida das pessoas, devemos reconhecer que o modo como a sociedade entende o que é ser pessoa, e ainda mais, o modo como a pes-soa entende a si mesma, é algo dinâmico, criativo. Não podemos compre-ender quem são os adolescentes, jovens e adultos que acompanhamos hoje usando uma “régua do passado”, principalmente se alimentarmos o discurso de que no passado é que tudo era melhor.

A criação de Deus é boa, pois Deus é amor. Essa criatividade amoro-sa de Deus cria pessoas muito diferentes em personalidade, qualidades, afetos, dons. Desta forma, as pessoas merecem ser respeitadas e ama-das em suas diferenças.

Por outro lado, devemos nos reconhecer como projetos “inacabados”, inconcluídos, pois Deus deseja que construamos nossa história nesse mundo. A Animação Vocacional pode ajudar muito indicando caminhos,

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ajudando no discernimento, para cada pessoa conhecer melhor a si mes-ma e dar um direcionamento saudável, relevante e humano à sua vida.

Além disso, ao compreendermos bem que somos criaturas do Deus-Amor, sentiremos apoiados pela bondade e beleza de tudo que Deus criou. Sa-bemos que o pecado existe e que pode nos fazer um mal imenso. Deve-mos fi car atentos a isso. Mas o pecado não é o centro. Não pode ser nos-so assunto principal. O principal é que somos bons exatamente porque fomos criados pelo Amor e para o Amor.

Por fi m, sabemos que na sociedade contemporânea há uma perma-nente tentação ao egoísmo, individualismo, competição desumana e muitas outras questões que nos empobrecem.

Compreender cada pessoa como criatura de Deus também signifi ca compreender que temos em nós o “DNA da relação”. Nossa melhor rea-lização é quando colocamos quem nós somos em comunhão com os ou-tros. A Animação Vocacional nunca pode deixar de lado essa perspectiva bíblica. Nascemos para a comunhão e não para a solidão.

2.2 O MUNDO DAS PESSOAS

Somos pessoas, criaturas amadas por Deus, nascidas pelo Amor e para o Amor. Contudo, toda essa riqueza que nós somos só pode se realizar concretamente DENTRO do mundo em que estamos inseridos. Não po-demos escolher levar nossos dons, nossa personalidade, nossas qualida-des para outro planeta ou para um quarto isolado do mundo. Precisamos compreender um pouco melhor o mundo em que vivemos, pois é nele que se realiza nossa vocação fundamental: a de sermos pessoas, criaturas de Deus, jardineiros-cuidadores desse grande jardim que é o mundo.

2.2.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

Vivemos num momento histórico que sucede à Modernidade. Em pou-cas palavras, Modernidade é o período histórico iniciado, mais ou menos, há cinco séculos (não há consenso sobre essa data), cujo centro de tudo

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era a RAZÃO. Na Modernidade as pessoas redescobriram os valores da autonomia e da subjetividade. O mundo viu nascer a ciência, como co-nhecemos hoje, e também as tecnologias. O mundo do trabalho mudou, saindo do rural para o urbano, do agrícola para o industrial. E essas mu-danças seguem até hoje em velocidade cada vez mais rápida.

Há estudiosos que consideram que nossa época já é algo diferente da Modernidade. Alguns chamam de Pós-Modernidade (TOURAINE); ou-tros de Modernidade Líquida (BAUMAN); e, outros ainda, de Hipermo-dernidade (LIPOVETSKY). Basicamente, eles consideram que chegamos a muitos limites.

Estamos no limite ecológico, pois a natureza já não consegue se re-cuperar no mesmo ritmo em que é destruída. Também no limite éti-co, pois os avanços tecnológicos são tão imprevisíveis que não se possui mais segurança sobre o que é certo e errado. Enfrentamos o limite do individualismo, quando há muito poucas propostas de ação coletiva pen-sando no bem da sociedade. O mais comum é que cada qual “defenda seu peixe” do jeito que puder.

O mais importante é reconhecer que não estamos numa sociedade que já tem uma resposta pronta e acabada para todas as questões. Ao contrário, estamos numa sociedade em que há muito mais perguntas do que respostas. E, é claro, tudo isso se relaciona com a nossa fé.

Do ponto de vista de nossa fé, é claro que seguimos acreditando que esse é o mundo criado por Deus. Acreditamos que essa criação é gene-rosa, isto é, Deus cria exclusivamente por amor e não como se fosse obrigado. Essa compreensão deve ser bem digerida para avançarmos na direção de uma fé adulta.

Quando professamos nossa fé em Deus como criador do mundo, de modo algum se pode entender a criação do mundo como um momento isolado, como se Deus criasse o mundo e já estaria tudo pronto. Ele, en-tão, já poderia sair de cena.

Ao contrário disso, nossa fé crê numa CRIAÇÃO CONTÍNUA, isto é, toda essa força de criatividade que sustenta o mundo e o coloca em movi-

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mento é a força da Criação de Deus. Podemos dizer que Deus CONTINUA CRIANDO O MUNDO, mantendo-o vivo, oferecendo seu amor e sua bon-dade, especialmente através da presença do Espírito do Cristo Ressusci-tado, vivo no meio de nós.

É verdade que há inúmeros desmandos no mundo de hoje, desde o colapso ecológico até a corrupção das instituições e das pessoas. E sabemos que existem mil maneiras de se cair em armadilhas nada cris-tãs dentro da sociedade. Tudo isso existe e temos que reunir forças para transformar esse mundo que temos num outro possível, melhor, mais belo e mais justo. É o que chamamos de Reino de Deus, o grande projeto do Abba, assumido por Jesus e transmitido a nós.

Todas essas vicissitudes e iniquidades, mesmo reais, não fazem do mundo nosso inimigo. Algo criado por Deus – “E Deus viu que tudo era muito bom”. (Gn 1) – não pode ser nosso inimigo. Não é nos tornan-do inimigos do mundo que vamos transformá-lo. Há certas espiritua-lidades – equivocadas, ao que parece – que ensinam uma distância do mundo. Mas onde iremos realizar nossa vocação? Como fazer a vontade de Deus, se não for nesse único mundo que temos para viver, sonhar e nos realizar humanamente? Não adianta ir morar numa bolha isenta de tudo e de todos. Isso não é ser cristão. Estamos no mundo e é esse mundo que precisa de nossa colaboração para implantarmos o Reino de Deus.

2.2.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

A Animação Vocacional, como serviço de cuidado com o projeto de vida das pessoas, deve ser a primeira a conhecer melhor o mundo que vivemos. Por isso, é tão importante que se compreenda os movimentos do mundo e os sinais de Deus nesse mundo. O mundo como criação de Deus é bom, e é preciso ajudar as pessoas a perceberem esse fato.

Além disso, no meio das contradições do mundo, há um claro projeto nosso, recebido de Jesus de Nazaré, que é colaborar com a implantação do Reino. A vocação de qualquer pessoa começa a fazer sentido quando ela percebe que sua presença no mundo é transformadora. Não precisa ser transformadora em grande escala, com feitos espetaculares. Precisamos

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ajudar as pessoas a descobrirem qual é para elas o melhor lugar no mundo, de modo que cada qual se sinta colaboradora desse grande projeto do Reino.

Outra tarefa importante é a solidez espiritual. Uma espiritualidade encarnada do seguimento a Jesus é que nos faz livre nesse mundo. Ape-nas com um alimento sólido conseguiremos nos manter de pé, no meio do turbilhão de mudanças que a sociedade atual enfrenta. Precisamos ajudar na transmissão dessa espiritualidade. Uma espiritualidade não apenas passageira ou circunstancial, mas um caminho espiritual, em que as pessoas sintam que podem crescer humana e espiritualmente.

E, por fi m, como nossa sociedade atual vem perdendo a capacidade de transmitir a fé de geração à geração, a Animação Vocacional – superando certa ingenuidade – deve também cuidar da iniciação da fé para as pes-soas que acompanhamos.

Não podemos mais supor que as pessoas conhecem Jesus, sua história, sua proposta. Não podemos supor que as pessoas já saibam um caminho para oração e, tampouco, para a ação. É preciso oferecer alguma iniciação sem deixar perder as riquezas que cada um traz consigo, mas ajudando a todos a aprofundarem em sua pertença à comunidade de Jesus.

2.3 VOCAÇÃO DAS PESSOAS NO MUNDO

Somos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, Filho amado do Abba-Pai, e convocados à colaboração na implantação do Reino de Deus entre nós, transformando a nós e ao mundo que vivemos. Convocados à tarefa do Reino pelo Deus-Amor, Trindade Santa, por quem somos per-manentemente criados e vitalizados, amadurecemos o desejo de oferecer uma resposta. Esse conjunto formado por criação por amor, convocação ao Reino e resposta amorosa é o que podemos chamar de Vocação.

2.3.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

No começo de tudo está o Amor de Deus. Esse amor é o que nos cria e recria todos os dias, oferecendo os contornos de uma vida plena. É esse

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amor que está na origem do que podemos compreender por Vocação. A iniciativa é de Deus, é dEle o primeiro passo e é Ele quem nos ama, antes e independente de qualquer resposta de nossa parte (1Jo 4, 11).

Somos chamados pelo Amor e nossa resposta é para o Amor. Essa é a dinâmica da vocação. Entretanto, essa dinâmica não é meramente sentimental, desencarnada. Sua concretização está no amor ao pró-ximo, pois quem diz que ama a Deus, mas deixa de amar as pessoas, está mentindo (1Jo 4, 20). Portanto, vocação exige abertura às pes-soas e ao mundo.

Essa primeira dimensão da vocação, qual seja a resposta ao amor criativo de Deus, gerando mais vida e mais amor, costumamos nomeá-la de VOCAÇÃO À VIDA. É uma convocação que todos recebem: tornar plena a vida que recebemos como presente de Deus.

Apoiados nesse primeiro chamado do Deus-Amor, nossa vida se des-dobra em muitas escolhas. Entre todos que receberam esse primeiro dom de tornar plena a vida, há muitos que por herança ou encantamento, tornam-se discípulos de Jesus, isto é, tornam-se CRISTÃOS. Essa é a segunda dimensão da vocação que, na verdade, nunca está completa-mente realizada, pois ser cristão é um projeto para a vida toda, iniciado no dia de nosso BATISMO.

Na medida em que amadurecemos nossa pertença à comunidade eclesial como batizados, sentimos que nossas qualidades e nossos dons podem apoiar outras pessoas em sua busca por vida plena. Colocar a vida, os dons, as qualidades à serviço dos outros, para que o Reino de Deus esteja mais presente no mundo, essa é a terceira dimensão de nossa vocação. Essa dimensão, na verdade, é um desdobramento do BA-TISMO. Chamamo-la de VOCAÇÃO ESPECÍFICA.

Toda vocação tem uma história. A vocação não é uma mensagem di-vina, vinda direto do céu para alguém. Na vida de cada pessoa haverá sinais, contextos, pessoas e oportunidades que sinalizarão o caminho a ser percorrido. É assim mesmo que Deus age através da história. Toda vocação é um dom de Deus, mas é também um esforço nosso de com-preender os caminhos e os sinais (2Pd 1, 5 - 11).

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Esse processo vocacional de descoberta dos dons e do melhor lugar para a pessoa fl orescer tem etapas pedagógicas a serem percorridas. Na Igreja do Brasil, nomeamos o DESPERTAR, o DISCERNIR, o CULTIVAR e o ACOMPANHAR. São etapas que demarcam o caminho de toda pessoa. Vão desde o primeiro interesse da pessoa em tornar mais plena sua vida, através do projeto do Reino de Deus, ajudando-a a encontrar qual o melhor caminho para fazer isso e qual é a vontade de Deus para ela.

A vocação é um projeto e não deve ser confundida com profi ssão. A vida profi ssional, reconhecidamente relevante em nossa sociedade, atua em outros registros. Para a vida profi ssional, entram em jogo apenas as competências técnicas da pessoa e seus projetos pessoais de sus-tentabilidade na vida. A vocação possui um componente gratuito e des-centrado. Na vocação o núcleo não são as competências técnicas, mas o desejo de servir e construir o projeto do Reino de Deus. Além disso, a vocação é uma dinâmica de entrega, de abertura para o outro, mesmo que isso nem sempre alcance a desejada sustentabilidade na vida.

A busca profi ssional é perfeitamente legítima e, claro, precisa ser equilibrada com valores mais integrais do que simplesmente os que vigoram no mercado de trabalho. Bem como todo vocacionado precisa também se qualifi car, para servir melhor sua causa. Nada de fi car inge-nuamente confi ando de que tudo que é necessário para fazer bem feita sua missão cairá do céu.

2.3.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

Esse é o terreno que a Animação Vocacional deve estar mais bem pre-parada e onde ela poderá ajudar melhor as pessoas. E a primeira ajuda é ultrapassar os limites da compreensão de que vocação é algo reservado a um grupo seleto de pessoas, melhores do que as outras (ou mais privi-legiadas), que Deus chama para seus planos especiais.

Ela deve valorizar o primeiro e maior dom, que é o da VIDA, colocando-o em sua dimensão exata de chamado do Deus-Amor para transformarmos o mundo pelo Amor. E insistir que isso não é apenas um sentimento fl uido ou um romantismo estéril. Amor aqui signifi ca um compromisso gerador de vida, transformador de realidades, especialmente voltado aos mais fracos.

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Precisamos ultrapassar rapidamente o discurso de vocação como algo desencarnado ou de vocação como uma escolha, onde Deus privile-gia alguns em detrimento de todos os demais. Esse tipo de discurso não se adequa ao Deus de Jesus.

Respeitar o processo vocacional em suas dimensões e etapas é fun-damental. É importante ter paciência porque o processo é pessoal e, so-bretudo, não é linear. A pessoa pode ir e voltar algumas vezes ou mudar completamente de direção, a determinada altura.

Todas as pessoas, com suas singularidades, merecem o acompanha-mento devido. Nesse tocante, é fundamental conhecer a história de vida do vocacionado. Como já foi dito, nenhuma vocação está fora do mundo. O mundo da família, do trabalho, do lugar onde mora e muitas outras coisas infl uenciam no caminho vocacional de uma pessoa.

Pode parecer óbvio, mas é importante que o animador vocacional também seja acompanhado e receba instrumentos adequados, apoio espiritual e afetivo, para ir amadurecendo em seu serviço à comunidade eclesial. E, inclusive, possa rever suas escolhas, abrir novas perspectivas de viver seu batismo, se for esse caso.

Novamente, é muito importante a questão da espiritualidade do se-guimento a Jesus. Viver a segunda dimensão, o BATISMO, como foi advertido, é um projeto para a vida toda e precisamos ser criativos no seguimento, descobrir para onde devemos levar quem está sendo acom-panhado por nós.

Podemos aprender muitas coisas nesse aspecto vocacional específi co com as vocações narradas nas Sagradas Escrituras, que é por onde ca-minharemos agora.

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Nosso itinerário partiu de Jesus, como centro de nossa fé e modelo de vocacionado do Pai, cujo centro da vida foi o Abba e o Reino de Deus, e avançou para a compreensão de que a Vocação acontece em pessoas dentro do mundo. Insistimos que a vocação é o conjunto formado pela iniciativa amorosa do Pai, que nos cria por Amor e para o Amor, e nos convoca a uma vida plena, somada à nossa resposta histórica. Essa res-posta é dada com nossa personalidade, nossas qualidades, dons, dúvidas e até nossas fraquezas e pecados. E a resposta é dada nesse mundo em que vivemos, também marcado por elementos positivos e negativos.

Nesse momento, recordaremos algumas narrativas vocacionais bíblicas. Mais do que histórias individuais, essas narrativas são também simbólicas, paradigmáticas, pois ajudam a iluminar nossos processos vocacionais hoje.

Praticamente, todos os grandes personagens bíblicos possuem sua história vocacional narrada. Desses tantos, escolhemos quatro para ilu-minar nosso caminho: Moisés, Jeremias, Pedro e Maria.

3.1 MOISÉS - VOCAÇÃO É UM SERVIÇO PARA TODOS

3.1.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

A vocação de Moisés foi e permanece sendo iluminadora para toda a tradição judaico-cristã. Inclusive, foi uma narrativa que infl uenciou tanto a Jesus quanto aos que escreveram os Evangelhos.

3. História do Chamado

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A narrativa é mais ou menos conhecida de todos. Importa-nos mais, aqui, o processo vocacional que se instala na vida de Moisés, segundo as Sagradas Escrituras. É o que lemos:

Javé viu Moisés que se aproximava para olhar. E, do meio da sarça, Deus o chamou: “Moisés, Moisés!” Ele respondeu: “Aqui estou”. Deus disse: “Não se aproxime. Tire as sandálias dos pés, porque o lugar onde você está pisando é um lugar sagrado”. E continuou: “Eu sou o Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó”. Então, Moisés cobriu o rosto, pois tinha medo de olhar para Deus. Javé disse: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos”. (Ex 3, 4 - 7)

Deus o convoca, depois de certa “curiosidade” que Moisés demonstra. E, convocado, já é preciso redimensionar a vida: tirar as sandálias dos pés. Uma vocação honesta exige despojamento e redimensionamento da vida, pois entraremos “em lugar sagrado”.

Novamente, é Deus quem se apresenta: é o Deus da história, de “Abraão, Isaac, o Deus de Jacó”. É nessa história real de lutas, vitórias e derrotas que a vocação de Moisés acontece. E aí vem o principal, a razão do chamado: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo”. A convocação feita por Deus tem uma razão também histórica: libertar o povo do sofri-mento, da escravidão. A vocação não é um deleite, uma homenagem, um privilégio. É um serviço, e um serviço exigente. Ao chamar, Deus imedia-tamente envia. Nesse sentido, as narrativas bíblicas são muito claras. Exatamente porque a vocação é também exigente missão, a resposta de Moisés não poderia ser outra:

Então, Moisés disse a Deus: “Quem sou eu para ir até o Faraó e tirar os fi lhos de Israel lá do Egito?” Deus respondeu: “Eu estou com você, e este é o sinal de que eu o envio: quando você tirar o povo do Egito, vocês vão servir a Deus nesta montanha”. (Ex 3, 11 - 12)

Moisés insistiu com Javé: “Meu Senhor, eu não tenho facilidade para falar, nem ontem, nem anteontem, nem depois que falaste ao teu servo; minha boca e minha língua são pesadas”. Javé replicou: “Quem dá a boca

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para o homem? Quem o torna mudo ou surdo, capaz de ver ou cego? Não sou eu, Javé? Agora vá, e eu estarei em sua boca e lhe ensinarei o que você há de falar.” (Ex 4, 10 - 12)

Moisés sente-se incapaz de levar adiante a missão, mas é animado pelo chamado de Deus: “eu o envio”, “estarei em sua boca”. O texto relata em poucos versículos, o provavelmente longo processo de discernimento de Moisés para interpretar corretamente aquela experiência.

Moisés vai percebendo a vontade de Deus na medida em que vai colocando em prática sua vocação. Algumas vezes errou, outras ve-zes foi levado a dividir a liderança. Algumas vezes foi criticado pelo povo que liderava, outras, ele próprio criticou a Deus. Na história de sua vida, Moisés foi percebendo os caminhos, as decisões que deveria tomar.

3.1.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

Vocação é missão e Moisés percebe isso logo de início. A Animação Vocacional precisa não perder esse horizonte e ajudar as pessoas a apro-fundarem o verdadeiro sentido de vocação, não como um deleite para agrado pessoal, mas como uma missão de transformação na realidade, em vista do Reino de Deus.

Na vocação de Moisés aparecerão muitos outros personagens: seu sogro, seu cunhado, entre outros. Nenhum processo vocacional se faz de modo solitário. A relação com outras pessoas coloca em perspectiva nossos interesses, purifica nossas intenções, alimenta nossas forças.

É preciso criar essas condições de comunhão dentro da Animação Vocacional para que as pessoas não se sintam estranhas e solitárias, quando se sentem chamadas a uma missão.

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3.2 JEREMIAS – VOCAÇÃO COMPORTA CRISES E CONFLITOS

3.2.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

O profeta Jeremias insere-se na longa tradição profética do reino de Judá, seguindo outros, como Isaías, Sofonias, Miquéias. Seu ministério foi longo, profetizando ao longo do período em que cinco reis ocuparam o trono de Judá. Ele próprio, com o passar do tempo, faz uma avaliação de seu ministério e nos conta seu processo vocacional. É o que vemos nesse texto vocacional:

Recebi a palavra de Javé que me dizia: “Antes de formar você no ventre de sua mãe, eu o conheci; antes que você fosse dado à luz, eu o consagrei para fazer de você profeta das nações”. Mas eu respondi: “Ah, Senhor Javé, eu não sei falar, porque sou jovem”. Javé, porém, me disse: “Não diga ‘sou jovem’, porque você irá para aqueles a quem eu o mandar e anunciará aquilo que eu lhe ordenar. Não tenha medo deles, pois eu es-tou com você para protegê-lo - oráculo de Javé” (Jr 1, 4 - 8)

Contra todos os argumentos do profeta, Deus adverte: “Não tenha medo deles”. O profeta tem razão, pois seu ministério foi muito exigente. Precisou denunciar todos os reis por corrupção, por oprimirem o povo e por não fazerem a vontade de Javé. Jeremias foi preso mais de uma vez e, em uma delas, foi lançado vivo dentro de uma cisterna. Mesmo de lá, continuou gritando suas denúncias até ser resgatado.

Jeremias, a certa altura, entra em sério confl ito com Deus, pois seu trabalho não estava gerando frutos e ele se sentia frustrado. Quis, por várias vezes, desistir. Amaldiçoou o dia que tinha aceitado aquela voca-ção. Mas como se pode ver, avaliando todo o seu percurso, na hora de escrever ele se dá conta de que aquela era mesmo a sua vocação: “Antes de formar você no ventre de sua mãe... eu o consagrei”.

Jeremias não teve tudo imediatamente claro em sua vida. Foi mes-mo sua história que mostrou como agir nessa ou naquela situação. E seus confl itos com Deus não foram supérfl uos ou alguma atitude infantil.

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Dentro desses confl itos é que sua vocação foi adquirindo consistência, ganhando novas perspectivas a cada etapa. É possível que no momento das crises, o profeta tenha fi cado desorientado. Mas quando escreve sua história, passado algum tempo, ele percebe que tudo aquilo era o modo como o Deus da história estava a agir em sua vida.

3.2.2. Estabelecendo pontes com nossa realidade

A vocação profética de Jeremias é uma grande lição prática para a Animação Vocacional. Em primeiro lugar, está a juventude do profeta. Ele mesmo argumenta com Deus: “sou muito jovem”. No entanto, o simples tempo cronológico nem sempre é decisivo na escolha vocacional. O de-cisivo é o discernimento, o amadurecimento na “escuta” dos sinais de Deus, através das pessoas, das oportunidades, do contexto.

Além disso, o profeta tem um ministério longo. Sua vocação foi por vá-rias vezes testada e teve que ser recriada. Caso o profeta se mantivesse com a mesma compreensão vocacional que teve no início de seu ministé-rio, é provável que ele não tivesse levado adiante tanto tempo de missão.

Esse é um elemento importantíssimo na Animação Vocacional. Uma vo-cação nunca está pronta e carece sempre de acompanhamento. Em níveis e pedagogias distintas, obviamente, mas ninguém possui todas as cartas do jogo de uma única vez. A Animação Vocacional deveria ajudar a todos no seu caminho vocacional, mesmo aqueles que já tomaram alguma decisão.

Por fi m, estão as “brigas com Deus”. O processo vocacional não é um caminho retilíneo, sem curvas ou sem obstáculos. Isso precisa fi car claro para todos os que a Animação Vocacional ajuda em seu caminho. E faz parte do amadurecimento espiritual – condição indispensável para uma vocação realmente adulta – certos confl itos com Deus.

Na verdade, o debate acontece é conosco mesmo, uma luta interior, tentando compreender melhor quem é esse Deus de Jesus e o que Ele quer de nós. Algumas vezes compreendemos, outras fi camos sem repos-tas e, para todas essas etapas, precisamos ter ambientes em que sejam possíveis compartilhar as angústias, dúvidas e desolações. A Animação Vocacional pode ajudar, criando essas condições de acompanhamento.

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3.3 PEDRO – VOCAÇÃO COMO PROCESSO DEMUDANÇA DE VIDA

3.3.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

A fi gura de Pedro, com personalidade forte, às vezes confusa, é bem conhecida de todos. Sua história vocacional está espalhada pelos quatro evangelhos, cada qual destacando um de seus aspectos interessantes. Destacamos alguns trechos do evangelho de João, que tem pistas interes-santes para entendermos o itinerário vocacional desse homem. De início, estamos diante do primeiro encontro entre o Mestre e o futuro discípulo:

Então André apresentou Simão a Jesus. Jesus olhou bem para Simão e disse: “Você é Simão, o fi lho de João. Você vai se chamar Cefas (que quer dizer Pedra).” (Jo 1, 42)

As dimensões vocacionais estão muito evidentes aqui. O processo vo-cacional se inicia por intermediação concreta de uma pessoa, André, de modo que a vocação não acontece num mundo de fantasias e nem como um passe de mágica. É preciso circunstâncias histórias bem concretas para que o processo se desencadeie.

A iniciativa de acolhida amorosa segue sendo de Jesus. Antes mes-mo de Pedro pronunciar qualquer palavra, o Mestre se antecipa e lhe reconfi gura a vida. No contexto bíblico, a mudança de nome não é mera formalidade, mas uma reorientação vital. Deixar de ser Simão e passar a ser Cefas-Pedro antecipa que a vocação é uma mudança integral de vida, exterior e interiormente.

Curiosamente, Jesus não desconhece aquele homem. Sabe de quem se trata, pois o chama de “fi lho de João”. O processo vocacional não é um sorteio aleatório, mas uma intervenção positiva e efetiva na vida da pessoa. A pessoa é convocada e o é com toda sua história.

Não é possível viver uma vocação apagando seu passado, sua perso-nalidade, suas qualidades e seu jeito de ser. É possível amadurecer, mas não é possível abandonar quem nós somos. Simão continua sendo “fi lho de João” e é nessa condição que é chamado.

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O mais curioso da fi gura de Pedro, para além de tudo que já conhece-mos de suas precipitações, de seus impulsos, de suas dúvidas, de suas fraquezas e arrependimentos, é o modo como o evangelho de João ter-mina sua história:

Pela terceira vez, Jesus perguntou a Pedro: “Simão, fi lho de João, você me ama?” Então Pedro fi cou triste, porque Jesus perguntou três vezes se ele o amava. Disse a Jesus: “Senhor, tu conheces tudo, e sabes que eu te amo.” Jesus disse: “Cuide das minhas ovelhas”. (Jo 21, 17)

Se observarmos bem, esses são quase os últimos versículos do evan-gelho de João e só nesse fi nal de narrativa que Jesus confere uma mis-são a Pedro: “Cuide das minhas ovelhas”.

Pedro, o líder do grupo de discípulos, precisou fazer um caminho lon-go, lento, paciente, para chegar a ter clareza de seu chamado ao cuidado com as ovelhas. Foi preciso dúvidas, crises e até negação, para que, ao fi nal, Pedro pudesse dizer: “Tu sabes que te amo”.

A vocação possui esse componente do amadurecimento, do necessá-rio processo de lapidação da pessoa. Isso não acontece de um dia para o outro. A força do primeiro despertar vocacional precisa ser alimentada, redirecionada, fortalecida, para que a vocação encontre seu melhor ca-minho de serviço, de missão.

3.3.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

O caminho vocacional deve ser trilhado com paciência, mesmo quan-do estamos diante de jovens que, por estrutura própria, são ansiosos e empolgados. Sem deixar perder esse entusiasmo, é importante que a Animação Vocacional ajude-os a ter a necessária “paciência histórica”, isto é, deixar a história ir se consolidando para os sinais serem interpre-tados e reinterpretados com maior segurança.

O caso de Pedro é um bom exemplo de que a vocação comporta mui-tas dúvidas e até retrocessos. Compreender isso é fundamental, e ajudar as pessoas a não temerem esses momentos de purifi cação e de lapida-ção também é muito importante.

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De novo, retorna a importância de uma espiritualidade do seguimento, bem sedimentada na vida e nas práticas de Jesus. Pessoas cultivadas no terreno de uma boa espiritualidade adquirem mais estrutura para ad-ministrar as crises, dúvidas, desencantos que, seguramente, vão surgir pelo caminho.

3.4 MARIA – VOCAÇÃO É ABERTURA FECUNDA AO ESPÍRITO

3.4.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

Maria é também um grande ícone vocacional. Seu sim despojado e corajoso abriu portas para o grande mistério de nossa fé, a Encarnação do Verbo. Seu modo de ser mãe, ao mesmo tempo em que foi discípula, como ensina nossa fé, também é exemplo para nós.

A devoção popular conhece perfeitamente quem é a Mãe de Jesus. Há um carinho manifesto por parte dos católicos a essa fi gura singular da história que Deus vem escrevendo entre nós. Quase tudo está dito sobre Maria e, ainda assim, sua presença feminina e materna continua desper-tando tantos corações e tantas vocações.

Do muito que se podia dizer nesse aspecto, escolhemos apenas um pequeno texto para destacar. Um texto conhecido e que é sempre muito rico para a refl exão:

A mãe de Jesus disse aos que estavam servindo: “Façam o que ele mandar”. (Jo 2, 5)

No contexto de uma festa de casamento judaico, como aquele que estava acontecendo, o vinho é um importante ingrediente para a alegria. Faltar vinho é o mesmo que empobrecer e entristecer a festa.

A disposição da mãe de Jesus é que a festa, a alegria, a comunhão de amizade, o bom da vida, não acabe. Ao contrário, ela insiste para que a festa ganhe em qualidade, porque o melhor vinho, o vinho novo, só Jesus pode oferecer.

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Esses são os dois principais aspectos vocacionais do texto. Tendo, em sua vida já experimentado a alegria, a mãe de Jesus quer levar, ampliar isso para todos, para que a festa da vida seja para todos e todas. É voca-cional porque diz respeito à missão de transformar o mundo, de colabo-rar para que o Reino de Deus seja implantado.

Outro elemento importante é que a discípula, nesse caso, sabe que o centro deve ser ocupado pelo Mestre. É nele que devemos buscar o melhor caminho de fazer continuar a festa da vida: “Façam o que ele mandar”.

3.4.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

A vida é uma festa no sentido bíblico da palavra. A festa, nesse caso, é nossa plenitude enquanto pessoas, realizadas, integradas pelo Amor criativo de Deus. É dessa festa que devemos cuidar prioritariamente.

É isso que a Mãe de Jesus não deixa esquecer ao lermos o texto. Como mãe, deseja que a festa siga em frente, ainda melhor e mais bo-nita. Como discípula, sabe, com clareza, quem tem condições plenas de não deixar a festa terminar: o próprio Jesus.

É um ponto extraordinário para ser cultivado na Animação Vocacio-nal. Essa dimensão de saber que é Jesus a orientação segura de nossa missão, e que ele é o vinho novo que não deixa a festa da vida se perder em situações artifi ciais.

Maria também é protagonista de tantas outras cenas maravilhosas, tal como sua ida apressada para acudir Isabel, lembrando o essencial de qualquer vocação, que é a missão de servir, especialmente os mais vulneráveis. O cântico do Magnifi cat, tão lindo e tão estimulante do pon-to de vista vocacional, pode ser o roteiro espiritual de um processo vo-cacional inteiro.

As palavras do texto de preparação do 3º Congresso Vocacional são inspiradoras:

A Virgem Maria é a imagem da conformação ao projeto trinitário rea-lizado em Jesus Cristo. É a discípula mais perfeita do Senhor, sua segui-

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dora mais radical, é a grande missionária continuadora da missão de seu Filho e formadora de missionários. Maria nos recorda que “a beleza do ser humano está no vínculo do amor com a Trindade, e que a plenitude de nossa liberdade está na resposta positiva que lhe damos”. Maria, a Mãe de Jesus, não é apenas modelo de vocacionada discípula missio-nária, mas também de animação vocacional evangelizadora. Ou seja, de um serviço de animação vocacional aberto ao Espírito Santo, na escuta da Palavra, na disponibilidade para servir ou mesmo nos momentos de sofrimento onde vemos Maria ao pé da cruz. No cenáculo, com a co-munidade reunida, ela nos ensina a promover um serviço de animação vocacional em comunhão com toda a Igreja e por ela reconhecido. Na animação vocacional pedimos que “nos ensine a responder como  fez ela no mistério da anunciação e encarnação”. Somos chamados a per-manecer na escola de Maria, mantendo vivas as “atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade que devem distinguir os discí-pulos de seu Filho”. Com Maria, aprendemos a sair de nós mesmos no caminho do sacrifício, de amor e serviço:  “Ide,  pois, fazer discípulos entre todas as nações!”.

Por fi m, mesmo sem entrarmos em detalhes, é preciso lembrar que nossa história está marcada desde os primeiros cristãos até hoje, por muitas narrativas vocacionais que iluminam, direcionam e estimulam nosso trabalho atual.

Algumas dessas narrativas são mais conhecidas, pois foram reconhe-cidas pela Igreja como modelo de santidade. Outras narrativas permane-cem anônimas, mas nem por isso menos importantes. Essas narrativas são uma síntese bonita de como o Deus-Amor, criando-nos, também nos lança para sua aventura amorosa e seu projeto de Reino.

Francisco de Assis, Inácio de Loyola, Catarina de Sena, Tereza de Jesus, Terezinha, muitos outros e outras, e, claro, Marcelino Cham-pagnat, seguem mantendo viva nossa fé de que nosso Deus quer agir no mundo, através de nossas vidas. Pelo seu Espírito, nos coloca no seguimento fecundo de seu Filho para contarmos essa bela história de amor ao mundo.

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3.5 MARCELINO CHAMPAGNAT – VOCAÇÃO COMO SERVIÇO À SOCIEDADE

3.5.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

O movimento político-social chamado Revolução Francesa já havia avançado França a dentro quando Marcelino José Bento Champagnat nasceu, em 20 de maio de 1789, no povoado de Rosey, próximo da cidade de Marlhes. O pai de Marcelino, João Batista, era partidário da Revolu-ção, exercendo uma liderança local. Sua mãe, Maria, cuidava do lar e educava os fi lhos, contando com o auxílio de uma cunhada, Rosa, muito infl uente na educação religiosa de Marcelino, o nono de dez irmãos.

A vocação na vida de Marcelino acontece por intermédio de contextos e pessoas muito concretos. O episódio em que ele presencia uma humi-lhação imposta pelo professor a um colega seu da mesma escola é de-cisivo para formar a sua compreensão da necessidade de uma educação mais humana. O padre que vai até sua casa para o convite à entrada no Seminário. O convívio com os colegas e parceiros de sonhos no Seminá-rio Maior. O encontro, já como padre, com o moribundo jovem Montagne, decisivo para impulsionar a concretização de reunir um grupo de irmãos para “tornar Jesus Cristo conhecido e amado” entre crianças e jovens.

Marcelino, atento à realidade, entende que sua vocação não pode se restringir aos limites da sacristia da Igreja. Sente-se chamado a uma intervenção positiva na sociedade, formando “bons cristãos e virtuosos cidadãos”. E sabe que não pode realizar essa tarefa sozinho. Compre-ende que “precisa de Irmãos”. Não sem difi culdades, reúne um primeiro grupo em torno desse seu sonho, sob a proteção de Maria, sua Boa Mãe.

São os Irmãos Maristas, hoje espalhados pelo mundo todo, atuando na Igreja e na sociedade, aliando fé e cultura. Na origem de tudo está a escuta atenta de Marcelino Champagnat aos chamados de Deus em sua vida, através dos sinais de seu tempo.

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3.5.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

A Animação Vocacional é um serviço paciente. Sabe que os caminhos de um chamado de Deus quase nunca são descobertos de uma única vez. Foi assim com Marcelino. Sucessivos acontecimentos e o encontro com diversas pessoas foram construindo seu itinerário.

Essa paciência no acompanhamento e a profunda convicção de que é Deus quem chama devem compor a espiritualidade do animador vo-cacional. O amadurecimento vocacional não obedece necessariamente nossas agendas e prazos.

Um elemento iluminador na vida de Marcelino é a fi gura do padre – animador vocacional naquele contexto – que faz um chamado direto, sem rodeios, ao jovem. Sem perder o respeito pela identidade de cada pessoa, a animação vocacional também deve ser propositiva. Chamar de modo direto, assertivo, provocador, pode ser um ótimo começo de conversa para um caminho vocacional.

Enfi m, está muito claro no caminho vocacional de Marcelino que seus sonhos e suas convicções ultrapassavam os limites da paróquia, da co-munidade da Igreja, em direção a uma intervenção positiva na sociedade. A Animação Vocacional pode ajudar o vocacionado a perceber que seu chamado é também uma oportunidade de servir à sociedade sem perder a raiz evangélica, como fez o jovem padre Marcelino.

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Colocando Jesus no centro como irradiador de todas as vocações, co-meçamos nosso itinerário. A vida de Jesus referenciada ao Abba – amor que o fazia assumir plenamente a missão – e referenciada ao Reino de Deus – missão assumida plenamente por amor, é o lugar de onde saem e para onde chegam todas as vocações e ministérios.

Aprofundando o tema, discutimos sobre a necessidade de assumir-mos o mundo como o lugar da realização de nossa vocação. A vocação nasce no mundo através dos sinais aí presentes, das oportunidades, das pessoas e dos contextos. E a vocação nasce na pessoa com seu perfi l, suas qualidades e seus dons.

E tivemos certeza disso quando compartilhamos brevemente a histó-ria vocacional de alguns personagens bíblicos bem conhecidos. Ilumina-dos pela história deles, já temos melhores condições de avaliar a nossa própria vocação e a vocação dos que estão próximos, sendo acompanha-dos por nós.

Nesse capítulo fi nal, a refl exão segue na história, mas agora para confi rmar que, além de estarmos no mundo, somos vocacionados PARA servir ao mundo. Toda vocação é missão.

4. Chamados para a História

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4.1 “IDE E PRODUZI MUITOS FRUTOS” (Jo 15, 16)

4.1.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

A sociedade contemporânea possui traços muito positivos e que enri-queceram nossa vida sobremaneira. É claro que também há sinais con-fusos e angustiantes nessa sociedade, como é o caso do individualismo exagerado, da competição e eliminação dos fracos, o cada um por si.

Entretanto, se uma pessoa verdadeiramente reconhece a si mesma como vocacionada à VIDA PLENA, e compreende que esse é o primeiro e mais fun-damental desejo do Deus-Amor para sua vida, é evidente que essa pessoa também compreenderá que uma VIDA PLENA não virá sem ela, se dispor a fazer algo de concreto para ajudar todos e todas a terem também essa vida.

Ao compreender o chamado a uma VIDA PLENA e INTEGRADA, a pessoa imediatamente saberá que tem uma missão: acompanhar outros para des-cobrirem essa vocação e terem oportunidade para viver plenamente sua vida.

De modo que, dizendo isso, estamos confi rmando que já desde a pri-meira dimensão da vocação, que é o chamado à VIDA PLENA, ela já é uma missão. Podemos afi rmar: toda vocação é missão.

Se já é assim na primeira dimensão da vocação, muito mais será nas di-mensões seguintes. A vocação de nos tornarmos discípulos de Jesus através do BATISMO gera missão. Os discípulos já sabem qual é o projeto de Jesus recebido pelo seu Abba: colaborar para a implantação do Reino de Deus.

As vocações específi cas são o modo privilegiado de assumir a missão do Batismo, por isso, são essencialmente missionárias. Ninguém pode assu-mir uma vocação específi ca para o seu próprio benefício, meramente por status, ou porque não tinha outra escolha. As vocações específi cas são es-sencialmente missionárias e só fazem sentido se quem as assume sai de si na direção da realidade do mundo e das outras pessoas. Cada qual dará, por pequena que seja sua contribuição, para que “venha Teu Reino, Senhor”.

O Documento de Aparecida não deixa dúvidas:• “Todo discípulo de Jesus Cristo é missionário.” (DA 144)

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• “Somos missionários para proclamar o Evangelho de Jesus Cristo e, nele, a boa nova da dignidade humana, da vida, da família, do tra-balho, da ciência e da solidariedade com a criação.” (DA 103)

Dito desse modo, está claro que, além de sermos chamados NO MUN-DO, somos chamados PARA O MUNDO. De alguma forma, todas as voca-ções, mesmo as mais contemplativas e silenciosas, devem encontrar o seu modo de AGIR NO MUNDO.

Não é necessário pensar apenas em ações extravagantes ou espeta-culares. Aliás, esse tipo de ação nem sempre realiza a vontade do Deus que esconde sua vontade aos sábios e poderosos e a revela aos simples e humildes (Mt 11, 25). Cada vocação, com seus pequenos gestos, atuando em suas comunidades, muitas vezes de modo silencioso e discreto, é que fazem a grande diferença na transformação do mundo em Reino de Deus.

4.1.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

A animação vocacional adquire imensa importância nesse momento por diversas razões. A primeira é para ajudar na compreensão de que vocação é serviço, é missão em favor das pessoas, e não apenas um projeto pessoal restrito a realizar o desejo individual do vocacionado. Nem sempre se compre-ende isso de modo direto e espontâneo. É preciso insistir muito nesse aspecto.

Além disso, diante de uma sociedade cuja propaganda central é o “seja feliz a qualquer custo” ou “para aproveitar a vida você só tem o agora”, é comum que surjam medos de projetos ousados que envolvam a doação integral da sua vida. A animação vocacional deve ser encorajado-ra, estimulante nesse processo. Doar a vida é também receber vida. As palavras de Bento XVI, por ocasião da mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações de 2011 são inspiradoras:

“[Precisamos ajudar os jovens a] compreenderem que entrar na von-tade de Deus não aniquila nem destrói a pessoa, mas permite descobrir e seguir a verdade mais profunda de si mesmos, para viverem a gratuidade e a fraternidade nas relações com os outros, porque só abrindo-se ao amor de Deus é que se encontra a verdadeira alegria e a plena realização das próprias aspirações. ”

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Essa coragem de que fala o papa, é de propor, com clareza e entusias-mo, o desafi o de uma vocação para a pessoa. O papa se refere especial-mente aos jovens, mas obviamente que esse desafi o se estende também aos adultos, muitas vezes menos corajosos que os próprios jovens.

A animação vocacional deve fi car atenta ao aspecto processual no contexto de se assumir uma missão. Não há dúvida que toda vocação é missionária, mas as pessoas não estão imediatamente prontas para qualquer tipo de mis-são a qualquer momento. É preciso respeitar o processo de amadurecimento e de conhecimento de si, da realidade, de outras perspectivas possíveis.

Com essa atitude, feita de modo ponderado e adulto, ajudamos as pes-soas a não arriscarem uma decisão tão séria como é a vocacional, baseada em percepções ainda muito fantasiosas, ilusórias. A animação vocacional precisa ter a coragem necessária para, inclusive, dizer os nãos na vida do vocacionado, seja os nãos provisórios (esperando o melhor momento para o sim) ou até os nãos defi nitivos (propondo novos caminhos).

4.2 “MUITOS MEMBROS E UM SÓ CORPO” (Rm 12, 2)

4.2.1. Tecendo conversa sobre nosso assunto

O Concílio Vaticano II usou muitas metáforas para signifi car o que é a Igreja. Duas delas são muito preciosas. A primeira fala da Igreja como Sa-cramento de Cristo (SC5) é uma compreensão mais mística. O centro não é a Igreja, mas aquele para quem a igreja aponta, Jesus Cristo. Essa riqueza mística também alcança nossa refl exão vocacional. A Igreja não pode ser autorreferenciada, pensando apenas em si mesma, em suas estruturas e sua sobrevivência. Do mesmo modo, a vocação não pode ser autorreferen-ciada apenas sustentando o ilusório privilégio de ter sido escolhida. Essa atitude levará a um deserto estéril, infecundo. Por isso, o Concílio não nos deixa esquecer: Cristo e seu projeto de Reino de Deus são o centro.

A segunda metáfora, mais conhecida e muitíssimo importante, é a Igreja como POVO DE DEUS (LG 9 - 17). É uma metáfora mais pastoral. A Igreja não é

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apenas seus padres, bispos e papa. A Igreja são todos os batizados, discípulos missionários de Jesus de Nazaré, sonhadores e colaboradores de seu Reino.

Há distinções, é verdade. Serviços diversos, porque os dons e caris-mas são diversos e se complementam, e todos devem contribuir para a implantação do Reino. Mas, em primeiro lugar, não estão os serviços distintos, mas a dignidade que é a mesma para todos.

O que dá a dignidade é o BATISMO. O Batismo é a porta de entrada que nos iguala a todos e todas. Todos os serviços prestados na Igreja, desde os mais simples dentro da comunidade mais distante, até o próprio papa, tem sua ori-gem no Batismo. O Batismo nos faz todos com a mesma dignidade. Os muitos serviços nos fazem diferentes, mas não maiores ou melhores uns dos outros.

É nesse contexto que aparecem as chamadas vocações específicas. É um itinerário de abertura: primeiro, a criação amorosa de Deus nos presenteia com a Vida e nos convoca à plenitude de uma vida realizada e integrada. Essa é a VOCAÇÃO À VIDA. Para os que creem em Jesus, o caminho para essa pleni-tude de vida é nos fazer discípulos DEle, assumirmos o seguimento como for-ma de vida, abraçando a causa do Reino de Deus. Essa é a VOCAÇÃO CRISTÃ, adquirida através do Batismo, mãe de todas as demais vocações.

Discípulos do Senhor, os batizados sentem que viver o Batismo é um projeto de oferta da vida, através daquilo que cada um é, de seus dons, da sua história. No discernimento desse caminho, cada pessoa vai perce-bendo por onde se sentirá mais realizado, fazendo frutifi car seu Batismo. São as vocações específi cas.

Habitualmente, chamamos de VOCAÇÃO ESPECÍFICA três grandes gru-pos: as LEIGAS e os LEIGOS, maioria absoluta em nossa Igreja e chamados a um protagonismo sempre maior e efetivo; e dois grupos menores e também muito importantes: OS RELIGIOSOS e RELIGIOSAS CONSAGRADOS e OS MI-NISTROS ORDENADOS, esse último grupo constituído apenas por homens.

As vocações específi cas são uma riqueza para a Igreja. Elas desinsta-lam a Igreja e a colocam em movimento criativo, procurando formas de fazer chegar a boa notícia de Jesus e do Reino de Deus a muitas pessoas e de muitas maneiras.

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Essa multiplicidade encontra sua força no único corpo, que é o corpo de Cristo. Tanto diversidade quanto unidade são riquezas. A diversidade é horizonte, pois, mesmo sendo constituída de missões diferentes, ca-rismas distintos, complexidades variadas, todas as vocações possuem a mesma dignidade vinda do Batismo. A unidade é central, pois todas as vocações, das mais simples às mais complexas, adquirem sua força e bebem do mesmo Espírito do Cristo Ressuscitado.

A VOCAÇÃO LAICAL se destaca pela sua presença criativa e trans-formadora, dentro das estruturas políticas e sociais, e por uma espiri-tualidade encarnada, baseada nos acontecimentos diários de sua vida, trabalho, estudos, família, entre outros.

A VOCAÇÃO DAS RELIGIOSAS E DOS RELIGIOSOS se destaca pelo seu profetismo, sua radicalidade em viver o seguimento a Jesus, anunciando o Reino ao mundo e denunciando a injustiça e o pecado. Essa radicalida-de é vivida, especialmente, pelos votos de Pobreza, Obediência e Casti-dade. E a inspiração para essa vida vem também dos carismas dados às fundadoras e fundadores.

A VOCAÇÃO DOS MINISTROS ORDENADOS se destaca pelo papel de presidir as comunidades da Igreja, consolidando as comunidades exis-tentes e formando novas, onde houver necessidade. Também presidem o sacramento da Eucaristia, centro da espiritualidade católica. Sua espiri-tualidade vem do Cristo Bom Pastor.

Claro que há muito mais riquezas em cada uma das vocações. E se observarmos bem, cada qual se DESTACA em um aspecto. Isso signifi ca duas coisas: cada vocação pode fazer muito mais do que isso para o qual ela se destaca. E o que é destaque em uma vocação não quer dizer ne-cessariamente que outra não poderá fazer. Por exemplo, há padres que estão na política e nos sindicatos. Há leigos que presidem comunidades. Há religiosos que são padres.

4.2.2. Estabelecendo pontes com nossa prática

O primeiro e maior desafi o aqui para a animação vocacional será o trabalho de valorizar a dignidade de todas as vocações e, especialmente,

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não associar vocação imediatamente apenas a ser padre, como é hábito ser feito por muita gente.

Outro elemento importante é o cuidado com o processo a ser realiza-do no discernimento da vocação. É preciso cuidar de evitar certas postu-ras obcecadas com determinada vocação mesmo quando as condições, os dons, o contexto indicam que aquela vocação não é a da pessoa. O discernimento também deve dizer o não para a pessoa. Muitas vezes, discernir pode ser desistir de determinada vocação.

Por outro lado, é preciso aquela postura corajosa de estímulo e in-centivo quando o animador ou animadora vocacional percebe o potencial para determinada vocação. Vejamos o que nos diz Bento XVI, que pode ser perfeitamente bem aplicado aos leigos e leigas:

É importante encorajar e apoiar aqueles que mostram claros si-nais de vocação à vida sacerdotal e à consagração religiosa, de modo que sintam o entusiasmo da comunidade inteira quando di-zem o seu «sim» a Deus e à Igreja.(Mensagem do dia mundial de oração pelas vocações – 2011)

Há que se ter muito cuidado para não impor uma aura sagrada intocá-vel àquelas pessoas que estão no processo de discernimento vocacional. A animação vocacional deve ajudar nesse amadurecimento. Fazer um caminho vocacional é fazê-lo dentro da vida, do cotidiano das pessoas, da família, do trabalho, da escola. O vocacionado, a vocacionada, como vimos anteriormente, não é um separado do mundo.

Cada opção vocacional, cada vocacionado ou vocacionada, cada famí-lia, cada comunidade são realidades muito diferentes umas das outras. É preciso descobrir metodologias, pedagogias e modos de aproximação mais ou menos singulares para cada experiência vocacional.

E, por fi m, a importância indiscutível de ajudar as pessoas a cami-nharem para uma espiritualidade sólida, encarnada, capaz de dar forças especialmente nos momentos de tensão, de ter que fazer a escolha ou de ter que redimensionar escolhas anteriores.

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A animação vocacional, para oferecer esse acompanhamento, deve também se deixar acompanhar e se ajudar mutuamente para que a espi-ritualidade não seja apenas uma exposição teórica ou doutrinal, mas seja vivida em todos os processos.

O texto pode até apresentar uma conclusão para nos ajudar a organizar os pensamentos, as ideias e estimular nossa criatividade. No entanto, VOCAÇÃO não tem conclusão, pois é um caminho a ser percorrido por toda vida.

Se dizemos, por um lado, que uma vocação não tem uma conclusão defi nida, pois percorre a vida toda, por outro lado, é importante a com-preensão de que vocação é um assunto sério, decisivo na vida de qual-quer pessoa. Por isso, a necessidade de um processo, de um caminho com indicações, com etapas defi nidas e celebradas e, especialmente, a necessidade de pessoas bem intencionadas, maduras, capazes de tomar pela mão os vocacionados e vocacionadas, e ajudá-los em sua subjetivi-dade e liberdade na descoberta do que fará a vida ser plena.

É nesse sentido que a ANIMAÇÃO VOCACIONAL possui uma centralidade na vida da Igreja, nas comunidades eclesiais e muito parti-cularmente na VIDA RELIGIOSA. A Igreja, comunidade dos seguidores de Jesus, carece de pessoas com convicção de seu primeiro chamado dado pelo BATISMO. Da maturidade da ANIMAÇÃO VOCACIONAL, isto é, da boa preparação dos animadores e animadoras, dependerá muito a formação de novas lideranças nas comunidades cristãs, capazes, elas também, de formar novos seguidores e novos líderes para atrair a todos para os va-

5. Conclusão

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lores do Evangelho de Jesus de Nazaré, sua amizade com o Pai e sua paixão pelo Reino.

Se a Sagrada Escritura oferece tantos modelos vocacionais para nos-sos dias hoje, também devemos fi car atentos à realidade que nos en-volve. Muitas vezes na rotina de nossas vidas, na maioria das vezes de forma anônima, encontram-se verdadeiros homens e mulheres profetas da vida plena, testemunhas de uma opção fundamental pelo Reino pelos valores da justiça e da paz. Não é muito diferente do que aconteceu com São Marcelino Champagnat nos rincões rurais da França do século 19.

Essa compreensão é que temos nós, os maristas de Champagnat. Sa-bemos que nossa origem está no carisma oferecido por Deus a um anô-nimo da história, de origem simples, e que poderia ter passado desper-cebido pela história. No entanto, ao colocar seus dons a serviço da Igreja, Marcelino pode fazer uma grande diferença já em seu tempo, e continua a fazê-la através dos maristas espalhados pelo mundo.

Temos clareza que a ANIMAÇÃO VOCACIONAL cumpre uma missão especial entre nós. Sabemos de nossa capacidade dada pela graça de Deus, de intervir positivamente na sociedade, levando-a mais perto da utopia do Reino. Portanto, queremos mais gente conosco para essa tare-fa. E todos e todas, sejam bem-vindos!

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BAUMAN, Sigmund. MODERNIDADE LÍQUIDA. Jorge Zahar, Rio de Ja-neiro, 2000.

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_____ . 1.o Congresso Vocacional do Brasil – Documento Final. Bra-sília: CNBB, 1999

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6. Referências Bibliográficas