Teoria da Constituição - Carlos Ayres Brito

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 Introdução Teoria é conhecimento ordenado, conhecimento sistematizado sobre um determinado assunto. Conhecimento, além do mais, especulativo; ou seja, ordem de saber que se constrói sem imediata preocupação com a sua aplicabilidade aos casos concretos. Independente da prática, portanto. 2. Quando associado ao nome "Direito", para com ele formar a locução " Teoria do Direito", o substantivo de que estamos a falar é tipo articulado de conhecimento que busca isolar o Direito das outra realidades normativas. Explica o Direito como objeto cultural-normativo que se não confunde, verbi gratia, com a moral e a religião. E quando grafado de "Teoria da Constituição", é saber especulativo que opera no interior do próprio Direito, para separar o Direito Constitucional de qualquer outro setor ou província jurídica; melhor dizendo, para evidenciar em que a Constituição: a) é diploma jurídico-positivo diferente dos demais; b) é a parte central de um ramo  jurídico também diferenciado das outras porções que se entroncam na grande árvore do Direito. 3. Este o nosso desafio: pensar a Constituição. Não esta ou aquela Constituição em separado, mas enquanto fenômeno jurídico-positivo comum à experiência dos povos que exercitaram, com êxito, a própria soberania. 4. O que estamos dizendo não é mais que isto: às Constituições em sentido objetivo (conjunto de normas jurídicas) corresponde esta nossa teorização em sentido subjetivo. Que somente vai buscar no material investigado, todavia, o que se apresentar como partes elementares de um todo orgânico; ou seja, como objetiva comprovação de que tudo é um. 5. Ainda à guisa de anotações preliminares a esta nossa monografia, um primeiro lembrete: não há apenas Constituições escritas, e mesmo as escritas nem sempre se enfeixaram (como ainda não se enfeixam) num único texto normativo. Elas também existem em documentos esparsos. E se umas são redigidas e promulgadas por órgãos especialmente eleitos pelo povo para esse mister, outras, no entanto, são aprovadas sem a eleição popular daqueles por cujo intelecto e força física elas ingressaram no mundo das positividades jurídicas. 6. Outra pequena lembrança está em que a nossa teorização não é repelente de nenhuma espécie de Constituição conhecida. Contudo, as especificidades ou características centrais que temos como exclusivas de um diploma constitucional, assim como as citações e ilustrações de que nos valemos amiúde, tudo tem por alvo o modelo de Constituição que terminou por se impor no interregno que vai do segundo após-guerra até os nossos dias: a Constituição escrita, redigida à moda de código e

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Introdução Teoria é conhecimento ordenado, conhecimento sistematizado sobre um determinado

assunto. Conhecimento, além do mais, especulativo; ou seja, ordem de saber que seconstrói sem imediata preocupação com a sua aplicabilidade aos casos concretos.Independente da prática, portanto.2. Quando associado ao nome "Direito", para com ele formar a locução "Teoria doDireito", o substantivo de que estamos a falar é tipo articulado de conhecimento quebusca isolar o Direito das outra realidades normativas. Explica o Direito como objetocultural-normativo que se não confunde, verbi gratia, com a moral e a religião. Equando grafado de "Teoria da Constituição", é saber especulativo que opera nointerior do próprio Direito, para separar o Direito Constitucional de qualquer outrosetor ou província jurídica; melhor dizendo, para evidenciar em que a Constituição: a)é diploma jurídico-positivo diferente dos demais; b) é a parte central de um ramo 

 jurídico também diferenciado das outras porções que se entroncam na grande árvore do Direito.3. Este o nosso desafio: pensar a Constituição. Não esta ou aquela Constituição emseparado, mas enquanto fenômeno jurídico-positivo comum à experiência dos povosque exercitaram, com êxito, a própria soberania.4. O que estamos dizendo não é mais que isto: às Constituições em sentido objetivo(conjunto de normas jurídicas) corresponde esta nossa teorização em sentidosubjetivo. Que somente vai buscar no material investigado, todavia, o que seapresentar como partes elementares de um todo orgânico; ou seja, como objetivacomprovação de que tudo é um.5. Ainda à guisa de anotações preliminares a esta nossa monografia, um primeirolembrete: não há apenas Constituições escritas, e mesmo as escritas nem sempre seenfeixaram (como ainda não se enfeixam) num único texto normativo. Elas tambémexistem em documentos esparsos. E se umas são redigidas e promulgadas por órgãosespecialmente eleitos pelo povo para esse mister, outras, no entanto, são aprovadassem a eleição popular daqueles por cujo intelecto e força física elas ingressaram nomundo das positividades jurídicas.6. Outra pequena lembrança está em que a nossa teorização não é repelente denenhuma espécie de Constituição conhecida. Contudo, as especificidades oucaracterísticas centrais que temos como exclusivas de um diploma constitucional,assim como as citações e ilustrações de que nos valemos amiúde, tudo tem por alvo o

modelo de Constituição que terminou por se impor no interregno que vai do segundoapós-guerra até os nossos dias: a Constituição escrita, redigida à moda de código e

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produzida por um corpo de legisladores ungidos na pia batismal do voto popular.7. Por último, incumbe-nos pontuar que esta nossa Teoria da Constituição começapelo estudo do Poder Constituinte, que é a instância deliberativa de que ela,Constituição, é a obra resultante. O trabalho objetivamente feito. E que essa mesmaTeoria passa pela esfera de conhecimentos que tem recebido o nome de

"Hermenêutica Constitucional"; mas que preferimos, pessoalmente, designar por"Hermenêutica da Constituição", como no seu devido tempo explicaremos.

Aracaju (SE), 23 de dezembro de 2002Carlos Ayres Britto

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Sumário1.1. Deus: a instância transcendente que tudo pode, menos deixar de tudo poder1.2. A limitabilidade intrínseca de Deus1.3. A indistinção ontológica entre Deus e Sua onipotência

1.4. Deus enquanto norma normarum ou a fonte das fontes1.5. A incontornável solidão da onipotência de Deus1.6. O povo como a transubstanciação do poder imanente que tudo pode1.7. A soberania popular ou o modo constituinte de ser do povo1.8. O mundo de Deus e o mundo do Direito

1.1. Deus: a instância transcendente que tudo pode, menos deixar de tudo poder 

1.1.1. O meu filho Marcel tinha cinco anos de idade, quando travou comigo oseguinte diálogo:- Meu pai, é verdade que Deus tudo pode?- É verdade, sim, meu filho. Deus tudo pode.- E se Deus quiser morrer?- Bem, aí você me obriga a recompor a idéia. Deus tudo pode, é certo, menos deixarde tudo poder. Logo, Deus tem que permanecer vivo, porque somente assim Ele vaiprosseguir sendo Aquele que tudo pode.1.1.2. Ao dar essa resposta de que Deus não podia morrer, terminei por confirmar umacoisa e afirmar outra. Confirmei a minha crença na existência de Deus e afirmei alimitabilidade intrínseca desse mesmo Deus de cuja existência eu estava a dartestemunho.1.1.3. Com efeito, eu reproduzia para o meu filho: a) minha filosofia

prevalecentemente idealista ou espiritualista, à moda hegeliana, segundo a qual anatureza ambiental e a sociedade humana são uma revelação, uma manifestação da Idéia Incriada; b) essa Idéia Incriada é o próprio Deus, tido como instânciatranscendente que tudo pode, mas com o acréscimo de idéia que eu estava a fazer:instância transcendente que tudo pode, sim, menos deixar de ser essa instânciatranscendente que tudo pode.1 

1.2. A limitabilidade intrínseca de Deus 

1.2.1. Sobre este último aspecto da limitabilidade inerente a um ser que tudo pode (arelativização possível da onipotência), a conversa com meu pequeno filho trouxe-me à

cabeça a utilidade pedagógica de uma comparação entre Deus e o poder que, naCiência Política e na Teoria da Constituição, é chamado de Poder Constituinte. Maisexatamente, pressentíamos (a partir de agora passaremos a usar o plural majestático"nós", em vez de pronome pessoal da primeira pessoa "eu") que refletir sobre algumasnoções deístas mais correntes seria tarefa intelectual que abriria importantes espaçospara a mais desembaraçada compreensão do poder que está na própria raiz daConstituição e do Ordenamento Jurídico: o Poder Constituinte.1.2.2. Não que houvesse originalidade no fato em si da comparação (outros estudiososdo Direito, cada qual a seu modo e tempo, já confrontaram o Divino com o PoderConstituinte). Não que o acerto das proposições descritivas dos diversos ângulos daformação e manifestação do Poder Constituinte dependesse (nunca dependeu) do

acerto das proposições reveladoras da existência e da natureza de Deus. Os conceitos

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acerca do Poder Constituinte gravitam em outra esfera de mentalizaçãofenomenológica. Sem embargo, sua referibilidade às idéias mais assentes sobre Deuslhes propiciaria uma clareada de horizontes, pois o fato é que os estudos e reflexõesem torno do Criador são em muito maior quantidade do que os elaborados ao derredordo Poder Constituinte. Estudos e reflexões que, de modo quase invariável, apanham a

figura de Deus por um prisma subjetivado ou enquanto ser que se dota de umavontade do tipo psicológico.1.2.3. Além dessa disponibilidade muitíssimas vezes maior da literatura sobre Deus, oque nessa literatura se tem ajuizado sobre a existência, a ontologia e as manifestaçõesdo Todo Poderoso é de generalizada ou massiva aceitação (quantos homens emulheres, de fato, se consideram ateus?). Mais até, o que se tem falado sobre Deuspermeia pronunciamentos de cientistas do quilate de um EINSTEIN, que chegou adizer: "Quero conhecer o pensamento de Deus. O resto é detalhe..." E não se podenegar a realidade de que a invocação do nome de "Deus", ou "Juiz Supremo doMundo", ou "Divina Providência", ou "Ser Supremo" tem sido grafada nospreâmbulos de Constituições como as dos Estados Unidos da América, da França,Alemanha, Argentina, Venezuela, Brasil, etc., etc. Tudo a nos levar a presumir queuma objetiva demonstração de certa similitude entre os dois termos paradigmáticos(Deus e o Poder Constituinte) contribuiria para quebrantar as resistências doutrináriasmais recentes à tese de que há um espaço de conformação jurídico-positiva quesomente pelo Poder Constituinte é passível de ocupação. Noutros termos, assimcomo nenhuma instância geratriz mundana pode assumir o papel de Deus naquilo quediz respeito à montagem das linhas mestras do universo e à substituição dessas linhaspor outras, também nenhum órgão ou sujeito simplesmente constituído pode setravestir de Poder Constituinte naqueles pontos que se põem como a própria fundaçãodo Ordenamento Jurídico e como alteração das características centrais desse

Ordenamento.1.2.4. Antevíamos até mesmo uma dimensão prática, uma utilidade mais quepropriamente acadêmica na confrontação que estávamos a idealizar. É que apretendida clareada de horizontes na compreensão do verdadeiro Poder Constituintenos habilitaria: a) de uma parte, a mais vivamente fixar os contornos doconstitucionalismo atual, que é um constitucionalismo fraternal, funcionalmente; b)de outra banda, a melhor rebater os fundamentos daquilo que se vem chamando deneoconstitucionalismo.2 1.2.5. Nesta última dimensão do neoconstitucionalismo, já podemos antecipar que osângulos de estudo que nos parecem mais salientes dizem respeito à questão de saber:a) se as normas que tenham por objeto a reforma da Constituição - tanto as que

permitem quanto as que proíbem tal reforma - são normas que podem servir defundamento para a modificação delas próprias; b) se a emergência de coletividadessupranacionais pode ensejar a formação de um Direito superior à Constituição de cadapaís-membro de tais coletividades (a União Européia, a ALCA e o MERCOSUL,notadamente).1.2.6. O primeiro juízo que passamos a formular, então, já a título de execução donosso pessoal estudo comparativo entre Deus e o Poder Constituinte, é exatamenteeste: aquele que tudo pode com inicialidade é a fonte mesma do seu e de qualqueroutro poder. Sua realidade prescinde da noção de causa, por ser a própria causa detudo o mais. Logo, em última análise, aquele que tudo pode com inicialidade só existemesmo para tudo poder com inicialidade. Esta é a sua natureza, o seu núcleo duro (expressão muito ao gosto dos publicistas norteamericanos, alemães e portugueses),

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aquilo que responde pela sua raison d'être.1.2.7. É auto-evidente o consectário dessa afirmação de que existe um ser que tem notudo poder com inicialidade a sua própria ratio essendi: o ser que só existe para tudopoder com inicialidade não pode se demitir do seu papel de tudo poder cominicialidade. Não faz sentido que a fonte de todo o poder use do seu poder originário

para se fazer secar enquanto fonte mesma. Não há como conceber a substância de umser a conspirar , sozinha (Deus está sempre sozinho enquanto "substância"), contra asua própria conservação. É de SPINOZA a categórica asserção de que todo ser, namedida em que pode, se esforça por se conservar ou permanecer tal como é. Atémesmo um micróbio, uma bactéria, um vírus, todos eles reagem o quanto podem aoremédio com que são eventualmente combatidos.1.2.8. Por comparação, figuremos uma nascente d'água fluvial e sua própria corrente,a primeira a determinar à segunda que reflua por inteiro ao ponto de partida paranesse ponto de partida se esvair. Impossível! A nascente de um rio de superfície (hários que são subterrâneos) existe para vir à tona e liberar uma parte de si numa certadireção, continuamente, gerando o fenômeno da corrente. Esta só pode ser umininterrupto caminhar para adiante da nascente. Noutro dizer, nascente e correnteexistem para cumprir a destinação do rio de se encontrar perpetuamente com o mar,ou com outro rio que no mar desemboque. O ser-corrente é seguir em frente,distanciar-se do seu nascedouro, como o ser-nascente é ficar para trás da corrente,adensando-lhe incessantemente o corpo e assim possibilitando ao rio (do qual fazemparte nascente e corrente) aquele final e interminável abraço com o mar.3 1.2.9. O que é lógico supor é o poder que tudo pode a não fazer tudo sozinho. Eleinicia uma obra para outro completar. Deus, no caso, convocou a natureza e os sereshumanos, criaturas Dele, para se tornarem co-criadores deste mundo terráqueo. Odínamo do nosso Globo. Jamais, porém, com a possibilidade de tais criaturas, com o

tempo, se ombrearem em tudo e por tudo ao seu Criador. O mister que lhes cabe ésempre o de coadjuvantes, porque, senão, elas colocarão o Criador sob o risco de setornar criatura das suas criaturas. Deus a se postar como refém daqueles que, sendocriaturas, de repente poderão se transformar em criadores do seu Criador .

1.3. A indistinção ontológica entre Deus e Sua onipotência 

1.3.1. Com um pouco mais de interesse especulativo pelo tema, avançamos noraciocínio para entender que o sujeito (à falta de melhor palavra para a qualificaçãoontológica de Deus) cuja natureza é a de tudo poder não tem o poder como algodistinto de sua subjetividade. Esse tipo de poder não é algo que o sujeito possua, no

sentido de se colocar perante esse mesmo sujeito como um predicado ou uma virtude.Nada disso! O poder não é distinto do sujeito, por ser o próprio sujeito. Ambossurgem no mesmo instante, como o corpo humano já nasce com todos os seus órgãoselementares. Tais órgãos são, no seu conjunto, o corpo humano. Circularmente, ocorpo humano é o conjunto de tais órgãos.1.3.2. Ainda recorrendo à imagem do rio, há pouco projetada, ele não é apenas a suanascente, ou a sua corrente, ou a sua foz, assim destacadamente. O rio é rio porinteiro, e não aos pedaços. Ele é ao mesmo tempo o seu nascedouro, a sua corrente e asua embocadura. Tudo é uma coisa só, que a mente humana fragmenta, ora porincapacidade de compreender o todo, ora por amor à exigência intelectual declassificação ou compartimentação endógena das coisas.

1.3.3. Se é assim, o sujeito é o poder, o poder é o sujeito, e por isso é que um não

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pode ser destacado do outro, porque, em rigor, não existe o outro. Tudo é uma sórealidade, como a flor e a sua corola, o mar e as respectivas ondas (como entenderenquanto predicado ou virtude aquilo que, se apartado do ser, faz do ser uma outracoisa ou até uma coisa nenhuma?)1.3.4. Em linguagem aristotélica, o sujeito que tudo pode tem nesse tudo poder a sua

causa formal. Entendendo-se por forma aquilo para que serve o ser. Aquilo que oser, e somente ele, é capaz de fazer. A função específica, enfim, que o serdesempenha e que o torna único entre os demais fenômenos.4 1.3.5. Dá para concluir, então, que, em rigor, Deus não tem o poder de tudo poder.Mais que isso, Deus é o poder de tudo poder. Não se trata de uma dualidadefenomênica, mas de uma unidade ontológica, reitere-se. Por isso que, no maravilhosolivro A SEMENTE DE MOSTARDA, o místico e filósofo indiano OSHO assim falada verdadeira sabedoria:"As pessoas caem sempre que estão nos pontos mais altos. Mas esses pontospertencem ao vale; não são alturas verdadeiras. Se você tem fama, mais cedo ou maistarde será difamado. Se está num trono, mais cedo ou mais tarde será destronado.Tudo o que alcançar neste mundo lhe será tomado. Mas, no mundo interior, tudo oque você alcança é para sempre, é eterno, não pode ser perdido. A sabedoria não poderegredir - uma vez atingida, torna-se parte de você. Não é algo que você possua -torna-se seu próprio ser e você não pode desconhecê-la (ÍCONE editora, p. 230,ano de 1992, negritos à parte).1.3.6. Não é desarrazoado, pois, que o próprio Direito se encarregue de fundir com oEstado o poder que o Estado tem de legislar, de executar as leis e de julgar segundoessas mesmas leis, chamando-o de "Poder Público"; isto é, o Poder Público enquantosinônimo de Estado, o Estado enquanto sinônimo de Poder Público, de que dá sobejasdemonstrações o arsenal prescritivo da Constituição brasileira de 1988 (inciso LXIX

do art. 5º e inciso I do art. 8º, à moda de exemplo5).1.3.7. Sob este visual das coisas, portanto, é preciso trabalhar com a idéia de que ocentro subjetivado do poder que tudo pode tenha no fenômeno da onipotência mesmaa impossibilidade da renúncia a tudo poder, porque essa renúncia, mais que renúncia,consubstanciaria um autoesvaimento. Uma implosão. Um atentado ao próprio"instinto de conservação". Uma absurda passagem de um poder que tudo pode... paraum poder que assume o risco de já não poder mais nada.1.3.8. Convém dizer de outro modo, em louvor à clareza do pensamento. O ser quetem na aptidão originária para tudo poder o próprio núcleo firme da sua natureza (forma), tal ser não pode decair dessa aptidão; porque dessa perda essencial restariaum outro ser. O quebrantamento do poder absoluto arrastaria consigo o próprio sujeito

absolutista, que é absolutista porque tudo pode e porque tudo pode é que éabsolutista. Retire-se-lhe o poder de tudo poder, negue-se-lhe o instinto de

 preservação, e o que sobra já é outra coisa em qualidade e essa outra coisa emqualidade pode até ser o nada, se passarmos do plano da imanência (plano do mundofísico e cultural) para o plano da transcendência (que é o espaço dos seres espirituaisou "supra-humanos", para nos expressarmos numa linguagem kelseniana).1.3.9. Assentado fique o juízo, então, de que Deus, ou existe, ou não existe. Se Deusexiste (pouco importa se existe como sujeito processante, ou como um processo em simesmo substante), Ele não se põe como a fonte primaz da vida por assim optar pelacondição de ser fonte primaz. No tema, não há opção. Não há querer. Deus tem queser a fonte primaz da vida, e, destarte, a causa de todas as leis naturais que regem avida por Ele criada ou na qual Ele se transfundiu. O deixar de ser fonte primaz é

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incompatível com a idéia que se possa ter de Deus, ao menos no estádio atual dascategorias lógicas com que trabalha a mente humana (e aqui tomamos em linha deconta as contribuições da lógica formal e da dialética hegeliana, que somente coincide- esta última - com a dialética marxista enquanto método6).

1.4. Deus enquanto norma normarum ou a fonte das fontes 

1.4.1. Agora, partindo do fato de que as leis naturais da vida (lei da gravidade, daconservação da energia, da mudança mecânica de estados, da atração e simultâneadispersão dos corpos, da conexão universal dos fenômenos, etc.) são leis que se põemcomo a causa ou a fonte de muitas outras leis igualmente físicas, igualmente naturais -sabido que tais leis empíricas são encadeadamente regidas pelo princípio dacausalidade -, é imperioso que nos perguntemos sobre a existência de um ponto departida que seja comum a todas elas. Não há como deixarmos de nos inquirir sobreum tipo de instância que se ponha ali no próprio começo de tudo que pertença aomundo do ser, que é um mundo regido pelo citado princípio da causalidade, segundoo qual tudo que acontece é por efeito necessário de uma causa também necessária ouque não pode deixar de ser.1.4.2. Por hipótese, se queremos saber a causa imediata do nascimento de um serhumano, vamos ter que responder que o ser humano proveio do fato inicial dafecundação de um óvulo (feminino, claro) por um espermatozóide (masculino, óbvio).Se prosseguirmos no exercício das perguntas sobre o fenômeno da concepçãohumana, teremos que passar pela explicação dos testículos - por serem eles a glândulagenital masculina que fabrica o esperma (que, por sua vez, contém o espermatozóide),como teremos que passar pela explicação do ovário - por ser o ovário a glândulagenital feminina que produz óvulos. E é assim de indagação em indagação que iremos

estacionar num ponto absolutamente irredutível a novas perguntas sobre a parteorgânica do corpo humano. Esse ponto é a lei ou o princípio da perpetuação daespécie, embutido, a seu turno, no princípio da continuidade da vida em geral,traduzido na idéia de que a vida em geral é feita para a gestação e da gestação deinfinitas formas (especiais) de vidas. Tanto quanto o flamboyant, v.g., é árvore feitapara a produção de suas flores e da produção de suas flores. As flores vêm e vão,continuamente, e o flamboyant fica. Mais: é preciso mesmo que as flores caiam paradepois rebrotar, incessantemente, porque somente assim é que a árvore podepermanecer viva.1.4.3. E neste passo vamos ter que reconhecer: para além da explicação racional,ministrada pela própria Ciência, só cabe mesmo apelar para uma instância geradora da

própria lei da continuidade da vida em geral... e aí o ser humano tem a necessidade de,seqüenciando a intuição de que "nada pode surgir do nada" (PARMÊNIDES), cair nos braços de Deus. Deus, ou outro nome que se dê à fonte das fontes ou a lei das leisou a norma normarum, que é a substância primária de que falava SPINOZA (ou,quem sabe, a não-substância de que derivam todas as substâncias).1.4.4. Eis a composição vernacular do sistema spinoziano do universo (ETHICA, I,3), em cujo ponto de partida se encontra o conceito daquela Substância de que tudoderiva, que não é outro senão o conceito de Deus enquanto fonte das fontes ou normanormarum: "O que é em si e se concebe por si, isto é, aquilo cujo conceito não temnecessidade do conceito de uma outra coisa, do qual deva ser formado. Destaconcepção extraem-se outras: se é absolutamente independente deve ser infinita; éúnica em tudo, senão seria limitada por outras e não poderia ser independente;

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também precisa ser causa sui, caso contrário dependeria de sua causadora. Ademais,precisa ser autodeterminada, decorrendo suas qualidades e ações de sua próprianatureza (...). Este princípio necessário, eterno, singular e incausado, este princípioimanente do universo é Deus ou Natureza" (p. 14 do prefácio de MÁRCIOPUGLIERI ao "TRATADO POLÍTICO", de SPINOZA, Ícone Editora, 1994).

1.4.5. Terminemos este segmento reflexivo com a ponderação de que nãodesconhecemos o grande risco intelectual de quem se dispõe a falar sobre Deus,sabido e ressabido que a existência mesma de Deus nem pode ser rigorosamenteconfirmada nem rigorosamente desconfirmada pela Ciência. Deus, então, para osintelectuais que O admitem é sempre uma hipótese de trabalho. Um postulado. Umconceito que se intui a priori, como é próprio de todo postulado. Logo, falar sobre Elenão é formular proposições deduzidas da análise de elementos objetivos que seconectam para formar um todo unitário, mas saltar imediatamente para umaconclusão. Todavia, não foi a partir da intuição da existência de uma normafundamental simplesmente pensada, uma norma fundamental hipotética, e,portanto, pressuposta (não efetivamente posta por nenhum órgão jurídico, nenhumcostume, nenhuma instância volitiva imanente, enfim), que HANS KELSEN pôdefalar de uma Ciência do Direito? Uma ordem sistemática de conhecimentos que temnaquela hipotetização normativo-fundamental a sua própria condição inicial depossibilidade como esfera autônoma e científica de saber?7 

1.5. A incontornável solidão da onipotência de Deus 

1.5.1. Este novo título formal nos introduz na exposição dos dois modos lógicos deDeus perseverar como o poder que tudo pode. Um desses modos - já foi dito - é aimpossibilidade do suicídio direto ou instantâneo: Deus a bater em retirada, pura e

simplesmente. O outro modo é a impossibilidade do suicídio em dois tempos: numprimeiro tempo, Deus criaria um novo Deus, tão onipotente quanto Ele, Deusoriginário; num segundo momento, esse novo Deus onipotente destroçaria toda a obrado primeiro e assim decretaria a própria sentença de morte do Deus inicial.1.5.2. Realmente, com a entrada em cena de um segundo Deus, retornaríamos àquela

 já descartada hipotetização: Deus a sumir do mapa, e, com Ele, o próprio mapa asumir (em que chão, em que céu, em que mar, em que abismo, se a morte do"originário" Deus levaria de roldão todo abismo, todo mar, todo céu, todo chão?). SeDeus pudesse criar um segundo Deus, à completa imagem e semelhança Dele,primitivo Deus, o que impediria o novo Deus "onipotente" de refundir, ou até mesmodescriar o Primeiro?8 

1.5.3. O desdobramento de idéia que nos esforçamos por transmitir é simplesmenteeste: a onipotência não é só o poder de tudo poder. É também o poder de nãodeixar que outro poder tudo possa. É, a um só tempo, onipotência e unipotência.Poder único, absolutamente inconvivível com outro poder de igual ontologia. Deus,na Sua onipotência, está condenado à solidão.1.5.4. É próprio do Ser onipotente, portanto: primeiramente, permanecer como a forçaque tudo pode; segundamente, existir em absoluta solidão. Não há como duas ou maisonipotências ocuparem o mesmo espaço, e por isso voltamos a ajuizar que a naturezade Deus está em ser o poder que tudo pode, menos deixar de tudo poder. Nem deforma direta, nem pela convocação de um êmulo, um sósia, um clone, enfim.1.5.5. Não seria exatamente assim com o Poder Constituinte? Uma força instintiva 

que não comporta sucedâneo, uma energia completamente primária e insimilar , uma

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solitária potência do mundo do ser? Um poder que só pode ser concebido in natura, enunca de forma pasteurizada? É a resposta que, paulatinamente, forcejaremos porministrar, começando por este capítulo e prosseguindo nos subseqüentes.

1.6. O povo como a transubstanciação do poder imanente que tudo pode 

1.6.1. Atento ao relativismo que é próprio das comparações, animamo-nos a enunciarque boa parte do que dissemos a respeito do caráter de Deus, no plano transcendente,é aplicável, já agora no plano imanente, à natureza do povo. Queremos dizer: éaplicável à natureza de cada povo soberanamente concebido. Se se prefere, o quedissemos acerca da índole de Deus é de ser reproduzido quanto ao caráter de cadapovo, naquele preciso momento da metamorfose do povo em Estado, porque somenteassim estatalmente a se metamorfosear é que o povo: a) pode experimentar suanatureza de instância deliberativa soberana; b) se predispõe a protagonizar, de forma

 autoditada, relações jurídicas internas; c) força passagem para o seu ingresso nacoletividade internacional de Estados.1.6.2. Se antes da criação da vida humana sequer era possível falar da existência deDeus, especular sobre Ele (quem falaria, quem especularia?), antes da criação doEstado também não se pode, juridicamente, falar da existência de um povo. O povosó é povo, em termos jurídicos (não sob o prisma sociológico, ou histórico, ou étnico,etc.), quando pode dispor normativamente sobre si mesmo. Quando seautoqualifica juridicamente. E isto já significa a emergência de um OrdenamentoJurídico próprio. Emancipação política (soberania) para o povo poder se irrogar talOrdenamento, que tem no Estado a sua própria condição de aplicabilidade eexpansão.9 1.6.3. Afirmar, assim, que um povo já existe, jurídicamente, é dar conta do exercício

vitorioso de uma emancipação política. É pressupor a soberania em ação. É dizer queo povo pôs em movimento, exercitou uma soberania, com esta dúplice função:primeiramente, para o povo não mais se submeter ao Direito de outro povo;segundamente, para o povo impor o seu próprio Direito no âmbito do território de quese apodera, com animus domini; terceiramente, para o povo grangear a adesão, oupelo menos o respeito, dos demais povos soberanos. E tudo isto somente se consumapelo fenômeno da estatalização.1.6.4. Repisando a idéia, pela importância do assunto: o ser-povo, para umacoletividade humana, incorpora o poder de se autodeterminar jurídicamente. Aoriginária força de possuir um Direito próprio, exclusivo. Implica emancipação comoa forma exteriorizada de uma soberania que é, por definição, superior a qualquer outro

poder jurídico, no plano territorial-interno, e que não é inferior a nenhum outro poder jurídico, no plano territorial-externo. É exprimir: o ser-povo significa poder existirsob a forma jurídica de Estado, único modo prático-formal de o povo por inteiro seautoconferir um Ordenamento e uma personalidade jurídica. Única maneiraobjetiva e permanente de o povo atuar como um centro personalizado de imputação

 jurídica. Enfim, única via lógica (não há outra) de o povo, garantidamente, seauto-referir como sujeito de relações-de-Direito, quer no seu próprio território, querna esfera territorial que é comum aos demais Estados soberanos (a ordeminternacional de Estados).1.6.5. Sem o fenômeno da estatalização, destarte, não há como entrever a face

 jurídica do povo. Mas o ser-Estado, o já existir sob a forma jurídica de Estado, o que

objetivamente revela? Revela a efetividade da emancipação ou soberania do povo,

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seja para se assumir como a instância decisória interna mais importante, seja paraombrear-se às demais instâncias internacionais de Estados. Numa nova metáfora, oEstado é a borboleta em que se transformou a crisálida de uma sociedade humanaaspirante a povo.10 1.6.6. O que verdadeiramente conta, nessa cruzada histórica do povo em busca de si

mesmo, à cata de sua própria totalidade como ser jurídico, é o resultado. É aefetividade interna e externa da personalização jurídica do povo em um novo Estado.Não que a efetividade só exista, no plano interno e externo, a partir doreconhecimento unânime desse novo Estado pelas instituições aplicadoras do Direito,no plano interno, ou, então, pela sociedade internacional de Estados. Absolutamente!Basta que o número dos reconhecedores assegure ao novo Estado a perspectiva, oclima, a tendência natural de prosseguir obtendo novos reconhecimentos (ainda quetácitos), à medida que se vão escasseando as possibilidades de recuperação de terreno do Estado decaído ou daquilo que sobrou da antiga ordem estatal. É o que poderíamosdesignar por situação de efetividade global do Estado emergente, imagem de que sevaleu HANS KELSEN para dizer que o Ordenamento Jurídico não perde a qualidadede Ordenamento pelo fato de uma ou outra de suas normas, embora válida, deixar deser concretamente aplicada. O que interessa é que, no global, no geral, no planodaquilo que profusamente ocorre, a Ordem Jurídica seja respeitada. Ouçamos o maiorexpoente do positivismo jurídico da recém-passada centúria:"Uma ordem jurídica não perde, porém, a sua validade pelo facto de uma norma

 jurídica singular perder a sua eficácia, isto é, pelo facto de ela não ser aplicada emgeral ou em casos isolados. Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suasnormas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de facto observadas eaplicadas" (ob. cit., p. 298).1.6.7. Ainda insistindo na comparação possível entre Deus e o povo, devemos

concluir que o povo também não tem, em rigor, o poder imanente de tudo poder. Ele,povo, assim juridicamente designado pelo fato de se organizar em Estado soberano, éo próprio poder de tudo poder, em termos jurídicos e no plano territorial interno.Dá-se, na imagem ideal do povo, a transubstanciação da soberania (do latim super omnia, a traduzir aquilo que está acima de tudo ou acima de todos), assim como nadoutrina católica se dá a mudança de estado do pão e do vinho para o corpo e osangue de Jesus Cristo, na Eucaristia (dogma definido no Concílio de Trento). Ou,numa exemplificação propriamente científica, a osmose que se processa entre o povoe a soberania é algo assim como o encontro de duas partículas de hidrogênio com umade oxigênio, a determinar a mudança de natureza desses dois elementos químicos paraa formação de um terceiro: a água.

1.6.8. Vistas as coisas por este ângulo, força é convir que a soberania outra coisa nãoé, na prática, senão o próprio modo estatal de ser do povo. É como inferir: no justomomento em que a transfiguração estatal se efetiva, já o é como resultado empírico dafusão do poder soberano com o povo (o que significa dizer que o povo e a soberaniapassam a compor uma só unidade fenomênica, pois o povo é um com a soberania e asoberania é uma com o povo). O povo, impessoalmente encarado, é o poder soberano,tanto quanto o poder soberano, subjetiva ou personalizadamente focado, é o povo.1.6.9. Sem o povo, a soberania é forma pura, isenta de toda matéria, e, portanto, vazia.E sem a soberania, que é o povo? Matéria humana coletiva ainda juridicamenteprivada de sua definitiva forma. Um ser jurídico ainda carente de totalidade, a meiocaminho da autoconsciência, porque, nele, a soberania permanece numa dimensãoapenas virtual. Daí a asserção de que, sem a incorporação da soberania, o povo não dá

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a si próprio uma Ordem Jurídica e deixa de se personalizar no Estado. E assim juridicamente incompleto e estatalmente irrealizado é que o povo não conseguesuperar o estágio político de simples população, que é o inconcluso estágio decrisálida.1.6.10. Perguntamo-nos: mas o que faz o povo ser assim a fonte e o nervo da

soberania? A própria subjetivação do poder mais alto em que a soberania consiste? Éque o povo, no seu amálgama com o território de que se torna senhor, falandogeralmente a mesma língua e vivenciando uma cultura própria, constitui o que seconvencionou chamar de nação. Algo mais que sociedade humana, mais quepopulação, muito mais que simples aglomerado de pessoas, por implicar umaverdadeira comunidade (de comum unidade); isto é, uma real comunhão de vida, nosentido de consciência coletiva quanto à partilha de um mesmo destino histórico, porse encontrarem todos em um mesmo barco. Logo, o mais abrangente e impessoal epermanente enlace humano (que é mais do que convivência hic et nunc), de sorte aplasmar um tipo de realidade social que só pode ser o começo de tudo, no plano daPolítica e do Direito.

1.7. A soberania popular ou o modo constituinte de ser do povo

1.7.1. O Poder Constituinte 

1.7.1.1. É neste ponto de intelecção que vem à baila a figura do Poder Constituinte.Um poder que em nada discrepa da soberania de que vimos falando, por ser ele essamesma soberania; ou seja, O Poder Constituinte é a soberania que se manifestade modo inicial ou primário. Logo, o nome que a soberania toma, quandoexpressada com inicialidade.

1.7.1.2. Se falamos assim de primariedade expressional da soberania, é porque opovo-nação, já imerso no seu Estado, atua em outros momentos que o Direito Positivocostuma etiquetar como expressão de "soberania popular". É o caso da Constituiçãobrasileira de 1988, cujo art. 14 faz dos institutos do sufrágio universal, do voto, doplebiscito, do referendo e da iniciativa das leis pelos cidadãos uma forma deexercício, justamente, da soberania.11 1.7.1.3. Uma outra razão existe para falarmos de momento inicial da soberania, e aqui

 já temos em vista a figura do próprio Estado. É que ele também recebe o qualificativode soberano, na medida em que pode impor ou ditar um Direito comum a todos, nointerior do seu próprio território. E no uso dessa aptidão para expedir um Direito deabrangência e acatamento geral, o fato é que nele mesmo, Estado, se dá a reedição

daquela marca registrada que é do povo, soberanamente concebido: o poder deprocriar um Direito a que ninguém escapa (no caso do povo enquanto fontenormativa, esse Direito é a própria Constituição; no do Estado, o Direitopós-Constituição).1.7.1.4. Reexplica-se. Põe-se no Estado a designação de soberano porque ele, tantoquanto o povo-nação, produz um Direito de máxima e irrecusável abrangência pessoale territorial. Com a diferença de que o povo assim o faz pela altissonante via daConstituição e no uso de uma força originária ou potência propriamente dita; aopasso que ele, Estado, só pode fazê-lo por normas que são posteriores à Constituição eno uso de uma potestade ou competência derivada (a potência se dilui emcompetências, e não em outra potência, como bem observam HART e VANOSSI).

1.7.1.5. É assim no uso de uma capacidade normante que o povo lhe delega, lhe cede,

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lhe empresta, enfim (sempre por conduto da Constituição), que o Estado dita umDireito comum a todos e, pela efetividade desse Direito, passa a abrir os maisfavoráveis espaços de reconhecimento internacional à "sua" (dele, Estado) soberania.1.7.1.6. É de se perguntar, naturalmente: e quando ocorre aquela citada manifestaçãoprimária da soberania? Manifestação primária, essa, que estamos a identificar com o

Poder Constituinte? Não com o Estado?1.7.1.7. Resposta: a soberania que se manifesta como Poder Constituinte somenteocorre, formal ou oficialmente, no preciso instante da criação jurídica do Estado.Criação que se formaliza, hodiernamente, no corpo de um documento

 jurídico-positivo cujo nome é Constituição (palavra que, no vernáculo, significa amaneira particular de ser de cada coisa ou objeto de conhecimento).1.7.1.8. Quanto à justificativa para o nome técnico "Poder Constituinte", é porque elesignifica o poder de constituir a Constituição (releve-se a poluição auditiva), quetermina sendo o poder de constituir o Estado e o poder de dar início à montagemdo Ordenamento Jurídico do povo e do Estado mesmo.12 1.7.1.9. Note-se bem: acabamos de ajuizar que o Poder Constituinte é o poder deconstituir a Constituição, e não o poder de constituir normas constitucionais. Adiferença entre as duas coisas é muito importante, porque de qualidade. Se todaConstituição é um feixe de normas constitucionais, nem todo feixe de normasConstitucionais é uma Constituição. Queremos salientar: o poder de editar aConstituição não incorpora o poder de reformá-la, tanto quanto o poder de reformá-lanão incorpora o poder de editá-la. Quem faz o todo, faz o todo, e não menos. Quemfaz a parte, faz a parte, e não mais.1.7.1.10. Tornando ao mote: se toda Constituição originária é um repositório denormas constitucionais, nem todo repositório de normas constitucionais é umaConstituição originária. Isto porque as emendas à Constituição pressupõem uma

Constituição originária a emendar. Lógico! E tais emendas veiculam normas...constitucionais. Porém, sob um regime normativo que não é autoditado por elas, e,sim, pela própria Constituição emendada.

1.7.2. O Poder Desconstituinte 

1.7.2.1. Chamando o feito à ordem: O Poder Constituinte, manifestação primária dasoberania, faz a Constituição, que, a um só tempo, faz o Estado e inaugura oOrdenamento Jurídico. É esse Ordenamento que vai receber do Estado umaininterrupta complementação (e garantia), de maneira a consubstanciar todo o mundodo Direito: de um canto, o Direito-Constituição, que o Estado originariamente não faz

(a parte da Constituição que o Estado faz já é a veiculada por emendas); de outrocanto, o Direito pós-Constituição, que o Estado faz, ou, então, reconhece. Não há umtertium genus.1.7.2.2. Dizer que existe um Direito originário que o Estado não faz é também dizerque esse Direito é o único a não passar pelo crivo do Estado ou de qualquer outrapessoa jurídica. É que, no momento constituinte, a sociedade é concebida como se depessoas coletivas não se formasse. Nem públicas nem privadas. Apenas as pessoasfísicas é que se tornam protagonistas das ações políticas de que resultam o féretro d euma Constituição e o partejamento de outra.1.7.2.3. É aqui mesmo o lugar apropriado para falarmos de um PoderDesconstituinte. Que é o poder correlato ao Constituinte ou imbricado com ele. Pois

é de todo evidente que o poder de constituir um novo Estado implica o poder de

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desconstituir o velho. Se é possível promulgar uma nova Constituição, por inteiro,claro que isto se dá pela despromulgação daquela até então vigorante. E também porinteiro.1.7.2.4. De conseguinte, a nação encarna essa potência de abater o velho e erguer onovo Ordenamento Jurídico. Se se prefere, a nação é a única instância imanente capaz

de partir de um marco zero jurídico para colocar uma Constituição em lugar de outra,por completo, e com essa outra Constituição fazer o quê? Instituir um novoOrdenamento Jurídico e, nele, a subjetivada figura do Estado.1.7.2.5. Temos, portanto, dois poderes que tudo podem: Deus no céu e o PoderConstituinte na terra (que é um poder geminadamente constituinte/desconstituinte).Um, a dar início à criação do mundo em geral (a natureza e os seres humanos dãoseqüência à obra de Deus). Outro, a dar início à criação do mundo jurídico emparticular e a prescrever o modo pelo qual esse mundo jurídico vai receber seusnecessários e infinitos complementos.

1.8. O mundo de Deus e o mundo do Direito 

1.8.1. Se é pelo dedo que se conhece o gigante, podemos dizer que há um modoempírico de Deus se fazer conhecido, que é o próprio mundo por Ele criado (senão,quem o conheceria para aquém das esferas da pura espiritualidade ou dos colmosangelicais?). Por igual, há um modo jurídico de o povo se fazer conhecido, que é aConstituição por ele criada, início lógico de todo o Direito Positivo.1.8.2. Para fundar o universo, Deus faz o que é próprio da potência em que Eleconsiste: impõe a Si mesmo as próprias condições de "trabalho" (evidente que ovocábulo trabalho é usado por analogia com as empreitadas humanas de edificação dealgo a partir de um imaginário ponto zero). Para fundar o Direito, o povo, na mesma

 pegada, se auto impõe as coordenadas de atuação legiferante. É assim que semovimenta ou se materializa a potência, que não precisa mais do que a sua própriarealidade para instaurar as relações que pretender.1.8.3. Se é olhando para o Universo que reconhecemos a soberania de quem o fez, étambém olhando para a Constituição que reconhecemos a soberania de quem aprocriou como norma jurídica primária (a Constituição enquanto modo jurídico de opovo se fazer conhecido como instância exercente de uma soberania que vai além doestádio da pura virtualidade). E, neste passo, o que temos é o modo soberano de ser deuma coletividade humana, que é um modo jurídico inicial ou constituinte de ser.1.8.4. É esse modo constituinte de ser que faz do povo, sob o prisma político, ainstância humana primeva por excelência. Instância humana primária e mais

importante, a produzir o Direito mais importante (que é a Constituição), responsávelpela criação da pessoa coletiva ou plural também mais importante (o Estado).1.8.5. Falar, então, de povo (povo-nação) é falar de soberania, de PoderConstituinte/Desconstituinte, de Constituição, de Estado e de Ordenamento Jurídico,assim vinculadamente. São temas que se interpenetram, necessariamente, e pelanecessária interpenetração é que se conceituam. Cada realidade a olhar nos olhos daoutra para encontrar mais nitidamente refletida a própria imagem. Como fazemostodos nós diante de um bom espelho de cristal.1.8.6. A título de remate, apenas três considerações:I - a primeira, que se reitere a pacífica noção de que a Constituição não inova oOrdenamento Jurídico, tanto quanto o Estado não funda esse Ordenamento. A

Constituição inaugura o Ordenamento. Quem inova o Ordenamento é o Direito

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pós-Constituição, de elaboração estatal, sobretudo por conduto da lei. A lei é que é overdadeiro motor do Direito. O dínamo do Direito, a partir de um dado formal e outromaterial: formalmente, pelo seu modo comparativamente simplificado de elaboração;materialmente, por se traduzir em singela aplicação dos conteúdos e valores daConstituição Positiva, sem a menor força intrínseca de inovar o próprio fundamento

da Ordem Jurídica (a Constituição mesma);II - a segunda consideração é a de que, ao contrário do sucedido com o PoderConstituinte, Deus não se serve de ninguém para criar o mundo. Daí que não obedeçaa normas regimentais antecipadamente lançadas. Seu agir ou Seu fazer já são, em simesmos, um fato-norma (nenhum órgão deliberativo, singular ou colegiado, se colocaentre Deus e Sua originária criação). É tão-somente no âmbito do Poder Constituinteque é possível distinguir as duas coisas - regimento e respectiva aplicação -, porque oPoder Constituinte bem pode se manifestar por um órgão plural ou coletivo dedeliberação, e, aí, não há como deixar esse órgão de atuar segundo pautasprocedimentais adrede redigidas. Donde esta didática passagem do livro "ESTUDOSCONSTITUCIONAIS", da autoria de JOSAPHAT MARINHO, versando a dicotomia"Poder Constituinte e Poder de Reforma Constitucional: "Por ser um poder `fundador',associa-se-lhe, comumente, o qualificativo ̀ originário'. Acentua-se-lhe, desse modo, otimbre criador ou instituidor. Dotado de propriedade tão eminente, o poderconstituinte originário não é regulado por direito anterior, ao qual não é dadoestabelecer raias e vedações à tarefa inovadora. O instrumento convocatório daassembléia é apenas meio que proporciona, pela eleição dos representantes do povo, aatividade do poder constituinte, por natureza independente, não condicionada aamplitude de sua competência por lei preliminar, oriunda de outro órgão. Quando acorporação parlamentar não opera com liberdade de decidir, por estar cerceada peloato de convocação, falta-lhe a dimensão de assembléia constituinte. (...)" (edição da

Universidade Federal da Bahia, 1989, p. 162);III - a terceira e última consideração é esta: há um tipo de soberania que trata daConstituição (pois que a própria Constituição originária é que resulta do exercíciodele), e um outro tipo de soberania de que trata a Constituição (pois inteiramentenormado por ela). Somente o primeiro a revelar o fato de que o Poder Constituinte é oúnico momento político-normativo que vai da sociedade ao Estado, e não do Estado àsociedade. O único instante em que o Direito se subtrai completamente ao Estado.

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Capítulo II - A Lógica Própria do Poder Constituinte e a do Poder Constituído 

Sumário2.1. A natureza política do Poder Constituinte2.2. O caráter político do Direito posto pelo Poder Constituinte

2.3. O Poder Constituinte como realidade que fica do lado de fora da Constituição2.4. O povo enquanto sociedade política e enquanto sociedade civil2.5. A sociedade política em SIEYÈS2.6. O caráter democrático-formal do Direito posto pela sociedade política2.7. O vínculo natural entre a sociedade política e a futuridade.2.8. O inexistente vínculo entre "excesso de rigidez" e "Poder Constituinte Evolutivo"2.9. O Poder Constituinte como o poder que pode o mais sem poder o menos, e oPoder Constituído como o poder que pode o menos sem poder o mais

2.1. A natureza política do Poder Constituinte 

2.1.1. Quando pronunciamos a locução "Poder Constituinte", sem dúvida que estamosa falar de um poder genuinamente político. Mais até, estamos a falar de um poderexclusivamente político, porque originariamente imbricado em toda a pólis, naquelesraros instantes em que a pólis se sobrepõe ao Estado para dizer, por ela mesma, sobque tipo de Direito-Constituição quer viver. Ela passa a transitar pelo mundo do ser(não do dever-ser jurídico) e por isso pode assumir-se como o amálgama do povointeiro com o território sobre o qual esse povo inteiro vai constituir o seu particularEstado.1 2.1.2. Tão penetrado de povo, desde o berço, é esse poder constituinte ou poder deconstituir o Estado, tão necessário ele é para a auto-afirmação histórica do povo, que

 já não pode ser concebido senão como um poder que é parte do povo mesmo. Omodo constituinte de ser do povo, no rigor dos termos.2.1.3. Pois bem, todo povo assim constituintemente dimensionado vai estruturar o seuEstado no bojo de um diploma jurídico-normativo que toma o sintomático nome deConstituição. Constituição... do Estado, a encarnar o que há de mais político noDireito e mais anatômico no Estado. E por que é assim?2.1.4. É assim, porque:I - a Constituição é a primeira manifestação objetivo-sistemática daquele poderimanente que tudo pode, que é o povo enquanto ser ou realidade constituinte. Dondepodermos trocar a palavra "povo" pela expressão "poder constituinte", esse poder que,de tão inicial, tão incondicionado, tão socialmente mais abrangente e tão superior aos

outros poderes políticos, é um poder simultaneamente constituinte e desconstituinte: zera a contabilidade  jurídica até então existente e passa a começartudo de novo (à feição de um professor que, numa das mãos, saca de um apagadorpara limpar completamente a lousa da sala de aula, e, na outra, porta o giz com quevai escrevendo nos espaços vazios dessa mesma lousa);II - a Constituição, na sua originária redação, não é feita pelo Estado. Ela é feita para o Estado, mantendo com esse Estado uma essencial relação de unha e carne, a pontode se poder afirmar que a cada nova Constituição corresponde um novo Estado (juridicamente falando, como sempre enfatiza MICHEL TEMER). E não é por outrarazão que toda Constituição Positiva toma o nome do Estado que ela põe no mundodas positividades jurídicas (daí "Constituição da República Federativa do Brasil","Constituição da República Popular da China", "Constituição da Espanha",

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"Constituição dos Estados Unidos da América", etc.). Não o nome de um objetivosetor de relação jurídica ou atividade humana, como sucede, agora sim, com o CódigoCivil, o Código Penal, o Código Comercial, o Código Eleitoral, a Consolidação dasLeis do Trabalho, etc.2 2.1.5. É assim que o Poder Constituinte tem à sua mercê o Estado em particular e o

Direito em geral. A própria Constituição originária, que é a primeira voz do Direitoaos ouvidos do povo, é gestada por ele e somente por ele, Poder Constituinte. Ele éque tem a Constituição na mão, e, por conseqüência, está à vontade para plasmar oEstado, com todos os órgãos elementares desse Estado e respectivas funções. Comoestá à vontade para fazer da sua nova Constituição o início lógico de um novoOrdenamento Jurídico (o que sobrevive do antigo Ordenamento deixa de manterelo-causal com a Constituição sepultada e corre a buscar fundamento de validade nanova Carta Política).2.1.6. Toda essa força que tem o Poder Constituinte para fazer o que bem entender doDireito só é possível, contudo, por ser o Poder Constituinte uma força ou realidadeexclusivamente política (sociológica, na visão de FERDINAND LASSALE), e não

 jurídica. Pois que, se jurídico fosse o Poder Constituinte, ele já faria parte do Direito eao Direito teria que se submeter. Assim como Deus, se já pertencesse ao mundo desdesempre, ao mundo teria que render vassalagem, de alguma forma.2.1.7. Temos por cognoscitivamente decisivo o que estamos a enunciar e por isso éque batemos na mesma tecla: o povo, no estratégico momento em que elabora aConstituição, é uma instância exclusivamente política de deliberação. Encarna, assim,o puro poder, a unitária potência, o fato sociológico bruto (não-juridicamentelapidado), a se manifestar por conduto de normas jurídicas originárias, enfeixadas naConstituição. Esta, por conseguinte, a jorrar daquele puro poder, e não o contrário.Assim como Deus, no preciso instante em que pronuncia o fiat lux mundano, tem que

ser uma instância exclusivamente ideal ou transcendente, a atestar a primazia da idéiasobre a matéria, da consciência sobre a experiência, do espírito sobre o corpo.2.1.8. Incisivamente, pois: se o Poder Constituinte fosse um poder jurídico, nãopoderia inaugurar o mundo das coisas jurídicas, pois o Direito mais inicial (que é aConstituição Positiva) deixaria de provir dele mesmo. Há uma esfera de decisãoanterior e superior a toda positividade jurídica, a toda estatalidade oficial, e a essaesfera pré e metajurídica de poder bem assenta o nome de esfera política.Exclusivamente política, porque enraizada e afinal transfundida na pólis. E porque éassim, cuida-se de esfera exclusivamente normante, e não simultaneamente normantee normada.2.1.9. É coberto de razão que o positivismo analítico realça a anterioridade do Poder

sobre o Direito, porque somente quem detém o poder - nele próprio se transfundindo-, é quem faz o Direito. Uma vez instituído, é que o Direito disciplina o exercício dopoder. Não, porém, o exercício daquele poder que tudo pode (acrescentamos), mas odesempenho do poder que já se instituiu por virtude do Direito mesmo.3 2.1.10. Poder e Direito são as duas faces de uma só moeda, na figuração deNORBERTO BOBBIO, que assim expõe o seu luminoso pensamento:"Creio não incorrer em pecado de presunção se disser que o fato de ter cultivadoestudos jurídicos e políticos me permitiu analisar os mil e um complicados problemasda convivência humana a partir de pontos de vista que se integram. Notei muitasvezes que, pelo menos na Itália, juristas constitucionalistas e cientistas políticos quese ocupam do mesmo tema, o Estado, muitas vezes se ignoram reciprocamente. Omesmo acontece na relação entre juristas internacionalistas e estudiosos das relações

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internacionais quanto à análise da organização dos Estados. Os dois pontos de vistasão, de um lado, o das regras ou das normas como preferem chamar os juristas, cujaobservância é necessária para que a sociedade esteja bem organizada, e, de outro, odos poderes necessários para que as regras ou normas sejam impostas e, uma vezimpostas, observadas. A filosofia do direito ocupa-se das primeiras; a filosofia

política, das segundas. Direito e poder são duas faces da mesma moeda. Umasociedade bem organizada precisa das duas. Nos lugares onde o direito é impotente, asociedade corre o risco de precipitar-se na anarquia; onde o poder não é controlado,corre o risco oposto, do despotismo. O modelo ideal do encontro entre direito e poderé o Estado democrático de direito, isto é, o Estado no qual, através de leisfundamentais, não há poder, do mais alto ao mais baixo, que não esteja submetido anormas, não seja regulado pelo direito, e no qual, ao mesmo tempo, a legitimidade dosistema de normas como um todo derive em última instância do consenso ativo doscidadãos" (em DE SENECTUDE - O Tempo da Memória, Editora Campus, 1997, p.169).2.1.11. Como visto, BOBBIO abre uma necessária distinção entre o fazer e o garantiras normas jurídicas, permitindo-nos deduzir que, se o Estado não detém o monopólioda produção do Direito, é, no entanto, a única instância dotada do poder oficial degaranti-lo (garantir o cumprimento do Direito, entenda-se). O que levou KARLPOPPER a formular este singelo e preciso enunciado:"Não existe liberdade que não seja garantida pelo Estado e, ao inverso, só um Estadocontrolado por cidadãos livres pode oferecer-lhes alguma dose razoável de segurança"(em THE SOCIETY AND ITS ENEMIES, 5ª edição, Revista Londres, 1966, pp.50/51).2.1.12. Em ultima ratio, poder e Direito são a primária dicotomia ou os dois maiselementares princípios de organização da vida social. Vida, que, sob o prisma

 jurídico, se constitui de relações verticais e de relações horizontais. Estas,pressupondo a igualdade de forças entre os respectivos protagonistas, e, aquelas, asuperioridade de uma parte sobre a outra. De todo modo, relações que fazem doDireito o complexo das condições existenciais da sociedade, na propaladaconceituação de IHERING. Ou como sentenciava TOBIAS BARRETO: "Perante aconsciência moderna, o Direito é o modus vivendi, é a pacificação do antagonismo dasforças sociais".4 

2.2. O caráter político do Direito posto pelo Poder Constituinte 

2.2.1. Complementemos a revelação dessa fotografia do poder e do Direito com a

afirmação de que, em se tratando do poder político, é na Constituição Positiva que osdois fenômenos culturais se dão mais firmemente as mãos. A Constituição é o Direitoque nasce daquele mais originário decisionismo, daquela vontade fundamentante quese contém no poder político. Donde a sua visualização como o primeiro ponto formalde encontro ou como o espaço inicial de integração das duas categorias sociais básicas(o poder e o Direito).2.2.2. É este panorama de integração que subjaz ao visual da Constituição como"estatuto jurídico do fenômeno político" (CANOTILHO), ou como "estatuto jurídicodo Estado" (JORGE MIRANDA). Não sendo à toa, portanto, o rótulo social e até

 jurisprudencial-doutrinário que toda Constituição porta de "Código Político" e de"Carta Política".

2.2.3. Em verdade, a Constituição é Código Político, sobretudo pela sua origem e pelo

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seu objeto. Pela sua origem, por advir do único poder que funda o Ordenamento semnesse Ordenamento mesmo se fundar sequer de modo reflexo (e já vimos que essepoder fundante do Ordenamento é eideticamente político). Pelo seu objeto, porqueesse objeto, sendo essencialmente o Estado, carreia para a Constituição a politicidadeque envolve tudo quanto se refira à estruturação estatal: o tipo unitário, ou federal...

de Estado; a forma republicana, ou monárquica de governo... do Estado; o sistemaparlamentar, ou presidencial de governo... do Estado; o modo independente eharmônico de relacionamento entre os órgãos elementares... do Estado; o sistemaeleitoral de investidura dos titulares dos órgãos legislativo e executivo... do Estado; arepresentatividade popular dos órgãos eminentemente políticos... do Estado; aabertura dos espaços de movimentação da cidadania e de criação dos direitos públicossubjetivos como limites à atuação... do Estado, etc., etc. Nada resta, praticamente,nesse patamar da organização básica do Estado que não seja entranhadamentepolítico. E quase tudo é entranhadamente político por dizer respeito a interesses quesão de toda a coletividade. Interesses da pólis ou da civitas que no Estado sepersonaliza juridicamente, compondo, de modo formal, o reino do universal ou 

 plurifinalístico; isto é, o reino do que há de mais abarcante, impessoal e permanente,que é o reino da política.2.2.4. Se bem observarmos, toda Constituição Positiva se estrutura formalmente empartes que, ora diretamente, ora indiretamente, põem o Estado como tema deconformação. Ele, Estado, circula por todos os recônditos da Magna Lei, variando oseu regime jurídico pelo modo (direto, ou de esguelha) como a Constituição mesmadispõe sobre esse transitar institucional. Com o que ficamos inteiramente à vontadepara imaginar a Constituição como a certidão de nascimento e a carteira deidentidade do Estado.2.2.5. Quanto à designação de "Código", referida à Constituição, entendemo-la

perfeitamente ajustável às Constituições de um só texto ou corpo único dedispositivos. Não àquelas Constituições que se derramam por atos legislativosesparsos. Nas primeiras - Constituições que se escrevem num corpo único dedispositivos -, comparecem pelo menos dois dos elementos que se presentificam emtoda codificação jurídica: a) a sistematização formal, traduzida na setorialização detemas afins, agrupados segundo o esquema relacional que vai do gênero à espécie; b)o propósito de substituir inteiramente a normatividade então vigorante sobre amatéria, de sorte que toda a prescritividade sobre tal matéria se contenha no novo eúnico ato legislativo, no momento da confecção desse ato.2.2.6. Já no tocante ao apelido de "Carta Política", ele se explica por ser aConstituição uma carta ou estatuto de direitos e garantias fundamentais, tudo,

naturalmente, perante o Estado e o Governo ou por intervenção deles. O quetambém confere a esse tema dos direitos e garantias fundamentais (neles tambémfigurantes a nacionalidade, a soberania popular e a cidadania) uma vívida coloraçãopolítica; pois é de toda a sociedade o interesse em que haja uma zona de especialproteção normativo-constitucional a tais situações jurídicas ativas.5 2.2.7. Nessa trajetória relacional do político para o jurídico, ou do Poder Constituintepara a Constituição, o fato que nos parece mais digno de nota reside em que o políticonão se deixa regrar pelo jurídico. Não se torna objeto das normas que passa a editar,ao reverso do que se dá com o poder já oriundo do Estado, que é um poder que se fazarqueiro e alvo das suas próprias setas normativas.2.2.8. Façamo-nos melhor entender: o poder político por excelência, que é o PoderConstituinte, não se deixa mesmo regrar pelo Direito. Isto é correto. Mas não significa

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estar ele completamente imune a parâmetros e até mesmo a freios sócio-culturais, noinstante em que elabora a Constituição. O paralelo com a obra de Deus não pode serfeito senão com temperamentos ou moderação, pois salta à inteligência que o autor daLei Maior sabe muito bem que as chances de efetividade da sua obra legislativadepende da estima social interna e do reconhecimento político externo que venha

a obter (e quanto mais forte a primeira, mais provável o segundo). E é mesmo naexpectativa da obtenção dessa dúplice "boas-vindas" à sua obra normativa que olegislador-mor tende a amainar em si os ímpetos de abusividade.2.2.9. Tudo tem limite nas coisas ditas humanas e o Constituinte não escapa àcontingência de ter que operar com um olho no padre e outro na missa; quer dizer,tanto compenetrado dos seus incondicionamentos formais e ilimitabilidade materialquanto do risco da inefetividade global da sua obra. Meio termo, destarte, entre odesmarcado e o demarcado (o desmarcado, no campo da positividade jurídica; omarcado, no campo sócio-cultural). Razão pela qual já dissemos, alhures, que, sobreos limites do Poder Constituinte, é comum vê-los comentados enquanto expressão doDireito Natural (SIEYÈS), ou das concepções axiológicas mais assentadas natrajetória da humanidade (PAUL BASTID). Até porque "O poder precisa ser forte,mas sua fortaleza decorrerá tanto do mecanismo que o envolva como, sobretudo, doconsenso nacional que logre despertar" (J. BLANCO ANDE, em "TEORIA DELPODER", Madri, Ed. Pirámide, 1977, p. 144).

2.3. O Poder Constituinte como realidade que fica do lado de fora da Constituição

2.3.1. A insubmissão do Poder Constituinte à sua própria obra legislativa 

2.3.1.1. Uma nova pergunta é de se fazer, com toda pertinência: e por que o Poder

Constituinte não está submisso ao Direito já positivado, nesse Direito embutido o deíndole constitucional originária?2.3.1.2. Uma primeira resposta: porque o Poder Constituinte está do lado de fora daConstituição. Faz a Constituição, claro, mas sempre do lado externo a ela. Não entrano corpo dos dispositivos constitucionais, porque, se entrasse, aí, sim, passaria a seruma realidade tão normante quanto normada. Conheceria condicionamentos formais efinitude material, como é próprio de toda instituição ou de todo instituto que se tornaobjeto de norma jurídica. Dedução: o poder que fica do lado de fora daConstituição, no ponto de partida, fica para sempre do lado de fora. Ao reverso, opoder que fica do lado de dentro da Constituição, no ponto de partida, fica parasempre do lado de dentro. 

2.3.1.3. Uma segunda e complementar resposta: o Poder Constituinte fica do lado defora da Constituição porque ele não é, nem pode ser, criatura da Constituição. É ocriador, unicamente. O escultor que faz a escultura, sem a menor chance de se deixarfazer por ela. Seria assim como Deus a ter uma parte de Si mesmo feita pelo mundoque Ele criou, o que está fora de toda cogitação filosófica não-materialista.2.3.1.4. E agora a terceira e definitiva resposta: o Poder Constituinte é o criador daConstituição porque ele, sendo a primeira manifestação da soberania, é o própriopovo. É a pólis por completo, no preciso instante histórico em que a pólis dá a siprópria a mais radical das conformações jurídicas: a conformação inicial e superior atodas as outras. Um tipo de conformação que pressupõe a intransigente postura docomeçar tudo de novo, no plano lógico das coisas, que é um começar por inteiro. No

atacado e de uma só vez (se assim preferir atuar o Poder Constituinte). Logo, a

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antessupor a desconsideração de todo o Direito preexistente, sobretudo o contido naConstituição fundante do antigo Ordenamento.6 2.3.1.5. A única parte da Constituição Positiva em que o Poder Constituinte pode falarsobre si mesmo, pode se auto-referir, é o preâmbulo de sua obra normativa. Aqui,sim, por se tratar de uma ante-sala ou de um prefácio do corpo de dispositivos da

Constituição, é o espaço possível para o Poder Constituinte projetar, de fora paradentro da Magna Carta, a diferença entre ele e o Poder Constituído. É o momento, omomento certo, o único momento logicamente cabível para o povo dizer que se reuniuem Assembléia Constituinte, assumiu sua natureza constituinte, como condição lógicade elaboração constitucional. Os outros momentos em que o povo legislativamente sereúne são momentos em que o povo já se paramenta ou usa a indumentária de umPoder simplesmente Constituído, porque o objetivo da reunião do povo em PoderConstituído é para a elaboração de um Direito pós-Constituição.7 2.3.1.6. Aquele primeiro momento (momento constituinte) é o único instante que vaida sociedade civil ao Estado, no seguinte sentido: a sociedade civil percebe, senteque tem a força de romper a sua habitual situação de reverência ao Direito posto peloEstado até então existente, ou por esse Estado garantido. É o mesmo que falar: sente,percebe a sociedade civil que ela própria é que pode impor um novo Direito a umnovo Estado e assim é que passa a se levantar como povo para escrever a epopéia desua auto-afirmação jurídica, numa determinada quadra histórica. Mas é claro queestamos a falar de sociedade civil como sociedade civilizadamente regida pelo Direitoque o Estado põe, ou garante. Realidade populacional que tem por contraponto oEstado. Daí a formação da seguinte dualidade básica:I - a sociedade civil, composta por agentes e instituições de natureza privada;II - a sociedade estatal, composta por agentes e instituições de natureza pública (e aoconjunto das ações que as pessoas naturais e os grupos particulares praticam é que se

aplica o designativo de iniciativa privada ou setor privado, tanto quanto se reserva aexpressão iniciativa pública ou setor público para o conjunto das ações que os agentese as entidades estatais desencadeiam).2.3.1.7. Já o segundo momento (momento constituído), é um dos muitos instantes que vão do Estado à sociedade civil, no sentido de o novo Estado poder impor àcoletividade, renovadamente, o Direito que nasce dos próprios órgãos dele, Estado, ouo Direito que, embora não-diretamente nascido dos próprios órgãos do novo Estado,seja pelo Estado garantido (caso do Direito Consuetudinário e daquelas normas

 jurídicas infraconstitucionais que, anteriores à nova Constituição, com a novaConstituição rimam em conteúdo).2.3.1.8. Num novo esforço de síntese, diríamos: no momento em que a Assembléia ou

Convenção Constituinte promulga sua obra legislativa (o Magno Texto), ela  morre de parto, sem remissão. Tem o destino trágico (ou glorioso?) do louva-a-deus macho,cuja cabeça é devorada pela fêmea durante o acasalamento. Só uma outra Assembléiaou Convenção Constituinte é que pode gestar uma outra Constituição. Já aAssembléia Constituída, geralmente positivada com o nome de "Parlamento", "CortesGerais" ou "Congresso Nacional", pode dar à luz quantos rebentos legislativosquiser. Ela existe para operar em regime de permanência, sem qualquerpredeterminação quanto ao número de atos legislativo-materiais a produzir.

2.3.2. A Assembléia Nacional Constituinte como órgão de presentação dasociedade

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2.3.2.1. A Assembléia Constituinte é órgão da sociedade, e não do Estado. É nela quea sociedade se " presenta", para usarmos de vocábulo cunhado por PONTES DEMIRANDA, a propósito de outro assunto. E se presenta, por dispensar arepresentação do Estado. Por prescindir da intercalação do Estado entre ela(sociedade) e os respectivos componentes individuais e grupais.

2.3.2.2. A seu turno, a Assembléia Constituída é órgão do Estado, e não propriamenteda sociedade. É órgão encarregado da representação (não da presentação) dasociedade, porque o Estado de que ela faz parte é o ser que personaliza juridicamentetodo o corpo social. E por ser a Assembléia Constituída um órgão de representação,conhece condicionamentos e limites que não prevalecem para o órgão de presentação.2.3.2.3. Esta separação radical entre os dois órgãos legiferantes é da natureza dascoisas, porque os órgãos de presentação estão para o corpo social assim como ofígado, o cérebro, o coração, figurativamente, estão para o corpo humano. Fígado,cérebro, coração, tudo se entronca no mesmo corpo físico. Desse corpo eles não sedistinguem, porque são o corpo mesmo. Já os órgãos de representação, pertencem,como afirmado, a um outro ser que não o corpo social. E esse outro ser é o Estado,pois a representação pressupõe duas entidades ou dois corpos distintos: o dorepresentante e o do representado. Afinal, representar é tornar próximo... o distante;presente... o ausente; visível... o invisível, fato que subjaz a formulações teóricas desteporte:"Não há proposição mais evidentemente verdadeira do que esta - todo ato de umaautoridade delegada, contrário aos termos da delegação em virtude da qual concedeuessa autoridade, é nulo. Conseqüentemente, nenhum ato legislativo, infringente daConstituição, pode ser válido. Negá-lo importaria em afirmar que o delegado ésuperior ao comitente; que o servo pode mais que o senhor; que os representantes dopovo têm mais faculdades que o próprio povo; que homens que obram em virtude de

poderes conferidos, podem fazer não só o que os poderes outorgados não autorizam,como o que proíbem" (PEDRO LESSA, referido na página que antecede o sumário dolivro "CONTROLE JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE", da muitoboa lavra do jurista ZENO VELOSO, Editora CEJUP, 1998).

2.3.3. O Poder Constituinte e sua impossibilidade de auto-regulaçãoconstitucional

2.3.3.1. Outra importante discriminação, já tenuemente reportada: as normas editadaspelo órgão ou Poder Constituído podem, perfeitamente, se referir ao seu editor (oEstado). Mas a obra do Poder Constituinte está logicamente impedida de falar

sobre o seu autor. É deduzir: o Direito pós-Constituição pode dispor sobre o Poderque sobre ele dispõe, desde que nos marcos da Constituição, enquanto a Constituiçãomesma não pode dispor sobre o Poder que sobre ela dispõe (o PoderConstituinte), por nenhum modo.2.3.3.2. A se trabalhar com a idéia da possibilidade de o Poder Constituinte seauto-referir normativamente, ter-se-ia o quê? Uma geração a querer negar às demais apossibilidade de acordar em si mesmas a força geratriz da substituição de umaConstituição por outra. Seria atentar contra a própria natureza do Poder Constituinte,que, tendo a Constituição inteiramente à sua mercê, não pode ficar à mercê dessamesma Constituição. Completa inversão de valores.2.3.3.3. Essa total inversão de valores acarretaria, de mais a mais, indevida mescla do

Poder Constituinte com as pessoas naturais que, em assembléia deliberativa, o

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exercitam concretamente. É esse colégio de pessoas naturais que não sobrevive,enquanto assembléia constituinte mesma, à Constituição Positiva que ele vier apromulgar. Por isso que a Magna Carta pode dispor sobre o destino dele, seja paravedar sua transformação em assembléia constituída, seja para permiti-lo.2.3.3.4. Sobre o destino do Poder Constituinte, contudo, nada pode ser normado. Esse

Poder não se exaure jamais na obra que edita. Sobrevive ao seu próprio labor (massempre do lado de fora) e é assim que pode gestar quantas Constituições quiser. Aqualquer tempo.2.3.3.5. Caso o Poder Constituinte pudesse entrar na Constituição como criatura dela,teríamos o despautério de um legislador que já não se contenta em prescrever: queroatualmente o que o ser humano médio quer e provavelmente continuará aquerer, para adotar esta outra fórmula de prisão perpétua do pensar dos pósteros: equero também que a minha vontade atual seja toda a vontade que esse mesmoser humano médio possa vir a ter pelos tempos a fora.2.3.3.6. Semelhante pretensão de aprisionamento de todo o pensar coletivo do porvirseria um ato de insanidade tal que corresponderia a proibir o ser humano de respirar.Nenhuma eficácia teria esse tipo de normação, pois o Poder Constituinte é ser que nãocomporta transmutação em dever-ser. Tem que permanecer no mundo dos fatos, poralbergar ou potencializar ação que "no puede localizarse por el legislador, niformularse por el filósofo; porque no cabe en los libros y rompe el cuadro de lasConstituciones; si aparece alguna vez, aparece como el rayo que rasga el seno de lanube, inflama la atmósfera, hiere la víctima y se extingue" (DONOSO CORTES),para ressurgir Deus sabe quando (completamos).2.3.3.7. Seria um contra-senso, portanto, que o Poder Constituinte se auto-regulasseno corpo de sua própria obra legislativa, pois o certo é que ele perpassa o tempointeiro o corpo social, ora de modo efetivo, ora latente. E quando vem a se historicizar

(é dizer: quando vem a se efetivar), não pode deixar de ficar do lado de fora daConstituição, exatamente para não recusar a cada geração o que é da natureza decada geração: despertar em si, a qualquer instante, em qualquer período, a forçaconstituinte.2.3.3.8. Em termos quiçá mais elucidativos: conter a Constituição qualquerdispositivo sobre o exercício da função constituinte é convocar o próprio coveiro delamesma. É nascer o Magno Texto com sua explícita vocação para o suicídio, pois otípico de quem exerce a função constituinte não é o poder de destroçar a Constituiçãopreexistente? Zerar a contabilidade jurídica? Passar a borracha no Direito velho ecom o lápis escrever o Direito novo, tudo na dimensão do atacado normativo?2.3.3.9. É preciso não confundir, jamais, o fenômeno da revogação de uma

Constituição por outra com a idéia de auto-revogação constitucional. A primeira nãotem nada a ver com a segunda, pois a segunda (auto-revogação do Magno Texto) éalgo inteiramente impensável na fisiologia do Poder Constituinte, e muito menos nado Poder Constituído. A Lei Maior não pode ter, está logicamente proibida de tereficácia autodemolidora, nem mesmo a prazo ou diferidamente, a não ser naquelaparte normativa por ela mesma nominada de "disposições transitórias".2.3.3.10. Caso pudesse embutir na sua Constituição uma cláusula de eficáciaautodemolidora, a Assembléia Constituinte estaria a cometer o dislate de convocaroutra assembléia igualmente constituinte para preencher o vácuo de Constituição e jánada mais impediria que essa outra assembléia convocasse uma terceira, e a terceirafizesse o chamamento de uma quarta, de modo a se perder no infinito um tipo deregração que privaria o povo de se autoconvocar ou de ser por outra forma convocado

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para vivenciar seu momento constituinte. Como se o momento constituinte não fosseuma realidade inexoravelmente situada no mundo do ser.2.3.3.11. Acresça-se: o Poder Constituinte que viesse a dispor sobre si mesmo, nolastro formal da sua Constituição, estaria semeando no ar . Plantando no vazio, poisnão ficaria preso a tal normatividade. Poderia desrespeitá-la a qualquer momento, sem

nenhum controle por parte de órgão estatal, pois todo novo querer normativodiscrepante que ele viesse a externar teria sempre (como tem) a força de uma novaConstituição. De mais além, se uma determinada instância constituinte pudesseentronizar outra no palco das realidades jurídicas, essa outra instância já não seriaórgão de presentação do povo, mas de representação daquele primitivo órgão desua convocação. Um órgão constituinte a repassar poderes para outro (?), quebrandoo vínculo essencial (porque direto) entre o povo e a instância formal de elaboração doMagno Texto.

2.3.4. O Poder Constituinte e seu campo divisional com o Poder Constituído

2.3.4.1. Desponta claro, então, que o campo divisional entre o Poder Constituinte e opróprio Poder Reformador tem que ser precisa e claramente demarcado, para que nãose transija com o cientificamente intransigível: o Poder Constituinte é o poder dedispor sobre o todo da Constituição, e não menos; o Poder Reformador (que é umpoder estatal e, portanto, constituído) é o poder de dispor sobre partes da Constituição,e não mais.2.3.4.2. Por comparação, averbemos que o mundo cuida de si próprio, uma vez criado,mas não passa a cuidar do Criador. O mundo vela por si, dispõe sobre si mesmo,porém sem poder se substituir ao Criador, apagando a assinatura que o originárioAutor deixou em Sua obra. O mundo é o Poder Constituído. O Criador, o Poder

Constituinte. Este é que dispõe originariamente sobre o universo, o orbe, o cosmos,debaixo, contudo, de um único limite material lógico: o não - poder permitir que omundo se transforme tanto por conta própria a ponto de dar a si mesmo um novocomeço.2.3.4.3. Tudo isto é como dizer, numa fala mais aproximativamente jurídica: aConstituição cria o Estado, dotando-o do poder de se completar por conta própria,sem, contudo, deixar que esse Estado possa trocar de Constituição. Limitaçãointrínseca insuperável, porque só uma Constituição pode trocar o Estado por outro.Não um Estado a trocar a sua Constituição por outra. E mais: o Direito feito para oEstado tem de permanecer o referencial do Direito feito pelo Estado, durante todo otempo de vigência da obra que uma dada Assembléia Constituinte vier a promulgar.

2.4. O povo enquanto sociedade política e enquanto sociedade civil

2.4.1. Crise de existência versus existência de crise 

2.4.1.1. Neste novo segmento especulativo, comecemos por retomar a idéia de que, no justo momento em que a sociedade consegue dar a si mesma uma nova Constituição,um novo Estado e uma nova Ordem Jurídica, ela, sociedade, já não é uma sociedadecivil. Ela se transmuda em povo. Era uma população, convenhamos, e de repentesobe à dimensão de povo. Salta do meramente demográfico e econômico para opolítico e histórico. Assim como a água em estado líquido muda a sua forma para se

transformar em vapor, sob o efeito do aumento de sua temperatura a um determinado

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grau. Em estado líquido, a água só se movimenta por si mesma, descendo. Em estadovaporoso, subindo (prova de que, embora a água permaneça água - o salto químico não chega a ocorrer - o seu modo de estar-no-mundo ou de se manifestar num dadomomento já não é o mesmo).2.4.1.2. O povo, por seu lado, é a perfeita encarnação de uma sociedade que já não

pode ser chamada de simplesmente civil, porque, nela, o modo empírico ou atual deser já é diferente do imediatamente anterior. Mais lógico é dizer, então, que o povo éa encarnação da sociedade política; isto é, de uma sociedade que se auto-reconhececomo a subjetivação de um poder acima do Direito e do Estado, que só pode ser umpoder exclusivamente político. Um poder que se aloja nos páramos dasuprapositividade jurídica e da supraestatalidade oficial então vigentes.8 2.4.1.3. Nesse contexto do puro poder político, o povo se torna, por exclusão: a) umasociedade temporal e excepcionalmente não-estatal, na medida em que insubmissa aoEstado até então existente; b) uma sociedade também temporal e excepcionalmentenão-civil, na medida em que juridicamente incivilizada.2.4.1.4. Que pretendemos dizer com sociedade não-juridicamente civilizada?Queremos dar conta de uma sociedade que recupera o seu tônus politicamenteselvagem (falemos assim) do começar tudo de novo. Do apagar todo o Direitopreexistente, do negar as instituições nascidas à sombra de um Estado sobre o qual épreciso jogar, sem tardança, a última pá de cal. Isto porque as instituições estatais atéàquele momento estruturadas entraram em colapso ético, ou funcional, ou político,que pode ser também um colapso a um só tempo ético, funcional e político. Perderama sua necessária condição de locomotivas sociais. Esclerosaram-se ou esgotaram-setanto no seu papel institucional de liderança que delas já não se espera senão empurrarcada vez mais a população para o pior dos abismos, que é o vácuo de poder.9 2.4.1.5. Tudo isto se traduz no desenho de uma quadra histórica em que o povo tem a

certeza de que o Estado até então operante (mais certo seria dizer inoperante) já fezdo presente um tempo que recende a passado, que tem o aspecto bolorento das coisascaquéticas e sem a mínima condição de antecipar o futuro. Por isso é que o povoproclama para si mesmo e para o orbe inteiro que é nele próprio que se encontra todaa sapiência política, à guisa do que, certa feita, sentenciou HERMANN HESSE:"A sabedoria política, hoje em dia, não se acha onde se encontra o poder político.Urge que toda uma corrente de inteligência e de intuição irrompa das camadas nãooficiais, quando se trata de impedir as catástrofes ou de atenuar-lhes os efeitos"(pensamento recolhido do livro PARA LER E PENSAR, Editora Record, 1971, 9ªedição, p. 15).2.4.1.6. É fundamental essa compreensão do povo enquanto instância que se assume

como sociedade política, porque esse momento de excitação histórica única é ummomento único de excitação histórica pelo mais grave dos motivos: o povo a tomarconsciência de que está engolfado numa existência de crise. Não apenas numa crisede existência, que é algo passageiro e para cujo enfrentamento as instituições oficiaisainda dispõem de aptidão jurídica e vontade política; ou seja, apetite eresponsabilidade para continuarem a serviço do bem comum.2.4.1.7. Em momento que tal, momento constituinte, o povo experimenta a sua maisgrave hora de fazer destino, para tomarmos de empréstimo um verso do poetagoiano GABRIEL NASCENTES. Hora de fazer uma nova experiência global consigomesmo, que é uma função indelegável (ninguém mais pode fazer experiência tãoestrutural com todo o corpo social). E a nova Constituição que desse momentoconstituinte irrompe, triunfante, é o marco jurídico da superação da referida existência

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nacional de crise. O único remédio capaz de debelar a enfermidade maior do vácuo depoder e que abre para o povo a perspectiva de uma vida de permanenteauto-afirmação. Uma espécie de luz no fim do túnel, a reaglutinar energias físicas,valores morais e ideais cívicos de que todos precisam para tocar um novo projetoglobal de vida.10 

2.4.1.8. Como certa feita escreveu MAQUIAVEL (terceiro livro de Tito Lívio), "NumEstado, como no corpo humano, há certos elementos que se ligam aos outros e cujapresença requer, de quando em quando, um tratamento clínico". É necessário, nessasocasiões (o pensador florentino é quem raciocina), que uma intervenção recupere oEstado para os princípios sobre os quais o poder público está assentado. E se falta essaintervenção, o que sucede? O mal irá crescendo a tal ponto que já não poderá sereliminado senão pela eliminação do próprio Estado. É a hora de fazer destino -voltamos a dizê-lo -, que o povo mais decididamente vive pela sua transmutação desociedade civil em sociedade política.

2.4.2. O momento constituinte como estado de plenificação decisória de um povo 

2.4.2.1. Essa generalizada compreensão de estado de falência das instituições comobackground da atuação constituinte é de grande relevo teórico, pois contribuidecisivamente para separar o joio do trigo. Só o Poder Constituinte pode agir nopressuposto do colapso cardíaco das instituições. Somente ele pode normar emtermos iniciantemente (ou reiniciantemente) globais, que é a mais alta expressão doatacado normativo de um povo; pois o de que se trata é viver a epopéia do começartudo de novo. Este o seu espaço irrepartido de ação jurídica, aquilo que só ele podefazer. O que nos traz à memória esta passagem de velha música de IVAN LINS,cantor popular do Brasil: "Ô Madalena, o que é meu não se divide").

2.4.2.2. Com este nosso modo pessoal de qualificar o povo como sociedade política,durante o momento constituinte por ele experimentado, bem sabemos estar a dissentirde autores da mais forte compleição intelectual, como AUSTIN, GRAMSCI,BOBBIO e MARCELO CAETANO, que sinonimizam Estado e sociedade política.Todavia, se o Estado é a sociedade política, se a sociedade política é o Estado, quenome dar à sociedade humana no preciso instante em que ela funda a própriasociedade estatal? Em que ela já não aceita permanecer como o cordeiro jurídico emque a sociedade "civil" termina sendo, naquela situação concreta em que os lobos da

 política oficial já serraram todas as grades jurídicas das suas tocas? Ou naquelassituações em que as forças calamitosas do acaso, forças da natureza ou da História(tanto faz), são protuberantemente superiores ao tino e à coragem pessoal dos

governantes?2.4.2.3. Debaixo de todas as vênias, pensamos que a sociedade humana que plenificao seu próprio ser político e jurídico, alçando-se à condição de povo, é uma sociedadeque se triparte em: a) sociedade política, no instante em que manifesta,primariamente, a sua soberania; b) sociedade estatal, quando vista sob o prisma dasua personalização jurídica ou do poder constituído; c) sociedade civil, quando"civilizadamente" atuante nos marcos da sociedade estatal que se tornou efetiva porefeito, justamente, da primária manifestação da soberania (cujo nome técnico é "PoderConstituinte").2.4.2.4. É claro que o modo normal ou habitual de ser do povo é sob a forma desociedade estatal e de sociedade civil. Assim é como o vemos na cotidianidade dos

nossos dias. Esta é a dualidade básica. Entretanto, de forma episódica ou excepcional

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de turbinada inquietação histórica, o povo desperta em si mesmo o poder (sempreadormecido ou latente ou virtual) de desconstituir a velha ordem estatal e deconcomitantemente constituir a nova ordem. E é nesses instantes de legítima defesada sua identidade e da sua sobrevivência, instantes de plenificação decisória do seupróprio ser, que o povo empunha o cetro de soberano e passa a atuar como sociedade

exclusivamente política. Uma realidade que se define por exclusão, visto não ser nemestatal nem civil.2.4.2.5. Conotativamente, esse instante máximo de feeling ou excitação histórica,ensejador da corporificação de uma sociedade que já não é nem estatal nem civil, éalgo assim como a luz crepuscular, por não ser nem a luz do dia nem a luz da noite. Éuma luz que ninguém sabe de onde vem, porque não tem um ponto visível de partidasolar, ou de partida lunar. Uma luminosidade que parece destituída de qualquer fonte,mas que procede de uma causa, sim. Apenas não temos um nome apropriado paracolocar nessa fonte de luz que se não deixa ver pelo olho humano.2.4.2.6. Ainda por apego a figurações, imaginemos a processualidade daqueles doisestados líquido e vaporoso da água e melhor entendermos a dialética da relação quetranscorre entre a sociedade civil e a sociedade política. A água, por efeito do calor daterra, evapora e vai se condensar na atmosfera, formando nuvens. Empós, já por efeitodo maior frio das alturas e de outras condições atmosféricas, desce sob a forma dechuva e assim recupera o seu estado líquido. Com alguma similitude, a sociedadecivil, por efeito de uma alta, uma altíssima temperatura existencial, um transehistórico verdadeiramente insólito, ascende à condição de sociedade política.Posteriormente, com a serenidade dos ânimos ou o resfriamento da temperaturaexistencial (a nova Constituição que se faz globalmente efetiva é que recoloca ascoisas em seu ponto de normalidade), retoma o seu estado habitual de sociedade civil.E ela assim permanece, até que uma outra anormal elevação histórica de temperatura

determine a sua metamorfose em sociedade política. Tudo lembra um aparelhoeletrônico auto-reverse, um bumerangue, talvez, com a particularidade de que oestágio de sociedade civil só raramente avança para o estágio de sociedade política(nos Estados Unidos da América, tal situação transicional somente se deu no distanteano de 1787, quando da transformação da confederação americana em federação).

2.5. A sociedade política em SIEYÈS

2.5.1. Todas estas coisas que estamos a predicar à sociedade política é aplicável, emlarga medida, à realidade humana global a que SIEYÈS chamava de "nação". O queele tinha por nação, nós, nestes escritos, temos por sociedade política ou povo na sua

dimensão constituinte. Há muita similitude entre o raciocínio aqui expendido eaquelas idéias básicas do famoso teórico e revolucionário francês, a propósito dadiferença qualitativa entre o contingente humano que se faz matriz de um poderconstituinte e esse mesmo contingente que se faz o berço de um poder apenasconstituído.2.5.2. As idéias básicas do Abade, aquelas de que nos servimos para os fins destanossa monografia, estão lançadas no incendiário panfleto Q'U-EST-CE QUE LETIERS ÉTAT? (Liber Juris, pp. 113 e seguintes). São idéias que, pela sua extremaimportância, passamos a transcrever de modo quiçá excessivo, mas que pensamosencontrar justificativa no fato de que elas parecem condenadas a cair no esquecimentodaqueles juristas hodiernos que, sob a regência desse maestro ideológico de nome

neoliberalismo, tentam esmaecer as linhas de confrontação entre o Poder Constituinte

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e o Poder Constituído. Vejamo-las:"Em toda nação livre - e toda nação deve ser livre - só há uma forma de acabar com asdiferenças que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que sedeve recorrer, é à própria nação. Se precisamos de Constituição, devemos fazê-la. Sóa nação tem direito de fazê-la.

"Não é próprio ao corpo dos delegados mudar os limites do poder que lhe foiconfiado. Achamos que esta faculdade seria contraditória consigo mesma."Assim, o corpo dos representantes, a que está confiado o poder legislativo ou oexercício da vontade comum, só existe na forma que a nação quis lhe dar. Ele não énada sem suas formas constitutivas; não age, não se dirige e não comanda, a não serpor elas."A esta necessidade de organizar o corpo do governo, se quisermos que ele exista ouque aja, é necessário acrescentar o interesse que a nação tem em que o poder públicodelegado não possa nunca chegar a ser nocivo a seus comitentes. Daí as inúmerasprecauções políticas que foram introduzidas na Constituição, e que são outras tantasregras essenciais ao governo, sem as quais o exercício do poder se tornaria ilegal."Entretanto, de acordo com que critérios, com que interesses se teria dado umaConstituição à própria nação? A nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo.Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. Antes dela e acima dela só existe o direitonatural. Se quisermos ter uma idéia exata da série das leis positivas que só podememanar de sua vontade, vemos, em primeira linha, as leis constitucionais que sedividem em duas partes: umas regulam a organização e as funções do corpolegislativo; as outras determinam a organização e as funções dos diferentes corposativos. Essas leis são chamadas de fundamentais, não no sentido de que possamtornar-se independentes da vontade nacional, mas porque os corpos que existem eagem por elas não podem tocá-las. Em cada parte, a Constituição não é obra do poder

constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado podemudar nada nas condições de sua delegação. É neste sentido que as leisconstitucionais são leis fundamentais."O poder só exerce um poder real enquanto é constitucional. Só é legal enquanto fielàs leis que foram impostas. A vontade nacional, ao contrário, só precisa de suarealidade para ser sempre legal: ela é a origem de toda legalidade."Não só a nação não está submetida a uma Constituição, como ela não pode estar, elanão deve estar, o que equivale a dizer que ela não está."Devemos conceber as nações sobre a terra como indivíduos fora do pacto social, ou,como se diz, no estado de natureza. O exercício de sua vontade é livre e independentede todas as formas civis. Como existe somente na ordem natural, sua vontade, para

surtir todo o seu efeito, não tem necessidade de levar os caracteres naturais de umavontade. Qualquer que seja a forma que a nação quiser, basta que ela queira; todas asformas são boas, e sua vontade é sempre a lei suprema."Mas é verdade que uma representação extraordinária não se parece em nada com alegislatura ordinária. São poderes diferentes. Esta só pode se mover nas formas econdições que lhe são impostas. A outra não está submetida a nenhuma forma emespecial; se reúne e delibera como faria a própria nação se, mesmo composta por umpequeno número de indivíduos, quisesse dar uma constituição a seu governo. Não setrata de distinções inúteis. Todos os princípios que acabamos de citar são essenciais àordem social; esta não seria completa se encontrasse um só caso para o qual não fossepossível indicar regras de conduta capazes de resolvê-lo"."Um corpo submetido a formas constitutivas só pode decidir alguma coisa segundo a

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Constituição. Não pode dar-se outra. Deixa de existir a partir do momento em que semove, que fala, atua de forma diferente das que lhe foram impostas. Os Estadosgerais, mesmo quando reunidos, são incompetentes para decidir sobre a Constituição.Este direito pertence unicamente à nação, independente, não cansamos de repetir, dequalquer forma e qualquer condição".

2.5.3. Parece-nos claro, solarmente claro, que o abade EMMANUEL JOSEPH DESIEYÈS falava de nação como até hoje a vivenciam os ingleses: uma coletividadehumana intertemporal, uma linha imaginária entre o passado, o presente e o futuro deum povo. Um enlace anímico da ancestralidade, da coetaneidade e da posteridade, quefaz da nação (o cacófato "danação" é inevitável) uma realidade eminentemente tradicional. A tradição como o forno ou o cadinho histórico no qual se tempera o açoda nacionalidade.2.5.4. Pergunte-se a um inglês se a Rainha da Inglaterra goza de legitimidade política,e certamente ele responderá que sim. A legitimidade que advém desse arraigadosentimento coletivo de nação como algo inda mais denso, inda mais representativoque o conceito de povo. O povo, para eles, é uma realidade presente. É o aqui e oagora da população de um País. A soma das pessoas vivas. A nação é muito mais,porque adiciona ao presente a dimensão do passado e do futuro desse mesmo povo.Assim como se dá com os membros de uma família tradicional, que mantêm osbrasões dos seus antepassados e tudo fazem para repassar tais insígnias (com tudo departicularmente honroso que elas simbolizam) às gerações porvindouras.2.5.5. A esse panorama conceptual de nação bem se ajusta, supomos, a festejadaproclamação espiritual que RUY BARBOSA fez a respeito de pátria, nestes escritosque reproduzimos de memória: Pátria não é um sistema, nem uma seita, nem ummonopólio, nem uma forma de governo. Pátria é o céu, o solo, o clima, a tradição, aconsciência, o lar. O berço dos filhos e o túmulo dos antepassados. A comunhão da

lei, da língua e da liberdade.2.5.6. Diríamos, então: a distância que vai da realidade populacional à realidadenacional é a mesma que vai do conhecimento à sabedoria. Cada nova geração édetentora de mais conhecimentos do que as anteriores, porém a sabedoria, averdadeira sapiência, é transgeracional. Só à nação pertence.

2.6. O caráter democrático-formal do Direito posto pela sociedade política 

2.6.1. O confronto entre o princípio da racionalidade constitucional e o princípiodemocrático 

2.6.1.1. E aqui já começamos a enfrentar a recorrente questão de saber até que pontoexiste legitimidade democrática numa Constituição que submete aos seus termos asgerações futuras. Que não se permite receber, senão com severos limites, modificaçãopelo Poder Constituído. É o que se tem apelidado de  paradoxo da onipotência, tantona Teoria da Constituição em geral quanto na Teoria do Poder Constituinte emespecial. Paradoxo, que JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO assim expõe:"Em teoria da Constituição o paradoxo aqui subjacente é o paradoxo daomnipotência: poderá um corpo soberano parlamentar com poder para fazer leis emqualquer momento limitar o seu próprio poder de fazer essas leis? No caso das normasconstitucionais o paradoxo é evidente: as normas constitucionais irrevisíveisassegurariam a omnipotência dos seus autores sobre as gerações futuras o que será

radicalmente contrário às regras da democracia. Por outro lado, se as normas não se

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encontrarem sujeitas a limites, conclui-se que é permitida a sua auto-aplicação. Asnormas da revisão aplicam-se elas próprias para a sua revisão, se não existirem outrasnormas a fazê-lo. Peter Suber resume, assim, o seu raciocínio (in O Paradoxo da

 Autorevisão no Direito Constitucional, in Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa,Vol. XXXI, 1990, p. 99): se as normas jurídicas que autorizam a mudança podem ser

utilizadas para se alterarem a si mesmas, chegamos por esta via a um paradoxo e umacontradição; mas se não são empregues para tal fim (e se não há uma norma superior aautorizar essa alteração) temos então normas imutáveis. Paradoxo e imutabilidadeacabam assim por constituir um difícil dilema para os juristas e cidadãos dasdemocracias ocidentais. Parece que temos de prescindir, ou de um elemento central daracionalidade jurídica ou de um elemento central da teoria democrática" (pp. 6 e 7 daconferência OS HOMENS FAZEM AS CONSTITUIÇÕES MAS NÃO SABEM ASCONSTITUIÇÕES QUE FAZEM, distribuído pelo autor português aos participantesdo VII SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS JURÍDICOS-SENEJ, realizado emAracaju, Sergipe, no período de 05 a 10 de maio de 1998).2.6.1.2. Esse "inquietante" paradoxo da onipotência, traduzido no dilema de se ter quesacrificar, ou um elemento central da racionalidade jurídica (a irreformabilidade dascláusulas de reforma da própria Constituição), ou um elemento central do princípiodemocrático (a não-escravização normativa das futuras gerações) não nos pareceinquietante por nenhum modo. Vemo-lo mesmo como um falso problema, pois:I - em se tratando de uma Constituição geneticamente autoritária, ou por qualquerforma imposta por um grupo que toma de assalto o Governo, não ungida, portanto, na 

 pia batismal do voto popular, a questão democrática diz respeito é à própriaConstituição, e não à sua reforma. Ela, Constituição, é que já porta consigo o

 pecado original da não-participação popular, de maneira a somente ter a chance deganhar legitimidade pelo seu prolongado exercício ou duradoura efetividade

(legitimidade a posteriori, tácita ou não-expressa, que é sempre uma legitimidadeprecária: legitimidade pela metade, porque somente de conteúdo, pois não há comoconvalidar o vício processual de origem);II - em se tratando, porém, de uma Constituição votada por uma Assembléia ouConvenção Constituinte que se forme por eleição geral (é essa modalidade de colégiodeliberativo que tem sido alvo desta nossa teorização), ela já se impõe comodocumento jurídico de berço democrático, e, por isso, recobre com o seu halo ou a suaaura castiçamente popular as sucessivas gerações de destinatários normativos. Não háespaço psicológico para as novas gerações se sentirem democraticamente acuadas -menos ainda castradas -, e a bicentenária Constituição dos Estados Unidos daAmérica bem o comprova: a mais sólida nação democrática do planeta a conviver

com a mais antiga das constituições escritas. Onde, pois, "o paradoxo daomnipotência"?11 2.6.1.3. Com efeito, quando se elege uma Assembléia Constituinte já se sabe que ela

 presenta a sociedade política ou nação, no sentido que o vocábulo "nação" erautilizado por SIEYÉS e que interpretamos como uma coletividade humana de superiorestatura ou eminência ímpar, uma verdadeira comunidade, à face da sua dimensãocristalinamente espiritual ou de autoconsciência. Uma comunidade, cuja característicanuclear é justamente a intertemporalidade (o espírito é atemporal). Queremos dizer:é próprio desse tipo de organismo ou ente coletivo a aptidão de ultrapassar asbarreiras do tempo, de sorte a poder conciliar na sua obra legislativa estrutural (aConstituição) interesses que traduzam reverência à cultura e à memória nacional, oatendimento das prementes necessidades da população viva e ainda por cima a

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 pavimentação da estrada pela qual transitarão, em presumível segurança, os pósteros.Este o sentido psicossocial, histórico e também racionalmente jurídico da eleição deuma Assembléia que só é nacional por ser constituinte e só é constituinte por sernacional.12 2.6.1.4. Agora, se desde a sua originária prescritividade, ou no transcurso do tempo, a

Constituição vier a padecer do grave defeito de não haver costurado a unidadepossível das ideologias, ou ficar muito abaixo do padrão médio de moralidade ehumanismo, cair no descrédito geral e a sociedade civil passar a sentir aquele terríficopresságio de que está à beira do mais fundo abismo da ausência de poder, da anomiado Ordenamento por inteiro, qual é a lição da História? A História nos diz que asociedade civil toma por si mesma o comando do processo político-jurídico e partepara a formação de uma nova Assembléia Nacional Constituinte.2.6.1.5. Como tantas vezes dito, é aí que a sociedade civil se transmuda em sociedadepolítica e passa a vivenciar a sua dimensão constituinte, para o efeito prático de mudarde Constituição. Na sedutora linguagem de SIEYÈS, é aí que o povo se transforma emnação e lega à posteridade a imorredoura lição de que"a comunidade não se despoja do exercício de sua vontade. É sua propriedadeinalienável. Só pode delegar o seu exercício. (...) Seria ridículo supor a nação ligadapelas formalidades ou pela Constituição a que ela sujeitou seus mandatários. Se paratornar-se uma nação, a sua vontade tivesse que esperar uma maneira de ser positiva,nunca o teria sido. (...) A nação é tudo o que ela pode ser somente pelo que ela é". (...)Primeiramente, uma nação não pode nem alienar, nem se proibir o direito de mudar; equalquer que seja a sua vontade, ela não pode cercear o direito de mudança assim queo interesse geral o exigir. Em segundo lugar: com quem se teria comprometido estanação? Eu entendo que ela pode obrigar seus membros, seus mandatários, e tudo oque lhe pertence; mas será que ela pode impor deveres a si mesma? Sendo as duas

partes a mesma vontade, ela pode sempre desobrigar-se de tal compromisso" (ob. cit.,pp. 115, 118 e 119).

2.6.2 Fricção entre nações versus sucessividade geracional no interior de umamesma nação. 

2.6.2.1. Onde, pois - reperguntamos -, a ofensa ao princípio democrático, ao menos noplano formal ou da eleição dos membros da Constituinte? Sendo a nação ou sociedadepolítica o modo constituinte de ser do povo, ela tende a permanecer a mesma eúnica nação ou sociedade política pelos tempos afora, embora com esta inescapáveldistinção: no momento constituinte, a nação está acordada, atuante, porque

 presentada; no momento constituído, ela jaz adormecida, pode tirar a sua sesta,porque representada. Mas o fato é que a nação que elaborou a Constituição étendencialmente a mesma que se decide por um outro Código Supremo, pois nãodissemos que o traço eidético da nação era (e é) a intertemporalidade? Não há, emprincípio, duas nações ou duas sociedades políticas: uma que fez a Constituição eoutra que se sente oprimida por essa mesma Constituição. E por isso é que as geraçõesque se sucedem no tempo não vêem a Constituição como o símbolo da ditadura daprimeira geração constituinte. Queremos dizer: não existe esse tipo de ditadura, senãocomo fantasia de politólogos a serviço, por vezes, de propósitos pouco edificantes.13 2.6.2.2. Se o que vier a mudar no tempo for apenas a população, o contingentehumano, cada geração ou simples sociedade civil, enfim, tudo envolucrado por uma

só e exclusiva nação, jamais sobrevém o desconforto domocrático de se ter que

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suportar uma Constituição formalmente rígida, se essa Constituição está assentada nosufrágio popular. Se tem a respaldá-la a mais indiscutível das legitimidades, que é alegitimidade do voto, essência mesma da Democracia. Uma legitimidade ainda maisdensa que a ressaída de uma eleição geral comum para a renovação dos quadrospolíticos de qualquer Estado, pois a eleição dos elaboradores da Constituição é,

naturalmente, o estrelato do voto, a culminância da participação popular no processopolítico, a partir deste essencial corte distintivo: numa eleição comum, o povo elegeaqueles que vão governar; numa eleição constituinte, o povo elege aqueles que vãogovernar quem vai governar. Noutro dizer, numa eleição constituinte o povoescolhe aqueles que, pela mediação do Texto Magno, irão governar de modopermanente aqueles que irão governar de modo transitório.2.6.2.3. Animamo-nos a dizer: enquanto a nação ou sociedade política evoca a idéiade permanência, a população ou sociedade civil tem na mutabilidade o seu espaço designificação ontológica. Daí que o princípio majoritário que informa as decisõescolegiadas passe a igualmente se discriminar em maioria permanente e maioriapassageira, conforme se trate, respectivamente, de uma assembléia de

 presentação do corpo nacional ou de uma assembléia de representação do corpotão-somente populacional. O primeiro tipo de maioria a preponderar sobre osegundo, conforme, aliás, muito bem doutrina CLÉMERSON MERLIN CLÈVE,nestes escritos em que, secundando o importante constitucionalista norte-americanoRONALD DWORKIN, propugna por uma atuação mais livre do Poder Judiciáriosempre que se trate de atualizar as concepções de que decorrem os conceitosconstitucionais:"Neste particular, é preciso lembrar de que a Corte Constitucional, mesmoelastecendo a sua tarefa, está ainda defendendo a maioria permanente elaboradora daConstituição, em detrimento da maioria eventual, que é circunstancial" (em AS

MODERNAS FORMAS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL, conferênciapublicada na coletânea "10 ANOS DE CONSTITUIÇÃO", Editora Celso Bastos, p.43, 1988).2.6.2.4. Em verdade, para que o referido desconforto democrático exista é preciso queuma outra nação venha a se formar, naturalmente contrária à primeira (duas naçõesortodoxamente caracterizadas não podem conviver sob o mesmo Estado ou sob amesma Constituição, sem que a mais recente não aspire à sua emancipação política).Tal como se deu com o Brasil ante Portugal, de modo a culminar com a revoluçãotriunfal de 7 de setembro de 1822. Um só Estado personalizava, juridicamente, duasnações que já não podiam conviver no mesmo espaço político-jurídico, não pordecisão da primeira (a nação portuguesa) quanto a esse juízo de inconvivibilidade,

mas por eficaz rebelião da segunda (a nação brasileira).2.6.2.5. Nesse tipo de prefiguração extrema ou hipótese-limite, porém, a segundanação não quer trocar de Constituição, ou sequer alterar a Constituição vigorante. Nãoé assim. O que a segunda nação aspira é a uma Constituição estalando de nova.

Só para si. Exclusivamente sua, porque a primeira Constituição não é sentidacomo coisa própria, mas alheia. Que permaneça a primeira nação com a respectivaLei Maior - esta é a palavra de ordem dos que fazem a nova nação -, contanto que nãoimpeça o novo corpo nacional de iniciar a sua própria experiênciaconstitucional-positiva.2.6.2.6. Noutro modo de exprimir o mesmo pensamento: a segunda nação passa adeter um Poder Constituinte próprio e com esse Poder Constituinte já não pode deixarde entretecer uma relação de inerência (ele é ela, ela é ele, como dantes explicado).

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Daí que venha a se autoconferir uma Constituição mais que paralela, porque destinadaa viger em âmbito pessoal e territorial próprio. Não compartilhado com outra pólis. Eé claro que o problema do desconforto democrático não pode medrar no interior deuma nação cuja história constitucional mal começou. Ele se coloca é no plano dasrelações entre os dois corpos nacionais - o dominante e o dominado -, no sentido de

que um deles (o dominado) não reconhece como obra de uma sua primeira geraçãoconstituinte a Lei Maior "estrangeira" sob a qual se encontre.2.6.2.7. Nesse idealizado contexto de fricção nacional - fenômeno diferente dasimples sucessividade geracional -, é claro que tudo que juridicamente provenha daprimeira nação seja concebido, pela segunda, como coisa estranha. Como legislaçãoque bem pode permanecer intocada, desde que já não vincule os membros da novanacionalidade. Por isso que, dizendo respeito a uma outra região fenomenológica, nãopode ensejar a questão do desconforto democrático a que se reporta oneoconstitucionalismo.2.6.2.8. Discurso mais eloqüente não pode haver, na matéria, do que a "Declaração deIndependência dos Estados Unidos da América" (datada de 4 de julho de 1776), daqual pinçamos os seguintes trechos:"Quando no decurso da história humana se torna necessário a um povo romper oslaços políticos que o ligaram a outro e assumir entre as potências da Terra a posiçãoseparada e igual a que o habilitam as leis da Natureza e do Deus da Natureza, orespeito devido ao juízo da Humanidade obriga-o a declarar as causas que o impelempara a separação."(...) Mas, quando uma longa sucessão de abusos e usurpações, visandoinvariavelmente ao mesmo fim, revela o desígnio de os submeter ao despotismoabsoluto, é seu dever livrar-se de tal governo e tomar novas providências para bem dasua segurança. Foi este o paciente sofrimento destas colônias e é agora a necessidade

que as constrange a alterar o seu antigo sistema de governo. A história do atual rei daGrã-Bretanha é a história de repetidas injúrias e usurpações, todas tendo como diretoobjetivo o estabelecimento de uma tirania absoluta sobre estes Estados."(...) Por conseqüência, nós, os representantes dos Estados Unidos da América,reunidos em congresso geral, invocando o Supremo Juiz do Universo comotestemunha da retidão das nossas intenções, solenemente proclamamos e declaramos,em nome e por autoridade do bom povo destas colônias, que estas colônias unidassão, e de direito devem ser, Estados livres e independentes; que elas se desligam detoda a obediência à Coroa Britânica, e que todos os laços políticos entre elas e oEstado da Grã-Bretanha ficam, e devem ficar, completamente dissolvidos (...)".2.6.2.9. E fora dessa hipótese-extrema da lenta formação de um corpo nacional contra

outro? Bem, se uma outra nação não se forma no espaço territorial da primeira, após aelaboração constitucional, deixa de existir o próprio sujeito coletivo que poderia,concretamente, experimentar o desconforto democrático. É dizer: não estandopresente o sujeito, como a sensação de desconforto pode estar?2.6.2.10. Assim como o rio é um só rio, da nascente à foz, também a nação é uma só,do momento em que se constitui até o sobrevir da última geração. Por isso mesmo éque ela tem sido definida como "uma alma, um princípio espiritual" (RENAN), a seperpetuar na cambiância dos corpos populacionais que se sucedem no tempo.Transgeracional, este o mais alumiado contorno da aura de toda nação enquantomonolítica nação permanecer; ou seja, enquanto se conservar como solitária nação noâmbito espacial de validade da sua Constituição e da territorialidade do seu Estado.

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2.6.3. O paradoxo - agora sim - das "Constituições" cosmopolitas ouultranacionais 

2.6.3.1. E aqui se encontra o pano de fundo teórico para a nossa recusa aotracejamento de uma "Constituição" ultranacional ou cosmopolita, como pretendem

ser os pactos formadores e regentes da União Européia (UE), da Área de LivreComércio das Américas (ALCA) e do Mercado do Cone Sul (MERCOSUL). Não hánem pode haver Constituição multinacional, se a multinacionalidade se fazacompanhar da pluralidade de Estados soberanos. Multinacionalidade desse tipo eunicidade constitucional são como água e óleo: não se relacionam por osmose.Jamais.2.6.3.2. Deveras, como não colocar na etiologia da Constituição a metamorfose queresulta da passagem de uma sociedade civil para uma sociedade política?Metamorfose, todavia, que se dá no seio de uma única nação aspirante à soberania?Como falar de uma Assembléia Constituinte Plurinacional, se em nenhuma das nações" presentadas" foi aberto o processo democrático do voto popular para a eleição dosmembros de tal Assembléia? Como submeter a essa Constituição-de-gabinete asConstituições democráticas de cada nação pactuante? Como aceitar uma Constituiçãoque não plasma nenhum Estado em particular, mas um holding de autoridades"supraestatais" que, além de não-popularmente eleitas para esse específico fim,também não se relacionam pelos imprescindíveis moldes do sistema de freios econtrapesos e ainda por cima não têm a balizá-las um catálogo mínimo de direitoshumanos e respectivas garantias? Como explicar a titularidade plural de um poder (oConstituinte) que se define, justamente, pela unicidade do ser de que promana e emcuja ossatura afinal se transfunde? Como, enfim, aceitar que os tratadosinternacionais é que servirão de fundamento de validade para a Constituição de cada

Estado signatário, e não mais o inverso? Isto não significa romper completamentecom a idéia-força da própria constitucionalização do Direito, traduzida no famoso art.16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789? 14 Que atentado maior pode haver àquilo que se traduz na essência mesma da idéia deConstituição como o mais eficaz mecanismo jurídico de contenção do Poder, seja pelaforma direta (Separação dos Poderes), seja pela indireta (consagração dos direitos egarantias fundamentais)? Do princípio de constitucionalidade e, simultaneamente, doprincípio democrático?2.6.3.3. Ora bem, a acontecer o triunfo do novo e estranho modo de pensar oconstitucionalismo, como ficaremos todos? Ficaremos naquela atarantada situação deque falava o pensador, com este conhecido desabafo: "passei a vida inteira

procurando certas respostas. Finalmente, quando as encontrei, mudaram asperguntas...".2.6.3.4. Das duas, uma: ou as supostas Constituições cosmopolitas não preponderamsobre as Constituições Nacionais, e, portanto, Constituições não são, ou, sepreponderam, as Constituições Nacionais é que deixarão de sê-lo. Nesta suposição,desaparecem também as nações originárias e respectivos Estados. E passaremos a terConstituições Positivas sem vínculo operacional com a própria Democracia, que jánão terá nação nem Estado isolado onde possa irromper e frutificar.2.6.3.5. Por fidelidade, então, aos elementos conceituais da nação, da Democracia, doPoder Constituinte, da Constituição e do Estado, com os seus lógicos desdobramentos,ajuizemos de uma vez por todas o seguinte: se cada nação permanece com o seuEstado, nenhuma delas abdica de Constituição própria. Constituição comum a vários

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Estados soberanos é uma contradição nos termos, pois a soberania de cada Estadose formaliza é numa Constituição não-compartilhada. Exclusiva, portanto, como aprópria soberania.2.6.3.6. O que é preciso entender é que instituições multilaterais como a UniãoEuropéia e seus êmulos são as velhas e boas confederações de Estados. Tendo por

suporte jurídico-formal os tratados internacionais de sempre. E que vão surgindo porefeito da evolução política de cada corpo nacional que se abre para tais ou quaisvantagens comuns, na processualidade da vida. Mas sempre nos termos daConstituição de cada Estado signatário, que entra e sai do pacto por sua espontânea esoberana vontade.2.6.3.7. Diante, assim, da consideração de que a teoria das Constituiçõesregionalizadas (ou plurinacionais) tem mesmo a sua motivação factual naglobalização da economia (que é a globalização dos mercados), deixemos gravado emalto relevo o nosso dissenso à equivocada identificação que o neoliberalismo vemfazendo entre mundialização cultural e globalização econômica. São coisasdiferentes, a partir destas considerações que temos como imperativos históricos:I - a cultura é manifestação do espírito, exigência dele, e tende mesmo a traçar oscontornos do próprio Estado. Por natureza, ela paira acima da organização estatal, demodo que a sua gradativa mundialização não significa propriamente um risco deperda do seu controle. O risco passa a existir é quando o Estado se mete a monitorar acultura, cerceando-lhe a intrínseca espontaneidade em qualquer das suas formas deexteriorização (daí a Constituição brasileira estatuir, pelo inciso IX do seu art. 5°, que"é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,independentemente de censura ou licença");II - de revés, a economia é manifestação do corpo, exigência dele, seja no plano dasobrevivência biológica do ser humano (alimentação, higiene, vestuário), seja no

plano do bem-estar social (moradia, transporte, segurança ecológica, lazer, etc.). Nãopode ficar acima do Estado, porque o primeiro dever do Estado é com o atendimentodas necessidades materiais da sua população, que são justamente as referidasnecessidades de sobrevivência individual e de bem-estar comunitário. Faz sentido,então, o receio de que o Estado venha a perder o controle da sua economia (efeitopróprio da globalização), abdicando, então, do poder-dever de organizar o aparelhoprodutivo do País na direção do máximo possível de auto-suficiência em bens eserviços, usufruídos estes por um número cada vez maior de pessoas. Ao contrário doque afirmava JEFFERSON, o melhor governo não é o que menos governa, porém oque mais governa para que um número cada vez maior de pessoas deixe de precisardele, Governo;

III - Se os deveres do Estado para com o setor cultural não podem significar jamaisum dirigismo, ou uma intervenção, o mesmo não se pode dizer quanto à ordemeconômica. Neste sítio, o dever de impor direcionamentos e até de intervir (ora pormecanismos de permanente fiscalização e sancionamento, ora pela eventualcompetição empresarial direta e ainda pelo estímulo), tudo é absolutamenteirrenunciável. E tudo é absolutamente irrenunciável porque sem a mediação doEstado a economia se torna uma espoliação organizada. Não uma espontâneaotimização de riquezas, pois nada mais falacioso que a teoria da mão invisível, deADAM SMITH, contundentemente negada pelas iniqüidades sociais de todo o séculoXIX e dos primeiros dezessete anos do Século XX. E como é verdade que umdecidido controle estatal interno e globalização econômica são coisas antitéticas, oholocausto só pode recair é sobre a globalização. Não sobre o controle estatal interno

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da economia de cada povo.

2.7. O vínculo natural entre a sociedade política e a futuridade 

2.7.1. Insistamos, pois, no fundamento: a nação, tanto quanto o próprio Deus, ou

existe, ou não existe. Se ela existe, possui legitimidade política e senso histórico deoportunidade para dar forma jurídica ao próprio futuro. Até porque, sendo umanação, consegue atingir um nível tão aceso de autoconsciência a ponto de desembaçartoda névoa que prejudique o límpido visual da futuridade. Este o seu modo especial eúnico de ser, razão da autonomia conceptual de que desfruta.2.7.2. É justamente o visceral compromisso com o porvir que faz a nação tornar a suaobra legislativa um verdadeiro processo. Mais que um simples produto inelástico oude formas acabadas em todas as suas partes, a Constituição é fórmula normativaconsubstanciadora de princípios que potencializam a abertura das janelas do Direitopara o lado onde sopram os ventos da atualização de suas idéias centrais, sem maiornecessidade de alteração formal dos seus dispositivos.15 Ou, se necessidade houver,qual a Constituição que não dispõe sobre a sua própria reforma? Reforma, no entanto,que deve assegurar a sobrevida da Constituição, e não o seu dobre de sinos.Modifica-se a Constituição para que ela permaneça idêntica a si mesma naquelaparte central da sua circunferência axiológica. Ou, por outra, modifica-se aConstituição apenas quanto aos mecanismos de que seus princípios estruturantesprecisam para permanecer eficazes (e não é preciso encarecer que toda Constituiçãotem a cara dos seus princípios estruturantes).2.7.3. Se acontece, porém, de uma determinada geração vir a avaliar que já não dápara prosseguir sob o império do Magno Texto, que força humana vai impedir que elaconvoque uma nova Assembléia Nacional Constituinte? Sabido que a mais nova

geração nacional é tão nacional quanto a primeira? Logo, nem é preciso esperarpor uma segunda, ou por uma terceira, ou por uma quarta geração - quantas sejam - nointerior de uma única nação, para, e só então, se colocar o problema da revogaçãoconstitucional. A mesma geração que elaborou o Magno Texto, ou a segunda, ou aterceira, etc., tem o poder de revogá-lo. Se a nação apenas sai do estado de efetivopoder constituinte para uma quadra de virtual poder constituinte e vice-versa, ela énação o tempo inteiro. E por ser nação o tempo inteiro, pode desertar de suaConstituição a qualquer momento. Onde, pois, o paradoxo da onipotência (pelaterceira vez perguntamos)? Como falar de antidemocraticidade a posteriori daConstituição rígida, se a Constituição rígida, por mais rígida que seja, nunca deixade estar disponível para a nação?16 

2.7.4. Numa recondução do pensamento de SIEYÉS a ROUSSEAU, pensamos que, sea vontade é apenas da população, essa vontade tende a ser não mais que o somatóriomecânico das vontades de todas as pessoas vivas, empenhadas em produzir umavontade final tão-somente grupal ou particular. Cada bloco de vontades a quererpreponderar sobre os demais. Corporativamente. Ideologicamente. Interesseiramente.De revés, se a vontade a manifestar é mesmo da nação, essa vontade se torna a somaorgânica das vontades de todas as pessoas vivas, muito mais fortementeempenhadas em produzir uma vontade final que seja uma "vontade geral" nosentido rousseauniano. Nenhum bloco de vontades, então, a querer, de saída,preponderar sobre os demais, porém a desejar com os demais se interpenetrar oudissolver numa só manifestação.

2.7.5. Para ROUSSEAU, como de generalizada sabência, é da natureza da vontade

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geral rimar com o bem comum (por ser mais do que a simples adição das vontadesparciais), tanto quanto é da natureza da vontade particular a busca dos interessesmeramente privados, ou corporativos. Leiamos estas passagens, extraídas do livro OCONTRATO SOCIAL, obra já referida um pouco mais atrás, pp. 43 e seguintes:"Com efeito, se não é impossível que uma vontade particular concorde em algum

ponto com a vontade geral, é impossível pelo menos que este acordo seja duradouro econstante, porque a vontade particular tende, por sua natureza, às preferências e avontade geral à igualdade. (...) Pela mesma razão que a soberania é inalienável, éindivisível, porque a vontade é ou não geral: é a de todo o povo ou a de uma partedele. No primeiro caso, esta vontade declarada é um ato de soberania e faz a lei, nosegundo, é simplesmente uma vontade particular, um ato de magistratura, ou, quandomuito, um decreto (...). Deduz-se do que antecede que a vontade geral é sempre reta etende constantemente à utilidade pública, porém não quer isto dizer que asdeliberações do povo tenham sempre a mesma retidão (...) . Há às vezes diferençaentre a vontade de todos e a vontade geral: esta atende só ao interesse comum,enquanto a outra olha o interesse privado, e não é senão uma soma de vontadesparticulares. Porém, tirando estas mesmas vontades, que se destroem entre si, restapara soma dessas diferenças a vontade geral".2.7.6. Uma outra comparação nos parece elucidativa. Assim como os artistas fazem a

 ponte entre o sujeito universal que é a humanidade e o sujeito individual que é cadaser humano, de maneira a projetar na objetividade da sua obra tudo aquilo que ahumanidade já produziu e ainda vai produzir (não é muito diferente o juízo que se vêem LUKÁCS, pp. 27/33 da obra "UM GALILEU NO SÉCULO XX", BoitempoEditorial, comentários de LEANDRO KONDER, ano de 1996), também a nação faza ponte entre o passado, o presente e o futuro das suas gerações, de maneira arecolher o que há de axiologicamente comum a todas elas para tudo sintetizar

num só documento normativo de nome "Constituição".2.7.7. Essa linguagem sinótica ou sinérgica de valores torna-se possível, naConstituição, pelo metódico uso das normas-princípio. Normas-princípio, essas, quehoje têm na própria Constituição a precisa indicação dos respectivos conteúdos e apossibilidade de operacionalização ao nível factual. A ensejar a qualificação doMagno Texto como norma-processo.17 2.7.8. É este o prevalente idioma jurídico-positivo da nação. Ela não sabe falar deoutro modo principal, pois é falando por princípios que o seu discurso normativoexorciza os fantasmas da caducidade axiológica ou de conteúdo. É um discurso que seaproxima da dimensão das coisas universais e eternas, à semelhança do que fezJESUS CRISTO com a metodologia comunicacional das parábolas. Parábolas que

estão para o evangelho de Cristo, portanto, assim como os princípios estão para essabíblia jurídico-positiva que é a Constituição. E cujo efeito prático é a processualidadeou historicidade ou uma certa atemporalidade do que se pretende comunicar.2.7.9. Enfim, como versejou Fernando Pessoa, "as nações são mistérios. Cada uma étodo o mundo a sós". Vale dizer, cada nação é, misteriosamente, um mundo todo àparte. E Tobias Barreto, magistralmente: "a um povo não é lícito repetir ou imitar nema si mesmo, sob pena de cair no baixo cômico, inerente a todas as caricaturas" (emEstudos de Direito, vol. I, p. 109, edição do governo de Sergipe).

2.8. O inexistente vínculo entre "excesso de rigidez" e "Poder Constituinte Evolutivo" 

2.8.1. A inconstitucionalidade da revisão de dupla face 

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2.8.1.1. Contraditoriamente - permitimo-nos falar - o neoconstitucionalismo passa aacoimar de "poder constituinte evolutivo" a própria e necessária processualidade dasConstituições principiológicas. Querendo dizer, com o fraseado, que o excesso derigidez constitucional (quem faz o juízo de excessividade?) tem que pagar um preço,

e que tal preço é a freqüente mutação informal da Constituição; ou seja, aConstituição muda freqüentemente de sentido sem que se alterem, formalmente, osseus dispositivos, como inelutável conseqüência do seu "excesso de rigidez".2.8.1.2. Qual a solução que se entremostra na crítica ao "excesso de rigidez" e seudesaguar em mutações constitucionais do tipo informal? Dar às cláusulas pétreas umainterpretação light , cada vez mais soft , para facilitar as emendas e revisõesconstitucionais; quer dizer, a resposta para o excesso de rigidez (suposto excesso) é oexcesso de desconsideração pelas cláusulas intangíveis da Constituição. E se istonão for o suficiente para adaptar a Magna Lei à emergência de novos valores sociais,que se faça das cláusulas de reforma constitucional o próprio fundamento para a suamodificabilidade (?). Revisão em dois tempos ou de dupla face, num sentido assimexplicado por GOMES CANOTILHO:"A existência de limites absolutos é, porém, contestada por alguns autores, com basena possibilidade de o legislador de revisão poder sempre ultrapassar esses limitesmediante a técnica da dupla revisão. Num primeiro momento, a revisão incidiria sobreas próprias normas de revisão, eliminando ou alterando esses limites; num segundomomento, a revisão far-se-ia de acordo com as leis constitucionais que alteraram asnormas de revisão. Desta forma, as disposições consideradas intangíveis pelaconstituição adquiririam um caráter mutável, em virtude da eliminação da cláusula deintangibilidade operada pela revisão constitucional (...)" (em DIREITOCONSTITUCIONAL, Almedina, 5ª Edição, 1922, 2ª Reimpressão, p. 1138).

2.8.1.3. É essa técnica da dupla revisão que nos parece o que há de mais atécnico, àluz de uma depurada Teoria da Constituição. Ainda que sob o color de mitigar o efeito"conservador" das cláusulas pétreas, o fato é que o mecanismo da dupla revisãobaralha inteiramente os campos de lídima expressão do Poder Constituído e do PoderConstituinte, caindo, por isso mesmo, em contradições incontornáveis, a começar poresta: se é possível reformar as próprias cláusulas constitucionais de reforma, então aConstituição pode vir a perder até mesmo o seu caráter rígido, pela total supressão danorma ou das normas constitucionais instituidoras da rigidez formal! E sem a rigidezformal, como preservar a superioridade hierárquica da Constituição sobre os demaisespécimes legislativos? E sem tal superioridade, como prosseguir chamando aConstituição de Carta "Magna", Código "Supremo", Lei "Fundamental", Norma

" Normarum" e outras qualificações que somente se justificam por aquela supremaciano plano hierárquico? Pela não-completa submissão do Magno Texto à sanhareformadora do Poder Constituído? É o mesmo que perguntar: como prosseguirchamando de Constituição o que Constituição já deixou de ser, pois sem cláusula derigidez formal a Constituição perde o controle do regime jurídico de suasemendas e, por conseguinte, do seu próprio regime?2.8.1.4. Se nos transferirmos do campo das cláusulas pétreas formais para os domíniosdas cláusulas pétreas materiais, o raciocínio será o mesmo. Quem pode modificar,suprimir, ou aditar uma cláusula pétrea substantiva, pode assim proceder com todas asoutras, pois "cesteiro que faz um cesto, faz um cento". E com total ingerência doPoder Reformador nas cláusulas pétreas materiais, a ponto de suprimi-las, onde fica aidentidade axiológica da Constituição? Onde ficam as principais "idéias de Direito"

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(GEORGES BURDEAU) que serviram de mote à faina constituinte?18 2.8.1.5. Diga-se mais: quem pode despetrealizar a Constituição, evidentemente quepode se arrepender e voltar a petrealizá-la. E a se trabalhar com esta hipótese, quesingularidade restaria para uma Constituição que se tornou gato e sapato nas mãos doPoder Reformador? Sem mais nenhuma norma-de-fronteira que não provenha desse

mesmo Poder Reformador"?2.8.1.6. Que paradoxo! Chama-se pejorativamente de Poder Constituinte Evolutivo amutação informal da Constituição, mas não se dá o mesmo nome a um PoderReformador que se irroga a força da mutação formal dessa mesma Carta, mas indoalém dos limites a ele originariamente impostos. Fingindo-se ignorar a grandedistância que separa uma interpretação mais à solta da Constituição (porém nelamesma fundamentada) daquele ato legislativo de intervenção formal no Texto Magno,a cargo de um Poder contra o qual, justamente, foi estabelecido o pretensoexcesso de rigidez.2.8.1.7. Ora, aquele contra o qual existe a rigidez formal da Constituição estápositivamente autorizado a medir o tamanho dessa rigidez? A avaliar o teor derazoabilidade, ou de proporcionalidade da contenção legislativa que lhe é imposta? Atodas as luzes, não! Esse tipo de juízo é exclusivo da nação, e a forma jurídica de anação avaliar tão global quanto radicalmente as coisas é a Constituição originária(assim como é exclusivo da nação dizer que o País, mais que vivenciar uma situaçãode crise de existência, já está engolfado numa existência de crise). Fora disso, ter-se-iaalgo assim como o sentenciado criminal a dizer como, onde e por quanto tempo sedisporia a cumprir sua pena... Ou, quando menos, o vigiado a determinar o tipo dearmamento e o horário de ronda do seu próprio vigia (é também de BURDEAU alembrança de que, sendo o Poder de Revisão uma criatura da Constituição, passandoele a ab-rogar a Magna Lei estará "destruindo o fundamento de sua competência").

2.8.1.8. É necessário ter cuidado com as palavras. Se é próprio do Poder Constituintedemocrático produzir constituições avançadas (pode-se dizer o contrário?), comorotular de ideologicamente conservadora a função das cláusulas pétreas de taisdiplomas? Tais cláusulas operam, em verdade, como garantia do avanço entãoobtido. Como penhor de não-retrocesso das conquistas jurídicas a quedemocraticamente se chegou. Até porque é possível refundir uma cláusula pétrea paraadensar o teor de proteção dos valores nela albergados. Não, claro, para seguir inversoroteiro.2.8.1.9. Não fiquemos por aqui. Se se permitir ao Poder Constituído, no exercício dafunção reformadora, tudo fazer da originária Constituição (dizemos "tudo", pois,como visto, quem flexibiliza aqui, flexibiliza ali, toma gosto no ofício e já não estaca

por conta própria), como ficaria a idéia de limite formal, que é uma das maisvisíveis impressões digitais do Magno Texto? A sua principal função ou o primeirodos seus históricos e lógicos diferenciais? Aquilo que é o próprio charme, o glamour ,o sex-appeal de um Diploma que surgiu, precisamente, para superar a idéia deautolimitação jurídica do Estado? Para impor ao Estado (com seu poder reformador etudo o mais) balizas de trás para frente e de fora para dentro? Exógenas, então? Asignificar o único momento em que o Direito se subtrai ao Estado? Em que o Direitose torna maior do que o próprio ente estatal?2.8.1.10. As perplexidades se sucedem aos borbotões e o analista de pronto sepergunta: sem mais diques para represar o fluxo normativo do Poder Reformador,como ainda conceituar a Constituição enquanto o mais estável dos documentoslegislativos de uma Ordem Jurídico-Positiva? Como abrir mão das normas

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constitucionais de autodefesa autogarantia (papel instrumental das cláusulas pétreas),se "não há Constituição sem supremacia e não há supremacia sem sua proteção"?19 2.8.1.11. Ora, se o Constituinte não anuncia que está a produzir uma Constituiçãogarantida, uma Constituição pra valer (e só é pra valer na medida em que

 petrealizada), deixa de revelar estima pela sua obra e não induz o povo, ipso facto, a

praticá-la. Não inculca no povo uma estima ou um sentimento de Constituição, tãonecessário para que ela se torne uma instituição viva. Para que ela se torne a própriacondição da montagem de um Ordenamento que tenha na segurança das relaçõeshumanas o seu valor fundante por excelência.2.8.1.12. Certamente precursora desse vínculo necessário entre a supremacia daConstituição e os mecanismos garantidores de tal supremacia é a própria "MAGNACHARTA LIBERTATUM", de 15 de junho de 1215, cuja parte final está assimredigida:"(...) Considerando que foi para honra de Deus e bem do reino e para melhor aplanar odissídio surgido entre nós e os nossos barões que outorgamos todas as coisas acabadasde referir; e querendo torná-las sólidas e duradouras, concedemos e aceitamos, parasua garantia, que os barões elejam livremente um conselho de vinte e cinco barões doreino, incumbidos de defender e observar e mandar observar a paz e as liberdades pornós reconhecidas e confirmadas pela presente Carta; e se nós, a nossa justiça, osnossos bailios ou algum dos nossos oficiais, em qualquer circunstância, deixarmos derespeitar essas liberdades em relação a qualquer pessoa ou violarmos alguma destascláusulas de paz e segurança, e da ofensa for dada notícia a quatro barões escolhidosde entre os vinte e cinco para de tais fatos conhecerem, estes apelarão para nós ou, seestivermos ausentes do reino, para a nossa justiça, apontando as razões da queixa, e àpetição será dada satisfação sem demora; e se por nós ou pela nossa justiça, no casode estarmos fora do reino, a petição não for satisfeita dentro de quarenta dias, a contar

do tempo em que foi exposta a ofensa, os mesmos quatro barões apresentarão o pleitoaos restantes barões; e os vinte e cinco barões, juntamente com a comunidade de todoo reino (communa totiu terrae), poderão embargar-nos e incomodar-nos,apoderando-se dos nossos castelos, terras e propriedades e utilizando quaisquer outrosmeios ao seu alcance, até ser atendida a sua pretensão, mas sem ofenderem a nossapessoa e as pessoas da nossa rainha e dos nossos filhos, e, logo que tenha havidoreparação, eles obedecer-nos-ão como antes. E qualquer pessoa neste reino poderá

 jurar obedecer às ordens dos vinte e cinco barões e juntar-se a eles para nos atacar; enós damos pública e plena liberdade a quem quer que seja para assim agir, e nãoimpediremos ninguém de fazer idêntico juramento".

2.8.2. O uso da idéia do "Poder Constituinte Evolutivo" como contradiscursoconstitucional 

2.8.2.1. Lá pelo fundo das coisas ou por trás dos bastidores (como soem falar os jornalistas), pensamos que a válvula argumentativa do "Poder Constituinte Evolutivo"intenta disfarçar aquilo que na verdade sucede com a reteorização do Magno Texto edo Poder Constituinte: uma contra-revolução dogmática. Um contradiscursoconstituinte. A Teoria do Poder Constituinte foi o que de mais revolucionário ocorreuno pensamento jurídico de todos os tempos e o fato é que ela já não serve aospropósitos socialmente retrocessivos do neoliberalismo. Antes, coloca-se como o maislógico obstáculo ao desmonte do Estado Social que as Leis Maiores do Ocidente

erigiram, a partir da Constituição do México de 1917 (imediatamente seguida pela

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Constituição Russa de 1918 e pela Constituição Alemã de 1919).2.8.2.2. Uma coisa é partir de um Constitucionalismo liberal para umConstitucionalismo social, e, outra, é sair de um Constitucionalismo social para voltarao liberal, se já não se convoca uma nova Assembléia Constituinte e se já não sereteoriza a própria força constituinte, para desancá-la. É explicar: para sair da

democracia liberal para a social democracia, cada povo soberano teve que recorrer auma nova manifestação formal do seu Poder Constituinte (salvante a naçãonorte-americana, por efeito de uma Constituição que, por influência do modelobritânico de Ordenamento Jurídico, lastreia um tipo de Direito mais fortemente

 judicialista do que legalitário, na prática), sem maior contradição no aproveitamentodas teorizações do Iluminismo, de que a doutrina de SIEYÈS foi uma espécie dearremate jurídico.2.8.2.3. Recorde-se que o liberalismo triunfou sobre o absolutismo porque limitar opoder político era (e é) a própria condição de defesa da liberdade e da cidadania. Arazão e a consciência humana assim o proclamavam (e proclamam). Porém, erapreciso fazer avançar o movimento racional e consciencial do constitucionalismo,levando-o também a limitar o poder econômico, pois que, sem essa limitação, numaeconomia típica de mercado, não havia (e não há) como impedir os fenômenoscorrrelatos da concentração de renda e da exclusão social. É repetir: sem a limitaçãodo poder econômico ou a aplicação de medidas saneadoras do mercado, ferido de

 morte ficaria (como fica) o princípio da igualdade. Justamente ela, a igualdade, quese perfilou ao lado da liberdade e da fraternidade como bandeira de luta da própriaburguesia revolucionária do século XVIII. Logo, nada mais natural que seqüenciar afaina constitucional de impor limites a toda forma de poder que implicasse dominaçãopolítica e exploração econômica das massas, pois o poder é coisa que não se ampliaou não se reforça, instrumento que é de prepotências e iniqüidades de toda sorte.

 Matéria-prima explosiva, então, pela sua própria natureza (para além da famosíssimaadvertência de MONTESQUIEU, segundo a qual todo aquele que detém o poder tende a abusar dele, BOBBIO esclarece que prefere a expressão "vulto demoníaco dopoder" a "alma demoníaca do poder", simplesmente porque o poder não tem alma).2.8.2.4. A luta político-jurídica foi sem tréguas e o constitucionalismo social veio asignificar: a) por um lado, preservação das conquistas liberais dos indivíduos e doscidadãos contra o Estado; b) por outro, desmanietação desse mesmo Estado frente aosproprietários dos bens de produção, autóctones e alóctones, para que ele, mediante lei,assumisse postura intervencionista e dirigente em favor dos trabalhadores emparticular e dos consumidores em geral. Ali, inação do Estado como condição deimpério do valor da liberdade e da cidadania. Aqui, ação estatal para a realização do

valor da igualdade. Valores de cujo indissolúvel casamento nasce a fraternidade, esseterceiro leit motiv da burguesia ascendente do final do século XVIII.20 2.8.2.5. Acrescente-se: longe de significar uma ampliação do poder estatal, aimprescindível postura intervencionista e dirigente se traduzia em mais um limitereal. É que, entregue a si mesmo, todo Estado liberal cai nos braços do podereconômico para formar com ele a mais desumana das parcerias (a opressão política a  atar o seu corpo à exploração econômica). Sobremais, sem um mínimo de igualdadenas relações sociais de base (aquelas que definem o verdadeiro perfil da vidacoletiva), as liberdades fundamentais não passam de ornamento gráfico na tessituraformal dos dispositivos constitucionais. Uma normação apenas retórica ("simbólica",diria MARCELO NEVES).

2.8.2.6. Se é verdade que os dois valores básicos entretecem relações dialéticas, sem

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dúvida que a primazia é para a igualdade (cuja essência está numa aproximativadistribuição de patrimônio e de renda), pois é muito mais plausível um povo igual vira desembocar numa sociedade libertária real... do que um povo livre vir a desembocarnuma sociedade igualitária de fato. O bolo da riqueza nacional tem uma lógicapeculiar que o faz crescer, continuamente, à medida que é mais compassiva ou

solidariamente dividido. E quanto maior o número de contingente de pessoasaproximativamente iguais, numa mesma sociedade, maior a cota de liberdade concretade cada qual desses contingentes. Como observou JOHN KENNETH GALBRAITH -reconhecidamente um dos maiores economistas do século XX, nada mais restringe aliberdade, no sistema capitalista, do que a falta absoluta de dinheiro. É o que se lê emalentada conferência que a Folha de São Paulo transcreveu às pp. 4 e 5 do seu caderno"MAIS", edição de 20 de dezembro de 1998, da qual reproduzimos estas preciosasconsiderações:"O sistema de mercado distribui a renda de forma altamente desigual. Hoje está claroque os Estados Unidos exercem uma liderança mundial negativa nesse sentido. Umaorganização sindical forte e eficaz, um salário mínimo humano, seguridade social eboa assistência à saúde são reconhecidamente uma parte da resposta. Concordamoscom isso. E também um imposto de renda decididamente progressivo."(...) É preciso haver, acima de tudo, uma rede de segurança eficaz - apoio individuale familiar - aos que vivem nos limites inferiores do sistema, ou abaixo deles. Isso éhumanamente essencial, e também necessário para a liberdade humana. Nadaestabelece limites tão rígidos à liberdade de um cidadão quanto a absoluta falta dedinheiro."(...) Não há possibilidade de um compromisso estreito com a nação-Estado. Mastampouco pode haver um internacionalismo insensato que sacrifique as conquistassociais do último século, e as que ainda são necessárias. O internacionalismo vai

avançar; deve, no entanto, fazê-lo de mãos dadas com a coordenação e a proteção dapolítica nacional social e de assistência".2.8.2.7. Viagem sem volta, portanto, essa passagem do constitucionalismo liberal parao social. E viagem sem volta, porque a favor da vida (como tudo que decorre dotrabalho a quatro mãos da consciência e da razão humanas). E porque a favor da vida,é que seu desfazimento no bojo do Estado neoliberal está a se verificar no  forumrestrito do Poder Reformador, e não no cenáculo ampliado do Poder Constituinte.Temerosos os novos teóricos da Constituição do debate aberto com a nação. Receososda cobrança que a sociedade política certamente lhes faria quanto a essa esdrúxulaidéia de que, agora, recuar já significa avançar. Desfazer conquistas sociais járepresenta arejamento das Constituições. Retornar a uma genérica situação de

exclusão econômica das massas despatrimonializadas e sem renda minimamentedecente (este o invariável déficit social da contabilidade liberal do século XIX e doprimeiro quartel do século XX) já sinaliza o definitivo ingresso "na era damodernidade". Enfim, desobrigar e até proibir o Estado-nação do controle de suaprópria economia, principalmente na área do capital financeiro-especulativo (o piorvilão do final do século XX e do início deste milênio), já representa para os paísesemergentes uma participação igualitária ou descolonializada na economia de mercadodos países tradicionalmente centrais.2.8.2.8. O mais curioso ainda é que uma parte dos defensores da interpretação light ouabrandada das cláusulas pétreas está convencida de que esse tipo de exegese tem omérito de colocar a própria Constituição a salvo de uma quartelada, uma aventuraarmada, um golpe militar ou coisa que o valha. Como se a desnaturação, ou, pior

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ainda, a supressão pura e simples de uma cláusula pétrea não fosse por si mesma umgolpe. Afinal, para a Magna Carta, que diferença faz entre golpeadores assumidos egolpeadores enrustidos, se ela já não sobrevive às ações de nenhuma das duastipologias de constituicidas (metonímia do vocábulo "constituicídio", que vimos emestudo da lavra de PAULO MODESTO, publicado às pp. 76/78 da Revista de n° 5 do

Ministério Público da Bahia, ano de 1994)?2.8.2.9. A questão não é nova em nossa própria elaboração teórica, pois sobre elaassim já nos pronunciamos em estudo simultaneamente publicado em Espanha ePortugal, sob o título de "A Reforma Constitucional e sua IntransponívelLimitabilidade":"Se o poder constituído pudesse a qualquer momento se travestir de poderconstituinte, alternando a seu gosto os planos do ser e do dever-ser, ele teria apossibilidade de se assumir como coveiro da Constituição que o fez nascer e aí privaria de sentido a própria e verdadeira função constituída, que é, como bem o disseo constitucionalista argentino REINALDO VANOSSI, a de impedir o surgimento deum poder revolucionário.Que paradoxo então se apresentaria aos olhos incrédulos do estudioso dos fenômenospolítico-jurídicos! A Constituição originária criaria um poder cuja função seria a dereformá-la para que ela não perdesse a atualidade e assim atualizada pudesse inibir osurgimento de um poder de fato que a retirasse do mundo dos vivos, e como sairiaaparelhado esse poder de reforma? Sairia aparelhado com a energia assassina de poderse assumir, a todo instante, como aquele preciso poder de fato que a Constituição quisevitar... pra não ser morta.Esse paradoxo não deixaria de se configurar, mesmo naquelas hipóteses em que aConstituição autorizasse a sua total reforma. É que, pela inescapável distinção entre opoder constituinte e o poder constituído, tal autorização de reforma global só pode ter

de global a possibilidade de opção por uma nova estrutura formal da Constituição,como, por exemplo, a roupagem linguística, a renumeração de dispositivos, uma novadistribuição de títulos, capítulos e demais técnicas legislativas de agrupamentológico-operacional de temas afins. Nunca a opção por conteúdos, procedimentos evalores que tornassem a Constituição autorizante um zero à esquerda, porque, aí, opoder constituinte estaria a normar sobre ele mesmo (e não sobre um podersimplesmente constituído), fora daquele mencionada espaço preambular daConstituição (...)."

2.9. O Poder Constituinte como o poder que pode o mais sem poder o menos, e oPoder Constituído como o poder que pode o menos sem poder o mais 

2.9.1. A superação da idéia de autolimitação como fundamento da sumissão doEstado a deveres 

2.9.1.1. Todo este nosso esforço analítico é para dizer, aristotelicamente: "cada coisaem seu lugar". O Poder Constituinte é o Poder Constituinte e o Poder Constituído é oPoder Constituído, mesmo quando este venha a operar sob as vestes de um PoderReformador. As fronteiras que separam as duas categorias têm que ser fixas. Nãoflutuantes, pois o raciocínio técnico, na matéria, não pode deixar de ser maniqueísta.Não pode fugir da radicalidade.2.9.1.2. Deveras, ou o Poder Constituinte impõe a si próprio um campo exclusivo de

atuação, ou perde a razão-de-ser da sua autonomia conceitual. Por dedução, é o que

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sucede com a Magna Carta. Ou ela possui a força de fazer algo sozinha, com absolutaexclusividade, ou decai da condição de documento jurídico supremo.2.9.1.3. Não são meras palavras, mas toda uma lógica elementar que subjaz a essaintransigente distinção entre o que é constituinte e o que é constituído. Edesconsiderar essa lógica estrutural do pensamento político e jurídico é assim como

sobrepor à realista afirmação de que contra fatos não há argumentos o alienante juízo de que contra argumentos não há fatos. É desaprender a lição da História ereexibir um filme cujo tenebroso final já se conhece.2.9.1.4. O Poder Constituinte é e não pode deixar de ser o poder que pode o mais sempoder o menos, pois ele significa a força de elaborar a Constituição, mas não a aptidãopara reformá-la. E o Poder Constituído? É e sempre será o poder de fazer o menossem nunca chegar a fazer o mais, no sentido de que ele detém a competência parareformar a Constituição, claro, mas não a potência para trocar essa Constituição poroutra.2.9.1.5. Bater nessa mesma tecla é o que há de mais didático, mais propedêutico, mais

 profilático nos quadrantes da Ciência Política e da Ciência Jurídica, pois é dessadiferenciação que decorre todo o prestígio dogmático e sociológico da Constituição. Ocharme, o glamour o sex-appeal da Constituição, de que falamos antes, tudo procededo fato de que somente ela pode impor eficazes limites a quem pode impor eficazeslimites à população. E como impor eficazes limites a quem pode impor eficazeslimites à população, se a Constituição já não provém de um poder capaz de dar aúltima palavra em matéria de limitação mesma? Afinal, se a Constituição fosse obrado Estado, toda limitação a ele imposta não passaria de autolimitação. E o Estado quese autolimita encontra em si mesmo o fundamento lógico de sua autodeslimitação, a qualquer momento.21 2.9.1.6. Qual a conseqüência teórica de um Estado que se autodeslimita a qualquer

instante? O reconhecimento de que a Constituição desse Estado não é filha unigênitado Poder Constituinte coisa nenhuma, pois só cabe falar de unigenitariedade  jurídica se se está diante de um modelo prescritivo que, nascido e reformável por um processopeculiar, único mesmo, tenha por principal função metodológica a de manter essapeculiaridade. Contra tudo e contra todos, mormente o Estado.2.9.1.7. Não fosse para o cumprimento desse prioritário papel de dobrar a cerviz legislativa do Estado, jamais o nome "Constituição" passaria a verbete do vocabulário

 jurídico-positivo, a não ser no sentido puramente material de conjunto normativo quese refere "aos órgãos superiores e às relações dos súditos com o poder estatal",conforme se lê em PAULO BONAVIDES, citando HANS KELSEN (p. 64 da obra"CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL", Malheiros Editores, 6ª edição , 1996).

Privando-se, então, do sentido que mais conta para uma científica elaboração doconceito de Constituição, que é o sentido formal.22 2.9.1.8. Indisputavelmente, é pela sua força única de se impor ao Estado que a MagnaCarta pode transitar das suas cláusulas formais de intangibilidade para as cláusulasmateriais igualmente irreformáveis, sem perder de vista nenhum dos dois aspectos.Petrealidade necessariamente dúplice, começando pelas cláusulas formais eterminando pelas materiais. Aquelas, no entanto, posicionando-se como condição egarantia destas últimas (do que deflui o descarte da astuta revisão constitucional emdois tempos, ainda há pouco mencionada).

2.9.2. O Poder Constituinte e sua força de mesclar valores jusnaturalistas e

valores positivistas 

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2.9.2.1. Quando dissemos que a Magna Carta significou a maior revolução jurídica detodos os tempos - e que agora o mundo ocidental passa por uma obscurantista fasecontra-revolucionária -, foi em atenção ao maravilhoso fato de que só a Constituiçãose tornou um definitivo ponto de encontro entre o postulado positivista da Ordem e o

axioma jusnaturalista "da Justiça que advém da reta razão". E, de fato, se o valorfundante do Direito não está nos valores da Paz, ou da Justiça, ou do Bem Comum(devido ao carregado teor de subjetividade desses ideais), porém no valor objetivoda Ordem (que outros chamam de Segurança), perguntamos: Qual o documento

 jurídico-positivo que melhor espelha a idéia de estabilidade em que a Ordem setraduz? O diploma que mais duradouramente lança as regras elementares do "contratosocial", de modo a permitir a todos o conhecimento antecipado das conseqüênciasobjetivas das próprias ações, exatamente como da Ordem falava KELSEN? Claro queesse diploma normativo é a Constituição! Não pode ser outro!2.9.2.2. De outra parte, se se põe como valor fundamental do Direito o postulado

 jusnaturalista do justo-racional, do justo ditado pela reta razão, do "justo por simesmo" (GEORGES BURDEAU, outra vez), é ainda a Constituição odocumento-símbolo por excelência. Nenhum outro modelo jurídico-prescritivo servemelhor a essa idéia central do justo acima de qualquer suspeita. Do quanto deobjetivo pode se conter na Justiça como ideal de convivência humana. E a a fórmulaoperacional é simples. A Constituição melhor realiza a idéia do justo por si mesmo namedida em que pode dizer:I - que ações o Estado não pode praticar perante os indivíduos e os cidadãos(postulado advindo do pensamento liberal e que, ao lado dos mecanismos realizadoresdo princípio da Separação dos Poderes, tem por objeto impedir os abusos do poderpolítico);

II - que ações o Estado tem que praticar perante o poder econômico (postuladooriundo do pensamento social-democrata, para não deixar que o Mercado passe demotor da História a mentor dessa mesma História).2.9.2.3. E como já se sabe que os inimigos figadais do justo-racional são esses doispoderes - o poder econômico e o poder político -, limitar a ambos já significafragilizar quem mais fragiliza aquele ideal de Justiça. Combater os que maiscombatem o justo por si mesmo.2.9.2.4. Se não é possível dizer, com total objetividade, que ações humanasconcretizam ou materializam o ideal do Justo; quais os conteúdos positivos da Justiça;de que ações efetivas depende a convivência em bases justas, é, no entanto,perfeitamente possível dizer que ações humanas são protuberantemente contrárias ao

referido valor. Vale dizer: sabe-se perfeitamente bem que determinados modos de agirsão a negação mesma da Justiça, o seu oposto ou contravalor, comodesenganadamente são a opressão política e a exploração econômica. Esta, a reduzircada vez mais os espaços de inclusão popular na riqueza material do País; aquela, atambém sistematicamente encurtar os espaços de influência da população nosprocessos de tomada de decisão e funcionamento do Estado. Ambas de incidênciafatal, acresça-se, quando se permite ao Estado tudo se permitir.2.9.2.5. Então, o balizamento em si do Estado, e, por tabela, do poder econômico, é oque de mais garantido se pode obter em defesa da Justiça. Um modo de seresguardar a Justiça pelo direto gradeamento da toca dos lobos. E esse papel axial sópode recair sobre a Constituição, na medida em que se lhe reconheça o laço unigênitoque a prende ao Poder Constituinte.

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2.9.2.6. Está aí a demonstração de que somente a Constituição pode se colocarenquanto ponto de convergência do que o juspositivismo e o jusnaturalismo têm demais característico. E assim altaneiramente postada, a Magna Carta se confundecom a própria função principal que lhe cabe cumprir; isto é, mais do que setipificar pelo papel de balizar o Estado (a contenção do poder econômico vem por 

gravidade), a Constituição é a síntese possível, a encarnação mesma, a vivaconsubstanciação desse balizamento. É igual a concluir: mais que até mesmo balizar,a Constituição é balizamento. Não pode deixar de ser, porque o balizamento é a suanatureza, a sua medula, o seu campo divisional operativo.2.9.2.7. O Código e sua principal função, conseguintemente, passam a compor uma sórealidade. Por isso que, resumindo em si a estratégica função de limitar o Estado eo poder econômico, a Magna Lei tem nessa limitação a sua própria causa formal.O tema que mais caracteristicamente recheia o conteúdo de suas normas. Aquilo quemelhor define a sua requintada funcionalidade.23 Assunto a retomar, pela suaessencialidade, já no próximo capítulo.

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Capítulo III - As Especificidades da Constituição 

Sumário3.1. A Constituição como critério de classificação de todo o Direito3.2. A Constituição como critério de hierarquização das próprias normas

constitucionais3.3. A Constituição e a fuga de suas normas a exame de validade3.4. A Constituição e sua retroeficácia de dupla face: em abstrato e em concreto3.5. A Constituição como a lei das leis3.6. O fundamento supra-estatal e suprapositivo da Constituição3.7. A compulsão da rigidez formal da Constituição3.8. A Constituição como atestado de efetiva soberania nacional

3.1. A Constituição como critério de classificação de todo o Direito 

3.1.1. Neste capítulo, indicaremos aquelas especificidades da Constituição que, anosso ver, mais concorrem para demarcar os espaços de radical separação entre elamesma e os atos de sua reforma. O ponto inicial do novo estudo é precisamente aparte em que o capítulo anterior foi concluído. O que dissemos ali reafirmamos aqui:a sociedade política ou nação é a única a experimentar o Poder Constituinte, neleefetivamente se transfundindo e formalizando-o numa Constituição. Como aConstituição não pode deixar de se por na linha de partida do Direito - filha unigênitaque é do Poder Constituinte -, uma nova ilação é de ser feita: a Constituição é um 

 divisor jurídico de águas; ou seja, a primeira classificação que se faz sobre o Direitolegislado é com os olhos postos na Constituição, no sentido de que há umDireito-Constituição e um Direito pós-Constituição. O primeiro, nascido do Poder

Constituinte; o segundo, nascido de um Poder Constituído, discriminado este emPoder Reformador (o que revisa, ou o que emenda a própria Constituição) e PoderLegislativo usual (o que elabora as leis complementares à Constituição, as leisdelegadas, as leis ordinárias e demais atos de formação da vontade normativa primáriado Estado1).3.1.2. Com esta afirmativa de que o Direito pós-Constituição é sempre a manifestaçãode um Poder Constituído, mesmo que tal Direito se expresse por atos de reforma daMagna Carta, negamos o que em outros estudos afirmáramos: a existência de umPoder Constituinte de segunda geração ou de segundo grau, apelidado por boa parteda doutrina como Poder Constituinte Derivado.3.1.3. Não existe esse Poder Constituinte Derivado, pela consideração elementar de

que, se é um poder derivado, é porque não é constituinte (JORGE MIRANDA). Seo poder é exercitado por órgão do Estado, ainda que para o fim de reformar aConstituição, é porque sua ontologia é igualmente estatal. E sendo estatal, o máximoque lhe cabe é retocar o Estado, nesse ou naquele aspecto, mas não criar um Estado

 zero quilômetro. E sem esse poder de plasmar ex-novo e ab novo o Estado (que é ocorrelato poder de desmontar, desconstituir por inteiro o Estado preexistente), então de poder constituinte já não se trata.3.1.4. Como tantas vezes dissemos, o verdadeiro e único Poder Constituinte é umpoder de construção e ao mesmo tempo de demolição normativa, mas sempre com avirtualidade de operar no atacado, no global, de ponta-a-ponta. Forma de atuar,querendo, por inteiro e de uma só vez. Por isso mesmo é que somente ele é queirrompe no cenário político para a epopéia jurídica do começar tudo de novo, de sorte

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a trocar uma Constituição por outra e assim dar à totalidade do Ordenamento Jurídicoum novo fundamento de validade. Não para a função auxiliar do retoque naConstituição vigente, que já é uma função de atualizar, mas não de substituir ofundamento de validade do Ordenamento por inteiro. 3.1.5. Na sua função de atuar debaixo da Constituição, o Poder Constituído é também

ambivalente, mas em um outro sentido. Ora atua como produtor de normas geraisnão-constitucionais (porque não destinadas a mexer na Constituição), ora atua comoprodutor de normas gerais constitucionais (porque destinadas a reformar a própriaConstituição). Mas sempre na condição de um Poder Constituído, porque estatal epositivamente exercitado.2 3.1.6. Se o verdadeiro e único Poder Constituinte é um Poder que pode o mais(elaborar a Constituição), mas sem poder o menos (reformar a sua própria obralegislativa), o Poder Constituído é um Poder que pode o menos (modificar a obra doPoder Constituinte), mas sem poder o mais (trocar uma Constituição por outra),como realçado no capítulo precedente. Tudo a espelhar: quem edita a Constituiçãoestá impedido de reformá-la, e quem reforma a Constituição está impedido de editá-la,pois aquele que só existe para fazer o todo não pode fazer a parte e aquele que sóexiste para fazer a parte não pode fazer o todo (evidência palmar). Maisenfaticamente: se o Poder Constituinte é o poder de constituir a Constituição -não apenas normas constitucionais -, o Poder Reformador é o poder de constituirtão-somente normas constitucionais. Não a Constituição.3.1.7. É do nosso pensar que, no fundo, categorizar como Poder ConstituinteDerivado o poder de reforma da Constituição é cair numa ilusão de ótica: ver o PoderConstituinte Originário (o vocábulo "originário" é até dispensável, porque pleonásticoou redundante) como o poder de elaborar normas constitucionais. Não é. O que essePoder elabora é a Constituição (reiteremos o juízo, pela sua fundamentalidade).

Não-simplesmente normas constitucionais, porque normas constitucionais o Estadotambém produz, no uso do seu poder reformador.3.1.8. Se toda norma contida em dispositivo da Constituição originária é normaconstitucional, nem toda norma constitucional é norma contida em dispositivo daConstituição originária. Mais até: se toda Constituição é um repositório de normasconstitucionais, nem todo repositório de normas constitucionais é uma Constituição(basta que lembremos as normas transitórias que se veiculam por emenda, ou porrevisão, que são normas destinadas a vigorar de forma paralela ao Magno Texto, e nãodentro dele). Donde a nossa afirmação de que o Direito legislado principia peloDireito-Constituição e prossegue com o Direito pós-Constituição. A Constituição (enão suas emendas ou revisões) a se postar como inafastável critério de classificação

de todo o Direito.3 3.1.9. Quando os jurisperitos bifurcam o Direito legislado em público e privado,incorrem no erro (venia concessa) de tomar a parte pelo todo. O que se divide empúblico e privado é o Direito pós-Constituição, que já e um Direito elaborado pelolegislador constituído: Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal,Direito Civil, Direito Comercial e demais "províncias" ou setores cientificamenteautonomizados do Direito. Só que essa parte do fenômeno jurídico-positivo, antes decomportar segmentação interna em províncias ou setores - e daí em ramos públicos eprivados do Direito -, já se põe como contraponto do Direito-Constituição. É osegmento não-constitucional-originário do Direito. Uma parte, apenas, da grandeárvore jurídica, e não toda a árvore.

3.1.10. Se o critério de classificação dos ramos jurídicos em públicos e privados é a

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nítida vertente que eles ostentam para compor relações, ora de tratamento paritáriodos interesses das partes (Direito Privado), ora de tratamento favorecido daquela parteque simboliza os imediatos interesses da sociedade (Direito Público), não há comodizer a que bloco pertence o Direito Constitucional. É que ele tanto contém segmentosnormativos de favorecimento das pessoas privadas perante aquele que simboliza os

imediatos interesses da sociedade (e essa contraparte é a pessoa jurídica do Estado,lato sensu) quanto o inverso. O que nos estimula a formular a proposição de que oDireito Constitucional é ramo jurídico, sim, porém nem rigorosamente público nemprivado.3.1.11. Adicione-se a esta particularidade (a de ser o Direito Constitucional infenso àscategorias do público ou do privado) mais uma nota específica: a Constituição édocumento normativo tão singular que não se confunde nem mesmo com o somatóriomecânico de suas normas. Ela é mais que o resultado do ajuntamento linear das suaspartes, a ponto de mais adiante demonstrarmos que, seja qual for o ato de reformaconstitucional, a Constituição deve permanecer inteira em sua quintessência.Mudam-se algumas de suas partes para que o todo prossiga idêntico a si mesmo.3.1.12. Ante a Constituição, mais do que perante qualquer outro diploma jurídico, épreciso tocar nas suas normas com a delicadeza de quem lida com peças de cristal. Elaconsubstancia um tipo tão articulado de unidade que faz lembrar a composição e osentido de um poema. Se este se constitui de palavras, tais palavras somenteconservam íntegro o seu papel de servir a uma obra de arte se permanecerem nocontexto da poesia e no exato lugar em que se encontrem. Permutá-las, substituí-las,destacá-las do conjunto, seccioná-las, enfim, é quase sempre repetir o fenômeno quedecorre de se colocar, hipoteticamente, um pouco de qualquer das ondas do mar emum balde: a onda removida perde instantaneamente a qualidade de onda, que é umacoisa viva ou em movimento, e passa à condição de simples água salobra, que é uma

coisa morta ou sem mobilidade própria. No caso da poesia, o que era a riqueza de umpoema fica rebaixado à pobreza de simples vocábulos, como tantos outros. Enfim, opoema é o somatório de suas palavras, lógico, porém diz mais que o somatório desuas palavras, pois nele ainda contam os intervalos, as entrelinhas, a teia invisível quevai de uma vocábulo a outro e de uma expressão a outra, na exata disposição de cadaverso e de cada estrofe na ossatura do conjunto. E tudo isto quer dizer que o poema,como a Constituição, fala pelas palavras nele grafadas e ainda fala por palavras quenele não foram grafadas. O verbal a conviver com o não-verbal, a serviço da mesmacausa, cumprindo o não-verbal o papel do silêncio-eloqüente; ou seja, o silêncio que

 já não traduz a intenção do nada-dizer, mas que se faz silêncio mesmo para podermelhor dizer.

3.2. A Constituição como critério de hierarquização das próprias normasconstitucionais

3.2.1. Centremos agora as nossas atenções investigativas na distinção entre a CartaMagna e o Direito Constitucional como um todo, porque o Direito Constitucionalcomo um todo tem na Constituição o seu necessário ponto de partida, é verdade, masnão o de chegada. Ele ainda engloba as normas de reforma constitucional e o fato éque essas normas não têm a mesma hierarquia da Constituição. Tanto não têm que seassujeitam a exame de validade perante, justamente, a Constituição.3.2.2. Conforme dissemos em nota de rodapé, não se recusa aos atos de reforma

constitucional a força de se incorporar ao documento reformado, desde que veiculem

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normas permanentes. Mas se trata de uma incorporação normativa sempre a títuloprecário, porque sindicável a todo instante quanto à sua validade. Eles não podem seautoexcluir do controle de constitucionalidade e isto já comprova que o seu modode entrar no santuário da Constituição é sempre condicionado, e, por conseqüência,menos altivo.

3.2.3. Esse condicionamento ou essa precariedade de inserção no Magno Texto nãosignifica, óbvio, que somente depois de passar pelo crivo jurisdicional de validade éque todo ato de reforma constitucional ganha o status de norma de primeiro escalão

 jurídico. Se tal ocorresse, as emendas e revisões constitucionais se privariam daquiloque nem às leis comuns e aos demais atos oficiais do Poder Público é recusado: apresunção de juridicidade. O que vem a significar ingresso menos altivo dos atos dereforma da Constituição no próprio documento reformado é que esse ingresso podeser confiscado; ou seja, sem a necessidade de nova manifestação formal do PoderReformador, a norma que penetrou na Constituição pode sofrer cassação deeficácia. Ora de forma definitiva (pela via do controle concentrado), ora para umdeterminado caso (pelo trilho do controle difuso).3.2.4. Seja qual for a hipótese de desaplicação ou de desconsideração operacional doato de reforma, o certo é que existe uma diferença qualitativa - nunca é demaisenfatizar - entre as normas constitucionais originárias e aquelas que se lhe seguiremtemporalmente. Coisa que não existe em nenhum outro ramo autonomizado doDireito.3.2.5. Nos outros ramos jurídicos, os códigos por acaso existentes, se constituem aparte central de tais ramos, não gozam, todavia, de superioridade hierárquica frente àsleis extravagantes (assim designadas por vagarem a latere do código). Leisextravagantes, que, nascidas posteriormente ao código, não têm o seu regime

 jurídico ditado pelo código mesmo. É incorreto falar-se de qualquer dos códigos

infraconstitucionais como lei das leis de sua própria reforma, ou complementação. Doque decorre a impropriedade técnica de se buscar nos códigos infraconstitucionais ofundamento de validade das regras legislativas que se lhes sobrevierem.3.2.6. Fora do Direito Constitucional, assim, tudo se encarta de modo igualitário numaúnica província jurídica. Por isso que não cabe falar, verbi gratia, de Direito Penal eCódigo Penal, ou de Direito Mercantil e Código Mercantil, ou de Direito Processual eCódigo Processual, porque esse tratamento nominal diferenciado não tem a menorrelevância interpretativa. As eventuais antinomias normativas se resolvem pelosconhecidos critérios da posterioridade (a lei mais nova prepondera sobre a maisvelha), ou, então, da especialidade material (a lei especial revoga a lei tematicamentegeral, mas não o contrário), à falta de hierarquia entre os respectivos comandos legais.

3.2.7. Não é esse o modelo de compreensão da dualidade temática DireitoConstitucional/Constituição. Aqui, é procedente a diferenciação nominal, porque essadiferenciação repercute no campo hermenêutico. E repercute, pela cristalina razão deque as eventuais antinomias entre a Constituição e as normas constitucionais que lhesejam posteriores já não se resolvem por aqueles dois critérios da posterioridade doespécime normativo, ou da especialidade de assunto. O critério dirimente é um só, eele é de ordem hierárquica: ou as normas de reforma da Constituição guardam aquelaconformidade processual e material que lhes assinalou a própria Constituição,(pense-se na intocabilidade das chamadas "cláusulas pétreas", verbi gratia) ou seexpõem à declaração judicial de invalidade.3.2.8. Por conseguinte, mais que segmento central do Direito Constitucional, aConstituição é a parte superior desse ramo jurídico. Mantém com ele o mesmo tipo

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hierarquizado de relação que entretece com o próprio Ordenamento como um todo. Éuma das suas mais importantes especificidades, que, todavia, não tem merecido dadoutrina o devido realce.4 3.2.9. Ao cabo e em síntese, nenhum ramo ordinário do Direito comporta o que oDireito Constitucional incorpora: a dicotomia entre as suas próprias normas, pelo

critério da hierarquia. O que não significa dizer que exista diversidade hieráquicano interior da própria Constituição originária. Aqui, todas as normas sãoparitariamente constitucionais, como um pouco mais à frente comentaremos.

3.3. A Constituição e a fuga de suas normas a exame de validade 

3.3.1. Ora, se a Constituição não deixa que suas normas se nivelem às normasconstitucionais que se lhe seguirem no tempo, é porque tem a força originária dedispor sobre o regime jurídico destas últimas. E só pode tê-lo, na medida em queela, Constituição, seja completamente insubmissa a exame de validade jurídica.3.3.2. Com efeito, sendo a validade uma espécie de ticket ou bilhete que uma normainferior recebe da que lhe seja imediatamente superior para ingresso na região daspositividades jurídicas, como exigi-la para a Constituição Positiva, se a ConstituiçãoPositiva já aparece como norma superior a todas as outras? Postada, solitariamente, nomais alto patamar do esquema de supra-infra-ordenação em que o Direito consiste?3.3.3. Por outro aspecto, sendo a validade uma qualificação internormativa, dado queoperante de uma norma para a outra, é preciso que a norma qualificante seja, nãoapenas superior, como anterior à norma qualificada. E isto já inviabiliza qualquertentativa de se impor à Constituição o exame de validade, pelo fato evidente de que aConstituição desconhece norma positiva que lhe seja anterior, no plano lógico. Se elaé o início lógico de toda positividade jurídica (KELSEN, MERKL, VERDROSS), não

há como fazer o cotejo internormativo em que se exprime o juízo de validade.3.3.4. É mesmo por surgir no mundo cultural como o ponto mais alto da pirâmide jurídica, sem a companhia de qualquer outra norma, que a Constituição dá origem aoconceito de validade como atestado de filiação de uma norma ao OrdenamentoJurídico.5 Sem ela, Constituição, o Ordenamento já não seria piramidal ouortodoxamente hierarquizado, e aí toda noção de validade seria praticamente vã.Bastaria que a norma existisse, fosse produzida por uma autoridade do SistemaNormativo, para ao Sistema pertencer para sempre.3.3.5. No fim das contas, então, não é a Constituição que deita raízes no exame devalidade, mas o exame de validade é que deita raízes na Constituição.3.3.6. Afirmar, assim, que a Lei das Leis é totalmente imune a exame de validade

aclara a precedente afirmativa de que ela não inova o Ordenamento Jurídico, não entraem um anterior Ordenamento Jurídico, pois como inovar uma coisa ou entrar em algoque só passa a existir, logicamente, por virtude da Constituição mesma?3.3.7. Não que a Magna Carta vigore apenas ao lado do Ordenamento. Paralela a ele.A Constituição faz parte do Ordenamento, sim, porém como algo situado do ângulode cima, e não simplesmente do ângulo de dentro. A cúpula do Ordenamento é quese objetiva na Constituição e esse estar por cima é o modo especialíssimo pelo qual sedá a interpenetração das duas realidades: a da Constituição e a do Ordenamento.3.3.8. Por outra perspectiva, se o modo de a Constituição fazer parte do Ordenamentonão se dá por virtude de nenhuma outra norma (o Ordenamento é que principia com aConstituição, e não a Constituição com o Ordenamento), o modo de ela mesma sair

desse Ordenamento é igual àquele pelo qual entrou: a suprapositividade, que é o

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reino da sempre originária manifestação do Poder Constituinte. Donde a compreensãode que todo ato de convocação ou de instalação de um órgão de deliberaçãoconstituinte só pode implicar rompimento constitucional no plano do dever-ser

 jurídico ("ruptura ou descontinuidade", no preciso falar de CANOTILHO). Nãonecessariamente no plano do ser, que tanto comporta uma passagem traumática ou

violenta de uma Constituição para outra quanto uma substituição consensual ounegociada.3.3.9. Como derradeira ilação do fato de a Lei Maior eximir-se por completo deexame de validade, aduzimos que essa proposição está imbricada com outra: aaptidão que tem a Constituição originária para não conhecer tabus materiais. Elapode conformar toda e qualquer matéria, isentando-se, conseguintemente, decompromisso com a preservação de norma jurídica anterior, e, em alguns casos, comos efeitos concretos dessa ou daquela regra antecedente. E é precisamente por ter aConstituição a força de incidir, querendo, até mesmo sobre relações jurídicas emconcreto, é precisamente por isso que se fala não haver direito adquirido contraela.6 

3.4. A Constituição e sua retroeficácia de dupla face: em abstrato e em concreto 

3.4.1. A retroeficácia da Constituição, em abstrato 

3.4.1.1. Sem dúvida, a Constituição originária se caracteriza pela força de rompercompromisso com as normas jurídicas anteriores a ela. Ninguém melhor do que oChefe da Escola de Viena para falar sobre a instantânea perda de eficácia de todanorma que, gestada antes da Constituição, com a Constituição passe a entrar em rotade colisão no plano material.

3.4.1.2. A questão que se põe não é essa, pois a Constituição Positiva, sendo normageral ou lei em sentido material, não haveria mesmo de tolerar outras normas geraiscom ela conflitantes em conteúdo (a não ser nos termos e condições em que odissesse, explicitamente, em dispositivo logicamente passageiro ou transitório). Desdeque tudo se aloje num plano igualmente abstrato, é indiscutível a prevalênciaautomática do regramento de estirpe constitucional.3.4.1.3. A abstratividade, assim, é o habitat ou espaço natural de existência daCarta Magna, pois ela chega para ocupar espaços que são próprios de todas as leisem sentido material. A subsunção que se passa a fazer no seio do Ordenamento, apósa nova Constituição, é logicamente do tipo norma a norma. Da lei infraconstitucionalpara a Lei Fundamental. Do que deflui o primeiro sentido da retroeficácia da

Constituição: ela não aceita, em suas disposições permanentes, que normasigualmente abstratas continuem a gerar efeitos, no interior do mesmo Ordenamento,se tais normas apresentarem conteúdo discrepante daquele que timbra a nova regraçãoconstitucional.3.4.1.4. Pelo ângulo reverso, as antigas normas gerais que entrarem em sintoniamaterial com a nova Carta são instantaneamente carimbadas como normassobreviventes. Com uma exceção, todavia. Cuidando-se de velhas normas gerais denatureza constitucional, sejam as regras iniciais da antiga Lei Maior, sejam asoriundas de reforma a essa Constituição precedente, nada sobrevive ao novo TextoMagno. O princípio da recepção é seletivo por mais um título, pois somente alcançaaquelas normas gerais anteriores que, além de se revelarem acordes com a nova Lei

Fundamental em conteúdo, não tenham sido geradas nem pelo Poder Constituinte nem

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pelo Poder Reformador.3.4.1.5. Tudo muda de perspectiva, porém, quando o teórico se desloca do campo dasprecedentes normas gerais para o sítio das normas de efeitos concretos. Aqui, oteórico tem que se perguntar até que ponto um novo Código Supremo possui aptidãopara desfazer efeitos que normas jurídicas anteriores já produziram à exaustão, ou

então para estancar efeitos que tais normas ainda estejam a produzir entre partesnominalmente identificáveis. O plano retroeficacial já não é o mesmo, pois o fato éque, agora, a Constituição não mais está no seu habitat. Ela não chega para atuarenquanto norma de efeitos concretos, para com outras normas de efeitos concretos seencontrar, ora em regime de harmonia conteudística, ora em situação de desarmonia.A não ser que o diga por forma inequívoca, no gozo de sua condição ímpar de normaque provém de um poder que tudo pode.3.4.1.6. É justamente para ressalvar a sua excepcional vontade objetiva de retroagirsobre essa ou aquela relação jurídica em concreto que toda Constituição Positiva sefaz acompanhar de uma parte transitória de dispositivos (de parelha com anecessidade de indicar os casos, ou o período, em que a sua parte permanente deixa deincidir). É falar: sempre que a nova Carta Política se deseja topicamente aplicável arelações já factualizadas por virtude de normas antecedentes, ela mesma reconheceque se trata de aplicabilidade insólita, pois expressamente passa a dizer querelações jurídicas são essas. Ao contrário, pois, da sua postura no âmbito doconfronto entre normas gerais (as da Constituição e as do Direito não-constitucionalprecedente), sobre o qual nada é preciso dizer. O silêncio da nova Carta já operacomo cassação de eficácia das velhas normas gerais cujo conteúdo com os delaprópria se tensionar.

3.4.2. A retroeficácia da Constituição, em concreto 

3.4.2.1. Realmente, nem por se traduzir na força de zerar a contabilidade jurídica anova Carta há de ser interpretada como automaticamente inconvivível com toda equalquer relação jurídica nascida e até resolvida à sombra do velho Ordenamento,sempre que tais relações concretas se friccionarem com os novos comandosconstitucionais. Não! A retroeficácia constitucional não chega a tanto, pois, se talocorresse, o novo Diploma Fundamental passaria a se caracterizar pela intransigentenegação daquilo que é uma das impressões digitais de todo Magno Texto: operarcomo a parte mais estável do Ordenamento Jurídico. Aquele pedaço do Direito que mais prestigia o princípio da segurança jurídica, invariavelmente erigido àcondição de megaprincípio, de permeio com a própria vida, a liberdade, a igualdade e

a propriedade (postulados liberais que marcam para sempre a trajetória dasConstituições escritas).3.4.2.2. Ela, Constituição, para retroincidir sobre situações já consolidadas nouniverso jurídico-particular das pessoas tem que fazê-lo por explicitude, ou, nomínimo, por forma a revelar sua claríssima intenção retro-operante. E assim tem quefazê-lo, porque tais situações jurídicas são constitutivas do direito adquirido, ou do ato

 jurídico perfeito, ou da coisa julgada, institutos em que mais fortemente reluz o protoprincípio da segurança jurídica, uma das históricas razões-de-ser dasConstituições escritas. Daí a freqüente positivação de todos eles como típicas figurasde Direito Constitucional.3.4.2.3. No Brasil, mesmo, a norma constitucional que versa a matéria (inciso XXXVI

do art. 5°, segundo a qual "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico

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perfeito e a coisa julgada") faz parte do capítulo atinente aos direitos e garantiasindividuais e coletivos . Direitos e garantias que vão compor uma paliçada defensivados particulares contra o Estado, principalmente, e que ainda são clausulados comotema insuscetível de nova conformação de menor carga protetiva do indivíduo, atémesmo por via de emenda constitucional (inciso 4° do § 4° do art. 60).7 

3.4.2.4. Ora, no desfrute dessa altaneira posição intra-sistêmica, natural que as trêsestelares figuras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgadaexijam um tipo de interpretação que se traduza no seguinte: a garantia em que elasse constituem na nova Ordem há-de ser uma confirmação daquela igualmentereconhecida pelo velho Ordenamento. Salvo se regra transitória da novaConstituição lhes cassar por modo expresso a respectiva eficácia, ou se a partepermanente da mesma Carta agasalhar normação que prime pela hostilidade àcontinuação tipológica de qualquer delas. Até porque - reconheçamos - uma  generalizada exumação de relações jurídicas em concreto faria do novo CódigoPolítico um diploma normativo tão confessadamente odioso que tocaria os debruns dainsanidade. Do terrorismo normativo. Colocaria a sociedade em polvorosa ou de

 pernas para cima, o que terminaria por retirar da Constituição a própria possibilidadelógica (eficácia) e social (efetividade) de incidência, pois o febricitante revolver  de sepulturas  jurídicas teria que alcançar relações cujos autores seguramente já nãoestariam neste mundo de "aquém-túmulo" (MÁRIO DE ANDRADE, o poeta).Principalmente se considerarmos o tempo médio de vida de uma Constituição - que éexpressivo - e a freqüente imemorialidade de certas relações jurídicas em concreto(qual o marco temporal da retroação da nova Carta? A última Constituição? Apenúltima? A primeira delas?).3.4.2.5. Em sede de relações concretas, portanto, a estabilidade que a novaConstituição imprime àquelas que se produzirem a partir dela mesma, Constituição, é

de se presumir como operante para as que se produziram antes da nova ordemconstitucional. O silêncio da nova Carta cumpre um papel de preservação do que jágozava de concretitividade, tanto quanto cumpre um papel de não-preservação dosmodelos jurídicos apenas existentes no plano da abstratividade, se tais modelos serevelarem desafinados, em conteúdo, com a nova regração constitucional. Dupla edíspare função do silêncio normativo-constitucional.3.4.2.6. Reiteremos o juízo, pela sua estratégica importância. Para sonegar eficácia àsnormas gerais anteriores e de conteúdo discrepante, a nova Constituição nada precisadizer. Como nada precisa dizer para manter íntegras as relações em concreto que viera encontrar (desde que tais relações contenham o timbre da definitividade), ainda quedela desbordantes. Reversamente, para manter por algum tempo, ou em dadas

circunstâncias, uma norma geral anterior de conteúdo discrepante, a Constituiçãoprecisa dizê-lo. Como precisa dizer que relações em concreto (já carimbadas pelavelha Ordem como situações ativas de caráter permanente) passarão a sofrerdesfazimento ou paralisia eficacial. Tudo se resume em saber distinguir entre oque existia enquanto modelo jurídico em abstrato e enquanto modelo jurídico emconcreto, ao tempo da promulgação do Magno Texto.3.4.2.7. A Constituição Brasileira de 1988 é um bom retrato falado do que estamos aproposicionar, na medida em que:I - para estancar a eficácia das normas gerais anteriores com ela discrepantes, nadaprecisou dizer. Como nada precisou dizer para preservar a operatividade daquelasnão-discrepantes;II - para ressalvar a eficácia temporária de norma geral com ela (Constituição) em

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estado de fricção material, sacou de preceitos desta espécie: a) "Art. 25. Ficamrevogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeitoeste prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam oudeleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição aoCongresso Nacional, especialmente no que tange a (...)"; b) "Art. 27°. (...). § 7°. Até

que se instalem os Tribunais Regionais Federais, o Tribunal Federal de Recursosexercerá a competência a eles atribuída em todo o território nacional (...)";III - para rever o passado das pessoas que já encontrou na posição de partícipes derelações consubstanciadoras de direito adquirido, ato jurídico perfeito, ou coisa

 julgada, não deixou de se fazer explícita no seu corpo transitório de dispositivos.Assim é que, ilustrativamente: a) atacou o direito adquirido, por conduto do artigo 17,ao rezar que "Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bemcomo os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo coma Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não seadmitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso aqualquer título";8 b) imiscuiu-se no conteúdo de decisões judiciais com trânsito em

 julgado, ao prescrever, no art. 33, que "Ressalvados os créditos de natureza alimentar,o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação daConstituição, incluído o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pagoem moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, noprazo máximo de oito anos, a partir de 1° de julho de 1989, por decisão editada peloPoder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição"; c) voltou amexer no teor da coisa julgada, de par com atos jurídicos perfeitos, ao estatuir, no art.47, que "Na liquidação dos débitos, inclusive suas renegociações e composições,ainda que ajuizados, decorrentes de quaisquer empréstimos concedidos por bancos epor instituições financeiras, não existirá correção monetária desde que o empréstimo

tenha sido concedido: (...)".3.4.2.8. Percebemos, de conseguinte, que deve ser recebida em termos ou sob aprudente cláusula do modus in rebus a asserção de que "não há direito adquiridocontra a Constituição".

3.4.3. A retroeficácia apenas em abstrato das emendas à Constituição 

3.4.3.1. Tratando-se, contudo, de confrontar situações em concreto com os atos dereforma constitucional, até o modus in rebus ("para cada coisa existe a sua medidaprópria") deixa de ser admitido, porque, agora, o equacionamento jurídico da questãomuda acentuadamente de foco. Em Estados como o Brasil, emenda não é a matriz

normativa do direito adquirido, nem do ato jurídico perfeito, nem da coisa julgada, para poder se autoexcluir, ou não, de incidência perante as trêsemblemáticas figuras.3.4.3.2. Quando o confronto a fazer é entre as normas gerais das emendas e as normasgerais de vinco infraconstitucional, é claro que a primazia é das emendas, desde que oPoder Judiciário não as declare inválidas. Todavia, quando o cotejo se dá entre anormatividade das emendas e as multirreferidas situações jurídicas em concreto (quesão relações já permanentemente ornadas de subjetividade), o olho do analista deve sedeter é no originário modo pelo qual a Lei Maior dispôs sobre a matéria, pois somenteela, Constituição originária, é que tem o condão de se colocar para dentro ou para forada faixa da retroincidência.

3.4.3.3. O mencionado inciso XXXVI do art. 5° da Constituição de 1988 não nos

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deixa em desamparo argumentativo. Ele consagra um tipo de garantia contra afunção legiferante do Estado, agindo este assim no exercício da função legislativausual como da função reformadora.3.4.3.4. Expliquemos. O dispositivo em tela consigna "uma garantia" (PAULOMODESTO), mas não veicula, por si mesmo, nenhum direito adquirido, nem ato

 jurídico perfeito, ou coisa julgada. O que ele proclama é a garantia de que o direitoque se adquirir por virtude imediata da lei (direito adquirido, propriamente), ou porreconhecimento de um ato jurídico que se aperfeiçoou nos seus elementos formadores(ato jurídico perfeito), ou ainda de uma decisão judicial em estado deirreformabilidade (coisa julgada), esse direito assim qualificadamente adquirido seráum direito completamente a salvo de prejuízo por lei posterior.9 3.4.3.5. A norma do inciso XXXVI do art. 5°, sobre ser de eficácia completa eaplicabilidade imediata ou não-di ferida, implica dois raciocínios jurídicos:I - o primeiro, é de que ela é uma cláusula pétrea em si mesma, dado que faz parte darelação dos direitos e garantias individuais. Logo, não admite revogação, ou sequerderrogação amesquinhadora, nem mesmo por emenda constitucional. Regra em simesma ou objetivamente protegida contra a função legiferante do Estado;10 II - o segundo raciocínio traduz-se em que os direitos adquiridos, os atos jurídicosperfeitos e as coisas julgadas que vierem a ocorrer, a factualizar-se no processo deaplicação/criação do Direito Objetivo, gozarão igualmente de petrealidade, porémnum sentido tópico ou pontual, porque restritamente subjetivo.3.4.3.6. Note-se bem. Agora, o que fica a salvo de retroatividade da lei não é odispositivo sob cuja preceituação nasceu o direito apelidado de adquirido, ou foiexpedido o ato jurídico perfeito, ou prolatada a res judicata. Não! O que fica imune àretroatividade danosa da nova lei são determinados efeitos da velha regra legal.Sejam os efeitos deflagrados imediata e exclusivamente pela norma em abstrato

(direito adquirido), sejam aqueles que precisaram de confirmação pela via do ato jurídico dito perfeito, ou da decisão judicial que se transformou em coisa julgada.3.4.3.7. A distinção essencial é esta: a norma geral, enquanto "pedaço de vida humanaobjetivada" (RECASÉNS SICHES), pode ir embora do Ordenamento (porrevogação), ou ter a sua carga protetiva quebrantada (por derrogação), mas não éexatamente isto o que sucede com todos os seus efeitos . Aqueles efeitos que já seexteriorizaram sob a forma de direito adquirido, ou de ato jurídico perfeito, ou decoisa julgada, já não podem sofrer desfazimento, paralisia, ou quebrantamento.Continuam, íntegros, a repercutir no restrito universo de certos atores, pois jápassaram de efeitos objetivos a subjetivos, e, mais que isso, permanentes eidentificáveis pelos nomes patronímicos ou nomes pessoais dos seus beneficiários.11 

3.4.3.8. O que fica intocável, portanto, é aquela dimensão da norma geral que passou,em caráter definitivo, de pedaço de vida humana objetivada a pedaço de vidahumana subjetivada. O que se protege, então, já não é a norma geral, masdeterminados titulares do direito por ela ensejado. Tudo em homenagem ao basilarprincípio da segurança jurídica, pois, se já não se proclama, com toda ênfase, aexistência desse princípio, o corolário será aquele de que falava DOSTOIÉVSKI arespeito do próprio Deus: "Se Deus não existe, então tudo é permitido". E tudo épermitido (acrescentamos), porque já não faz sentido vedar para os crentes coisaalguma, pois, sem Deus, eles perdem o referencial da suprema bondade, da supremabeleza, da suprema verdade e da suprema justiça; rolando, quem sabe, nodespenhadeiro da barbárie ou da guerra de todos contra todos.

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3.4.4. O fenômeno da ultra-atividade, na matéria

3.4.4.1. Em todas as três situações em concreto, o que se tem é o fenômeno da"ultra-atividade" relativa da norma geral de que elas derivaram, porque, para essanorma geral, um novo marco temporal se estabelece: ela já não deflagra os efeitos

inéditos que estava apta a deflagrar no universo particular de novos atores jurídicos,mas conserva, ou seqüencia (conforme o caso), os efeitos que já deflagrou ou aindaestá a deflagrar na vida de determinados agentes.3.4.4.2. Essa ultra-atividade ou ultra-operatividade é apenas tópica ou pontual (porisso que relativa), na medida em que adstrita à subjetividade de atores em concreto,nominalmente identificáveis. É compreender: onde continua a operar a velha regrageral ou abstrata, a nova não pode incidir. Ou, por inversão de pensamento: ondetem que deixar de incidir a nova regra geral ou abstrata, continua operando avelha regra. Logo, são normas gerais que se interpenetram no tempo, mas sem apossibilidade de se entrecruzar no espaço de movimentação daqueles sujeitos derelações que se tornaram ativas por virtude do direito adquirido, ou do ato jurídicoperfeito, ou da res judicata.3.4.4.3. Uma coisa a lembrar: certas situações jurídicas ativas são incompatíveis coma figura do direito adquirido porque têm a particularidade de nascer maiscondicionadas pelos interesses da sociedade do que condicionando tais interesses.Razão pela qual os seus titulares nunca deixam de ser eventuais titulares. Titularessempre em estado de precariedade. Por exemplo, o proprietário de um bem deprodução jamais pode se eximir de normas legais quanto a certos modos de pôr o seubem a render e quanto à fiscalização do Poder Público sobre esses modos econômicosde exercício de direito. Diga-se o mesmo do uso de um automóvel em via pública. Ouquanto à detenção de certas competências administrativas perante o administrado. Ou

no que tange à localização de um estabelecimento mercantil, ou industrial, se semodificam as leis de zoneamento do respectivo Município. Ou ao fato de servidorespúblicos se encontrarem sob determinado regime de trabalho.12 Enfim, asprefigurações espocam e trazem à nossa mente outras situações que também parecemnão se compadecer com a figura do direito adquirido. Queremos nos reportar a certasrestrições diretamente constitucionais àquele tipo de liberdade contratual que não seorna de conteúdo econômico ou mercantil, como, por exemplo, a que vigia entre nós arespeito do divórcio. Isto não significava que as pessoas civilmente casadas tivessemo direito adquirido a permanecer privadas da possibilidade de se divorciarem (não hádireito adquirido à privação ou à inibição do próprio fazer ou do agir). Significava,apenas, que a liberdade de contrair novas núpcias estava constitucionalmente

cerceada. O que vigorava era uma restrição, uma exceção à liberdade núbil daspessoas, passível, no entanto, de remoção por emenda constitucional, a qualquertempo (como veio a suceder, em nosso País, com a emenda n° 9/77 à Carta de 1967).Sem que nenhum dos membros da sociedade conjugal que se desfez pela via dodesquite pudesse contrapor à retroincidência da emenda a tese do direito adquirido,pois que de direito adquirido não se tratava (não existia o direito subjetivo de não sedivorciar - renove-se o juízo -, mas a ausência do direito subjetivo de sedivorciar, o que é bem diferente).3.4.4.4. Outra coisa a lembrar é que o direito subjetivo que se eleva ao patamar dodireito adquirido (o adquirido é um plus em relação ao direito subjetivo) pode até nãose encontrar em fase de exercício. Nem por isso deixa de ser direito adquirido, pois oexercício pode ficar pendente de pressupostos, a saber:

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I - a própria vontade do titular do direito, que, podendo efetivamente se entronizar nogozo do que é seu, prefere a inação;II - o aguardo do lapso temporal, ou do preenchimento de certa condição, prefixadospela própria norma geral. Mas prefixados, não como requisitos de obtenção dodireito (matéria de outra norma), e, sim, como requisitos do respectivo exercício; ou

seja, é preciso distinguir entre a norma geral que indica os pressupostos de obtençãodo direito... e a norma igualmente geral que dispõe sobre a implementação de termoou de condição para a empírica fruição daquele mesmo direito que a primeira normaelementarizou. Dois momentos inconfundíveis de normatividade abstrata, como se dá,por hipótese, com as férias anuais de um trabalhador: são adquiridas a cada ano detrabalho, porém gozadas até o final do ano subseqüente, por conveniência dorespectivo empregador. Ou como sucede com o direito à aposentadoria voluntária,que, uma vez obtido, somente será exercitado quando da expressa manifestação dorespectivo titular (por isso que tal modalidade de aposentação é chamada devoluntária).

3.4.5. A inclusão das emendas à Constituição no conceito genérico de "lei"

3.4.5.1. Retornando a lidar com o bloco dos três institutos, aduzimos que não temrelevância o fato de a legenda constitucional somente incluir a lei (não a emenda)como norma proibida de retroagir para prejudicá-los ("a lei não prejudicará o direitoadquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"). Já enfrentamos academicamentea questão, em parceria com VALMIR PONTES FILHO ("DIREITO ADQUIRIDOCONTRA AS EMENDAS CONSTITUCIONAIS", estudo publicado no bojo dacoletânea DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL, vol. II, MalheirosEditores, ano de 1997, pp. 151/161), e os fundamentos então lançados parecem-nos

resistir a contraditas. Ampliamo-los até, nesta oportunidade, convencidos que estamosde que a Lex Legum encerra, na matéria, o seguinte esquema de interpretação:I - tudo que a lei está habilitada a fazer fica inteiramente à mercê das emendasconstitucionais, sem que a Magna Carta necessite, portanto, de dizê-lo às expressas;II - daqui não se deduz, entretanto, que tudo aquilo que a lei não esteja habilitada afazer fica também interditado às emendas. Nada disso! As emendas constitucionaispodem tudo que a lei pode e vão além: podem tudo que a lei não pode, salvanterecair sobre matérias clausuladas de petrealidade pela Constituição.3.4.5.2. Pronto! É esse racional esquema de exegese da Constituição que explica ofato de ela própria, Constituição, jamais dizer sobre que matérias podem recair asemendas. Não há necessidade da indicação desse vínculo entre determinadas matérias

e a conformação normativa por via de emenda, porque a emenda pode tudo que aMagna Carta reserva para as leis (pouca importa se leis ordinárias, oucomplementares, ou delegadas, etc.).3.4.5.3. Em tema de suas próprias emendas, quando o Código Político substitui osilêncio pela fala expressa é para dizer o que elas não podem. Elas não podemincidir sobre as matérias clausuladas como pétreas ou intangíveis ou irreformáveis,como, por exemplo, "a forma federativa de Estado", "o voto direto, secreto, universale periódico", "a separação dos Poderes" e "os direitos e garantias individuais" (de cujarelação a garantia dos direitos adquiridos faz parte, quer referentemente aos direitosconcedidos por regra constitucional, quer os deferidos por outra modalidade de lei emsentido material).

3.4.5.4. Melhor técnica legislativa, impossível! Se a Constituição de 1988 fala a toda

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hora das leis, seja para lhes franquear certos conteúdos, seja para interditá-los, éporque já prescreveu, nas entrelinhas, que pedir o adjutório delas é reqüestar a ediçãodas emendas. E interditar as leis não é interditar as emendas, salvante, insista-se,naquelas matérias que desfrutam de intangibilidade perante a açãolegislativo-conformadora do Estado (que são matérias apropriadamente chamadas de

pétreas).3.4.5.5. De outra parte, nenhum mal existe em reqüestar a todo instante a lei porque abanalização da lei em nada trivializa a Constituição, que permanece formalmente amesma. De revés, a banalização das emendas (que fatalmente ocorreria pela técnicade se dizer tudo que a elas competisse, tintim por tintim) acarretaria a banalização dopróprio Texto Magno, que já não seria formalmente o mesmo a cada emendaproduzida. A Constituição não pode prestigiar tanto as suas emendas a ponto de dar asua vida por elas.3.4.5.6. O raciocínio será retomado no capítulo entrante, mas aqui mesmo nospermitimos retomar o que dissemos em co-autoria com VALMIR PONTES FILHO(ob. cit.): se a referência constitucional apenas à lei, em tema de direito adquirido, ato

 jurídico perfeito e coisa julgada, fosse um abre-te sézamo para a edição das emendas,cairíamos todos numa contradição grotesca. É que a nossa Constituição também sómencionou a lei, não a emenda, enquanto veículo de imposição de deveres deconteúdo positivo, ou negativo ("ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazeralguma coisa senão em virtude de lei"). E a falta de menção às emendas significaria aimprestabilidade delas para obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa? Atoda evidência, não! Diga-se o mesmo da norma constitucional que proíbe a lei deexcluir da apreciação do Poder Judiciário "lesão ou ameaça a direito" (art. 5°, incisoXXXV), que, nem por silenciar quanto às emendas, está liberando qualquer delas parainterditar o acesso de toda pessoa privada às instâncias judicantes, na matéria.13 

3.4.5.7. São estas premissas que nos permitem compreender que se constitui em crimede responsabilidade o ato do Presidente da República do Brasil que implicardescumprimento de qualquer emenda constitucional, embora a nossa Magna Cartanão fale do descumprimento das emendas como fato-tipo do citado delito. Fala éda lei e das decisões judiciais (inciso VII do art. 85), que, uma vez descumpridas,ainda ensejam a intervenção da União nos Estados e dos Estados nos Municípios(inciso VI do art. 34 e parte final do inciso IV do art. 35). E o raciocínio é o mesmo:descumprida que seja qualquer emenda constitucional, quer no tocante à regrapermanente que ela venha a embutir na Magna Carta, quer no tocante à regrasimplesmente transitória que venha a aportar, as conseqüências serão iguais às dodescumprimento de lei ou de decisão judicial. O mutismo da Lex Legum quanto às

emendas é de nenhuma importância hermenêutica.3.4.5.8. Remarque-se ainda que a regra-matriz do direito adquirido, em nossaConstituição, é a mesma do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (inciso XXXI doart. 5°). Daí que aceitar a retroação de emenda para desrespeitar o direito adquiridopasse a significar a possibilidade de retroação também para o desrespeito às duasoutras situações jurídicas ativas. E nessa hipótese, a aterradora pergunta que se faz émesmo esta: de que vale o megaprincípio da segurança jurídica, se do seu conteúdo jánão fazem parte o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada?14 3.4.5.9. Que se entenda, pois, que a referência à lei, no capítulo "DOS DIREITOS EDEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS", sempre que a Magna Carta impuserproibição ou simples limitação à faina legislativa do Estado, é uma referência ao

Direito-lei. Por isso que alcança todos os espécimes legislativos de que trata o art. 59,

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as emendas no meio (inciso de n° I).

3.5. A Constituição como a lei das leis 

3.5.1. O exclusivo regime autoditado da Constituição 

3.5.1.1. Esta nova disquisição tem que ser a continuidade de uma idéia já vertida parao papel, que é simplesmente esta: somente a Constituição tem a propriedade deditar o seu próprio regime jurídico. Se os demais atos da ordem legislativapudessem ditar o seu próprio regime jurídico, o Sistema de Direito Positivo já nãoteria uma única norma-começo. Privar-se-ia da sua característica central de OrdemJurídica de "supra-infra-ordenação" (KELSEN, sempre ele) ortodoxa ou unitária, poisnenhuma norma seria hierarquicamente superior a outra na dúplice dimensão formale material. Seria superior apenas pelo critério temporal ou cronológico (a lei maisnova a preponderar sobre a lei mais velha no tempo), ou pelo critério daespecialidade, que é de ordem material. E sem outra hierarquia internormativa quenão fosse a da lei mais recente, ou a da natureza das relações normadas, oOrdenamento já não seria uno quanto ao modus faciendi dos elementos do seurepertório, pois os espécimes normativos sucessivamente editados não teriam que sereconduzir à unidade formal do primeiro deles: a Constituição Positiva.15 3.5.1.2. Essa particularidade que tem a Constituição de operar, formal ematerialmente, como lei das leis é, no fundo, a mais importante das limitaçõesimpostas ao Estado, pois as leis de que a Constituição é a lei suprema são as leisemanadas do Estado, ou por ele recepcionadas. Logo, o reconhecimento daexistência de uma lei que nasce para governar as outras leis, perpetuamente, é aprópria base lógica da elaboração do conceito formal de Constituição. O único

cientificamente prestante. É, enfim, a garantia de que as outras irrestritas limitaçõesimpostas ao Poder Público, pela Constituição originária, têm que permanecer comoirrestritas limitações; isto é, não podem pelo Poder Público mesmo serlegislativamente supressas, ou sequer atenuadas.3.5.1.3. Reconheçamos, então, que o Magno Texto só é realmente magno por cumpriresse papel de dizer o que seja, ou o que não seja, uma norma de aplicação delepróprio. O que pertence, ou o que não pertence, ao Ordenamento Jurídico por eleinaugurado. Quais sejam, ou não sejam, os atos de jurídica manifestação das trêsfunções básicas do Estado por ele instituídas: a função legislativa, a função executivae a função jurisdicional. Pois somente assim é que uma Constituição tem a força deditar o seu próprio regime jurídico. Tem a condição material objetiva de se

autoqualificar ou se autonominar como Constituição.16 3.5.1.4. Ao contrário, sinta-se que não é exclusivo da Constituição o mister deconferir direitos, atribuir competências, estruturar órgãos, impor deveres, prescreverfinalidades e outros espaços de ocupação normativa. Mesmo em se tratando deimputar deveres ao Estado e conceder direitos contra o Estado, ainda assim não secuida de matéria privativamente constitucional. Tudo isto fica ao dispor de muitosoutros atos que a própria Constituição menciona como veículos de normas jurídicasgerais. Não é por aí que a discriminação entre ela, Constituição, e os demaisespécimes jurídico-positivos pode ocorrer.

3.5.2. A Constituição e seu exclusivo papel de fundar e monitorar o Ordenamento

Jurídico

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3.5.2.1. O campo divisional da Constituição perante as outras normas do Direitoreside unicamente nisto: só a Constituição é que pode fundar o OrdenamentoJurídico e permanecer o tempo inteiro como referencial de todas as outrasnormas positivas que se integram nesse mesmo Ordenamento. Esta a sua natureza,

a sua causa formal, a metodologia de trabalho que a torna primus inter pares.Subtraia-se da Constituição a exclusividade desse mister de fundar o Ordenamento emanter sob o seu controle o modus faciendi e o conteúdo dos outros modelosnormativos... e o que sucede? Uma mudança tal de qualidade a ponto de se poderproclamar que de Constituição já não se cuida.17 3.5.2.2. Se é próprio da Constituição aplicar limites formais e materiais ao Estado,quer os limites positivos, quer os negativos, ou seja, tanto alusivamente às condutascomissivas quanto as de absenteísmo, como tornar essa imposição concretamenteeficaz, se se deixa ao próprio sujeito limitado a possibilidade de tudo mudar pelavia legislativa? Um mínimo de irreformabilidade há de conter a Constituição peranteo Estado, na exata medida em que isto signifique preservação daqueles traços que dãoa ela uma identidade fisionômica; isto é, traços ou valores para cuja proclamaçãoteórica e persecução empírica a própria Constituição foi elaborada.3.5.2.3. De fato, o ortodoxo papel de norma-começo do Ordenamento só faz sentidose a Constituição permanecer dando as cartas no interior desse Ordenamento. Paratanto, ela tem que prescrever o regime das outras normas jurídicas, sem que taisnormas possam, por conta própria, alterar esse regime.3.5.2.4. Sem demasia na comparação das coisas, devemos insistir no enunciado deque a Constituição Positiva não é Constituição Positiva por se fundar numOrdenamento Jurídico. O Ordenamento Jurídico é que é Ordenamento Jurídicopor se fundar numa Constituição Positiva. Logo, não é tanto pelo conhecimento do

Ordenamento que se conhece a Constituição, mas pelo conhecimento daConstituição é que se conhece o Ordenamento.3.5.2.5. O método específico da Ciência Jurídica para conhecer o seu objeto deixa designificar, assim, um reclamo de contínua referência ao Ordenamento, para implicaruma exigência de ininterrupta referência àquela parte do Ordenamento que se chamaConstituição. A parte a preponderar sobre o todo, por ser a Constituição a parte queexplica e até justifica o próprio todo (visto que o todo do Ordenamento está a serviço,não de si mesmo, porém da Constituição em que se inicia e para a qual se destina, emúltima análise).3.5.2.6. Não que a Lei Maior venha a prescindir do Ordenamento, pois é fato que elanão depende somente da sua própria realidade para cumprir todos os seus desígnios.

Não! Ela também precisa do Ordenamento, porque, sem ele, ela não teria o quedirigir. Não teria as outras leis e demais normas positivas sobre o que imperar. Nãoteria, enfim, como se desdobrar em comandos necessariamente instrumentais dos seuscomandos básicos.3.5.2.7. A Constituição é também carente do Ordenamento Jurídico, então, porquepelas normas gerais e individuais do Ordenamento é que ela, Constituição, temassegurada a sua contínua aplicação; isto é, tem uma boa parte dos seus desideratoscumprida. E é mesmo para o cumprimento dessa parte dos seus desígnios que ela dáinício, com o seu próprio nascimento, à vida do Ordenamento.18 

3.5.3. A Constituição enquanto fonte, bússola e ímã 

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3.5.3.1. Esse tríplice mister de se colocar perante o Ordenamento como fonte, bússolae ímã , concomitantemente, a Constituição bem desempenha nos termos em queJESUS dirigiu aos seus discípulos esta vibrante mensagem:"Eu sou a Luz que está sobre todos,eu sou o Todo,

e o Todo vem de mim,e o Todo retorna a mim.Corte um pedaço de madeirae eu estarei lá;levante uma pedrae me encontrará lá" (em A SEMENTE DE MOSTARDA, vol. II, p. 82).3.5.3.2. Mesmo quando se trate de revisões ou emendas à Constituição, o inarredávelprincípio está em que são irreformáveis as normas da Constituição Positiva sobrea própria reforma dessa Constituição Positiva (de parelha com outros aspectos deintangibilidade mais para a frente comentados). É a maior de todas as ênfases dodiscurso de SIEYÈS, segundo o qual o órgão delegado não pode, por sua conta,alterar os limites da própria delegação (ob. cit., pp. 115/116). Essa alteração de limitescorresponderia - a comparação é nossa - à absurda possibilidade de um advogadoalterar para mais, sozinho, a cota de poderes da procuração que lhe fora outorgadapelo seu cliente.3.5.3.3. Mudando-se as palavras para melhor transmitir o mesmo pensamento: oDireito pós-Constituição é um Direito sempre enlaçado à Constituição mesma, parareverenciá-la. A Constituição cria o Ordenamento, mas não o libera para crescerinteiramente à solta. Mantém o Ordenamento sob tutela, como se o Ordenamentofosse uma pessoa incapaz de sair da menoridade. Ainda que o Direitopós-Constituição promane de emenda ou revisão constitucional, esse Direito não pode

atribuir a si mesmo aquilo que é a própria ratio essendi formal da Constituição: oexistir como a norma normarum, a lex legum, "o cântico dos cânticos", na linguagemreligiosa do Antigo Testamento.3.5.3.4. Podemos até mesmo dizer que, para se manter como permanente referencialdo Ordenamento, a Constituição tem que travar uma briga particular com suasemendas ou revisões. Uma queda de braço com o Poder Reformador, pelo risco maiorde ela vir a ser abalroada por ele. Assim como já no interior da Constituição a brigaparticular é entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Este último a ameaçar deinvasão a área de competência daquele, tanto quanto o Poder Reformador tentadescambar, historicamente, para a zona de conformação normativa que é apanágio doPoder Constituinte.

3.5.3.5. Naquilo que é a própria causa formal ou a ratio essendi metodológica daConstituição, portanto, os demais espécimes normativos têm que ficar para sempresubmissos aos termos em que o Poder Constituinte veio a se formalizar. E é nesserigoroso esquema de supra-infra-ordenação que a Constituição pode fazer doOrdenamento, não uma pluralidade de cosmos (oriundos de numerosas eincontroláveis normas-começo), mas um único, um só, um unitário cosmos.3.5.3.6. É perseverando no controle de todos os demais espécimes jurídico-positivos,reenviando-os a si mesma, que a Constituição impede que cada um desses atos sejaum fragmento vocal com pretensão à totalidade. Uma folha cujo talo se partiu e aindaassim pretenda sobreviver de sua própria seiva (?). Queremos dizer: o que dá plenosentido a uma norma jurídica não é apenas o seu discurso prescritivo, a sua mensagemimperativa em si. A norma pós-Constituição não fala sozinha. Ela conversa (graças à

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Constituição) com o todo do Ordenamento e é dessa confabulação com o todo que seextrai a sua definitiva mensagem. Como também é desse diálogo com o Ordenamentoque a norma isolada se depura de toda incoerência, de toda obscuridade, e ainda tem achance de ver preenchidas as suas eventuais lacunas.3.5.3.7. Estamos no epicentro de uma distinção qualitativa que é a explicação de tudo

o mais, no âmbito da fenomenologia do Direito: a origem mais depuradamentelegítima da Constituição, no plano político, e sua força mais irrefragavelmentevinculante, no plano jurídico, porque elaborada sob fundamentação lógica distintadaquela que prevalece para os demais modelos normativos. Que fundamentação éesta?

3.6. O fundamento supra-estatal e suprapositivo da Constituição 

3.6.1. Com efeito, o embasamento lógico da Constituição é diferente dafundamentação teórica dos demais espécimes jurídico-positivos que, com ela, formamo Ordenamento de um povo soberano. Estes outros modelos de prescritividade

 jurídica exprimem uma relação do Estado com o Direito que o Estado mesmo cria.Relação derivada ou secundária do Estado com o seu Direito. Direito que o Estadoprocria, ora para colocar a si mesmo em situação jurídica ativa (perdoe-se a cacofonia"cativa"), ora para ficar em situação jurídica passiva, ora para estabelecer relações

 jurídicas entre os particulares, exclusivamente (postando-se ele do lado de fora de taisrelações, por conseqüência).3.6.2. Em qualquer das três situações jurídicas, o Estado gira em torno do seu próprioquerer. Ou ele se auto-expande no plano das competências a que se atribui (tendosempre por calço a Constituição, todavia), ou ele se autocontrai no plano dos direitossubjetivos que opõe a si mesmo (ultrapassando, via de regra, a cota dos direitos

subjetivos alheios consagrados pela Magna Carta), ou ele nem se auto-expande nemse autocontrai, porque fica de fora da relação que passa a estabelecer entre pessoasoutras. Seja como for, tudo transcorre nos meandros da psicologia ou do psiquismoestatal, se é que é possível falar de psicologia ou de psiquismo estatal quando sequeira referir a um tipo de Direito que o Estado produz para além daautoaplicabilidade das normas que já estão lançadas no próprio lastro formal daConstituição.3.6.3. Nesse preciso espaço da relação Estado/Direito, o Estado vem antes do Direito.O fundamento da submissão do Estado a direitos subjetivos oponíveis a ele mesmo,por exemplo, não é outro senão uma autolimitação. Autolimitação estatal, essa, quesempre mantém os governados em situação de relativa insegurança jurídica, pois

quem se autolimita... bem pode se autodeslimitar (já o dissemos). Daí a necessidadede o pensamento jurídico formular e implantar, com o tempo, a teoria do Estado deDireito; ou seja, o princípio de que o Estado é obrigado a respeitar o Direito por elepróprio ditado. Se o Estado pode desfazer o Direito, revogando-o, não pode, todavia,desfazer do Direito, enquanto aquela revogação não sobrevém.19 3.6.4. Ora bem, a relação que se passa entre a Constituição e o Estado exprime umoutro vínculo operacional, porque transcorrente entre um Direito que o Estado nãocria e o Estado mesmo. O Direito a preceder o Estado, logicamente, porque semnenhum compromisso com a preservação do tipo de Estado até então existente.3.6.5. Cogita-se, agora, de uma relação que já não está na base da Teoria do Estado deDireito, mas na base do Constitucionalismo. Este a significar, objetivamente, a

imposição de um limite não mais endógeno, mas exógeno ao Estado, no sentido de

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que há um tipo de Direito: a) que o Estado não cria nem pode deixar de reconhecercomo Direito; b) que tem uma parte dele imune ao cinzel legislativo do Estado, que éa parte comumente chamada de pétrea ou intangível; c) que a outra parte, não-pétrea,somente por um processo especialíssimo é que pode ser objeto de retomada legislativapelo Estado.

3.6.6. É essa nova idéia de superação da teoria da autolimitação jurídica do Estadoque vai possibilibitar a formação do juízo de que a primeira das cláusulas pétreas sópode ser de natureza formal, por residir no próprio esquema de reforma daConstituição; ou seja, o modo pelo qual a Lei Maior dispõe sobre a sua própriareforma é insuscetível de reformulação, ainda que tal insuscetibilidade não conste dedispositivo constitucional expresso.

3.7. A compulsão da rigidez formal da Constituição 

3.7.1. Muito bem! Se o fundamento lógico da Constituição é a suprapositividade, asuplantar, assim, o fundamento da autolimitação legiferante do Estado, a ilação a quese chega é esta: o Poder Constituinte incorpora não-propriamente a opção de atribuirà sua obra legislativa um caráter rígido, hirto, firme, estável ou outro nome que seatribua ao fato de a Constituição conservar a memória de sua origem exclusivamentepolítica ou suprapositiva; mais que isto, o Poder Constituinte incorpora a compulsãodo permanente registro dessa memória. É a limitabilidade genética de que antesfalamos, tornando o Poder Constituinte, no particular, não um singelo poder, mas opoder-dever de não deixar que sua Constituição venha a cair, por inteiro, na valacomum dos espécimes normativos que têm por fonte um órgão deliberativo já deDireito instituído.3.7.2. A compulsão da rigidez é, assim, o primeiro título de nobreza da

Constituição. E por compulsão da rigidez só se pode entender um modo de normarsobre a reforma constitucional que permaneça originário e original. Originário,porque sua fonte suprapositiva continua a mesma, sem nenhuma mistura com outranascente do fenômeno jurídico. Original, porque diferente do modo pelo qual osdemais diplomas jurídicos ficam pela Constituição autorizados a receberreprocessamento ou reformulação ou recondicionamento.3.7.3. Já em termos funcionais, o caráter rígido que a Lei Suprema necessariamenteostenta não é outra coisa senão a consagração de um regime jurídico mais cercado desolenidades ou dificuldades para a sua reformulação, pois o cerne da rigidez está emque o Magno Texto não quer para o seu reprocessamento aquele jeito monocórdio ecomparativamente simplificado de se trabalhar com a a lei infraconstitucional.

3.7.4. Se as leis subconstitucionais nascem, modificam-se e morrem pela mesma emonótona forma (o modo de produzir a lei é o mesmo que se observa para arespectiva alteração, ou revogação), isto não é o que sucede com a Norma Normarum.Ela, Constituição, nasce por um modo comparativamente único e também se alterapor uma forma que lhe é exclusiva, não-coincidente, ainda por cima, com aquele seupróprio modo de nascer. E mesmo no tocante à revogação pura e simples do CódigoPolítico (substituição de uma Constituição por outra), ainda assim a originalidadepermanece, porque tal revogação já não se dá por meios jurídicos ou no plano dodever-ser normativo. Acontece à margem de toda juridicidade, eis que processada aonível das ocorrências fáticas ou exclusivamente políticas. A se alojar, portanto, nomundo do ser.

3.7.5. Falar de rigidez constitucional, em derradeiro exame, é invocar uma noção

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oposta à de flexibilidade, pois uma Constituição dita flexível é aquela que pode serreformada pelo mesmo processo instituído para a produção e modificação de uma leisubconstitucional. É o caso da Constituição da Inglaterra, cuja total flexibilidadedecorre da consideração de não ser ela uma Constituição em sentido rigorosamenteformal.

3.7.6. A rigidez formal é a marca registrada das Constituições que inauguram oOrdenamento Jurídico de intransigente supra-infra-ordenação e que mantêm esseOrdenamento sob controle de qualidade. Tal rigidez nasce com a ConstituiçãoPositiva, assegura a supremacia internormativa do Magno Texto e só desaparece como desaparecimento dele. Mas comporta graduação, no sentido de que pode ser, orauma rigidez mais ortodoxa, ora menos ortodoxa; ou seja, uma Constituição Positiva émais ou menos firme, estável, hirta, rígida, a depender do grau de originalidade queimponha ao seu processo de reforma.20 3.7.7. Essas dificuldades reformacionais de que tanto falamos dizem respeito, comode primário saber, a fatores de ordem processual, circunstancial e temporal. De ordemprocessual, no sentido de reclamar a proposta de reforma constitucional um quorummaior de votação parlamentar, combinadamente, o mais das vezes, com certosrequisitos de iniciativa. Já os fatores de ordem temporal e circunstancial, elescomparecem para traduzir a idéia de que, durante algum tempo, ou debaixo de certosepisódios, nenhum ato reformista da Constituição pode ser apresentado, ou discutido(também se diz um requisito de tempo a exigência de intervalo entre uma e outrarodada de discussão e votação legislativa de matéria constitucional; isto é, o reclamode interstício entre reuniões legislativas de debate e votação final de matériaconstitutiva de reforma da Lex Legum).3.7.8. Não se conclua, entretanto, que, uma vez respeitadas as exigênciasconstitucionais de ordem formal, temporal e circunstancial, venha o Poder

Reformador a ficar liberado para submeter a si toda e qualquer relação social. Não éassim, porque as Constituições consagradoras do esquema de intransigentesupra-infra-ordenação acrescem limitações materiais àquelas de cunho formal,temporal, ou circunstancial. Daí o discriminar-se, tais Constituições, em duasinconfundíveis porções: uma, eterna, e por conseqüência imutável; outra, não-eterna,porém estável.3.7.9. A parte da Constituição que é eterna fica imune ao processo reformista. Ela é

 pétrea, como se diz aqui no Brasil. A parte que não é eterna fica exposta aos atoslegislativos de reforma. Mas, ainda assim, é uma parte da Constituição que se garantecom cláusula de estabilidade ou estado de firmeza se confrontada com as matériasconstantes de leis outras.

3.7.10. É o caso de se perguntar: e por que a Lex Maxima é assim especialmentecuidadosa, particularmente zelosa com suas próprias matérias, a ponto de petrealizar  umas e estabilizar outras? A resposta é intuitiva. Assim como o Rei Midas tornavaouro tudo em que tocava, a Constituição torna especialmente relevante toda matériasobre que recai. O fato em si da constitucionalização de um dado camporelacional-humano já se traduz numa fuga ao lugar-comum da regulação jurídica. Daí que a respectiva desconstitucionalização, ou reconstitucionalização, também operepela fuga do lugar comum das revogações ou derrogações de Direito. Por isso que, sea matéria é clausulada como pétrea, sua defenestração do Magno Texto somente se dápor uma nova manifestação constituinte; caso contrário, ou seja, cuidando-se dematéria desprovida de petrealidade, a perda do status de tema constitucional, oumesmo seu recondicionamento (reconstitucionalização, portanto), pode acontecer ao

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nível do Poder de Reforma. Ainda assim, debaixo de um processo particularmentesolene. E é mesmo a concreta aplicabilidade desse processo especialíssimo de disporsobre matéria constitucional que vai alçar o Poder Constituído à dimensão de umPoder Reformador. Não de um Poder Legislativo comum.3.7.11. Rigidez formal e Poder Reformador, assim, constituem mais uma necessária

parelha temática - dentre tantas que a Teoria da Constituição implica -, pois o poderde reforma da Magna Carta outra coisa não é senão atuar sob a regência das normasconstitucionais originárias que formam, justamente, o esquema da rigidez.3.7.12. Em suma, petrealidade e rigidez constitucional dão-se as mãos parapossibilitar à Constituição o ganho de duas outras notas de especificidade, que nestecapítulo mesmo poderiam ser assim epigrafadas: a) "A Constituição como garantia detudo e de si mesma"; b) "O definitivo enlace entre a Constituição Federal de 1988 e aDemocracia". Contudo, por opção metodológica estritamente pessoal, resolvemosdiscorrer sobre os dois temas (embora sem reservar para eles nenhuma epígrafe emparticular) no âmbito do estudo que reservamos para os capítulos de n°s IV e V destamonografia.

3.8. A Constituição como atestado de efetiva soberania nacional 

3.8.1. O traço final de especificidade da Constituição, que nos parece útil aos fins aque nos propomos, está em que toda Lei Maior que se faz globalmente efetiva operacomo atestado formal de soberania nacional. O mais formal e o mais solene dosatestados de que um determinado povo experimentou, com êxito, o seu modoconstituinte de ser.3.8.2. Esta é uma afirmativa que temos como categórica; ou seja, a Constituiçãotambém pode ser vista enquanto modo pelo qual um certo povo proclama, de si

para si, que atingiu o pináculo de sua identificação jurídica. Ou de sua plenitudepolítica. Isto por ser a Constituição a fórmula jurídico-positiva que possibilita aopovo dar a si próprio uma nova Ordem Jurídica e ainda se fazer internacionalmenteconhecido como instância coletiva que desfruta de uma soberania mais que virtual,porque já tentada e consumada.3.8.3. Nessa medida, a Constituição é tida pelo povo como galardão ou insígniamaior de sua própria independência (dele, povo) e passa a gozar de estima geralcomo inalienável patrimônio jurídico; principalmente se nascida nos arejadoscômodos de uma Casa Constituinte que teve por alicerce a vontade eleitoral doscidadãos.3.8.4. Assim estimada pelo povo como coisa inalienável dele, a Constituição termina

valendo por si mesma, em certa medida, independentemente do seu conteúdo (tantoquanto o Direito em geral de alguma forma vale por si próprio, independentemente doseu conteúdo, na medida em que instituidor de uma ordem, conforme conhecidopostulado positivista). E já não tem como arredar pé de sua altaneira posição dedocumento confirmador de uma soberania que é também inalienável, por definição.3.8.5. Por esse prisma positivista de análise é que, no plano territorial-interno, aConstituição mais e mais monitora a elaboração das suas próprias emendas, para quenenhuma delas lhe usurpe o trono de rainha das normas jurídicas. E no planoterritorial-externo, vela para que nenhum documento com pretensão a "CartaPlurinacional" ou "Constituição Regional" venha a lhe servir de fundamento devalidade.

3.8.6. Repetindo o discurso, a Constituição, único documento jurídico a atestar a

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soberania de um povo, é como a soberania mesma: projeção do poder, fora e dentrodo território que o povo conquista com animus domini. Logo, internamente,assume-se como a Lei das Leis, notadamente à face das suas emendas (a Constituiçãoa cumprir o papel de não deixar que suas emendas cumpram o papel de atestar asoberania do povo); externamente, não reconhece outro Poder ou outro Organismo de

que venha a fazer parte senão nos termos por ela mesma previstos.3.8.7. O fecho do pensamento, por ilação, é este: não se vai cair no romantismo ou naingenuidade de supor que as "Constituições Regionais" deixem de ditar as condiçõesde participação de cada Estado-membro no tipo de confederação (pois é deconfederação que se cuida, realmente) por elas estruturado. Mas o estabelecimento detais condições vale apenas como imposição factual ou realidade do mundo do ser, atéque se dê a sua recepção pela Magna Lei de cada povo. Porque aí, sim, os ditames deuma "Constituição" da espécie plurinacional ou cosmopolita ingressam no mundo dodever-ser; não por merecimento próprio, insista-se, mas pelas boas-vindas queeventualmente lhes dê a Constituição de cada Estado confederado.21

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Capítulo IV - A Hermenêutica da Constituição 

Sumário4.1. A inadequação do termo "Interpretação Constitucional"4.2. A Teoria da Interpretação do Direito em geral como antecedente da Interpretação

da Constituição4.3. A imperiosa substituição do nome "Interpretação da Constituição" por"Hermenêutica da Constituição"4.4. As especificidades da Constituição como a razão de ser de uma Hermenêuticadiferenciada4.5. O modo insimilar  de nascer da Constituição como primeira causa dediferenciação hermenêutica4.6. O modo insimilar  de viver da Constituição como segunda e definitiva causa dediferenciação hermenêutica4.7. O Direito Positivo como sistema ou ordenamento, por virtude da Constituição4.8. A Constituição como sistema ou ordenamento por virtude própria4.9. A dualidade princípios/regras como base da nova Hermenêutica da Constituição4.10. A peculiar estrutura conceitual dos princípios constitucionais

4.1. A inadequação do termo "Interpretação Constitucional" 

4.1.1. O tema da interpretação da Constituição exige de nossa parte uma préviademarcação de conteúdo. Ele não significa a formulação de uma teoria que encerre oucontenha diretrizes para a concreta interpretação de toda e qualquer normaconstitucional positiva. E não significa, porque a positividade constitucional é umgênero abarcante das normas que aparecem para o mundo do Direito por via da

Constituição originária e mais aquelas que aparecem para o mundo jurídico por viados atos de reforma da Constituição mesma.4.1.2. Queremos dizer, com esta separação entre normas da Constituição e normas dereforma da Constituição, que somente as primeiras é que se tornam objeto de umacentrada teoria da interpretação, a merecer o rótulo provisório de "Interpretação daConstituição". Não as segundas, porque destituídas de peculiaridades que as excluam,por inteiro, do âmbito de uma genérica teoria da interpretação; isto é, Teoria daInterpretação do Direito em geral. Este o fiat lux da questão.4.1.3. Os atos de reforma da Constituição (quantas vezes o dissemos?), se em normasconstitucionais se traduzem, deixam, no entanto, de se apresentar à Ciência do Direitocomo produzidos por um poder de fato ou supra-estatal ou suprapositivo, que é a

natureza do verdadeiro Poder Constituinte. E não sendo produzidos por um poderassim virginalmente fático, são atos normativos que não têm a menor ensancha delivremente dispor sobre o seu regime jurídico. Seja quanto à sua forma deelaboração, seja quanto ao seu conteúdo e respectivo grau de eficácia.4.1.4. Qual a conseqüência teórica dessa impossibilidade de os atos de reforma daConstituição ditarem o seu próprio regime jurídico? A conseqüência danão-definitiva autoqualificação nem da definitiva auto-hierarquização comonorma de Direito. O que já significa dizer que, vistos sob o prisma do seu processode elaboração e quanto à disciplina da matéria sobre que versam (com a respectivadimensão eficacial), tais atos só podem ser interpretados como veículos formais denormas dominadas, e não de normas dominantes. É ainda dizer: surpreendidos no seu

regrado processo de elaboração jurídica, tanto quanto no seu regrado poder de

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conformar relações intersubjetivas materiais, os atos de reforma da Constituição nãose enquadram num esquema de interpretação em tudo e por tudo igual ao da própriaConstituição, pois Constituição em tudo e por tudo eles não são. O seu realparadigma, no particular, é o dos demais espécimes de Direito infraconstitucional,todos eles encartados num processo legislativo que nasce com o originário Texto

Magno.4.1.5. O regime jurídico dos atos de reforma da Constituição é um molde que aprópria Constituição prepara. E como todo molde, toda fôrma, todo figurino,antecede aquilo a que se destina moldar, formar, recortar. O objeto ou a coisa amoldar é sempre um conseqüente, um a posteriori, enquanto o molde só pode serconcebido como um antecedente, um a priori. Há um só molde, à espera de que, porele, múltiplos objetos sejam moldados. Do que se deduz que nenhum dos objetos asair do molde possa dar a si mesmo o próprio molde. Repetindo: o objeto a sair domolde não pode plasmar o molde de que vai sair.4.1.6. A Constituição inicial, esta, sim, é que não tem molde ou fôrma a precedê-la,por que sua qualificação como norma jurídica é uma necessária e definitivaautoqualificação. E sua força impositiva frente às outras normas é, por igual, umanecessária e definitiva auto-hierarquização. Nasce de dentro da Constituição parafora e se impõe a todo o Ordenamento.4.1.7. No âmbito da Constituição originária, assim, todo molde é algo que nasce comela. Algo que se faz por ela mesma, e não para ela. Ao reverso do que sucede com osatos de sua própria reforma, que, não se pondo na linha de partida do Direito (massempre a meio caminho dele), só podem ter a sua qualificação e a sua hieraquizaçãocomo norma jurídica por virtude de algo anterior a eles. É uma qualificação e umahieraquização que vêm de trás para frente, ou de fora para dentro, sem possibilidadede reversão.

4.1.8. Estas noções, que nos parecem necessárias para um claro entendimento darelação primária entre a Constituição e os atos de reforma constitucional, não têm suaimportância reduzida pelo fato de as mesma pessoas que formam uma AssembléiaNacional Constituinte poderem se transformar, num seguinte e imediato instante, emmembros de um Poder simplesmente instituído, como é o caso do Parlamento ouPoder Legislativo. É que a Assembléia Constituinte pode se auto-rebaixar paraAssembléia Constituída, tão logo promulgada a Constituição (exatamente como sedeu com a Lei Maior brasileira de 1988). Mas a Assembléia Constituída jamais podese autopromover para Assembléia Constituinte. Aquele auto-rebaixamento é umaviagem sem retorno, pois o órgão que se auto-rebaixa desaparece para sempre dosquadrantes do Direito. Somente fica o órgão rebaixado.1 

4.1.9. Sob o título de "Interpretação da Constituição", portanto, o que nos caberiaformular seriam os cânones presidentes da interpretação de todo e qualquerdispositivo constitucional, sim, desde que figurante da originária redação de umMagno Texto. O todo da Constituição inicial e respectivas partes, tão-somente.

4.2. A Teoria da Interpretação do Direito em geral como antecedente da Interpretação da Constituição 

4.2.1. A Interpretação da Constituição como tema de estudo nos empurra,necessariamente, para o âmbito mais dilargado da Teoria da Interpretação (ouHermenêutica Jurídica em geral), pelo fato evidente de que esta se formou há mais

tempo como ordem autônoma de conhecimentos.

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4.2.2. A comparação temporal entre as duas modalidades de teoria é a mesma quepode ser feita entre as idades do Direito como um todo e do Direito Constitucional emparticular, sabido que este último somente ganhou suas definitivas características apartir das Constituições que se promulgaram nas três últimas décadas do séculoXVIII.

4.2.3. Não estamos a dizer nada diferente do que isto: se o Direito como um todoantecede à Constituição, é natural que a Teoria do Direito anteceda à Teoria daConstituição. Daí para o campo hermenêutico a dedução é instantânea: a Teoria daInterpretação lato sensu nasce bem antes do que a Teoria da Interpretação daConstituição stricto sensu. Por isso que a Interpretação da Constituição tem sidofocada como subseção da Hermenêutica Jurídica em geral.2 4.2.4. Diga-se mais: como o centro do Direito em geral era o Direito Privado, tambémnatural seria que as coisas acontecessem como de fato aconteceram: os mais vivoscontornos da Teoria da Interpretação foram esboçados à luz de um pensamento

 jurídico marcantemente privatista. É o que ressalta WILLIS SANTIAGO GUERRAFILHO, em estudo que principia pela correta asserção de que "Praticar a interpretaçãoconstitucional é diferente de interpretar a Constituição de acordo com os cânonestradicionais da hermenêutica jurídica" (primeiras linhas do texto que serviu de roteiroa conferência pronunciada em Aracaju, durante seminário que, de 05 a 10 de maio de1998, os estudantes de Direito da Universidade Federal de Sergipe realizaram emhomenagem ao primeiro decênio da Constituição da República Federativa do Brasil).4.2.5. Ainda um tanto é de se dizer na matéria, pelo fato de que mais e mais osdoutrinadores insistem na diferenciação entre hermenêutica e interpretação,reservando à segunda o papel seqüencial de aplicar à cognição dessa ou daquelanorma de Direito Positivo os enunciados da primeira.4.2.6. Façamo-nos entender com mais clareza. Por essa diferenciação entre a

hermenêutica e a interpretação jurídica, a hermenêutica encerra um conjunto denoções preparatórias da interpretação. Esta a significar a busca da revelação damensagem aportada por uma particular norma de Direito, enquanto aquela a significara busca de noções transpositivas, porquanto aplicáveis a toda e qualquernorma-objeto de interpretação.4.2.7. Mas não somente com a Interpretação Jurídica é que a Hermenêutica mantémum necessário vínculo operacional. Ela, Hermenêutica, também se enlaçaoperacionalmente à Teoria do Direito, porque, no fundo, é parte dessa Teoria: aquelaparte que tem especial serventia para a interpretação jurídica em concreto. É comodizer: a Hermenêutica é o capítulo da Teoria do Direito que vai centradamenteorientar o processo de compreensão dessa ou daquela norma jurídico-positiva. E a

esse empírico processo de compreensão é que se apõe o rótulo de InterpretaçãoJurídica.4.2.8. Assim é que noções de validade, eficacidade e efetividade, hierarquiainternormativa, dualidade norma/Ordenamento, lacunas da lei e modos de suacolmatação, antinomias normativas e critérios de sua eliminação, por exemplo (quesão categorias mentais elaboradas ao nível da Teoria Geral do Direito), passam aconstituir princípios hermenêuticos a aplicar no empírico processo da interpretação deuma determinada norma de Direito Positivo.

4.3. A imperiosa substituição do nome "Interpretação da Constituição" por "Hermenêutica da Constituição" 

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4.3.1. Sendo assim, o que vimos designando até agora de "Interpretação daConstituição" tem que mudar de nome. Passa para "Hermenêutica da Constituição". Enesse campo específico da Hermenêutica da Constituição, a ilação da dicotomia acimapontuada é intuitiva: ela, Hermenêutica da Constituição, exprime aquela porção daTeoria da Constituição que vai propiciar o facilitado entendimento de toda e qualquer

norma em particular de Direito Constitucional originário. Porção que termina porformar pré-compreensões ou pré-interpretações de que se vale o aplicador da LeiMaior (que é o intérprete em concreto) para o trabalho final de apreensão dosignificado de uma determinada norma de elaboração genuinamente constituinte. Como respectivo grau de eficácia.4.3.2. Por esse ângulo de visada, a Hermenêutica da Constituição faz-se de ponteentre a Teoria da Constituição como um todo e a interpretação de cada norma dessaou daquela Constituição Positiva originária em separado. Logo, a Hermenêuticaantecede o isolamento da norma-objeto (norma já positivada nessa ou naquelaConstituição inicial) e por isso mesmo passa a valer para todo e qualquer dispositivo

 jurídico ou texto normativo-constitucional-originário em apartado. A Interpretação,bem ao contrário, somente vale para uma dada norma-objeto, inserida no contexto deuma particular Constituição originária. Donde a conclusão de que a operação mentaldo intérprete segue este necessário roteiro: começa pelas pré-compreensões que aHermenêutica recolhe da Teoria da Constituição e desemboca na compreensão final(interpretação) de uma norma-objeto.3 4.3.3. Num esforço de refinamento explicativo, pensamos que tudo se aclara no bojodo seguinte sumário:I - a Teoria da Constituição tem por objeto elementarizar a Constituição comofenômeno jurídico, destacando-a de qualquer outro diploma normativo ou ramoautonomizado do Direito. Com o quê se diferencia da Teoria do Direito ou "Teoria

Geral do Direito" (como também se diz, habitualmente);II - Já a Hermenêutica da Constituição, esta é de menor abrangência no seu campomaterial de estudo, porque tem por objeto revelar da Teoria da Constituição apenasaqueles enunciados que sirvam para o concreto labor da compreensão de toda equalquer norma constitucional-positiva originária. Não somente para esta ou aquelaespecífica norma constitucional-positiva originária, porque, aí, o que se tem já é ocampo de incidência da Interpretação propriamente dita. O objeto da interpretaçãoconstitucional, portanto;III - na medida em que existe para aproveitar da Teoria da Constituição apenasaqueles enunciados de especial préstimo para o labor da interpretação de todo equalquer dispositivo constitucional originário (indistintamente, portanto), a

Hermenêutica da Constituição passa a se diferençar da Hermenêutica em geral, vistoque a Hermenêutica em geral serve de instrumento é para a interpretação de toda equalquer norma de Direito, e não para toda e qualquer norma da Constituiçãooriginária, somente.4.3.4. Mas esta nossa explicação é ainda incompleta. Incompleta, porque importacolocar em realce que a Hermenêutica Jurídica em geral ocupa um espaço deteorização de obrigatório trânsito pela Hermenêutica da Constituição. É oindescartável espaço dos chamados métodos de interpretação jurídica, a saber: oliteral, o lógico, o finalístico, o histórico e o sistemático, de que falaremos a brevetrecho.

4.4. As especificidades da Constituição como a razão de ser de uma Hermenêutica

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diferenciada 

4.4.1. Ora, se estamos assim a nos comprometer com o acerto da proposição de queexiste uma especificidade hermenêutico-constitucional, é claro que essa peculiaridadeexegética só pode advir do fato de ser a Constituição uma realidade normativa que se

marca por traços ontológicos próprios, como explicado no capítulo anterior. É por sepeculiarizar perante o Direito em geral (e como!) que a Magna Lei justifica e exigepara si uma metódica hermenêutica também peculiarizada.4.4.2. Não é uma diferença qualquer. Já demonstramos que ela é muito mais do que adiversidade de campos materiais de incidência normativa (campo civil, penal,processual, trabalhista, comercial, etc.), sobre a qual os chamados "Ramos do Direito"erguem a sua autonomia entitativa. Aquilo que singulariza as normas da Constituiçãooriginária no contexto dos demais atos consubstanciadores de normas jurídicas émesmo de qualidade. É de tal monta essa diferenciação entre os dois setores - o daConstituição e o setor do Direito posterior a ela - que força, justamente, o pensamento

 jurídico a elaborar uma dogmática exegética superadora da tradicional. É como dizer:com o surgimento da Constituição (e estamos a falar da Constituição do tipo rígido,por evidente), os vetores da comum hermenêutica do Direito já não tinham como dar conta do recado e por isso é que a doutrina passou a envidar os seus melhoresesforços na fixação de novos paradigmas exegéticos ou recursos de umaargumentação propriamente constitucional.4.4.3. Não há demasia na afirmação. A Constituição revolucionou mesmo opensamento jurídico. Tanto e tanto, a ponto de podermos separar - como estamosseparando desde o início desta nossa monografia - as normas da Constituição dasnormas de reforma constitucional. Ainda mais, a ponto de podermos dizer que aConstituição consegue ser diferente até mesmo da mecânica soma das suas próprias

normas. Ela nem se confunde com o Ordenamento Jurídico, nem com as normas desua própria reforma, nem, por fim, com a soma linear das normas que formam o seupróprio corpo de dispositivos.4.4.4. Quase tudo na Constituição é onticamente singular, a exigir metódicosinstrumentos de análise também singulares. Não é a partir de técnicas gerais decompreensão do Direito que se vai conhecer aquela parte do Direito que maisexplica o próprio Direito (que é, precisamente, a Constituição). Parte sem a qual oDireito não poderia ser visualizado como um todo fechado em si mesmo, ou, pelomenos, como realidade tendente a esse fechamento autonômico.4 4.4.5. As linhas que se seguem reforçarão os traços da Constituição como a parte doDireito que mais explica o próprio Direito, porém, numa perspectiva nova: a

demonstração cabal de que é preciso um toque de especificidade interpretativa paraum diploma (o Magno Texto) que nasce e vive por um modo absolutamenteinsimilar. Se o papel da Teoria do Direito é apartar o Direito das outras realidadesnormativas (sobretudo a religião, a etiqueta e a moral); se o papel da Teoria daConstituição é apartar a Constituição dos demais diplomas jurídicos (ou o Direito -Constituição do Direito pós-Constituição), qual o primeiro papel da Hermenêuticaespecificamente constitucional? Dar seqüência ao papel diferenciador da Teoria daConstituição, afunilando ou direcionando as proposições dessa Teoria para a tarefainterpretativa de cada norma constitucional originária em particular. Logo, o papel demostrar em quê a exegese de uma norma figurante da Constituição originária difere daexegese de uma norma não-figurante de tal Constituição. Com o quê a Hermenêuticada Constituição está para a Teoria da Constituição assim como a Interpretação

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Constitucional está para ela, Hermenêutica da Constituição. Uma seqüenciando aoutra ou tendo a outra como referencial, dentro de um esquema de particularizaçãoprogressiva de conceitos.

4.5. O modo insimilar de nascer da Constituição como primeira causa de

diferenciação hermenêutica 

4.5.1. No fluxo desta nossa caminhada cognoscitiva, façamos a mais lógica dasperguntas: qual a primeira especificidade da Constituição a repercutir no campo deuma métodica hermenêutica diferenciada? Respondemos: tudo o que justifica adualidade de vetores ou diretrizes hermenêuticas principia pela insimilaridade donascer da Constituição como realidade jurídico-positiva.4.5.2. Com efeito, é a partir do modo pelo qual a Constituição é  partejada que sepercebe ser ela, Constituição, aquela porção do Direito que mais se diferencia detodas as outras. Se se prefere, ela é aquele pedaço do Direito que menos identidademantém com os demais. E tudo começa mesmo é com a percepção de que só oMagno Texto (não tenhamos receio de incorrer em repetição de juízo) nasce de umafonte exclusivamente política, factual, não-jurídica de deliberação. Uma fonte ouinstância de poder que faz parte do mundo do ser, e não do mundo das normas. Umcentro decisório exclusivamente normante, e não simultaneamente normante enormado, como se dá, agora sim, com os demais atos expressionais do Direito.5 4.5.3. Muito bem. Mas em quê o modo especialíssimo de nascer da Constituiçãoimplica mudança de vetor hermenêutico? No seguinte: quando se está diante dequalquer outra realidade normativa, qualquer outro ser ou modelo prescritivo deconduta que se apresente com as vestes de uma regra jurídica, faz-se o uso de doistipos necessariamente sucessivos de interpretação: um, para se avaliar a

procedência, ou não, do caráter jurídico do ser investigado; outro, para seconhecer o conteúdo significante e o grau de eficácia do ser já aprovado peloprimeiro controle de qualidade jurídica. É inferir: somente depois de passar por umexame de validade é que o espécime normativo sai dessa primeira via de interpretaçãopara a segunda, que já é propriamente conteudístico-eficacial.4.5.4. Não é assim com a Constituição originária. Perante as respectivas normas, aprimeira via de interpretação é descabida. A Constituição não é válida neminválida, porém globalmente efetiva ou não. Ela se "valida" pela efetividade, o quesignifica percorrer o itinerário inverso dos outros modelos jurídicos: estes somentepodem obter o atributo da efetividade depois de obtido o atributo da validade.4.5.5. É para isso que serve a distinção entre a Hermenêutica e a Interpretação da

Constituição (entre outras serventias). A Hermenêutica, naquilo que ela tem deapropriação dos conceitos que formam a Teoria da Constituição, exige que se façaexame de validade no momento do empírico processo de interpretação de toda normaque venha a se positivar após a Constituição mesma. O exame comparativo entre odiploma jurídico objeto de interpretação e a Lei Maior, para ver até que ponto se dá acompatiblidade formal e material do primeiro à segunda.4.5.6. É muito simples o que intentamos dizer. A interpretação de uma particularnorma jurídica não se esgota na revelação da semântica ou significadológico-idiomático por ela portado, com o respectivo grau de eficácia. Não! Esse modode interpretar é aplicável somente a uma dada norma da Constituição originária.Fora da Constituição originária, é preciso ainda ver se o documento jurídico de que

faz parte a norma-objeto foi (ou não foi) produzido sem mácula processual e também

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se a própria norma-objeto estava autorizada a se dotar do conteúdo e da eficácia comque positivamente nasceu. Mesmo que se trate de norma engastada em ato formalde emenda à Lei Maior.4.5.7. Por mais que nos deparemos com a cerrada oposição de autores densamentequalificados, convicto estamos de que, perante qualquer diploma jurídico (inclusive o

das emendas ou revisões constitucionais), o exame de validade formal e material éintransigente: incide sobre todas as normas ali contidas. Nenhuma fica de fora. Jádiante da Constituição, a radicalidade operacional é inversa: nenhuma normaconstitucional originária, absolutamente nenhuma, é submetida a exame de validade.Todas ficam de fora.4.5.8. Nesse plano de radical exame de validade, então, a Lei Maior passainteiramente ao largo do processo exegético ou da empírica interpretação normativa.E a causa eficiente da exclusão de tal exame prévio é o modo peculiar de nascer daConstituição. Não há outra (daí a distinção entre uma soberania que trata daConstituição, elaborando-a, e uma soberania de que trata a Constituição já elaborada).E já dissemos que o modo de a Constituição Positiva fazer parte do OrdenamentoJurídico é absolutamente único, porque: primeiro, não é a Constituição que principiacom o Ordenamento, mas o Ordenamento é que principia com a Constituição;segundo, a maneira de a Constituição fazer parte do Ordenamento é se postando notopo desse Ordenamento, e não apenas dentro dele; terceiro, a forma pela qual aConstituição deixa o Ordenamento ou dele sai (finando-se com ele, pondere-se) é amesma pela qual entrou: a suprapositividade.6 4.5.9. Em suma, assim como JESUS, para as religiões cristãs, é o filho unigênito deDeus (pois que gerado diretamente pelo Criador), a Constituição é o único documentonormativo que provém do Poder Constituinte por forma direta. É dizer: sem aintercalação de nenhuma outra instância produtora de norma jurídica.

4.6. O modo insimilar de viver da Constituição como segunda e definitiva causa dediferenciação hermenêutica 

4.6.1. Ocorre que esse modo único de nascer da Constituição apenas faz sentido se sefizer acompanhar de um modo único de viver. E outra vez por comparação com afigura ímpar de JESUS, diríamos que a Constituição também vive por um modoinsimilar. Ela prossegue pela vida afora do Direito - a partir da rigidez formal a quenecessariamente se impõe - com a mesma originalidade que marcou a trajetóriaexistencial do filho unigênito de Deus no meio do homens. Daí porque opera comoum divisor de águas na esfera jurídico-positiva, tal qual JESUS CRISTO operou

como um divisor de águas na esfera mais dilatada de toda a humanidade ocidental(antes e depois dele).4.6.2. É aqui mesmo que devemos fazer a outra decisiva pergunta: e em quê o modoúnico de viver da Constituição repercute no campo da tópica hermenêutica? Ah! Porvários aspectos!4.6.3. Principiemos por lembrar que a dogmática hermenêutica, genericamenteconsiderada (plano das considerações lógico-jurídicas, e não jurídico-positivas),incorpora os seguintes e englobados métodos de intelecção normativa:I - o método filológico ou literal, que opera pela revelação do significado comum oudicionarizado das palavras e expressões em que se vaza o discurso jurídico-positivo.Logo, meio direto ou simplificado de se viabilizar o conhecimento da mensagem

aportada por aquele discurso (mensagem, que outra coisa não é senão o quê da norma

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positiva ou o objeto da relação positivamente instituída, com o seu específicotamanho eficacial). O papel do intérprete, então, é ler nas próprias linhas dodispositivo, decifrar o meramente verbal da comunicação normativa, para saber emque essa comunicação consiste, semantica e eficacialmente. Afinal, existe mesmo enão pode deixar de existir um vínculo funcional entre as palavras e o Direito-lei. E o

papel da interpretação literal (toda interpretação começa por esse método) é saber quepalavras cumprem no discurso jurídico-positivo um mister meramente vernacular(palavras-meio) e que palavras, ao reverso, cumprem nesse discurso um misterpropriamente relacional ou intersubjetivo. Estas últimas são palavras-fim, porconstituir a norma-em-si; quer dizer, palavras que encerram o núcleo mesmo danorma de Direito Positivo, revelando-se, então, como o próprio instituto jurídico ou afigura de Direito que se procura conhecer;7 II - o método lógico, voltado para a reciclagem ou o  policiamento do métodofilológico, pois implica a revelação do significado técnico ou propriamente jurídicodas palavras de que se venha a compor o dispositivo interpretado e ainda passa poruma obrigatória leitura das entrelinhas ou do não-verbal desse mesmo dispositivo.Implica uma releitura, então, seja para substituir o sentido meramente coloquial dossignos linguísticos por um sentido propriamente jurídico ou da própria técnica doDireito (e aí o dicionário a que se recorre já é o vocabulário jurídico, e não odicionário idiomático em geral), seja para dimensionar com precisão o potencial deeficácia da norma interpretada (tarefa em que avulta a consideração do não-verbal oudas entrelinhas do dispositivo interpretado, principalmente para o efeito do usocorreto da interpretação dita extensiva, ou, reversamente, da interpretação ditarestritiva). De todo modo, sua utilidade é a mesma do método literal: buscar arevelação do quê da norma, que é a mensagem-em-si em que ela se traduz;III - o método teleológico ou finalístico, empregado para a captação do objetivo ou

dos objetivos da norma interpretada (domínio do para quê normativo, bifurcado numpara quê de ordem prática ou imediata e num para quê de ordem axiológica oumediata);8 IV - o método histórico, descambando para o histórico-evolutivo, quando for o caso,cuja prestimosidade está em conhecer a origem ou etiologia da norma, a sua formacausal. Logo, é método voltado para o resgate do porquê da jurisdicização da matéria,implicando o conhecimento do pomo factual de discórdia que gerou a necessidade danormatização jurídica;9 V - o método sistemático ou contextual, que tem por função eidética procurar osentido peninsular da norma jurídica; isto é, o significado que a norma assume, nãoenquanto ilha, porém enquanto península ou parte que se atrela ao corpo de

dispositivos do diploma em que se engasta. Por comparação com o método lógico,agora o que importa é ler nas linhas e entrelinhas, não desse ou daquele dispositivoem particular, mas de toda a lei ou de todo o código de que faça parte o dispositivointerpretado. E se essa lei ou esse Código for de Direito Infraconstitucional, ainda épreciso considerar as linhas e entrelinhas da própria Constituição Positiva. O quesignifica, portanto: o método sistemático de interpretação jurídica é o único apossibilitar um visual de conjunto, uma vista panorâmica do material investigado, queé a conseqüência lógica do interpretar articulado (cada dispositivo em combinaçãocom os demais, para que a união de cada parte ao todo traga para o Direito aqualidade do todo, e não somente a qualidade de cada parte mesma). Mas a suautilidade específica permanece igual à serventia dos métodos literal e lógico deinterpretação: conhecer e descrever o quê de cada norma-objeto.10 

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4.6.4. Para logo, vê-se que não é no círculo dos quatro métodos iniciais que tomacorpo a especificidade interpretativa que estamos a reivindicar para a Constituição. Éno último deles, pois, quando aplicado ao Direito posterior à Constituição, o métodosistemático é mais abrangente: além de apanhar a norma investigada no contexto dalei, ou do código, ou da emenda, etc., de que ela faça parte, busca inseri-la no todo da

Constituição. É uma sistematicidade de dupla face, uma interna, e, outra, externa.Começa pelo diploma jurídico a que pertence a norma e vai em frente: sangra asbarragens desse diploma para cotejar a norma com a própria Constituição. Afinal, é aTeoria da Constituição (mais que a Teoria do Direito em geral) que proclama, asabenças: todo juízo de validade jurídica só alcança a dimensão de um juízo devalidade absoluta (e não apenas relativa) depois que a norma-objeto se mostracompatível com a própria Constituição Positiva. Assim é que não basta a um decreto,por hipótese, se adequar à lei por ele aplicada. É preciso ainda que ele mantenha coma Constituição um vínculo de perfeita sintonia formal e material, pois em tema deexame de validade jurídica a meta é a fonte; ou seja, a derradeira das metas é aprimeira das fontes, e essa fonte primeira (fonte das fontes) é a Constituiçãopositiva.4.6.5. Que sucede, porém, quando essa mesma técnica da contextualidade é aplicada àConstituição? Fica absolutamente confinada, encerrada no corpo normativo daConstituição mesma. Não tem que sair dos muros ou dos lindes que demarcam anormatividade constitucional originária. E isto se dá pelo fato de ser a Constituição,quando formalmente rígida, uma peça jurídico-positiva que se orienta por critérios deauto-referência ou de auto-explicação quanto ao seu próprio significado e tamanho dasua eficácia. A Constituição prescinde do Direito posterior a ela para se fazerentendida quanto ao significado dos seus institutos e instituições, ainda quando aeficácia de suas normas reclame acréscimo de prescritividade por uma legislação de

menor hierarquia, ou admita constrição de efeitos pela mesma via da legiferação desegundo escalão (normas de eficácia completável e normas de eficácia restringível,respectivamente, segundo a classificação que pessoalmente adotamos em parceriacom CELSO RIBEIRO BASTOS, ao longo da monografia INTERPRETAÇÃO EAPLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS (Editora Saraiva, 1982).4.6.6. Longe de querer servir à lei e aos demais espécimes de Direito Legislado, aConstituição quer servir é a si mesma. E é para servir a si mesma que ela dispõesobre a elaboração de todo o Direito posterior a ela. Por conseguinte, os institutos e asinstituições de selo constitucional devem ter a sua conceituação elaborada a partir deelementos encontradiços na própria Constituição. Não o contrário, porque, senão, aConstituição passaria a servir ao Direito-lei, e não o Direito-lei a servir à

Constituição; reduzindo, o mais das vezes, o ímpeto ou a "essência transformadora"da Magna Carta, para nos valermos de expressão corretamente adotada por JOSÉAFONSO DA SILVA para a nossa Constituição de 1988.4.6.7. Consideremos agora o seguinte: mesmo quando o método sistemático éaplicado ao Direito pós-Constituição, ele passa a ganhar uma qualidade, umanatureza, uma tonalidade nova. O seu concreto uso muda de perspectiva, porque aConstituição, em verdade, recicla todo o Direito Positivo e daí toda a Teoria Jurídica.E por que assim acontece?

4.7. O Direito Positivo como sistema ou ordenamento por virtude da Constituição 

4.7.1. A Constituição enquanto base normativa permanente de todo o Processo

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Legislativo 

4.7.1.1. Bem, a Constituição recicla todo o Direito Positivo e daí a própria CiênciaJurídica, pela consideração de que ela, desde que formalmente rígida, é documentonormativo que exibe duas notas distintivas: primeiramente, ela é um sistema

normativo em si; depois, ela é a própria condição lógica da montagem de um DireitoPositivo de "supra-infra-ordenação", formando com ele um segundo ecomplementar sistema.4.7.1.2. Pois bem, a Constituição formalmente rígida é, por efeito mesmo de suarigidez formal, o conjunto normativo de hierarquia máxima, no confronto com asdemais regras de Direito Positivo (inclusive os atos oficiais de reformaconstitucional). Para se manter assim hierarquicamente superior, é claro que ela temque dispor sobre a edição das outras normas jurídicas gerais. Tem que ser a fonte dasfontes normativas ou a lei das leis, o tempo todo. Manter sob o seu mais próximocontrole todos os atos de elaboração normativo-primária, que são atos de imediataaplicação dela própria, Constituição. É sintetizar: a Constituição, e somente ela, é quepode dizer como se deseja primariamente aplicada, o que faz pela enumeração dosatos normativos que se integram no processo legislativo.4.7.1.3. Vamos repetir o juízo, com diferentes palavras. A Constituição, para seautoproclamar como lei das leis ou norma normarum, só pode fazê-lo na medida emque se irrogue a força de ditar o regime jurídico de todo o Direito legislado(Direito-lei) que a ela se seguir. Com exclusividade. E isto se dá pela instituição deum "processo legislativo" que recubra os atos jurídicos de imediata aplicaçãodela própria. Atos jurídicos, esses, que são produzidos por uma formapreestabelecida quanto à indicação dos respectivos editores (órgãos ou fonteslegiferantes) e quanto ao encadeado itinerário de formação da vontade legislativa de

tais editores. Mais: a Constituição cria mecanismos de autodefesa quanto à fielobservância daquele processo e também quanto ao conteúdo mesmo e dimensãoeficacial dos atos legislativos que a ela se seguirem, de sorte a impedir que tais atos setornem ovelhas desgarradas, tanto do ponto de vista formal ou processual quanto doponto de vista material ou de conteúdo e ainda eficacial.4.7.1.4. Esse último reclamo de compatibilidade material e eficacial demanda, noentanto, discriminação. Cuidando-se de emenda ou revisão à Magna Carta, ele ficaacentuadamente suavizado: as emendas e revisões só não podem inovar em tema decláusulas pétreas materiais, porque é nessas cláusulas que o Texto Supremo sepersonaliza ou tem a sua identidade substancial (a Constituição tem os traços

 fisionômicos das suas cláusulas pétreas). Já em se tratando de outras modalidades de

normas de aplicação primária da Constituição, aí o dever da compatibilidade vertical éabsoluto: alcança tanto as cláusulas pétreas quanto as destituídas dessa qualificação(desde que se entenda por dever de compatibilidade vertical a não-contradição entreos comandos da legislação infraconstitucional e aqueles insertos na Constituição).4.7.1.5. Ora bem, a instituição de um processo legislativo-constitucional (que éformalmente pétreo por definição) e mais o reclamo de compatibilidade material e deeficácia já são suficientes para que a Constituição, ao nascer, também dê à luz umDireito que se caracterize por somente absorver aquelas normas que tenham em outrasnormas imediatamente superiores a devida confirmação (fundamento de validade). Éexprimir: cada norma de imediata aplicação da Constituição tem que homenagear aprópria Constituição, formal, material e eficacialmente (com a referida suavizaçãoconteudístico-eficacial em tema de emenda ou revisão); e cada norma que se seguir

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àquelas de aplicação imediata da Constituição tem que ajustar o seu conteúdo eeficácia a tais normas de aplicação imediata da Constituição e ainda à Constituiçãomesma. Versos de rima dobrada, nesta última suposição, porque referidos a duasnormas superiores: uma, imediata, que é a norma geral de aplicação da Constituição;outra, mediata, que é a Constituição em si. Donde os conceitos de validade relativa e

validade absoluta de norma jurídica.11 4.7.1.6. Está aqui a razão pela qual HANS KELSEN fala desse tipo de DireitoPositivo como "ordem normativa de supra-infra-ordenação"; ou seja, um DireitoPositivo tão hierarquizado nos elementos que formam o seu repertório, a ponto deformar com a Constituição um todo sistêmico. Um "Ordenamento". Um conjuntoordenado, enfim, e não uma pluralidade contraditória e fragmentária de comandos(parodiando HERÓDOTO, que falou do Egito como um presente do Nilo, diríamosque o Ordenamento de supra-infra-ordenação ortodoxa é um presente daConstituição rígida).4.7.1.7. Temos, por conseguinte, o segundo dos sistemas a que nos referimos: osistema do Direito-com-a-Constituição, pois a Constituição forma com as regrasinfra e pós-constitucionais um só Direito Positivo. Tudo por efeito de uma hierarquiainternormativa que deita raízes na rigidez formal que só a Constituição pode e deve(poder-dever) se autoconferir. É por ser formalmente rígida, em última análise,que a Constituição é hierarquicamente superior às demais normas jurídicas,formal e materialmente. E é por ser assim hierarquicamente superior, tanto formalquanto materialmente, que a Constituição faz do Direito Positivo um todo encadeadode fontes normativas e respectivos comandos. Uma unidade formal e material deestatuições, a pressupor interdependência de autoridades normativas e ausência deantinomias de comandos; quer dizer, cada fonte a jorrar de outra fonte e cada norma

 jurídica a buscar fundamento de validade material em outra norma jurídica, até o

remonte final à Constituição.12 4.7.1.8. A título de parêntese, averbamos que os atos de reforma da Constituição,além de impedidos de tocar no originário esquema da rigidez formal, não podeminstituir por conta própria esse tipo de esquema para uma Constituição que se deslembre de instituí-lo. O regime jurídico da rigidez é sempre originário e definitivo.Se instituído pela Constituição, torna-se automaticamente pétreo. Se não instituído,nunca mais o será (a não ser, claro, por nova manifestação constituinte).

4.7.2. O caráter superlativamente estável da Constituição e suas conseqüênciashermenêuticas 

4.7.2.1. Parêntese fechado, pensamos que a oportunidade é das melhores para tambémlembrar que outro efeito lógico da rigidez formal é a Constituição Positiva a seassumir como o documento normativo que mais persevera na sua origináriaformulação. Se a Constituição apenas se permite inovar por um processo maiscerimonioso que o das outras normas gerais, ela já está a se categorizar como osegmento do Direito mais infenso a reforma. E como uma parte da Constituição aindaé absolutamente imune a supressão ou a medida que tenda a tal supressão, patenteadafica a proposição de que ela, Constituição rígida, é aquele elemento de estabilidadesem o qual perderia sentido o reenvio de toda fonte e de todo comando

 jurídico-positivo à positividade do primeiro deles.4.7.2.2. O fato em si da rigidez formal já revela o compromisso que a Lei Maior

assume com o movimento incessantemente pendular do Direito, da perdurabilidade

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para a mutabilidade e vice-versa; ou seja, o Direito Positivo tem na Constituiçãomesma o seu necessário ponto de frenação ou estado firme, passando a ter na lei o seuelemento de aceleração ou estado móvel de comandos. Momento vocacionado para amudança, aqui; momento vocacionado para a permanência deôntica, ali. Um e outromomento, contudo, a se exigirem ininterruptamente, pois se o momento constitucional

é que autoriza o momento legal, o momento legal sempre se reconduz, por exame devalidade, àquele originário momento constitucional.4.7.2.3. O caso das emendas à Constituição é um caso à parte (como temosressalvado), pois, ao contrário da lei, elas não existem para renovar o Direito emgeral, mas para atualizar a Constituição em particular. Sua funcionalidade é umolhar para trás, um refundir a própria norma-começo de todo o Ordenamento, aopasso que a funcionalidade da lei é um olhar para a frente, um dar-se por satisfeito com a Constituição preexistente, porque às leis é suficiente a Constituição tal comoposta. Seja a Constituição antes de qualquer reforma, seja a Constituição depois dereformada. Por isso que, em rigor técnico, é do nosso juízo que os atos de reforma daConstituição não podem manter com a lei um vínculo operacional direto, mas apenascom a Constituição. Esta é que, reformada ou não reformada, entretece com a lei umnecessário convívio.4.7.2.4. Na vertente deste nosso jeito pessoal de colocar os atos de reforma daConstituição no seu devido lugar , inferimos que não existe uma direta hierarquiaentre emenda constitucional e lei, pois as emendas constitucionais não se põemcomo o imediato fundamento de validade das leis (entendidas as leis como normasgerais de aplicação primária da Constituição, tanto quanto as emendas o são).Fundamento imediato de validade das leis é sempre a Constituição, até porque asemendas não podem refundir o originário esquema constitucional de indicação dasnormas gerais que se integram no processo legislativo (cláusula tácita de

intangibilidade). E sendo assim, o papel da lei não é o de aplicar u'a emenda àConstituição, mas aplicar a Constituição emendada, o que é sutilmente diverso.4.7.2.5. Quanto mais analisamos a relação que a Lei das Leis mantém com as suaspróprias emendas, ou revisões, mais nos convencemos de que se trata de um diálogoem separado, em reservado, no âmbito mais restrito do próprio Direito Constitucional,que é um Direito bifurcado em normas da Constituição originária e normas advindasdo Poder Reformador. Sem o menor propósito objetivo de colocar tais atos de reformacomo ocupantes de grau hierárquico intermediário entre a Constituição e as demaisnormas gerais de sua aplicação (dela, Constituição). E é neste passo que ressoam aosnossos ouvidos os mesmos argumentos que MICHEL TEMER esgrima paraevidenciar o sem-sentido da tese que propugna pela existência de hierarquia entre a lei

complementar e a lei ordinária, litteris:"Hierarquia, para o Direito, é a circunstância de uma norma encontrar sua nascente,sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade numanorma superior. A lei é hierarquicamente inferior à Constituição porque encontranesta o seu fundamento de validade. Aliás, podemos falar nesse instrumento chamadolei, porque a Constituição o cria. Tanto isto é verdade que o Supremo TribunalFederal, ao declarar que uma lei é inconstitucional está dizendo: `aquilo que todospensaram que era lei, lei não era', dado que lei é instrumento criado pelo TextoConstitucional. Pois bem, se hierarquia assim se conceitua é preciso indagar: leiordinária, por acaso encontra seu fundamento de validade, seu engate lógico, suarazão de ser, sua fonte geradora na lei complementar? Absolutamente não! (emELEMENTOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL, Malheiros Editores, 8ª edição,

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1991).4.7.2.6. Todas estas considerações atestam que o método sistemático de interpretação

 jurídica recebe decisiva influência da Constituição, pois ele revela um tipo de unidadede sentido que não se obtém sem o reenvio do Direito pós-Constituição à Constituiçãomesma. Daí havermos dito cuidar-se de um método que extravasa os diques do

diploma a que pertence a norma interpretada para submeter a mesma norma ao crivodos comandos genuinamente constitucionais. Crivo, que tanto recai sobre quem faz anorma quanto sobre a norma feita (processo e conteúdo normativos).4.7.2.7. Se não houvesse a Constituição do tipo rígido, por certo que o métodosistemático de exegese das normas jurídicas em geral restaria funcionalmenteempobrecido, pois não poderia ir adiante dos dois conhecidos critérios temporal ematerial de resolução de antinomias jurídicas, a saber: "a lei posterior derroga aanterior" (lex posterior derogat priori) e "a lei geral posterior não derroga a especialanterior" (lex generalis non derogat legi priori speciali).4.7.2.8. O Direito que só admitisse os dois referidos critérios da intertemporalidade eda especialidade material como técnicas de resolução de antinomias normativas seriaum Direito, sim, porém diferente da espécie piramidal ou deslinear de Direito que seconstrói a partir de uma Constituição rígida (norma-começo que não admite outrasassim postadas no interior do mesmo Ordenamento).4.7.2.9. Numa frase, o Direito que só conhecesse os critérios da intertemporalidade eda especialidade material como técnicas de resolução de antinomias entre normas nãodeixaria de constituir um sistema, pois onde houver critério de eliminação deantinomias normativas haverá unidade de sentido conteudístico. E com o resgate daunidade de sentido conteudístico dos elementos que formam o repertório do Direito, oque se tem já é um sistema de comandos. Mas um sistema de comandos de outranatureza, pois inteiramente calçado em tantas normas-começo quantas forem as leis

que, no tempo, superarem as outras pela aplicação dos dois multicitados critérios.4.7.2.10. Com essa modalidade não-formalmente hierarquizada de sistema jurídico (oDireito visto de um ângulo não-referido a uma Constituição rígida), o que se tem éuma unidade do tipo: a) cíclico, na acepção de que, a cada nova regra-começo nointerior do Ordenamento, um novo ciclo absoluto de normas referentes e normasreferidas se constitui; b) circular , no sentido de que as sucesssivas normas-começopassam a girar, não em torno da Constituição, mas delas próprias.4.7.2.11. Coloquemos os pontos nos "is" deste subtema, relembrando que algumas dasprimeiras Constituições escritas eram tão-somente semi-rígidas, pois se contentavamem retirar do Poder Legislativo usual a disciplina das matérias versantes sobre aSeparação dos Poderes e acerca dos direitos e garantias individuais. Com o tempo,

entretanto, o pensamento jurídico universal se abriu para a compreensão de que aconstitucionalização de toda e qualquer matéria já significava um juízo político dequalidade superior de tais assuntos, a ponto de excluí-los, automaticamente, do PoderLegislativo habitual ou cotidiano. Era o traço complementar da rigidez materialgenérica, a pouco e pouco reforçado com a técnica da expressa indicação de temassuper-rígidos, porque verdadeiramente pétreos; ou seja, porque subtraídos à fainalegislativa do próprio Poder Reformador. Com o que as Leis Supremas de cada Estadosoberano adicionaram à sua identidade formal (implícita ou por definição) umaidentidade material explícita. Aquilo que faz uma Constituição Positiva ser diferenteda que lhe antecedeu e também distinta da Constituição de qualquer outro povo. Ocampo divisional, enfim, do legislar constituinte e do legislar constituído, aindaque este venha a se elevar à dimensão de um agir reformador da Magna Carta.

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4.8. A Constituição como sistema ou ordenamento por virtude própria 

4.8.1. Voltando a trabalhar com o modelo cabalmente hierarquizado de unidade jurídica, todo ele cimentado na rigidez formal e conseqüente superioridade da

Constituição, o que nos cumpre aduzir é patente: a Constituição não faria do Direitoem geral um conjunto, um todo congruente de prescrições, se, antes, um todocongruente de prescrições ela não fosse. Não é por ser o Direito um sistema que aConstituição em sistema se transfunde. É por ser a Constituição um sistema que oDireito em sistema se transfunde. Como diria CONFÚCIO, redivivo, "não pode haverfronde em ordem com raízes em desordem".4.8.2. Noutro modo de dizer coisa igual, o Direito não é, sozinho, uma unidadesistêmica do tipo formal e materialmente hierarquizado. Para sê-lo, tem que se acoplarà Constituição. Mas a Constituição consegue ser, sozinha (tanto antes quantodepois dos atos de sua reforma), uma unidade sistêmica. Sem embaraço do fato devir a constituir uma segunda e necessária unidade, já agora ao lado do Direitoinfraconstitucional.4.8.3. Duas caracterizadas unidades jurídico-positivas então se formam: a primeiraunidade, materializada na Constituição (antes e depois de cada ato reformador,insista-se no juízo, pois a relação ou engate lógico de tais atos se dá é no âmbitoespecífico da Constituição, e não propriamente do Direito em geral); a segundaunidade, materializada na Constituição com o Direito em geral, dele excluídos,naturalmente, os atos de reforma constitucional (dado que voltados para a composiçãodaquela primeira unidade sistêmica).4.8.4. Como a precedência operacional é sempre da Constituição, o métodosistemático ou contextual de exegese muda de perspectiva quando tenha por objeto

uma norma originariamente constitucional. Fora da Constituição, já o vimos, ele seorienta por critérios cabalmente hierárquicos. Dentro da Constituição, entretanto, ohermeneuta já não pode se servir desse tipo de critério, pois as normas constitucionaisoriginárias não se relacionam por graus hierárquicos. Todas elas têm o mesmo caráterimpositivo e a mesma hierarquia, no sentido de que uma não retira da outra o seufundamento de validade.4.8.5. A hierarquia é um dos modos de relacionamento entre normas jurídicas(estrutura), sim, mas que somente se manifesta da Constituição rígida para fora. DaConstituição rígida para dentro, o modo de relacionamento internormativo obedece aum outro vetor, a uma outra diretriz.

4.9. A dualidade princípios/regras como base da nova Hermenêutica da Constituição 4.9.1. Os princípios como normas interreferentes 

4.9.1.1. Realmente, o parâmetro de interação das normas constitucionais origináriasconsigo mesmas reside é na dualidade temática princípios/regras ouprincípios/preceitos (regras comuns são preceitos, e não princípios). Vale dizer: asnormas que veiculam princípios desfrutam de maior envergadura sistêmica. Elasenlaçam a si outras normas e passam a cumprir um papel de ímã e de norte, a um sótempo, no interior da própria Constituição. Logo, os seus comandos são interpontuais.Não apenas pontuais, como se dá, agora sim, com as normas veiculadoras de simples

preceitos.

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4.9.1.2. É que as normas principiais consubstanciam ou tipificam valores(Democracia, República, Separação dos Poderes, Pluralismo Político, Cidadania,Dignidade da Pessoa Humana,...), que são fins em si mesmos. E os valores são quasesempre dialogantes ou interreferentes; quer dizer, os valores interagem fortemente eainda são exigentes de um estado-de-coisas ora mais ora menos concreto para a sua

realização. Nesse estado-de-coisas é que vão pousar as normas-preceito, que sãonormas de acentuado recheio fático e não-referidas, ou fracamente referidas a outrasnormas-preceito; isto é, diferentemente do que sucede com as normas-princípio, umanorma preceitual não leva a outra da mesma natureza, e quando o faz é numadimensão muito modesta, como sucede, verbi gratia, com um direito subjetivoperante outro (não assim, entretanto, com as garantias constitucionais, que são direitossubjetivos instrumentais de direitos subjetivos materiais). A relação entre as duascategorias (princípios e preceitos) é de continente para conteúdo, que termina sendouma relação entre a fumaça dos preceitos e o fogo dos princípios , no sentido de que"onde há fumaça, há fogo".4.9.1.3. Advirta-se, porém, que o diálogo interprincipial não infirma o significadopróprio ou autonomizado de cada princípio dialogante. Ele apenas quer traduzir que,de par com o valor que lhe adensa a individualidade enquanto norma, cada princípioconcorre para a significação de outro, ou de outros. Quer por efeito decomplementação, quer por efeito de contraposição. Verbi gratia, o princípio daimpessoalidade (significando o dever que tem o Administrador Público de aplicar a leisem incorrer em promoção ou marketing pessoal) é logicamente dedutível doprincípio republicano (de res publica). Já o princípio da "propriedade privada", éóbvio que ele se define por oposição ao princípio da "função social da propriedade".4.9.1.4. Ora bem, se o princípio constitucional é daqueles que tem sua inter-referênciamarcada por complementação, um deles será o principal e, o outro, secundário.

Ter-se-á, então, a dicotomia princípio/subprincípio (como se dá entre o mesmoprincípio republicano e o princípio da moralidade administrativa). Ao contrário, se oprincípio é daqueles que se definem por oposição a outro, ambos têm a mesmadignidade sistêmica e por isso nenhum deles pode ser considerado um subprincípio dooutro (e a primeira contraposição que nos ocorre é a do princípio da liberdade deinformação frente à intimidade e à vida privada das pessoas naturais).13 

4.9.2. Ordenamento de vinco axiológico versus Ordenamento de vincohierárquico 

4.9.2.1. Tudo isto assentado, conclua-se que é ao influxo de critérios axiológicos ou

valorativos que a interpretação sistemática vê a realidade de cada norma daConstituição. E assim enxergando, mantém a unidade material dessa mesmaConstituição. É raciocinar: os valores que se contêm nos princípios atraem para o seupróprio serviço, para a sua própria causa, os atos e fatos pontuais que se verbalizamem cada preceito (por exemplo, o veto presidencial a projeto de lei, que faz parte doesquema em que se viabiliza o princípio da Independência e Harmonia dos Poderes).Com o que se tem, no interior da Constituição rígida, um Ordenamento de vincoaxiológico; no exterior da Constituição rígida, um Ordenamento de traçohierárquico.14 4.9.2.2. Recolocando de forma ainda mais precisa a idéia, diríamos: as normasprincipiológicas não consubstanciam meios ou providências

(estado-pontual-de-coisas), propriamente, para o alcance de valores. Elas são esses

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valores mesmos. A tradução formal deles (Federação, Desenvolvimento, SoberaniaPopular, Moralidade Administrativa, Legalidade, etc.). Daí por que têm aparticularidade de irradiar o seu conteúdo exclusivamente axiológico para outrasnormas gerais, sejam as que vimos chamando de preceituais, sejam mesmo aquelasveiculadoras de princípios menores ou subprincípios. Em qualquer das duas

suposições, são as normas-princípio que fazem da Constituição uma densa redeaxiológica de vasos comunicantes. Diferentemente das normas-preceito, que não têmou quase sempre não têm a pretensão de enlaçar a si outras normas. É como dizer: asnormas-princípio conectam outras normas e assim formam um conjunto que vaipossibilitar a própria formulação de um pensamento dogmático ou científicosobre esse conjunto. Logo, são elas que tornam o Direito uma casa arrumada,fincando uma base de coerência material que é o apriori lógico da formulação de umpensamento dogmático.4.9.2.3. É subindo dos valores menores para os valores maiores da Lei das Leis,sucessivamente, que o intérprete vai revelando o caráter sistêmico ou orgânico delaprópria, do tipo material ou conteudístico. E lá, bem no topo da pirâmide axiológica(não-hierárquica) da Constituição, o exegeta vai encontrar o valor dos valores, ovalor-síntese, o valor-continente por excelência, aquela superidéia central de Direito,em suma, que está para os demais valores como um dado ponto inicial e fixo noespaço está para a alavanca de ARCHIMEDES.4.9.2.4. Nesse valor constitucional de estatura suprema o jurista espanhol PABLOLUCAS VERDU apõe o rótulo de "fórmula política", assim referido nestescomentários de WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO, retomando as clássicaslições de KONRAD HESSE sobre a tópica hermenêutico-constitucional:"O primeiro e principal princípio é o da unidade da Constituição, o qual determinaque se observe a interdependência das diversas normas da ordem constitucional, de

modo a que formem um sistema integrado, onde cada norma encontra sua justificativanos valores mais gerais, expressos em outras normas, e assim sucessivamente, atéchegarmos ao mais alto desses valores, expresso na decisão fundamental doconstituinte, naquilo que PABLO LUCAS VERDU chama de fórmula política. Para oeminente catedrático da Universidade de Madri, `fórmula política de umaConstituição é a expressão ideológica que organiza a convivência política em umaestrutura social'" (texto remissionado, p. 2).15 4.9.2.5. Dentro da Constituição, portanto, cada norma vai buscar a sua justificativaaxiológica e a sua raison d'être operacional em outra norma, não de hierarquiasuperior, porém de mais dilargado raio de alcance material (pela sua maior densidadevalorativa). E assim de preceito para princípio e de princípio menor para princípio

maior, a Constituição auto-irroga-se a virtude da unidade sistêmica. Uma unidadematerial ou de substância, exclusivamente, em contraposição à unidadeconcomitantemente formal e material do Direito pós-Constituição. 4.9.2.6. É claro que não apenas a Constituição encerra princípios, e, por eles, tem apossibilidade de conferir a todas às suas normas um sentido de ordem ou estrutura.Mas é inegável que toda a principiologia fundamentante de uma Ordem Jurídica seinicia com a Constituição e daí é que se esparrama pelos demais setores do Direito.Como inegável também é que sem a dualidade princípios/preceitos não há comoconceber a natureza mesma da Constituição enquanto rígido modelo de DireitoPositivo. É uma dualidade que pode estar no outros diplomas jurídicos, mas que

 somente é da Constituição (por ser conatural a ela, insista-se no fundamento).

4.9.2.7. Com efeito, as normas-princípio, além de atribuir unidade axiológica ou

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material à Constituição rígida, concorrem para impedir que a própria rigidezvenha a significar impermeabilidade conceitual dos valores de berçoconstitucional; isto é, venha a rigidez a fazer das normas constitucionais conceitos

 jurídicos estratificantes, obrigando a que toda mutação da Constituição apenas se dêao nível das emendas e revisões.

4.10. A peculiar estrutura conceitual dos princípios constitucionais 

4.10.1. É que certos princípios (dignidade da pessoa humana, valores sociais dotrabalho e da livre iniciativa, moralidade, eficiência...) se traduzem numamaterialidade ou estrutura conceitual que em parte é atual e em parte é prospectiva. Aparte atual é de pronto formada com os dados-de-compreensão que afloram da própriatecnicalidade constitucional, sem necessidade de o intérprete recorrer a elementos decompreensão que se situem no plano do sistema social genérico (sistema político,econômico, militar, moral, religioso, familiar, etc.). A parte futura é aquela que vaibuscar o seu conceito no modo como o povo passa a sentir e praticar o discursonormativo-constitucional ao longo do tempo. Logo, é uma parte vocacionada para amutabilidade, enquanto a outra, para a imutabilidade.4.10.2. O que estamos a enfatizar é que determinados princípios têm uma parte de sicomo janelas abertas para o porvir, dotando a Constituição de plasticidade para seadaptar à evolução do modo social de conceber e experimentar a vida. Eles fazem daConstituição um documento processual por excelência e que é o processo? Um seguiradiante, um caminhar para frente, como é da natureza da vida mesma.4.10.3. Com efeito, os princípios de que falamos (cidadania, dignidade da pessoahumana, valorização do trabalho, pluralismo político, desenvolvimento nacional...)ostentam um núcleo e uma periferia em sua própria circunferência deôntica. Naquele

núcleo, a imutabilidade. Na periferia, a possibilidade de mudança. Desde que talmudança tenha o significado de aumentar a perspectiva de funcionalidade donúcleo mesmo. Com o que os princípios axiais da Constituição operam,ambivalentemente, como fator de estabilidade e de atualização constitucional.4.10.4. Há como que uma dialeticidade no próprio interior de certos princípios, noâmbito de sua própria circunferência semântica, fazendo com que a Lei das Leisganhe essa possibilidade de se ajustar mais facilmente à irrupção de fatos novos ou anovas valorações de fatos velhos. A tensão entre permanecer incólume e experimentaralterações ocorre no imo, no recôndito de cada princípio mesmo e o atrito se resolvepor uma solução endógena de compromisso que leva a Constituição a mudar parapermanecer idêntica a si mesma (na medida em que a mutabilidade na periferia do

princípio se faz é para robustecer, ou assegurar, a operatividade da parte nuclear desseprincípio mesmo).4.10.5. Por este modo de ver o fenômeno da principiologia constitucional, incluímosaté mesmo a Democracia como possuidora do referido núcleo que é impermeável amudanças e de uma periferia permeável. O núcleo impermeável é aquele que situa aDemocracia no rigor lógico da famosa definição lincolniana, segundo a qual"Democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo" (e que foi consagradapela Carta de Outubro, a teor do parágrafo único do art. 1°, combinadamente comtodos os incisos do mesmo art. 1° e mais o artigo 3°). Democracia, portanto, comodeslocamento espacial ou topográfico do povo, que sai da platéia e passa a ocupar opalco de todas as decisões governamentais que lhe digam respeito. Já a periferia do

conceito, essa é a parte que passa a legitimar todo tipo de alteração constitucional

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formal que venha a se traduzir em descentralização ou desconcentração da autoridadepolítica e em ampliação dos espaços de participação popular na escolha dosgovernantes e no exercício, controle e fiscalização do Governo. Diga-se o mesmo daDemocracia material ou de substância, a assimilar toda mudança que signifiqueproliferação dos núcleos sociais de participação na riqueza nacional e até no saber que

se produz nas escolas oficiais, aqui inseridas as universidades (para repetirmos antigoe sempre atual conceito da Democracia como divisão do poder, da riqueza e do saber).4.10.6. Todos esses princípios, então, promovem a abertura das janelas daConstituição para o mundo circundante. Noutra linguagem, os princípios são oselementos que mais contribuem para dotar o sistema constitucional de umaespontânea flexibilidade ou  jogo de cintura (permitimo-nos o prosaísmo daexpressão), de sorte a colocar a Constituição em dia com os fatos sociais. Atenuando,assim, a necessidade de alteração formal das normas constitucionais e contornando asdificuldades processuais que são próprias da reforma de tais normas.4.10.7. Ainda estamos bem longe de explorar o potencial teórico dessa dualidadebásica princípios/regras, que, de tão metodologicamente importante, se tornou a novabase da Hermenêutica da Constituição. Por isso mesmo é que preferimos dar conta damatéria no capítulo que vem de imediato, com o nome de "A DUPLACENTRALIDADE DA CONSTIUIÇÃO E DOS SEUS PRINCÍPIOS".

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Capítulo V - A Dupla Centralidade da Constituição e dos seus Princípios 

Sumário5.1. Ontologia e funções dos princípios constitucionais5.2. A ascensão dos princípios como supernormas de Direito

5.3. A identificação de todo o Texto Magno com o seu princípio maior5.4. A Democracia como o valor constitucional por excelência5.5. O ser da Constituição e seus valores mais próximos5.6. As conseqüências lógicas da Constituição enquanto suma de princípios5.7. A eficácia máxima da Constituição como principal diretriz hermenêutica5.8. A necessária interpretação restritiva das normas constitucionais sobre o PoderReformador

5.1. Ontologia e funções dos princípios constitucionais 

5.1.1. Do quanto discorremos no capítulo precedente sobre a dicotomia básicaprincípios/preceitos, pensamos avultar a ontologia dos princípios constitucionaismateriais como normas:I - axiológicas ou consubstanciadoras de valores;II - inter-referentes, seja por contraposição, seja por complementação;III - autoconceituáveis (no sentido de que seus conteúdos ou elementos de definição

 já constam da própria Constituição;IV - auto-aplicáveis, exatamente porque prescindentes da lei quanto às suasexpressões ou manifestações conteudísticas.V - onivalentes, pela clara razão de que operam de ponta a ponta do Ordenamento, enão apenas no interior de um determinado ramo jurídico.

5.1.2. Já no plano das funções, eles, princípios constitucionais materiais: a) conferemunidade material à Lex Maxima, que é uma função unificadora, portanto; b) -estabilizam e ao mesmo tempo atualizam a Constituição, dotando-a, nesta segundavariante, de um caráter eminentemente dinâmico ou processual.5.1.3. E nesses dois planos da ontologia e da funcionalidade é que as normas-princípiosão dotadas de mais elevada estatura sistêmica. Servindo mesmo como perene critériode interpretação de princípios menores (subprincípios) e, com mais razão, de regrasou preceitos.5.1.4. Graças à natureza e à funcionalidade dos princípios materiais da Constituição,dessarte, é que se pode afirmar que norma jurídica é uma categoria maior que regra. Eque o Direito é maior do que a lei, se considerarmos pelo menos o princípio

constitucional de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisasenão em virtude de lei" (legado imperecível do constitucionalismo liberal). Asignificar, inquestionavelmente, que a ausência da lei não implica ausência do Direito,pois a conduta humana não-legislativamente imposta, ou não proibida, já éantecipadamente qualificada como juridicamente permitida.5.1.5. Quanto aos princípios constitucionais de natureza formal, cumpridores de umafunção instrumental, pensamos que eles são basicamente dois: a) o princípio darigidez formal; b) o princípio da supremacia da Constituição. Mas a doutrinanorteamericana, seguida de perto pela doutrina alemã, não deixa de embutir nesse roldos princípios constitucionais instrumentais a interpretação conforme a Constituição ea presunção de constitucionalidade das leis.

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5.2. A ascensão dos princípios como supernormas de Direito 

5.2.1. Assim como o Direito "não é filho do céu" (TOBIAS BARRETO), mas umproduto da História, os princípios jurídicos não surgiram de uma noite para o dia.Eles foram evoluindo com o próprio tamanho das Constituições e a forma

 jurisprudencial-doutrinária de interpretá-las.5.2.2. Deveras, o modo legislativo de escrever as primeiras Constituições ocidentaisera muito parcimonioso. Princípios expressos havia - notadamente os materiais -,porém a excessiva economia de dispositivos e até dos vocábulos em que taisdispositivos se vazavam impedia a indicação dos conteúdos de cada normaprincipiológica. É igual a dizer: os dispositivos constitucionais não se desdobravamem subprincípios, ou mesmo em regras comuns suficientes. E sem se conhecer oconteúdo ou os conteúdos de cada princípio constitucional, possível não era aconceituação de cada qual deles; ou seja, era impossível conceituar cada princípioconstitucional a partir de elementos encontradiços na própria Constituição. Tinha-se que recorrer ao Direito infraconstitucional.5.2.3. Ora, por falta de indicação conteudística, os princípios eram tidos, no plano daeficácia, como subnormas. O que levava à subeficácia da própria Constituição,naquilo mesmo em que a Constituição mais devia reluzir: a sua principiologia.5.2.4. Veja-se que as primeiras Constituições escritas, em matéria de direitossubjetivos oponíveis ao Estado, somente continham direitos individuais. Aindaassim, elas declaravam tais direitos, mas não os garantiam. Passaram a garanti-los,com o tempo, mas não se dispunha a dar conta dos direitos sociais (invenção doconstitucionalismo do México, da Rússia e da Alemanha, já nos anos de 1917, 1918 e1919, respectivamente). E só depois da Declaração Universal dos Direitos do Homem(Organização das Nações Unidas) é que as Leis Fundamentais de cada povo soberano

foram ganhando uma funcionalidade fraternal (pelo decidido combate aospreconceitos sociais e pela afirmação do Desenvolvimento, do meio ambiente e dourbanismo como Direitos Fundamentais), que já é uma função verdadeiramentetransformadora ou emancipatória.5.2.5. Essa fenomenologia das Constituições esquálidas não embaraçou a evolução domais importante país da Common Law (os EUA), graças à atuação normativamenteintegradora e até inovadora da Suprema Corte de Justiça americana. E do labor de

 jurisconsultos do porte de um MARSHALL e, mais recentemente, RONALDDWORKIN (cuja distinção entre regras e princípios jurídicos é o que existe de maisrecorrente nos dias atuais). Contudo, no bloco dos países constitutivos da Civil Law,foi preciso que a evolução começasse com a robustez disposional e vernacular de cada

princípio constitucional, mormente os fundamentais ou estruturantes do Estado e doGoverno. E foi justamente essa vontade coletiva de embutir nas Constituições regras esubprincípios densificadores de princípios materiais de superior envergadura(axiologica e funcionalmente) que as Magnas Cartas passaram também a normatizarassuntos que até então eram próprios de outros ramos jurídico-positivos.1 5.2.6. A nova práxis ou fenomenologia constitucional-positiva que foi tomando corpo,destarte, foi a da supereficácia das normas-princípio, ao lado da crescenteconstitucionalização do Direito infraconstitucional. Tudo resultando na supereficácia da própria Constituição.5.2.7. Toda essa mudança de paradigmas no âmago das Constituições filiadas aosistema romano-germânico do Direito muito deve, acrescente-se, a autores do porte deum KONRAD HESSE ("A Força Normativa da Constituição", 1991) e de um

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ROBERT ALEXY ("Teoria de los Derechos Fundamentales", 1977), ambos daAlemanha, que mais e mais insistiram na metodologia hermenêutica de reconhecer àConstituição o máximo de aplicabilidade por si mesma. Sendo que ALEXY foi quemretomou os fundamentos de RONALD DWORKIN para evidenciar as diferençasqualitativas entre normas veiculadoras de princípios e regras portadoras de simples

preceitos.2 5.2.8. Em síntese, estava criado o clima constitucional propiciador da dicotomiabásica princípios/regras (ou princípios/preceitos) e o fato é que, à sua dignidadeformal a Constituição adicionou uma dignidade material. E assim recamada deprincípios que são valores dignificantes de todo o Direito, é que ela passou a ocupara centralidade do Ordenamento Jurídico, tanto quantos os princípios passaram aocupar a centralidade da Constituição. Estrada de mão dupla, pois o fato é que oreconhecimento da força normativa dos princípios coincide com o reconhecimento daforça normativa da Constituição, num crescendo que chega à superforça de ambas ascategorias.5.2.9. Por um desses fenômenos desconcertantes que timbram a trajetória humana, seas Constituições padeciam de subeficácia pelo seu caráter principiológico, foi

 justamente pelo seu caráter principiológico em novas bases que elas passaram a sedotar de supereficácia normativa. E se aos princípios era recusado o status deverdadeiras normas, agora eles se elevam ao patamar de supernormas de DireitoPositivo.

5.3. A identificação de todo o Texto Magno com o seu princípio maior  

5.3.1. Aceita que seja a dicotomia princípios/preceitos como da essência das atuaisConstituições do tipo formalmente rígido, um novo salto de racionalidade já pode ser

intentado: aquela característica do movimento ascensional-endógeno de fatos paravalores e de valores de menor porte material para valores de maior envergaduraigualmente material (tema do capítulo anterior) termina por fazer da Constituição algoplenamente identificado com o seu princípio de maior abrangência. 5.3.2. É que o valor-dos-valores, o valor-síntese da Constituição, a "fórmula política"de VERDU outra coisa não é, para nós, senão o próprio ser da Constituição. Aquiloque a Constituição é, acima de tudo. A sua quintessência. Isto porque o auto-impulsoaxiológico da Magna Lei de um patamar inferior para um patamar superior não é dese perder no infindável. Esse movimento ascensional-interno tem um compromissoracional com um dado ponto de chegada, que é o valor para além do qual não podehaver outro senão já totalmente situado no mundo das coisas metajurídicas.

5.3.3. Esse valor-teto, que dentro da Constituição não conhece outro que se lhe igualeem importância funcional-sistêmica, é precisamente aquele cuja existência é aprincipal justificativa material de quase todos os demais valores. O valor-continentepor excelência, ou o gene do qual decorrem os mais vivos traços fisionômicos dosdemais valores constitucionais.5.3.4. Por ser o valor constitucional primário (gene), esse princípio dos princípiosmantém com a Constituição, mais que uma relação de pertinência, uma relação deinerência: ele é ela mesma, ela mesma é ele. O que já significa dizer: caso extirpadoda Constituição, ele, valor-síntese, inelutavelmente deflagraria sobre a quasetotalidade dos demais valores uma mudança qualitativa de tal ordem que chegaria àsraias de um mortal efeito dominó.

5.3.5. É de conveniência didática a repetição: caso extirpado do Magno Texto o valor

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que é a própria síntese da imensa maioria dos demais, praticamente nada restaria, emessência, desse mesmo Texto. Da mesma Constituição já não se cuidaria, em rigor,pois, sendo o princípio dos princípios o próprio ser da Constituição, a sua extirpaçãoimplicaria o absurdo de apartar a Constituição de si mesma. É como dizer: faltando àConstituição o seu próprio ser, tudo o mais vai lhe faltar, pois a Constituição deixa

de fazer parte das coisas presentes. Incorpora-se ao passado, que é o mundo dasevanescentes lembranças do que já existiu, do que já se despediu da vida.5.3.6. Mas que valor-continente é esse? Que nome dar a um princípio que se coloca,sobranceiro, à frente de toda a principiologia constitucional? Vejamo-lo, de imediato.

5.4. A Democracia como o valor constitucional por excelência 

5.4.1. É do nosso pensar que o ser das Constituições ocidentais, ao menos daquelasnascidas do ventre de uma Assembléia Nacional Constituinte, esteja na Democracia.Tanto na Democracia formal quanto na material; isto é, assim no Estado Democráticode Direito como no Estado de Direito Democrático, de cujo casamento por amor  resulta o ansiado Estado de Justiça. Ou o caráter holístico de tais Constituições.5.4.2. Por que não repetir? Se o princípio por excelência é o que mais repassa a suamaterialidade para os outros, o que mais se faz presente na ontologia dos demaisprincípios, esse megaprincípio é o da Democracia. Por isso que ele transluz em cadaum dos fundamentos da República Federativa do Brasil (incisos de I a V do art. 1° daCarta de 1988) e em toda cláusula pétrea explícita da nossa atual experiênciaconstitucional (incisos de I a IV do § 4° do art. 60 da mesma "Constituição-cidadã").Além de justificar em todo o art. 3º do mesmo Diploma Fundamental.5.4.3. É exigência da verdade o dizer-se que nos países do Ocidente não se conheceum só colegiado constituinte de livre investidura eleitoral - ungido, portanto, na pia

batismal do mais límpido voto popular - que não fizesse da Democracia a alma daConstituição por ele promulgada. E Democracia, no inequívoco sentido de troca delugar ou mudança topográfica do povo, que da platéia passa para o palco dasdecisões que a ele digam respeito; ou seja, o povo a sair da passiva posição deespectador para a ativa posição de ator político, a começar pela mais importante dasdecisões coletivas, que é "a decisão política fundamental" (locução de que se valiaCARL SCHMITT para falar do ato de vontade gerador da Constituição e,concomitantemente, da Constituição em sentido material).5.4.4. Democracia, pois, é o nome que assenta para o fenômeno da subida do povo ao

 podium das decisões coletivas de caráter imperativo, a simbolizar que ele mesmo équem escreve a sua história de vida político-jurídica e assim toma as rédeas do seu

próprio destino. Deixa de ser resignado objeto de formal produção normativa deminorias (retratadas, no curso da história humana, pela casta dos mais valentes, ou dosmais velhos, ou dos mais hábeis em curas médicas ou pregações religiosas, ou dosmais "cultos", ou dos mais "nobres", ou dos mais patrimonializados, mas sempre u'aminoria) para fazer prosperar o que se tornou símbolo de status civilizatório: oprincípio majoritário, expresso na idéia de que a maioria do corpo eleitoral de umPaís é quem faz o Direito comum a todos, seja por forma direta ou participativa, sejapor forma indireta ou representativa.3 5.4.5. Ora, quem tem a força de subir ao podium das decisões coletivas de caráterimperativo, a começar pela feitura da própria Constituição, reserva para si o poder deselecionar eleitoralmente os governantes, e, com o tempo, nunca deixa de dividir com

eles algumas funções de governo e ainda passa a controlar o modo pelo qual tais

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governantes se desincumbem do mandato ou do papel institucional que lhes éconfiado. E aí já se pode falar de Democracia, nos marcos da Constituição, como oregime pelo qual o povo passa a eleger seus governantes, a partilhar com eles oexercício do poder de criar o Direito e a acompanhar, criticamente, o modo deexecução desse mesmo Direito. É a chamada Democracia Formal ou Estado

Democrático de Direito, que, com o transcorrer dos anos, mais e mais serve decondição para que o Direito se caracterize também por uma vertente popular, de sortea desenhar nos horizonte da História o altaneiro perfil da Democracia Substancial ou"Estado de Direito Democrático" (a Constituição portuguesa de 1976 bem o diz,nominalmente). Passagem ideal de uma situação de democracia do Estado (no interiordele) para uma situação ainda mais abrangente de democracia na intimidade de todo ocorpo social.4 5.4.6. Chegando-se a este patamar de intelecção, não é difícil perceber que aDemocracia é o único valor que perpassa os  poros todos da axiologia constitucional (valor subjacente a tudo o mais), no sentido de que: a) enquanto processo ou via deformação e deliberação de norma jurídico-primária (Democracia Formal),compreende e legitima a produção em si de todas as leis em sentido material, sejamquais forem os conteúdos dessa leis; b) enquanto fim ou objetivo de toda norma

 jurídico-primária mesma (Democracia Substancial), incorpora a positivação devalores que se marquem por uma densa vertente popular (tanto no campo institucionalcomo na área das franquias individuais e dos direitos sociais).5.4.7. Assim incorporando uma dimensão processual (modo pelo qual o povoparticipa, ora direta, ora indiretamente, da produção e execução do Direito) e umacoloração material (compromisso das normas jurídicas gerais com a defesa epromoção dos indivíduos e daqueles que só podem ser concebidos como parcelas dotodo social), a Democracia ganha a suprema virtude de legitimar por todos os

ângulos o Poder. O mérito de domar o poder e assim torná-lo serviente do Direito.Com o que passa a regime político de irrespondível superioridade sobre qualqueroutro já experimentado (como a licitação e o concurso público, a democracia não estáisenta de defeitos, porém nenhum povo conseguiu vivenciar algo melhor).5.4.8. É certo que o teor de autenticidade democrática varia de cada experiênciaconstitucional-positiva para outra, em um ritmo ora mais lento, ora mais rápido, demanifestação da própria consciência humana. Mas o fato é que nenhuma Constituiçãoocidental, popularmente votada, deixa de dizer que está a reverenciar, acima de tudo,a Democracia. Com o requinte de muitas vezes clausular como pétreos aquelesvalores mais próximos do centro - falemos assim - da circunferência democrática.5.4.9. Que fique assentado, portanto, ser a Democracia um fluxo ou movimento

ascendente do Poder (visto que parte de baixo para cima e não de cima para baixo),com a virtualidade de atuar ao mesmo tempo: a) nas bases do corpo social e daspróprias instituições públicas e privadas, para valorizá-las; b) nas cúpulas do poderestatal e até mesmo das instituições privadas, para limitá-las perante as respectivasbases.5.4.10. Que o fechamento deste tópico seja a afirmação de que a teoria constitucional

 já dispõe de todos os elementos lógicos para reconhecer até mesmo uma tríplice - enão apenas dúplice - centralidade: a Democracia está no centro dos princípiosconstitucionais, tanto quanto os princípios constitucionais estão no centro daConstituição e a Constituição está no centro do Sistema Jurídico.

5.5. O ser da Constituição e seus valores mais próximos 

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5.5.1. Esses valores mais próximos do núcleo da circunferência democrática têm nasatuais Constituições de Portugal e do Brasil uma indicação mais precisa. Escolhendo ado Brasil como paradigma, vamos encontrá-los expressamente citados nos incisos de Ia V do art. 1°, com os nomes de "soberania", "cidadania", "dignidade da pessoa

humana", "valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" e "pluralismo político".Também assim no § 4° do art. 60, sob as denominações de "forma federativa deEstado", "voto direto, secreto, universal e periódico", "separação dos Poderes" e"direitos e garantias individuais", como anteriormente falado.5.5.2. Se estamos a qualificar os fundamentos da República Federativa do Brasilcomo elementos conceituais da Democracia, ao lado das cláusulas pétreas materiaisexpressas, é pela imperiosa razão de que tais fundamentos são os pressupostosmesmos ou o a priori lógico da construção e balizamento de todo o Estadobrasileiro. Aquilo que se põe como justificativa prévia e explicação final daarquitetura estatal que substituiu o modelo autoritário da eufemisticamente chamada"Revolução de 1964". Logo, estamos a lidar com "fundamentos" que outra coisa nãosão que princípios antecedentes a tudo mais que signifique nova montagem efuncionamento do Estado brasileiro em termos republicanos e federativos. Emlinguagem figurada, os fundamentos da nossa República Federativa são oscromossomos nos quais se contêm os próprios genes ou suportes materiais dahereditariedade estatal brasileira.5.5.3. Esses valores mais próximos do centro da Democracia, concebemo-los como osprincipais conteúdos ou as principais manifestações dela mesma. E sendo assim, elespassam a gozar de uma posição intra-sistêmica do mais alto relevo, pois todainterpretação normativa que os confirmar será uma "interpretação conforme aConstituição". Vale dizer, uma interpretação conforme o ser da Constituição,

especifica ou topicamente revelado nos valores que tais.5 5.5.4. Entre duas interpretações possíveis de uma norma constitucional, portanto,deve-se prestigiar aquela que melhor assegure a eficácia do princípio que maisproximamente esteja do ser da Constituição (e tal ser é a Democracia, como tantasvezes dito). É preciso intuir com essa força de gravidade do ser da Constituição,porque ele é uma porta aberta para a compreensão de cada parte da Lei das Leis e detodo o conjunto normativo-constitucional. Se o visual interligado das partes projeta aimagem do todo, o visual do todo inda mais aclara a visão de cada parte. Ilustremoscom a própria Lei Maior de 1988:I - se tomarmos por referência a Federação como forma de Estado, perceberemos queela tem a sua mais funda justificação no fato de a Democracia incorporar um

ingrediente de divisão espacial do poder político, na acepção de que o povo nacionaltem o poder de se decompor em unidades territoriais que se caracterizem pelapersonalização jurídica, autonomia governamental recíproca e indissolúvelatrelamento a uma terceira pessoa estatal abarcante de todas elas;II - se o pensamento se volta para a instituição do princípio da Separação dos Poderes,a dedução flui no mesmo passo: a democracia postula mesmo a distribuição do poderpolítico por um vetor complementar, não territorial, mas orgânico; ou seja, é precisoratear o poder político entre os órgãos estruturais de uma mesma pessoapolítico-estatal em bases tão independentes quanto harmoniosas, pois o contrário éseco autoritarismo ou ditadura do Poder preponderante (sempre o Poder Executivo),como advertiam LOCKE e MONTESQUIEU;III - se se intenta colocar no cerne da reflexão jurídica a figura mais abrangente da

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República, de novo a justificativa para a positivação da matéria se encorpa, se adensa,e até se plenifica pela idéia de uma partilha direta do poder político entre governantese governados, no sentido de que são os governados que detêm a propriedade da coisapública ou a titularidade dos interesses gerais. E por detê-la, somente eles podemescolher, eleitoralmente, quem os represente no papel de definir o que seja melhor

para todos e como operacionalizar tal decisão (logo abaixo da Constituição,entenda-se). E que tais representantes só podem permanecer como representantes dopovo por um determinado período e debaixo de uma responsabilidade político-jurídicade caráter pessoal;IV - se o eixo do pensamento especulativo já se volta para o rol dos direitos egarantias individuais, vai-se notar que o laço entre eles e a Democracia é igualmenteumbilical, pois a proclamação de tais direitos e garantias é o reconhecimento formalde que todo ser humano não é somente parte de algo, mas algo à parte. Não apenasparte de um todo, mas um todo à parte. Sendo assim, constituindo-se mesmo numatotalidade em si, cada indivíduo é por natureza diferente dos demais e no que toca àexperimentação de sua natureza em certas áreas de atividade - pensamento,religião, trabalho, locomoção, preferência sexual, associação, etc. -, todo serhumano deve passar ao largo de controle estatal (não é de contenção do poderestatal que primeiro vive a Democracia?). Passar ao largo de controle estatal comocondição de respeito a uma dignidade que não tem outro fato gerador que não ahumanidade mesma que mora em cada indivíduo. Daí o vínculo funcional entre adignidade da pessoa humana e os chamados direitos e garantias individuais. Daí também o necessário vínculo entre os direitos e garantias individuais e a Democracia,pois Democracia, a par de outros conteúdos, não pode deixar de se traduzir emrespeito do todo (seja o Estado, seja até mesmo o conjunto da sociedade) àquelasinatas diferenças de cada indivíduo. Donde se falar de convivência com os contrários

ou respeito às minorias. Noutra forma de expor as coisas, é no reconhecimento decada indivíduo como um microcosmo que se intui com o princípio constitucionalda dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1° da Constituição brasileira de1988, repita-se) e um dos mais palpáveis conteúdos da Democracia. E conteúdo tãopalpável que nos parece verdadeiro afirmar o seguinte: o próprio entendimento do queseja dignidade da pessoa humana depende de um ar de liberdade pessoal e depluralismo ético-ideológico-religioso que somente se respira em atmosferademocrática;6 IV - enfim, a toada não muda se o alvo desse tipo de análise teórica se deslocar para"os valores sociais do trabalho", também expressamente arrolados como um dosfundamentos da República Federativa do Brasil, e, conjuminadamente, da Ordem

Econômica e da Ordem Social de que trata a Carta de Outubro. Se não háDemocracia sem a devida observância dos direitos e garantias individuais (veículosformais do princípio da dignidade da pessoa humana, ao lado dos direitos sociais àhabitação, transporte, saúde, educação, etc.), não há concreta vivência dos direitos egarantias individuais sem o desfrute de franquias trabalhistas que possibilitem aotrabalhador e respectiva família um auto-sustento econômico. Foi o ponto decompreensão a que finalmente chegou o nosso constitucionalismo, pois, realmente, deque serve o direito individual de inviolabidade domiciliar, por hipótese, se o indivíduonão ganha sequer o suficiente para alugar uma residência? E o direito igualmenteindividual do sigilo da correspondência epistolar, ou da comunicação telegráfica, se apessoa vive "debaixo da ponte" e a ponte não se presta como endereço oficial deninguém? As prefigurações pululam em nossa mente e nos lembramos de que até

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mesmo o direito individual da liberdade de locomoção perde toda substância se, porfalta de uma casa para morar, a pessoa for obrigada a zanzar por aí feito barata tonta. Sabido que a compulsão do perambular já não se coaduna com a idéia de liberdade.Pois é assim por via indireta que os direitos sociais de índole trabalhista, albergadospela Constituição, passam a compor um dos conteúdos do regime democrático.7 

5.5.5. Um parêntese: qual a razão de a Lei Maior de 1988, de fora a parte osprincípios da forma federativa de Estado e da Separação dos Poderes, apenas falar dovoto popular e dos direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas materiaisexpressas? Como temas insuscetíveis de se tornar objeto de emenda tendente à suaabolição?5.5.6. Primeira resposta: em rigor, o voto popular não precisaria de expressa mençãocomo cláusula pétrea, pelo fato de ele já estar contido no primeiro dos fundamentosexplícitos da nossa República Federativa (esse fundamento explícito é "a soberania").Todavia, o que a nossa Lei Maior quis deixar acima de qualquer dúvida não foi airrevogabilidade do voto popular. O que ela quis elucidar é que não basta manterincólume de emenda constitucional a abolição do voto popular. O voto popular que a

 Lex Legum de 1988 teve em mira acautelar de danos foi o voto popular "direto" emais que isso: também o voto popular "secreto", o voto popular "universal" e o votopopular "periódico". Logo, o sentido protetivo da Constituição foi de alargar osaspectos do voto popular que ficariam sob o guarda-chuva do § 4° do art. 60.5.5.7. Segunda resposta: também em rigor, os direitos e garantias individuaisdispensariam expressa dicção como cláusula pétrea material, porquanto já embutidosna locução "dignidade da pessoa humana". Contudo, o vínculo operacional diretoentre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias individuaisficou prejudicado em sua clareza redacional, pelo fato de a Constituição não conternenhum capítulo ou segmento normativo com o nome "Dos Direitos e Garantias

Individuais". Tais direitos e garantias foram regrados de mistura ou mescladamentecom deveres e também com a realidade das pessoas coletivas, de modo a compor ocapítulo que tem por designação vernacular "DOS DIREITOS E DEVERESINDIVIDUAIS E COLETIVOS" (CAPÍTULO I DO TÍTULO II, este último sob adenominação "DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS").5.5.8. Pois bem, o Constituinte de 1988 não quis petrealizar  os deveres individuais ecoletivos nem os direitos e garantias de natureza coletiva. Somente se comprometeucom os direitos e garantias genuinamente individuais (em razão do mais diretovínculo entre estes e o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana,renove-se o juízo). Cuidou, então, de proceder a um enxugamento ou depuraçãotemática e por isso é que deixou de fora da tutela petrealizadora tudo que não

portasse consigo a logomarca de direito ou garantia individual (mas somente nosmarcos do capítulo versante sobre os direitos e deveres individuais e coletivos,entenda-se). Com o que seguiu metodologia oposta à do voto popular; isto é, se nocampo do voto popular houve alargamento protetivo material, no campo dos direitos edeveres individuais e coletivos houve estreitamento.5.5.9. Fechamos o parêntese para tornar a falar de Democracia. Mas para tornar a falarde Democracia, a fim de lembrar que em nenhum momento nos comprometemos como juízo de que a sua idéia completa já anteceda à jurisdicização dos institutos e dasinstituições que nela teoricamente se contêm. É possível e até provável que a plenacompreensão da Democracia não seja um a priori lógico. Seja algo que supere aprópria razão, sem, contudo, brigar com a razão. É possível e até provável (insistamosnas duas palavras) que a Democracia passe primeiro pela consciência antes de chegar

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à razão. E que a vontade assim imediatamente derivada da consciência somentebusque a razão como uma forma de justificativa para o que já se decidiu no plano,

 justamente, da a-racionalidade (que é o plano da consciência ou do espírito, dentreoutras vias de conhecimento que, nos seres humanos, são neutras à razão8).5.5.10. Inclinamo-nos, assim, para ver a Democracia enquanto matéria disponível

para um tipo de conformação normativa que tem um componente consciencial aindamaior do que o propriamente racional. A consciência a ver as coisas primeiro do quea razão, ou a proceder à margem da pura lógica, para, figurativamente, melhor sentirna pulsação do presente as batidas do coração do futuro. 5.5.11. Seja como for, o que pretendemos dizer é que valores vão sendo positivadospelas Constituições como conteúdos ou manifestações plúrimas da Democracia, semque a noção perfeita e acabada de Democracia esteja no ponto de partida do puropensamento lógico-jurídico.5.5.12. Fale-se o que se quiser falar de mau da Democracia, mas não se lhe poderecusar a virtude de qualificar, de uma só penada, o Poder e o Direito. Quando elaestá presente na formação, no exercício e no controle do Poder, quem tem a ganharcom isso é o Direito, que passa a ter no Poder um mecanismo de reverência: o Poder aserviço do Direito, que é a única forma pela qual ele (Poder) se legitima. E quando sedá o contrário? Quando a Democracia não tem o ensejo de se fazer presente naquelesdecisivos instantes da formação, exercício e controle do Poder? Ora, quem tem aganhar com isso é o Poder mesmo, que faz do Direito um instrumento de meraformalização de sua truculência. Para desqualificação axiológica de ambos.5.5.13. Por derradeiro, ousamos verbalizar uma idéia certamente vocacionada para aformação de controvérsias no plano científico. A idéia é esta: assim como aconsciência deve servir de luzeiro à razão, quando da inserção de determinadosvalores no Ordenamento, ela, consciência, deve estar presente no instante da

interpretação de tais valores, subsidiando ou até mesmo policiando o intelecto.Somente assim é que a norma se dá a conhecer por completo, como que sinalizandopara o exegeta a aplicação da conhecida máxima de LACORDAIRE (que outrosatribuem a PASCAL): "Ciência sem consciência é ruína da alma". Ou, por outra, se háum componente consciencial em certas normas de Direito Positivo, essa parteelementar do discurso normativo só se deixa conhecer pela via igualmenteconsciencial do intérprete, que é uma via necessariamente recicladora do intelecto. Einaugural do pós-positivismo, que somente começa com a dicotomia básica dosprincípios e regras.

5.6. As conseqüências lógicas da Constituição enquanto suma de princípios 

5.6.1. Tudo fica muito mais claro, em termos metodológicos ou funcionais (nãofinalísticos), quando se parte mesmo da rigidez formal como a pedra angular doMagno Texto. É a rigidez, como visto, a técnica primaz que torna a Constituição a leidas leis, a norma de hierarquia suprema no todo do Direito Positivo. Hierarquiasuprema, a seu turno, que já passa a responder pela unidade orgânica e movimentopendular desse Direito Positivo, sintomaticamente chamado de "Ordenamento".5.6.2. No seu interior, porém, já sabemos que a Constituição obtém sua unidadesistêmica por conduto das normas-princípio, alçadas à dignidade operativa de primusinter pares. E quais os corolários dessa posição de liderança internormativa? Dessepapel eminente dos princípios no interior da Constituição?

5.6.3. Bem, neste ponto fulcral dos princípios genuinamente constitucionais, um

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mundo de conseqüências teóricas toma corpo e começamos por frisar que são eles quefazem da Constituição um prevalente sistema de positivações axiológicas.Positivações axiológicas ou filosóficas ou valorativas, cuja resultante é ganhar aConstituição aquela compostura dinâmica, histórica, processual, que é própria dasociedade humana.

5.6.3. Em diferentes palavras, os valores, pela sua intrínseca materialidadeprospectiva, tornam a Constituição um processo. Um vir-a-ser permanente, umdevir, pelo seu facilitado ajustamento ao corpo sempre cambiante da realidade social.5.6.5. Posto ainda de outra forma: sendo a Constituição o mais principiológico dosdocumentos jurídicos, ela é mais processual por si mesma do que o Ordenamentoque nela se embasa. E sendo mais processual por si mesma, ela não precisa tanto dereforma quanto o Ordenamento precisa. Sua genérica estabilidade não significaestratificação, destarte, porém um ritmo de mutabilidade diferente do ritmo das leisem geral. Um ritmop preponderantemente endógeno, em oposição ao ritmo de cada leimenor em particular, que é um ritmo prevalecentemente exógeno; quer dizer, ditadopor outra lei e mais outra e mais outra, sem que o Ordenamento Jurídico experimentea sensação de tontura que sobreviria a uma Constituição demasiadamente refundidano seu aspecto formal.5.6.6. Todo o nosso esforço comunicativo, então, é para evidenciar que a Lei das Leisse deseja fluir mais por conta própria do que por intervenção dos seus atos de reforma.Ela se prefere dinamizada pela processualidade dos seus princípios estruturantes e éisto o que rebate ou compensa a rigidez formal e material a que se impõe,inevitavelmente. É concluir: tudo muda no Direito, só que em diferentes ritmos.Como exigir que o Direito axiológico por excelência, que é a Constituição, tenha aagilidade do Direito factual por excelência, que é o Direito subsconstitucional?5.6.7. Ajunte-se que essa característica central da processualidade ou historicidade das

Constituições principiológicas só pode ocorrer por efeito de normasconsubstanciadoras de concepções filosóficas ou mundividências (tanto no campoético-humanista quanto no ideológico ou político), a que se agregam impessoaisprogramas de governo. Estes últimos a fazer da Constituição o mais estrutural dosprojetos nacionais de vida.5.6.8. É por isso que os Diplomas Fundamentais contemporâneos contêm cada vezmais as chamadas normas programáticas, destinadas a parametrar os empíricosprogramas de governo, a concreta política social e econômica do Estado ("políticaspúblicas", no jargão midiático e na Ciência da Administração), independentemente daideologia professada pela facção partidária que se encontrar no Poder. Por elas,normas programáticas, as grandes linhas de ação governamental já ficam previamente

esboçadas, à guisa de metas oficiais a alcançar, cabendo à legislação ordinária, quaseque tão-somente, a escolha dos respectivos meios. Ou a colocação de ênfase nesse ounaquele meio já imposto pela própria Constituição.5.6.9. Uma outra nota de especificidade dos princípios constitucionais está no fato, jáassinalado, de que uma parte deles se define por contraposição. Daí que passem aencarnar valores em estado de fricção potencial ou latente, como, verbi gratia, oprincípio da propriedade privada e o da função social dapropriedade-bem-de-produção; o princípio do pluralismo político e o da fidelidadepartidária; o princípio da valorização do trabalho e o da livre iniciativa; o daindependência dos Poderes e o da supremacia da lei; o da imunidade parlamentar e oda responsabilidade funcional (tão característico da República); o da integração doPaís aos mercados externos comuns e o da soberania nacional. E porque são desse

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 jeito, suscitam um manejo bem mais cuidadoso dos métodos de hermenêutica jurídicano que toca à seleção daquele princípio que, numa situação em concreto, devapreponderar sobre o outro.5.6.10. É para desanuviar , justamente, essa área de empírico tensionamento entre asnormas-princípio da Constituição que PAULO BONAVIDES pugna pelo emprego do

que a teoria constitucional vem chamando de "princípio da proporcionalidade", que é um princípio conciliador por excelência. Mas que, ao nosso ver, não faz partedas categorias metajurídicas. Ao contrário, temo-lo como princípio constitucionalinexpresso, do tipo instrumental. Um princípio que é a decorrência lógica dotensionamento daqueles princípios materiais que se definem por contraposição.Servindo, então, para que o juiz dos casos concretos sopese os fatos e opte por aqueleprincípio material que mais próximo estiver do valor dos valores, que é a Democracia(como tantas vezes dito). Ou que menos lesione os princípios correlatos àqueles emconcreto estado de fricção.9 5.6.11. Todo este modo especial de ser das normas constitucionais principiológicasrepercute (e como!) nos enunciados hermenêuticos. Por isso que, ao lado de outraspeculiaridades da Constituição, tais normas pedem e até mesmo exigem uma correlataespecificidade de intelecção ao nível do que vimos chamando de cânoneshermenêuticos diferenciados.

5.7. A eficácia máxima da Constituição como principal diretriz hermenêutica 

5.7.1. Em termos técnicos, porém, qual o principal enunciado que a Hermenêuticarecomenda ao processo da interpretação em concreto de uma norma constitucionaloriginária? Pensamos que seja, como postura inicial, reconhecer à norma isolada omáximo de eficácia que a sua formulação linguística, a sua logicidade, a sua

história e a sua teleologia permitirem, pois, sendo toda norma constitucional umanorma jurídica, existe, em última análise, para cumprir uma função técnica decontrole social.5.7.2. A Constituição é norma em sentido material, tem força normativa própria(CONRAD HESSE) e deve ser interpretada de acordo com a sua mais alta hierarquia;ou seja, à lei maior deve corresponder u'a maior eficácia. Exceto se a próprianorma constitucional, inequivocamente, pedir o adjutório de regra intercalar para aplenificação dos seus efeitos. Noutros termos, no ápice do dilema entre reconhecer apleno-operância de uma norma constitucional e sua dependência de regração demenor estirpe, a opção do exegeta só pode ser pela operância plena da regra maior.5.7.3. Nessa recomendação de imprimir às normas constitucionais originárias o

máximo de eficácia que os métodos acima indicados permitirem, a hermenêuticabusca impedir que os espaços de normatividade constitucional sejam indevidamenteocupados pela legislação inferior. Isto por que é da natureza da Constituição passar

 adiante a conformação jurídica da matéria que deixar de regular por contaprópria.5.7.4. Este é um ponto central da Teoria da Constituição, que não tem sido objeto derealce doutrinário. Se a Constituição decide normatizar uma dada matéria, essamatéria só pode decair do status de norma constitucional se outra normaconstitucional (emenda, revisão) assim o disser. Mas se a Constituição deixa do ladode fora um dado campo fenomênico, esse campo já se define, por exclusão, comonormatizável por lei.

5.7.5. É por isso que o intérprete, ao medir a extensão do quê de uma norma

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constitucional, deve estar ciente dos efeitos irradiantes dessa interpretação para oDireito que não se veicula por emenda ou por revisão constitucional. É que esseDireito subconstitucional apanha as sobras do que a Lei maior não quis, ou não pôdereservar para si mesma com exclusividade.5.7.6. Deveras, a exegese que diminua a esfera de alcance de uma norma

Constitucional passa a abrir espaços para uma ocupação normativa de menorescalão.  A contrario sensu, a que amplia aquela esfera de incidência direta de umanorma constitucional passa a fechar espaços para uma ocupação normativa de menorescalão e assim fortalece a Constituição mesma. Defende a Lei Fundamental, pelocorrelato fechamento - ou simples redução que seja - das áreas de conformaçãolegislativa pós-Constituição.5.7.7. Sinta-se que o prejuízo que se causa à Constituição com uma interpretaçãoindevidamente restritiva é maior do que o sofrido, exemplificativamente, por uma leicomum também indevidamente interpretada de modo amesquinhado. É que, no bojoda relação entre a Lei Maior e a lei menor (acabamos de dizer), o que se sonegar àprimeira passa a pertencer à segunda. E não é isto o que sucede na relação entre alei comum e o decreto executivo, por exemplo, naqueles Ordenamentos que nãoadmitem o chamado regulamento autônomo (como é o caso do Brasil, data venia derespeitáveis opiniões em contrário). Daí que recusar à lei o que à lei pertence nãosignifique presentear o Poder Executivo com uma competência legiferante residual. Amatéria fica no aguardo de uma futura normação por via legal, enquanto persistir oentendimento da lacuna total, ou parcial, da lei interpretada.5.7.8. Estas considerações apontam para a adoção de um critério seguro de resoluçãode eventual dúvida interpretativa quanto a maior ou menor compleição eficacial deuma norma genuinamente constitucional. A dúvida, em linha de princípio, é de serresolvida em favor da interpretação eficacial de maior porte. Não se pode fazer 

cortesia com o chapéu da Constituição (outra vez não resistimos à tentação doprosaísmo), porque isto seria transformar a lei maior em lei menor e a lei menor emlei maior. O que se traduz em disparatada inversão de valores.5.7.9. Agora, se o confronto se der, não entre a Constituição e a lei, mas entre duasnormas igualmente constitucionais, uma delas funcionalmente mais distante do ser daConstituição, e, a outra, mais próxima de tal ser, o impasse é de se resolver emproveito da mais próxima. Por hipótese, se uma exegese, para fortalecer dadacompetência da União, tiver que enfraquecer competência dos Estados-membros, adubiedade interpretativa se extingue pela opção que implicar o prestígio das unidadesregionais em que os Estados-membros consistem. E se o confronto se der entrecompetências dos Estados-membros e respectivos Municípios, o sacrifício a ser

imposto é à competência dos Estados-membros, pois tudo que favorecer à idéia dedescentralização de autoridade serve melhor à Democracia, que é a quintessênciamesma da Constituição.5.7.10. Nessa mesma direção, imaginemos uma fundada hesitação exegética entreampliar ou restringir a eficácia de uma norma constitucional que outorgue direitoindividual oponível ao Estado. Qual a preferência do intérprete? A preferência é pelofortalecimento eficacial da norma, sabido que os direitos e garantias individuaiscumprem o papel técnico e até mesmo histórico de afirmar o princípio da dignidadeda pessoa humana e assim conter o Poder em certos limites. E a Democracia políticavive é de técnicas restritivas do Poder, ora diretamente, ora de esguelha, e não demecanismos ampliadores das competências governamentais para além dos estritoslimites da necessidade do exercício delas.10 

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5.7.11. De outra parte, se fizermos o cotejo entre uma norma da Constituiçãooriginária sobre o exercício do Poder Reformador e outra norma advinda desseconcreto exercício (norma advinda de u'a emenda constitucional, portanto), comoenxotar uma eventual dúvida na aferição do tamanho eficacial da primeira ante asegunda? Ou da segunda perante a primeira?

5.8. A necessária interpretação restritiva das normas constitucionais sobre o Poder  Reformador  

5.8.1. Aqui, ainda com mais forte razão há de prevalecer o prestígio à eficacidade danorma constitucional de berço. É que os atos reformadores da Constituição têm,contra ela (Constituição), um potencial lógico de agressividade que as leis não têm.Eles, e somente eles, existem para mexer na Constituição. Veiculam normasconstitucionais, e, nessa medida, nascem com o propósito de dissentir daquela parteda Constituição a que visam reformar.5.8.2. Ora bem, podendo mexer no corpo de dispositivos da Constituição, as emendase revisões alteram aquela porção do Ordenamento que se caracteriza, precisamente,pela estabilidade: a Constituição. Nenhuma outra norma jurídica ostenta em corestão vivas o caráter de estabilidade que a Constituição rígida imprime ao Ordenamento.Donde o corolário de se encarar com extremos de cautela toda medida de acréscimo,supressão, ou alterabilidade das normas constitucionais originárias.5.8.3. Se as emendas e revisões estão autorizadas a aportar consigo normasconstitucionais - e não simplesmente legais -, é no pressuposto do esgotamento dessaou daquela norma-princípio da Constituição, ou de todas elas, para colocar a MagnaCarta pari passu com o ritmo veloz da sociedade. E isto já significa o óbvio: somentequando cessa o papel da interpretação é que se inicia o da integração

constitucional por atos formais de emenda, ou revisão.5.8.4. É da natureza das coisas, é conseqüência lógica da rigidez constitucional que osatos de reforma da Constituição Positiva sejam recebidos com desconfiança. Umadesconfiança que já está na própria Constituição, que disciplina com rigor incomum oprocesso de sua própria reforma, ao menos no plano das emendas (já que, no Brasil -ao reverso de Portugal -, a revisão foi admitida sob pautas processuais menosdificultosas11).5.8.5. Mais até do que dificultar o processo de sua própria reforma, qual aConstituição rígida que não busca resolver, sponte sua, as situações emergenciais doPaís (e aqui nos lembramos, no caso brasileiro, das normas que dispõem sobreintervenção federal, "impeachment", medidas provisórias, Estado de Defesa e Estado

de Sítio)? Tudo, evidentemente, para que não haja necessidade do apelo extremo aosatos oficiais de reforma do seu próprio estoque de normas.5.8.6. Se a Magna Carta é mais dócil ou mais branda na regulação do processo deelaboração das outras normas gerais que não as emendas constitucionais, éexatamente porque: a) são normas que, não podendo tocar em nenhum dispositivo daConstituição, já nascem com o indescartável compromisso de dar submissaprossecução aos comandos formais e materiais dela mesma, Constituição; b) são elas,regras editadas pelo Poder Legislativo comum, que darão à Constituição aquelaprimária aplicação que outra coisa não é senão a paulatina e ininterrupta dinamizaçãode todo o Ordenamento.5.8.7. Em linguagem diferenciada, mas com unívoco sentido: as leis existem para

aplicar diuturna e reverentemente a Constituição, e, por essa aplicação diuturna

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reverente, vitalizar o Direito em geral. Sempre numa linha de inovação material quedeve preservar (por isso que elas não implicam o exercício do Poder Reformador) ainteireza dos comandos todos da Constituição e até de suas eventuais reformas, desdeque estas não portem consigo a mácula da inconstitucionalidade formal, ou material.A inovação que se autoriza é quanto a um Direito que vige do lado de fora da

Magna Carta e nela não pode entrar por nenhum modo.5.8.8. Cogitando-se, porém, de reforma constitucional, os respectivos atos já nascemcom o explícito compromisso de inovar, não simplesmente o Direito, mas o própriofundamento de validade desse Direito, que é a Constituição Positiva. Natural,então, que os riscos de atentado à Magna Lei sejam maiores, a exigir quanto a elas(emendas e revisões) um tipo mais severo ou menos extensivo de exegese. Um tipomais severo ou menos extensivo de exegese, claro, sempre que houver dúvida fundadaquanto à possibilidade de mácula à Constituição, justamente quando do empírico usodo Poder Reformador.5.8.9. Não temos o menor acanhamento intelectual em afirmar que os atos de reformada Magna Carta, notadamente as emendas, constituem uma exceção àquela nota deestabilidade que é indissociável de toda Constituição rígida. Por isso mesmo é quea Lei Maior brasileira não diz o que as emendas podem fazer, mas, sim, o que nãopodem.12 5.8.10. Por semelhante prisma analítico, as cláusulas pétreas, longe de constituir umaexceção ao poder de reforma constitucional, são, em verdade, aquela parte daConstituição que nem mesmo admite a exceção do poder de reforma. Elas é quedevem gozar do benefício da dúvida interpretativa, pois não é racional que se postulea exegese restritiva das matérias que mais confirmam o caráter estabilizador daMagna Carta e ainda por cima revelam, por maior proximidade com o protovalor daDemocracia, a própria alma da Constituição.

5.8.11. A este respeito, é de se afastar o receio de que o prestígio exegético dascláusulas pétreas - nos casos de dúvida fundada, lógico -, venha a significarbanalização das mesmas (tudo, ou quase tudo, passaria a ser encarado como cláusulapétrea). É que a postura interpretativa contrária é de muito maior gravidade sistêmica,pois redunda no mais intolerável tipo de banalização: a banalização da própria LeiFundamental do País, que fica muito mais vulnerável a agressões por via deemendas. A alternativa é radical: ou o hermeneuta prestigia as cláusulas pétreas eassim reduz a possibilidade de produção das emendas, ou prestigia as emendas eassim fragiliza a integridade das cláusulas pétreas. A primeira opção é a que temospor acertada, até porque melhor nos habilita a afastar o temor da banalização, a saber:uma coisa é a indicação das matérias constitutivas de cláusulas pétreas, de par com as

normas constitucionais que dão o conteúdo mínimo de cada qual dessas cláusulas deintangibilidade, pois aí estamos diante dos princípios que mais estabilizam aConstituição e concomitantemente mais se aproximam do centro da circunferênciademocrática; outra coisa, porém, são os preceitos constitucionais que estão a serviçodas cláusulas pétreas, que têm a ver com elas, sim, mas sem a força deelementarizá-las. Regras periféricas, então, da própria circunferência de cadacláusula pétrea, e, com mais razão, da circunferência democrática. Por isso que taispreceitos jazem à disposição do Poder Reformador, desde que o resultado desse laborreformista seja o fotalecimento ou a rebustez da parte axiológica situada no centro dacircunferência em causa (conforme anteriormente explicado).5.8.12. Ainda sem nenhum constrangimento acadêmico, externamos o nosso pensarde que as emendas constitucionais, a teor de Constituições como a brasileira, são

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normas gerais tão-somente suportáveis. Nunca desejáveis, como desejáveis são(irrespondivelmente, supomos) as leis complementares e as de caráter ordinário.5.8.13. Uma comparação prosaica parece-nos vir a calhar. Pensemos em nossasperiódicas visitas ao dentista, desde a infância, e com facilidade perceberemos que asemendas seguem a lógica da extração, da prótese e da obturação dentárias, conforme

sejam emendas supressivas, emendas aditivas e emendas modificativas,respectivamente. Todas elas a significar um corretivo - para não dizer umareprimenda - no modo pelo qual a Constituição cuidou dos próprios dentes. Maistecnicamente falando, seja qual for a modalidade de emenda, tudo se traduz numareconsideração de rumos da Magna Lei, quer pelo fato de sua excessividadenormativa, quer pela ocorrência de lacuna regratória, quer, enfim, por insuficiência decomando (males que se debelam, respectivamente, pelas emendas do tipo supressivo,aditivo e modificativo).5.8.14. Pois bem, nenhum ser humano vai ao dentista por prazer, mas por avaliar queseu quadro clínico já não pode prosseguir sob cuidados próprios. Ainda assim, quemnão se questiona sobre o risco ou o perigo de estar a mexer naquilo que, em verdade,

 já estava bem cuidado? A dispensar, portanto, a sempre temida intervençãoodontológica? 5.8.15. Assim é com as emendas. O recurso a elas é sempre uma ultima ratio, porsignificar um atestado formal de que a Constituição, tal como posta, já não cumpre acontento o seu histórico papel. Já não é passível de atualização pela via dainterpretação doutrinária e jurisprudencial, ou por qualquer outra forma do que se temchamando de "mutações constitucionais". Alguma coisa na Lei Maior pecou por excesso, ou por omissão, ou por inadequação, e o papel das emendas é sempre de umcorretivo.5.8.16. Tudo isto evidencia que o perigo de atentado à Constituição é sempre

iminente, pela indescartável consideração de que, na prática, as linhas que separam oPoder Constituinte do Poder Reformador são muito menos nítidas do que as linhasdemarcadoras da atuação do mesmo Poder Constituinte e do Poder Legislativocomum. E porque são linhas muito menos nítidas ou muito mais tênues, aspossibilidades de invasão pelo Poder Reformador são bem maiores. Tudo a justificar,então, a rédea curta que estamos a reclamar como postura técnico-interpretativa dasnormas constitucionais originárias que se disponibilizam para a edição de emendas àConstituição. Aqui, neste sítio do mais delicado trato hermenêutico, a postura daeficácia máxima da Constituição como principal diretriz hermenêutica opera peloestreitamento (quando não pelo total fechamento) de espaços ao labor reformista doimpropriamente chamado "Poder Constituinte Derivado".

5.8.17. Enfim, esse colocar a Constituição no centro do Ordenamento Jurídico étambém um colocar essa mesma Constituição no centro do sistema social como umtodo, mesmo que se reconheça o caráter fortemente economista e técnico-político dassociedades pós-modernas. É dizer: muito mais que um simples esquema deprocedimentos e organizações, a Constituição permanece como centro de apoio deuma abstrata alavanca de Arquimedes para a mais objetivamente justa transformaçãode toda sociedade humano-estatal. O que significa ajuizar que ela, ConstituiçãoPositiva, não tem por que abdicar da sua fundamentalidade ao mesmo tempo jurídicae social genérica, em razão da natureza dirigente que lhe é conatural.

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Capítulo VI - A Constituição Fraternal 

Sumário6.1. A processualidade heraclitiana da Constituição6.2. A perene atualidade da faina interpretativa da Constituição

6.3. O contraponto parmenidiano de antiprocessualidade6.4. A imutável substância da Constituição6.5. O método dialético de interpretação constitucional6.6. O advento do Constitucionalismo fraternal

6.1. A processualidade heraclitiana da Constituição 

6.1.1. Esta derradeira parte do nosso estudo não é um catálogo de conclusõesextraídas dos capítulos anteriores. É um pequeno conjunto de idéias que não pudemosencaixar em nenhum desses capítulos precedentes. Um pequeno conjunto - o menordeles, por sinal - que esperamos venha a funcionar como aquele necessário  ponto dearremate de uma obra que, embora intelectualmente modesta, se pretende portadorade unidade material.6.1.2. Feita a ponderação, começamos por retomar o pensamento de TOBIASBARRETO, naquela parte em que o jurisconsulto brasileiro e sergipano ajuizou: "ODireito não é um filho do céu". Vale dizer, o Direito não é um regalo dos deuses. Éum produto da experiência humana e, nessa condição, um objeto cultural.6.1.3. Como todo objeto cultural, o Direito tem uma história pra contar . Uma históriaque apresenta a sua linha de evolução e por isso é que, na seara mesma doConstitucionalismo, os dois primeiros e mais importantes momentos foram aConstituição liberal e a social. Uma, protetiva e simultaneamente promocional do ser

humano perante o Estado e o Governo (direitos "civis" e direitos políticos). A outra,operando de modo a favorecer uma mais justa integração de todos os homens noconjunto da sociedade (direitos sociais genéricos), de parelha com a valorização dosassalariados diante do patronato (direitos econômicos ou trabalhistas).1 6.1.4. O que se pretende dizer com a lembrança dessas coisas é que o Direito faz parteda vida e a vida tem um reconhecido caráter de dinamicidade. De processualidade,naquela acepção heraclitiana de que "nenhum homem entra duas vezes nas águas deum mesmo rio". Assim é com o Direito, com as Constituições e com tudo o mais queexiste de natural e de social, pois, segundo HERÁCLITO (540/480 a.c.), só amudança é que não muda. Só o impermanente é que é permanente.6.1.5. O ser das coisas é o movimento, dizia o expoente da escola jônica, e a Teoria

Dialética do tipo hegeliano veio a afirmar que esse movimento decorre de uma forçamotriz ou energia que é liberada pelo tensionamento entre os pares de opostos(dicotomias) de que é formada a existência.6.1.6. Não é de se estranhar, por conseguinte, que toda a história do DireitoConstitucional seja permeada de fases. Tudo começando, embrionariamente, com a

 Magna Charta Libertatum de 1215, inaugural do que depois veio a se chamar deEstado de Direito. Este, por seu turno, a figurar como o primeiro elo dessa correntede que vieram a fazer parte, sucessivamente, o Estado Democrático de Direito (liberal por excelência), o Estado de Direito Democrático (eminentemente social) eagora o Estado de Justiça ou Estado holístico (assim nos permitimos cunhar, face àcrescente densificação dos princípios constitucionais e da própria constitucionalizaçãode temas antes reservados à legislação comum ou de segundo escalão). Que é um

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Estado de funcionalidade fraternal.6.1.7. É por aqui mesmo que se dá o engate lógico entre a natureza processual daConstituição e a ontologia dos princípios de que ela, em toda parte, cada vez mais secompõe. É que, segundo vimos no capítulo de n° V, há uma permanente fricção nopróprio interior ou na própria circunferência de cada princípio constitucional, formada

por um centro e uma periferia (como toda circunferência). E dessa dicotomia oudualidade básica é que se desprende a energia que põe cada princípio em estado demutabilidade. Levando, de roldão, à mutabilidade informal de toda a Constituição. Àprocessualidade endógena do seu discurso jurídico-positivo, pela necessáriaidentidade entre ela e os seus princípios fundamentais.6.1.8. Esse processo endógeno que é da natureza da Constituição não se traduz,portanto, numa experiência de uma só vez. Idêntico ao processo da vida, ele se traduznuma jornada que, significando um seguir adiante ou um andar para a frente, terminasendo um andar para cima. Para o alto. Uma viagem qualificada, porque em espiralaxiológica.

6.2. A perene atualidade da faina interpretativa da Constituição 

6.2.1. Mas não é só. Os princípios constitucionais materiais se vazam numa estruturade linguagem que é formada, obviamente, de palavras. Palavras que se enlaçam natrama de um discurso entremeante do verbal e do não-verbal, do explícito e doimplícito, e que exige essa operação mental-consciencial a que chamamosinterpretação (conforme discorremos no capítulo de n° V).6.2.2. Ora, em tema de interpretação jurídica do Direito legislado, e maisespecificamente em tema de princípios constitucionais (pense-se nos princípios doDesenvolvimento, da Justiça, da Eficiência Administrativa, da Cidadania, da

Inviolabilidade da Vida Privada, da Valorização do Trabalho, da Moralidade e seusconteúdos de decoro, lealdade, boa-fé, reputação ilibada...) e logo vai-se perceber quea interpretação jurídica é fortemente marcada pelo sentido que as palavras tenham nopróprio momento do seu fazimento (dela, interpretação). É impulso como quemecânico do intérprete desvendar os signos linguísticos a partir do significado que aspalavras ostentem no instante mesmo da respectiva interpretação. Se se prefere, assimcomo o dispositivo jurídico é contemporâneo de quem o redigiu, o entendimentodesse dispositivo é contemporâneo de quem o interpreta.6.2.3. Assim é que as coisas se passam, porque o Direito é feito para a vida e a vida ésempre atual. A interpretação faz parte do circuito da existência e tende a ser, porconseqüência, perenemente atual. Mormente em tema de princípios, em cuja esfera

semântica de compreensão interage, dialeticamente, a dualidade centro/periferia.6.2.4. É mais uma forte razão para que a Constituição principiológica (e chega a serredundante falar de Constituição principiológica) se atualize por si mesma. Persevereno seu poder de facilitada adaptação à dinamicidade da vida. E somente depois quecessa ou que se malogra a tentativa de se colocar a Magna Lei em dia com osacontecimentos e o repensar das coisas, pela via da interpretação (renove-se a idéia),somente depois dessa empreitada é que se deve cogitar da mutação formal dos seusdispositivos (dela, Constituição).

6.3. O contraponto parmenidiano de antiprocessualidade 

6.3.1. Acontece que, linhas atrás, também dissemos o seguinte: o movimento da

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Constituição é pendular, naquele sentido ambivalente de compromisso tanto com amutabilidade quanto com a imutabilidade. A Constituição muda por si mesma, sim, eao mesmo tempo não muda. Dialeticamente, evolui com o movimento da parteperiférica da circunferência de cada qual dos seus princípios, tanto quanto se mantémestável com a imutabilidade da parte nuclear. Daí por que falamos que o ritmo de

mutação formal da Constituição deve ser mais lento do que o reclamado pelo restantedo Ordenamento. Devido a que o ritmo de mutabilidade informal (ou endógeno) dorestante do Ordenamento é menor do que o ritmo que é próprio da Constituição. Poiso restante do Ordenamento é muito mais caracterizado pelo seu conjunto de regras doque pelo seu conjunto de princípios. O oposto da Constituição.6.3.2. E tínhamos que ajuizar assim, porque, afinal, a Constituição éemblematicamente estável. Conota a idéia primaz de estabilidade, quer pelo fato deser o fundamento de validade de todo o Ordenamento, quer pela materialidadeorganizacional de suas normas à face do Estado e do Governo. E não falamos ser oDireito Constitucional o mais político dos ramos jurídicos? E a Constituição o maisanatômico dos diplomas de Direito legislado?6.3.3. Pois bem, essa dimensão emblematicamente estável da Constituição tem a ver,

 já não com HERÁCLITO, mas com PARMÊNIDES. Este filósofo e poeta igualmentegrego (540/450 a.c.), que falava do universo como algo eterno, uno, contínuo eimóvel. Não em estado de permanente mutação. E porque pensava assim, proclamouque "nada de novo existe sob o sol". Tudo permanece idêntico a si mesmo, dizia ele,pois a substância dos seres não muda.6.3.4. A partir desse contraponto parmenidiano, teríamos que buscar na Constituiçãocomo um todo (mais do que em cada princípio constitucional em particular) umsubstrato infenso à mudança. Uma ineliminável substância.

6.4. A imutável substância da Constituição 6.4.1. Pois bem, esse indescartável substrato só poderia residir em dois aspectos: a)primeiro, na função constitucional originária de montar o aparelho de Estado, com osrespectivos órgãos de governo; b) segundo, o sentido histórico-filosófico de servir aConstituição como o único mecanismo jurídico de eficaz contenção aos excessos dopoder político e, seqüenciadamente, do poder econômico e do poder social como umtodo (visto que o todo social desiguala materialmente e discrimina moralmente aspessoas e ainda sistematicamente conspurca o equilíbrio ambiental e a sadiaordenação dos espaços urbanos).6.4.2. Teríamos, assim, uma Constituição universalmente idêntica a si própria. Mas

com os demais aspectos permeáveis à incessante mudança das coisas, sob o influxodas peculiaridades sócio-culturais de cada povo e de cada época.6.4.3. Esses demais aspectos ocorreriam no âmago de cada princípio constitucionaloriginário, segundo aquele movimento pendular de mutabilidade na periferia e deimutabilidade no centro da esfera semântica de cada qual deles. Eargumentativamente concluiríamos que toda Constituição Positiva é tanto heraclitiana quanto parmenidiana (à falta de melhor palavra). Não uma coisa ou outra. Mas umacoisa e outra ao mesmo tempo. Dialeticamente.6.4.4. Chamando o feito à ordem, a Constituição muda por si mesma, sim, e nãomuda. Coloca-se no ponto de conciliação ou de unidade orgânica entre as duasteorias, pois a virtude está sempre no meio (medius in virtus), como professavam os

próprios helenos.

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6.5. O método dialético de interpretação constitucional 

6.5.1. Essa dialeticidade que termina sendo uma fuga dos extremos ou a conciliaçãopossível entre eles, é o que também sucede com o próprio labor interpretativo de cada

dispositivo jurídico. Esteja ele, ou não esteja, na Constituição originária.6.5.2. Explicamo-nos. Há duas correntes jurídicas em permanente oposição quanto aopapel do intérprete do Direito. Uma, proclamando que a interpretação deve serrigorosamente objetiva, pois o que interessa não é o querer subjetivo do intérprete,mas a vontade objetiva da norma (engastada em um determinado dispositivo). Outra,bem ao contrário, afirmando que a vontade ou o querer subjetivo do intérprete(condicionamentos psíquicos e sócio-culturais) é ineliminável do processointerpretativo. Do que resulta ser a norma jurídica o resultado da sua interpretação.Não um a priori, portanto, mas um a posteriori.6.5.3. A solução parece estar no meio. A norma a desentranhar dos signos linguísticos(dispositivos) é tanto um a priori quanto um a posteriori. Implica uma descoberta euma construção, tudo ao mesmo tempo. Nem exclusiva objetividade de um quererlegislado que se impõe ao exegeta, nem exclusiva subjetividade de um exegeta que seimpõe ao querer legislado.6.5.4. Se o intérprete faz do seu exclusivo pensar a vontade objetiva da norma,transmuta-se em legislador. Personagem completamente autônomo no circuito daprodução/aplicação do Direito. Se, ao revés, ele se anula totalmente perante odispositivo interpretado, fechando todos os espaços de manifestaçãomental/consciencial do seu próprio ser individual e ao mesmo tempo social, ele setorna um personagem completamente autômato no referido circuito.6.5.5. Essa metodologia da conciliação implica a busca de um equilíbrio sempre

instável, é certo, mas assim mesmo é que se processa o mistério da existência terrena.E é tanto mais recomendável quanto se esteja diante de um princípio, sabido que essacategoria de norma jurídica traduz-se em relato que é muito mais um mandado deotimização do que um mandado de definição (ALEXY). Se a lógica usual de cadaregra jurídica "é a do tudo ou nada", a lógica usual de cada princípio é a daponderação ou do sopesamento das circunstâncias presidentes de sua concretaaplicabilidade. A lógica "do mais ou menos" ou do "vamos ver", que é a lógica doconcretamente possível.

6.6. O advento do Constitucionalismo Fraternal 6.6.1. Agora já podemos enfrentar o tema da progressiva formação do Estado

Fraternal. Que veio para transcender o Estado Social, mas sem o negar. Tanto quantoo Estado Social veio para superar o Estado Liberal, mas também sem eliminar asrespectivas conquistas (como é próprio de toda superação ou transcendência).6.6.2. Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do Constitucionalismo,podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social.Chegando, nos dias presentes, à etapa fraternal da sua existência. Desde queentendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituiçõesincorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão daFraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividadesassecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamentedesfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres

(para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o

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constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor doDesenvolvimento, do Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, da Democracia eaté de certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectivade se fazer da interação humana uma verdadeira comunidade; isto é, uma comunhãode vida, pela consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não têm como

escapar da mesma sorte ou destino histórico.2 6.6.3. Se a vida em sociedade é uma vida plural, pois o fato é que ninguém é cópia fielde ninguém, então que esse pluralismo do mais largo espectro seja plenamente aceito.Mais até que plenamente aceito, que ele seja cabalmente experimentado e proclamadocomo valor absoluto. E nisso é que se exprime o núcleo de uma sociedade fraterna,pois uma das maiores violências que se pode cometer contra os seres humanos é negarsuas individualizadas preferências estéticas, ideológicas, profissionais, religiosas,partidárias, geográficas, sexuais, culinárias, etc., etc. Assim como não se pode recusara ninguém o direito de experimentar o Desenvolvimento enquanto situação decompatibilidade entre a riqueza do País e a riqueza do povo. Auto-sustentadamente ousem temerária dependência externa.6.6.4. No plano do Direito Constitucional, as coisas se processaram numa seqüêncialógica. Se já não era possível um estado genérico de liberdade sem uma aproximativaigualdade entre os homens, também não era possível o alcance de uma vida coletivaem bases fraternais sem o gozo daquela mesma situação de igualdade social (aomenos aproximativamente), pela simples razão de que não pode haver fraternidadesenão entre os iguais.6.6.5. Deveras, a compassiva ou aproximativa igualdade social é a condição materialobjetiva para o desfrute de uma liberdade real. Tanto quanto esse mesmo tipo deigualdade social é a condição material objetiva para o desfrute de uma fraternidadecomo característica central de qualquer povo (uma vez que, sem igualdade

aproximativa, o que se tem no plano da boa vontade dos mais favorecidos para com osmenos favorecidos sócio-culturalmente não passa de caridade, favor, compaixão,condescendência, a resvalar freqüentemente para o campo da humilhação doshipossuficientes).6.6.6. Aonde queremos chegar? Na compreensão de que a ideologia da igualdadesocial é a mais estratégica das ideologias, por ser a igualdade social a necessária ponteentre a Liberdade e a Fraternidade. Sendo esta o ponto ômega ou o pináculo daevolução político-jurídica, tanto quanto o Amor é o ponto mais alto da evoluçãoespiritual.6.6.7. Nesse novo e otimizado patamar da fraternidade como característica doConstitucionalismo contemporâneo, o que se tem já é a democratização no interior da

sociedade mesma. E não só nos escaninhos do Estado e do Governo. Umadignificação de todos perante a vida, mais do que diante do Direito, simplesmente.6.6.8. Não por coincidência, a Fraternidade é o ponto de unidade a que se chega pelaconciliação possível entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro, daIgualdade. A comprovação de que, também nos domínios do Direito e da Política, avirtude está sempre no meio (medius in virtus). Com a plena compreensão, todavia, deque não se chega à unidade sem antes passar pelas dualidades. Este o fascínio, omistério, o milagre da vida.6.6.9. É por aqui mesmo que se dá a penetração do holismo no Direito, entendido oholismo como decidida opção existencial pela integração ou abrangência gradativa detudo. E tinha de ser pelas portas mais largas da Constituição, visto ser ela - e somenteela - potencialmente onitemática. Seletivamente onifinalista. O que já significa uma

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confirmação do seu papel dirigente e da sua inamovível posição de centralidade. Ela,Constituição, a permanecer como a fundamentalidade de todo o sistema jurídicointerno e até mesmo do sistema social genérico (o militar, o econômico, o financeiro,o familiar, o técnico, etc.). A fundamentalidade das fundamentalidades, pois aspróprias fontes do Direito Internacional têm de receber as boas-vindas da

Constituição para, e só então, metamorfosear-se em normas de Direito Interno desseou daquele Estado soberano.Enfim, louvado seja Deus! Esse Deus que, "para os crentes, está no princípio de todasas coisas, enquanto que, para os cientistas, está no fim de toda reflexão", consoante amáxima oracular do físico alemão Max Planck (1858/1947).

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