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TEORIA DA JUSTIÇA E DIREITO PÚBLICO EM ALEXANDRE KOJÈVE Agemir Bavaresco 1 INTRODUÇÃO O tema da idéia de justiça na obra Esboço de uma fenomenologia do Direito, de Alexandre Kojève é central. O autor inspira-se em sua análise, partindo da figura da luta entre o senhor e o escravo da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Ora, esta figura introduz a luta pelo reconhecimento, portanto, da intersubjetividade, da qual resultará a relação jurídica se, nesta luta intersubjetiva, incidir a ação arbitradora de um terceiro imparcial ou desinteressado. Considerando que o modelo metodológico hegelo-kojèviano é pertinente para compreender o fenômeno jurídico, em que medida este método e estatuto teórico-prático contribuem para a superação do Direito moderno, avançando para um Direito intersubjetivo comunitarista? Qual é o alcance e o limite do conceito de Direito Público kojèviano na dimensão constitucional e administrativa? Posto este problema, tem-se como objetivo apresentar a teoria kojèviana da justiça e do Direito Público, como um pressuposto epistemológico plausível para uma hermenêutica jusfilosófica de viés intersubjetivo. O reconhecimento é um dos conceitos éticos mais importantes, dentre aqueles que podem ser identificados, por exemplo, no passado, pós Segunda Guerra, como uma série de lutas no sentido dos movimentos nacionais de liberação, por direitos civis, pela emancipação das mulheres, ou das múltiplas lutas por identidades culturais. Hoje, diante do acentuado nível de exclusão social, da redefinição de nacionalidades e de blocos regionais, busca-se, novamente, a aplicação da teoria do reconhecimento, de modo a possibilitar uma intersubjetividade entre os sujeitos políticos internacionais, respeitando-se as diferenças e identidades e garantindo-se relações justas sob o ponto de vista sócio-econômico e cultural. A exposição da teoria da idéia de justiça, começa, em primeiro lugar, com o desejo antropogênico de reconhecimento, constituindo-se na fonte da idéia de justiça em A. Kojève. Em seguida, apresenta-se a fenomenologia da justiça, em três momentos: a justiça aristocrática ou a igualdade, a justiça burguesa ou a equivalência e a justiça cidadã ou a eqüidade. Enfim, a análise fenomenológica, feita por Kojève, mostra que a idéia de justiça evolui, segundo uma lógica do reconhecimento simétrico entre deveres e direitos, entre 1 Doutor pela Universidade Paris I, Professor de Filosofia da UCPel e Pós-Graduação/MPS, Diretor do ISF.

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TEORIA DA JUSTIÇA E DIREITO PÚBLICO

EM ALEXANDRE KOJÈVE

Agemir Bavaresco 1

INTRODUÇÃO

O tema da idéia de justiça na obra Esboço de uma fenomenologia do Direito, de

Alexandre Kojève é central. O autor inspira-se em sua análise, partindo da figura da luta entre

o senhor e o escravo da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Ora, esta figura introduz a luta

pelo reconhecimento, portanto, da intersubjetividade, da qual resultará a relação jurídica se,

nesta luta intersubjetiva, incidir a ação arbitradora de um terceiro imparcial ou

desinteressado. Considerando que o modelo metodológico hegelo-kojèviano é pertinente para

compreender o fenômeno jurídico, em que medida este método e estatuto teórico-prático

contribuem para a superação do Direito moderno, avançando para um Direito intersubjetivo

comunitarista? Qual é o alcance e o limite do conceito de Direito Público kojèviano na

dimensão constitucional e administrativa? Posto este problema, tem-se como objetivo

apresentar a teoria kojèviana da justiça e do Direito Público, como um pressuposto

epistemológico plausível para uma hermenêutica jusfilosófica de viés intersubjetivo.

O reconhecimento é um dos conceitos éticos mais importantes, dentre aqueles que

podem ser identificados, por exemplo, no passado, pós Segunda Guerra, como uma série de

lutas no sentido dos movimentos nacionais de liberação, por direitos civis, pela emancipação

das mulheres, ou das múltiplas lutas por identidades culturais. Hoje, diante do acentuado nível

de exclusão social, da redefinição de nacionalidades e de blocos regionais, busca-se,

novamente, a aplicação da teoria do reconhecimento, de modo a possibilitar uma

intersubjetividade entre os sujeitos políticos internacionais, respeitando-se as diferenças e

identidades e garantindo-se relações justas sob o ponto de vista sócio-econômico e cultural.

A exposição da teoria da idéia de justiça, começa, em primeiro lugar, com o desejo

antropogênico de reconhecimento, constituindo-se na fonte da idéia de justiça em A. Kojève.

Em seguida, apresenta-se a fenomenologia da justiça, em três momentos: a justiça

aristocrática ou a igualdade, a justiça burguesa ou a equivalência e a justiça cidadã ou a

eqüidade. Enfim, a análise fenomenológica, feita por Kojève, mostra que a idéia de justiça

evolui, segundo uma lógica do reconhecimento simétrico entre deveres e direitos, entre

1 Doutor pela Universidade Paris I, Professor de Filosofia da UCPel e Pós-Graduação/MPS, Diretor do ISF.

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universal e particular. O universalismo do direito aristocrático e o particularismo (ou o

individualismo) do direito burguês coincidirão, pois os direitos e os deveres os mais pessoais,

exercidos pelo indivíduo, serão os direitos e deveres os mais universais, isto é, aqueles do

cidadão, tomado enquanto cidadão, ou aqueles de todos e de cada um.

O reconhecimento intersubjetivo dá-se em vários níveis de mediação sócio-jurídico-

político, implicando uma teoria da justiça, correspondente, no sistema do Direito Público.

Ocorre que, ao exame da teoria acerca da idéia de justiça, vê-se, em Kojève, que através do

Direito, se mostra uma determinada idéia de justiça, derivada das lutas por reconhecimento

travadas no seio da sociedade. Neste sentido, o domínio do Direito Público é o domínio do

político e não, do jurídico eminentemente, uma vez que tais lutas, por reconhecimento não

poderiam ser resolvidas pela intervenção de um terceiro imparcial.

O presente trabalho, Teoria da justiça e Direito Público em Alexandre Kojève, expõe,

primeiramente, a teoria da justiça de Kojève em sua obra Esboço de uma Fenomenologia do

Direito, partindo de sua metodologia dialética, desenvolvida no desejo antropogênico e

descrita nos modelos de Direito (cap. 1). Depois, examina as repercussões da teoria kojèviana

da fenomenologia do direito sobre o Direito Público e, especificamente, sobre o Direito

Constitucional e Administrativo (cap. 2). Enfim, é feito um balanço de sua aplicação da

teoria da justiça no Direito Público, apontando o alcance e o limite de sua análise da

Constituição e da Administração Pública (cap. 3).

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1 - RECONHECIMENTO E INTERSUBJETIVIDADE NO ESBOÇO DE

UMA FENOMENOLOGIA DO DIREITO DE KOJÈVE

Alexandre Kojève (1902-1968) é russo por nascimento, alemão por formação e francês

por escolha, contribuiu na introdução do pensamento de Hegel na França. O livro Esboço de

uma fenomenologia do Direito de Alexandre Kojève, foi redigido em 1943, em Gramat

(França), afirma o editor da edição francesa, por ocasião de uma visita à família de Éric Weil,

não obstante, a primeira página do texto fazer referência à cidade mediterrânea de Marseille.

Esse trabalho permaneceu inédito, embora o autor tenha-se declarado satisfeito, guardando

sua forma original.

1.1 – Questão metodológica

Antes de ingressarmos na interpretação kojèviana de Hegel sobre o fenômeno do

Direito, elucidaremos a diferença metodológica entre a dialética hegeliana e kojèviana. Isto é

muito importante para compreendermos o que nos interessa na metodologia kojèviana, e em

que medida ela pode ser aproveitada para o nosso estudo.

Primeiramente, o que é a dialética hegeliana? A resposta a esta pergunta remete ao

problema central, subjacente, do monismo e do dualismo na filosofia hegeliana. Vejamos.

1.1.1 – A dialética hegeliana

O termo dialética vem de uma longa tradição histórica, na qual Hegel se insere, dando-

lhe, porém, amplidão e uma posição específica no seu sistema: ―A dialética para Hegel,

designa um dos momentos do processo total do conhecimento – ou um dos momentos do

processo total da efetividade; exatamente, o segundo, aquele que articula negativamente o

imediato no movimento de sua própria mediação‖ (Jarczyk-Labarrière, 1986, 88).

a) O segundo momento do processo: No Prefácio da Ciência da Lógica, O Ser, assim

se entendem os três momentos do processo: ―O entendimento determina e fixa as

determinações; a razão é negativa e dialética, porque ela reduz a nada as determinações do

entendimento; ela é positiva, porque produz o universal e subsume nele o particular‖

(Hegel,1972, 6) . O termo dialética aparece aqui, somente no segundo momento e não, como

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uma entidade, subsistindo por si, fora do todo. A razão, sob a forma negativa, depois sob a

forma positiva, concerne o segundo e o terceiro momentos do processo do conhecimento. No

momento dialético, realiza-se a mediação do imediato, em que o particular se determina

dialeticamente como idêntico ao universal.

b) Motor da filosofia especulativa: Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, no fim

do Conceito preliminar, é dito: ―A lógica tem, segundo a forma, três lados: a) o abstrato ou do

entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o especulativo ou positivamente

racional‖ (Hegel, 1995, § 79). Em relação ao texto anterior da Ciência da Lógica, aqui,

aparecem dois termos novos: abstrato e especulativo. A dialética está situada no meio deste

processo, pois ela é o meio-termo, carregando o movimento da negação e da mediação, daí

que esse processo se realiza especulativamente.

Em Hegel o processo do conhecer e da efetividade dá-se sempre a conhecer de

modo recapitulado no seu acabamento – uma vez que igualmente esse terceiro

momento, é aquele do espírito, termo integrativo – seria mais fundado caracterizar o

sistema de Hegel como uma filosofia especulativa do que uma filosofia dialética (Jarczyk-Labarrière, 1986, 90).

c) Um movimento dialético-especulativo: A dialética hegeliana está ligada a uma

henologia, pois se propõe a unidade como uma tarefa da liberdade, uma unidade plural, como

veremos abaixo, de articulação interna de termos diferentes. Trata-se ainda de uma ontologia,

pergunta Labarrière?

Não, se entendermos por aí alguma ciência do ser, que seria pensado como

subsistindo por si, totalmente realizado, no seu objetivismo imediato, anterior à

inteligência de sua significação relacional. Sim, se a ontologia é tomada como a

exposição desta história compreendida, que nasce no ponto de encontro e de

pressuposição mútua do interior e do exterior, da idéia e de sua efetivação. Esta

ontologia é uma doutrina da liberdade (id. p. 100-101).

Pelo exposto, constatamos que, para Hegel, a dialética é um momento de sua

metodologia especulativa, como ficou provado em sua Ciência da Lógica e na Enciclopédia

das Ciências Filosóficas.

1.1.2 – Monismo sim, monismo não

O que é o dualismo? Para responder a esta pergunta, Denise Souche-Dagues, distingue

o dualismo metafísico do ontológico. O dualismo ontológico opõe-se ao monismo e ao

pluralismo. Então, ele engloba as doutrinas do ser que admitem duas fontes, duas figuras

irredutíveis uma a outra: a matéria e o espírito. O dualismo metafísico tem um caráter

puramente formal que apresenta as seguintes oposições: mundo sensível e mundo

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suprasensível, fenômenos e noúmeno, contingente e necessário, relativo e absoluto, tempo e

eternidade, ser e aparência etc. Ora, o hegelianismo é um idealismo absoluto, daí ser

caracterizado como uma ontologia monista, ou seja, uma interpretação una do ser, superando

as expressões do dualismo metafísico (Souche-Dagues, 1990, 9-10).

Para Gwendoline Jarczyk, o modo como Hegel se posiciona em relação ao

dualismo, tal como se apresenta, de um lado, no empirismo ou no transcendentalismo, e de

outro, o monismo, quer seja de Leibniz, de Spinoza ou de Schelling, revela o que ele entende

por unidade e por infinitude em nível propriamente especulativo. As críticas que Hegel

endereça, de uma parte, a Leibniz e a Spinoza, e de outra, a Kant e a Fichte mostram que

Hegel não defende uma passagem do monismo ao dualismo e vice-versa. Isso equivaleria a

passagem entre dois extremos inertes, próprios do juízo. Somente, a economia do silogismo,

que assume os extremos na sua negação, impõe-se aqui. Nesse sentido, a filosofia de Hegel

poderia ser caracterizada de monismo articulado, ou dualidade relacional da unidade

(Jarczyk-Labarrière, 1986, 352-353).

O monismo articulado, no entender do Jarczyk, é um processo de mediação reflexivo

cuja forma elaborada é o processo silogístico, que ela também denomina uma

articulação evolutiva – evolução ao mesmo tempo linear e circular – de três

momentos ou determinações da realidade que são a universalidade, a particularidade

e a singularidade. Processo silogístico cujas diferentes etapas ou figuras marcam as

diferentes dimensões em profundidade de uma afirmação única (id. p. 358-359).

1.1.3 – A dialética Kojèviana

Na Introdução à leitura de Hegel, Kojève em uma nota (id. p. 485, nota 1) descreve

seu modo de compreender a dialética, partindo da tese em que a totalidade da realidade é

dialética. Então, tem-se o seguinte:

a) Monismo ontológico: Os gregos descobriram, sob o ponto de vista filosófico, a

Natureza e aplicaram ao ser humano sua ontologia naturalista, determinando-o por uma única

categoria, a identidade.

b) A dialética da Natureza e do ser humano (= História): Hegel, afirma Kojève,

descobriu as categorias da Negatividade e da Totalidade, analisando o ser humano na

perspectiva da tradição pré-filosófica judeu-cristã. De posse desta ontologia dialética

antropológica, ele a aplica à natureza. Tem-se, assim, em Hegel a aplicação de uma única

ontologia dialética ao ser humano e à natureza.

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Ora, a ação (= Negatividade) tem uma dinâmica diferente que o ser (= Identidade), ou

seja, há uma diferença essencial entre a natureza que é revelada pelo discurso do ser humano,

e o homem que revela a realidade própria e aquela outra da natureza. Kojève acentua que é

preciso distinguir na ontologia dialética do ser revelado ou o do espírito (dominada pela

totalidade), uma ontologia não-dialética da natureza de inspiração grega e tradicional

(dominada pela identidade); e uma ontologia dialética (de inspiração hegeliana) do homem ou

da história (dominada pela negatividade).

Segundo, Kojève, o erro monista de Hegel é o seguinte: Baseado sobre a ontologia

dialética única, Hegel elabora uma metafísica e uma fenomenologia dialéticas da natureza,

para substituir a ciência vulgar (a antiga e a de Newton). Admitindo a dialeticidade de tudo o

que existe, Hegel vê, na circularidade do saber, o único critério da verdade. Ora, para Kojève,

a circularidade do saber só é possível no fim da história. Então, Kojève afirma ―que um

dualismo ontológico é indispensável para explicar o fenômeno da história‖ (id. p. 486).

G. Jarczyk e P-J. Labarrière escreveram o livro que traz por título: De Kojève a Hegel,

tratando da recepção do pensamento hegeliano nos últimos 150 anos, na França. Nesta obra,

os autores fazem uma apreciação crítica de Kojève ao interpretar Hegel. Os traços

dominantes, no entender de Jarczyk e Labarrière, da leitura de Kojève são os que seguem. Há

uma antropologização do sistema, em que o homem toma o lugar do Espírito, quando se trata

da liberdade e de suas realizações. Éric Weil de um lado e Gérard Lebrun de outro

sublinharam que esta abordagem, embora inspiradora, carece do que constitui uma das

tensões fundamentais entre singularidade e universalidade no pensamento hegeliano. Kojève

persegue a origem desse homem, no gesto antropogênico capital que é a submissão de um dos

dois antagonistas, fechando provisoriamente a luta de vida e morte, no começo de nossa

história. Esta dialética, entre dois humanóides no exercício da liberdade, se torna o paradigma

da leitura da história em que, sistematicamente, o oprimido se torna vitorioso. Esta figura, sob

o nome de dialética do senhor e do escravo, se determina no percurso trágico-revolucionário,

ao longo do caminho, em direção ao reconhecimento de ambos. Há, afirmam Jarczyk e

Labarrière, uma extrema violência que atravessa a vida dos homens, donde surge a

necessidade de pensar o desenvolvimento histórico como fim da história, efetivamente

acontecido. Ora, esta figura terminal foi inaugurada pela revolução de 1917, concretizada na

pessoa e na obra de Staline.

Porém, no entender dos autores, o mais original no pensamento de Kojève se encontra

na recusa que este faz tanto do dualismo ontológico como do monismo materialista. Embora

defenda um dualismo dialético linear, ―é uma porta de entrada possível para a compreensão de

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um processo de tipo reflexivo‖ (Jarczyk e Labarrière, 1996, 30) 2. É esta chave hermenêutica

que nos interessa na recepção do pensamento kojèviano em nosso estudo, e que nós

consideramos importante para compreender o fenômeno jusfilosófico, que passamos, agora, a

expor.

1.2 - O desejo antropogênico

Definir o Direito, para Kojève, é encontrar a essência e o modo de sua realização para,

assim, por comparação com outras atividades humanas, demonstrar sua especificidade e

autonomia.

A via de acesso à essência do direito seria aquela inaugurada por Platão: encontrar a

Idéia. Caminho este que corresponde na démarche weberiana ao tipo Ideal e em Husserl ao

Fenômeno. Deve-se descobrir, em outras palavras, o conteúdo que faz com que o caso dado é

um caso de direito, por exemplo, e não de religião ou de arte. De maneira que, para definir o

direito, é preciso primeiro encontrar sua essência, enquanto fenômeno; e porque, este é um

fenômeno humano, é preciso mostrar inicialmente, no ato que engendra o homem, enquanto

tal através dos tempos, o aspecto que faz nascer no mesmo o fenômeno jurídico (Kojève,

1981, 10-11).

Assim, na segunda seção da Esquisse, denominada L’origine et l’évolution du droit,

Kojève trata de mostrar que o desejo antropogênico de reconhecimento pode ser a fonte da

idéia de Justiça de uma maneira geral, e, assim, fonte de tudo o que é autenticamente o

Direito.

Nos §§ 35 a 38, Kojève reconstitui sua chave de leitura da Fenomenologia do espírito,

anteriormente consagrada nos seminários, por si ditados em presença daqueles que,

posteriormente, viriam a ser o escol da intelectualidade européia, tais como Lacan, Bataille,

Merleau-Ponty, etc.

Nestes parágrafos, Kojève esquadrinha as seções A e B do capítulo IV (A verdade da

certeza de si mesmo) da Fenomenologia, respectivamente, Independência e dependência da

consciência de si: Dominação e Escravidão e Liberdade da consciência de si: Estoicismo,

cepticismo e Consciência Infeliz.

2 . Reconhecem, os autores, os méritos de Kojève sob este ponto de vista, sem, no entanto, aceitar as

conseqüências que o filósofo russo, deduz disto, tais como: a entrada numa fase da história, sem possibilidade de

mudança, ou seja, o fim da história e o ateísmo total desta visão de mundo. Esta posição, reiteram os filósofos,

conduz a espoliar a imagem essencial de Hegel que é a plasticidade de seu pensamento levado até o fim de sua

vida. Trata-se, de uma interpretação de um sistema fechado, esgotando suas potencialidades e sem possibilidades

de inovação, concluem Jarczyk e Labarrière.

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Todo o núcleo desta parte da obra em comentário afirma-se sobre o que Kojève

reivindica para si, como sendo uma teoria do desejo do desejo, a propósito da qual, convém

invocar os termos utilizados pelo próprio filósofo, quando em correspondência endereçada a

Tran-Duc-Thao, autor de um artigo publicado no ano seguinte ao aparecimento da

Introduction à la lecture de Hegel:

Minha teoria do "desejo do desejo", também não está em Hegel e não estou certo de

que ele efetivamente a tenha visto. Introduzi esta noção porque tinha a intenção de

fazer, não um comentário da fenomenologia, mas uma interpretação; em outros

termos, tentei reencontrar as premissas profundas da doutrina hegeliana e construir

deduzindo-a logicamente destas premissas. O "desejo do desejo" parece-me ser uma

das premissas fundamentais em questão, e se Hegel mesmo não o desenvolveu

claramente, considero que, formulando-o expressamente, realizei certo progresso

filosófico. É, talvez, o único progresso filosófico que realizei, sendo, o resto, mais

ou menos filologia, ou seja precisamente uma explicação de textos (Jarczyk e

Labarrière, 1996, 64-65).

O § 35 começa por uma grande definição do ser especificamente humano, dizendo que

este é criado ―a partir do animal Homo sapiens no e pelo ato (livre por definição) que satisfaz

um desejo (Begierde), portanto sobre um outro desejo, tomado enquanto desejo. Melhor

ainda, o homem cria-se, enquanto este ato, e seu ser especificamente humano é apenas este

ato mesmo: o ser verdadeiro do homem é sua ação‖. (Kojève, 1981, 237).

Embora esta primeira abordagem traga em si uma oposição primordial — homem e

animal, o conteúdo mais importante é o que extrema a consciência de si do sentimento de si,

ambos concernindo, respectivamente, ao desejo humano e ao desejo animal.

Ao longo do § 35 e até meados do § 36 da Esquisse, grosso modo, Kojève reprisa, de

maneira sintética e aplicada, à questão jurídica, a supracitada chave de leitura da

Fenomenologia que discorre sobre o desejo, para então desaguar na consideração de que é o

ato antropogênico — aquele que satisfaz um desejo puramente humano — ―que engendra a

consciência de si (Selbstbewusstsein, a partir do sentimento de si animal, do Selbstgefühl), o

reconhecimento por outro, sendo também o reconhecimento por si, o conhecimento de si ou a

tomada de consciência de si por si mesmo‖ (Kojève, 1981, 246). A partir do que, segundo o

autor, o homem pode opor ao animal, que também o constitui, tanto sua condição de ―sujeito

religioso‖, quanto sua condição de ―sujeito moral‖, quanto sua condição de sujeito de direito.

A esta altura, resulta proveitoso esquadrinhar-se a questão do lugar e do papel do

desejo na antropogênese ora focalizada; para tanto, favorece o recurso à Introdution à la

lecture de Hegel, na qual a interpretação dada por Kojève à Fenomenologia do Espírito é

revelada em sua plenitude.

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Ainda em sede introdutória à leitura que faz da Fenomenologia, Kojève assenta com

clareza que, embora a diferença entre o homem e o animal trespasse a distinção entre

consciência de si e sentimento de si, isto não importa em que o elemento cognitivo seja a

combustão da antropogênese, mas sim, o Desejo:

a análise do ―pensamento‖, da ―razão‖, do ―entendimento‖, etc. — de uma maneira

geral: do comportamento cognitivo, contemplativo, passivo de um ser ou de um

―sujeito cognoscente‖, não descobre jamais o porquê ou o como do nascimento da

palavra ―Eu‖, e, portanto, da consciência de si, isto é, da realidade humana. O

homem que contempla é ―absorvido‖ por aquilo que ele contempla; o ―sujeito

cognoscente‖ se ―perde‖ no objeto conhecido (Kojève, 1994, 11).

Desta atividade absorta, segundo Kojève, não é possível resultar qualquer referência

ao sujeito que contempla a si mesmo. Somente o Desejo pode levar este sujeito a dizer ―Eu‖.

Esta consideração inicial será posteriormente retomada, no resumo que faz dos seis

primeiros capítulos da Fenomenologia, às páginas 161 a 195 da obra ora comentada, onde, em

uma reflexão posta a partir do referencial cartesiano, situa a questão do desejo do desejo,

enquanto instância ontológica do homem.

Diz Kojève, a resposta cartesiana: ―Eu sou um ser pensante, à questão: Eu penso, logo

sou; mas o que eu sou? não satisfaz Hegel. ‗Eu não sou somente um ser pensante, (...) eu sou

ainda - antes de tudo – Hegel‘‖. (Kojève, 1994, 163) E este Hegel é um homem de carne e

osso, que se sabe ser tal e que, sentado em uma cadeira, diante de uma mesa, munido de papel

e caneta, escreve, enquanto ouve ruídos vindos de longe e que os reconhece como sendo o

barulho proveniente dos tiros de canhão, usado por Napoleão na batalha de Iena.

Assim, partindo do eu penso, Descartes teria fixado sua atenção apenas sobre o penso,

negligenciando completamente o eu, tendo, pois, obtido uma resposta, não só sumária quanto

falsa, posto que parcial e unilateral. O homem, e, portanto o filósofo, não é somente

Consciência (Kojève, 1994, 165), mas Consciência de si e, levar-se em conta tão-somente o

penso, joga o homem naquela condição contemplativa, em que ele se confunde com a coisa

contemplada, é absorvido por ela.

Então, para que o homem venha a pronunciar a palavra Eu, é necessário a existência

do desejo; com isso Kojève opõe ao conhecimento a ação, enquanto elemento genético do ser

do homem: ―Ao contrário do conhecimento que mantém o homem em uma quietude passiva, o

Desejo o torna inquieto e põe-no em ação. Sendo nascido do Desejo, a ação tende a satisfazê-lo‖

(Kojève, 1994, 12). A forma como ser humano age é essencialmente histórica, e não é possível

defini-lo a partir de uma identidade estática como a do cogito, apenas.

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Característica da ação constituinte do homem é a negação; ou seja, desejar é destruir o

objeto, é torna-lo uma posse, assimilá-lo, negando-o, enquanto não-eu. Mas a ação não é

puramente destruidora, ao desejar aquilo que não é o eu, o homem constitui-se como um ser

no mundo em separado daquilo que deseja; porém esta caracterização da ação negadora ainda

não distingue o homem do animal, que também luta pela posse e assimilação de um objeto

alheio a si para a satisfação de um desejo. Esta espécie de desejo incide sobre um objeto

exterior natural é satisfeito pela assimilação, transformando-se no sujeito que o negou pela

assimilação, portanto este sujeito é, da mesma forma, um sujeito natural, ou na acepção de

Kojève: ―O eu, criado pela satisfação ativa de um tal desejo, terá a mesma natureza que as

coisas sobres as quais ele incide: será um eu coisista, um eu somente vivo, um eu animal‖

(Kojève, 1994, 12). A conseqüência disto é que este eu natural, apenas poderá auto revelar-se

e revelar-se aos outros, enquanto sentimento de si, ele não se tornará jamais consciência de Si

(Kojève, 1994, 12).

O desejo que ensejará a consciência de si, é o desejo tipicamente humano; é o desejo

que incide sobre um objeto não-natural, sobre algo que ultrapasse a realidade dada. Logo,

como o único que supera a realidade natural dada, é o próprio desejo, ou seja, o desejo antes

da satisfação, apenas o desejo de outro desejo preenche a exigência de um desejo tipicamente

humano, vale dizer, capaz de viabilizar a consciência de si. Diz Kojéve:

O desejo que incide sobre outro desejo, enquanto desejo, criará, pois, pela ação

negadora e assimiladora que o satisfaz, um eu essencialmente diferente do eu

animal. (...) Este eu não será, como o eu animal, identidade ou igualdade consigo,

senão “negatividade-negadora”. Dito de outra forma, o ser mesmo deste eu será

devir, e a forma universal deste ser não será espaço, mas tempo (Kojève, 1994, 12).

Aquela condição de sujeito de direito, acima mencionada, é a negação

substancializada da base animal do homem. Havendo casos em que o sujeito de direito

corresponderá a uma ―pessoa moral‖ individual, coletiva ou abstrata. É esta negação que

autorizará a distinção entre ação puramente humana e ação puramente animal, sendo que a

primeira é possível, mesmo onde a segunda não esteja presente, o que dá vez a que se obtenha

a noção de ―Fundação‖ a partir da noção de ―pessoa moral abstrata‖ e a de ―Sociedade‖ a

partir da noção de ―pessoa moral coletiva‖ (Kojève, 1981, 247).

Ainda que de passagem, Kojève registra que, independentemente do que possam

propor diferentes teorias a respeito da pessoa moral, o que importa é que a realidade ideal da

“pessoa moral” deve sempre remeter a um animal Homo sapiens que lhe serve de suporte;

em suma, sendo uma realidade especificamente humana, a pessoa moral só pode ser

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proveniente de um ato antropogênico, o qual, por ser uma negação da animalidade, implica na

condição não física da personalidade moral jurídica.

Mais, dirá o autor, esta oposição entre o homem e o animal pode acontecer tanto na

esfera do ser, quanto na esfera do agir; portanto do que é e do que deveria ser. Entre o que se

faz e o que se deve fazer. Assim, o animal, pelo instinto de conservação faz o que é

necessário, para não arriscar a vida que tem, ele recusa o risco; porém, para que este mesmo

animal se torne homem ele deve arriscar sua vida; nesse sentido é que a humanidade é um

horizonte a ser implementado por um ato livre, o ato antropogênico, o qual, além do atributo

da reflexão, enquanto realidade consciente, caracteriza-se ainda por ser um ato valorado

positivamente, que deve ser. Em nota explicativa, Kojève esclarece que o dever-ser é, ao fim

e ao cabo, o dever-ser-reconhecido, que é uma tomada de consciência do querer-ser-

reconhecido, ou do próprio ato antropogênico. Que o aspecto do dever, revela apenas o fato

de que o desejo ou o querer antropogênico ―implica, necessariamente, uma negação do dado

natural ou animal que é a base da existência de quem deseja‖ (Kojève, 1981, 248).

Mas é no § 37, após retomar a noção de que a luta por reconhecimento é, por

excelência, o ato instaurador do advento do especificamente humano, que Kojève vai situar a

imanência da intersubjetividade na constituição do humano. Neste desejo de reconhecimento,

diz o autor, está a fonte última da idéia de existência da Justiça (Kojève, 1981, 250). Porque

sendo travada a luta por reconhecimento, a partir de um ato de vontade mútua entre os

contendores, qualquer lesão a pretendidos direitos daí decorrentes não se pode dizer injusta,

haja vista mesmo a chancela do consentimento decorrente da vontade livre, manifestada pelo

contendor lesado. Não há mais como se falar meramente do emprego da força de um sobre o

outro, posto que houve mútuo consentimento 3 (Kojève, 1981, 250).

Porém, alerta, Kojève, o consentimento afasta a injustiça, mas nem por isso vai

promover de imediato a justiça. É preciso ir além do consentimento para ―encontrar o

conteúdo da idéia de Justiça‖ (Kojève, 1981, 252). Ou seja, somente se houver igualdade de

risco na luta é que se fará presente a idéia de Justiça. O consentimento e a mutualidade são

índices de justiça, no entanto, a objetividade da justiça está no elemento igualdade, o que

permite a Kojéve declinar que toda interação será dita justa, na medida em que ela implique

consentimento mútuo e igualdade dos participantes (Kojève, 1981, 253). E ainda, se a luta foi

justa, seu resultado, da mesma forma, será aceito como justo. Assim, se a luta antropogênica,

3 Esta mesma base de consensualidade mútua presente na luta é que será depois a fonte da idéia da

contratualidade no sentido propriamente jurídico, para tanto, porém, será preciso a presença de um terceiro, de

um árbitro. Nada obstando, na luta por reconhecimento haver apenas duas partes, duas vontades independentes,

dois adversários em confronto deliberado.

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a luta por reconhecimento, a luta que permite o advento do homem dentro da

intersubjetividade, se realiza pelo reconhecimento do mestre-vencedor pelo escravo-vencido,

há então uma desigualdade justa, que remete a uma igualdade primordial, aquela de que

ambos arriscaram igualmente a vida e a morte no embate.

Kojéve identifica no consentimento o elemento subjetivo da justiça e, na igualdade de

contendores, o elemento objetivo da justiça; remetendo então estes corolários à questão da

luta por reconhecimento, dirá o filósofo que esta luta começa num patamar de igualdade, mas

ela culmina na injustiça, e diz: ―É porque a justiça é ainda outra coisa além do que a

igualdade‖ (Kojève, 1981, 254).

A injustiça em que culmina a luta pelo reconhecimento, dá-se em face do

reconhecimento unilateral do senhor-vencedor pelo escravo-vencido, o que revela uma

desigualdade total dos participantes, no entanto se a luta foi justa, igualmente justo haverá de

ser o resultado, o que conduz a uma desigualdade justa, que somente é justa, porque remete a

uma igualdade primordial. Surge, portanto, uma Justiça da desigualdade, que se caracteriza

fenomenologicamente, pelo fato de que a desigualdade, que no caso é o reconhecimento

unilateral, nasce em razão de que um dos adversários abandona a luta, rendendo-se ao outro

pelo medo da morte, rendição esta oferecida de maneira consciente e voluntária, tanto quanto

fora o engajamento na luta; sendo a rendição aceita também de maneira livre, presente está o

consentimento mútuo no resultado da luta. É assim que uma situação aparentemente injusta,

―pode então ser justa, muito embora desigual‖ (Kojève, 1981, 255). Se, em presença da

mutualidade consensual, cabe ainda este pode, como uma potência, é o consenso ainda apenas

indício da justiça.

Uma análise qualitativa das conseqüências deste consenso mútuo será, pois,

reveladora da idéia de justiça aí encerrada. Primeiro, sendo o reconhecimento unilateral, não

há, objetivamente, igualdade propriamente dita e, segundo, não haverá igualdade

propriamente dita como subjetiva porque:

(...) um [adversário] posto no lugar do outro não agiria como este: o Senhor no

lugar do Escravo não se renderia, e o Escravo no lugar do Senhor não teria

continuado na luta até o fim. O Escravo, tanto quanto o Senhor, sabe que não há

igualdade entre o Senhor e o Escravo, entre a atitude de um e de outro. Mas se não

há igualdade de condição e de atitude, há equivalência (Kojève, 1981, 255).

Qual a materialidade desta equivalência? Que elementos são aí cotejados? A

segurança, desde o ponto de vista do escravo, equivale à dominação. Desde o ponto de vista

do senhor, a dominação equivale à segurança. Como a desvantagem do risco é compensada

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pela dominação para o senhor, e como a vantagem da segurança compensa, para o escravo, a

desvantagem da servidão, diz Kojéve que há equivalência entre as duas posições e que é esta

equivalência que constitui a nova idéia de justiça; e assim: ―À justiça igualitária primordial

vem acrescer-se a justiça da equivalência‖ (Kojève, 1981, 255).

Ainda, enquanto corolário, ao final do § 37 Kojéve faz ver que se nem o Escravo pode

ser senhor e nem o senhor pode ser escravo, por este jogo de equivalências das vantagens e

desvantagens que o resultado da luta apresenta, ambos podem ser cidadãos. E que, a evolução

histórica da justiça não é nada mais do que a efetivação gradual no tempo da síntese ou, pelo

menos, de um compromisso entre a justiça aristocrática da igualdade e a justiça burguesa da

equivalência, resultando em uma justiça da equidade.

1.3 – Modelos de Direito, ou ideal de justiça, segundo Kojève

Para Kojève ―o Direito é apenas a aplicação de um ideal de Justiça às interações

sociais dadas, sendo esta aplicação feita por um terceiro imparcial e desinteressado, isto é,

agindo, unicamente, em função de seu ideal de justiça‖ (Kojève, 1981, 267).

O senhorio e a escravidão são fenômenos ―sociais‖ e não fenômenos jurídicos

―primários‖. Assim, o terceiro, enquanto terceiro, pode fazer abstração do fato de ele ser

senhor ou escravo. Um senhor pode aplicar os princípios da justiça burguesa de equivalência,

da mesma forma que um escravo pode aplicar os princípios da justiça aristocrática de

igualdade, de tal sorte que os senhores podem realizar o Direito burguês e os escravos – o

Direito aristocrático (Kojève, 1981, 271).

As duas fontes da justiça e do Direito são independentes. Os dois adversários adotam,

porém, uma relação dialética: O escravo renuncia a igualdade aceitando a equivalência; o

senhor não considera a equivalência, mantendo a igualdade, pois ele está quase indo à morte,

que não levaria a nada. A dialética sócio-política do senhorio e da escravidão que alcança a

cidadania, coincidem, a grosso modo, com a dialética jurídica do Direito aristocrático e

burguês, levando ao Direito sintético do cidadão. Este direito é uma síntese de dois elementos

autônomos, efetivando-se progressivamente: um Direito do cidadão em estado de devir.

O Direito nasce duplo e no fim, torna-se uno, ou seja, sua evolução vai da oposição

antitética à unidade sintética. Kojève, descreve esta antítese pura como uma construção

teórica, que será apresentada, brevemente, abaixo.

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1.3.1 – A justiça da igualdade ou o Direito aristocrático

O ser humano nasce do ser animal pela negação deste último, isto é, pelo risco de vida

em função do desejo de reconhecimento. Ele nasce pela interação entre dois agentes iguais,

colocados nas mesmas condições em relação à luta e ao risco. Esta é a existência humana

realizada pelo senhor, situando-se do ponto de vista aristocrático, pressupõe a igualdade do

risco. ―Sem esta igualdade primordial, não se teria o ser humano: a humanidade criou-se na

igualdade‖ (Kojève, 1981, 274).

O senhorio consiste no risco da vida para o reconhecimento, em vista da honra pura e

simples. Ora, ser homem é ser senhor. Este é o fato, que é um dever-ser, realizando a justiça

no sentido aristocrático, ou seja, a igualdade de condições humanas no senhorio sob os

diversos aspectos: a) Do ponto de vista, sócio-político, o aristocrata considera justas as

instituições que garantem a igualdade com os outros aristocratas, recusando toda submissão;

b) A justiça, do lado econômico, alcança um comunismo descrito em utopias mitológicas de

origem aristocrata. ―Enfim, ser ―justo‖ para o senhor, é tratar os senhores como senhores, isto

é, como iguais: primus inter pares‖ (Kojève, 1981, 277).

Porém, uma sociedade aristocrática, um grupo de senhores, não é jamais igualitária, no

sentido moderno da palavra, pois implica ter escravos. Isso não provoca contradição, pois

para o senhor, o escravo não é um ser humano e sua relação com o escravo não tem nada

haver com a justiça. A contradição aparece, apenas, no momento em que o escravo é

considerado um ser humano e o Direito trata-o como sujeito de direito, pessoa jurídica.

―Então, do ponto de vista da justiça aristocrática, toda a injustiça entre senhor e escravo será

considerada como injusta‖ (Kojève, 1981, 278).

Um senhor que reconhece a humanidade do escravo não é mais um senhor integral,

pois ele se coloca do ponto de vista do escravo. Ele sintetiza seu senhorio com a escravidão e

ele é mais ou menos um cidadão, adotando o ideal burguês de justiça. Ora, esta justiça de

equivalência, não exige a igualdade, podendo-se reconhecer a humanidade do escravo sem

afirmar sua igualdade com o senhor. Assim, as revoluções igualitárias, inspiradas pela justiça

aristocrática, se aburguesam, isto é, aceitam a justiça burguesa da equivalência de condições

políticas, sociais e econômicas que implicam uma desigualdade fundamental, aquela da

propriedade, por exemplo. No início da revolução, a desigualdade é considerada como injusta,

porque os revolucionários aplicam o ideal da justiça aristocrática, porém, ao conquistarem o

poder, eles impõem também sua justiça burguesa, então, a desigualdade pode cessar de ser

considerada como injusta pelas revoluções (id. p. 278).

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As sociedades aristocráticas são hierarquizadas, implicando desigualdades, além

daquela do senhor-escravo. Isso é inegável, porém não existem sociedades puramente

aristocráticas, pois, para que exista o Estado, são necessários cidadãos. Ora, o cidadão é

sempre uma síntese do senhor-escravo. Há uma acomodação, de uma certa desigualdade,

sobretudo, entre governantes e governados, que não são injustas, porque o ideal de justiça

cidadão aplicado é mais ou menos sintético, ou seja, mais ou menos contraditório.

O senhorio constitui-se como uma situação ―justa‖ do ponto de vista da justiça

aristocrática da igualdade. O Direito aristocrático afirma que o senhor, enquanto sujeito de

direito ou pessoa jurídica, possui todos os direitos subjetivos e não tem nenhum dever ou

obrigação jurídica. Então, cada senhor possui a plenitude dos direitos, sendo os senhores

iguais, segundo o ponto de vista jurídico. Logo, toda pessoa jurídica, ou seja, o senhor

aristocrata, pode exercer os seus direitos à condição de não lesar aqueles dos outros. Caso

contrário, o terceiro intervém, para restabelecer a igualdade. Porém esse princípio do senhorio

é difícil de ser aplicado, quase impossível, pois a maioria das interações sociais pressupõe

uma desigualdade ou aí acaba chegando. Esse ideal não existe em ato, isto é, não se aplica.

Ele apenas é chamado a eliminar as ações e reações que lesem a igualdade, sendo sobretudo

um Direito criminal.

O Direito aristocrático, fundado sobre a igualdade, portanto, sobre o estatuto estatal,

tem a tendência de se confundir com o Direito criminal, ao contrário, o Direito burguês,

funda-se sobre o princípio da equivalência, portanto, do contrato, porque admite uma

validade jurídica infinita de interações sociais, sendo, assim, um Direito civil. Nas sociedades

―primitivas‖, isto é, verdadeiramente aristocráticas, as interações sociais são sobretudo

criminais. Aí, as pessoas vivem isoladas, não tendo necessidade umas das outras, entrando em

interação, sobretudo para se lesarem mutuamente, através do roubo, o rapto ou a morte, ao

invés de realizarem trocas comerciais pelo contrato de colaboração.

Na sua relação com o escravo, o senhor tem todos os direitos, ou quase direitos pois

essa relação não é, propriamente falando, jurídica, pois ele não tem nenhum dever. O senhor

tem o direito de propriedade sobre seu escravo e suas terras. Este é um direito aristocrático,

enquanto o Direito civil é o do contrato e das obrigações (Kojève, 1981, 281-291). Enfim, se

os animais lutam entre eles pela posse de uma coisa, os homens lutam também, para que uma

coisa seja reconhecida como exclusivamente sua pelo outro.

Kojève analisa o modelo de justiça da igualdade, descrevendo, fenomenologicamente,

o direito aristocrático. Este é um direito de iguais, em que o reconhecimento passa pelo risco

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de vida, buscando a honra pura e simples. O reconhecimento dá-se pelo escravo, enquanto

submissão, e pelos outros senhores, na medida da igualdade.

1.3.2 – A justiça da equivalência ou o Direito burguês

Assim, como a justiça aristocrática, a justiça burguesa reflete a luta antropogênica. A

luta se refletia, antes, na consciência do senhor, agora na do escravo. O senhorio constitui-se

pelo risco, ou seja, ―na e pela luta, enquanto tal, enquanto que a escravidão é o resultado desta

luta, determinado pela negação do risco e da luta, pela recusa de continuar até à morte‖

(Kojève, 1981, 291). A justiça aristocrática corresponde à luta, enquanto que a justiça

burguesa corresponde à sua saída, ao resultado. Ora, se a luta se efetua na igualdade absoluta

de condições, isto é, do risco, o resultado é uma negação total desta igualdade, pois o escravo

não é o senhor e inversamente. Assim, está excluída a igualdade, pois ela implica a diferença

do senhor e do escravo. Para o senhor, o escravo não é humano, e mantém seu ideal de

igualdade, todavia, para o escravo, a humanidade é desigual. Essa igualdade não é justa para o

escravo. Este justifica a desigualdade entre ele e o senhor pelo fato de ter aceitado livremente.

O escravo renunciou o risco da luta e submeteu-se ao senhor. Aquele é humano, porque

arriscou sua vida na luta pelo reconhecimento, porém, como ele não a levou até o fim,

recusando o risco de atualizá-la na e pela morte, ele não atualizou sua humanidade. Por isso, o

escravo é um ser humano em potência, daí, a necessidade de mudar, para se atualizar, ou seja,

ele deve deixar de ser escravo e tornar-se cidadão, para existir em ato, enquanto ser humano.

Tanto para o senhor como para o escravo, ser humano é um dever-ser, porém, o

primeiro se realiza, permanecendo idêntico a si mesmo, ou sendo igual a si, enquanto que o

último realiza seu dever-ser homem mudando, tornando-se outro. Ele torna-se outro, negando-

se, enquanto escravo. Sua humanidade atual de cidadão pressupõe sua humanidade virtual de

escravo, e esta última implica desigualdade e pressupõe a equivalência. ―Para o escravo, o

dever-ser funda-se sobre a equivalência e não sobre a igualdade. A equivalência é, pois, um

―dever-ser‖, e o ―dever-ser‖, enquanto equivalência é ―justo‖, mesmo se ele implica a

desigualdade. A justiça burguesa do escravo é uma justiça de equivalência‖ (Kojève, 1981,

294).

Na história, encontramos sistemas sociais e jurídicos fundados sobre o princípio da

equivalência, justificando e reconhecendo a desigualdade. Por exemplo, o sistema cristão de

Santo Tomás de Aquino, em sua teoria da justiça social e jurídica, afirma a possibilidade para

cada um viver segundo sua categoria. A diferença de categoria é aceita e justificada pela

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equivalência de condições; em cada condição os encargos são equivalentes aos benefícios.

Hoje, vive-se, em grande parte, segundo o ideal da justiça burguesa de equivalência, admite-

se a desigualdade, por exemplo, econômica. Assim, o salário de um diretor de empresa é

considerado equivalente ao salário do trabalhador, porque exige mais esforço intelectual ou

moral (a responsabilidade), ou por ser ele o proprietário. Ainda, do ideal de equivalência

nasceu a idéia de imposto progressivo sobre a renda, pois parece justo que aquele que ganha

mais que os outros, pague mais que eles. No entanto, o mesmo burguês, que reconhece que

esse sistema de imposto é justo, recusa-se, absolutamente, a admitir que seria justo igualar as

fortunas, recusando-se ao projeto de imposto sobre o capital (Kojève, 1981, 296-297).

A justiça de equivalência realiza-se pelo Direito burguês, sendo aplicada por um

terceiro imparcial e desinteressado. O Direito burguês reconhece desde o começo uma estrita

equivalência entre os deveres e os direitos, ou seja, a cada dever equivale um direito e vice-

versa. Por exemplo, se o escravo tem o direito e o dever de trabalhar, o senhor tem o dever e o

direito de fazer a guerra. ―O princípio fundamental do Direito burguês é a equivalência dos

direitos e dos deveres junto a cada pessoa jurídica. Todo sujeito de direitos tem direitos que

são, rigorosamente, equivalentes a seus deveres, ou seja, deveres que são equivalentes a seus

direitos‖ (Kojève, 1981, 300). Vê-se que há uma diferença entre o Direito burguês e o Direito

aristocrático, este atribui a cada pessoa jurídica a plenitude de direitos sem nenhum dever,

enquanto que aquele, ao contrário, exige uma equivalência rigorosa entre direitos e deveres.

O conceito de propriedade para Kojève

De estático torna-se dinâmico, uma perpétua ―mudança‖. Contrariamente, ao

princípio aristocrático, a propriedade não se mantém, portanto, na sua ―igualdade‖

ou identidade consigo. Ela permanece ―equivalente‖ a ela, mudando de natureza. E

pode-se dizer também que do ponto de vista do Direito burguês a propriedade não é

mais um ―estatuto‖ eterno e imutável, mas uma simples ―função‖ (Kojève, 1981,

301).

A propriedade será uma função de seu trabalho e o resultado de um contrato, ou seja,

toda mudança de propriedade se reduzirá a uma troca de trabalho. O Direito de propriedade é

substituído por um Direito de contrato, que regulará as trocas de trabalho. A propriedade

deixa de ser um estatuto, para tornar-se um simples termo de contrato (Kojève, 1981, 301-

302, nota nº 2). Enfim, o Direito burguês substitui o conceito aristocrático de estatuto, por

aquele de função, tornando-se um Direito de contrato.

O contrato sanciona trocas de propriedade e prestações, pressupondo a desigualdade

nas trocas, pelo fato que uns não têm ou não fazem o que têm e fazem os outros. Ora, se o

Direito aristocrático condena a desigualdade, o Direito burguês o reconhece, pois o princípio

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aqui é o da equivalência de condições, de direitos e deveres. Kojève considera dois exemplos

de equivalência:

a) O princípio de herança jurídico-aristocrática é o estatuto da igualdade, em que o

herdeiro sucede o morto, sem que a sucessão modifique em nada o estatuto, tornando-o

imutável. O princípio do contrato burguês é, ao contrário, o da equivalência de condições,

implicando mudanças após a morte da pessoa que deixa a herança.

b) No Direito Penal, anular o crime é restabelecer a equivalência lesada. No crime é

lesada a equivalência de condições entre o criminoso e a vítima, daí o restabelecimento da

equivalência operar-se na pessoa da vítima e do criminoso. Ou seja, a pena deve compensar o

crime, ela deve contrabalançar as vantagens que o crime teria produzido. Pois, aqui, não se

trata mais de restituir a igualdade, pelo princípio do talião, mas a equivalência pela

compensação, considerando a intenção e o aspecto subjetivo do criminoso (Kojève, 1981,

303-306).

1.3.3 – A justiça da eqüidade ou o Direito cidadão

A justiça e o Direito nascem sob duas formas autônomas: como justiça de igualdade e

como justiça de equivalência. Essas duas justiças, segundo Kojève, nascem, simultaneamente,

da mesma fonte: da luta antropogênica entre o senhor e o escravo. A justiça e o Direito

aristocrático de igualdade (igualdade de risco) refletem esta luta e o resultado é segundo a

opinião do senhor, enquanto que a justiça e o Direito burguês de equivalência (equivalência

de condições) refletem a opinião do escravo. Esse dualismo jurídico, aristocrático e o burguês,

mostra o dualismo humano entre senhor e escravo, sendo a evolução jurídica um aspecto da

evolução histórica do ser humano. Esta evolução vai do dualismo à unidade, como as relações

de senhor e escravo se sintetizam na existência do cidadão, o Direito aristocrático e burguês

se unem no Direito cidadão. Kojève entende que o devir do cidadão é o sentido da história da

humanidade.

As duas justiças, no começo da vida jurídica da humanidade, são autônomas, de

maneira que se pode realizar a igualdade, sem levar em conta o princípio da equivalência,

porém elas não se excluem. Na origem, o Direito considera a pessoa, enquanto senhor, de tal

modo que coincidem o conceito de senhor e o de pessoa jurídica, pois todos os senhores são

iguais, enquanto senhores. Todos os seres humanos, porém, não podem ser senhores, pois não

há senhorio sem servidão, de tal sorte que a sociedade aristocrática implica ter escravos.

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O Direito aristocrático evolui para uma extensão progressiva da igualdade, na medida

em que um senhor reconhece um não-senhor, sem luta. Então, não é mais um senhor

verdadeiro, e o Direito aristocrático não se aplicará mais a esse tipo de reconhecimento. Nesse

caso, será aplicado o Direito burguês, admitindo a equivalência jurídica dos senhores com os

não-senhores e não, sua igualdade. O senhor reconhecerá os direitos do não-senhor, mas não

admitirá a igualdade de seus direitos com os dele, mas apenas sua equivalência.

O reconhecimento de novas pessoas jurídicas se faz por razões extra-jurídicas, e o

Direito se satisfaz em aplicar seu princípio de igualdade a todos os sujeitos de direito. O

Direito reconhece a igualdade jurídica de todas as pessoas jurídicas, isto é, dos seres

reconhecidos como humanos. Ora, não há razões extra-jurídicas para o senhor reconhecer a

humanidade de um não-senhor (escravo, mulher ou criança). O não-senhor é para o senhor, o

escravo. O senhor não quer ser não-senhor realmente, e nem idealmente, isto é, na sua

consciência, colocando-se do ponto de vista do não-senhor, assumindo, mentalmente, seu

lugar. O senhor não quer tornar-se, realmente, um não-senhor, pois ele prefere morrer.

Outra é a opinião do escravo e de seu Direito burguês, pois o escravo reconhece desde

o início a humanidade do senhor. O escravo elabora um Direito, considerando-se como uma

pessoa jurídica, um ser humano, portanto reconhecerá o senhor como uma pessoa jurídica. No

entanto, o escravo admite sua desigualdade com o senhor, daí criar um Direito baseado no

princípio da equivalência. Ora, se o escravo é uma pessoa jurídica, um ser humano, então, ele

não é mais, somente, um escravo, mas também um não-escravo, ou seja, um senhor. Então,

ele toma o ponto de vista de um senhor, e mentalmente toma o seu lugar. Ele aceita, pois, o

princípio fundamental do Direito e da justiça aristocrática. Haverá uma evolução do Direito

burguês e uma síntese com o princípio do Direito aristocrático.

Há uma razão jurídica desta evolução do Direito burguês, uma vez que os dois se

reconhecem como sujeitos de direito. Esta igualdade é puramente formal ou abstrata: o

conteúdo dos direitos dos respectivos sujeitos pode ser diferente. Porém, toda a forma tende a

tornar-se semelhante ao seu conteúdo, pode-se dizer que toda igualdade formal tende a

transformar-se igual ao conteúdo. Portanto, a justiça e o Direito de equivalência tendem a

tornar-se uma justiça e um Direito de igualdade. O escravo é inclinado a querer a igualdade

por razões sociais. Se o senhor não quer tornar-se escravo, este, sim, quer tornar-se sempre

senhor. Por razões tanto sociais quanto jurídicas, o escravo não quer realizar seu Direito

burguês no estado puro, mas tenderá reuni-lo com o Direito aristocrático num Direito de

eqüidade.

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O senhor que se torna senhor, é outra coisa que o senhor que nasceu como tal: Ele é

cidadão. A evolução do Direito burguês implica uma revolução igualitária. Não é alcançada a

simples igualdade do Direito aristocrático. O Direito que se torna igualitário é um Direito

cidadão, em que a igualdade se reúne com a equivalência na eqüidade. O Direito burguês não

existe em ato, é necessário atualizá-lo no Direito do cidadão. Este é um direito fundado na

justiça da eqüidade, isto é, na síntese do princípio burguês de equivalência com o princípio

aristocrático de igualdade.

Esta é a lógica da evolução do fenômeno do Direito e da idéia de justiça: segue a

lógica da contradição imanente. O Direito organiza-se, como vimos acima, em dois princípios

jurídicos: a igualdade (em ato) e a equivalência (em potência). Estes dois princípios,

convivendo num mesmo sistema jurídico, são contraditórios. Esse conflito interno, entre o

Direito aristocrático e o burguês, mostra que os mesmos direitos não têm o mesmo valor,

quando referidos a sujeitos diferentes: sendo iguais do ponto de vista formal, eles podem não

ser equivalentes de fato. Por isso, o Direito burguês modificará a igualdade formal para torná-

la conforme a equivalência. A suprassunção dos dois modelos de Direito conduzirá segundo,

Kojève,

à última forma de Direito (do cidadão), um Direito absoluto. Ora, esse Direito

absoluto, em que a equivalência dos direitos e dos deveres de cada um se

acompanha de uma igualdade de direitos e deveres de todos, pode ser atual apenas

lá onde todos são iguais e equivalentes, não somente sob o aspecto jurídico ―diante

da lei‖, mas também política e socialmente, isto é, de fato (Kojève, 1981, 313-314).

A justiça de eqüidade será satisfeita, quando reinar a maior igualdade possível. Porém,

a realização da igualdade não suprimirá a equivalência. A equivalência interna não pode ser

constatada e fixada objetivamente, senão houver crescimento de vantagens e inconvenientes

de uns em relação aos outros. O crescimento de interesses estimula as trocas, e aquelas,

verdadeiramente, equivalentes estabelecem a igualdade. Cabe ressaltar que a igualdade de

todos é uma idéia limitada, pois, as diferenças biológicas (homem/mulher), de personalidade

etc., exigirão a aplicação do princípio da equivalência junto ao da igualdade. E assim, a

preponderância da equivalência gerará uma extensão da igualdade, e vice-versa. A idéia de

justiça evolui, no sentido de ampliar os dois princípios e estabelecer uma relação entre ambos.

De um modo geral, o Direito de uma época estará de acordo com a idéia de justiça desta

mesma época. Porém, aqui, ainda se pode encontrar um desnível e, então, temos o estímulo da

justiça pelo Direito, ou do Direito pela justiça. E nos dois casos o Direito será um

intermediário entre a idéia de justiça e a evolução da realidade social, pois o Direito aplica tal

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idéia a esta realidade. Vejamos as características do Direito do cidadão, que realiza a justiça

de eqüidade.

No Direito aristocrático, sob o ponto de vista puramente teórico, a pessoa jurídica

possui a plenitude de direitos, sem ter nenhum dever. O Direito burguês, ao contrário, em seu

nível puro, ou apenas teórico, põe o princípio da equivalência entre direitos e deveres em

relação a cada pessoa jurídica. Há, aqui, uma desigualdade das pessoas que se reflete nas

diferenças entre os direitos e deveres de uma pessoa e aqueles de uma outra.

O Direito do cidadão, fundado sobre a justiça da eqüidade, combina os direitos e

deveres anteriores. Assim, face ao Direito aristocrático, não se admitirá a existência de

direitos não compensados pelos deveres, nem de deveres sem direitos correspondentes, mas

haverá uma interação entre direitos e deveres.

Aqui, afirma Kojève, temos uma síntese do universalismo (ou do coletivismo) do

Direito aristocrático e do particularismo (ou do individualismo) do Direito burguês. Assim

como o senhor, o cidadão terá direitos e deveres universais. Os direitos de todos sendo iguais,

decorrem da pertença à sociedade e ao Estado, bem como os deveres em relação a todos. É,

enquanto cidadão, membro do Estado e indivíduo que a pessoa será portadora de direitos e

deveres. Isto significa que o individualismo e o universalismo coincidem, ou seja, ―os direitos

e os deveres mais pessoais, que podem ser exercidos apenas pelo indivíduo, serão os direitos e

os deveres mais universais, isto é, aqueles do cidadão tomado enquanto cidadão, ou aqueles

de todos e de cada um‖ (Kojève, 1981, 320).

A liberdade jurídica consistirá na possibilidade de cada um fazer tudo o que quiser,

com a condição de permanecer de acordo com a igualdade de direitos e deveres e sua

equivalência respectiva. E a igualdade jurídica será garantida pelo fato de que o valor jurídico

de uma interação não será modificado, se invertidos os seus membros. Ora, quando acontece

esse intercruzamento de direitos e deveres, deve-se admitir a interação social. Nisso o Direito

do cidadão é conforme ao Direito burguês e contrário ao Direito aristocrático, que admite o

estatuto e exclui o contrato. O estatuto aristocrático se caracteriza por se isolar, foge da

interação com os outros, permanece idêntico a si mesmo. O contrato do cidadão, ao invés,

realiza o estatuto aristocrático, pois ele une os princípios da igualdade e da equivalência. Os

contratos com a sociedade, com o Estado fixam o estatuto de pessoas jurídicas. Porém, o

estatuto cidadão difere do estatuto aristocrático, porque ele será o resultado de interações

sociais. ―O estatuto será, pois um contrato, e o contrato, um estatuto. É assim que não se terá

mais nem estatuto no sentido aristocrático do termo, nem contratos no sentido burguês‖

(Kojève, 1981, 321). Os estatutos cessam de ser hereditários e vitalícios, pois se pode mudar

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de trabalho, de classe social, de família e mesmo de nacionalidade. E cada pertença é uma

atividade voluntária e consciente, em interação com o Estado ou a sociedade: Agora, cada um

é o que faz, ou seja, a atividade não é mais fixada pelo ser.

O Direito do cidadão adota o conceito funcional de propriedade, a qual é o resultado

do trabalho em obtê-la e, depois, fixada juridicamente, sendo sua fonte última a interação, ou

seja, o contrato.

Assim, vimos os três modelos de idéia de justiça, sendo que a última, a de eqüidade, a

única real, admite muitas aplicações da idéia de justiça e suas interações sociais.

Após a apresentação das três idéias de justiça, correspondendo a três modelos de

Direito, perecebe-se que Kojève expõe a idéia do Direito como que parafraseando a obra de

Hegel sobre os Princípios Fundamentais da Filosofia do Direito. Hegel afirma logo no início

de sua obra: A ciência filosófica do Direito tem por objeto a idéia do direito, o conceito do

direito e sua efetivação (§ 1º). E no parágrafo 4º diz: ―O sistema do Direito é o reino da

liberdade efetivada, o mundo do espírito, produzido, a partir de si mesmo como uma segunda

natureza‖ (Hegel, 1998). Ora, idéia e sistema são também os conceitos principais de Kojève

para determinar o Direito sob o conteúdo da justiça.

O desejo de reconhecimento é, para Kojève, a fonte da idéia de justiça. É este ato

antropogênico que dá conteúdo à idéia de justiça e se torna efetivo na história, regulando as

relações entre os indivíduos e os grupos, de modo simétrico e assimétrico. Disto resulta os

três tipos de justiça, acima expostos, os quais suscitam diversos modelos de relações sócio-

políticas.

O ato antropogênico determina-se pela luta do reconhecimento, modificando a idéia de

justiça e do Direito, no qual ela se realiza. Assim, o que determina a relação jurídica é o

consentimento mútuo, em primeiro lugar, baseado no reconhecimento da igualdade. Todavia,

esta cessa de existir, quando um dos combatentes pede para terminar a luta, oferecendo em

contra-partida sua submissão. Vê-se que a luta antropogênica começa na igualdade e termina

na injustiça. Depois, esta injustiça, em relação à justiça da igualdade, provoca um novo

consentimento mútuo, que pode ser constatado e garantido por um terceiro desinteressado,

engendrando uma nova idéia de justiça que é a equivalência. Aqui, a situação pode ser justa,

sendo porém, desigual. Kojève, após ter reconhecido que estas duas justiças se opõem como

uma justiça do senhor e uma justiça de escravo, conclui que o homem nasce de um ato único

(duplo, mas recíproco), portanto ele só pode atualizar-se completamente pela síntese do

senhor e do escravo. Enfim, tem-se um novo processo, o último na luta antropogênica: a idéia

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de uma justiça de eqüidade, suscita o nascimento na história da figura do cidadão (cf.

Labarrière, 2001, 558).

1.4 – Modelos metodológicos de reconhecimento: do direito subjetivo ao

intersubjetivo

A passagem de uma perspectiva auto-referencial de sujeito de direito para uma

perspectiva intersubjetiva veio a ser promovida, primeiramente pela noção de relação jurídica

esboçada por Fichte; mas, será em Hegel que esta intersubjetividade fichteana precária

alcançará o status de instrumentação metodológica capaz de abordar, de maneira eficaz e

conseqüente, as aporias apresentadas pela realidade social, posta à luz pela modernidade, para

as quais a ―filosofia social moderna não está em condições de explicar (...) já que permanece

presa a premissas atomísticas‖ (Honneth, 2003, 42).

Tais aporias Hegel examina nas duas primeiras partes do artigo sobre o Direito

Natural, de maneira crítica e refutadora, para depois, na terceira e quarta partes, resgatar das

teorias, ditas, empíricas e formalistas, o que de universal era pelas mesmas aportado. Mas,

sem dúvida, é na abordagem do conceito de pessoa jurídica, feita por Hegel, que situamos o

ponto de inflexão entre uma perspectiva auto-referencial e uma perspectiva intersubjetiva (ou

relacional) do Direito.

Se a todo o momento o Direito Natural afirmara, até então, a liberdade do ponto de

vista do indivíduo, na questão específica da pessoa jurídica, esta noção era exacerbada no

jusnaturalismo de corte racionalista da ilustração. Assim, Hegel, apontando as características

produtivas da concepção moderna de pessoa jurídica, a coloca no devido lugar; mesmo

constatando que o direito abstrato (jusnaturalismo da ilustração) é formal, aproveita ainda, a

concepção de pessoa jurídica aí formulada, situando-a, porém, no direito abstrato, §§ 35, 36 e

37 da Filosofia do Direito; portanto, numa situação de passagem para o direito da eticidade.

No entanto, duas constatações devem ser apreciadas que, conforme tem sido apontado

por Bobbio, por exemplo, também na perspectiva jusfilosófica o pensamento da ilustração

limitou-se em definir a sociedade civil, tomando-a pelo Estado; e que, em nada obstante o

alertado por Hegel, esta necessidade de superação do direito abstrato, com sua visão

exacerbada do indivíduo, não foi contemplada.

De tal maneira que, mesmo na Alemanha, toda a doutrina jurídica permaneceria

acolhendo, como pessoa jurídica, a este indivíduo livre, que não reconhece nenhuma norma

acima dele, autônomo — no sentido pobre do termo — e que concebe o ordenamento jurídico

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como sendo criado a partir de acordos livremente pactuados entre si e os demais que a ele se

assemelham. Ora, a metodologia hegelo-kojèviana, por ser intersubjetiva, constitui a

superação do modelo subjetivista moderno do Direito.

Pelo exposto em Hegel e Kojève, percebemos que existem modelos metodológicos

diferenciados de reconhecimento e da idéia de Direito. No que se refere ao problema da

metodologia como vimos acima, Hegel inclui a dialética como um dos momentos

fundamentais do método especulativo, enquanto para Kojève, a dialética é o fim de sua

metodologia. Mais ainda, seu modelo tem, como pressuposto, um dualismo originário,

enquanto que para Hegel, há uma constituição monista que se movimenta, especulativamente,

em seus diversos conteúdos e momentos do sistema.

Em nada obstando o fato de terem sido já levantadas argüições, no sentido de apontar

como abusivamente antropologizante, a leitura kojeviana da Fenomenologia do Espírito, e,

assim, inadequada, concordamos com a perspectiva de Labarrière (1996), segundo a qual a

leitura de Kojève não caracteriza um mau uso da obra de Hegel. Esta leitura constitui íntima

conexão entre a dialética idealista e [a dialética] materialista, conforme Marcuse (1988, 409),

em seu suplemento bibliográfico à Razão e Revolução.

Na Esquisse d’une phénoménologie du Droit, Kojève, repisa que a especificidade do

Direito reside, precisamente, na presença do terceiro desinteressado (imparcial); diz ainda que

a dominação e a servidão são fenômenos sociais e que, portanto, para compreender o

fenômeno jurídico é necessário centrar-se no estudo deste terceiro (Kojève,1981, 191).

Por esta senda, é do desempenho deste terceiro imparcial que se chega ao Direito,

enquanto aplicação de uma idéia de justiça às interações sociais dadas, e mesmo que caibam

outros atores neste desempenho (tais como o legislador e o administrador público) é,

especialmente, a atividade do Juiz que a ele corresponde (Kojève1981, 192).

Mesmo que na Esquisse venha tão afirmativamente destacada figura deste terceiro

imparcial, não resta claro o lugar que é por ele ocupado metodologicamente, na estrutura da

dialética esposada por Kojève.

No entanto, se nos socorremos da Introduction à la lecture de Hegel, veremos que se

pode evidenciar uma aproximação entre o desempenho do terceiro desinteressado e a

categoria da mediação. Nesta obra, diz Kojève que:

Hegel expressa a diferença entre o Ser e o Real ―téticos‖ (Identidade) e o Ser e o Real

―sintéticos‖ (Totalidade) dizendo que os primeiro são imediatos (unmittelbar),

enquanto que os segundos são mediatizados (vermittelt) pela ação ―antitética‖

(Negatividade) que os nega enquanto ―imediatos‖. E pode-se dizer que as categorias

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fundamentais da Imediatidade (Unmitterlbarkeit) e da Mediação (Vermittlung)

resumem toda a dialética real que Hegel tem em vista (Kojève, 1994, 481).

Vistas, assim, as posições dos litigantes em uma relação social, como entidades

imediatas, como realidades estáticas dadas, a entidade mediatizada, que as colocará em

movimento é a ação do Juiz que as suprassume, ou seja que, pela aplicação da eqüidade,

reconhecerá, em cada uma das posições, suas especificidades, expressando, assim, na decisão

a identidade da identidade e da diferença.

A substância jurídica própria da decisão deste terceiro é imanente à ordem concreta em

que ele e os litigantes se inserem, ou seja, é a Idéia de Justiça ai posta, isto é, o conceito

jurídico concreto e nunca um direito abstrato qualquer, uma vez que, conforme Carl Schmitt,

sem o sistema de coordenadas da ordem concreta, o positivismo jurídico não saberia

distinguir entre direito e não direito, entre objetividade e arbitrariedade subjetiva

(Schmitt,1995, 92).

Em Hegel, o Direito tem seu estatuto na determinação da idéia de liberdade nos

diversos momentos que compõem a Filosofia do Direito. O reconhecimento simétrico de

direitos e deveres percorre o itinerário do direito abstrato, da moralidade e da eticidade. Ora, a

metodologia hegeliana implica que a pessoa garanta o reconhecimento de seus direitos e

deveres no direito abstrato moderno, enquanto sujeito moral, capaz de agir

intersubjetivamente, como cidadão na esfera da eticidade, ou seja, participando do Estado.

Para Kojève, o Direito é o resultado da luta originária pelo desejo de reconhecimento

entre o senhor e o escravo. Disto decorre uma tríplice tipologia da idéia de Direito,

configurando-se em idéia de igualdade aristocrática, idéia de equivalência burguesa e idéia de

eqüidade cidadã. O Direito é, então, a determinação da idéia de justiça.

Sabe-se que Kojève em sua análise da Fenomenologia do Espírito de Hegel aplica,

permanentemente, a metodologia dialética do senhor e do escravo. Ora, será que Kojève

mantém a mesma metodologia para analisar o fenômeno do Direito? Pode-se defender duas

hipóteses: a) Kojève manteria a mesma metodologia dialética na determinação da idéia de

justiça; b) Porém, na descrição fenomenológica da tipologia, ele introduz um terceiro

imparcial e desinteressado, ou seja, quando o autor aplica a idéia de justiça para o Direito,

haveria uma superação da dialética pela mediação do terceiro, enquanto momento de

superação do antagonismo no embate entre os litigantes. Teríamos assim, um momento

especulativo que seria o mesmo da metodologia hegeliana. Isto fica explícito já na segunda

seção (Origem e evolução do Direito) e comprova-se na terceira (O sistema do Direito) em

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que Kojève faz uma aplicação das três idéias de justiça para o Direito internacional, Direito

público, Direito penal e Direito privado.

Em que medida esses modelos metodológicos são importantes para compreender o

fenômeno jurídico? Qual é a vantagem de um e de outro, ou ainda, como podem ser

complementares para a superação do Direito moderno, centrado na garantia subjetiva dos

direitos?

A metodologia de Kojève descreve o desejo de reconhecimento, enquanto uma idéia

de justiça na sua polaridade máxima do senhor e do escravo. Essa tipologia permite

compreender o fenômeno jurídico na sua constituição sócio-histórica. Nesse sentido, a

reflexividade entre os sujeitos que buscam o reconhecimento constitui um momento

fundamental para a constituição intersubjetiva do Direito. Tem-se a posição de sujeitos que

determinam os seus desejos pela idéia de igualdade-equivalência-eqüidade, na superação dos

conflitos advindos de interesses contraditórios. O terceiro imparcial e desinteressado que

atravessa todo o Esboço de Kojève, insere o momento intersubjetivo na constituição do

Direito.

Em Hegel, o reconhecimento passa pela mediação da eticidade, enquanto momento

garantidor de um Direito intersubjetivo. Então, pode-se afirmar que os modelos são

complementares, na medida, em que Kojève acentua o momento dialético e a idéia de justiça,

e Hegel, o momento especulativo e a idéia de liberdade. Assim, ambos os modelos são

importantes, para a constituição do Direito intersubjetivo.

Um dos objetivos de nosso estudo, é encontrar referenciais teórico-práticos, para

superar o modelo subjetivista do Direito e construir uma metodologia da intersubjetividade

jusfilosófica. Assim, a teoria hegeliana do reconhecimento, apresentada na Fenomenologia,

na figura do senhor e do escravo torna-se a figura paradigmática, que Kojève utiliza para

construir sua metodologia dialética, partindo do desejo antropogênico como fonte originante

do reconhecimento. As metodologias de Hegel e Kojève, embora tenham suas

especificidades, ambas são importantes para fundamentar um Direito intersubjetivo.

Pressupondo que a metodologia hegeliana desenvolvida na Filosofia do Direito já é

assaz conhecida, enquanto desenvolvimento da idéia de liberdade intersubjetiva, expomos a

determinação da idéia de justiça em Kojève na sua tríplice tipologia: Igualdade, equivalência

e eqüidade, constituindo-se, atualmente, num referencial teórico-prático da intersubjetividade

jusfilosófica em três níveis, aqui enunciados, e que permanecem como abertura para futuros

estudos:

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1°) A idéia de justiça como igualdade determinando-se no reconhecimento do Direito

nas esferas global, nacional e local, garantindo identidades e diversificação cultural.

2°) A idéia de justiça como equivalência de direitos e deveres na redefinição do Estado

de Direito e a organização de blocos regionais no início deste novo milênio.

3°) Enfim, a idéia de justiça como eqüidade, enquanto síntese cidadã intersubjetiva,

em nível sócio-econômico sustentável e inovação político-tecnológica.

A teoria do reconhecimento hegeliano e a fenomenologia do Direito, baseada na

determinação da idéia de justiça de Kojève, ratifica o movimento por um Direito

intersubjetivo, ou seja, ratifica a tese comunitarista jusfilosófica. Trata-se de uma

concepção pluralista da justiça fundada na idéia de igualdade complexa (Walzer);

um maior cuidado no que concerne ao problema da distribuição dos bens culturais,

bem como às questões relacionadas aos grupos vulneráveis (Young); dos aspectos

importantes da relação entre justiça e democracia deliberativa (Habermas); por fim,

da análise do princípio de imparcialidade como base eqüitativa para o acordo entre

as diferentes concepções do bem que coexistem nas sociedades plurais e

democráticas (Barry) (Rabenhorst, 2006, 494-495 In: Barreto, Vicente de Paulo.

Dicionário de Filosofia do Direito).

Assim, postos estes desafios de atualização, tanto em nível sócio-jurídico, bem como

no debate comunitarista, insere-se a teoria do reconhecimento intersubjetivo no viés

jusfilosófico de Hegel e Kojève, como uma referência incontornável na construção de um

Direito intersubjetivo.

O estudo do reconhecimento e a intersubjetividade no Esboço de uma Fenomenologia

do Direito de Kojève, demonstrou sua metodologia dialética, fundada no desejo

antropogênico da luta pelo reconhecimento na figura do senhor e do escravo, bem como a

descrição jusfenomenólogica dos modelos de Direito e sua implicação na superação do

Direito moderno subjetivo para o Direito intersubjetivo. Agora, será apresentada a

implementação deste pressuposto teórico no Direito Público em seu nível, propriamente

constitucional e administrativo.

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2 – DIREITO PÚBLICO EM KOJÈVE

O Direito público, a rigor, (excluindo o Direito penal), segundo Kojève, engloba o

Direito constitucional e o administrativo, sendo que o primeiro estabelece as estruturas do

Estado, e o segundo determina as relações entre o Estado e os indivíduos.

A Constituição contém, diz o autor, o estatuto e a organização do Estado, descrevendo

o que é, e não o que deve ser. A estrutura do Estado e da Constituição não são justas e nem

injustas, mas neutras, como por exemplo, a lei que fixa as cores nacionais do Estado ou o seu

nome. O Estado autônomo e soberano interage com os outros Estados segundo, as regras do

Direito internacional público. Porém, o que interessa aqui, é o Direito público interno,

considerando o Estado em si mesmo. Ora, entende Kojève que, onde não há interação entre

duas entidades, não há justiça e nem Direito, donde, ―a Constituição, tal como a concebe o

Direito público (interno) não é pois um Direito. A Constituição é uma Lei ou um conjunto

(oral ou escrito) de Leis políticas, na e pelas quais o Estado declara a todo mundo o que ele é

e a maneira como ele funciona. Se a Constituição é uma Lei, trata-se aí de uma Lei política e

não jurídica‖ (id. p. 393). Declarando-se soberano, o Estado, não admite a intervenção de um

terceiro, mas apenas noticia aos outros suas decisões, como numa declaração unilateral de

guerra. O autor retoma a sua tese de que a relação jurídica implica a intervenção de um

terceiro imparcial. Ora, ele retira da Constituição o caráter jurídico, mantendo apenas o

político, destituindo, assim, a função do terceiro.

A Constituição institui a legalidade política, pois onde não há leis políticas o Estado

torna-se despótico e os governantes tratam os governados segundo seu bel prazer e não,

conforme as leis estabelecidas e conhecidas de todos. Porém, o Estado pode mudar suas leis

políticas, ou seja, modificar sua Constituição no seu conjunto. Kojève afirma que a diferença

entre o Estado ―legal‖ e o Estado despótico é, pois, comparável aquela entre um homem

ponderado e um caprichoso, que muda a qualquer tempo sua opinião, sem apresentar motivos.

No Estado ―legal‖ a situação é tão pouco jurídica, quanto no Estado ―despótico‖: a lei

constitucional é tão pouco ―direito‖ ou uma lei jurídica quanto a decisão ―arbitrária‖ do

―déspota‖.

Por isso uma revolução que é por definição politicamente ilegal, não pode ser

condenada juridicamente. A ação revolucionária está em contradição com a lei

constitucional. Mas esta lei não sendo jurídica, a ação revolucionária é

juridicamente neutra, e não criminosa. Se a revolução tem êxito, isto é, se ela troca

as leis políticas que ela aboliu por outras leis políticas, não há nada a dizer: nem

política, nem juridicamente. Quando os revolucionários têm êxito, eles se tornam o

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Estado. Eles encarnam o Estado ―soberano‖. Ora, este Estado pode mudar sua

Constituição como ele quer. Se a revolução teve êxito, pode-se dizer que o Estado

mudou sua Constituição, e não há nada aí a objetar (Kojève, 1981, 393-394).

O autor afirma que não se pode condenar a nova Constituição, recordando a antiga,

pois esta tinha sua realidade na vontade do Estado. Ora, é o mesmo Estado que aplica agora a

nova Constituição modificada, sendo esta tão válida quanto a anterior.

Agora, não é possível, continua Kojève, o Estado anterior opor-se ao novo, negando-

lhe a identidade, porque não há um terceiro nesta interação entre os dois Estados, ou seja,

entre as duas formas consecutivas do mesmo Estado. A situação não teria nada de jurídico,

mas uma luta política. Para que houvesse um terceiro, seria necessário chamar a intervenção

deste para modificar a Constituição, tirando, portanto, a soberania do próprio Estado. Nesse

caso, em que uma Constituição é julgada ou torna-se sujeito de direito, ela não é mais uma

Constituição verdadeira, pois, onde há um Direito, não há Direito público, no sentido

constitucional. ―A lei constitucional que fixa a estrutura de um Estado, propriamente dito não

tem nada haver com uma lei jurídica. Ou ainda: as relações do Estado consigo estão fora do

domínio do Direito e mesmo da Justiça‖ (id. p. 394). O autor reafirma o papel político da

Constituição, no caso de uma mudança constitucional, impedindo qualquer intervenção de um

terceiro, para evitar o retrocesso da soberania política do Estado.

Kojève continua neste tema, exemplificando a questão no caso de um Estado A (EA)

fazer guerra contra um Estado B (EB), justificando que a Constituição de B é injusta, ou até

juridicamente ilegal ou ilegítima. O EA não reconhece o EB como Estado soberano, tratando

os governantes e os governados como dois grupos privados. O EA intervém então na

qualidade de terceiro e anula a ação ilegal do grupo governante, considerando os cidadãos do

EB como seus julgados, aplicando-lhes seu Direito. Portanto, o EA tende a absorver

politicamente o EB, como um grupo infra-estatal ao interior do EA. A estrutura deste grupo

não é, pois uma Constituição, na medida em que esta é submetida a um Direito e pode ser dita

juridicamente legal ou ilegal. Então, não é mais uma verdadeira Constituição de um Estado

soberano. ―O Direito em questão não é pois um Direito público ou constitucional‖ (id. nota n°

1, p. 395). Mesmo nas relações internacionais interestatais, a função política da Constituição é

preservada, de tal modo que Kojève não admite uma intervenção do EA sobre o EB, com a

finalidade de instaurar a justiça, pois, em qualquer hipótese, tem-se aí uma redução ao jurídico

e não mais ao sentido político da Constituição enquanto tal.

Para o autor, a Constituição é um ato político tanto interna como externamente. E não

há um terceiro que possa nesse nível intervir, se não se retrocederia ao nível jurídico. A

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revolução é, pois, um ato político oposto às leis políticas vigentes, considerando-se um ato

fundador de uma nova Constituição. Se a mudança na Constituição se realiza através da

revolução, a nova Constituição passa a ser a nova lei política e não há o que negar.

A Constituição pode ser criticada, para que ela esteja de acordo com a realidade

política, porém, ela só pode ser melhorada, tornando-se conforme à realidade do Estado.

―Toda Constituição, toda estrutura política de um Estado é, politicamente, boa, se ela permite

ao Estado manter-se, indefinidamente, na identidade consigo, tanto exterior quanto

interiormente, e isso sem dever mudar de estrutura e, portanto, de Constituição‖ (id. p. 395).

A lei constitucional relacionada ao Estado, regula a estrutura do Estado, não sendo,

nesse sentido, um Direito, afirma Kojève, pois ela não deixa nenhum lugar para a existência

de um terceiro. Em não havendo interação entre duas entidades distintas, não há o conceito de

igualdade ou de equivalência, conforme a idéia de justiça, acima exposto. Porém, se

tomarmos a Lei constitucional, relacionada aos particulares ou aos indivíduos, o Direito

administrativo tratará das interações entre o Estado e os indivíduos, e dos indivíduos entre

eles, enquanto cidadãos. Kojève distingue três tipos fundamentais de relações: 1) As relações

entre o Estado e os cidadãos; 2) As relações entre o Estado e os particulares; 3) As relações

entre particulares. Não detalharemos estas relações, pois em síntese Kojève expõe na relação

paradoxal entre o Estado e o Direito Público o seu pensamento sobre os tipos de relações:

Na medida em que o Estado é tomado enquanto Estado não há, pois Direito Público,

pouco importa que o Estado se relacione a si mesmo (Direito constitucional) ou aos

cidadãos ou aos particulares (Direito administrativo). De uma maneira geral apenas há

Direito lá onde se trata de relações entre particulares. Se o Direito público é,

verdadeiramente, um Direito, o Estado ele mesmo deve aí figurar não enquanto

Estado, mas enquanto ―particular‖. Enquanto Estado não deve aí jogar um papel de

Terceiro (id. p. 403).

De fato, entende-se que o Estado é o espaço estatal, político e não privado ou

particular. Porém ele não pode existir em ato senão pelos cidadãos e os particulares. O Estado

age apenas por eles, na medida em que estes agem, enquanto cidadãos, ou seja, o Estado é o

conjunto dos cidadãos agindo enquanto tais. O Estado encarna-se no grupo político exclusivo,

sendo sua vontade, a mesma do Estado. No sentido estrito, o conceito Estado junta-se ao do

coletivo dos governantes, recrutados entre o grupo exclusivo, em que a ação deste é a do

Estado. Por definição, os governantes exercem a autoridade política, enquanto grupo político

exclusivo, agindo em nome do Estado e sendo um com este. Os governantes organizam a

estrutura do Estado e o modo de seu funcionamento. Eles determinam a Constituição, o

estatuto dos cidadãos, o conjunto das leis políticas (orais e escritas), que fixam o Direito

Público, não sendo este um Direito (cf. p. 403-404).

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Kojève levanta a hipótese em que os interesses de grupos se tornam os interesses do

Estado, e os governantes podem defender esses interesses, agindo, enquanto governantes. Por

exemplo, uma família pode ser estatizada e tornar-se um Estado monárquico, defendendo os

interesses de sua família (dinastia), o rei age não enquanto particular, mas como governante.

Então, é o Estado que age em e pelo rei. Assim, também, quando um grupo familiar,

econômico ou religioso e outro, forma o Estado aristocrático, os governantes agem em nome

do Estado, defendendo os interesses da aristocracia, ou seja, do grupo em questão. Aqui, os

governantes fixam o estatuto do Estado e dos cidadãos e não há nada de jurídico, porque não

há um terceiro.

Agora, se um governante não agisse como tal, ou seja, enquanto cidadão, representante

do Estado, ou grupo exclusivo, mas em função de interesses privados, particulares, quer seja

de um grupo ou de interesses estritamente pessoais, então, esse governo agiria como

particular. Então, se o Estado ao entrar em interação com os governados, lesar seus interesses,

não haverá uma relação entre governante e governados, mas entre particulares, pois ele estaria

agindo em função de interesses privados. São privados, porque o Estado não os pôs, nem por

via legal e nem colocando em risco sua vida numa revolução ou guerra. Os governados, neste

caso, não têm necessidade de agir politicamente, mas recorrer contra o próprio Estado. Aqui,

o Estado será um terceiro, intervindo como tal. O conjunto de regras do direito aplicado pelo

terceiro, nesse caso, forma o Direito público do Estado dado.

Ora, quando o Estado intervém na qualidade de terceiro, como no caso em questão,

constata-se o seguinte: a) O governante agiu enquanto particular; b) E o governado foi lesado

pelo governante-impostor, devendo este fixar o modo pelo qual o ato criminoso ou

juridicamente ilegal deve ser anulado. No primeiro caso, não há como descobrir a intenção do

governante, se ele agiu de boa-fé e se enganou, pensando agir como cidadão em nome do

Estado. Trata-se, aqui, de ter um critério objetivo, dado pela Constituição, isto é, pelo

conjunto de leis políticas que fixam a estrutura e o funcionamento do Estado. Se o governante

agiu em desacordo com a Constituição, em função de interesses particulares, então, o Estado

pode intervir como terceiro e anular o ato do governante-impostor. As leis constitucionais e

administrativas, em si, não têm nada de jurídico, mas na medida em que elas permitem

constatar que um governante agiu como impostor, elas fazem parte do Direito público (id. p.

405-407).

Considerando-se as duas partes do Direito público, o constitucional e o administrativo,

no que se refere à segunda parte, Kojève enumera os casos nos quais os governados podem

considerar-se lesados por atos dos governantes-impostores e indica o modo como estes atos,

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juridicamente, ilegais devem ser anulados. Neste sentido pode-se dizer que o Direito público

fixa os direitos dos governados. Porém, seria falso, afirma o autor, dizer que os governados

têm direitos face ao Estado, isto é, diante dos governantes agindo enquanto tais, pois o Estado

pode modificar o Direito público, modificando a Constituição. Ora, quando se trata de uma

modificação da Constituição, ou seja, do Direito público, o Direito não tem nada a dizer, pois

não há um possível terceiro. A Constituição pode ser, modificada apenas pelo Estado, isto é

pelos cidadãos, agindo como cidadãos e não como particulares. Os cidadãos que modificam a

Constituição, devem agir enquanto governantes, isto é, enquanto representantes do grupo

político exclusivo, no interior do qual eles se beneficiam de uma autoridade política. Caso

contrário, eles agiriam como impostores e pessoas privadas e seriam submetidas ao Direito

público, intervindo o Estado, enquanto terceiro para anular seus atos juridicamente ilegais.

Ora, a Constituição, ou seja, o Direito público permite constatar se a mudança constitucional

é, enquanto cidadão ou não, porque apenas pode-se modificá-la, legalmente, sendo cidadão,

utilizando as vias previstas pela Constituição. Portanto, utilizando-se destas vias, age-se, de

forma política, e não juridicamente, pois, aqui, ainda não há um terceiro. Porém, se alguém

experimenta modificar a Constituição por vias ilegais, ele age enquanto privado e particular, e

então comete um crime de Direito público, o qual será anulado pelo Estado em sua qualidade

de terceiro (id. p. 408).

Então, para Kojève, a Constituição pode ser mudada pelos cidadãos, enquanto fazem

parte do governo constituído pelo grupo político dominante e não pelas pessoas privadas

agindo segundo interesses privados. Diferente é o caso, continua o autor, de um grupo

revolucionário agir contra o Estado (ou seja, os governantes munidos da autoridade outorgada

pelo grupo político exclusivo), não haveria aqui um terceiro e o Direito público não poderia

ser aplicado, pois o revolucionário não agiria, enquanto pessoa privada, em particular, mas

politicamente, enquanto cidadão do Estado futuro, pós-revolucionário. E as relações entre o

Estado e os cidadãos agindo enquanto cidadãos, legalmente ou por via revolucionária, até

guerrilheira não têm nada de jurídico. O fato de o revolucionário agir politicamente, ou seja,

enquanto cidadão é atestado objetivamente (pois a intenção privada aqui não conta) através do

risco da luta de vida e morte para tomar o poder. Aqui, os revolucionários constituem um

grupo exclusivo, escolhendo um coletivo de governantes munidos de autoridade política,

instalando-se no poder face aos estrangeiros, bem como diante do grupo político excluído,

internamente, do poder. Se os revolucionários fracassam, eles morrem; se eles têm êxito,

tornam-se governantes e, em ambos os casos, não há nada de jurídico, mas um fato político. É

por isso que os autores de uma revolução abortada são raramente julgados por tribunais

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ordinários, porque não se pode aplicar-lhes nenhum Direito, senão eliminá-los politicamente,

por uma medida de simples polícia ou por um tribunal político, que terá apenas o nome de

tribunal jurídico. Da mesma forma, não terá nada de jurídico o tribunal revolucionário que

suprimirá os agentes do antigo regime (id. p. 408-409).

Percebe-se que a mudança constitucional pode ocorrer através de duas formas: a) Pela

via legal do cidadão, ou seja, pela via interna do próprio grupo político instalado no governo;

b) Ou pela via revolucionária, isto é, por um grupo externo ao governo, instalando uma nova

Constituição. Em ambas as vias, dá-se um processo político e não jurídico, por tratar-se do

Direito público, portanto constitucional.

O Direito público é um Direito constitucional, por isso implica a Constituição do

Estado. Costuma-se afirmar que o Direito administrativo opõe-se ao Direito constitucional, no

entanto, os limites entre ambos são arbitrários. Pode-se dizer que o Direito constitucional fixa

o estatuto e as funções dos governantes que não são, ao mesmo tempo, governados. Enquanto,

que o Direito administrativo, relaciona-se aos governantes que são também governados, isto é,

aos funcionários em sentido estrito. Pode-se distinguir um Direito público da estrutura do

Estado e das administrações e um Direito público da função, como se distingue a anatomia da

fisiologia. Porém, o Direito público deve regular não apenas as estruturas e as funções do

Estado e das administrações, ou seja, os governantes, mas ainda, aquelas dos cidadãos

tomados enquanto governados (id. p. 410-413).

O Direito público afirma, Kojève, não é um Direito, na medida em que se refira às

interações entre os governados e os governantes-impostores. É, apenas face a estes últimos

que o governado tem direitos e não face ao Estado, pois este pode mudar todos os estatutos,

sem que exista um possível terceiro, para se opor ou sancionar a mudança. Isso não significa

que o governado lesado só possa recorrer ao governante-impostor. O Estado pode indenizá-lo,

sendo, então, uma decisão livre do Estado, que não terá nada de jurídico. O Direito público

permite, apenas, anular o ato do governante-impostor. Se o Estado quer além disso punir o

governante culpado, ele será então parte e a punição não teria nada de jurídico. Da mesma

forma, se o Estado se solidariza com o governante, o Direito público não poderá prescrever

uma indenização ao governado lesado, pois no momento, em que o governante agiu em nome

do Estado, não há mais Direito possível e o governado não tem nenhum direito. O Estado

pode, mesmo assim, indenizá-lo, mas o ato não terá então nada de jurídico em si mesmo. A lei

sobre a indenização permite que o governante que recusa indenizar o governado, aja como

impostor. Enfim, o Direito público pode conter tudo o que, tradicionalmente, ele contém.

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Apenas, esse conteúdo deve ser interpretado do modo pelo qual eu acabo de fazer, conclui

Kojève (id. p. 414).

A tese do autor exposta, desde o início, é que o Direito nasce da intervenção de um

terceiro imparcial e desinteressado. ―O Direito processual que regula o estatuto do terceiro e

seu funcionamento em relação aos litigantes, não é um Direito verdadeiro. É uma declaração

unilateral do Terceiro, uma ―notificação‖ de seu proceder‖ (id. p. 414-415). Ora, onde o

Direito é estatizado, o terceiro é o Estado ou seu representante, pois é ele que edita a lei

processual. É, portanto, uma lei política e não jurídica, conclui Kojève.

Ora, aqui é possível também a existência do terceiro impostor, quando ele age de

forma parcial e interessada. Nesse caso, ele não será terceiro, mas parte. O juiz-funcionário

não será representante do Estado, mas um particular-impostor, contra o qual se pode recorrer

ao Estado, que exercerá o papel de terceiro autêntico. ―Toda a questão é, pois, saber se a

pessoa que exerce o papel de terceiro é, verdadeiramente, um terceiro, isto é, se ele age

enquanto tal, de um modo imparcial e desinteressado, ou se ele, apenas, parece ser, enganando

os outros‖ (id. p. 415).

Então, a garantia que as partes têm da defesa de seus direitos é a que a lei processual é

um Direito, permitindo constatar a autenticidade do terceiro. Pois, se o terceiro age em

desacordo com esta lei, ele é um impostor, agindo enquanto particular. ―O Direito processual

só é um Direito, na medida, em que ele permite constatar a impostura do terceiro, ou seja, o

fato de que este não age em nome do Estado, como funcionário ou como cidadão, mas na

qualidade de pessoa privada. Esse Direito é a garantia da imparcialidade e do desinteresse do

terceiro‖ (id. p. 416). Portanto, o conteúdo do Direito processual é garantir a imparcialidade e

o desinteresse do terceiro, isto é sua autenticidade. É, afirma Kojève, deste ponto de vista, que

se precisa interpretar a regulamentação (estatal) da justiça.

Apresentou-se a posição kojèviana sobre o Direito público, no seu duplo aspecto,

constitucional e administrativo, em que o autor, analisa o seu aspecto político-jurídico, porém,

sendo o Direito público, para ele, eminentemente, político. Veja-se agora, o alcance e o limite

da teoria kojèviana sobre o Direito Público, confrontando-a com as teorias contemporâneas,

no seu duplo aspecto, constitucional e administrativo.

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3 – ALCANCE E LIMITE DO DIREITO PÚBLICO KOJÈVIANO

Tendo apresentado o Direito Público, segundo Kojève, será exposto, em primeiro

lugar o debate sobre a dimensão política e/ou jurídica constitucional em alguns teóricos dentro

do Direito Constitucional. Em seguida, tratar-se-á do Direito Administrativo, mostrando o

papel do controle jurisdicional no Estado democrático de Direito. Percebe-se que Kojève

elabora a sua teoria constitucional num contexto bélico e sob a influência de um modelo de

Estado-Nação interventor tanto em nível externo como interno, ou seja, tomando decisões de

forma unilateral. Daí, pode-se compreender, em parte, o alcance e o limite de sua teoria

constitucional, considerando o contexto político e o debate teórico da época.

3.1 – Dimensão política e/ou jurídica da Constituição

Tendo-se em conta a assertiva, até certo ponto desconcertante, na qual Kojève delimita

o campo do Direito Constitucional às lindes do fenômeno político, convém agora examinar os

corolários de tal enunciado à luz de algumas teorias constitucionais.

Ressalta, desde logo, o fato de que o constitucionalismo contemporâneo incorpora, de

maneira plena, a formulação de um ideal de justiça, sendo esta preocupação uma tarefa

multidisciplinar, conforme aponta Gisele Cittadino:

Afinal, parece não restar dúvidas de que o debate sobre a justiça adentra

inevitavelmente o mundo do direito. Em outras palavras, todos reconhecem a

impossibilidade de justificar e configurar um ideal de justiça distributiva sem ao

mesmo tempo enfrentar a discussão quanto ao papel da Constituição, da

efetivação do seu sistema de direitos fundamentais e da atuação do Poder

Judiciário, especialmente da jurisdição constitucional (Cittadino, 2000, 2).

A referida autora destaca que o debate sobre o ideal de uma sociedade justa e da sua

estrutura normativa passa a ocupar lugar de destaque a partir da publicação de A Theory of

Justice, de Rawls. Cabe salientar que na Esquisse, de Kojève, escrita em 1943, esta polaridade

já está tencionada, quando este afirma a natureza política e não jurídica da Constituição.

Mas, a questão do papel essencial da Constituição e da definição de sua natureza tem

merecido foro de discussão já de longa data. Conforme se pode ver no trabalho de Konrad

Hesse, A Força Normativa da Constituição, que é tido como um dos textos mais

significativos do Direito Constitucional, e, em nenhuma outra obra de direito constitucional,

parece-nos, estar tão clara e objetivamente abordada a questão da dupla natureza, a um só

tempo política e jurídica da Constituição.

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Nesse escrito, Hesse retoma a discussão desde uma posição bastante remota, ou seja,

enfocando, de início, a clássica posição expressa por Ferdinand Lassale, em 1863, no tocante

à essência da Constituição, e a ela se contrapõe, buscando demonstrar que o desfecho do

conflito entre os fatores reais de poder e a Constituição não necessariamente implica na

derrota desta. Existem pressupostos realizáveis que permitem assegurar sua força normativa

constitucional.

Lassalle, na obra referida, sua célebre O que é uma Constituição, via as questões

constitucionais como políticas e não jurídicas. Ou seja, esse documento chamado Constituição

– a Constituição jurídica – nas palavras de Lassalle, não passa de um pedaço de papel (Hesse,

1991, 9). Hesse, apesar de reconhecer o significado dos fatores históricos, políticos e sociais

para a força normativa da Constituição, enfatiza o aspecto da vontade de Constituição, que é,

em última análise, o que vai caracterizar a sua essência jurídica, a qual estará cindida ―pelo

isolamento entre norma e realidade, como se constata tanto no positivismo jurídico de Escola

de Paul Laband e Georg Jellineck, quanto no ―positivismo sociológico‖ de Carl Schmitt‖

(Hesse, 1991, 13). A separação radical entre norma e realidade resulta em um

constitucionalismo que não responde corretamente à questão acerca do que é uma

constituição.

Para Hesse, enfatizar-se uma ou outra das duas direções conduz inevitavelmente aos

extremos, ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo, ou de uma norma

despida de qualquer elemento da realidade. O que permite vislumbrar-se uma via de acesso ao

essencial da Constituição, é a sua condição de vigência, sua eficácia, ou seja, se ―a situação

por ela regulada pretende ser concretizada na realidade‖ (Hesse, 1991, 14). Portanto, a

Constituição adquire força normativa, conforme realiza sua pretensão de eficácia, que não

pode ser separada das condições históricas de sua realização.

A partir desta perspectiva, cotejando-se a abordagem do Direito Constitucional em

Kojève, acima exposta, vê-se que a linha desenvolvida pelo pensador russo coloca-se em um

dos extremos da dualidade essencial da Constituição, aventada por Konrad Hesse.

Para Bruce Ackerman, tanto a democracia como a Constituição são dualistas, porque

asseguram, sob o aspecto jurídico, a autonomia privada dos indivíduos nos momentos em que

não há mobilização política da comunidade, garantindo e protegendo os seus direitos; sob o

aspecto político, garantem a autonomia pública dos cidadãos quando eles decidem alterar e

redefinir a sua própria identidade nacional.

C. Taylor e Walzer defendem o patriotismo republicano, sendo a Constituição um

projeto que traduz a vontade coletiva, em que a cidadania ativa busca a implementação de

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liberdades positivas. Bruce Ackerman propõe, de seu lado, ―o constitucionalismo patriótico

―enquanto um ato profundo de autodeterminação política‖ (apud Cittadino, 2000, 163), sendo

os direitos fundamentais do cidadão procedimentais, antes que substantivos. Ao contrário de

Rawls e Dworkin que sustentam o conteúdo substancial dos direitos fundamentais, Ackerman

afirma que os indivíduos têm o direito básico de participar do debate público, determinando,

assim, o conteúdo substantivo dos direitos fundamentais. O constitucionalismo patriótico é

construído através da ação coletiva dos cidadãos, mobilizando o povo para redefinir a

identidade política nacional, alterando ou criando a Constituição.

No entender de Cittadino, há, em Ackerman, uma conexão intrínseca entre

―revolução‖ e ―Constituição‖, sendo exemplos disto, as mudanças políticas ocorridas nos

Estados Unidos por ocasião do New Deal e os processos revolucionários no Leste Europeu

após 1989. Aqui, verifica-se um processo de mobilização política que levará a mudanças

constitucionais ou a criação de novas Constituições.

O autor, no livro We the People propõe um modelo de democracia e Constituição

dualistas, desenvolvido em dois momentos: Primeiro, as políticas rotineiras, exercidas pelos

representantes do povo, isto é, a burocracia estatal; e o segundo, as transformações no

sistema, pela ação do povo. Este modelo leva em conta que a virtude cívica dos cidadãos não

é suficiente para mantê-los, permanentemente, comprometidos em participar na tomada de

decisões públicas. Por isso, existem momentos na história em que se pode constatar uma

―revolução‖ no sistema, tais como os ocorridos na história constitucional norte-americana: na

Convenção de Filadélfia de 1787, quando se elabora a Constituição Americana; nas Emendas

Constitucionais estatuídas após a guerra civil entre 1868-1870; e no New Deal, em 1930.

Estes momentos históricos mostram revoluções, no sentido de que houve mudanças

fundamentais nas regras da prática política. Isso mostra que o povo é capaz de discutir e

deliberar sobre temas constitucionais.

A posição de democracia e Constituição dualistas diferenciam Ackerman dos liberais

Rawls e Dworkin. Aquele entende que a Constituição é, primeiramente, democrática, ou seja,

movimento de deliberação popular, resultante da autonomia pública e, depois, protetora de

direitos; enquanto que estes invertem esta ordem, dando à Constituição o papel, em primeiro

lugar, de proteger a autonomia privada assegurada pelos direitos fundamentais. Para

Ackerman a participação popular permite que a Constituição e os direitos fundamentais

estejam sempre abertos a novas elaborações, sem deixar que o ―espírito‖ dos mesmos seja

abandonado. A cidadania pública está inserida no seio de uma sociedade plural, em que

convivem diversas concepções individuais a cerca da vida digna, permitindo aos cidadãos

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dedicarem-se, ao mesmo tempo, aos interesses privados e aos interesses públicos em

organizações tais como igrejas, sindicatos, ONGs etc.

Ackerman tem consciência de que não é possível reeditar a perfeita cidadania pública,

conforme o modelo da polis grega, porém, os cidadãos em determinados momentos

históricos, são capazes de reinterpretar o seu passado. Ou seja, quando a comunidade altera os

seus valores, cria uma nova Constituição, ou pelo menos, institui novas hermenêuticas. Ora, o

constitucionalismo patriótico é, precisamente, esta capacidade de autodeterminação da

comunidade, enquanto disposição de alterar, legitimamente, as organizações políticas e

normativas.

A concepção de democracia dualista garante que os indivíduos possam

cotidianamente buscar a realização de seus projetos pessoais de vida, mas, ao

mesmo tempo, assegura a possibilidade de que, em momentos históricos decisivos,

o conjunto dos cidadãos, alterando os significados dos valores que compartilham,

delibere acerca do seu próprio destino (Cittadino, 2004, 170).

Cabe destacar a proximidade entre o ponto de vista kojèviano da essência política da

Constituição e a concepção defendida por Bruce Ackerman que vê na Constituição a

expressão de um ato profundo de autodeterminação política. À semelhança de Kojève, que

provê a instância política como autodeterminante, para Ackerman, há uma intrínseca conexão

entre o processo de mobilização política e a mudança constitucional; de tal sorte que se pode

afirmar ser esta a essência precípua da Constituição. No entanto é preciso frisar que, conforme

Cittadino, este pensador americano também afirma o caráter dual da Constituição, por que

esta, num primeiro momento assegura a autonomia privada dos indivíduos

Nos momentos em que não há mobilização política da comunidade em seu conjunto,

e por outro lado, a Constituição garante a plena autonomia pública dos cidadãos

quando eles decidem alterar e redefinir a sua própria identidade política. E, sublinha

a autora, neste último caso, não há limites ao processo de autodeterminação da

comunidade política (id, p. 166).

Há uma aproximação entre a teoria constitucional de Kojève e Ackerman em dois

aspectos: o papel político da Constituição e a mudança constitucional através da revolução.

Ressalte-se, porém, que existem nuances nesta relação conceitual. Kojève entende a

Constituição como um ato político, constituindo a realidade tanto interna como externa, daí

ser sua teoria constitucional una. Por isso, não há um terceiro ator para intervir neste nível

intra e interestatal. Caso isso viesse a ocorrer se caracterizaria uma relação jurídica. Ora, a

Constituição política pode ser criticada e transformada, sendo a revolução um meio

privilegiado para tal. Daí, a revolução ser compreendida como um ato político, por excelência,

pois, opondo-se ao status quo, instaurará uma nova Constituição, sendo a nova lei política.

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Ackerman entende que a Constituição tem também uma dimensão política, porém, não

desvinculada da jurídica, daí ser sua concepção constitucional dualista. O autor prioriza a

dimensão política constitucional, através de seu conceito de constitucionalismo patriótico,

sendo a participação cidadã que determina o conteúdo substantivo dos direitos fundamentais.

Ora, há entre revolução e Constituição uma íntima relação. A revolução é compreendida como

a ação dos cidadãos, em determinados momentos da história, em que se implementam

mudanças no sistema constitucional, sendo isto demonstrado, por Ackerman em vários fatos

da história norte-americana. Enfim, o constitucionalismo patriótico defini-se pela ação

coletiva dos cidadãos, ou seja, a revolução, determinando a identidade política através de

mudanças normativas ou criando uma nova Constituição.

Após apresentarmos o debate sobre as dimensões da Constituição, percebe-se que há

em Kojève um conceito de constitucionalismo político que se aproxima do conceito de

constitucionalismo patriótico de Ackerman. No entanto, há limites no que diz respeito à

compreensão do Direito Administrativo, como foi exposto acima (item 2), porque,

atualmente, a Administração Pública englobando os três poderes submete-se ao controle

jurisdicional, como, por exemplo, no caso do Direito brasileiro, conforme o que se verá

abaixo.

3.2 – Controle jurisdicional da Administração Pública

O Estado de Direito controla a Administração Pública para que realize os interesses

públicos e particulares, impondo-lhe mecanismos e corrigindo comportamentos indevidos

praticados em vários níveis do corpo orgânico como das pessoas jurídicas auxiliares do

Estado (autarquias, empresas públicas, sociedades mistas e fundações governamentais).

O controle da administração pública abrange os três poderes: Legislativo, Judiciário e

Executivo. A finalidade do controle é assegurar que a Administração atue a partir dos

princípios jurídicos tais como da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e de

mérito, abrangendo o que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa.

Embora o controle seja uma atribuição estatal, cabe ao cidadão participar defendendo seus

interesses individuais e coletivos. O controle é um poder-dever dos órgãos dos poderes

Judiciário, Legislativo e Executivo, a que a lei atribui essa função, no sentido de fiscalização e

correção dos atos ilegais (Di Pietro, 2001, 587).

Segundo Di Pietro, existem vários critérios para classificar as modalidades de

controle. Quanto ao órgão que o exerce, o controle pode ser administrativo, legislativo ou

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judicial; quanto ao momento em que se efetua, pode ser prévio, concomitante ou posterior;

pode ser ainda interno ou externo, conforme decorra de órgão integrante ou não da própria

estrutura em que se insere o órgão controlado. É interno o controle que cada um dos poderes

exerce sobre seus próprios atos e agentes. É externo o controle exercido por um dos poderes

sobre o outro. Vejamos os três tipos de controle: administrativo, legislativo e judicial.

3.2.1 – Controle administrativo

Controle administrativo é o poder de fiscalização e correção que a Administração

Pública, em sentido amplo, exerce sobre sua própria atuação em nível legal e de mérito, por

iniciativa própria ou provocada. Abrange os órgãos da Administração direta e indireta. O

controle sobre os órgãos da Administração direta é um controle interno e decorre do poder de

autotutela, permitindo rever os próprios atos ilegais, inoportunos ou inconvenientes. A

fundamentação do poder de autotutela encontra-se no princípio da legalidade e o da

predominância do interesse público. O controle sobre as entidades da Administração indireta é

o de tutela, sendo externo e exercido nos limites da lei, sob pena de ofender a autonomia

daquelas entidades (id. Di Pietro, 588).

3.2.2 – Controle legislativo

O controle do Poder Legislativo sobre a Administração Pública encontra-se regulado

na Constituição Federal, porque isto implica a interferência de um Poder nas atribuições dos

outros dois (Executivo e Judiciário). Aqui, temos dois tipos de controle: o político e o

financeiro.

a) Controle político: Este inclui aspectos da legalidade, de mérito e de natureza

política, porque aprecia as decisões administrativas sob o aspecto da discricionariedade.

Algumas hipóteses de controle que estão na CF/88 encontram-se sobretudo nos artigos 49, 50

e 52.

b) Controle financeiro: Encontra-se na CF/88 nos artigos 70 e 75, a fiscalização

contábil, financeira e orçamentária. Partindo do art. 70, pode-se deduzir o controle financeiro

quanto à atividade (verificar os atos da contabilidade, execução de orçamento, resultados etc);

quanto aos aspectos controlados, compreende: controle de legalidade dos atos, controle de

legitimidade, controle de economicidade, controle de fidelidade funcional, controle de

resultados de cumprimento de programas de trabalho e de metas; quanto às pessoas

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controladas abrange União, Estados, Municípios, Distrito Federal e entidades da

Administração direta e indireta. O controle externo foi ampliado como se verifica no art. 71,

compreendendo as funções de : fiscalização financeira, de consulta, de informação, de

julgamento, sancionatórias, corretivas e de ouvidor (id Di Pietro, 599-602).

3.2.3 – Controle judicial

O controle judicial junto com o princípio da legalidade constituem uns dos

fundamentos do Estado de Direito. O direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição una,

pelo qual o Poder Judiciário tem o monopólio da função jurisdicional, podendo apreciar com

força de coisa julgada, a lesão ou ameaça a direitos individuais e coletivos. O Brasil não

adotou o sistema da dualidade de jurisdição em que ao lado do Poder Judiciário, existem os

órgãos do ―Contencioso Administrativo que exercem, como aquele, função jurisdicional sobre

lides de que a Administração Pública seja parte interessada‖ (id Di Pietro, 603).

O sistema da jurisdição una fundamenta-se no art. 5º, inc. XXXV da CF: A lei não

excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Portanto, qualquer

que seja o autor da lesão, mesmo o poder público, poderá o cidadão prejudicado buscar a via

judicial para defender seus direitos.

No Brasil, adotou-se pelo que foi dito o sistema jurisdição única, diferente do que

ocorre em inúmeros países europeus. No caso brasileiro cabe ao Poder judiciário decidir todo

conflito, aplicando o Direito para resolver controvérsias, segundo o princípio da legalidade. A

Administração submete-se à legalidade, ou seja, no Estado de Direito, ela só pode agir sob a

lei. O princípio da legalidade não se propõe a ser um mero instrumento de organização do

aparelhamento administrativo do Estado, mas estabelecer aos administrados uma proteção e

uma garantia. Isto outorga ao cidadão a certeza de que o ato administrativo não pode impor

limitação, prejuízo ou ônus a alguém, sem a prévia autorização em lei. A legalidade tem,

portanto, a finalidade de proteção jurisdicional a quem seja agravado por ação ou omissão

ilegal do Poder público sempre que isto ocorra (Mello, 2004, 871-873).

Portanto, existe direito à proteção judicial sempre que houver: a) Ruptura da

legalidade, causando ao administrado um agravo pessoal; b) Ou subtração de uma vantagem

que o administrado acederia se não houvesse ruptura da legalidade. Ora, trata-se aqui da

proteção de um direito subjetivo e não de um mero interesse legítimo. Mello argumenta que

há no Direito italiano o instituto do interesse legítimo, para fins de desqualificar certas

pretensões, negando-lhes a qualidade de direito subjetivo. Por exemplo, as normas que

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regulam as licitações ou os concursos públicos, não conferem aos que deles desejam

participar do direito subjetivo a fim de se insurgirem contra atos ou condições consideradas

ilegais para efetuar uma inscrição. Nesse caso, no sistema jurídico italiano entende-se que os

postulantes só podem propor um interesse legítimo e não um direito subjetivo. Essa forma de

condução deste caso, deve-se a dualidade de jurisdição na Itália e em outros países europeus.

Aqui, a repartição de competências jurisdicionais entre o Poder Judiciário e a Justiça

Administrativa faz-se, distinguindo, direito subjetivo e interesse legítimo, isto é, quando se

trata do primeiro a decisão compete ao juiz ordinário, e no caso do segundo, cabe ao juiz

administrativo. Tem-se como conseqüência de tal distinção, que o direito subjetivo

compreendido na visão moderna privatista, o juiz do Poder Judiciário não pode anular o ato

gravoso, mas apenas conceder reparação patrimonial. Ao contrário, face a um interesse

legítimo, o juiz competente é o da Jurisdição Administrativa, o qual pode anular o ato, mas

não é a sede própria para conceder reparação patrimonial. Porém, no Brasil não há dualidade

de jurisdição, inexistindo uma justiça administrativa, a qual zelaria pelos interesses legítimos

(Mello, 2004, 874-877) .

Na França, que adota a dupla jurisdição, os casos acima mencionados caem na esfera

de competência da Justiça Administrativa e não, do Poder Judiciário. Naquela são

discriminados os contenciosos de plena jurisdição e de anulação. O Direito francês não

trabalha com a mesma nomenclatura do Direito italiano (distinção entre direito subjetivo e

interesse legítimo), porém, entende-se que no contencioso de plena jurisdição trata-se de um

problema individual subjetivo e que, no de anulação o problema versa sobre a legalidade

objetiva, por isso destinado a anulação do ato lesivo.

Há entre esses países também uma semelhança nas modalidades de recurso. No

Direito italiano os recursos para defender interesses legítimos são suscitados por questões de:

incompetência, violação de lei e excesso de poder. No Direito francês os recursos para defesa

da legalidade (contencioso de anulação), e não em situações subjetivas são: incompetência,

violação da lei e desvio de poder (correspondendo ao excesso de poder dos italianos) (id.

Mello, 875).

3.2.4 – Meios de controle

Ainda tendo por base o art. 5°, inciso XXXV da CF, todo o cidadão tem o direito de

ação ou de exceção contra lesão ou ameaça a direito, utilizando vários tipos de ações previstos

na legislação ordinária, para impugnar atos da Administração, tais como ações de

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indenização, possessórias, reivindicatórias, de consignação em pagamento, cautelar etc. Além

destas ações a Constituição estabelece ações especiais de controle da Administração Pública,

chamadas pela doutrina de remédios constitucionais. Estes têm a função de garantir os

direitos fundamentais, provocando a intervenção de autoridades, em geral a judiciária, para

corrigir os atos da Administração lesivos de direitos individuais e coletivos.

Os remédios constitucionais têm a dupla natureza de direitos e de garantias. São

direitos em sentido instrumental conforme o art. 5°, inc. XXXV da CF e são garantias porque

resguardam outros direitos fundamentais também previstos neste mesmo art. 5°.

Podemos classificar os remédios constitucionais, que visam provocar o controle

jurisdicional de ato da Administração, a partir de dois critérios:

a) Os que garantem os direitos individuais: 1) Mandado de segurança individual: É a

ação civil de rito sumaríssimo pela qual qualquer pessoa pode provocar o controle

jurisdicional quando sofrer lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo, não amparado

por habeas corpus nem habeas data, em decorrência de ato de autoridade, praticado com

ilegalidade ou abuso de poder. 2) Habeas data: Assegura o conhecimento de informações

relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades

governamentais ou de caráter público; ou para a retificação de dados; 3) Habeas corpus:

Protege o direito de locomoção; 4) Mandado de injunção: Tem como pressuposto a omissão

de norma regulamentadora que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades

constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania, e à cidadania (art.

5°, LXXI da CF).

b) Os que garantem os direitos coletivos ou difusos: 1) Mandado de segurança

coletivo: Conforme Di Pietro, este remédio constitucional tem como pressuposto o mesmo

que está previsto para o mandado de segurança individual, isto é, ato de autoridade,

ilegalidade ou abuso de poder e lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo. Pode ser

impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, organização

sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída (CF, art 5°, LXX). 2) Ação

popular: É a ação civil pela qual qualquer cidadão pode pleitear a invalidação de atos

praticados pelo poder público ou entidades de que participe, lesivos ao patrimônio público, ao

meio ambiente, à moralidade administrativa ou ao patrimônio histórico e cultural, bem como a

condenação por perdas e danos dos responsáveis pela lesão; 3) Ação civil pública: Trata-se do

dano ou ameaça de dano a interesse difuso ou coletivo, abrangendo o dano ao patrimônio

público e social, o dano material e o dano moral. Inclui especialmente, a proteção ao meio

ambiente, ao consumidor, ao patrimônio histórico ou cultural (id. Di Pietro, 612-656).

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Pelo exposto, constata-se que o controle da Administração Pública opera-se nos três

poderes: legislativo, executivo e judicial. Além, deste controle existem os meios de controle,

ou os remédios constitucionais, que permitem aos cidadãos pleitearem seus direitos subjetivos

e intersubjetivos face à Administração Pública. Ora, pelo visto, o Estado de Direito é

controlado pelos cidadãos, e pelos poderes entre si. A doutrina do Direito Público explicita a

progressiva idéia de justiça, controlando o poder estatal. O Estado não escapa ao controle da

sociedade civil, ou seja, ele não se desvincula dela, como parece ocorrer no modelo

kojèviano. Antes, a sociedade civil, através do controle jurisdicional, tem o poder de garantir

os seus direitos e fiscalizar a Administração Pública.

O modelo kojèviano de Administração Pública é devedor de um limite, por um lado,

causado por condicionantes teórico-práticas: a) Do modelo de dupla jurisdição, que permite a

repartição de competências jurisdicionais entre o Poder Judiciário e a Justiça Administrativa,

dando à Administração Pública uma quase independência do Executivo e do poder estatal face

à sociedade civil. Como vimos acima (item 2) o poder estatal, praticamente, está desvinculado

do cidadão, sendo quase impossível a este reivindicar seus direitos; b) Do modelo de Direito

Público, ou seja, da teoria dialético dualista de Direito (item 1.1.3) , em que as duas esferas

constitucional e administrativa são determinadas pelo poder político em detrimento do poder

jurídico. c) Do contexto conjuntural bélico da 2ª Guerra Mundial e de disputa entre sistemas

ideológicos, resultado de um modelo de Estado-Nação moderno, que se impõe interna e

externamente, de um modo unilateral, sobre a sociedade civil e os outros Estados.

De outro lado, o modelo kojèviano de Administração Pública tem um alcance que se

insere no debate atual entre liberais e comunitaristas, na medida em que acentua o lado

político da Constituição, enquanto projeto revolucionário de um povo. A perspectiva do

sujeito atomizado, defendido pelos liberais (Estado Liberal de Direito)

Conduz à afirmação de um modelo de democracia, que se insere em uma matriz

centralista e adstrita à preocupação estritamente procedimental, sob a qual a

Constituição se limita à Garantia de que os cidadãos optem pelo rodízio das elites

que exercem o poder político e que este esteja limitado pelos direitos inalienáveis

(Bavaresco, Christino, Schmitt, 2005,355).

Porém, o ponto de vista dos comunitaristas (Estado Social de Direito), compreende o

Sujeito-em-relação, isto é, para além do indivíduo interessado e portador de uma

subjetividade fundada nos limites da vontade particular‖, mas de ―uma identidade

constituída por valores e ideais comuns‖. Aqui, ―a Constituição figura como

Projeto, uma vez que não se cogita de mera garantia, mas de vinculação ao

cumprimento dos objetivos de um destino socialmente compartilhado (id. p. 355).

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É verdade, que Kojève, quando da elaboração de seu Esboço, não tem diante de si os

avanços do Estado Democrático de Direito, que implica o resgate dos ideais de liberdade e

igualdade, no quadro da eficácia para a participação política e o exercício dos direitos. Kojève

em sua teoria da justiça prioriza, no entanto, a idéia de justiça como desejo de

reconhecimento, e nesta luta intersubjetiva há sempre um contexto típico em que se determina

a justiça como igualdade, equivalência ou eqüidade. Ora, esta luta pelo reconhecimento,

fundamento da teoria da justiça kojèviana, é, política, daí, a sua aplicação no Direito Público,

priorizando esta dimensão sobre a jurídica, bem como, o comunitário sobre o individual.

Preservadas as devidas nuances no campo comunitarista, pode-se incluir a contribuição

kojèviana na perspectiva de um Direito intersubjetivo comunitário, estando aí o seu alcance

no debate atual.

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CONCLUSÃO

A Teoria da Justiça e o Direito Público em Alexandre Kojève, apresentados ao longo

deste trabalho, segundo a sua obra Esboço de uma Fenomenologia do Direito, tem no desejo

antropogênico o estatuto básico para a constituição do reconhecimento intersubjetivo. A luta

pelo reconhecimento é um processo dialético, inspirado na figura do senhor e do escravo,

descrito na obra clássica Fenomenologia do Espírito de G. W. F. Hegel. Para este a dialética é

um momento do processo da efetividade do conceito, tendo no especulativo o seu momento

ápice, desenvolvendo-se como monismo articulado pela mediação de um silogismo reflexivo.

Enquanto que para Kojève a dialética é tratada como ponto de chegada de sua metodologia,

operando-se uma antropologização do sistema, através da leitura da história em que,

sistematicamente, o oprimido torna-se vitorioso. No entanto, Kojève recusa o dualismo

ontológico como o monismo materialista e defende o dualismo dialético linear, por meio de

um processo de tipo reflexivo que compreende o fenômeno jusfilosófico.

É o desejo que permite a formação da autoconsciência, ou seja, é o desejo que busca

um objeto não-natural, ultrapassando a realidade dada, ou seja, é apenas o desejo de outro

desejo que preenche a exigência de um desejo tipicamente humano, capaz de garantir a

autoconsciência. A origem e a evolução do Direito dá-se pelo ato antropogênico do desejo de

luta pelo reconhecimento entre senhor e escravo, tornando-se o ato instaurador que identifica

o ser humano na intersubjetividade e, portanto, sendo a fonte da idéia de justiça.

Para Kojève o Direito é a aplicação de um ideal de justiça às interações sociais dadas,

sendo esta aplicação feita por um terceiro imparcial e desinteressado, decidindo em função de

seu ideal de justiça. Ora, os modelos de Direito determinam-se nesta relação dialética: O

escravo renuncia, inicialmente, a igualdade aceitando a equivalência; o senhor não considera a

equivalência, mantendo a igualdade, pois ele está quase indo à morte. Depois, a dialética do

senhor e do escravo alcança a cidadania, através da dialética entre o Direito aristocrático e

burguês, levando, enfim, ao Direito sintético do cidadão. Assim, o Direito nasce duplo e

depois, torna-se uno, evoluindo da oposição antitética à unidade sintética. Kojève, descreve

este movimento jusfenomenólogico em três momentos:

a) O modelo de justiça da igualdade apresenta, fenomenologicamente, o direito

aristocrático. Trata-se de um direito de iguais, em que o reconhecimento passa pelo risco de

vida, buscando a honra pura e simples. O reconhecimento dá-se pelo escravo, enquanto

submissão, e pelos outros senhores, na medida da igualdade.

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b) O modelo de justiça da equivalência descreve o Direito burguês, substituindo o

conceito aristocrático de estatuto, por aquele de função, que cria um Direito de contrato. O

contrato sanciona trocas de propriedade e prestações, pressupondo a desigualdade nas trocas.

Se o Direito aristocrático condena a desigualdade, o Direito burguês o reconhece, pois o

princípio aqui é o da equivalência de condições, de direitos e deveres. Há uma diferença entre

o Direito burguês e o Direito aristocrático, enquanto este atribui a cada indivíduo a plenitude

de direitos sem nenhum dever, aquele, ao contrário, exige uma equivalência rigorosa entre

direitos e deveres.

c) Enfim, o modelo de justiça da eqüidade, mostra o dualismo humano entre senhor e

escravo, sintetizando-se na existência do cidadão, ou seja, o Direito aristocrático e burguês se

unem no Direito cidadão. No Direito aristocrático, o indivíduo possui a plenitude de direitos,

sem ter nenhum dever, enquanto que no Direito burguês, há a equivalência entre direitos e

deveres em relação a cada pessoa jurídica. O Direito do cidadão, fundado na justiça da

eqüidade, combina os direitos e deveres, não admitindo a existência de direitos não

compensados pelos deveres, nem de deveres sem direitos correspondentes, mas haverá uma

interação entre direitos e deveres.

A evolução do fenômeno do Direito segue a lógica da contradição imanente, segundo

os dois princípios jurídicos: a igualdade (em ato) e a equivalência (em potência). Os dois

princípios, estando num mesmo sistema jurídico, deixam aparecer o conflito interno, entre o

Direito aristocrático e o burguês, porque os mesmos direitos não têm o mesmo valor, quando

referidos a sujeitos diferentes, uma vez que, sendo iguais do ponto de vista formal, eles

podem não ser equivalentes de fato. Por isso, o Direito burguês modificará a igualdade formal

para torná-la conforme a equivalência. A suprassunção dos dois modelos de Direito conduzirá

segundo, Kojève, à última forma de Direito que é a do cidadão. Esse Direito conduzirá a

equivalência dos direitos e dos deveres de cada um, acompanhado da igualdade de direitos e

deveres de todos, podendo ―ser atual apenas lá onde todos são iguais e equivalentes, não

somente sob o aspecto jurídico ―diante da lei‖, mas também política e socialmente, isto é, de

fato‖ (cf. Kojève, 1981, 313-314).

A fenomenologia do Direito kojèviano aponta para um modelo de reconhecimento

intersubjetivo, ou seja, a metodologia hegelo-kojèviana, por ser de matriz intersubjetiva,

oferece elementos para a superação do modelo subjetivista moderno do Direito. Em Hegel e

Kojève, existem modelos metodológicos diferenciados do reconhecimento e da idéia de

Direito. Enquanto, Hegel inclui a dialética como um dos momentos fundamentais do método

especulativo, numa constituição monista que se movimenta, especulativamente, em seus

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diversos conteúdos e momentos do sistema, para Kojève, a dialética é o fim de sua

metodologia. Ora, essa metodologia desdobra-se em Hegel, na determinação da idéia de

liberdade nos diversos momentos que compõem a Filosofia do Direito. O reconhecimento

simétrico de direitos e deveres percorre o itinerário do direito abstrato, da moralidade e da

eticidade. Ora, a metodologia hegeliana implica que a pessoa garanta o reconhecimento de

seus direitos e deveres no direito abstrato moderno, enquanto sujeito moral, capaz de agir

intersubjetivamente, como cidadão na esfera da eticidade, ou seja, participando do Estado.

Para Kojève, o Direito é o resultado da luta originária pelo desejo de reconhecimento

entre o senhor e o escravo, decorrendo, então, uma tríplice tipologia da idéia de Direito,

configurando-se em idéia de igualdade aristocrática, idéia de equivalência burguesa e idéia de

eqüidade cidadã. O Direito é, então, a determinação da idéia de justiça. A reflexividade entre

os sujeitos que buscam o reconhecimento, são mediados pelo terceiro imparcial e

desinteressado, introduzindo, dessa forma, o momento intersubjetivo na constituição do

Direito. Em Hegel o reconhecimento passa pela mediação da eticidade, enquanto momento

garantidor do Direito intersubjetivo.

O reconhecimento e a intersubjetividade, a descrição jusfenomenólogica dos modelos

de Direito e sua implicação na superação do Direito moderno subjetivo para o Direito

intersubjetivo são aplicados por Kojève, no Direito Público, em seu nível, propriamente

constitucional e administrativo.

A Constituição é um ato político tanto interna como externamente, não havendo um

terceiro que possa nesse nível intervir, caso contrário, se retrocederia ao nível jurídico. A

revolução é, um ato político oposto às leis políticas vigentes, considerando-se um ato

fundador de uma nova Constituição. Se a mudança desta mesma acontece através da

revolução, a nova Constituição passa a ser a nova lei política. Assim, a mudança

constitucional pode ocorrer através de duas formas: pela via legal através do cidadão, ou seja,

pela via interna do próprio grupo político instalado no governo; ou então, pela via

revolucionária, isto é, por um grupo externo ao governo, instalando uma nova Constituição.

Em ambas as vias, dá-se um processo político e não jurídico, por tratar-se do Direito público,

portanto constitucional.

Kojève comenta o fato do Estado intervir como terceiro, por exemplo, se o governante

agiu enquanto particular, ou então, o governado foi lesado pelo governante-impostor. Se o

governante agiu em desacordo com a Constituição, em função de interesses particulares,

então, o Estado deve intervir como terceiro e anular o ato do governante-impostor. As leis

constitucionais e administrativas, em si, não têm nada de jurídico, mas na medida em que

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permitem constatar que um governante agiu como impostor, elas fazem parte do Direito

público. Kojève enumera alguns casos nos quais os governados podem considerar-se lesados

por atos dos governantes-impostores e indica o modo como estes atos, juridicamente, ilegais

devem ser anulados. Neste sentido, pode-se dizer que o Direito público fixa os direitos dos

governados. Porém, isto não significa, dizer que os governados têm direitos face ao Estado,

isto é, diante dos governantes, agindo enquanto tais, pois o Estado pode modificar o Direito

público, modificando a Constituição. Esta pode ser, modificada apenas pelo Estado, isto é

pelos cidadãos, agindo enquanto cidadãos e não enquanto particulares, utilizando-se destas

vias, age-se, de forma política, e não juridicamente, pois aqui ainda não há um terceiro. Ora,

se alguém experimenta modificar a Constituição por vias ilegais, ele age, enquanto privado e

particular, e então comete um crime de Direito público, o qual será anulado pelo Estado.

A posição kojèviana sobre o Direito público, no seu duplo aspecto, constitucional e

administrativo é, eminentemente, política. Este ponto de vista, sobre o Direito Público,

oferece alcances e limites como ficou demonstrado na comparação com as teorias

contemporâneas, que debatem o Direito constitucional e administrativo. O debate sobre a

dimensão política e/ou jurídica constitucional, em alguns teóricos dentro do Direito

Constitucional e o Direito Administrativo, mostra o papel do controle jurisdicional no Estado

democrático de Direito. Kojève elaborou a sua teoria constitucional num contexto bélico e sob

a influência de um modelo de Estado-Nação interventor tanto em nível externo como interno,

ou seja, tomando decisões de forma unilateral. Compreende-se, a partir disto, em parte, o

alcance e o limite de sua teoria constitucional, considerando o contexto político e o debate

teórico da época.

O papel da Constituição e sua natureza é uma discussão com diferentes opiniões: Por

exemplo, para Konrad Hesse, a Constituição tem uma dupla natureza, a um só tempo política

e jurídica; Para Bruce Ackerman, tanto a democracia como a Constituição são dualistas,

porque asseguram, sob o aspecto jurídico, a autonomia privada dos indivíduos, e sob o

aspecto político, garantem a autonomia pública dos cidadãos; C. Taylor e Walzer defendem o

patriotismo republicano, sendo a Constituição um projeto que traduz a vontade coletiva em

que a cidadania ativa busca a implementação de liberdades positivas; Bruce Ackerman

propõe, de seu lado, o constitucionalismo patriótico, sendo os direitos fundamentais do

cidadão procedimentais, antes que substantivos, ao contrário de Rawls e Dworkin que

sustentam o conteúdo substancial dos direitos fundamentais.

Kojève e Ackerman podem ser aproximados no que diz respeito ao papel político da

Constituição e a mudança constitucional através da revolução. Para Kojève, a Constituição é

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um ato político, que constrói a realidade sem a presença de um terceiro ator para intervir neste nível

intra e interestatal, daí ser sua teoria constitucional una. A Constituição pode ser criticada e mudada,

sendo a revolução este meio político que permite tal fim. Ackerman entende que a Constituição

tem também uma dimensão política, porém, não desvinculada da jurídica, daí ser sua

concepção constitucional dualista. A revolução é a ação dos cidadãos, em determinados

momentos da história, implementando mudanças no sistema constitucional, pela ação coletiva

dos cidadãos, ou seja, a revolução, determinando a identidade política através de mudanças

constitucionais. Há, portanto, em Kojève um conceito de constitucionalismo político que se

aproxima do conceito de constitucionalismo patriótico de Ackerman.

Quanto à compreensão do Direito Administrativo, Kojève foi confrontado com o

debate atual, em que a Administração Pública engloba os três poderes (Legislativo, Judiciário

e Executivo) submetendo-se ao controle jurisdicional. A finalidade do controle é assegurar

que a Administração atue, a partir dos princípios jurídicos tais como da legalidade,

moralidade, publicidade, impessoalidade e de mérito. O Estado de Direito controla a

Administração Pública, para que realize os interesses públicos e particulares. Mais ainda, o

Estado de Direito é controlado pelos cidadãos, por si mesmo, e pelos poderes entre si, numa

progressiva idéia de justiça, controlando o poder estatal. O Estado não escapa do controle da

sociedade civil, ou seja, ele não se desvincula dela, como parece ocorrer no modelo

kojèviano. Antes, a sociedade civil, através do controle jurisdicional, tem o poder de garantir

os seus direitos e fiscalizar a Administração Pública.

O modelo kojèviano de Administração Pública tem um limite, causado por

condicionantes teórico-práticas, tais como o modelo de dupla jurisdição, o contexto

conjuntural bélico da 2ª Guerra Mundial e de disputa entre sistemas ideológicos, resultado de

um modelo de Estado-Nação moderno, que se impõe interna e externamente, de um modo

unilateral, sobre a sociedade civil e os outros Estados. Porém, o modelo kojèviano de

Administração Pública tem um alcance que se insere no debate atual entre liberais e

comunitaristas, na medida em que acentua o lado político da Constituição através de um

projeto revolucionário, semelhante ao de Bruce Ackerman. Face ao sujeito atomizado,

defendido pelos liberais (Estado Liberal de Direito), sob a qual a Constituição se limita à

Garantia, o ponto de vista dos comunitaristas, (Estado Social de Direito), e portanto, de

Ackerman, compreende o sujeito-em-relação em que a Constituição figura como Projeto.

Considerando a distância entre o contexto sócio-político em que Kojève escreveu seu

Esboço, e o posterior debate jusfilosófico constitucionalista do Estado Democrático de

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Direito, cabe reconhecer a contribuição kojèviana na perspectiva de um Direito intersubjetivo

comunitarista.

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