Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

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EQUIPE UNITINS

Organização de Conteúdos Acadêmicos Kyldes Batista Vicente

Coordenação Editorial Maria Lourdes F. G. Aires

Revisão Didático-Pedagógica Kyldes Batista Vicente

Revisão Lingüístico-Textual Kyldes Batista Vicente

Gerente de Divisão de Material Impresso Katia Gomes da Silva

Revisão Digital Vladimir Alencastro Feitosa

Projeto Gráfico Irenides TeixeiraKatia Gomes da Silva

Ilustração Geuvar S. de Oliveira

Capas Igor Flávio Souza

EQUIPE EADCON

Coordenador Editorial William Marlos da Costa

Assistentes de Edição Ana Aparecida Teixeira da CruzJanaina Helena Nogueira BartkiwLisiane Marcele dos Santos

Programação Visual e Diagramação Denise Pires PierinKátia Cristina Oliveira dos SantosMonica ArdjomandRodrigo SantosSandro NiemiczWilliam Marlos da Costa

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“O que importa no ensino da literatura é a criação do gosto para a obra literária, e isto somente se consegue com a leitura e compreensão da lite-ratura como literatura, isto é, pela abordagem através das obras literárias.”(Afrânio Coutinho)

Apresentamos a você o caderno de conteúdos e atividades da disciplina Teoria da Literatura: texto narrativo. A exemplo do caderno de Teoria da Literatura: o texto poético, procuramos, também neste, a finalidade prope-dêutica da Teoria da Literatura: é um “manual”, cujo objetivo é auxiliar você no estudo do texto narrativo. Nessa perspectiva, foram desenvolvidos os seguintes conteúdos:

Aula um: • A narrativa e seus elementos estruturais – esta aula aborda os elementos estruturais da narrativa: personagem, enredo, tempo, espaço, foco narrativo. Elementos que nortearão as discussões dos gêneros narrativos.

Aula dois: • O conto – esta aula dedica-se a discutir o gênero narrativo breve, com número de personagens reduzido, tempo curto, enfim, o primeiro gênero a ser estudado em nosso curso.

Aula três: • A novela – esta aula apresenta o gênero narrativo conside-rado intermediário entre o conto e o romance.

Aula quatro: • O romance – esta aula tem o objetivo de expor as carac-terísticas do gênero que surge com o Romantismo e com a burguesia em ascensão.

Aula cinco: • O texto teatral – esta aula teve como objetivo discutir o texto teatral. Fizemos a escolha pelos aspectos do texto, já que o nosso foco é o literário e não a encenação.

Aula seis: • A prosa poética, o ensaio e a crônica – nesta aula privile-giamos gêneros narrativos considerados menores, mas relevantes.

Aula sete: • Crítica literária: perspectivas de análise da narrativa – finalizamos este caderno de conteúdos e atividade expondo modalidades críticas de análise literária, cujo objetivo é dar noções básicas sobre tais modalidades para o futuro profes-sor-pesquisador da área de Letras.

Prof.ª Kyldes Batista Vicente

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EMENTA

Conceito de narrativa. Elementos estruturais da narrativa. Gêneros narrativos: conto, novela, romance, crônica e teatro. Perspectivas de análise de narrativa.

OBJETIVOS

Discutir a Teoria da Literatura numa perspectiva propedêutica.•

Facilitar a aproximação do aluno ao texto narrativo.•

Promover o entendimento de que é possível compreender o •texto narrativo, a partir do conhecimento de seus elementos constitutivos.

Apresentar perspectivas de análise literária•

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

Elementos estruturais da narrativa•

Gêneros narrativos: conto, novela, romance•

Outros gêneros: prosa poética, ensaio, crônica, teatro•

Perspectivas de análise narrativa: crítica literária•

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Ens

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BIBLIOGRAFIA BÁSICA

D’ONÓFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.

EAGLETON, Terry. A teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 1. São Paulo: Cultrix, 2003.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 2. São Paulo: Cultrix, 1998.

REUTER, Yves. A análise da narrativa. São Paulo: Difel, 2002.

SOUZA, Roberto Acizelo de. Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 2007

unitins • letras • 3º PerÍODO 273

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Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

conceituar narrativa;•

identificar os elementos fundamentais da narrativa.•

Para que você compreenda bem esta aula, é importante que você recorra à sua memória e relembre as histórias que você leu ou ouviu: elas, com certeza, apresentam os elementos fundamentais de que iremos tratar aqui.

As narrativas no mundo são inumeráveis: há uma grande variedade de gêneros, contemplando substâncias diferentes e sugerindo que todo assunto é bom para construção de narrativas. As narrativas podem utilizar a linguagem oral ou escrita. Pode recorrer, também, à imagem fixa ou móvel, ao gesto, ou à mistura de todas essas substâncias.

O mito, a lenda, a fábula, o conto, a novela, a epopéia, a história, a tragédia, o drama, a comédia são narrativas. Na pintura também pode haver narrativa, assim como no vitral, no cinema e nas histórias em quadrinhos. Em nossa conversação diária, muitas vezes construímos narrativas.

A narrativa faz parte de nossa vida cotidiana. Está tão visceralmente ligada à ela que, às vezes, nem percebemos.

1.1 Conceituando narrativa

A palavra ficção vem do latim fictionem (fingere, fictum): ato ou efeito de fingir, inventar, simular; coisa imaginária, criação da imaginação. De acordo com Coutinho (1978, p. 30),

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Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

conceituar narrativa;•

identificar os elementos fundamentais da narrativa.•

Para que você compreenda bem esta aula, é importante que você recorra à sua memória e relembre as histórias que você leu ou ouviu: elas, com certeza, apresentam os elementos fundamentais de que iremos tratar aqui.

As narrativas no mundo são inumeráveis: há uma grande variedade de gêneros, contemplando substâncias diferentes e sugerindo que todo assunto é bom para construção de narrativas. As narrativas podem utilizar a linguagem oral ou escrita. Pode recorrer, também, à imagem fixa ou móvel, ao gesto, ou à mistura de todas essas substâncias.

O mito, a lenda, a fábula, o conto, a novela, a epopéia, a história, a tragédia, o drama, a comédia são narrativas. Na pintura também pode haver narrativa, assim como no vitral, no cinema e nas histórias em quadrinhos. Em nossa conversação diária, muitas vezes construímos narrativas.

A narrativa faz parte de nossa vida cotidiana. Está tão visceralmente ligada à ela que, às vezes, nem percebemos.

1.1 Conceituando narrativa

A palavra ficção vem do latim fictionem (fingere, fictum): ato ou efeito de fingir, inventar, simular; coisa imaginária, criação da imaginação. De acordo com Coutinho (1978, p. 30),

A Narrativa e seus elementos estruturais

Aula 1

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A literatura de imaginação ou de criação é a interpretação da vida por um artista através da palavra. No caso da ficção (romance, conto, novela), e da epopéia, essa interpretação é expressa por uma estória, que encorpa a referida interpretação. É, portanto, literatura narrativa.

A narrativa, espinha dorsal da literatura de ficção, é constituída por todo discurso que apresenta uma história imaginária como se fosse real. Nela, há uma pluralidade de personagens, cujos episódios de vida, entrelaçados no tempo e no espaço, constituem a trama da narrativa. Por isso, o conceito de narrativa não se restringe ao romance, ao conto ou à novela, mas contempla o poema épico, o poema alegórico e outras formas consideradas menores de literatura.

De acordo com Gancho (2003, p. 6),

Narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde sua origem. As gravações em pedra nos tempos da caverna, por exemplo, são narrações. Os mitos – histórias das origens (de um povo, de objetos, de lugares) – , transmitidos pelos povos através das gerações, são narrativas; a Bíblia – livro que condensa história, filosofia e dogmas do povo cristão – compre-ende muitas narrativas: da origem do homem e da mulher, dos milagres de Jesus etc. Modernamente, poderíamos citar um sem-número de narrativas: novela de TV, filme de cinema, peça de teatro, notícia de jornal, gibi, desenho animado... Muitas são as possibilidades de narrar, oralmente ou por escrito, em prosa ou verso, usando imagens ou não.

A ficção, produto da imaginação criadora, como já foi referido, tem, como toda arte, suas raízes mergulhadas na experiência humana. A transfiguração da realidade, produzida pelo espírito do artista, é o fator que a distingue das outras formas narrativas, uma vez que ela não pretende oferecer um retrato da realidade, mas criar uma imagem, uma interpretação ou uma revisão dela. Trata-se do espetá-culo da vida através do olhar do artista, da interpretação artística da realidade.

Nesse processo, o ficcionista constrói um mundo autônomo e independente: a ficção pode ficar próxima ou distante da realidade. Quando fica próxima, tem-se a ficção realista; quando foge do real, nasce a ficção romântica ou fantasista. Lembra-se do conceito de verossimilhança, estudado na disciplina Teoria da Literatura: texto poético? Retorne a ele, e você perceberá melhor o que foi dito anteriormente.

Como gênero literário, a narrativa, para ter eficiência e alcançar seu obje-tivo estético, possui elementos característicos distintos, resultado de uma técnica de arranjo e apresentação que lhe dá estrutura arquitetônica, beleza de forma e unidade de efeito. Os elementos da narrativa correspondem a três perguntas fundamentais:

quem participa dos acontecimentos?•

o que acontece?•

onde e em que circunstâncias acontece?•

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Há, portanto, pessoas envolvidas nos eventos narrados. Há os aconteci-mentos. E há o lugar onde eles ocorrem. As pessoas envolvidas são as persona-gens. O que elas fazem (ou o que é feito delas) é o enredo (ação). O lugar onde acontecem os fatos é o ambiente ou situação. Acresce-se a isso o momento em que a ação decorre e a voz que narra os acontecimentos: tempo e foco narra-tivo, respectivamente.

Vamos conhecer detalhadamente cada um deles?

1.2 Elementos estruturais da narrativa

Os elementos estruturais da narrativa podem sofrer transformações pela ação do gênio individual e pelas novas convenções literárias. Ainda assim, continuam sendo seus elementos básicos. O modo de usar esses elementos pode variar: alguns artistas enfatizam este ou aquele elemento, ou todos igualmente, resultando disso formas diversas de narrativas: romance de personagem (predo-mínio da personagem sobre os outros elementos), romance de ação ou aventura (predomínio do enredo), romance de ambiente, atmosfera ou cor local (predo-mínio do espaço). Vamos a cada um deles?

1.2.1 A personagem

As personagens são as pessoas que aparecem em uma história, no teatro, no romance ou no filme, constituindo o elenco. São elas os habitantes da reali-dade ficcional. O vocábulo personagem vem do latim persona, máscara de teatro, papel.

Uma leitura ingênua de narrativas pode confundir personagem e pessoa. A personagem é, antes de tudo, um problema lingüístico: ela não existe fora das palavras, é um ser de papel. Apesar disso, não podemos ignorar a relação que existe entre personagem e pessoa, uma vez que as personagens representam pessoas, de acordo com modalidades próprias da ficção. Logo, quando tratamos de personagem, estamos nos referindo a dois aspectos fundamentais: um lingüís-tico e outro de representação.

Numa narrativa, podemos encontrar três tipos de personagem, de acordo com o conjunto de qualidades que apresentam: a personagem individual, a típica e a caricatural.

A personagem individual (indivíduo)• : aquela que se destaca do comum dos mortais, com caracteres pessoais que o distinguem e o isolam. Capitu, personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis, é individual.

A personagem típica (tipo)• : aquela representativa de um grupo nacional, profissional, racial ou regional. O capitão Smollet, perso-nagem de A Ilha do Tesouro, de Stevenson, é a típica personagem do marinheiro.

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A personagem caricatural (caricatura)• : aquela que se singulariza pela ênfase numa qualidade ou em alguns traços. José Dias, personagem também de Dom Casmurro, é caricatural.

De acordo com a função que exercem na história, as personagens podem ser protagonistas, antagonistas, secundárias, confidentes, de contraste e narra-dora. A função das personagens tem importância decisiva em sua caracteri-zação física e psicológica.

A personagem protagonista (do grego • protos, primeiro; agonistes, que contesta): é a personagem principal, o herói ou heroína da narrativa. É a figura central em torno de quem giram os acontecimentos. Seu destino, às vezes, atrai a simpatia e identificação do leitor, às vezes não.

A personagem antagonista• : é aquela que responde ou contesta o prota-gonista, desafiando-o e opondo-se a ele e a seu destino. É o vilão da história: pode ser pessoa ou força interna – as virtudes ou os defeitos (orgulho, preconceito) – ou externa – as potências da natureza (tempes-tade, mar), os fatores ambientais (influência de ambientes sociais degra-dantes, educação, etc.) e o destino.

A personagem secundária• : são as personagens que participam dos acon-tecimentos sem importância decisiva na ação. Exercem o papel de exposi-tores, influenciam os protagonistas, criam comicidade ou estratégia (atmos-fera típica). No teatro antigo, seria o coro, pano de fundo da cena.

A personagem confidente• : é a personagem secundária ligada ao prota-gonista, servindo-lhe de suporte para seus diálogos e raciocínios.

A personagem de contraste• : é a personagem secundária ligada ao prota-gonista, complementando-lhe ou esclarecendo-lhe a personalidade.

A personagem narradora• : é a personagem que narra a história. Pode ser protagonista (narrativa em primeira pessoa), personagem secundária ou pessoa de fora da ação, que não participa da história.

Levando em consideração as transformações ou não da personagem no trans-correr da narrativa, pode-se classificá-las em dois tipos: planas e redondas.

A personagem plana• : é a personagem que apresenta apenas uma quali-dade, mas não de maneira profunda. São estáticas e não oferecem surpresa. Geralmente são tipos e caricaturas.

A personagem redonda• : é a personagem que possui várias qualidades. Complexas e multiformes, são caracteres ou símbolos tridimensionais e dinâmicas.

As maneiras possíveis de caracterização de personagens nas narrativas levam, necessariamente, à questão do narrador, instância narrativa que conduz o leitor

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pelo mundo que está sendo plasmado em sua frente. O narrador é um elemento presente, sob diversas formas, nos textos narrativos. Assim como não podemos receber uma história sem a mediação do narrador, também não podemos visualizar uma personagem, saber quem ela é e como se materializa, sem um foco narrativo. Por isso, nosso próximo passo é o estudo do narrador ou foco narrativo.

1.2.2 O narrador (ou foco narrativo)

O foco narrativo é um dos componentes mais importantes da técnica de ficção. Por isso, um instrumento valioso para análise literária. No romance, a voz que detém a narração não é a do autor, a do poeta objetivo que assina o texto.

Mas a voz, a emissão através da qual o universo emerge, se depre-ende de uma garganta de papel, recorte de uma das possíveis mani-festações do autor. Como narração, ela emana de um ser criado pelo autor que, dentre a galeria de suas posturas – as persona-gens – , elegeu-a como narrador. Máscara criada pelo demiurgo, o narrador é um ser ficcional que ascendeu à boca do palco para proferir a emissão, para se tornar o agente imediato da voz primeira. Metamorfoseado nele, o autor tem a indumentária necessária para proceder à instauração do universo que tem em vista.

O homem responsável pelo romance, cujo nome aparece na capa, traz a sua face apagada dentro da ficção. Seu rosto está enco-berto pelos véus da mistificação romanesca e seu olhar velado pela perspectiva do narrador que o criou. [...]

Como seu representante e porta-voz, o narrador se torna, então, mais que a personagem fictícia assentada como tal: ele se trans-forma no verbo criador da linguagem, no espírito onisciente e onipresente que cria e governa o mundo romanesco [...] será sempre uma máscara criada, adotada e mantida pelo autor (DALFARRA, 1978, p. 19)

De acordo com o autor que estuda a questão, essa técnica narrativa recebe diferentes denominações: foco narrativo (Brooks e Warren), ponto de vista (Henry James), visão (Jean Pouillon), posição do narrador (Adorno), aspecto da narrativa (Todorov). Outras denominações, como perspectiva, emissão narrativa também denominam o foco narrativo. Todas essas expressões devem significar o ângulo de visão pelo qual a história é vista pelo narrador e a posição através da qual ele faz com que o leitor veja a história.

Henry James foi o primeiro a apontar a importância do ponto de vista como instrumento fundamental na construção da narrativa: ele é o primeiro autor cons-ciente do valor da técnica na ficção e da possibilidade de manipulação do foco narrativo. Há convergências e divergências entre os autores sobre a questão do ponto de vista ou foco narrativo. Não há, no entanto, excelência de uma sobre as outras: todas são encontradas nas diferentes formas de narrativa. Para simpli-ficar a questão, apresentaremos a seguir a classificação de Norman Friedman.

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Friedman, ao tratar do problema do foco narrativo, considera o fato de que o maior feito da técnica novelística foi fazer com que a história se conte por si própria, conduzida através dos personagens e com o progressivo desaparecimento do autor. A partir daí, ele distingue entre contar (telling) e mostrar (showing) na arte narrativa, acusando a tendência, do romance no século XX, para tornar o autor objetivo e apresentar a evolução do enredo e das personagens de forma não opinativa.

Para sintetizar os principais problemas relativos ao assunto, Friedman faz as seguintes perguntas:

quem fala ao leitor?•

de que posição (ou ângulo) narra?•

que canais de informação usa o narrador para levar a história ao leitor?•

a que distância ele coloca o leitor em relação à história?•

A partir dessas perguntas, ele classifica os métodos de transmissão do mate-rial da história da seguinte forma:

onisciência interpretativa (ou onisciência do autor-editor)• : nessa tipo-logia, o narrador se comporta como um deus em seu universo ficcional, uma vez que está em todos os lugares e em todas as épocas. Além disso, conhece o que está dentro das personagens, seu mundo interno e o seu contexto histórico. É uma voz narrativa em terceira pessoa e tem toda a liberdade para narrar, adotando todas as posições possíveis: por dentro ou por fora da personagem ou enquadrando-a em relação aos acontecimentos da narrativa. Tudo conhece e tem a máxima liber-dade para escolher a forma de contar os fatos. Esse narrador pode interferir na história utilizando-se de comentários, às vezes verdadeiros ensaios sobre matéria ficcional, social, etc. Por se intrometer de forma marcante na história que conta, esse narrador recebe uma denomi-nação especial: narrador intruso. Machado de Assis foi, na literatura brasileira, o grande escritor que se valeu desse ângulo de visão.

onisciência neutra• : nessa tipologia, o narrador é onisciente, domina todo o universo ficcional, embora procure criar a ilusão de que não interfere na narrativa. Difere-se do anterior por não fazer intrusões, nem comentários explícitos. Para o leitor, a presença desse narrador de terceira pessoa é evidente, mas ele (o narrador) não interrompe o relato para expor seus pontos de vista críticos. A onisciência neutra deixa no leitor uma impressão de que a história se desenvolve por conta própria. Esse narrador pode ser encontrado nos romances de José de Alencar, tais como: Senhora, Iracema e O Guarani.

o eu como testemunha• : nessa tipologia, o foco narrativo é de primeira pessoa. O narrador é uma personagem de menor relevo, que relata

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fatos ocorridos com a personagem central (ou as personagens centrais). É um foco narrativo mais limitado do que o anterior, pois o narrador só consegue narrar o que viu ou pesquisou, não penetrando na consciência das personagens. As cidades e as serras, de Eça de Queirós, é um exemplo de narrativa construída com esse foco narrativo.

o eu como protagonista• : nessa tipologia, o narrador é o protagonista da ação. Em primeira pessoa, ele conta fatos relacionados com ele mesmo, como os vivencia ou vivenciou. No foco anterior, o narrador podia circular em torno da personagem principal e contextualizar suas ações. Neste, o ponto de vista localiza-se num centro fixo: o da personagem protagonista. Registra suas percepções, sentimentos e pensamentos. O romance Menino de engenho, José Lins do Rego, é um exemplo de narrativa construída com esse foco.

onisciência múltipla seletiva (ou multisseletiva)• : essa tipologia só ocorre no discurso indireto livre. Trata-se de um foco que dramatiza a cons-ciência das personagens: registra suas percepções, pensamentos e sentimentos, como eles estão sendo produzidos, sem utilizar de resumos do narrador. Nos focos de onisciência mencionados anteriormente, o narrador também penetra na consciência das personagens, mas o faz por meio de resumos. O que temos neste foco são cenas interiores das personagens. Recebe a denominação de onisciência porque o narrador penetra no cérebro delas, sem filtrar o que lá encontra: as percepções, pensamentos e sentimentos são registrados como estão sendo produ-zidos, às vezes de forma caótica, sem nenhuma ordenação, como ocorre na forma mais radical de discurso indireto livre, conhecida como fluxo de consciência. Essa onisciência é denominada multisseletiva porque nela identificamos o pensamento de duas ou mais personagens sobre um mesmo assunto: pluralidade de visões das personagens, múltiplas percepções sobre um mesmo tema. O narrador em Clarice Lispector, uma das autoras brasileiras que mais trabalha com o fluxo de consci-ência, é um exemplo dessa tipologia. Veja-se o romance Perto de um coração selvagem.

Saiba mais

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onisciência seletiva• : essa tipologia difere da anterior porque, neste caso, focaliza-se apenas a consciência de uma personagem: o leitor só conhece as percepções, sentimentos e pensamentos dessa personagem. Todos os fatos em torno dela são filtrados por seu ponto de vista. Um exemplo dessa tipologia está no conto Amor, de Clarice Lispector, cujo ponto de vista está centrado na personagem Ana.

o método dramático• : com essa tipologia, desaparece a figura do narrador: lemos o texto como se tivéssemos assistindo a uma peça de teatro, porque aparecem apenas os diálogos entre as personagens. Os marcadores de cena situam essas personagens do espaço. Esse foco narrativo aparece freqüentemente associado a outros focos, constituindo os diálogos da narrativa. Um exemplo dessa tipologia pode ser encon-trado nas crônicas de Fernando Sabino. O homem nu, por exemplo, apresenta várias narrativas com esse foco.

a câmera• : essa tipologia corresponde à maior exclusão do narrador. De acordo com Friedman, esse foco cria a impressão de que o autor desa-pareceu, embora ele esteja por trás dos acontecimentos, focalizando-os como se fosse uma câmera cinematográfica. Com essa tipologia, as narrativas tentam transmitir flashes da realidade, como se apanhados por uma câmera. Um bom exemplo de câmera pode ser encontrado no livro Circuito Fechado, de Ricardo Ramos.

Como as personagens só sobrevivem em um enredo, chegou a hora de nos determos sobre ele.

1.2.3 O enredo

O enredo é o resultado da ação ou da vida das personagens, de suas ações e interações na história. É o conjunto de incidentes que compõe a narra-tiva, organizado em unidade artística e segundo uma arquitetura. É a trama, a intriga, a ação, a fábula: o elemento essencial da narrativa. O autor pode retirá-lo da observação, das recordações do que presenciou ou leu, da simples invenção ou do que lhe é sugerido pelos acontecimentos do cotidiano. “Esse material, o artista [...] o transfigura, criando outra coisa, uma nova realidade.” (COUTINHO, 1978, p. 38).

Os acontecimentos que compõem o enredo se ligam por uma relação causal, direta ou indireta, o nexo lógico que lhe confere unidade. O artista, por meio do seu espírito seletivo, elimina tudo aquilo que possa comprometer essa unidade: só merece permanecer o que for ilustrativo do tema.

Para que haja enredo, não basta a existência de uma simples seqüência de fatos, cronologicamente arranjados: estruturados por um nexo de causa e efeito, como já dissemos anteriormente, os acontecimentos do enredo são inter-relacionados em um todo, implicando uma união estrutural.

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O enredo clássico típico desenvolve-se conforme um esquema estrutural, envolvendo apresentação ou exposição, involução ou complicação, clímax, solução, conclusão ou desenlace. Normalmente, esses elementos se ordenam em seqüência, na ordem apresentada, mas o narrador pode variar essa ordem de várias maneiras, ora começando pela apresentação, ora pelo desenlace e assim sucessivamente. Vamos, agora, conhecer cada um desses elementos da estrutura do enredo clássico?

A apresentação ou exposição • é aquela em que o narrador explica certas circunstâncias da história, apresenta o ambiente e caracteriza as perso-nagens. Pode vir no início da história ou salpicada ao longo dela.

A involução ou complicação • é a fase do enredamento dos fatos, provo-cado, habitualmente, pelo choque entre protagonista e antagonista. É o conflito desencadeador de perturbações na vida das personagens.

O clímax • é o ponto alto da complicação. É ápice da história. O momento culminante de tensão e de suspense. Depois do clímax, não é possível mais continuar: ele pede a solução, aponta para ela. Numa história, pode haver clímax principal e clímaxes secundários ou parciais (refe-rentes a episódios subsidiários ou secundários do enredo).

A solução, desenlace ou conclusão • constitui-se dos acontecimentos que sucedem o clímax, nele estão implícitos e levam a história ao final, quando tudo se esclarece, ao desenrolar o fio da narrativa. É o momento trágico, da morte, das revelações de identidade, da solução dos mistérios, da união dos amantes, da descoberta e eliminação dos vilões, etc.

O enredo acontece em um determinado espaço e em um determinado tempo. Vamos vê-los agora?

1.2.4 O espaço (ou ambiente)

Espaço ou ambiente é o conjunto de elementos materiais ou espirituais que formam o local onde vivem as personagens e se desenvolve a ação. Os elementos que constituem o ambiente podem ser físicos: naturais (a terra, a fauna e a flora, por exemplo); criações humanas (fábricas, cidades, casas, etc.) ou fatores mentais (tradições, costumes, crenças, etc.)

De acordo com a ênfase dada a esse ou àquele fator, a narrativa torna-se pictórica ou de cor local ou regional e de atmosfera. No primeiro caso, predo-minam os elementos físicos (ambientes geográficos, costumes, língua, etc.). No segundo caso, predomina um estado emocional ou intelectual, responsável por um elo indefinível que envolve personagens e acontecimentos.

1.2.5 O tempo

O tempo pode ser identificado em duas perspectivas: os tempos externos à narrativa e os tempos internos à narrativa.

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Tempos externos à narrativa•

Os tempos externos à narrativa são o tempo do escritor, o tempo do leitor e o tempo histórico. O tempo do escritor, tempo histórico de sua vida, interfere na organização da narrativa por meio da presença dos valores de sua época e da mudança desses valores no curso de sua vida. Por exemplo: um autor pode iniciar-se na literatura quando vige um movimento e alcançar sua maturidade quando outro movimento está se estruturando.

O tempo do leitor é o tempo em que ele decodifica a narrativa. Os valores desse tempo fornecem as categorias de análise para decodifi-cação dos textos ficcionais, influenciando-os.

O tempo histórico diz respeito ao tempo em que ocorrem os conflitos narrativos. Quando for a época do escritor, a distância entre seu tempo e o tempo histórico de sua ficção pode ser pequena, uma vez que ele narra fatos situados em sua época e dos quais pode ou não ter uma visão mais amadurecida. Quando o tempo do escritor se refere a acon-tecimentos de outros tempos históricos, a distância, antes pequena, transforma-se num grande distanciamento temporal.

Tempos internos à narrativa•

Os tempos internos à narrativa são o tempo da história e o tempo do discurso. O tempo da história é cronológico: aparece numa sucessão cronológica de eventos, explicitada pelo narrador ou deduzida pelo leitor. Nesse tempo, tem-se a dimensão humana do tempo: além da marcação cronológica, ocorre, freqüentemente, o tempo psicológico: tempo crono-lógico distorcido pelas vivências subjetivas das personagens.

O tempo do discurso é a representação narrativa do tempo da história. Se o texto é escrito, esse tempo aparece de forma linear para o leitor: à medida que ele vai lendo o texto, o tempo vai passando. Para efeito de análise literária, o tempo do discurso pode ser compreendido como o tempo que o leitor leva para ler determinada unidade narrativa: é o tempo de leitura do narratário, leitor ideal a quem se destina a narrativa.

A análise literária de narrativas exige o conhecimento de seus elementos estruturais. Daí a importância de você entrar na intimidade dessas cate-gorias ou conceitos que expusemos anteriormente: analisar uma narra-tiva implica desmontá-la. Para que se possa realizar esse feito, é neces-sário que se conheça seus elementos estruturais.

Nesta aula, conceituamos narrativa e expusemos seus elementos fundamen-tais: personagem, narrador, enredo, espaço e tempo.

1. A narrativa de ficção está dividida em conto, novela e romance, os quais são compostos por elementos estruturais. Marque a alternativa incorreta em relação a esses elementos estruturais da narrativa.

a) Personagem é a pessoa que atua na narrativa e pode ser principal ou secundária.

b) O tempo é entendido como o pano de fundo ou cenário da história.

c) O discurso é o procedimento do narrador ao reproduzir as falas ou o pensamento das personagens.

d) O ponto de vista se refere às diferentes formas de narrar, que são em 1ª ou 3ª pessoa.

2. Nesta aula, quando apresentamos tipologia de personagens, dissemos que a personagem Capitu, de Dom Casmurro, é caracterizada como individual. Leia o texto de Machado de Assis e exponha os motivos pelos quais Capitu é assim caracterizada.

3. Ainda tendo Dom Casmurro como exemplo, qual é o tipo de narrador presente nesta narrativa? Explique.

4. Analise as proposições seguintes, quanto aos elementos da estrutura do enredo clássico:

I. Apresentação ou exposição: parte em que o narrador explica certas circunstâncias da história, apresenta o ambiente e caracteriza as personagens.

II. Involução ou complicação: fase do enredamento dos fatos, provocado, habitualmente, pelo choque entre protagonista e antagonista.

III. Clímax: é o ponto alto da complicação. É ápice da história. O momento culminante de tensão e de suspense.

IV. Solução, desenlace ou conclusão: é o momento trágico, da morte, das revelações de identidade, da solução dos mistérios, da união dos amantes, da descoberta e eliminação dos vilões.

Marque a seqüência correta:

a) V, V, V, V

b) V, V, F, F

c) V, F, F, F

d) F, F, F, F

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aula 1 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 285

1. A narrativa de ficção está dividida em conto, novela e romance, os quais são compostos por elementos estruturais. Marque a alternativa incorreta em relação a esses elementos estruturais da narrativa.

a) Personagem é a pessoa que atua na narrativa e pode ser principal ou secundária.

b) O tempo é entendido como o pano de fundo ou cenário da história.

c) O discurso é o procedimento do narrador ao reproduzir as falas ou o pensamento das personagens.

d) O ponto de vista se refere às diferentes formas de narrar, que são em 1ª ou 3ª pessoa.

2. Nesta aula, quando apresentamos tipologia de personagens, dissemos que a personagem Capitu, de Dom Casmurro, é caracterizada como individual. Leia o texto de Machado de Assis e exponha os motivos pelos quais Capitu é assim caracterizada.

3. Ainda tendo Dom Casmurro como exemplo, qual é o tipo de narrador presente nesta narrativa? Explique.

4. Analise as proposições seguintes, quanto aos elementos da estrutura do enredo clássico:

I. Apresentação ou exposição: parte em que o narrador explica certas circunstâncias da história, apresenta o ambiente e caracteriza as personagens.

II. Involução ou complicação: fase do enredamento dos fatos, provocado, habitualmente, pelo choque entre protagonista e antagonista.

III. Clímax: é o ponto alto da complicação. É ápice da história. O momento culminante de tensão e de suspense.

IV. Solução, desenlace ou conclusão: é o momento trágico, da morte, das revelações de identidade, da solução dos mistérios, da união dos amantes, da descoberta e eliminação dos vilões.

Marque a seqüência correta:

a) V, V, V, V

b) V, V, F, F

c) V, F, F, F

d) F, F, F, F

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aula 1 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

286 3º PerÍODO • letras • unitins

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (b) você acertou, porque o espaço e não o tempo é que é entendido com o cenário da história.

Na atividade dois, após a leitura de Dom Casmurro, perceberá que Capitu é classificada como personagem individual porque é a que se destaca na narra-tiva, possui caracteres pessoais que a distinguem e a isolam das demais.

Na atividade três, você identificará que a narrativa é em primeira pessoa. O narrador abandona a visão macrocóspica do Universo e privilegia a visão microscóspica para que, partindo do indivíduo para mostrar as mazelas da sociedade oitocentista burguesa.

Na atividade quatro, se você marcou a alternativa (a), acertou: todas as assertivas relacionadas à estrutura clássica do enredo.

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. 3. ed. São Paulo: FTD, 1994.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2000.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

CINTRA, Ismael Ângelo. O foco narrativo na ficção: uma leitura de Nove Novena de Osman Lins. Dissertação (Mestrado na Área de Teoria Literária e Literatura Comparada) – Departamento de Lingüística e Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1978.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

DALFARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira. São Paulo: Ática, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

O assunto da próxima aula será a narrativa curta (conto), gênero literário muito apreciado na atualidade.

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aula 1 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 287

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

O assunto da próxima aula será a narrativa curta (conto), gênero literário muito apreciado na atualidade.

Anotações

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aula 1 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

288 3º PerÍODO • letras • unitins

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos do conto;•

construir seu próprio conceito de conto.•

Para que você possa compreender melhor esta aula, reveja a aula anterior que trata dos elementos estruturais da narrativa, uma vez que eles fazem parte do conto. Compreendendo-os bem, fica mais fácil de perceber o que é o conto. Recorra, também, à memória de suas leituras: com certeza você já leu muitos contos. As conversas de boca de noite, na calçada, estão cheias de narrativas que se enquadram na categoria do conto. Rememore algumas dessas conversas, isso será importante para melhor compreensão desta aula.

Como acontece com os outros gêneros narrativos, conceituar o conto não é tarefa fácil, mesmo porque os gêneros literários são históricos, portanto, transi-tórios e vinculados às vicissitudes do momento sócio-histórico em que são produ-zidos. Tanto é assim que Mário de Andrade, um dos expoentes do Modernismo Brasileiro, disse, em uma certa oportunidade, que conto é tudo aquilo que o autor chama de conto. Com essa afirmação, o poeta está evidenciando a dificul-dade de se dizer o que é um conto.

Mas apesar de sua condição de artefato histórico, o conto possui algumas características que se perpetuam no tempo, conferindo-lhe uma estrutura básica capaz de delimitar as fronteiras entre esse gênero e os demais gêneros narrativos.

Para que você possa entender melhor esse recorte acerca do conto, leia a narrativa que segue.

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 289

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos do conto;•

construir seu próprio conceito de conto.•

Para que você possa compreender melhor esta aula, reveja a aula anterior que trata dos elementos estruturais da narrativa, uma vez que eles fazem parte do conto. Compreendendo-os bem, fica mais fácil de perceber o que é o conto. Recorra, também, à memória de suas leituras: com certeza você já leu muitos contos. As conversas de boca de noite, na calçada, estão cheias de narrativas que se enquadram na categoria do conto. Rememore algumas dessas conversas, isso será importante para melhor compreensão desta aula.

Como acontece com os outros gêneros narrativos, conceituar o conto não é tarefa fácil, mesmo porque os gêneros literários são históricos, portanto, transi-tórios e vinculados às vicissitudes do momento sócio-histórico em que são produ-zidos. Tanto é assim que Mário de Andrade, um dos expoentes do Modernismo Brasileiro, disse, em uma certa oportunidade, que conto é tudo aquilo que o autor chama de conto. Com essa afirmação, o poeta está evidenciando a dificul-dade de se dizer o que é um conto.

Mas apesar de sua condição de artefato histórico, o conto possui algumas características que se perpetuam no tempo, conferindo-lhe uma estrutura básica capaz de delimitar as fronteiras entre esse gênero e os demais gêneros narrativos.

Para que você possa entender melhor esse recorte acerca do conto, leia a narrativa que segue.

O conto

Aula 2

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

290 3º PerÍODO • letras • unitins

2.1 No moinho, Eça de Queirós

O conto que apresentaremos pertence ao escritor realista português Eça de Queirós, autor de obras-primas muito conhecidas pelos brasileiros, como O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro e Os Maias. Você conhecerá esse romancista com mais profundidade numa disciplina que vem por aí: Literatura Portuguesa: do realismo à contemporaneidade.

D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como “uma senhora modelo”. O velho Nunes, diretor do correio, sempre que se falava nela, dizia, acari-ciando com autoridade os quatro pêlos da calva:

– A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes também à janela murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido na robe-de-chambre, com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre. Andava-se nas pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insônias, irritava-se com o menor rumor; havia sobre as cômodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma amarelidão de hospital.

Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido, decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai,

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 291

ficara rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na. Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.

Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos chora-mingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranqüila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar a outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esforço lhe era fácil quando era para os contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insônias do marido não dormia também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca, com os bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única distração era à tarde sentar-se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda aninhada no chão, brincando tristemente. A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: embaixo a estrada, depois uma ondu-lação de campos, uma terra magra plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno pobre uma nota humana e viva.

Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata; todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do Céu: naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel do seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para amar toda uma humanidade pronta. Além disso, nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam à devoção. O seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o amparo daqueles inválidos, tornara-a terna, mas prática: e assim era ela que administrava agora a casa do marido, com um bom senso que a afeição dirigira, uma solicitude de mãe próvida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

292 3º PerÍODO • letras • unitins

dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comisera-ções de cerimônia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à família, a não ser a do Dr. Abílio – que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados:

– É uma fada! é uma fada!...Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma

carta de seu primo Adrião, que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido da Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinara mesmo um jornal de Lisboa, só para ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o seu último livro, Madalena, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e sutil, consagrara-o como um mestre. A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.

D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros esforços cruéis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada duma profanação. Foi por isso um alívio, quase um reconheci-mento, quando Adrião chegou e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se: tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cômoda, e queria-o todo para si, o primo, o homem célebre, o grande autor... Adrião, porém recusou:

– Eu tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos, hem?... o que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no tio André... Vejo da janela um moinho e uma represa que são um quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade?

Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples, – muito menos complicado, menos espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abominavelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava além disso mal arrendada... o que ele desejava era vendê-la. Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com

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unitins • letras • 3º PerÍODO 293

os proprietários da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo rábula!...

– Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço, deixa-a a ela!...

– Mas que superioridade, prima! – exclamou Adrião maravilhado. – Um anjo que entende de cifras!

Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra dum homem. De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...

No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, Acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o contato daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a singu-larmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido – e a conversa de Adrião foi-a lentamente acostumando à sua presença.

Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida diversa daquele abafa-mento de alcova...

Ela também assim o julgava: mas quê! o pobre João, sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a natureza forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama...

Ele então lamentou-a. decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão santamente cumprido... Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo de doença...

– Que hei-de eu desejar mais? – disse ela.

Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambi-ções do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria – que falou da paisagem...

– Já viu o moinho? – perguntou-lhe ela.

– Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima.

– Hoje é tarde.

Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila.

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294 3º PerÍODO • letras • unitins

Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã punha entre eles como que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dele, dum respeito tocante, uma atração que a seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma dor – a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente, desde que ele se tornava assim depositário das suas tristezas.

Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André, impressionado, interes-sado por aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil suave de ano gótico entre fisionomias da mesa redonda. Tudo nela concordava deliciosamente: o ouro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota gros-seira e estava por muitos lados preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade...

Achava absurdo e infame fazer a corte à prima... Mas involuntáriamente pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava.

O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era dum alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel sobre a gelada limpidez da água escura. Adrião achou-o digno duma cena de romance, ou, melhor, da morada duma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abando-nado do tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram um momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil, um pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, duma linha tão pura, sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado, mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor isolava-os – e, insensivel-mente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixão pela melancolia

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unitins • letras • 3º PerÍODO 295

da sua existência naquela triste vila, pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.

– Ficar aqui? Para quê? – perguntou ela, sorrindo.

– Para quê? para isto, para estar sempre ao pé de si...

Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo:

– Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia...

Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha.

– E eu venho ajudá-lo, primo! – disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria daquele homem a seu lado.

– Vem? – exclamou ele. – Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso, nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo cantar esses melros!

Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arreba-tá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela idéia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele escon-derijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na relva à beira da água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida dos céus negros de verão...

E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, dum só beijo profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:

– É malfeito... É malfeito...

Ele mesmo estava tão perturbado – que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou:

– Fui um tolo!

Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi à casa dela: encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malva as feridas que ele tinha na perna. E então, pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na diligência: encontrou-a na sala, à janela costu-

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mada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela escondendo a face dos pequenos, olhando abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura...

Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica; e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios. Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da natureza que atravessava, sùbitamente, a sua alcova abafada: e ela respirava-a deliciosamente... Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno, duma ternura varonil e forte, para a cativar... Esse amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta idéia, esta visão: – Se ele fosse meu marido! Toda ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo-se com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refu-giando-se na sua força... Depois ele deu-lhe aquele beijo no moinho.

E partira!

Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela – a doença do marido, achaques dos filhos, tristezas do seu dia, a sua costura – lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como desgraça excepcional: não se revoltava ainda: mas tinha desses abati-mentos, dessas súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sobre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando:

– Quando se acabará isto?

Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa. Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara, e morrera dum abandono. Essas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas.

Lentamente, essa necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A

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realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimen-tais do seu livro, para ir ajudar a voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...

O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas noites cálidas em que não podia dormir – dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.

Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...

E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro.

A Santa tornava-se Vênus.

E o romanticismo mórbido tinha penetrado naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços: – e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.

Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora, deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe – para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.

Agora que você fez a leitura de reconhecimento do conto, releia-o, devagar, buscando perceber que ele não trata da vida como totalidade, mas de um instante dela. Essa característica é o eixo estruturador do conto. Voltaremos a ela mais adiante.

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2.2 O vocábulo conto

Na língua portuguesa, a palavra conto possui várias acepções. Na acepção literária, que nos interessa neste material, significa história, narrativa, histo-rieta, fábula, caso; embuste, engodo, mentira (conto do vigário). A origem desse vocábulo remontaria ao latim commentu, que significa invenção, ficção. Admite-se, ainda, que o vocábulo conto deriva do verbo contar, originário do latim computare.

Na Idade Média, conto significou enumeração de objetos, com o passar do tempo, resenha ou descrição de acontecimentos, relato, narrativa. No século XVI, o vocábulo assumiu sentido próprio: foi quando surgiu o primeiro contista português na acepção moderna do termo: Gonçalo Fernandes Trancoso, autor de Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575).

No século XVIII, o conto se confundiu com a novela e o romance, por causa das ambigüidades decorrentes da polissemia do vocábulo, e, mesmo quando se referia ao conto literário, guardava um sentido pejorativo que avançou até meados do século XIX.

Durante o movimento romântico, a palavra conto era empregada no sentido de narrativa popular, fantástica e inverossímil.

A palavra “conto” corresponde a conte, em francês e cuento, em espanhol. Em língua inglesa, a expressão short story designa as narrativas de caráter lite-rário, e tale, os contos populares e folclóricos. Em italiano, novelle, para conto literário e racconto, para conto popular.

2.3 Aspectos históricos do conto

A história do conto mergulha suas raízes em um passado remoto e difícil de precisar. Sua prática é tão antiga que nos permite imaginá-lo contemporâneo ou precursor das primeiras manifestações literárias de caráter narrativo.

Algumas teorias tentaram explicar a gênese do conto: a indo-européia ou mítica, a etnográfica, a ritualista e a marxista. Vamos conhecer cada uma delas?

Teoria indo-européia ou mítica (Irmãos Grimm)• : segundo essa teoria, a origem do conto deve ser buscada nos mitos arianos, que circularam na pré-história da Índia, tida como nascedouro do povo indo-europeu.

Teoria etnográfica (Andrew Lang)• : segundo essa teoria, o conto, além de ser uma forma anterior aos mitos, teria nascido ao mesmo tempo em várias culturas, geograficamente afastadas.

Teoria ritualista (Paul Saintyves)• : segundo essa teoria, as personagens dos contos decorrem da lembrança de personagens cerimoniais de ritos populares esquecidos.

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 299

Teoria marxista (Vladmir Propp)• : segundo essa teoria, o conto maravilhoso é uma superestrutura e sua análise permite reconhecer sinais dos modos de produção e dos regimes políticos que assistiram ao seu aparecimento.

Todas essas teorias são relativas, incompletas, insatisfatórias e vêm sendo substituídas por uma visão mais flexível. De acordo com essa visão, as raízes históricas do conto são um conjunto de pequenas raízes e seu universo ramifica-se em uma infinidade de tradições heterogêneas.

2.4 Conceituando conto

O conto é uma narrativa curta. Sua característica central é a conden-sação. Esse gênero narrativo condensa conflito, tempo e espaço. Além disso, reduz o número de personagens. Uma vez que foi adotado por muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire, o conto é considerado como um tipo de narrativa tradicional. Na atualidade, vem adquirindo carac-terísticas diferentes, como deixar de lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou psicológico na elaboração do enredo. O conto pode abordar qualquer tipo de tema.

De acordo com Massaud Moisés (2001, p. 37),

O conto é, do prisma de sua história e de sua essência, a matriz da novela e do romance, mas isso não significa que deva poder, necessariamente, transformar-se neles. Como a novela e o romance, é irreversível: jamais deixa de ser conto a narrativa que como tal se engendra, e a ele não pode ser reduzido nenhum romance ou novela. [...] a narrativa passível de ampliar-se e adaptar-se a esquema diverso daquele em que foi concebida, não pode ser classificada de conto, ainda que o seu autor a consi-dere, impropriamente, como tal.

Do ângulo dramático, o conto é unívoco e univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, uma vez que gravita ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. A característica fundamental do conto é a unidade de ação. Dela derivam as demais: unidade de espaço, unidade de ação, unidade de tempo, número reduzido de personagens, diálogo dominante, descrição breve ou inexistente, narração tendente à brevidade e dissertação. A dissertação fez-se presente até o século XIX, mas tende a anular-se na modernidade.

A boa compreensão da unidade dramática que identifica o conto exige que se leve em conta que seus ingredientes convergem para um mesmo ponto:

A existência de uma única ação, ou conflito, ou ainda de uma única “história” ou “enredo”, está intimamente relacionada com a concentração de efeitos e de pormenores: o conto aborrece as digressões, as divagações, os excessos. Ao contrário: cada palavra ou frase há de ter sua razão de ser na economia global da narrativa, a ponto de, em tese, não se poder substituí-la ou

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

300 3º PerÍODO • letras • unitins

alterá-la sem afetar o conjunto. Para tanto, os ingredientes narra-tivos galvanizam-se numa única direção, ou seja, em torno de um único drama ou ação. (MOISÉS, 2001, p. 41)

O conto é um recorte da fração mais decisiva e mais importante de uma continuidade vital. Por isso, os protagonistas saem do anonimato no momento privilegiado. Dessa forma, o tempo anterior funciona, quando muito, como germe ou preparativo do instante usado pelo destino para um grande acontecimento. O tempo subseqüente, por sua vez, apresenta-se como um futuro previsível, uma vez toda a ação dramática preparada culmina num grande desenlace, e depois dele tudo desaparece, nada mais faz sentido. “De onde o conto ser, a essa luz, obra fechada, dramaticamente circunscrita.” (MOISÉS, 2001, p. 42).

A vida da personagem Maria da Piedade do conto O Moinho, anterior ao recorte dado pelo narrador serve apenas para justificar as razões de seu ato; após o quê, tudo desaparece, nada mais fazendo sentido: o foco da narrativa é o momento da virada da personagem. Tudo que vem antes e depois serve apenas para iluminar esse momento.

Sintetizando sua caracterização do conto, Moisés (2001, p. 49) afirma que:

[...] o núcleo do conto é representado por uma situação drama-ticamente carregada; tudo o mais à volta funciona como um satélite, elemento de contraste, sem força dramática. Por outras palavras, o conto se organza precisamente como uma célula, com o núcleo e o tecido ao redor; o núcleo possui densidade dramática, enquanto a massa circundante existe em função dele, para que sua energia se expanda e sua tarefa se cumpra.

A articulação ou desarticulação entre o núcleo dramático e seu envoltório não-dramático responde pelo êxito ou pelo insucesso do conto. O que importa no conto são as personagens em conflito, o espaço onde o drama se desenrola e assim, sucessivamente. Tanto o núcleo dramático, quanto o envoltório não-dramático do conto formam-se dos mesmos materiais narrativos: personagem, ação, espaço, tempo, enredo e foco narrativo.

2.5 Classificação do conto

O conto, de acordo com o predomínio de um dos seus elementos estruturais, pode ser classificado em: conto de ação, conto de personagem, conto de cenário ou atmosfera, conto de idéia e conto de emoção, geralmente mesclado ao de idéia. Retorne à aula um e reveja o que falamos sobre isso, quando tratamos dos elementos estruturais da narrativa.

Conto de ação• : mais comum, este tipo de conto foca a ação e caracte-riza-se pela linearidade.

Conto de personagem• : menos freqüente, o narrador foca sua atenção no protagonista que em geral é uma personagem plana.

Conto de cenário ou atmosfera• : menos freqüente ainda, esse tipo de conto tende a gravitar em redor de determinados objetos, a ênfase dramática recai sobre o cenário, o ambiente, transformando-o em protagonista.

Conto de idéia• : neste tipo de conto, as idéias se materializam nas perso-nagens, combinando idéias aos elementos estruturantes da narrativa.

Conto de emoção• : o intuito do narrador é produzir emoção, seja por meio de assombramentos, espanto ou surpresa.

As idéias e conceitos que informam o conto podem ser apresentados num gráfico, adaptado de Moisés (2001):

Nesta aula, conceituamos o gênero narrativo conto, evidenciando sua unidade como uma das características mais importantes desse gênero.

1. Marque a alternativa em que há somente elementos estruturais do conto:

a) personagem, enredo, catarse, ponto de vista, tempo, ambiente (ou espaço), discurso, linguagem;

b) personagem, enredo, ambiente (ou espaço), tempo, ponto de vista, discurso, linguagem e estilo;

c) personagem, enredo, tempo, conto, ponto de vista, discurso, novela, narrador, linguagem e estilo;

d) enredo, tempo, ponto de vista, ambiente (ou espaço), autor, romance, discurso, linguagem e estilo.

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 301

Conto de cenário ou atmosfera• : menos freqüente ainda, esse tipo de conto tende a gravitar em redor de determinados objetos, a ênfase dramática recai sobre o cenário, o ambiente, transformando-o em protagonista.

Conto de idéia• : neste tipo de conto, as idéias se materializam nas perso-nagens, combinando idéias aos elementos estruturantes da narrativa.

Conto de emoção• : o intuito do narrador é produzir emoção, seja por meio de assombramentos, espanto ou surpresa.

As idéias e conceitos que informam o conto podem ser apresentados num gráfico, adaptado de Moisés (2001):

Nesta aula, conceituamos o gênero narrativo conto, evidenciando sua unidade como uma das características mais importantes desse gênero.

1. Marque a alternativa em que há somente elementos estruturais do conto:

a) personagem, enredo, catarse, ponto de vista, tempo, ambiente (ou espaço), discurso, linguagem;

b) personagem, enredo, ambiente (ou espaço), tempo, ponto de vista, discurso, linguagem e estilo;

c) personagem, enredo, tempo, conto, ponto de vista, discurso, novela, narrador, linguagem e estilo;

d) enredo, tempo, ponto de vista, ambiente (ou espaço), autor, romance, discurso, linguagem e estilo.

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

302 3º PerÍODO • letras • unitins

2. No início desta aula, citamos o conto No Moinho, do escritor português Eça de Queirós. Releia-o. Agora escreva um texto expondo o que faz do texto um conto.

3. Ainda sobre o conto No Moinho, procure caracterizar suas personagens. Se achar necessário, recorra à tipologia estudada na aula anterior.

4. Analise as assertivas seguintes quanto à origem histórica do conto, depois marque a alternativa correta:

I. A teoria indo-européia ou mítica é atribuída aos Irmãos Grimm e defende que a origem do conto deve ser buscada nos mitos arianos.

II. A teoria etnográfica é atribuída a Andrew Lang e defende que o conto teria nascido ao mesmo tempo em várias culturas, geograficamente afastadas.

III. A teoria ritualista é atribuída a Paul Saintyves e defende que as perso-nagens dos contos decorrem da lembrança de personagens cerimoniais de ritos populares esquecidos.

IV. Para a teoria marxista, atribuída a Vladmir Propp, o conto maravilhoso é uma superestrutura e sua análise permite reconhecer sinais dos modos de produção e dos regimes políticos que assistiram ao seu aparecimento.

a) I, II, III e IV estão corretas;

b) I, II, III e IV estão erradas;

c) somente I e II estão corretas;

d) somente III e IV estão corretas.

Na atividade um, se você marcou a alternativa (b) respondeu correto. Na alternativa (a), o elemento catarse não pertence aos elementos estruturais; na alternativa (c), o elemento conto não é um elemento estrutural; na alternativa (d), o item autor é o que não pertence.

Na atividade dois, você perceberá, na leitura de No Moinho, ele não trata da vida como totalidade, mas de um instante dela: um recorte da vida de Maria da Piedade. Além disso, a narrativa breve é elaborada com poucos persona-gens, unidade de ação, unidade de enredo e unidade de tempo: elementos característicos do gênero narrativo conto.

Na atividade três, você deverá recorrer à tipologia de personagens estu-dada na aula anterior, para que possa classificar as personagens em planas, redondas, protagonistas, antagonistas ou secundárias.

Na atividade quatro, se você marcou a alternativa (a), respondeu correta-mente: todas as afirmações estão corretas.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2000.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspec- tiva, 2000.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

DALFARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira. São Paulo: Ática, 1978.

FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

GOTILIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 10. ed. São Paulo: Ática, 2001.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

QUEIRÓS, Eça de. Contos. Porto: Lello & Irmão, [s/d].

Estudaremos a novela, gênero narrativo intermediário entre o conto e o romance.

Page 35: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 303

Na atividade quatro, se você marcou a alternativa (a), respondeu correta-mente: todas as afirmações estão corretas.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2000.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspec- tiva, 2000.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

DALFARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira. São Paulo: Ática, 1978.

FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

GOTILIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 10. ed. São Paulo: Ática, 2001.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

QUEIRÓS, Eça de. Contos. Porto: Lello & Irmão, [s/d].

Estudaremos a novela, gênero narrativo intermediário entre o conto e o romance.

Anotações

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aula 2 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

304 3º PerÍODO • letras • unitins

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos da novela;•

construir seu próprio conceito de novela.•

Para que você possa compreender melhor esta aula, é importante que você, a exemplo da aula anterior, rememore leituras de textos literários e esta-beleça vinculação entre novela e folhetim, para que você possa perceber a questão da linearidade ou horizontalidade que caracteriza essa modalidade de narrativa, permitindo que ela, inicialmente, aparecesse em jornais sobre a forma de folhetim.

Ver telenovela também ajuda a compreender o tema desta aula, particular-mente pela rapidez que caracteriza a ocorrência dos fatos.

Conforme afirmamos na aula anterior, conceituar novela não é simples: os gêneros literários são históricos, transitórios e vinculados a um momento sócio-histórico em que são produzidos. Mas apesar de sua condição de artefato histó-rico, a novela, assim como o conto, possui algumas características que sobre-vivem ao tempo, o que lhe confere estrutura básica, por meio da qual podemos identificar as fronteiras entre esse gênero e os demais.

A melhor maneira de familiarização com um gênero narrativo passa pela leitura dele: a teoria surge depois da obra. Ler a obra é sensibilizar-se para a percepção de seus elementos fundantes. Por isso, é importante que você leia o capítulo a seguir da novela Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

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aula 3 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 305

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos da novela;•

construir seu próprio conceito de novela.•

Para que você possa compreender melhor esta aula, é importante que você, a exemplo da aula anterior, rememore leituras de textos literários e esta-beleça vinculação entre novela e folhetim, para que você possa perceber a questão da linearidade ou horizontalidade que caracteriza essa modalidade de narrativa, permitindo que ela, inicialmente, aparecesse em jornais sobre a forma de folhetim.

Ver telenovela também ajuda a compreender o tema desta aula, particular-mente pela rapidez que caracteriza a ocorrência dos fatos.

Conforme afirmamos na aula anterior, conceituar novela não é simples: os gêneros literários são históricos, transitórios e vinculados a um momento sócio-histórico em que são produzidos. Mas apesar de sua condição de artefato histó-rico, a novela, assim como o conto, possui algumas características que sobre-vivem ao tempo, o que lhe confere estrutura básica, por meio da qual podemos identificar as fronteiras entre esse gênero e os demais.

A melhor maneira de familiarização com um gênero narrativo passa pela leitura dele: a teoria surge depois da obra. Ler a obra é sensibilizar-se para a percepção de seus elementos fundantes. Por isso, é importante que você leia o capítulo a seguir da novela Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

A novela

Aula 3

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aula 3 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

306 3º PerÍODO • letras • unitins

3.1 Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida

Publicado em forma de folhetim no Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853, e transformado em livro nos anos de 1854 e 1855, Memórias de um sargento de milícias apresenta uma história que gira, inicialmente, ao redor dos amores e aventuras de Leonardo Pataca, durante a primeira vintena do século XIX. Leia os capítulos que apresentaremos a seguir, dando atenção à ação (enredo), tempo, espaço, personagens e ponto de vista. É bom que você comece a observar, a partir de agora, os recursos técnicos: o diálogo, a descrição, a narração e a dissertação.

IV FORTUNA

Enquanto o compadre, aflito, procura por toda a parte o menino, sem que ninguém possa dar-lhe novas dele, vamos ver o que é feito do Leonardo, e em que novas alhadas está agora metido.

Lá para as bandas do mangue da Cidade Nova havia, ao pé de um charco, uma casa coberta de palha da mais feia aparência, cuja frente suja e testada enlameada bem devotavam que dentro o asseio não era muito grande. Compunha-se ela de uma pequena sala e um quarto; toda a mobília eram dois ou três assentos de paus, algumas esteiras em um canto, e uma enorme caixa de pau, que tinha muitos empregos; era mesa de jantar, cama, guarda-roupa e prateleira. Quase sempre estava essa casa fechada, o que a rodeava de um certo mistério. Esta sinistra morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável; era um caboclo velho, de cara hedionda e imunda, e coberto de farrapos. Entretanto, para a admiração do leitor, fique-se sabendo que este homem tinha por ofício dar fortuna 4!

Naquele tempo acreditava-se muito nestas coisas, e uma sorte de respeito supers-ticioso era tributado aos que exerciam semelhante profissão. Já se vê que inesgotável mina não achavam nisso os industriosos! E não era só a gente do povo que dava crédito às feitiçarias; conta-se que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar venturas e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições. Pois ao nosso amigo Leonardo tinha-lhe também dado na cabeça tomar fortuna, e tinha isso por causa das contrariedades que sofria em uns novos amores que lhe faziam agora andar a cabeça à roda.

Tratava-se de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixão-zinha. Como o ofício rendia, e ele andava sempre apatacado, não lhe fora difícil conquistar a posse do adorado objeto; porém a fidelidade, a unidade no gozo, que era o que sua alma aspirava, isso não o pudera conseguir: a cigana tinha pouco mais ou menos sido feita no mesmo molde da saloia. Por toda a parte há sargentos,

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aula 3 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 307

colegas e capitães de navios; a rapariga tinha-lhe já feito umas poucas, e acabava também por fugir-lhe de casa. Desta vez porém, como não eram saudades da pátria a causa desta fugida, o Leonardo decidira haver de novo e por todos os meios a posse de sua amada. Encontrou-a com pouco trabalho, e empregando o pranto, as súplicas, as ameaças, porém tudo embalde, decidiu por isso a buscar com meios sobrenaturais o que os meios humanos lhe não tinham podido dar.

Entregou-se portanto em corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, o mais afamado de todos os do ofício. Tinha-se já sujeitado a uma infinidade de provas, que começavam sempre por uma contribuição pecuniária, e ainda nada havia conse-guido; tinha sofrido fumigações de ervas sufocantes, tragado beberagens de mui enjoativo sabor; sabia de cor milhares de orações misteriosas, que era obrigado a repetir muitas vezes por dia; ia depositar quase todas as noites em lugares determi-nados quantias e objetos com o fim de chamar em auxílio, dizia o caboclo, as suas divindades; e apesar de tudo a cigana resistia ao sortilégio.

Decidiu-se finalmente a sujeitar-se à última prova, que foi marcada para a meia-noite em ponto na casa que já conhecemos. À hora aprazada lá se achou o Leonardo; encontrou na porta o nojento nigromante, que não consentiu que ele entrasse do modo em que se achava, e obrigou-o a pôr-se primeiro em hábitos de Adão no paraíso, cobriu-o depois com um manto imundo que trazia, e só então lhe franqueou a entrada.

A sala estava com um aparato ridiculamente sinistro, que não nos cansaremos em descrever; entre outras coisas, cuja significação só conheciam os iniciados nos misté-rios do caboclo, havia no meio uma pequena fogueira. Começando a cerimônia o Leonardo foi obrigado a ajoelhar-se em todos os ângulos da casa, e recitar as orações que já sabia e mais algumas que lhe foramensinadas na ocasião, depois foi orar junto da fogueira. Neste momento saíram do quarto três novas figuras, que vieram tomar parte na cerimônia, e começaram então, acompanhando-os o supremo sacerdote, uma dança sinistra em roda do Leonardo. De repente sentiram bater levemente na porta da parte de fora, e uma voz descansada dizer:

— Abra a porta.

— O Vidigal! disseram todos a um tempo, tomados do maior susto.

V O VIDIGAL

O som daquela voz que dissera “abra a porta” lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e idéias da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie

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de inquirição policial. Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado.

Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.

Uma companhia ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele escolhia nos corpos que haviam na cidade, armados todos de grossas chibatas, comandada pelo major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e toda a mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma façanha do Sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um vaga-bundo. A sua sagacidade era proverbial, e por isso só o seu nome incutia grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de falcatruas.

Se no meio da algazarra de um fado rigoroso, em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados, ouvia-se dizer “está aí o Vidigal”, muda-vam-se repentinamente as cenas; serenava tudo em um momento, e a festa tomava logo um aspecto sério. Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não gozava de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola a tiracolo, caminhando em busca de súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente “venha cá; onde vai?” o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza não escapava por outro meio de alguns dias de cadeia, ou pelo menos da casa da guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio às costas, como conseqüência necessária.

Foi por isso que os nossos mágicos e a sua infeliz vítima puseram-se em debandada mal conheceram pela voz quem se achava com eles. Quiseram escapar-se pelos fundos da casa, porém ela estava toda cercada de granadeiros, em cujas mãos se viam a arma de que acima falamos. A porta abriu-se sem muita resistência, e o major Vidigal (porque era com efeito ele) com os seus granadeiros achou-os em flagrante delito de nigromancia: estava ainda acesa a fogueira, e os mais objetos que serviam ao sacrifício.

— Oh! disse ele, por aqui dá-se fortuna...

— Sr. major, pelo amor de Deus...

— Eu tinha desejos de ver como era isso; continuem... sem cerimônia, vamos.

Os infelizes hesitaram um pouco, porém vendo que resistir seria inútil, come-çaram de novo as cerimônias, de que os soldados se riam, antevendo talvez qual seria o resultado. O Leonardo estava corrido de vergonha, tanto mais porque o Vidigal o conhecia; e procurava cobrir-se do melhor modo com a sua imunda capa. Ajoelhou-se quase arrastado outra vez no mesmo lugar; e recomeçou a dança, a que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento. Quando os sacrifi-cadores, julgando que já tinham dançado suficientemente, tentaram parar, o major disse brandamente:

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unitins • letras • 3º PerÍODO 309

— Continuem.

Depois de muito tempo quiseram parar de novo.

— Continuem, disse outra vez o major.

Continuaram por mais meia hora; passado esse tempo, já muito cansados, tentaram dar fim.

— Ainda não; continuem.

Continuaram por tempos esquecidos, já estavam que não podiam de estafados; o nosso Leonardo, ajoelhado ao pé da fogueira, quase que se desfazia em suor. Afinal o major deu-se por satisfeito, mandou que parassem, e sem se alterar disse para os soldados, com a sua voz doce e pausada:

— Toca, granadeiros.

A esta voz todas as chibatas ergueram-se, e caíram de rijo sobre as costas daquela honesta gente, fizeram-na dançar, e sem querer, ainda por algum tempo.

— Pára, disse o major depois de um bom quarto de hora.

Começou então a fazer a cada um um sermão, em que se mostrava muito sentido por ter sido obrigado a chegar àquele excesso, e que terminava sempre por esta pergunta:

— Então você em que se ocupa?

Nenhum deles respondia. O major sorria-se e acrescentava com riso sardônico:

— Está bom!

Chegou a vez do Leonardo.

— Pois homem, você, um oficial de justiça, que devia dar o exemplo...-Sr. major, respondeu ele acabrunhado, é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo isto; já não sei de que meios use...

— Você há de ficar curado! Vamos para a casa da guarda.

Com esta última decisão o Leonardo desesperou. Perdoaria de bom grado as chibatadas que levara, contanto que elas ficassem em segredo; mas ir para a casa da guarda, e dela talvez para a cadeia... isso é que ele não podia tolerar. Rogou ao major que o poupasse; o major foi inflexível. Desfez então a vergonha em pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer.

A casa da guarda era no largo da Sé; era uma espécie de depósito onde se guardavam os presos que se faziam de noite, para se lhes dar depois conveniente destino. Já se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade tudo que se tinha passado na noite antecedente.

Aí esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã, exposto à vistoria dos curiosos. Por infelicidade sua passou por acaso um colega, e vendo-o entrou para falar-lhe, isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo, e já se preparava para

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dar-lhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi mandado para a cadeia.

Aparentemente os companheiros mostraram-se sentidos, porém secretamente não deixaram de estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado, e enquanto estava ele preso as partes os procuravam.

Você poderá ler o texto integralmente em: <http://www.culturatura.com.br/obras/MemoriasdeumSargentodeMilicias.pdf> ou em: <www.dominiopublico.gov.br>.

3.2 O vocábulo “novela”

A palavra “novela” vem do italiano novella, originária da Provença: novas novelas. Na região da Provença, novela significava relato, comunicação, notícia, novidade. Mas a raiz etimológica da palavra novela estaria no latim: novella, novellus, novella novellum. Do sentido primeiro de jovem, novo, recente, o vocá-bulo substantivou-se e adquiriu várias significações: chiste, gracejo, enredo, narrativa e novela.

Com esse significado, chegou a outras línguas. Em português, o termo circula na acepção de engano, embuste, mentira, mas, de modo geral, designa uma história fictícia, longa, desencadeando emoções fáceis. No campo dos estudos literário, é empregado para designar narrativas com mais de cem e menos de duzentas páginas.

3.3 Aspectos históricos da novela

A novela já era cultivada, de forma embrionária, na Antiguidade greco-latina, quando se mesclava o relato verídico ao fantástico ou mítico e se recorria ao lirismo e às digressões oratórias e retóricas, fusão que pode ser considerada o berço da novela.

A novela desenvolveu-se ao longo de cinco séculos – do século II a.C. ao século III d.C. Sua fase áurea aconteceu no século II da era cristã. Nino e Samíramis, conhecido por meio de três fragmentos que sobreviveram ao tempo, é o texto de novela mais antigo.

Denominadas dramas históricos por mesclarem elementos teatrais à histo-riografia, as novelas clássicas exerceram fascínio durante a Idade Média, o Renascimento e centúrias posteriores: Tasso, Cervantes, Lope de Vega, Calderón e Racine sofreram influências desses modelos. Apesar disso, é pouco provável que os textos greco-latinos tenham dado origem à novela propriamente dita: sua paternidade cabe às canções de gesta.

As canções de gesta, como se sabe, giravam em torno de feitos de guerra, floresceu na França e, cantadas por trovadores, confundiam o fantástico com o verídico, centrado em episódios bélicos e associando, dessa forma, espírito

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unitins • letras • 3º PerÍODO 311

cívico e atividade estética. Toda vez que o trovador a repetia, a narrativa era ampliada. Dessa forma, tanto desfiguravam os heróis da guerra, como a extensão da narrativa atingia limites extremos. A dificuldade de memorização levou à transcrição em pergaminho para conservá-la. Em seguida, o texto foi transfor-mado em prosa. Com isso, dá-se o despontar da novela como fôrma autônoma e caracterizada, cujo primeiro exemplo foi a Demanda do Santo Graal. Outras novelas merecem destaque: A Morte do Rei Arthur, Merlin, José de Arimatéia, Amadis de Gaula, novelas de cavalaria que apareceram ao longo da Idade Média, quando Portugal se tornou território ideal para acomodação e desenvol-vimento do espírito cavalheiresco.

Na Renascença, além das novelas de caráter histórico-cavelheiresco, surgem as de índole satírica ou picaresca, iniciadas por El Lazarillo de Tormes (1554), de autor desconhecido. Gargântua e Pantagruel, narrativas de Rabelais, aparecidas entre 1532 e 1564, apresentam o melhor das características da novela satírica.

A obra suprema da novela de cavalaria é Dom Quixote (1605-1615), de Cervantes: multiforme no conteúdo e na técnica de composição, esse relato das andanças do Cavaleiro da Mancha e Sancho Pança estimulou a prosa narrativa dos séculos seguintes.

Nos séculos XVII e XVIII, a novela ainda é cultivada, mas agora mesclando particularidades do romance, que estava ensaiando os primeiros passos. Nesse momento, a novela, além do recorte psicológico e social à moda de Dom Quixote, explora temas bucólicos, satíricos e picarescos. A primavera (1601), O pastor peregrino (1608), O desenganado (1614), do escritor português Francisco Rodrigues Lobo, exemplificam as produções desse momento.

No século XIX, a estética romântica transforma a novela num meio predi-leto de atingir seus leitores: um dos prazeres da burguesia, agora no poder, era dado pelas obras literárias; entre elas, a novela ocupava posição de destaque. Massaud Moisés (2001, p. 108), ao vincular a novela ao leitor burguês, afirma:

Graças à sua estrutura, correspondia à ânsia de entretenimento, evasão e sonho, duma classe imersa num cotidiano monótono e raso. Viciada na literatura amena e no teatro ligeiro, somente lhe interessavam o aventuresco e o fantasioso que a novela podia ministrar-lhes. Assim se explica [...] que as narrativas folhetinescas alcançassem tanto êxito, inclusive nas formas mais vulgares, como a novela de cordel ou em fascículos.

No Brasil, durante os séculos coloniais, merecem destaque as seguintes novelas: História do predestinado peregrino e seu irmão Precito (1682), de Padre Alexandre de Gusmão, e o Compêndio narrativo do peregrino da América (1728), de Nuno Marques Pereira. No movimento romântico, a novela dominou:

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Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Manuel Antônio de Almeida, etc., quando não escreveram novelas, deixaram perceber, em seus romances, influência dela. O Realismo, com sua concepção científica do trabalho literário, afastou a novela do seu círculo de interesses.

O século XX caracteriza-se pelas metamorfoses na prosa de ficção, a partir de Proust, mas a novela, que parecia relegada ao esquecimento, permaneceu no gosto da massa anônima e pouco culta. Thomas Mann, Roger Martin Du Gard, Romain Rolland são autores que cultivam esse gênero. Em Portugal, Aquilino Ribeiro retoma o modelo de Camilo Castelo Branco e insufla em suas histórias um sopro novelesco. Entretanto, é Alves Redol o exemplo mais característico da novela em Portugal, no século XX, com a série Port-Wine. No Brasil, destacam-se Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico Veríssimo.

A novela, correspondendo ainda ao gosto popular, não desapareceu. Continua promovendo a evasão do cotidiano hostil nas novelas de televisão.

3.4 Conceituando novela

Do ponto de vista histórico, a novela ocupa posição menos relevante que a do conto e a do romance. Identificado com as manifestações populares da arte, esse gênero narrativo corresponde ao desejo de aventura e fuga

[...] realizado com o mínimo de profundidade e o máximo de anes-tésico: raro se nivela, em matéria de requinte estético, às fôrmas em prosa vizinhas. Prato variado mais ligeiro, não se detém no exame do dia-a-dia real, preocupando-se acima de tudo com o pitoresco, que é tão cedo esquecido quanto mais facilmente seduz. Coloca-se, assim, no extremo oposto ao do romance e do conto. (MOISÉS, 2001, p. 112)

Por imprimir aos episódios um movimento acelerado e cheio de novidades, a novela ilude e mistifica. Por reduzir sua visão das coisas à soma de gestos enca-deados linearmente no tempo, induz a pensar que a realidade não é polimórfica ou enigmática, nem que ostente relevo e complexidade. Parte do pressuposto de que se conhecesse tudo, ou de que tudo pode ser transformado em atos e acon-tecimentos visíveis, por isso, contempla e não indaga; finge e não questiona, fantasia e não interroga.

Enfim, a novela é um tipo de romance mais curto: tem um número menor de personagens, conflitos e espaços ou os tem em número igual ao romance. Mas com uma diferença: a ação no tempo é mais veloz na novela do que no romance. Difere da novela de TV: esta apresenta uma série de casos paralelos e muitos momentos de clímax. Porque a passagem do tempo é muito rápida, a leitura da novela é agradável.

A ação na novela se caracteriza pela polivalência: se constitui em uma série de unidades, ou células dramáticas, que se encadeiam devido a personagens ou

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unitins • letras • 3º PerÍODO 313

ambientes: um aglomerado de contos dispostos numa dada ordem. Além disso, cada uma das unidades dramáticas possui início, meio e fim.

Outro aspecto importante da novela é a sucessividade. As células se orga-nizam em uma ordem seqüencial. Embora haja sucessividade, ela não é abso-luta, visto que o autor não esgota completamente o conteúdo de uma unidade, muitas vezes, serve-se do mistério ou do conflito para manter o interesse do leitor. Essa mesma característica pode ser identificada nas telenovelas.

O tempo da narrativa novelística obedece regularmente à estrutura linear, é histórico: segue o relógio, o calendário ou as convenções sociais. A fluidez da narrativa se dá horizontalmente, correspondendo ao encadeamento dos fatos. O presente é dominante e, muitas vezes, o passado das personagens é relatado em poucas linhas. Ligado ao tempo está o espaço. Neste, o novelista repele a paisagem estática, devido a sua dinamicidade, e desencadeia as peripécias: daí ter um ritmo acelerado.

Embora como o conto, a novela possua uma linguagem simples, direta e as metáforas de imediata compreensão, a descrição de personagens, cená-rios é muito cultivada. Bem estruturada também é a construção das persona-gens que, ao contrário do conto, não tem limite. Os protagonistas são nume-rosos e as personagens secundárias aparecem com freqüência. Alguns, para compor o cenário humano, aparecem por alguns instantes e desaparecem para não mais voltar, além de poderem ser substituídas sem nenhum prejuízo para a narrativa. Na maioria das vezes são planas, estáticas, definidas e com pouca profundidade.

Ao lado das personagens, o narrador, como uma câmera, registra todas as vibrações e inquietudes de cada uma delas. Assim, por sua linearidade, o narrador é analítico e onisciente.

3.5 Classificação da novela

Não há novelas puras, dotadas de características exclusivas, capazes de justificar seu enquadramento em compartimentos estanques: qualquer novela congrega ingredientes contrastantes. Somente a predominância de um deles permite classificá-la em determinado tipo. Por isso, as novelas podem ser orga-nizadas do seguinte modo:

Novelas de cavalaria• : nasceram na Idade Média como resultado da prosificação das canções de gesta. Seu berço natal foi a França. A tradição orienta que a dividamos em três ciclos, conforme o assunto central: ciclo bretão ou arturiano (em torno das proezas do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda); ciclo carolíngio (em torno dos feitos de Carlos Magno e dos doze pares da França) e ciclo clássico (temas herdados da Antiguidade greco-latina).

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314 3º PerÍODO • letras • unitins

Novelas sentimentais e bucólicas• : nasceram nos séculos clássicos e foram desenvolvidas por Boccaccio e Sanazzaro. As tônicas principais dessas novelas são a descrição da natureza e a narração de idílios entre pastores.

Novelas picarescas• : nasceram em 1554 com a publicação da Vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autor anônimo. Picaresco e picaresca derivam de pícaro: uma criatura de vida irregular, vadia, empregada de sucessivos patrões e vivendo de expedientes astu-ciosos e inescrupulosos.

Novelas históricas• : nasceram com o advento do Romantismo e carac-terizam-se pela recriação do passado remoto ou recente, por meio de documentos verídicos, submetidos à imaginação transfiguradora do ficcionista. Pessoas e fatos se presentificam deformados, uma vez que são analisados sob o prisma da imaginação que se incumbe, ainda, de preencher os vazios deixados pelos documentos históricos.

Novelas policiais e de mistério• : configuração mais recente assumida pela novela, esse tipo identifica-se por um crime aparentemente perfeito e em cujo desvendamento se empenha as personagens. Bifurcou-se em dois tipos: as novelas policiais propriamente ditas, com detetives, astú-cias policias, emprego de laboratório de análise, etc.; as novelas de mistério tem por eixo um ou mais mistérios, relacionados com um ou mais assassínios. Há casos em que existem mistério e assassínio sem o detetive. Noutros, o mistério se transforma em terror, dando origem à novela de terror ou gótica.

Entre o romance e a novela, a distinção é mais quantitativa do que qualitativa, uma vez que a novela é obra de menor extensão, cobre um cenário mais reduzido e lida com menor número de personagens e incidentes. Além disso, limita-se a maior economia de espaço e tempo, apresenta uma menor extensão de vida e a narrativa, habitualmente, é monolinear e, às vezes, mais intensa. Ingrediente funda-mental na configuração da novela são as aventuras, visando ao entretenimento.

A novela tende a ser construída explorando recursos que estimulem o mistério e o suspense, buscando mostrar as peripécias das personagens e o encadea-mento dos núcleos narrativos. Assim, temos:

pluralidade e sucessividade dramática;•

número ilimitado de personagens;•

liberdade de tempo e espaço;•

diálogo, narração, descrição.•

As idéias e conceitos que formam a novela também podem ser apresentados num gráfico, adaptado de Moisés (2001):

Nesta aula apresentamos o conceito, o histórico e a tipificação de novela.

1. Analise as alternativas a seguir:

I. O conto é uma narrativa unívoca e homogênea. Contém apenas uma unidade dramática gravitando ao redor de um conflito.

II. A linguagem do conto é objetiva, com uso de metáforas de imediata compreensão do leitor.

III. A novela caracteriza-se pela pluralidade de células dramáticas dispostas em uma seqüência narrativa.

IV. As novelas de cavalaria caracterizam-se por ser narrativas de crimes aparentemente perfeitos.

A seqüência correta é:

a) V, V, V, F c) F, F, V, V

b) V, V, F, F d) V, F, V, F

2. Para esta atividade, convidamos você a fazer a leitura do texto completo de Memórias de um sargento de milícias. Depois, redija um texto explicando como se processa o tempo nesta narrativa.

3. Ainda aproveitando a sua leitura do texto completo de Manuel Antônio de Almeida, responda: qual é a personagem que conduz a novela pelos suces-sivos núcleos narrativos? Fale sobre ela.

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aula 3 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

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Nesta aula apresentamos o conceito, o histórico e a tipificação de novela.

1. Analise as alternativas a seguir:

I. O conto é uma narrativa unívoca e homogênea. Contém apenas uma unidade dramática gravitando ao redor de um conflito.

II. A linguagem do conto é objetiva, com uso de metáforas de imediata compreensão do leitor.

III. A novela caracteriza-se pela pluralidade de células dramáticas dispostas em uma seqüência narrativa.

IV. As novelas de cavalaria caracterizam-se por ser narrativas de crimes aparentemente perfeitos.

A seqüência correta é:

a) V, V, V, F c) F, F, V, V

b) V, V, F, F d) V, F, V, F

2. Para esta atividade, convidamos você a fazer a leitura do texto completo de Memórias de um sargento de milícias. Depois, redija um texto explicando como se processa o tempo nesta narrativa.

3. Ainda aproveitando a sua leitura do texto completo de Manuel Antônio de Almeida, responda: qual é a personagem que conduz a novela pelos suces-sivos núcleos narrativos? Fale sobre ela.

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aula 3 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

316 3º PerÍODO • letras • unitins

4. Sobre as características essências da novela, assinale a alternativa correta:

pluralidade e sucessividade dramática;a)

número ilimitado de personagens;b)

liberdade de tempo e espaço;c)

todas as alternativas estão corretas.d)

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (d), você acertou. As assertivas II e IV são falsas: o uso de metáforas no conto não é muito constante por ser uma narrativa breve e que requer imediata compreensão do leitor. Já a assertiva IV também está incorreta porque as novelas de cavalaria se caracte-rizam por narrar peripécias de cavaleiros medievais. As narrativas de crimes aparentemente perfeitos são as novelas policiais e de mistério.

Na atividade dois, você deverá recorrer aos conceitos estudados na aula um em que são discutidos os elementos temporais.

Na atividade três, você deverá perceber que Leonardo Pataca é a perso-nagem que conduz a sucessividade de núcleos narrativos. Uma personagem plana, primitiva e precária, como se Manuel Antônio de Almeida quisesse mostrar uma sociedade cheia de Leonardos Patacas.

Na atividade quatro, se você assinalou a alternativa (d), você compreendeu as características essências do gênero narrativo novela: pluralidade e sucessi-vidade dramática; número ilimitado de personagens e liberdade de tempo e espaço, além da presença do diálogo, da narração e da descrição.

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. 24. ed. São Paulo: Ática, 1995.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

GOTILIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 10. ed. São Paulo: Ática, 2001.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

Apresentaremos o romance: um dos mais conhecidos gêneros narrativos.

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aula 3 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 317

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

Apresentaremos o romance: um dos mais conhecidos gêneros narrativos.

Anotações

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aula 3 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

318 3º PerÍODO • letras • unitins

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos do romance;•

construir seu próprio conceito de romance.•

Para que você possa entender melhor esta aula, revise as aulas dois e três, que tratam da novela e do conto: pela comparação, fica mais fácil perceber o que há de comum e de diferente entre esses gêneros.

O romance, em relação à novela e ao conto, é uma narrativa longa, envolve um número considerável de personagens, maior número de conflito e tempo e espaço mais dilatados. Os romances podem ser classificados por sua temática. Os tipos mais conhecidos são o romance de amor, de aventura, policial, de ficção científica, psicológico e de ação.

Antes de iniciarmos estudos sobre o gênero romance, apresentaremos, a exemplo dos gêneros anteriores, um capítulo do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, obra que inicia o Realismo na literatura universal. Leia-o aten-tamente e tente compará-lo com o que você leu de conto e novela. Assim, você ficará sensibilizado para compreender melhor a teoria sobre o romance.

4.1 Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Madame Bovary é um romance escrito por Gustave Flaubert que resultou num escândalo ao ser publicado em 1857. Quando o livro foi lançado, houve na França um grande interesse pelo romance, pois levou seu autor a julgamento. Ele foi levado aos tribunais (Onde utilizou a famosa frase “Emma Bovary c’est

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aula 4 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 319

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos do romance;•

construir seu próprio conceito de romance.•

Para que você possa entender melhor esta aula, revise as aulas dois e três, que tratam da novela e do conto: pela comparação, fica mais fácil perceber o que há de comum e de diferente entre esses gêneros.

O romance, em relação à novela e ao conto, é uma narrativa longa, envolve um número considerável de personagens, maior número de conflito e tempo e espaço mais dilatados. Os romances podem ser classificados por sua temática. Os tipos mais conhecidos são o romance de amor, de aventura, policial, de ficção científica, psicológico e de ação.

Antes de iniciarmos estudos sobre o gênero romance, apresentaremos, a exemplo dos gêneros anteriores, um capítulo do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, obra que inicia o Realismo na literatura universal. Leia-o aten-tamente e tente compará-lo com o que você leu de conto e novela. Assim, você ficará sensibilizado para compreender melhor a teoria sobre o romance.

4.1 Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Madame Bovary é um romance escrito por Gustave Flaubert que resultou num escândalo ao ser publicado em 1857. Quando o livro foi lançado, houve na França um grande interesse pelo romance, pois levou seu autor a julgamento. Ele foi levado aos tribunais (Onde utilizou a famosa frase “Emma Bovary c’est

O romance

Aula 4

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aula 4 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

320 3º PerÍODO • letras • unitins

moi” (Emma Bovary sou eu) para se defender das acusações) acusado de ofensa à moral e à religião, num processo contra o autor e também contra Laurent Pichat, diretor da revista Revue de Paris, em que a história foi publicada pela primeira vez, em episódios e com alguns pequenos cortes.

A Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena absolveu Flaubert, mas o mesmo procedimento não foi adotado pelos críticos puritanos da época, que não perdoaram o autor pelo tratamento “realista” que ele tinha dado, no romance, ao tema do adultério, pela crítica ao clero e à burguesia: (Gostava do mar apenas pelas suas tempestades e da verdura só quando a encontrava espalhada entre ruínas. Tinha necessidade de tirar de tudo uma espécie de benefício pessoal e rejeitava como inútil o que quer que não contribuísse para a satisfação imediata de um desejo do seu coração - tendo um temperamento mais sentimental do que artístico e interessando-se mais por emoções do que por paisagens. ). É conside-rada a primeira obra da literatura realista.

Gustave Flaubert (1821-1880), o criador deste que é por muitos conside-rado o ápice da narrativa longa do século XIX – o chamado século de ouro do romance. Flaubert, o esteta, aquele que buscava o mot juste (a palavra exata) e burilava os seus textos por anos a fio, imbuiu-se da consciência e da sensibili-dade da sua personagem. Madame Bovary é uma obra capital na literatura do seu tempo, um daqueles livros que dão início a uma época literária. Tomando propositadamente um tema sem grandeza aparente, Flaubert quis obrigar o seu talento a enfrentar dificuldades técnicas que o levassem a vencer o romantismo exacerbado que o dominava.

O resultado foi a obra-prima que o leitor tem em mãos e que Émile Zola descreveu da seguinte maneira: “Quando Madame Bovary apareceu, foi uma completa revo-lução literária. Teve-se a impressão de que a fórmula do romance moderno, esparsa pela obra colossal de Balzac, fora reduzida e claramente enunciada nas quatro-centas páginas de um único livro. Estava escrito o código da nova arte”.

O romance conta a história de Emma, uma mulher sonhadora pequeno-burguesa, criada no campo, que aprendeu a ver a vida através da literatura sentimental. Bonita e requintada para os padrões provincianos, casa-se com Charles, um médico interiorano tão apaixonado pela esposa quanto entediante. Nem mesmo o nascimento da filha dá alegria ao indissolúvel casamento ao qual a protagonista se sente presa. Como Dom Quixote, que leu romances de cava-laria demais e pôs-se a guerrear com moinhos.

4.2 O vocábulo romance

A palavra romance, segundo Moisés (2001, p. 157), certamente originou-se do “provençal romans, que deriva da forma latina romanicus”. Durante a Idade Média, eram as línguas dos povos sob domínio romano. Depois, era o rótulo

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unitins • letras • 3º PerÍODO 321

das composições literárias de cunho popular, das narrativas em prosa e verso. Os então denominados romances de cavalaria se encaixavam nessa denomi-nação. Você já estudou esse tipo de narrativa na unidade anterior e viu que elas, depois, foram classificadas como novelas de cavalaria.

Especialmente na Espanha, composições curtas em verso, como o redondilho maior e o redondilho menor, eram conhecidas como romance. No século XVII, o termo começou a circular na acepção moderna. Novel, em língua inglesa, é o termo utilizado para romance. Em francês, roman, em italiano romanza, e em espanhol, o termo novela equivale a romance, em português.

4.3 Aspectos históricos do romance

Na segunda metade do século XVIII, com a Revolução Industrial inglesa, surge o romance para ser porta-voz das ambições e desejos da burguesia em ascensão. Assim, essa fôrma literária aparece com o Romantismo, substitui a epopéia e torna-se o passatempo da burguesia traduzindo a própria existência burguesa, artificial e vazia. Salvatore D’Onófrio (2002, p. 116-117) corrobora essa idéia, afirmando que:

[...] esse tipo de ficção em prosa viveu por longo tempo ofuscado pelos gêneros literários clássicos e não recebeu a devida apre-ciação crítica: todas as teorias poéticas da época do classicismo se preocuparam apenas com os textos versificados. Somente com o declínio da poesia épica, a partir do início do século XVIII, a ficção em prosa, assumindo papel da epopéia de expressar a totalidade da vida, passou a adquirir o estatuto de gênero literário. O romance, considerado filho bastardo da epopéia, tornou-se, então, a forma literária que melhor exprimia os anseios da nascente burguesia, produto das revoluções Comercial e Industrial, que derrubam o absolutismo político e cultural. Literatura não mais destinada a um pequeno círculo de gente culta, mas à classe média, ávida de encontrar consignados em forma de arte seus problemas existenciais, suas lutas e suas aspirações.

O romance romântico estruturava-se em duas camadas: oferecia uma imagem otimista, cor-de-rosa, apresentando aos burgueses a imagem do que pretendiam ser e não do que eram efetivamente. Na outra, a crítica ao sistema, sutil e implícita ou declarada e violenta.

A Princesa de Clèves (1678), de Madame de Lafayette, constitui o embrião dessa nova fôrma. No século XIX, o romance tem o apogeu. Stendhal (O Vermelho e o Negro, 1830) é considerado o primeiro grande romancista europeu oitocen-tista, conferindo ao romance dimensões psicológicas modernas, mas é Balzac que, com a Comédia Humana, é o verdadeiro criador do romance moderno, sendo, depois, o mestre de Gustave Flaubert, Émile Zola e outros.

Nos fins do século XIX, os russos Dostoievski, Tolstoi, Gogol e outros trazem uma problemática e um tipo de análise psicológica até então desconhecidos.

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322 3º PerÍODO • letras • unitins

Isso fez de Dostoievski mestre da prospecção psicológica, uma das vertentes do romance moderno.

A próxima grande transformação do romance ocorrerá com Proust no início do século XX. À Procura do Tempo Perdido (1913) aprofunda a sondagem psicológica iniciada por Dostoievski: desrespeita a coerência formal, usa a memória como forma de apreender o fluxo vital e o tempo é considerado fora dos limites do relógio. Com isso, o caos narrativo dá, ao romance, horizontes imprevisíveis. Gide, por sua vez, aumenta as conquistas de Proust deflagrando às personagens e ao romance como um todo a verossimilhança existencial. A partir de então, não se pode prever como agirá cada personagem, apro-ximando o romance à vida. Assim, o romance chega ao ponto que almejava desde o início.

Com Ulisses (1922), James Joyce contribui decisivamente para mais uma transformação no romance. Joyce transporta para o romance, de forma livre das normas gramaticais e lógicas, o caos do mundo consciente e incons-ciente. Essa desintegração dos padrões formais é acentuada com Huxley com Contraponto (1928) e Admirável Mundo Novo (1932). O autor tece dramas coletivos (financeiros, amorosos, ideológicos) refletindo as angústias da atualidade.

A partir de então, Thomas Mann, Virgínia Woolf, Franz Kafka, William Faulkner e outros desenham o panorama do romance. No entanto, a partir de 1939, o nouveau roman, de origem francesa, retoma descobertas anteriores e leva a ques-tionamentos sobre a condição do romance com a ausência da burguesia.

De acordo com Moisés (2001, p. 165), mais do que a novela, o conto e a poesia, o romance tem a capacidade de apresentar uma visão global do mundo. Tem a capacidade de recriar a realidade, recompondo-a e reconstruindo-a de forma peculiar e única, pois o romancista pode utilizar ao máximo os recursos da prosa de ficção. Assim, a História, a Psicologia, a Filosofia, a Política, a Economia, as Artes contribuem para a reconstituição da realidade romanesca.

4.4 Conceituando romance

Na prosa de ficção, o romance é a forma narrativa mais longa. Por essa razão, suas categorias fundamentais (personagem, espaço, tempo, etc.) aparecem com interconexões muito elaboradas.

O romance apresenta uma pluralidade de dramas, conflitos ou células dramáticas, assim como a novela, embora seja mais limitado do que esta. Na novela as múltiplas células dramáticas se caracterizam pela sucessividade, já no romance, a simultaneidade dramática se dá pela interligação de conflitos ao mesmo tempo e, às vezes, no mesmo espaço.

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unitins • letras • 3º PerÍODO 323

Em se tratando de espaço, o romance caracteriza-se pela pluralidade de ambientes, embora os espaços sejam vinculados ao anterior. Limita-se apenas pela escolha temática e pelo modo como o romance é desenrolado: as perso-nagens podem viajar por vários lugares ou estar em uma mesma casa. Por ser identificado com a burguesia, o espaço do romance tende a ser urbano, salvo o romance regionalista.

O tempo no romance•

O tempo no romance deve ser analisado cuidadosamente, visto que, enquanto no conto e na novela ele é predominantemente cronológico, isso nem sempre ocorre no romance. Desse modo, podemos assi-nalar três modalidades básicas de tempo, segundo Moisés (2001, p. 182):

o histórico;•

o psicológico;•

o metafísico ou mítico.•

O tempo histórico obedece ao ritmo do relógio: marcação de dia e noite, estações do ano, fluxo das marés, movimento do sol, enfim, o tempo que pode ser medido a partir do ritmo cronológico, portanto, objetivo. O psicológico não coincide com o histórico, pois o tempo psicológico ignora a marcação do relógio. É cronometrado pelas sensações, idéias e pensamentos, pelas vivências, pelas experiências universais. Trata-se, portanto, de um tempo subjetivo, varia de pessoa para pessoa e marcado diferentemente para cada pessoa. Este tempo está ligado ao fluxo de consciência e nas reminiscências fixadas na memória e relembradas por elementos associativos. Já o tempo meta-físico ou mítico é, para Moisés (2001), o “tempo do ser”, é o tempo coletivo, primordial, concretizado nos ritos e festas sagradas.

Podemos dividir a história do romance em duas: a primeira começa no século XVIII e vai até Proust e é marcada pela presença de romances de tempo histórico, como Senhora, de José de Alencar, O Cortiço, de Aluísio de Azevedo e Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado. O segundo período, de Proust aos nossos dias, é marcado pelo tempo psicológico: Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, ilustram a ficção construída a partir do tempo psicológico.

A personagem no romance•

Personagem, do latim persona, máscara, é o termo utilizado para designar as pessoas que vivem os conflitos e dramas nas narrativas. Geralmente, apenas pessoas podem ser personagem.

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aula 4 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

324 3º PerÍODO • letras • unitins

De acordo com Moisés (2001, p. 226), animais não são consideradas personagens. As que participam do desenrolar das narrativas romanescas, ou “são projeções da personagem (como no caso de Quincas Borba), ou invulgares em sua condição (como a Baleia de Vidas Secas), ou servem de motivo ao desenvolvimento da ação (Moby Dick)”. Os animais participam como personagens nas fábulas ou nas narrativas de cunho poético.

O número de personagens varia de obra para obra, o ficcionista pode povoar a narrativa ou reduzir o número ao essencial para o desenca-deamento dos conflitos. Uma característica a ser observada é que as personagens não se colocam no mesmo plano e, se isso acontece, não são iguais. Por isso é importante que as personagens sejam classificadas a partir de vários critérios:

Quanto à importância no desenrolar da narrativa: protagonistas, •antagonistas deuteragonistas.

Quanto à sua universalidade: planas, redondas.•

Quanto à sua simbologia: tipos, caricaturas, caracteres, símbolos.•

Na hierarquia dramática, as personagens protagonistas são as perso-nagens principais, as deuteragonistas e/ou antagonistas são as perso-nagens secundárias.

No aspecto da universalidade, consideramos personagens planas (ou bidimensionais) são as destituídas de profundidade psicológica ou dramática e caracterizadas por uma qualidade, defeito, faculdade ou característica. As personagens planas pertencem ao tempo histórico e, por terem uma tendência particular, podem ser chamadas tipos (representação universal) ou caricaturas (representação regional).

Por sua vez, as redondas (ou tridimensionais) têm profundidade e revelam-se por várias características, obedece seus impulsos interiores colocando-se fora dos padrões sociais, colocando acima ou abaixo deles. Por tais características, muitas vezes torna-se símbolo (símbolo de uma possibilidade humana levada a uma condição mais alta). Assim, a personagem redonda está presente no tempo psicológico.

Você já estudou esses elementos mais profundamente na aula um. Se você achar necessário, retorne a ela.

4.5 Classificação do romance

Existem tantos tipos de romance quantos forem os ângulos e planos em que o problema for situado. Por isso, todas as classificações são possíveis de discussão: não apenas por serem classificações, mas por serem de caráter lite-

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unitins • letras • 3º PerÍODO 325

rário. Antes de discutirmos os tipos de romance, é importante entendermos que nenhum aspecto é estanque, mas diversos tipos se misturam em determinada obra, deixando sobressair um aspecto.

Edwin Muir citado por Moisés (2001, p. 298) classifica o romance em três tipos fundamentais: romance de ação, romance de personagem e romance de drama. Estes dois últimos parecem fugir de sua tipologia, mas na verdade obedece a critérios diversos.

O romance de ação• é o que o enredo ocupa lugar de destaque na obra. A ênfase está nos acontecimentos, nos episódios. Neste tipo de romance, as personagens dependem do enredo, sendo apenas criaturas estáticas e dependentes da imaginação do romancista. Nesse caso, podemos encontrar um romance superficial no aspecto psicológico, centrado no sobrenatural, no terror, no fantástico. Os românticos O Guarani, de José de Alencar e Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano, são exem-plos desse tipo de romance.

O• romance de personagem dá ênfase sobre os protagonistas e a ação, ao contrário, serve às personagens. Nesse tipo de romance, é a partir da personagem, que o romancista descreve os ambientes e aspectos sociais que o rodeiam. Aqui, O Primo Basílio, de Eça de Queirós, é um bom exemplo de pintura da sociedade portuguesa a partir da personagem Luísa. O Crime do Padre Amaro, Os Maias, A Relíquia e Alves & Cia. também pertencem à categoria de romance de personagem, já que este autor faz uma verdadeira imagem da sociedade burguesa de Portugal.

Para Moisés (2001, p. 301), o romance de personagem funciona como um documento. Geralmente, neste tipo de romance, as personagens são planas e tornando-se tipos com a acentuação de determinados traços.

O romance de drama• é aquele em que personagem e plot são insepará-veis. Personagem e ação caminham juntas: a primeira sofre as mesmas modificações que a segunda. Neste caso, a personagem não pode ser plana, pois somente a personagem redonda pode propiciar uma ação completa, rica em personalidade, multiplicando os planos de atuação. Esse tipo de romance é, muitas vezes, conhecido como romance psico-lógico devido ao fato de ser o tempo psicológico seu aspecto caracte-rístico. Perto do coração selvagem, citado anteriormente, é um típico romance de drama.

Como você deve ter observado, as diferenças entre conto, novela e romance são de caráter quantitativo e qualitativo: existem limites e elementos comuns entre eles. As idéias e conceitos que formam o romance também podem ser apresentados num gráfico, adaptado de Moisés (2001):

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aula 4 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

326 3º PerÍODO • letras • unitins

Nesta aula apresentamos o conceito, o histórico e as características do gênero narrativo romance.

1. É incorreto afirmar em relação ao romance:

a) O tempo no romance é, exclusivamente, cronológico ou histórico.

b) Entre as tipologias de personagens, temos as protagonistas, as antago-nistas ou as deuteragonistas.

c) O romance romântico mostra uma imagem cor-de-rosa do que os burgueses pretendiam ser.

d) No romance de personagem, a caracterização de determinada perso-nagem é marcante.

2. No início desta aula, sugerimos a você a leitura do romance francês Madame Bovary. Agora, para elaborar a resposta para esta atividade, a leitura sugerida será necessária. Escreva um texto dissertativo sobre a personagem protagonista do romance. Você deverá levantar elementos que a caracterizam como protagonista, como ela se classifica (plana ou redonda) e de que forma são feitas as descrições sobre a personagem.

3. Ainda aproveitando a sua leitura de Madame Bovary, queremos a sua reflexão acerca de Emma: qual é a sua opinião sobre o comportamento dela? Não se esqueça de que esta obra é a iniciadora do Realismo Universal.

4. Associe as informações:

(A) Conto (B) Novela (C) Romance

( ) caracteriza-se pela pluralidade de células dramáticas dispostas em uma seqüência narrativa.

( ) narrativa unívoca e homogênea que contém apenas uma unidade dramática gravitando ao redor de um conflito.

( ) simultaneidade dramática mediante a interligação de conflitos na mesma unidade de tempo e de espaço.

A seqüência correta é:

a) A, B, C c) B, A, C

b) C, A, B d) C, B, A

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (a) você acertou porque na alternativa (a), não podemos afirmar que o tempo no romance pode ser somente cronológico ou histórico. A alternativa (b) está correta, a alternativa (c) também está correta e a alternativa (d) apresenta correção.

Na atividade dois, você deverá ler cuidadosamente o romance e encon-trar as marcas de caracterização da personagem (justificando porque ela é a protagonista e como ela conduz as células da narrativa) e ainda classificá-la em plana ou redonda. Lembre-se: você só poderá responder a esta questão se ler integralmente o romance.

Na atividade três, a resposta é pessoal. No entanto, para respondê-la você deverá fazer a leitura integral do romance para apontar sua opinião sobre Emma Bovary.

Na atividade quatro, se você assinalou a alternativa (c), você compreendeu bem a proposta discutida neste caderno de conteúdos e atividades.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2000.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

DALFARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira. São Paulo: Ática, 1978.

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aula 4 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 327

( ) caracteriza-se pela pluralidade de células dramáticas dispostas em uma seqüência narrativa.

( ) narrativa unívoca e homogênea que contém apenas uma unidade dramática gravitando ao redor de um conflito.

( ) simultaneidade dramática mediante a interligação de conflitos na mesma unidade de tempo e de espaço.

A seqüência correta é:

a) A, B, C c) B, A, C

b) C, A, B d) C, B, A

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (a) você acertou porque na alternativa (a), não podemos afirmar que o tempo no romance pode ser somente cronológico ou histórico. A alternativa (b) está correta, a alternativa (c) também está correta e a alternativa (d) apresenta correção.

Na atividade dois, você deverá ler cuidadosamente o romance e encon-trar as marcas de caracterização da personagem (justificando porque ela é a protagonista e como ela conduz as células da narrativa) e ainda classificá-la em plana ou redonda. Lembre-se: você só poderá responder a esta questão se ler integralmente o romance.

Na atividade três, a resposta é pessoal. No entanto, para respondê-la você deverá fazer a leitura integral do romance para apontar sua opinião sobre Emma Bovary.

Na atividade quatro, se você assinalou a alternativa (c), você compreendeu bem a proposta discutida neste caderno de conteúdos e atividades.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2000.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

DALFARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Vergílio Ferreira. São Paulo: Ática, 1978.

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aula 4 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

328 3º PerÍODO • letras • unitins

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

______. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. 1. ed. São Paulo: Ática, 2001.

FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2002.

SCHOLES, Robert ; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1977.

Outros gêneros em prosa serão o foco de nossa próxima aula: a prosa poética, o ensaio, a crônica e o teatro.

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos do texto teatral;•

construir seu próprio conceito de texto para o teatro.•

Você já assistiu a uma peça de teatro? Com certeza sim. Faça, portanto, o resgate dessa experiência, tentando colocar em destaque os elementos do texto teatral que mais chamaram sua atenção: eles serão importantes para que você possa seguir, com segurança, as pegadas teóricas que serão apresentadas nesta aula.

O teatro como representação organiza-se a partir de um texto. Logo, teatro (arte cênica) e texto teatral (arte literária) se completam e se interinfluenciam. Isso nos leva a um questionamento: quando surgiu o teatro? O teatro surgiu com a própria história, num momento perdido no tempo, mas certamente anterior à própria arte literária. Nesse momento, identificava-se com as práticas religiosas e mágicas, e mesclava-se com a dança, a música e o canto.

Sua trajetória efetiva, correspondente ao lapso de tempo que se pode precisar com o auxílio de documentos existentes, inicia-se na Grécia, no século VI a.C., aproximadamente.

5.1 Hamlet, de Willian Shakespeare

Anotações

Page 61: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 329

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar os traços característicos do texto teatral;•

construir seu próprio conceito de texto para o teatro.•

Você já assistiu a uma peça de teatro? Com certeza sim. Faça, portanto, o resgate dessa experiência, tentando colocar em destaque os elementos do texto teatral que mais chamaram sua atenção: eles serão importantes para que você possa seguir, com segurança, as pegadas teóricas que serão apresentadas nesta aula.

O teatro como representação organiza-se a partir de um texto. Logo, teatro (arte cênica) e texto teatral (arte literária) se completam e se interinfluenciam. Isso nos leva a um questionamento: quando surgiu o teatro? O teatro surgiu com a própria história, num momento perdido no tempo, mas certamente anterior à própria arte literária. Nesse momento, identificava-se com as práticas religiosas e mágicas, e mesclava-se com a dança, a música e o canto.

Sua trajetória efetiva, correspondente ao lapso de tempo que se pode precisar com o auxílio de documentos existentes, inicia-se na Grécia, no século VI a.C., aproximadamente.

5.1 Hamlet, de Willian Shakespeare

O texto teatral

Aula 5

ato ICena II

Uma sala de recepção no castelo. Entram o Rei, a Rainha, Hamlet, Polônio, Laertes. Voltimando, Cornélio, nobres e séquito.

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aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

330 3º PerÍODO • letras • unitins

O REI — Conquanto esteja fresca, ainda, a memória do traspasso de Hamlet, o irmão saudoso, e chorá-lo devêssemos, contraindo toda a corte em tristeza o sobre-cenho: tanto a razão se impõe à natureza que com sábia tristura o relembramos ao tempo em que pensamos em nós mesmos. Por isso, à que era nossa irmã, e agora nossa rainha, a imperial herdeira deste reino guerreiro, com alegria, por bem dizermos, parcialmente frustra, num dos olhos o choro, no outro o riso, ledos no funeral, tristes na igreja, sabendo equilibrar a dor e o encanto, tomamos como esposa, após ouvirmos vossos conselhos, sempre e em tudo livres. Nossos agradecimentos por tudo isso. Agora Fortimbrás, o moço, como bem o sabeis, subestimando nossa força, ou mesmo pensando que o traspasso de nosso irmão poria o Estado fora dos eixos, sonha com vantagens pessoais, não cessando de inquietar-nos com mensagens que visam a reaver-nos as terras que seu pai petdeu na luta, conforme as condições estipuladas com nosso bravo irmão. Sobre ele, basta. Passemos a tratar de nós e desta convocação: é o caso que escrevemos a Noruega, tio desse moço Fortimbrás, que, de cama e muito doente, de certo ignora os planos do sobrinho, pedindo-lhe intervenha no sentido de sofrear-lhe o ardor, visto que as levas e alistamentos estão sendo feitos nos seus domínios. Daí vos despacharmos, bom Cornélio, e também vós, Voltimando, com meu saudar ao velho Norueguês, sem mais poder pessoal para tratardes com o rei, além do que estiver previsto nas vossas instruções. E agora, adeus; que a pressa recomende o vosso zelo.

CORNÉLIO e VOLTIMANDO — Demonstrá-lo-emos nisto, como em tudo.

O REI — Estamos certos disso; passai bem. (Voltimando e Cornélio saem) Dize agora, Laertes, que pretendes. Já nos falaste de algo. Que é, Laertes? Não se dará que percas as palavras, se falares com senso ao soberano da Dinamarca. Que nos poderias pedir, Laertes, que não fosse nossa dádiva, não pedido de tua parte? A cabeça não é tão bem casada com o coração, nem serve a mão à boca com mais zelo, que ao trono teu bom pai. Que desejas, Laertes?

LAERTES — Real senhor, permissão de regresso para a França. Ainda que de bom grado eu tenha vindo à vossa coroação, confessar devo que, cumprido o dever, meus pensamentos e desejos, sujeitos à vossa alta benevolência, à França me conduzem.

O REI — Teu pai já o consentiu? Que diz Polônio?

POLÔNIO — Sim, milorde, arrancou de mim meu tardo consentimento à custa de insistência, tendo eu, por fim, selado seu pedido com meu custoso “sim”. Por isso, peço-vos consentirdes que volte para a França.

O REI — Laertes, a hora é boa; usa o teu tempo e a teu sabor e dotes o aproveita. E agora, primo Hamlet, primo e filho...

HAMLET (à parte) — Parente, mais; querido, muito menos.

O REI — Por que sempre o teu rosto com essas nuvens?

HAMLET — Nem tanto, meu senhor, o Sol me aquece.

A RAINHA — Despe-te, bom Hamlet, desse luto, e deita olhar amigo à Dinamarca. Não prossigas assim, de olhos caídos, a procurar teu nobre pai na poeira. É lei comum, tu o sabes; quantos vivem, passam da natureza para a vida da eternidade.

Page 63: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 331

HAMLET — É lei comum, realmente, minha senhora.

A RAINHA — Então, se é assim com todos, que te parece estranho nesse caso?HAMLET — Não parece, senhora; é. Não conheço “pareces”, boa mãe. Nem

esta capa sombria, nem as vestes costumeiras de solene cor negra, os tempestuosos suspiros arrancados do imo peito, as torrentes fecundas que me descem dos olhos, o semblante acabrunhado, nem todas as demais modalidades da mágoa poderão nunca, em verdade, definir-me. Parecem, tão-somente, pois são gestos de fácil fingimento. Mas há algo dentro em mim que não parece. Tudo isso é roupa e enfeite do infortúnio.

O REI — Recomenda-te, Hamlet, a natureza chorares o teu pai dessa maneira Mas, lembra-te: teu pai perdeu um pai, que o seu, também, perdera. Ao filho vivo cabe o grato dever de lastimá-lo por algum tempo. Mas mostrar tão grande obsti-nação no luto, é dar indícios de teima e de impiedade; é a dor dos fracos; revela uma vontade ímpia e rebelde, coração débil, mente anarquizada, inteligência pobre e sem cultivo. Se tem de ser assim, tal como as coisas mais comuns que aos sentidos nos afetam, para que nos mostrarmos rigorosos e pueris? Ora! É ofensa ao próprio céu, à natureza, aos mortos, mais que absurda para a razão, cujo princípio básico é o traspasso dos pais, e que não cessa de proclamar desde a hora do primeiro cadáver até ao morto deste instante: Tinha de ser assim. Vamos, te peço, deixa essa dor estéril e nos trata como a pai. Sim, que o mundo tome nota: o mais chegado és tu ao nosso trono. Não menos generosos sentimentos dedica ao filho um pai do que os que à tua pessoa consagramos. Teu desejo de voltar novamente para a escola de Vitemberga opõe-se ao nosso alvitre. Por isso, conjuramos-te a ficares sob o grato prazer de nossos olhos, dos nobres o primeiro, primo e filho.

A RAINHA — Não deixes que tua mãe gaste suas súplicas em vão, Hamlet. Peço-te ficares conosco. Não te vás a Vitemberga.

HAMLET — Quanto em mim for, senhora, serei dócil.

O REI — Isso sim, que é falar sensato e amável. Sê como nós na Dinamarca. Vamos, senhora. O voluntário “sim” de Hamlet sorri-me ao coração. Por isso, os brindes de hoje de Dinamarca o canhão grande deverá transmiti-los até às nuvens. O céu vai repetir, a cada taça do rei, trovões da terra. E agora, vamo-nos. (Saem o Rei, a Rainha, Laertes, Polônio e o séqüito)

HAMLET — Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se esfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio! Ó Deus! Ó Deus! Como se me afiguram fastidiosas, fúteis e vãs as coisas deste mundo! Que horror! Jardim inculto em que só medram ervas daninhas, cheio só das coisas mais rudes e grosseiras. Chegar a isso! Morto há dois meses! Não, nem tanto... Dois? Um rei tão bom, que, confrontado com este, era Apolo ante um sátiro... Tão terno para a esposa, que ao próprio vento obstava de bater-lhe no rosto com violência. Oh céus! Recordá-lo-ei? Pendia dele como se seus desejos aumentassem com a saciedade. E um mês depois... Paremos. Fragilidade, nome de mulher... Só um mês, sem ter gasto ainda os sapatos com que o corpo seguiu do meu bom pai, qual Níobe, só lágrimas.

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aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

332 3º PerÍODO • letras • unitins

Sim, ela — Ó céu! Um animal que é destruído da faculdade da palavra, certo choraria mais tempo! — desposada! pelo irmão de meu pai, mas que tem tanto dele tal como eu de Hércules. Num mês, antes que o sal das lágrimas tão falsas secassem de seus olhos tumefeitos estar ela casada! Oh! pressa iníqua de subir para o tálamo inces-tuoso! Não pode acabar bem... Mas despedaça-te, coração; é mister ficar calado. (Entram Horácio, Marcelo e Bernardo)

HORÁCIO — Deus guarde a Vossa Alteza.

HAMLET — Alegra-me rever-te com saúde... Horácio, se a memória não me falha.

HORÁCIO — O mesmo criado, príncipe, de sempre.

HAMLET — Amigo, amigo; é o nome que eu te dou. Qual a razão de haveres tu deixado. Vitemberga?... Marcelo?

MARCELO — Meu bom príncipe...

HAMLET — Muito prazer. (A Bernardo) Bons dias. Mas falando sério, por que deixaste Vitemberga?

HORÁCIO — Simples disposição de um preguiçoso.

HAMLET — Não quisera ouvir isso de teus próprios inimigos. Por isso, não me faças ao ouvido a violência de depores contra ti próprio. Não, não és vadio. Qual o motivo que a Elsinor te trouxe? Conosco aprenderás a beber muito.

HORÁCIO — Senhor, os funerais de vosso pai.

HAMLET — Meu caro condiscípulo, não zombes; creio que vieste para o casa-mento. de minha mãe.

HORÁCIO — Realmente, foi bem perto.

HAMLET — Economia, Horácio! Os bolos fúnebres serviram para os frios do esposório. Preferira encontrar no céu o inimigo mais ferrenho, a viver tal dia, Horácio. Meu pai! Às vezes julgo ver meu pai.

HORÁCIO — Como, senhor?

HAMLET — Com os olhos da alma, Horácio.

HORÁCIO — Vi-o uma vez; um grande rei, de fato.

HAMLET — Um homem, na acepção lata do termo; jamais poderei ver alguém como ele.

HORÁCIO — Creio, senhor, que o vi nesta noite última.

HAMLET — A quem?

HORÁCIO — A vosso pai, senhor.

HAMLET — O rei meu pai?

HORÁCIO — Prestai-me ouvidos, refreando o espanto por algum tempo, até que eu vos relate tal maravilha, sob o testemunho destes senhores.

Page 65: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 333

HAMLET — Pelo céu, falai.HORÁCIO — Duas noites a fio estes senhores, o Bernardo e o Marcelo, quando

guarda montavam, na hora morta da meia-noite, viram uma figura parecida com vosso pai, armado da cabeça até aos pés, avançando com postura lenta e grave. Três vezes pelos olhos pávidos lhes passou, à só distância de um bastão de comando. Eles, gelados pelo medo, ficaram sem ter ânimo para falar-lhe. O fato me confiaram, sob a maior reserva, ainda abalados. Montei guarda com eles na outra noite... E eis que na hora indicada, sob a forma que eles a descreveram, tudo exato, voltou a aparição... Sim, vosso pai; conheci-o; estas mãos não se parecem tanto.

HAMLET — Onde foi tudo isso?

MARCELO — Na esplanada, senhor, onde ficávamos de guarda.

HAMLET — Falaste-lhe?

HORÁCIO — Falei-lhe, sim, meu príncipe, mas não me respondeu. Contudo, quis-me parecer que ele o rosto levantava, pondo-se em movimento, como prestes a falar. Mas, nessa hora, cantou o galo. A esse canto, esgueirou-se ele apressado, sumindo à nossa vista.

HAMLET — É muito estranho.

HORÁCIO — Por minha vida, príncipe, é a verdade. Pensamos que o dever nos prescrevia dar-vos conta de tudo.

HAMLET — Não vos encubro a minha inquietação. Montais guarda esta noite?

MARCELO e BERNARDO — Sim, alteza.

HAMLET — Tinha armas, o dissestes?

MARCELO e BERNARDO — Sim, alteza.

HAMLET — Da cabeça aos pés?

MARCELO e BERNARDO — Sim, de alto a baixo.

HAMLET — Então não lhe pudestes ver o rosto.

HORÁCIO — Como não? A viseira estava erguida.

HAMLET — E as feições, carregadas?

HORÁCIO — Expressão mais de dor do que de cólera.

HAMLET — Corado ou pálido?

HORÁCIO — Muito pálido.

HAMLET — E o olhar? Chegou a fitar-vos?

HORÁCIO — Durante todo o tempo.

HAMLET — Desejara tê-lo visto.

HORÁCIO — Sem dúvida, isso havia de causar-vos profunda admiração.

Page 66: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

334 3º PerÍODO • letras • unitins

HAMLET — Muito provavelmente. E demorou-se?

HORÁCIO — O tempo de contar, com certa calma, até cem.

MARCELO e BERNARDO — Muito mais! Muito mais tempo!

HORÁCIO — Não quando o vi.

HAMLET — E a barba? Era grisalha?

HORÁCIO — Tal como a vi, quando ele ainda era vivo: negro-prateada.

HAMLET — À noite, eu farei guarda; talvez ele retorne.

HORÁCIO — É quase certo.

HAMLET — Se ele me aparecer sob a figura de meu pai, falar-lhe-ei, ainda que o inferno se me abrisse e mandasse ficar quieto. Mas peço a todos: se a ninguém falastes dessa visão, sede discretos nisso. A qualquer ocorrência desta noite, trocai sinais apenas, não palavras. Saberei ser-vos grato. Passai bem. Na esplanada, entre as onze horas e as doze, pretendo aparecer.

TODOS — Nossos respeitos.

HAMLET — Vosso amor, como o meu. E agora, adeus. (Horácio, Marcelo e Bernardo saem) A sombra de meu pai em armas! Tudo vai muito mal. Temo qualquer desgraça. Ah! Quem dera que a noite já chegasse! Mas até lá, minha alma, sê paciente. As ações más, embora a terra as cubra, aos olhos dos mortais não se subtraem. (Sai)

5.2 O vocábulo “Teatro”

Em língua portuguesa a palavra teatro designa casa de espetáculos e textos destinados à representação. A palavra drama, por sua vez, aponta, generica-mente, para um determinado tipo de peça: aquela em que o trágico se mistura ao cômico, mas sem prejudicar um emprego menos específico. Sendo assim, se por drama compreendemos o texto para representação, teatro nada mais é do que o local do espetáculo e o próprio espetáculo. Drama, por conseguinte, nomearia o texto antes da representação, o que é o mesmo que dizer dimensão textual do espetáculo.

Vejamos: cenografia + texto (drama) -> teatro

Drama, peça dramática ou literatura dramática são termos que se referem ao texto para representar (parte textual do espetáculo). O vocábulo teatro refere-se ao local onde se desempenha o gênero dramático, arte de representar e coleção de obras dramáticas de uma literatura ou autor (o teatro de Shakespeare, o teatro clássico, o teatro brasileiro).

Enfim, “[...] o texto representado é a elocução do texto impresso: se, como vimos, a literatura se concebe como uma série de documentos escritos, é o texto impresso que importa ao crítico literário; contrariamente, o texto representado interessa ao crítico teatral[...].” (MOISÉS, 2005, p. 124).

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aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 335

5.3 Características do texto teatral

O texto teatral é uma obra escrita que, mesmo destinada à representação, ostenta considerável taxa de literariedade: emprega a linguagem segundo os padrões literários, por isso cabe no limites da problemática literária, pois, como representação, requer um tratamento de outra natureza. Noutras palavras: o texto dramático, potencializado pela linguagem literária, é o terreno sobre o qual é construído o espetáculo. Sua linguagem, portanto, pressupõe a representação.

O teatro é a arte do diálogo. Por isso, distingue-se como uma narrativa dialogada: o diálogo guarda um conflito que se manifesta num enredo, com início, meio e fim. O enredo faz parte da essência do teatro e o aproxima do conto, da novela, do romance e do poema épico clássico. Mas há uma diferença entre eles: na novela, no conto e no romance, o enredo é armado por meio da narração; no teatro, recorre apenas ao diálogo. Por isso, é uma narrativa dialo-gada ou diálogo narrativo.

O leitor de uma peça teatral só consegue figurá-la em sua mente quando a imagina como espetáculo, num cenário apresentado a um público de que faça parte.

Conforme já referimos anteriormente, o texto teatral é uma narrativa dialo-gada, e o diálogo é sua característica textual definidora. Como narrativa, esse texto apresenta os ingredientes e os recursos expressivos que compõem o conto, a novela e o romance, tipos específicos de narrativa.

Vejamos o que D’Onófrio (2001, p. 128) fala sobre esse assunto:

O texto teatral, chamado tecnicamente de script, é o elemento propriamente literário que o autor compõe com o fim de ser repre-sentado perante um público. É um conjunto de vários elementos estruturados que, por serem especificamente literários, podem ser submetidos ao mesmo tipo de abordagem que utilizamos para o estudo do gênero narrativo.

O script de uma peça dramática geralmente contém:

ações – ligadas entre si, formam o enredo (nível fabular);•

personagens – vivem os fatos que acontecem no enredo (nível atorial);•

as indicações para o cenário em que as ações se desenvolvem a partir •das descrições do espaço e do tempo (nível descritivo);

as reflexões que as personagens fazem sobre os fatos que estão ocor-•rendo (nível reflexivo)

O texto literário da peça dramática é o elemento mais importante do teatro: é ele que confere estabilidade à peça. Os elementos estruturais do texto serão sempre os mesmos. Os outros elementos teatrais, no entanto, são efêmeros: diretor, atores, cenário, público, mudam. Personagens e enredo permanecem inalteráveis.

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aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

336 3º PerÍODO • letras • unitins

Gaston Baty citado por D’Onófrio (2001, p. 129) afirma que

O texto é a parte essencial do drama. Ele é para o drama o que o caroço é para o fruto, o centro sólido em torno do qual vem orde-nar-se os outros elementos. E do mesmo modo que, saboreado o fruto, o caroço fica para assegurar o crescimento de outros frutos semelhantes, o texto quando desapareceram os prestígios da representação, espera numa biblioteca ressuscitá-lo algum dia.

O texto teatral é a materialização da trama ou do enredo, que, por sua vez, são constituídos por um conjunto de ações. Várias são as partes constitutivas do enredo:

exposição• : correspondência – situação inicial do romance, proposição do poema épico. Nas primeiras cenas, são apresentadas as personagens principais e sua problemática inicial. Além disso, é ainda nessa parte que são identificados o local, o tempo e os antecedentes da história a ser apresentada.

conflito• : alguma coisa acontece e provoca o rompimento do equilíbrio inicial. Resultado: situação de conflito.

desenvolvimento• : forças adversas agem para resolver o conflito. Cada uma dessas forças luta para impor seu ponto de vista e atingir seu objetivo.

clímax• : momento decisivo e de maior impacto. Elementos novos aparecem em cena e determinam a resolução do conflito.

O enredo da peça dramática pode ser dividido em atos, da mesma forma que o romance pode ser dividido em capítulos e o poema lírico em estrofes. Divisão racional e convincente: três atos. No primeiro ato, expõe o surgimento do conflito; no segundo, o choque e a luta; no terceiro, o desfecho. Mas podemos encontrar peças em ato único, sem divisão alguma, em cinco atos ou numa varie-dade de quadros (drama romântico, por exemplo). A divisão em cenas é um pouco mais complicada. A rigor, toda vez que um ator-personagem entra ou sai do palco, dá-se uma mudança de cena.

O enredo dramático, apesar da variedade de atos e cenas, deve ser norteado pela unidade da ação. Essa unidade, junto com a unidade de tempo e de lugar, é uma das leis fundamentais do teatro clássico. Mas o que se entende por unidade de ação? Unidade de ação é a concentração do interesse dramá-tico sobre um episódio único, núcleo da peça. Essa concentração produz a densidade dramática.

5.4 Classificação do teatro

Toda ação dramática relaciona-se com a vida e com a natureza humana. Por isso, o texto teatral pode abordar qualquer assunto: o que ocasiona o

Page 69: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 337

drama é a relação opositiva entre os seres. Os conflitos podem resultar das relações dos homens entre si, dos homens com o Estado ou dos homens com a divindade. A distinção entre teatro psicológico, teatro político e teatro religioso fundamenta-se nessas modalidades de conflito. Vamos estudar melhor cada um desses tipos de teatro?

O teatro psicológico• : explora as profundezas do comportamento humano e tenta explicar os motivos que levam o homem a ser vítima de paixões como o amor, o ódio, o ciúme, a vingança, a inveja, etc. Édipo Rei, de Sófocles, é um exemplo dessa modalidade de texto teatral.

O teatro político• : explora conflitos relacionados à vida em sociedade: as diferentes classes que lutam pelo poder. O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, é um exemplo de texto teatral que comporta uma leitura política, na medida em que trabalha com relações de poder.

O teatro religioso• : explora as relações do homem com Deus e trata de temas transcendentais: a imortalidade da alma, a existência de um mundo espiritual, o conceito de pecado, os remorsos por maldades cometidas. Auto da Alma e Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, exemplificam esse tipo de texto teatral.

Na atualidade, o teatro recebeu algumas denominações peculiares: teatro total, teatro pobre, teatro épico e teatro do absurdo.

Anteriormente, fizemos uma distinção entre teatro e texto teatral, conside-rando o primeiro como a representação propriamente dita ou local onde ela acontece, entre outros significados. Em relação ao texto teatral, ficou assentado que, por dispor de elementos que constroem a literariedade e servir de suporte às apresentações, pertencia ao campo literário, sendo, portanto, o objeto de estudo desta aula.

Se quisermos, no entanto, dizer alguma coisa sobre representação cênica, temos que nos reportar à comédia e à tragédia, das quais se originam tipos intermediários ou extremos, como o melodrama, a farsa e a tragicomédia. Você gostaria de conhecer cada uma delas?

Tragédia• : é a representação de um fato trágico, que provoca terror e compaixão. Além disso, é séria, grave, tensa e representa os conflitos naturais ao modo de vida da aristocracia. Para Aristóteles, o exemplo mais perfeito de tragédia é Édipo Rei, de Sófocles.

Comédia• : é a representação de um fato inspirado na vida e no senti-mento comum, é, em geral, criticando os costumes. A origem da comédia está ligada às festas populares gregas de celebração à fecundidade da natureza. Girando em torno do ridículo e da alegria decorrente, quando ambos são levados às últimas conseqüências, tem-se a farsa. Quando

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aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

338 3º PerÍODO • letras • unitins

a comoção e a lágrima recebem demasiada ênfase, chega-se ao melo-drama. Aristófanes é o grande nome da comédia grega, a marca essen-cial de suas comédias é a crítica e o escárnio contra tudo o que julgava responsável pela decadência de Atenas.

Nesta aula, estudamos o texto teatral, enveredando, às vezes, pelos cami-nhos do teatro como representação de um texto teatral.

1. Com relação à tragédia é correto afirmar que:

a) Na dramaturgia grega antiga, a tragédia representa o enfrentamento da vontade dos deuses e do destino por parte do ser humano.

b) Édipo Rei, de Sófocles, é considerado por Aristóteles o mais perfeito exemplo de tragédia.

c) A tragédia trata de sentimentos nobres e é de bom tom que a desgraça aconteça com uma personagem de boas intenções, que ignore parte da trama, mas que tenha coragem para buscar a solução de todos os problemas.

d) Todas as afirmações estão corretas.

2. Sugerimos, no início desta aula, que você procurasse ler Hamlet, de William Shakespeare. Agora cite o nome das principais personagens da peça.

3. Para responder a esta questão, procure Édipo Rei, de Sófocles. A peça é considerada o mais bem acabado modelo de tragédia. Leia-a e fale sobre isso.

4. Analise as afirmações a seguir e assinale a alternativa correta.

a) O dramaturgo inglês William Shakespeare é um dos expoentes máximos do teatro e escreveu: Romeu e Julieta, Otelo, Macbeth, Hamlet, Rei Lear.

b) Aristófanes é o grande nome da comédia grega, a marca essencial de suas comédias é a crítica e o escárnio contra tudo o que julgava respon-sável pela decadência de Atenas.

c) Na literatura portuguesa, o nome de destaque no gênero dramático é Gil Vicente. Merecem destaque o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca do Céu.

d) Todas as afirmações estão corretas.

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (d), você compreendeu as características da tragédia.

Na atividade dois, você deverá ler a peça de Shakespeare e encontrar as personagens: Hamlet, príncipe da Dinamarca; a rainha Gertrudes, mãe de Hamlet; o tio Cláudio, irmão do falecido rei Hamlet e amante de Gertrudes; Ofélia, noiva do príncipe Hamlet; Polônio, lorde camarista e pai de Ofélia; Horácio, amigo de Hamlet.

Na atividade três, você verá, a partir da leitura de Édipo Rei que Édipo é o típico herói trágico que é, ao mesmo tempo, culpado e inocente: culpado porque cometeu parricídio (matou seu próprio pai, Laio) e incesto (casou-se com a própria mãe e com ela teve filhos). Inocente porque não teve consciência desses crimes. Nesse raciocínio, Édipo foi, apenas, vítima de Laio. Assim, de acordo com a noção de tragédia do teatro grego, trágico é um homem pagar pela culpa de outro, sendo vítima de culpas hereditárias, preconceitos raciais e religiosos e injustiças sociais.

Na atividade quatro, se você assinalou a alternativa (d), compreendeu os aspectos do gênero dramático.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

______. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. 1. ed. São Paulo: Ática, 2001.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A criação literária: prosa II. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1977.

Page 71: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 339

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (d), você compreendeu as características da tragédia.

Na atividade dois, você deverá ler a peça de Shakespeare e encontrar as personagens: Hamlet, príncipe da Dinamarca; a rainha Gertrudes, mãe de Hamlet; o tio Cláudio, irmão do falecido rei Hamlet e amante de Gertrudes; Ofélia, noiva do príncipe Hamlet; Polônio, lorde camarista e pai de Ofélia; Horácio, amigo de Hamlet.

Na atividade três, você verá, a partir da leitura de Édipo Rei que Édipo é o típico herói trágico que é, ao mesmo tempo, culpado e inocente: culpado porque cometeu parricídio (matou seu próprio pai, Laio) e incesto (casou-se com a própria mãe e com ela teve filhos). Inocente porque não teve consciência desses crimes. Nesse raciocínio, Édipo foi, apenas, vítima de Laio. Assim, de acordo com a noção de tragédia do teatro grego, trágico é um homem pagar pela culpa de outro, sendo vítima de culpas hereditárias, preconceitos raciais e religiosos e injustiças sociais.

Na atividade quatro, se você assinalou a alternativa (d), compreendeu os aspectos do gênero dramático.

CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

______. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. 1. ed. São Paulo: Ática, 2001.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A criação literária: prosa II. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1977.

Page 72: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 5 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

340 3º PerÍODO • letras • unitins

Estudaremos outras formas narrativas: prosa poética, ensaio e crônica.

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar prosa poética, ensaio e crônica;•

perceber que os limites entre os gêneros literários são mais gradações •do que propriamente barreiras intransponíveis.

Para que você possa compreender melhor esta aula, é necessário que tenha compreendido e assimilado as características dos gêneros narrativos apresen-tados nas aulas anteriores deste caderno de conteúdos e atividades.

A prosa poética, o ensaio e a crônica são produtos da criatividade de um artista. Portanto, esses gêneros são uma modalidade de arte. Pensar ensaio como algo que se aproxima de textos referenciais, nos quais se discutem conceitos e se elaboram argumentos com finalidade crítica e interpretativa, numa postura apro-ximada do que faz a ciência, é cometer equívoco. No campo do literário, tudo é arte. Sendo assim, a criatividade é que define a cor tonante de cada texto, construindo-lhes “limites” e aproximações.

Nem sempre é possível dizer que prosa poética é diferente de ensaio e ensaio diferente de crônica: às vezes, esses diferentes gêneros podem se fazer presente em um mesmo texto. A predominância das características de um deles sobre as dos demais é a pista que leva à sua classificação.

6.1 A prosa poética

A questão das fronteiras entre poesia e prosa poética ainda não está suficien-temente esclarecida: os estudiosos divergem em relação aos conceitos de prosa

Anotações

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 341

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

identificar prosa poética, ensaio e crônica;•

perceber que os limites entre os gêneros literários são mais gradações •do que propriamente barreiras intransponíveis.

Para que você possa compreender melhor esta aula, é necessário que tenha compreendido e assimilado as características dos gêneros narrativos apresen-tados nas aulas anteriores deste caderno de conteúdos e atividades.

A prosa poética, o ensaio e a crônica são produtos da criatividade de um artista. Portanto, esses gêneros são uma modalidade de arte. Pensar ensaio como algo que se aproxima de textos referenciais, nos quais se discutem conceitos e se elaboram argumentos com finalidade crítica e interpretativa, numa postura apro-ximada do que faz a ciência, é cometer equívoco. No campo do literário, tudo é arte. Sendo assim, a criatividade é que define a cor tonante de cada texto, construindo-lhes “limites” e aproximações.

Nem sempre é possível dizer que prosa poética é diferente de ensaio e ensaio diferente de crônica: às vezes, esses diferentes gêneros podem se fazer presente em um mesmo texto. A predominância das características de um deles sobre as dos demais é a pista que leva à sua classificação.

6.1 A prosa poética

A questão das fronteiras entre poesia e prosa poética ainda não está suficien-temente esclarecida: os estudiosos divergem em relação aos conceitos de prosa

Prosa poética, ensaio e crônica

Aula 6

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

342 3º PerÍODO • letras • unitins

e poesia; nem sempre se discriminam, com nitidez, as misturas entre os gêneros, praticadas ao longo do século. Por isso, prosa cadenciada, prosa poética e poema em prosa são gêneros que apresentam áreas de conflito e interinfluência, o que não permite perceber claramente onde termina um e o outro começa.

A história dos vínculos entre a prosa e a poesia segue, historicamente, dois caminhos: o que passa pela prática dessas relações e o que se refere às categorias e conceitos usados para nomeá-las. A fusão entre esses dois gêneros num mesmo texto, independentemente da vontade dos autores, é antigo. Mas a crítica dessa fusão é contemporânea ao Romantismo. Uma e outra não podem se considerar concluídas: a mistura dos dois gêneros adquiriu, nos últimos séculos, modulações de toda sorte. Por isso, sua nomeação ainda não atingiu o consenso entre os especialistas.

As trocas entre prosa e poesia remontam à Antiguidade greco-latina. Naquela época, os nexos que ligavam esses dois gêneros eram nebulosos e involuntários. Mas uma coisa é certa: a prosa literária surge depois da poesia. Por essa razão, a prosa se constituiu por meio dos predicados da poesia.

A mescla entre prosa e poesia é encontrada também na Idade Média, mas é a partir da segunda metade do século XVI que começa a ganhar visibili-dade. Prosa tingida de poesia, a prosa poética, desde 1540, vem recebendo o nome de stile poétique ou prose poétique. No século XVII e XVIII, a radi-calização no uso da versificação leva a prosa poética vai ocupando maior espaço no gosto do leitor.

Até o século XVIII, a mistura dos gêneros envolve mais o aspecto formal, conseqüência do equívoco de que poesia significa uso de verso. Mas a misci-genação temática também existe. No século XIX, a prosa poética ganha fôlego na obra dos românticos e dos realistas, atingindo o auge com o Simbolismo. De acordo com o Moisés (2005, p. 22),

Tão profundamente se operou a simbiose dos dois gêneros ao longo da hegemonia simbolista que nenhuma obra em prosa escapou do seu fascínio: o século XX prolongará, com todas as mudanças de rumo decretadas pelo advento das vanguardas, [...], a aliança entre a prosa e a poesia.

Gide, Katherine Mansfield, Virgínia Wolf, Vergílio Ferreira, Clarice Lispector e Guimarães Rosa figuram entre os nomes que contribuíram com essa miscige-nação entre prosa e poesia.

Mas o que é, na verdade, a prosa poética?

Para construirmos uma resposta a essa questão, retomaremos os conceitos de poesia e prosa de Massaud Moisés. Para esse autor, a poesia é a expressão do “eu” por meio de linguagem polivalente (metafórica). A prosa é a expressão do “não-eu”, empregando o mesmo tipo de linguagem. Assim sendo, a prosa poética é o texto literário em que se dá o nexo entre a expressão do “eu” (poesia) e a expressão do “não-eu” (prosa). Esse encontro é marcado por uma tensão,

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 343

da qual o texto retira toda sua força comunicativa. Em face disso, pode-se dizer que, de forma genérica, qualquer texto em prosa, ao sofrer o impacto da poesia, pode ser enquadrado na categoria de prosa poética.

Alguns traços característicos da prosa poética:

musicalidade;•

metaforização abundante;•

a divisão da frase em segmentos que remetem à cadência do verso;•

fusão do enredo e da poesia;•

narratividade desenvolvida em ambiência lírica ou épica;•

diluição da intriga (fio débil ou subterrâneo).•

Enfim,

[...] a narrativa é um espetáculo rememorado, por entre névoas de incertezas, ou sutilezas oníricas, como se transcorresse no interior do “eu”: a narrativa desdobra-se na mente de quem a vai tecendo como se desfiasse o novelo da memória, se aban-donasse ao devaneio ou pervagar-se os confins do sonho. (MOISÉS, 2005, p. 29)

A prosa ritmada ou prosa poética pode aparecer no conto, no ensaio, no romance, ou na prosa filosófica. Assim falava Zaratustra, do filósofo Nietzsche, exemplifica claramente o último caso. Leia o fragmento a seguir e confira:

Que prazer não se encerra nas palavras e nos sentidos! as pala-vras e os sentidos não serão os arco-íris e as fontes ilusórias lançadas entre os seres para sempre separados?A cada alma pertence um mundo diferente, para cada alma toda a outra alma é um mundo-além.Entre as coisas mais semelhantes é que se levantam as mais belas miragens; pois os abismos mais estreitos são os mais difí-ceis de atravessar.Para mim – como haveria qualquer coisa fora de mim? Não há não-eu! Mas todos os sons nos fazem esquecer isso; como é prazeroso que possamos esquecê-lo!Os nomes e os sentidos não serão emprestados às coisas para que o homem deles usufruísse? A linguagem é uma suave loucura: ao falar, o homem dança sobre todas as coisas.Como toda a palavra é doce, como todas as mentiras dos sons são doces! Os sons fazem dançar nosso amor sobre arco-íris de variadas cores. (NIETZSCHE citado por MOISÉS, 2005, p. 27)

6.2 Ensaio

O vocábulo ensaio vem do latim exagiu: ação de pensar, provar, experi-mentar, tentar. Contaminado por essa significação etimológica, no terreno lite-rário, ensaio designa uma obra impermeável a todas as tentativas de definição

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

344 3º PerÍODO • letras • unitins

absoluta e convincente. Tem sido empregado para rotular os tipos mais diferentes de obra, fato que impede lhe sejam determinados, com precisão, os limites.

Nascido na França, o ensaio deve tributos a Plutarco, considerado patriarca dos ensaístas, a Aristóteles, Platão, Marco Aurélio e outros, embora tenha sido criado, de fato, por Montaigne, em 1580, quando da publicação da primeira parte da obra Ensaios. Nos séculos XVII e XVIII, prospera entre os escritores anglo-saxônicos. Nos séculos XIX e XX difunde-se pelas literaturas européias e americanas, especialmente pela norte-americana.

Em língua portuguesa, o ensaio se esboça já na Idade Média e nos moralistas do século XVI. Mas foi no século, XVIII, com Verney (e o Verdadeiro Método de Ensinar) e outros que surge efetivamente, para, no século XIX, ter em Alexandre Herculano a vocação superior de ensaísta cheio de erudição histórica.

No Brasil, o ensaio começa com a Carta de Pero Vaz de Caminha e se desenvolve com as observações de viajantes, missionários e colonos sobre terra descoberta. Euclides da Cunha, Faria Brito, Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda são escritores que se destacam na produção desse gênero.

A experiência nos tem demonstrado que não é fácil construir um conceito de ensaio. Vários fatores concorrem para que isso seja verdadeiro, entre eles, podemos destacar o assunto, as idiossincrasias do ensaísta, os objetivos do ensaio, a época em que foi escrito e o olhar que se lança nos fragmentos da realidade que se pretende compreender. Tudo isso culmina nessa indefinição que envolve a construção do conceito de ensaio. Mas isso não significa que não podemos identificar alguns traços comuns aos vários tipos de ensaio, direta ou indiretamente, responsáveis por seus traços definidores. Vejamos:

brevidade• : o ensaio pede-se breve, uma brevidade própria ao exercício de intuição de fragmentos da realidade, como se fosse uma tomada fotográfica. Brevidade implica serenidade. Por isso, o ensaísta é, por índole ou formação, um intelectual tranqüilo;

sinceridade• e honestidade: qualidade imprescindível de todo objeto estético que se queira respeitado e digno do nome. O ensaísta deve ser sempre fiel a si mesmo, uma vez que se move sob o signo da pessoali-dade. O único foco narrativo é o da primeira pessoa;

arte do intervalo• : o ensaio é próprio do momento de vida do ensaísta que se coloca entre os arroubos da juventude e a noite da morte, daí a serenidade que o caracteriza;

antidogmatismo• : o ensaio é liberal por excelência. Recusa, portanto, as soluções apriorísticas ou comandadas por doutrinas infalíveis, universais e rígidas. É sinônimo de pensamento livre de qualquer tipo de autoritarismo;

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 345

exercício de humildade• : como aventura de um espírito crítico, o ensaio é um exercício de humildade, uma vez que se fundamenta na consciência clara de que todo saber é incompleto e transitório, precário e frustrante;

obra aberta• : do ponto de vista da estrutura, o ensaio é uma obra aberta porque não se enquadra em padrões cristalizados e fossilizados. Cada ensaio ostenta sua estrutura irrepetível;

estilo como criação permanente• : o ensaio inscreve-se no campo do literário, por isso implica criatividade e busca de seiva sempre nova, renova-se, portanto, a cada nova aventura do ensaísta.

Partindo dessas características gerais, podemos chegar à identificação dos tipos de ensaio. Inicialmente, dois se destacam: o ensaio informal e o ensaio formal.

Ensaio informal• : sua marca característica é a liberdade criadora, uma vez que ele está sempre sujeito às flutuações emocionais e às ondula-ções do pensamento que vagueia.

Ensaio formal• : sua marca característica é a seriedade de propósitos e a lógica da concepção.

As classificações do ensaio, todas elas, gravitam em torno de acidentes de mobilidade inapreensível, e não de essência, que, mesmo flexível, se deixa iden-tificar. Nessa perspectiva, temos:

ensaio puro• , de tipo filosófico, histórico e literário;

ensaio poético descritivo• , lírico e costumbrista, emocional e impressionista;

ensaio crítico erudito• , expositivo e de conteúdo amplo.

Como você pôde perceber, o ensaio se identifica por uma série de varia-ções, o que implica em que todas as reflexões sobre uma teoria desse gênero partem dos mesmos lugares-comuns. Isso faz supor a existência de um conjunto de invariantes, ao redor do qual se estrutura a teoria do ensaio.

6.3 Crônica

O vocábulo crônica origina-se do grego chronikós: relativo ao tempo (chrónos). Durante a era cristã, crônica (chronica, do latim) designava relação de acontecimentos organizados cronologicamente. Com esse significado, atingiu, após o século XII, seu apogeu na França (com Froissart), na Inglaterra (Geoffrey of Monmouth), na Espanha (Alfonso X) e em Portugal (Fernão Lopes). Nessa época, a crônica aproximou-se da historiografia, mas também da ficção lite-rária. Durante o Renascimento, a crônica cedeu espaço para a história.

A partir do século XIX, a crônica liberta-se de sua acepção historicista e o vocábulo passa ter significado literário, graças à imprensa: a crônica liga-se

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

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ao jornal. Em 1799, no Journal de Débats, o professor de retórica Julien-Louis Geoffroy publica diariamente o feuilletons, uma crítica da atividade dramática, cultivando esse gênero, embrionariamente.

No Brasil, a partir de 1836, o termo foi traduzido, inicialmente, por folhetim, mas a partir da segunda metade deste século, o termo crônica passa a ser utilizada na acepção de narrativa histórica. O romântico José de Alencar e até Machado de Assis cultivaram esta nova modalidade. No século XX, o Brasil teve importantes cronistas: João do Rio, Rubem Braga, Raquel de Queiroz, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Paulo Mendes Campos e outros.

Embora tenha surgindo em solo francês, a crônica assumiu, entre os brasileiros,

[...] caráter sui generis: ‘estamos criando uma nova forma de crônica (ou dando erradamente este rótulo a um gênero novo) que nunca medrou na França. Crônica é para nós hoje, na maioria dos casos, prosa poemática, humor lírico, fantasia, etc., afastan-do-se do sentido de história, de documentário que lhe emprestam os franceses’. [...] De qualquer modo, a crônica tal qual se desen-volveu entre nós, parece não ter similar noutras literaturas, salvo por influência de nossos escritores (como na moderna literatura portuguesa) (MOISÉS, 2005, p. 102-3).

Quando falamos em crônica, devemos refletir acerca do jornal e da revista como veículo de informação e de cultura. A crônica é publicada no jornal ou na revista, objetivando transcender o dia-a-dia pela universalização. Assim, a crônica oscila entre a literatura e a reportagem, entre a recriação do cotidiano a partir da fantasia e o relato impessoal de um acontecimento. No entanto, a crônica possui um destino: é uma criação breve e leve. Reduz o cotidiano em “pílulas de fácil digestão”, de consumo imediato e cômoda ingestão.

Quando o aspecto literário da crônica sobrepõe o aspecto jornalístico, ela pode ser classificada em: crônica-poema (explora a temática do “eu”, que é, ao mesmo tempo assunto e narrador) e crônica-conto (explora a temática do “não-eu”). Há, no entanto, alguns elementos característicos da crônica, veja:

brevidade• : a crônica caracteriza-se por ser um texto curto, geralmente de meia coluna de jornal ou de revista;

subjetividade• : a crônica tem como característica mais relevante a subje-tividade, seu foco narrativo é em primeira pessoa do singular. A impes-soalidade é desconhecida pelos cronistas, já que é a visão deles que importa ao leitor;

linguagem híbrida• : a crônica tem a linguagem direta, espontânea, jorna-lística, de imediata apreensão pelo leitor e ainda metafórica;

Marcada pela oralidade, ambigüidade, brevidade, subjetividade, diálogo, estilo literário e jornalístico, ausência de transcendente, a crônica trata de temas

do cotidiano é efêmera, fugaz como o jornal e a revista. No entanto, é um gênero que alcança o leitor pela leitura simples, sem apelo à reflexão ou à crítica, como se fosse uma conversa descontraída.

Nesta aula, apresentamos a prosa poética, o ensaio e a crônica, discutindo os limites entre os gêneros literários e suas gradações.

1. Todas as alternativas a seguir estão corretas, exceto uma. Marque-a:

a) O texto literário, para ser literário, deve ser construído, unicamente, em terceira pessoa.

b) Os métodos de análise literária podem ser intrínsecos ou extrínsecos, dependendo do propósito ao analisar a obra literária.

c) Os métodos interpretativos do fenômeno literário procuram explicar e entender a obra literária a partir de um determinado ponto de vista.

d) A subjetividade é uma peculiaridade pertinente à literatura.

2. Durante a aula, citamos um fragmento de Assim falava Zaratustra, de Nietzsche. Volte àquele fragmento e aponte as características da prosa poética.

3. Nesta atividade, você deverá ler uma crônica em um jornal ou revista de seu acesso e descrever aqui os aspectos característicos da crônica no texto lido. Se achar necessário, retome os conceitos discutidos nesta aula.

4. Analise as proposições a seguir e marque a alternativa correta:

I. A poética é a teoria sobre o fazer literário, observando regras de compo-sição, definição de valores e modelos literários.

II. Podemos entender poesia como a expressão do “eu-lírico” do poeta, o poema como um tipo de texto literário e a poética como análise desse texto literário.

III. A linguagem literária possui, entre outras características, a preocupação com a verossimilhança, o arranjo estético e a conotação.

a) somente I e II estão corretas;

b) somente II e III estão corretas;

c) I, II e III estão corretas;

d) I, II e III estão erradas.

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 347

do cotidiano é efêmera, fugaz como o jornal e a revista. No entanto, é um gênero que alcança o leitor pela leitura simples, sem apelo à reflexão ou à crítica, como se fosse uma conversa descontraída.

Nesta aula, apresentamos a prosa poética, o ensaio e a crônica, discutindo os limites entre os gêneros literários e suas gradações.

1. Todas as alternativas a seguir estão corretas, exceto uma. Marque-a:

a) O texto literário, para ser literário, deve ser construído, unicamente, em terceira pessoa.

b) Os métodos de análise literária podem ser intrínsecos ou extrínsecos, dependendo do propósito ao analisar a obra literária.

c) Os métodos interpretativos do fenômeno literário procuram explicar e entender a obra literária a partir de um determinado ponto de vista.

d) A subjetividade é uma peculiaridade pertinente à literatura.

2. Durante a aula, citamos um fragmento de Assim falava Zaratustra, de Nietzsche. Volte àquele fragmento e aponte as características da prosa poética.

3. Nesta atividade, você deverá ler uma crônica em um jornal ou revista de seu acesso e descrever aqui os aspectos característicos da crônica no texto lido. Se achar necessário, retome os conceitos discutidos nesta aula.

4. Analise as proposições a seguir e marque a alternativa correta:

I. A poética é a teoria sobre o fazer literário, observando regras de compo-sição, definição de valores e modelos literários.

II. Podemos entender poesia como a expressão do “eu-lírico” do poeta, o poema como um tipo de texto literário e a poética como análise desse texto literário.

III. A linguagem literária possui, entre outras características, a preocupação com a verossimilhança, o arranjo estético e a conotação.

a) somente I e II estão corretas;

b) somente II e III estão corretas;

c) I, II e III estão corretas;

d) I, II e III estão erradas.

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aula 6 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

348 3º PerÍODO • letras • unitins

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (a), você acertou. A terceira pessoa não é condição para que ocorra literatura. Há, como vimos no decorrer deste caderno de conteúdos e atividades, que há narrativas em primeira pessoa e até mesmo sem a presença explícita do narrador.

Na atividade dois, você deverá apontar que os parágrafos são curtos, semelhantes a estrofes, liberdade de expressão. A reflexão é, ao mesmo tempo, conhecimento e emoção, além da musicalidade, abundantes metáforas, divisão frásica que lembra a cadência do verso.

Na atividade três, você deverá identificar aspectos como: brevidade, subjeti-vidade, linguagem direta, espontânea, jornalística, de imediata apreensão pelo leitor e ainda metafórica.

Na atividade quatro, se você assinalou a alternativa (c) está correto: todas as alternativas estão corretas.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

______. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. 1. ed. São Paulo: Ática, 2001.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A criação literária: prosa II. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1977.

Falaremos da crítica literária: perspectivas de análise da narrativa.

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

conhecer as principais teorias da crítica literária;•

entender a importância da integração entre as teorias críticas.•

Para que você possa compreender bem esta aula, sugerimos que você retome os conteúdos estudados em todas as seis aulas anteriores a esta. Além disso, é importante que você também retome o caderno de conteúdo de atividades de Teoria da literatura: texto poético.

A crítica se manifesta a partir da obra. A especificidade da obra poética em análise encaminhará o pesquisador à definição da teoria. A teoria da literatura procura oferecer modelos teóricos para o estudo do texto. Busca colher o que há de geral e comum na imensidão de obras literárias. Em alguns casos, individualiza elementos constitutivos, em outros, recorre às generalizações. É importante salientar que o texto, independente do autor e da época, precisa ser percebido como obra artística, literatura. O estudante do curso de Letras deve reconhecer o texto literário a partir dos elementos de sua estrutura. Pense nisso e bom trabalho.

7.1 Crítica extrínseca

Na abordagem extrínseca do texto literário, procura-se analisar o texto de fora para dentro: os elementos externos ao texto e que contribuem para a sua formação.

Para análise nessa perspectiva extrínseca, o crítico observará a biografia do autor, em que condições socioculturais a obra foi produzida, que aspectos

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aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 349

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

conhecer as principais teorias da crítica literária;•

entender a importância da integração entre as teorias críticas.•

Para que você possa compreender bem esta aula, sugerimos que você retome os conteúdos estudados em todas as seis aulas anteriores a esta. Além disso, é importante que você também retome o caderno de conteúdo de atividades de Teoria da literatura: texto poético.

A crítica se manifesta a partir da obra. A especificidade da obra poética em análise encaminhará o pesquisador à definição da teoria. A teoria da literatura procura oferecer modelos teóricos para o estudo do texto. Busca colher o que há de geral e comum na imensidão de obras literárias. Em alguns casos, individualiza elementos constitutivos, em outros, recorre às generalizações. É importante salientar que o texto, independente do autor e da época, precisa ser percebido como obra artística, literatura. O estudante do curso de Letras deve reconhecer o texto literário a partir dos elementos de sua estrutura. Pense nisso e bom trabalho.

7.1 Crítica extrínseca

Na abordagem extrínseca do texto literário, procura-se analisar o texto de fora para dentro: os elementos externos ao texto e que contribuem para a sua formação.

Para análise nessa perspectiva extrínseca, o crítico observará a biografia do autor, em que condições socioculturais a obra foi produzida, que aspectos

Crítica literária: perspectivas de análise da narrativa

Aula 7

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aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

350 3º PerÍODO • letras • unitins

contribuíram para a formação da personalidade do autor, a que movimento literário a obra está vinculada. Neste aspecto de análise, temos a crítica socio-lógica, a crítica psicológica e a crítica arquetípica. Vamos, agora, ver cada uma delas.

7.1.1 Crítica sociológica

Considerando a literatura como produto e expressão da cultura e da civili-zação de um povo, a crítica sociológica reconhece a interação escritor/sociedade. Essa interação é, segundo D’Onófrio (2002), devido aos seguintes fatores:

o emissor• (escritor) é um ser socializado, sofre e vive os problemas polí-ticos, sociais, religiosos e éticos do grupo em que pertence;

o código• (língua) é institucional, coletivo, cuja função é prática, de comuni-cação entre seres humanos, mesmo que o escritor conduza a linguagem;

a mensagem• (texto) é determinada pelos aspectos próprios de determi-nada época, estabelecidos pela sociedade;

o destinatário• (leitor) participa da realidade social do escritor.

Esses quatro fatores são explorados pela crítica sociológica, inserindo a obra literária num contexto sociocultural. Nessa perspectiva, a obra tem valor estético quando se preocupa com a sua significação. Os críticos Lucien Goldmann, Erich Auerbach e o brasileiro Antonio Candido trabalham com análises desta vertente.

7.1.2 Crítica psicológica

Na mesma perspectiva de olhar a obra (de fora para dentro), a crítica psicológica se debruça à análise da personalidade do escritor. De acordo com as modernas teorias da psicanálise aplicadas à análise literária, a arte literária seria uma neurose. Nela, o furor poético seria um desequilíbrio emocional do autor causado por defeitos físicos ou desajuste psíquico.

De acordo com estudiosos, essa crítica terá valor literário, no entanto, somente quando o texto é tido como objeto de pesquisa, quando as teorias da psicanálise e da psicologia são aplicadas no estudo das personagens, não do autor.

7.1.3 Crítica arquetípica

A partir de concepções sobre a cultura e a civilização, a crítica arquetí-pica, insiste nas convenções e gêneros literários para se sustentar. Northrop Frye propõe quatro tipos de crítica arquetípica:

crítica histórica• : fundamentada na teoria dos modos trágico, cômico e temático;

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aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 351

crítica etológica• : fundamentada na teoria dos símbolos: fase literal, formal, mítica e anagógica;

crítica arquetípica• : fundamentada na teoria dos mitos: a comédia se ligaria ao mito da primavera, o romance ao verão, o outono à tragédia e a ironia e a sátira ao inverno;

crítica retórica• : fundamentada na teoria dos gêneros: épos, prosa, drama, lírica.

Northrop Frye, no entanto, não considera a obra literária como uma produção artística individual.

7.2 Crítica intrínseca

Quando partimos da idéia de que uma obra literária é composta por pala-vras, temos a crítica intrínseca, cuja análise vai se ater ao sentido poético estru-tural do texto. Entre os aspectos de análise que se preocupam com os elementos internos do texto, temos os enfoques: lingüísticos, formalista, estruturalista, semio-lógico, fenomenológico, estilísticos e temáticos.

7.2.1 Lingüístico

As maiores contribuições da lingüística para a crítica literária estão ligadas ao estudo da natureza do signo lingüístico, composto por: significante e significado, diferentes funções da linguagem (especialmente a função poética), sintagmas e paradigmas (levando ao metonímico e ao metafórico). Assim, esse enfoque levará em consideração os elementos constitutivos da palavra (fonemas), relações entre as palavras (sintáticos) e enunciados. São de Ferdinand de Saussure, Hjelmslev, Martinet, Jakobson, Escola de Praga, Bloomfield e Chomsky as maiores contri-buições ao estudo da lingüística.

7.2.2 Formalista

A atividade dos formalistas teve início em Moscou, 1914. Após 1930, conti-nuou em Praga e de lá se estendeu para o Ocidente. Essa crítica observa a maneira como os elementos fônicos, sintáticos e semânticos do texto são manipu-lados para que o efeito estético seja produzido.

7.2.3 Estruturalista

O termo estrutura encontra-se origem em Saussure e nos formalistas, por isso os enfoques formalista e estruturalista não se diferenciam muito. O antropólogo Claude Lévi-Strauss deu notoriedade ao termo transferindo-o da Lingüística para a Antropologia. Nesse enfoque, as noções de forma e estrutura são aplicadas ao estudo da obra literária.

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aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

352 3º PerÍODO • letras • unitins

7.2.4 Semiológico

A abordagem semiológica considera o aspecto lingüístico e estrutural da obra literária e também vê o texto como um sistema de signos, cuja finalidade comunicativa é constituir-se conteúdo ideológico. Assim, o sistema de signos que compõem a obra literária está num sistema de signos maior (língua), que por sua vez deveria fazer parte da semiologia (ou semiótica), ciência geral dos signos que regulam a vida social. A semiologia estuda, então: a constituição mínima do signo (significante e significado); relação entre os signos (plano sintagmático); relação entre os signos, no plano paradigmático (aspecto semân-tico); relações entre emissor e receptor (aspecto pragmático). O filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, no início do século XX, deu os primeiros passos decisivos para a ciência semiológica. Sobre a trilha dele seguiram: Ernst Cassirer, Eric Buyssens, Louis Hjelmslev, Roland Barthes, A. J. Greimas e Umberto Eco.

7.2.5 Fenomenológico

O enfoque fenomenológico do texto limita-se à descrição da obra literária. Esta é considerada um “fenômeno”. O crítico fenomenológico tende a apro-ximar-se da obra com a mente pura, afastando de si as influências de qual-quer tradição literária, autoridade crítica ou pressuposição lógica. O aspecto fenomenológico põe em evidência os aspectos óptico, fônico, lexical, sintático, figurado, ideológico, etc. Roman Ingarden, ligado à escola fenomenológica de Husserl, aplicou o estudo da fenomenologia à literatura. Além disso, Jean-Paul Sartre e Marleau-Ponty também estão ligados a este enfoque.

7.2.6 Estilístico

Quando deixou de ser um sistema de regras para composição de um texto (normativo) para se tornar análise dos modos de expressão peculiares de um artista, um gênero ou uma época (descritivo), a estilística adquiriu estatuto de método objetivo de análise literária. O estudo estilístico é chamado de retórica moderna por não se distinguir do estudo retórico da obra literária.

A análise estilística de uma obra é feita a partir de duas abordagens distintas e complementares:

análise do estilo do plano da enunciação• : é a análise do estilo do discurso literário estabelece relações entre emissor e receptor, e distingue-se entre discurso direto, indireto ou misto, entre forma monológica e forma dialó-gica, entre estilo emotivo, modalizante e avaliatório;

análise do estilo no plano do enunciado• : é a análise da predominância de alguns elementos fônicos, propriedades rítmicas e melódicas da frase, peculiaridades sintáticas, aspecto representativo ou figurativo do texto.

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aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 353

7.2.7 Temático

Um dos métodos mais tradicionais de análise literária, a análise temática retoma as contribuições do formalismo, da psicanálise e da crítica arquetípica. De acordo com D’Onófrio (2002), o russo B. Tomachevski procede à desmon-tagem do texto e encontra seus elementos constitutivos: os motivos. Os motivos são “átomos de narratividade e de significação” (mínimas unidades temáticas) e se dividem em:

motivos associados• : constitui-se pelo material cronologicamente organi-zado. É indispensável para a compreensão de fábulas;

motivos livres• : construção inteiramente artística, indispensáveis para a compreensão da trama;

motivos dinâmicos• : diz respeito ao dizer das personagens;

motivos estáticos• : relacionado com o ser das personagens e do ambiente.

E ainda: leitmotiv (motivo que se repete com insistência em uma obra) e topos (motivo que se repete em várias obras).

A conjunção entre vários motivos constitui o tema. O tema pode ser:

parcial• (referente a um segmento semântico) ou principal (referente à significação total da obra);

particular• (específico de uma obra) ou universal (comum a várias obras em diferentes épocas);

atual• ou histórico.

Esta rápida exposição acerca de modalidades de abordagem do texto literário nos leva à reflexão sobre a importância da integração entre alguns métodos de análise e interpretação literária. Embora haja peculiaridades em cada método, não são incompatíveis. A obra de Mikhail Bakhtin é exemplo de integração entre abordagens críticas: é ligado ao formalismo russo, no entanto, recorre às modalidades formal, estruturalista, genético-literária, temático-arquetípica e psicossociológica na construção de seus estudos.

Os vários modos de ser da literatura não se limitam a existir apenas no momento em que nascem, nem se segmentam com a nitidez que lhes conferem cursos e livros sobre literatura. Os vários modos de ser da literatura (...) são, antes de mais nada, linguagens vivas e mutantes. E, como linguagens vivas, repontam antes e depois de sua vigência oficial. Menos ostensivos, entre-laçados a outras tendências, empurrados a muque para dentro ou para fora, desta ou daquela forma, mas sempre presentes. (LAJOLO, 2001, p. 81)

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aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

354 3º PerÍODO • letras • unitins

No decorrer do curso de Letras, procure conhecer melhor essas teorias e defina aquelas com as quais você se interessará. Você será professor e também pesquisador. É muito importante definir sua perspectiva de análise.

Nesta aula, falamos sobre teorias de análise crítica, apontando caracterís-ticas fundamentais.

1. Marque (V) para as afirmativas verdadeiras e (F) para as falsas:

( ) A crítica biográfica busca explicar a obra literária a partir da vida do autor na tentativa de justificar as peculiaridades da obra.

( ) A crítica psicológica nasceu no Círculo Lingüístico de Moscou e examina a obra literária como um sistema.

( ) A crítica determinista evolui do método formal e vê a obra como uma estrutura em que todos os elementos se interdependem.

( ) A crítica sociológica procura ver na obra literária suas relações com o social a partir da morfologia das palavras, da semântica e da sintaxe.

A seqüência correta é:

a) V, F, F, F c) V, V, V, F

b V, V, F, F d) V, V, V, V

2. Os métodos interpretativos do fenômeno literário procuram explicar e entender a obra literária a partir de um determinado ponto de vista. Marque a alternativa correta quanto aos métodos de análise literária:

Os métodos são divididos em métodos intrínsecos e métodos extrínsecos.a)

Os métodos intrínsecos objetivam ao estudo das características internas b) do texto literário.

Os métodos extrínsecos objetivam ao estudo das características externas c) do texto literário.

Todas as afirmativas estão corretas.d)

3. Releia esta aula e escreva um texto apontando a teoria crítica com a qual você mais se identificou. Aponte argumentos.

4. Nesta atividade, propomos um desafio. Releia o conto No moinho, citado na aula dois, escolha uma modalidade de análise e tente suas primeiras impressões críticas.

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (a) você acertou, veja porque a primeira alternativa está correta, mas a partir da segunda, todas são falsas. O correto é: a crítica determinista e não a psicológica é que nasceu no Círculo Lingüístico de Moscou e examina a obra literária como um sistema. A crítica determinista não evolui do método formal e vê a obra como uma estrutura em que todos os elementos se interdependem. A crítica sociológica procura ver na obra literária suas relações com o social, mas não é a partir da morfologia das palavras, da semântica e da sintaxe.

Na atividade dois, se você assinalou a alternativa (d), você compreendeu satisfatoriamente esta aula: todas as afirmações estão corretas.

Na atividade três, você deverá expor sua opinião pessoal. No entanto, é importante que essa opinião tenha argumento lógico.

Na atividade quatro, a sua exposição, mesmo inicial, será muito importante para a sua formação como pesquisador. Bom trabalho. Se achar necessário, poderá recorrer, também, à bibliografia desta aula e às orientações online.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

______. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. 1. ed. São Paulo: Ática, 2001.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores & leitura. São Paulo: Moderna, 2001.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A criação literária: prosa II. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1977.

TADIÉ, Jean-Yves. A crítica literária no século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

Page 87: Teoria Da Literatura II - Texto Narrativo

aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

unitins • letras • 3º PerÍODO 355

Na atividade um, se você assinalou a alternativa (a) você acertou, veja porque a primeira alternativa está correta, mas a partir da segunda, todas são falsas. O correto é: a crítica determinista e não a psicológica é que nasceu no Círculo Lingüístico de Moscou e examina a obra literária como um sistema. A crítica determinista não evolui do método formal e vê a obra como uma estrutura em que todos os elementos se interdependem. A crítica sociológica procura ver na obra literária suas relações com o social, mas não é a partir da morfologia das palavras, da semântica e da sintaxe.

Na atividade dois, se você assinalou a alternativa (d), você compreendeu satisfatoriamente esta aula: todas as afirmações estão corretas.

Na atividade três, você deverá expor sua opinião pessoal. No entanto, é importante que essa opinião tenha argumento lógico.

Na atividade quatro, a sua exposição, mesmo inicial, será muito importante para a sua formação como pesquisador. Bom trabalho. Se achar necessário, poderá recorrer, também, à bibliografia desta aula e às orientações online.

COUTINHO, Afrânio. Notas de Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

D’ONÓFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004.

______. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. 1. ed. São Paulo: Ática, 2001.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.

JAMES, Henry. A arte da ficção. São Paulo: Imaginário, 1995.

LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores & leitura. São Paulo: Moderna, 2001.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

______. A criação literária: prosa II. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

______. A análise literária. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. A natureza da narrativa. São Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1977.

TADIÉ, Jean-Yves. A crítica literária no século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

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aula 7 • teOria Da literatura ii: textO narrativO

356 3º PerÍODO • letras • unitins

Anotações