TEORIA DA LITERATURA II - UFSC - 2008.pdf

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    Teoria da Literatura II

    Florianpolis - 2008

    Tereza Virginia de Almeida

    2Perodo

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    Ficha Catalogrfica

    X999y Virgnia de Almeida, Tereza.Teoria da Literatura II / Tereza Virgnia de Almeida, UFSC, UAB.

    Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2008.

    XXXp. : XXcmISBN 978-85-61482-11-4

    1. xxxxxx. 2. xxxxxx. I. xxxxxx. II. xxxxxx.

    CDD 410

    Elaborado por Rodrigo de Sales, superv isionado pelo Setor Tcnico da

    Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina

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    Sumrio

    Unidade A ..........................................................................................11

    A Temporalidade e a Experincia1 ............................................13

    1. 1 Introduo ..........................................................................................................13

    1.2 Narrativa e Experincia Humana .................................................................14

    Tempo e Figuras de Durao2 ...................................................................17

    2.1 A Narrativa Histrica e a Narrativa Ficcional ...........................................17

    2.2 Os Diferentes Tempos na Narrativa ............................................................18

    2.3 Figuras de Durao ....................... ........................ ........................ .................. 21

    Referncias .........................................................................................24

    Unidade B ...........................................................................................25

    Leitor, Autor e Seus lugares na Narrativa3 .............................................27

    1.1 Leitor-emprico x Leitor-modelo ................................................................27

    1.2 Autor Emprico e Autor-modelo .................................................................29

    1.3 Consideraes Finais ..................... ........................ ........................ .......... 31

    Narrador e Foco Narrativo4 .........................................................................35

    2.1 O Narrador ...........................................................................................................35

    2.2 O Foco Narrativo ...............................................................................................40

    Referncias .........................................................................................43

    Unidade C ...........................................................................................45

    Fico, Linguagem e Personagem5 ...........................................471.1 Personagem Como Sintoma Ficcional ......................................................47

    1.2 Personagem x Ser Humano ...........................................................................50

    1.3 Personagem Plana e Personagem Redonda ...................... .............. 58

    1.4 Outras Tipologias para a Abordagem da Personagem de Fico ... 62

    O Enredo6 ..........................................................................................................65

    Referncias .........................................................................................67

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    Unidade D ..........................................................................................69

    A Adequao do Contedo ao Pblico-alvo7 ......................................71

    A Narrativa no Ensino Fundamental8 ....................................................75

    2.1 A Narrativa como Parte do Cotidiano ........................................................75

    2.2 A Recepo Criativa ....................... ........................ ........................ ................. 76

    A Narrativa no Ensino Mdio9 ................................................................81

    3.1 O Cotidiano ....................... ........................ ........................ ........................ .........81

    3.2 O Cnone Literrio............................................................................................83

    Algumas Palavras Sobre Voc e a Narrativa10 .....................................89

    Referncias .........................................................................................91

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    Apresentao

    Adisciplina Teoria da Literatura II tem como objetivo permitir a voc oacesso a um conhecimento do gnero narrativo, suas especificidades e

    elementos constitutivos.

    Para tanto, optei por abordar, ao longo desta disciplina, os aspectos tericosda narrativa a partir de obras que voc estar lendo na disciplina LiteraturaBrasileira II, ministrada pelo Proessor Marco Antonio Castelli, acrescidos acontos que estarei designando ao longo do perodo.

    Cada captulo ser trabalhado com reerncia s obras literrias, de orma quevoc sempre ter como avaliar a sua prpria compreenso dos pressupostostericos atravs de sua capacidade de relacion-los com os exemplos retiradosdos livros que estar lendo.

    As obras a que me refiro se dividem em narrativas ficcionais e narrativas his-toriogrficas:

    1. Narrativas ficcionais:

    O cortiode Aluzio de Azevedo,Triste fim de Policarpo Quaresmade Lima BarretoDom Casmurrode Machado de AssisMacunamade Mrio de AndradeIracemade Jos de AlencarVidas secasde Graciliano Ramos

    2. Narrativas historiogrficas:

    Retrato do Brasil de Paulo PradoRazes do Brasilde Srgio Buarque de Holanda

    A subdiviso acima j remete a uma primeira distino a ser estabelecida en-tre histria e fico. Esta distino, aparentemente simples, adquire complexi-dade, na medida em que se percebe que muitas das convenes utilizadas pelafico tambm esto presentes no discurso da histria, que, por sua vez, podese utilizar de elementos literrios como metoras e metonmias, o que poderser amplamente exemplificado pelas obras de histria selecionadas e que seconfiguram como clssicos do modernismo brasileiro.

    Isto significa dizer que quando se ala em narrativa, no se est necessaria-mente alando de conto ou romance, ou seja, de fico. Neste sentido, serpossvel perceber que a narrativa ficcional apresenta suas especificidades, masque apresenta aspectos em comum com a narrativa historiogrfica.

    Narrar contar. E a narrativa est presente em nosso cotidiano de diversasormas. Em nossa ala cotidiana, comumente nos utilizamos do discurso nar-rativo para relatar acontecimentos. Quando chego a casa noite e tenho queinormar como oi meu dia no trabalho, lano mo de uma narrativa. Digo:Hoje, minha chee me pediu para escrever um relatrio... ou Hoje, um aluno

    deixou o celular ligado e no momento em que eu estava explicando...

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    Tambm possvel perceber que a narrativa est presente em outras ormas derepresentao, como o cinema e a novela televisiva.

    importante perceber que se a narrativa uma orma de representao, devese dierenciar de outras ormas de representao. Se o cinema tambm um

    exemplo de narrativa, o mesmo no se pode dizer de uma tela, de uma pintura,por exemplo. E a dierena central estaria nas ormas como a narrativa e a pin-tura, enquanto representaes, lidam com a temporalidade.

    No momento, para que voc possa ter uma viso panormica do que sertratado ao longo do semestre, importante examinar com ateno o que estsendo proposto no plano de ensino. A compreenso de cada uma das unidadespressupe a leitura cuidadosa de textos tericos. Voc deve manter-se em diacom estas leituras e az-las na ordem em que orem solicitadas no livro-texto.S assim poder acompanhar o contedo e saber se est conseguindo estabe-

    lecer as relaes corretamente. uma orma tambm de estar apto a cumpriras atividades propostas e a participar dos debates. Portanto, importante quevoc se planeje de orma a ter em mos os textos solicitados nas datas em queorem abordados. Para isso, durante o planejamento de seu semestre, estejaciente da disponibilidade dos textos e do tempo que levam para chegar em casode encomenda. Se voc tiver que acumular leituras, ser dicil acompanhar adisciplina a contento. A solicitao de leituras obedece a um planejamento emque a viabilidade do acompanhamento est prevista. A quantidade de leiturasolicitada obedece ao bom senso. Mas, se voc acumular, ter um volume so-bre-humano de textos para ler e sua aprendizagem pode ser prejudicada.

    Escolhi abordar quase a totalidade da disciplina servindo-me dos pequenosvolumes da Srie Princpios, da tica. So obras introdutrias, porm produzi-das por tericos consagrados e reconhecidos por suas trajetrias intelectuais epela qualidade e extenso de suas obras.

    Voc poder perceber que cada um destes pequenos livros contm uma bib-liografia rica, que voc poder consultar mais tarde com o objetivo de apro-undar os seus conhecimentos.

    Outro ponto muito importante: no acumule dvidas. Leia o material comateno, mas toda vez que a leitura no or suficiente para sua compreenso,

    dirija-se aos tutores e pea explicaes.Adquira tambm o hbito de azer resumos dos pontos principais abordadosnos textos tericos. Os livros vm divididos em captulos curtos, que podemacilitar os seus resumos e fichamentos. Assim, voc ter como estudar e comovoltar aos textos com mais acilidade para estabelecer relaes.

    Como voc j est no seu segundo perodo de curso, j deve ter se amiliari-zado com o ambiente virtual de aprendizagem e com as possibilidades que esteambiente apresenta, mas preciso sublinhar que nada substitui a leitura dostextos, literrios e tericos.

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    Na medida em que ormos trabalhando os conceitos relacionados narrativa,vou estar constantemente remetendo voc ao E-dicionrio de termos literri-os, que apresenta verbetes que podem ser bastante esclarecedores e indicarbibliografia e inormaes complementares.

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    Unidade ATempo e narrativa

    FIGURA - ABERTURADE UNIDADE

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    1 A Temporalidade e aExperincia

    Compositor de destinos

    Tambor de todos os rtmos

    Tempo tempo tempo tempo

    Entro num acordo contigo

    Tempo tempo tempo tempo...

    Por seres to inventivo

    E pareceres contnuo

    Tempo tempo tempo tempo

    s um dos deuses mais lindos

    Tempo tempo tempo tempo...

    (Orao ao tempo, Caetano Veloso)

    1. 1 Introduo

    Para abordar esse primeiro captulo, pedi que voc lesse o conto de

    Srgio SantAnna, O homem sozinho na estao ferroviriae os captulos

    iniciais do livro de Benedito Nunes.

    Voc deve ter percebido que a relao entre o ttulo do conto e a sua

    introduo leva o leitor, a princpio, a acreditar que o homem na estao

    erroviria uma personagem e talvez at mesmo a personagem principal

    do conto. Entretanto, aps algumas indagaes acerca da origem e do des-

    tino do viajante, sentado na estao erroviria com uma maleta no colo,

    o narrador permite que o leitor perceba que o homem do qual ala estretratado em uma pintura: sua narrativa havia sido, at ento, a represen-

    tao discursiva de uma representao pictrica, ou seja, de um quadro.

    O que esta revelao deixa perceber justamente aquilo que se tor-

    na especfico da narrativa, ou seja, aquilo que o narrador acrescenta

    representao do quadro. Claro que seria possvel alar do imaginrio

    que permite ao narrador azer algumas afirmativas como: Carrega to-

    dos os indcios de uma civilizao que a Europa largou nos trpicos,

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    desamparada. Um homem colonial e conservador, embora o negue at

    para si mesmo. Mas o elemento principal a temporalidade.

    A representao narrativa se distingue da representao pictri-

    ca em uno da dimenso temporal. Enquanto um quadro pode serapreendido pelo olhar, de orma instantnea, ao representar uma cena

    esttica, a narrativa se desenvolve no tempo, depende da linearidade do

    discurso para ser apreendida e configura um enredo que ter a tempora-

    lidade como dimenso necessria. Por isso, o imaginrio do narrador se

    debrua sobre o homem da estao atribuindo-lhe um passado. O mais

    terrvel, porm, nesse quadro, o que no vemos nele. E o mais terr-

    vel diz respeito ao passado e ao medo do uturo, ou seja, dimenso do

    tempo que inerente a toda narrativa.Esta introduo do conto que voc leu est a para inormar ao lei-

    tor desavisado que o tema do conto a prpria possibilidade da nar-

    rativa ficcional de construir mundos. Ou seja, esta introduo chama

    a ateno para a prpria capacidade imaginativa do narrador, para o

    prprio ato de narrar que ser capaz de recriar Mrio e Oswald como

    entidades absolutamente ficcionais.

    Tanto na narrativa ficcional quanto na narrativa histrica, o enredo

    organiza personagens e aes em uma linha temporal. Personagens se

    transormam ao longo do tempo da narrativa a partir de acontecimen-

    tos, sejam estes externos ou motivaes internas de ordem psicolgica.

    No importa se o que est sendo contado seja reerente ao espao de

    um dia ou de um sculo, a narrativa ter que se desenrolar no tempo.

    Enquanto os elementos do quadro descrito pelo narrador podem ser

    apreendidos de imediato, j que apenas alguns segundos so necessrios

    para que se visualize um homem sentado numa estao, o leitor desta

    pequena narrativa introdutria ter que perpassar mais de uma pginapara chegar a esta outra orma de representao do mesmo homem nas

    mesmas circunstncias.

    1.2 Narrativa e Experincia Humana

    Em sua obra Tempo e narrativa, Paul Ricoeur afirma que toda obra

    narrativa exibe um mundo temporal. O tempo torna-se tempo humano

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    na medida em que est articulado de modo narrativo; em compensao,

    a narrativa significativa na medida em que esboa os traos da expe-

    rincia temporal.

    Esta relao entre temporalidade e narrativa az com que a narrati-va tenha um carter reerencial: toda e qualquer narrativa reproduz, de

    uma maneira ou de outra, a experincia humana do tempo. Embora a

    fico se defina como irreal, se apresenta como uma orma de redescri-

    o da realidade, no porque descreva atos acontecidos na realidade,

    mas porque toda orma narrativa reproduz a experincia humana do

    tempo, atravs da qual o ser humano vivencia o real. A relao com o

    tempo recriada atravs da narrativa.

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    2 Tempo e Figuras de Durao

    Mandei uma mensagem a jato s entidades do tempo

    j me foi verificado que nem mesmo haver segundos

    que os minutos foram reavaliados

    e a cada suspiro sero dez contados.

    (Dez contados, Alec Haiat/Cu)

    2.1 A Narrativa Histrica e a Narrativa Ficcional

    Quando uma criana demonstra curiosidade em saber como termina

    uma estria, est reproduzindo a mesma sensao que se tem no cotidiano

    em relao ao uturo. Da mesma orma, todo leitor segue uma narrativa em

    busca dos acontecimentos que se revelam ao longo do tempo da narrativa.

    Isto no equivale a negar, entretanto, as distines entre narrativa

    histrica e narrativa ficcional. A distino bsica estaria no ato de que a

    narrativa histrica constrangida pelo tempo cronolgico e a narrativa

    ficcional no.

    Como exemplos, possvel citar Razes do Brasile Retrato do Brasil.

    Srgio Buarque de Holanda e Paulo Prado, enquanto historiadores, so

    orados a obedecer cronologia, j que pretendem buscar represen-

    taes para a origem da sociedade brasileira e de suas especificidades.

    Para tanto, ambos retomam o Brasil do perodo colonial, desde a chega-da do portugus.

    J o tempo ficcional guiado apenas pela prpria estrutura da nar-

    rativa em que se insere. A narrativa ficcional pode operar com anacro-

    nismos, interromper e inverter o tempo cronolgico.

    Nos captulos que voc leu do livro de Benedito Nunes, alm de

    inormaes importantes acerca das relaes entre tempo e narrativa,

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    voc encontra algumas importantes distines e definies que devem

    ser bem compreendidas e das quais tratarei nos prximos itens.

    2.2 Os Diferentes Tempos na Narrativa2.2.1 Tempo Fsico e Tempo Psicolgico

    Este captulo diz respeito distino entre o tempo que pode ser

    medido objetivamente, em duraes como minutos, dias e anos (tempo

    sico) e a maneira como o sujeito vivencia o tempo (tempo psicolgi-

    co). Esta distino, portanto, no acontece apenas na narrativa, mas em

    nossa prpria relao cotidiana com os acontecimentos. Algum que

    espera uma notcia ou o nascimento de um filho pode ter a sensaode que o tempo demora a passar, em uno de seu estado psicolgico

    dominado pela ansiedade. Algum que est de rias em uma viagem

    repleta de alegrias e surpresas pode ter a sensao de que o tempo passa

    muito rpido. Da mesma orma, as mesmas duas horas de um filme po-

    dem parecer demorar mais ou menos dependendo do menor ou maior

    envolvimento do espectador.

    No caso da narrativa, o narrador pode criar esta sensao de maior

    ou menor durao, dependendo da maneira como lida com a subje-

    tividade dos personagens e da orma como sua prpria subjetividade

    se conecta aos acontecimentos. A morte de uma personagem pode ser

    contada em uma linha, mas pode tambm se estender por um ou mais

    captulos, dependendo de como o narrador opte por abord-la. Para que

    o tempo de um mesmo evento se estenda, o narrador lana mo do ele-

    mento causal, implcito em toda relao temporal, j que atravs das

    relaes de causalidade que os acontecimentos podem se relacionar no

    tempo. Narrar justamente preencher com uma explicao o espaoentre um evento e outro.

    A narrativa ficcional tira partido de todos os seus elementos para

    criar eeitos que possam engajar o leitor. Como exemplo, leia um bri-

    lhante contodo escritor Victor Giudice. O conto se chama O arquivo

    e oi originalmente publicado na obra do escritor chamada Necrolgio,

    publicada em 1973.

    Voc pode encontr-loem: http://www.releituras.com/vgiudice_arquivo.asp

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    Voc deve ter percebido que a brevidade da narrativa uncional

    no conto de Victor Giudice - observe como ela se relaciona intimamente

    com o seu contedo. As rases curtas e a rapidez com que um corte sala-

    rial se sucede a outro na vida de Joo reproduzem a rieza da burocracia,

    rieza esta que reproduzida pela maneira sinttica com que o narrador

    narra os atos, de orma objetiva, crua. Desta orma, o leitor surpreen-

    dido justamente pela crueza com que a vida de Joo racassa a ponto de

    o uncionrio se transormar em um arquivo de metal. Observe como

    esta transormao opera uma reduo que reproduzida ao longo do

    conto pela maneira econmica com que os atos so narrados. Ou seja,

    a mediocridade da vida de Joo e a anulao de sua subjetividade por

    um sistema que explora sua ora de trabalho se reproduzem na rieza

    e brevidade com que os atos mais cruis e inusitados, como os cortessalariais, so contados pelo narrador.

    2.2.2 Tempo Cronolgico e Tempo Histrico

    O tempo cronolgico est relacionado ao tempo sico, mas no

    idntico a este. Ao mesmo tempo em que pode ser mensurado, se or-

    ganiza a partir de datas que se tornam reerncia para outras, para o

    estabelecimento de relaes de anterioridade e posterioridade.

    J o tempo histrico est relacionado com outro tipo de medida: a or-

    ma como se configuram unidades para a abordagem dos acontecimentos e

    seus processos de transormao. Assim como na histria poltica, o tempo

    histrico se d por unidades como Idade Mdia e Idade Moderna, na his-

    tria da literatura, o tempo histrico se configura atravs da periodizao

    literria: Romantismo, Realismo, Modernismo, Ps-modernismo, etc.

    importante assinalar que como o tempo histrico cultural e de-

    corre de um conjunto de valores, pode ser relativizado por novas geraesde historiadores, que podem criar novas unidades para se reerir ao passa-

    do (e ao presente) atravs da percepo dierenciada dos acontecimentos

    e de seus eeitos e conexes causais. Por exemplo, o termo barroco surge

    a partir do sc. XIX. Antes disso, aquilo que se compreende como barroco

    era compreendido em continuidade com o clssico. Ou seja, a cultura do

    sculo XIX permitiu que os historiadores percebessem sutilezas na cultu-

    ra e nas artes do sculo XVII que no haviam at ento sido percebidas.

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    2.2.3 Tempo lingstico e tempos verbais

    Neste captulo, Benedito Nunes procura elaborar uma distino

    entre o tempo do discurso e o tempo verbal utilizado em uma narra-

    tiva. A narrativa pode se utilizar de verbos no passado, mas apresentarum narrador que se posicione claramente no presente, distanciado dos

    acontecimentos.

    Na verdade, o presente sempre o eixo temporal a partir do qual

    os eventos se ordenam. Embora Dom Casmurrode Machado de Assis

    conte uma histria que remonta ao passado ao reazer todo o percurso

    da paixo do narrador por Capitu, na medida em que se apresenta como

    uma narrativa em primeira pessoa, a obra acaba sendo sobre o estado

    presente da personagem principal. Como poderemos ver em um prxi-

    mo captulo, o presente do discurso do j maduro Dom Casmurro o

    ponto central da narrativa. A maneira como esta organiza os aconteci-

    mentos do passado atravs do discurso az com que a temtica do livro

    seja a prpria viso parcial do narrador-personagem sobre os atos, uma

    viso que se d no presente da escrita. Observe este trecho, que abre o

    captulo II de Dom Casmurro:

    Agora que expliquei o ttulo,passoa escrever o livro. Antes disso,

    porm, digamos os motivos que me pem a pena na mo.

    Vivo s, com um criado. A casa em que moro prpria; fi-la

    construir de propsito, levado de um desejo to particular que

    me vexa imprimi-lo, mas v l. Um dia, h bastantes anos, lem-

    brou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei

    na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e

    economia daquela outra, que desapareceu.

    (grifos meus) (ASSIS, Machado de . Dom Casmurro. 5 edio.

    So Paulo, FTD, 1999, p.18)

    Observe os verbos que coloquei em negrito e perceba como o nar-

    rador do livro se posiciona no presente da escrita, em sua vida presente,

    atravs da descrio da casa em que mora, para, ento, remontar ao pas-

    sado como orma de configurar explicaes para o presente. Este movi-

    mento entre o presente e o passado da escrita que se d neste pequeno

    trecho o mesmo movimento que se reproduz ao longo de toda a nar-

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    rativa. O passado sempre retomado e recontado para que o narrador

    estabelea relaes de causalidade que justifiquem, diante do leitor, seus

    atos e crenas no presente.

    2.2.4 Tempo da histria e tempo do discurso

    No segundo captulo, Benedito Nunes trata da dualidade que existe

    na narrativa entre histriae discurso. A histria diz respeito realidade

    narrada, aos personagens e acontecimentos. A mesma histria pode ser

    contada por uma narrativa literria e por um filme, por exemplo. J o

    discurso reere-se ao modo de narrar. Esta distino vai operar outra

    distino: entre o tempo da histria e o tempo do discurso. O primeiro

    se reere ao tempo sobre o qual se narra e o segundo ao prprio tempo

    da narrativa. O ato de uma narrativa tratar de um menor ou maior es-

    pao de tempo nada tem a ver com o tempo da narrativa em si. Trs s-

    culos podem ser contados por uma rpida sucesso de acontecimentos

    que torna a narrativa rpida.Macunama, por exemplo, uma narrativa

    rpida. So muitos acontecimentos e transormaes narrados, mas o

    narrador d conta de toda a vida deMacunamaem um pequeno livro.

    Por sua vez, um dia pode durar muitas e muitas pginas em uma narra-

    tiva lenta, repleta de digresses do narrador.

    Tal como demonstra Benedito Nunes, ao analisar uma citao do

    conto de Machado de Assis A causa secreta, o tempo do discurso nem

    sempre obedece ordem dos acontecimentos. O tempo da narrativa

    medido em uno das relaes entre o tempo do narrar e o tempo narra-

    do. No caso do contoA causa secreta, existe uma relao significativa en-

    tre a desobedincia ordem cronolgica e a dramaticidade da narrativa.

    procedimento comum os narradores iniciarem seus romances

    com a apresentao de personagens em um tempo mais prximo dopresente para s depois remontarem ao passado, em busca do estabele-

    cimento de causalidades.

    2.3 Figuras de Durao

    Benedito Nunes apresenta algumas figuras de durao que voc pode

    identificar ao longo da leitura das obras de Literatura Brasileira. So elas:

    o que se chama deanacronia, uma vez quea estratgia se d comodesobedincia ao tempocronolgico.

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    Tal como afirma Benedito Nunes, estas figuras de durao corres-

    pondem a figuras retricas de crucial importncia no que diz respeito

    aos processos de estruturao da narrativa, j que so figuras relaciona-

    das aos eeitos estticos advindos das dierenas de andamento. Estes

    eeitos, por sua vez, sero de extrema importncia na relao que o lei-

    tor estabelece com o discurso narrativo.

    A partir da leitura dos romances designados na disciplina Litera-

    tura Brasileira II, voc pode encontrar exemplos das figuras de durao

    acima descritas.

    Como exemplo de elipse, posso citar os acontecimentos que envol-

    vem o carter do relacionamento entre Capitu e Escobar. O narrador

    em primeira pessoa tem apenas uma viso parcial dos atos e o leitor

    no pode acessar nenhuma inormao que comprove as suspeitas do

    narrador em torno da traio da esposa e do amigo.

    Ao longo de toda a narrativa de Dom Casmurro, h exemplos deoutra figura de durao, a pausa, j que o narrador, em diversos mo-

    mentos, interrompe a histria para se ater a reflexes. O captulo LXIV,

    Uma idia e um escrpulo, um exemplo. Constantemente, ao longo do

    romance, o narrador comenta captulos anteriores, tornando explcito o

    carter textual da narrativa.

    O primeiro captulo de Macunamade Mrio de Andrade um

    bom exemplo de sumrio. Em um nico captulo, o heri nasce e cresce.

    Personagens de DomCasmurro

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    A narrativa se torna gil principalmente porque se d constantemente a

    interveno do elemento mgico:

    A moa botou Macunama na praia porm ele principiou chora-

    mingando, que tinha muita formiga!... e pediu pra Sofar que o

    levasse at o derrame do morro l dentro do mato, a moa fez. Mas

    assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajs e trapoerabas da

    serrapilheira, e botou corpo num timo e ficou um prncipe lindo.

    (ANDRADE, Mrio de.Macunama: o heri sem nenhum carter.

    So Paulo, Itatiaia, 1981, p.10)

    Observe como a linguagem do narrador sintetiza as inormaes

    tornando-se gil como a conexo dos acontecimentos.

    Ao longo destes captulos, Umberto Ecoestar conceituando alguns

    elementos relacionados narrativa: autor emprico e autor-modelo, lei-

    tor emprico e leitor-modelo.

    Autore leitorso termos amiliares a voc. Mas Umberto Eco ela-

    bora a definio destas instncias para dar conta da complexidade ine-

    rente ao universo ficcional.

    Para mais informaessobre o assunto, peo queleia o verbete anisocroniado E-dicionrio de termosliterrios. http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/anisocronia.htm

    Vale, ainda, ressaltar queUmberto Eco, alm deterico, autor de roman-ces consagrados como ONome da rosae O pndulode Foucault. Ambos seconfiguram como leiturasde grande interesse.

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    Creio que os dois primeiros captulos do livro sejam suficientes para a

    compreenso destas definies, mas sugiro que adquiram o livro e que o leia

    por inteiro, pois se trata de uma obra muito interessante para aqueles que

    desejam compreender as nuances e especificidades do discurso ficcional.

    Referncias

    HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. So Paulo: Compa-nhia das Letras, 1997.

    GIUDICE, Victor. Necrolgio. Rio de Janeiro: Editora do Pasquim,1973.

    NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. So Paulo: tica, 2003

    PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras,1998.

    RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. v. I.So Paulo: Papirus, 1994.

    SANTANNA, Srgio.A Senhorita Simpson.So Paulo: Companhia dasLetras, 1989.

    Leia mais!

    RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, v. I. So Paulo: Papirus, 1994.

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    Unidade BOs lugares textuais

    FIGURA - ABERTURADE UNIDADE

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    1 Leitor, Autor e Seus lugares naNarrativa

    Como uma encadernao vistosa feita para iletrados a mulher se enfeita

    mas ela um livro mstico e somente a alguns

    a que tal graa se consente dado l-la

    (Elegia, Pricles Cavalcanti e John Donne,

    traduo de Augusto de Campos)

    1.1 Leitor-emprico x Leitor-modelo

    Umberto Eco se reere narrativa ficcional como a um bosque.

    Com esta imagem, Eco pretende apontar para o ato de que para ler

    fico, preciso percorrer caminhos e se encontrar em um percurso que

    s vezes mostra certas artimanhas.

    O primeiro ponto a se reconhecer no pensamento de Eco diz respeito

    ao ato de que ao adentrar o universo ficcional, o leitor est participando

    de um jogo. Todo jogo tem regras definidas. Quando uma criana ouveo era uma vez de um conto de adas e aceita como possvel a ruio de

    uma narrativa em que os bichos alam e os prncipes so encantados, est

    aceitando as regras daquela orma de fico: os atos narrados no devem

    ser testados segundo as leis sicas do mundo cotidiano.

    O mesmo ocorre quando voc l Macunama e aceita que o he-

    ri possa mudar de cor, transportar toda a casa da amlia para o lado

    do rio, aprender a lngua portuguesa culta de um captulo para outro e

    escrever s Icamiabas, entre outras peripcias. Nada disto , entretan-

    to, uma opo do leitor. A narrativa indica ao leitor como ele deve se

    comportar. Logo nas primeiras pginas de Macunama, descobrimos,

    atravs do narrador, que se trata de uma narrativa que pertence ao ma-

    ravilhoso, mesmo que no conheamos o conceito.

    Ao tratar do tempo na narrativa, citei o trecho em que o heri Ma-

    cunama se transorma num timo em um prncipe lindo. Trata-se de

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    uma interveno mgica que az com que o leitor imediatamente com-

    preenda que, naquela obra, deve tomar como possveis estas ormas de

    interveno, s quais estaro submetidas os personagens e a partir dos

    quais se estabelecem transormaes. Estas transormaes se tornam,

    ento, verossmeis dentro da narrativa porque esta estabeleceu suas re-

    gras prprias e as indicou ao leitor.

    Por outro lado, livros como Triste fim de Policarpo Quaresmae O

    cortioapresentam narradores que nos levam a um comportamento dis-

    tinto enquanto leitores. Nestes casos, as narrativas em terceira pessoa

    uncionam dentro das convenes realistas.

    O autor do discurso historiogrfico tambm se utiliza de convenes

    realistas, j que pressupe um leitor-modelo que, ao contrrio do leitordeMacunama, possa tomar as afirmaes e inormaes ornecidas pela

    narrativa como verdadeiras. Alm da utilizao do narrador neutro como

    orma de escamotear a subjetividade do ponto de vista, tambm utilizado

    pela fico, o narrador historiogrfico az reerncias a documentos hist-

    ricos, data, locais e personagens passveis de comprovao.

    Cada narrativa pressupe um leitor-modelo e este no coincide com

    a pessoa que est lendo. O leitor com biografia, data de nascimento e in-

    dividualidade o leitor que existe no mundo real e a quem Umberto Eco

    denomina leitor emprico. J leitor-modelo uma instncia ficcional,

    um lugar ideal de leitura a ser inerido e ocupado pelo leitor emprico.

    Vou tentar esclarecer melhor. Primeiro, atravs de um exemplo dado

    pelo prprio Eco. possvel chorar diante de uma comdia caso esteja-

    mos em um dia ruim. Mas o leitor-modelo de uma comdia deve rir. O

    autor d voz a um narrador que se expressa de tal maneira que o leitor

    deva perceber o seu discurso como um discurso humorstico e responder

    a este com o riso. O mesmo acontece com a ironia. Quando um autor se

    expressa de orma irnica, pressupe uma leitura ideal em que se capaz

    de compreender que o que est sendo escrito no deve ser lido de orma

    literal. Este leitor, capaz de decodificar a ironia, capaz de estabelecer re-

    laes, de perceber conflitos entre o que est sendo escrito e as crenas do

    narrador, em outras palavras, deve ser um leitor perspicaz. Caso o autor

    no previsse um leitor assim, no criaria um narrador que escrevesse de

    orma irnica, pois a ironia pressupe certa complexidade de ordem in-

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    telectual. Da mesma orma, o autor pressupe um leitor que compreenda

    que aquilo que escrito pelo narrador no necessariamente coincide com

    suas crenas. Mas isto um captulo para mais adiante.

    O importante no momento compreender que, enquanto leitor-emprico, posso no perceber ironia e ler um texto de orma literal (s

    vezes, em uno do desconhecimento de algum elemento necessrio

    para a percepo da ironia), posso estar de mau-humor e no conseguir

    rir diante de um texto humorstico. Estarei, em todos estes caso, sendo

    um mau leitor, mas h um lugar ideal pressuposto. Este lugar apenas

    ideal. Talvez nunca seja de ato preenchido por ningum. Entretanto,

    a crena nesta idealidade que az da crtica literria um campo rtil e

    de estudos complexos. O crtico literrio um leitor sofisticado queprocura inferir o leitor-modelo dos textos.

    Enquanto leitor-emprico, voc uma pessoa, mas capaz de perce-

    ber queMacunamae Iracemaso narrativas que solicitam de voc com-

    portamentos dierenciados e, portanto, requerem dierentes leitores-mo-

    delo. Dierentes ormas de reao so ativadas pelos distintos romances.

    Neste sentido, Umberto Eco estabelece uma distino entre leitor-

    modelo de primeiro nvel e leitor-modelo de segundo nvel.

    1.2 Autor Emprico e Autor-modelo

    A estas alturas, voc deve j ter estabelecido alguma analogia que

    permita concluir o que so o autor-empricoe o autor-modelo. Na ver-

    dade, a simetria entre autor e leitor empricos pereita. Assim como

    o leitor emprico, o autor emprico a pessoa, o homem ou mulher

    que, por algum motivo, escolheram a uno social de escritor. a esta

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    pessoa que se dedicam os bigraos, mas, em geral, salvo rarssimas ex-

    cees, o autor-emprico pouco interessa crtica literria.

    J o autor-modelose conunde, de certa orma, com este lugar que

    se denomina estilo e que acaba atendendo pelo nome depessoa. Quandoos crticos literrios alam da literatura de Machado ou de Aluzio de

    Azevedo, da prosa de Lima Barreto, esto se reerindo a uma orma de

    escrever, voz que d instrues ao leitor-modelo.

    Basta que voc compareMacunamae Iracemapara perceber que estas

    narrativas pedem de voc que se comporte de orma dierente enquanto lei-

    tor-modelo porque, enquanto autores-modelo, elas tambm so totalmente

    distintas.Macunamase organiza com rapidez, apresenta peripcias, uma

    narrativa risvel. Iracema potica, repleta de imagens, se apia na belezada linguagem utilizada. Estes estilos distintos so vozes distintas que, por

    sua vez, delineiam dierentes estilos de leitura. O estilo de uma narrativa

    corresponde ao que Umberto Eco chama de autor-modelo.

    Mais uma vez, o exemplo da ironia bastante apropriado. O esti-

    lo irnico delineia o leitor de ironia. Sem um discurso que se organize

    atravs de indicaes de que deva significar o oposto ou alm do que

    diz, ou seja, de que no deva ser lido de orma literal, no possvel a

    existncia de um leitor que infira ironia. Caso isto ocorra, estaremos

    diante de um mau leitor, pois aquele que v ironia onde ela no existe

    apenas ter se equivocado, j que o autor-modelo, no caso o estilo do

    discurso, que configura os marcadores de ironia.

    Na disciplina Teoria da Literatura I, voc leu o ensaio de Roland

    Barthes intitulado A morte do autor. Neste ensaio, se torna clara a

    idia de que o autor uma inveno moderna e que no se pode atri-

    buir intencionalidade do autor o correto significado da obra literria.

    Interpretar um texto no , ao contrrio do que diz o senso comum,

    descobrir o que o autor quis dizer, j que o autor no controla todos os

    significados do texto que escreve.

    Voc deve lembrar tambm que o ensaio de Barthes esclarece que

    questiona a centralidade do autor, ao lembrar que nas sociedades etno-

    grficas, um mediador ou um recitador, no o autor, so aqueles que

    veiculam a narrativa.

    Caso voc deseje se apro-fundar no estudo da ironia,consulte a obra de Linda

    Hutcheon intitulada Teoriae poltica da ironia. BeloHorizonte, UFMG, 2000.

    Sugiro que voc faa umareviso do material im-

    presso da ltima unidadeda disciplina Teoria da Lite-

    ratura Ie releia o ensaio deRoland Barthes, pois agora

    voc j tem mais condi-es de aprofundar os

    contedos anteriormenteabordados.

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    Barthes assinala o ato de que o autor adquire centralidade na so-

    ciedade moderna justamente pela nase que esta d ao indivduo e

    pessoa. Em sociedades em que o saber concebido como patrimnio

    coletivo, as narrativas so transmitidas de gerao a gerao pelos me-

    diadores, sem que se d importncia a suas origens.

    1.3 Consideraes Finais

    importante perceber o quanto as definies de autor-modelo e

    leitor-modelo como instncias da narrativa, estratgias ficcionais, ad-

    vm de uma reao generalizada da crtica literria antiga tendncia

    de acreditar que ler uma obra correspondia a descobrir e revelar as in-

    tenes do autor, como se a entidade emprica osse detentora da verda-de acerca do significado do texto.

    Antes da inveno da imprensa, a literatura era veiculada atravs

    de narrativas orais e do canto dos trovadores, ou seja, atravs do prprio

    corpo e da co-presena sica da audincia. Aps a inveno da impren-

    sa, que se deu no sculo XV, o corpo do autor oi recalcado e em seu

    lugar surgiu uma idia abstrata de sujeito e de subjetividade.

    Ao longo do sculo XX, a literatura buscou se desenvolver como cin-cia, de orma a possibilitar a abordagem do texto como entidade autno-

    ma, independente do autor e de sua intencionalidade ao escrever a obra.

    Ao criar categorias internas ao texto que incluem tanto a autoria

    quanto a recepo, Umberto Eco traz as intenes da obra para dentro

    de sua prpria estrutura.

    Por outro lado, ao longo dos anos, o papel do leitor oi sendo cada

    vez mais valorizado e h correntes como a esttica da recepoque cen-

    tralizam no leitor a sua ateno.

    O verbete relativo ao autor apresenta como ponto central justamen-

    te a maneira como a figura do autor se enraquece ao longo do sculo XX,

    com o desenvolvimento de tendncias crticas centradas no texto. Como

    voc pode perceber, o verbete cita o ensaio de Roland Barthes. No se

    trata, entretanto, de mera coincidncia. O ensaio com o qual voc entrou

    em contato na primeira ase do curso um clssico dos estudos literrios,

    Gostaria que voc voltasseno E-dicionriode termosliterrios e lesse os diver-sos verbetes disponveisreferentes a autor, leitor eesttica da recepo.

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    assim como as reflexes de Foucault tambm citadas no verbete.

    Claro est que a autoria tambm algo tpico da cultura moderna

    que, como vimos, valoriza o indivduo e a individualidade e, por conse-

    guinte, a originalidade e o talento individual.

    Os verbetes reerentes s diversas denominaes dadas figura do

    leitor podem ser assim resumidos:

    leitor cooperante:a) aquele que l de acordo com os critrios da

    comunidade interpretativa a que pertence. Neste sentido, o ato

    de leitura no visto como um ato individual, e sim como um

    ato coletivo, na medida em que as leituras podem ser comparti-

    lhadas por um ou mais indivduos que formam o que se chama

    de comunidade interpretativa. Por exemplo, possvel que se

    realize uma leitura psicanaltica de um texto quando esta est

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    disponvel para determinada comunidade interpretativa, o que

    torna possvel o estabelecimento de um consenso ou, ao menos

    de aceitabilidade em torno desta leitura.

    leitor implicadob) : tambm chamado de implcito ou narratrio.Trata-se do leitor fictcio previsto pelo texto e que acaba funcio-

    nando como um dos personagens. Por exemplo, Macunama

    uma obra que pressupe um leitor capaz de neutralizar seus

    valores morais e ticos em torno do bem e do mal e se tornar

    cmplice do heri. O heri, apesar de suas estripulias, inspira

    simpatia. Ao simpatizar com Macunama, estamos assumindo

    esta mscara prevista pela organizao da narrativa.

    leitor realc) : diz respeito ao leitor individual que lana mo deseus valores no ato de leitura.

    leitor informadod) : aquele que apresenta no apenas competn-

    cia lingstica, mas tambm competncia literria para compac-

    tuar com aquilo que exigido pelo discurso literrio. Por exem-

    plo, um indivduo pode ser capaz de ler em lngua portuguesa e

    deter conhecimento gramatical, mas no ser capaz de compre-

    ender figuras de linguagem utilizadas pelo texto literrio.

    No verbete relativo ao leitor, a autora mapeia as diversas teorias

    que, ao longo do sculo XX, permitiram a maior centralidade do lei-

    tor na abordagem do texto literrio. Destas, destaquei a Esttica da re-

    cepo, que parte do pressuposto de que o leitor no apenas aquele

    que identifica um sentido pr-existente, mas soberano ao escolher a

    interpretao adequada. Isto az com que os textos adquiram sentidos

    dierentes de acordo com os contextos histricos e culturais em que so

    recebidos. importante, entretanto, perceber que no se trata aqui de

    deender a idia da pertinncia de qualquer leitura individual, e sim da

    possibilidade da diversidade de sentidos para um mesmo texto a partir

    de sua inscrio em dierentes comunidades interpretativas.

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    2 Narrador e Foco Narrativo

    Algum falou que ouviu de algum

    que ouviu de algum que disse

    ter ouvido alguma coisa sobre mim

    uma histria mal contada,

    mal falada, mal ouvida

    uma histria bem ruim

    (Resto do Mundo. Paulinho Moska)

    2.1 O Narrador

    Apesar de ter o subttulo de Consideraes sobre a obra de Nikolai

    Leskov, escritor russo do sculo XIX, no por conta deste escritor

    que este artigo de Walter Benjamin nos interessa, mas sim em uno

    do ato de apresentar algumas consideraes importantes acerca das

    origens da narrativa.

    Benjamin chama ateno para a relao entre narrativa e experi-

    ncia naquele que se compreende como o narrador tradicional, aquele

    que narra atravs da oralidade. esta relao com a experincia que

    Benjamin detecta no narrador arcaico e que ser mais e mais neutrali-

    zada no romance.

    Ao longo de seu artigo, Benjamin estabelece uma gradao que vai

    da narrativa oral, passa pelo romance e chega era da inormao. En-

    quanto terico marxista, ligado Escola de Frankurt, Benjamin rela-ciona esta transormao na orma de abordagem dos atos ao processo

    de consolidao da burguesia e do capitalismo, ao qual se relaciona a

    inveno da imprensa. O predomnio da inormao corresponderia

    justamente a uma sociedade em que a experincia neutralizada e a vi-

    vncia dos atos coletivizada atravs dos meios de comunicao: Cada

    manh recebemos notcias de todo o mundo. E, no entanto, somos po-

    bres em histrias surpreendentes. A razo que os atos nos chegam

    Na disciplina Teoria daLiteratura Ivoc estudou

    o gnero pico. A poesiapica a origem da nar-rativa e est relacionada oralidade: uma narrati-va com mtrica e ritmo,memorizada e cantadapor poetas, de gerao emgerao.

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    acompanhados de explicaes. Em outras palavras: quase nada do que

    acontece est a servio da narrativa, e quase tudo est a servio da in-

    ormao (BENJAMIN, Walter. O narrador. In:Magia e tcnica, arte e

    poltica. Rio, brasiliense, 1987, p. 203).

    Tal como afirma Benjamin, o primeiro grande romance Dom

    Quixotede Miguel de Cervantes. O romance representa a passagem de-

    finitiva da narrativa para a escrita. Isto no quer dizer, entretanto, que

    as marcas de oralidade no possam estar presentes no romance e esta

    permanncia justamente o que valorizado por Benjamin.

    Na literatura brasileira, um grande exemplo da sobrevivncia de

    traos da oralidade no romance a obra-prima de Guimares Rosa,

    Grande Serto Veredas, romance em primeira pessoa em que Riobaldoconta sua histria dirigindo-se a um interlocutor fictcio.

    Para Benjamin, a inveno da imprensa ir representar uma rela-

    o de aastamento entre o narrador e o leitor: A origem do romance

    o indivduo isolado, que no pode mais alar exemplarmente sobre

    suas preocupaes mais importantes e que no recebe conselhos nem

    sabe d-los (Idem, ibidem, p. 201). Benjamin v o narrador oral como

    o portador de experincias vividas que so incorporadas experincia

    do ouvinte. A narrativa oral pertence coletividade. J o narrador do ro-

    mance representa o indivduo isolado e distanciado daquilo que narra.

    No limite, a inormao escamoteia mais e mais as marcas do narrador

    para ir em busca da apresentao do ato em si.

    No ser dicil perceber que, apesar de estarmos inscritos em uma

    cultura que valoriza as inormaes advindas do texto impresso, como

    livros, revistas e jornais, o narrador oral sobrevive nos dias atuais. Pais

    e mes continuam contando histrias a seus filhos, narrativas memori-

    zadas e transmitidas de gerao a gerao. Nas culturas tradicionais, os

    mais velhos costumam ser os detentores de inormaes sobre o passa-

    do transmitidas s novas geraes atravs da oralidade.

    No volume I da coleo Histria da vida privada no Brasil, voc

    pode encontrar um captulo intitulado O que se fala e o que se lde

    Luiz Carlos Villalta. A temtica a escassez de livros no Brasil Colo-

    nial e todo o controle que era mantido em torno da cultura livresca,

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    acessvel apenas a alguns indivduos pertencentes elite, como o cle-

    ro e os advogados. Era comum, ento, tanto a memorizao de obras

    por alguns indivduos que eram capazes de contar romances e obras

    que tinham de cor, quanto a reunio das amlias e de associaes em

    torno da leitura oral, devido escassez de livros destinados leitura

    individual.

    Tal como afirma Ligia, Plato estabelece uma distino significati-

    va entre imitar e narrar, na medida em que sua preocupao se direcio-

    na idia de real e de verdade. Para Plato, a poesia uma imitao em

    segundo grau, porque se d dentro de um mundo que j um simulacro,

    uma imitao do Mundo das Idias.

    Aristteles, por sua vez, tambm reconhece a poesia como imitao,mas no v nisto algo negativo. Para ele, a imitao um atributo huma-

    no que coloca o homem em posio superior em relao a outros seres.

    Ligia Chiappini escolhe abordar brevemente um filsoo que siste-

    matizou os pensamentos de Plato e Aristteles: Hegel. Em sua obra Es-

    ttica, Hegel aborda os gneros pico, lrico e dramtico a partir de suas

    relaes com a objetividade. O picoseria objetivo, o lricosubjetivo e

    o dramtico seria objetivo-subjetivo. Esta distino crucial para que

    Hegel introduza sua concepo do romance que tem origem no pico,

    mas que se alimenta dos trs gneros: lrico, pico e dramtico. Neste

    sentido, o gnero dramtico e o gnero pico se entrelaam na comple-

    xidade inerente ao oco narrativo e o gnero lrico estar cada vez mais

    presente no romance atravs da poeticidade da narrativa.

    Em seguida, Chiappini lana mo do pensamento de Wolgang

    Kayser e de sua distino entre o gnero pico e o romance. Esta distin-

    o j est presente no artigo de Benjamin. A passagem do pico ao ro-

    mance pressupe um processo de individuao. Para isso, Kayser chama

    a ateno para o ato de que o heri do poema pico representa valores

    coletivos, seu narrador compartilha dos valores de seu pblico. No caso

    do romance, o narrador, os personagens e o leitor sorem um crescente

    processo de particularizao.

    A partir da, Chiappini vai abordar, alm de alguns tericos, o es-

    critor Henry James e suas vises acerca do oco narrativo.

    Voc leu poemas picosno primeiro perodo docurso, assim como as refle-xes de Aristteles sobreo tema. Est, portanto,apto a compreender estabreve introduo feita porLigia Chiappini acerca dospensamentos de Aristte-les e Plato.

    Como voc viu no semes-tre anterior, a imitao emAristteles tem o nome demimese.

    Para enriquecer seusconhecimentos acercado narrador, peo que,mais uma vez, consulteo E-dicionrio de termosliterrios: http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/N/narrador.htm

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    Chiappini apresenta, ainda, a tipologia de Jean Poullon: aviso por

    trs, aviso come aviso de fora:

    viso por trsa) : trata-se do narrador onisciente, que domina to-

    dos os elementos sobre a vida dos personagens e seu destino.

    viso comb) : o narrador que s tem conhecimento do que a pr-

    pria personagem sabe sobre si.

    viso por forac) : o narrador s descreve sem demonstrar nenhum

    conhecimento para alm do que pode ser visto exteriormente.

    Portanto, este um desafio para voc: refletir sobre a adequao des-

    tas dierentes tipologias aos romances que est lendo.

    Chiappini apresenta as relaes que Maurice-Jean Leebve estabelece

    entre narrador, diegese e discurso. Cabe ressaltar, em primeiro plano, que

    os termos diegesee discursocorrespondem aos dos mesmos conceitos que

    utilizamos em captulo anterior sob os nomes de histria e discurso. O

    primeiro se reere aos acontecimentos e o segundo orma de narr-los.

    Como possvel perceber, o oco de Leebve reside na maior ou me-

    nor nase que cada narrativa d histria e ao discurso. No romance

    clssico, caracterizado por um narrador com viso por trs, h o equil-

    brio entre histria e discurso, entre diegese e narrativa. Na viso com, h

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    a predominncia do discurso sobre a narrativa, ou seja, a orma de narrar

    se torna mais importante do que o que narrado. Observo aqui que esta

    orma de romance acaba por encontrar ronteiras com o gnero lrico. Na

    viso por ora, h o predomnio da histria sobre o discurso. Neste tipo

    de romance, a narrativa quase no se deixa ver enquanto materialidade.

    No que se reere aos romances estudados em Literatura Brasileira

    II, creio ser possvel caracteriz-los da seguinte maneira, a partir desta

    tipologia:

    Viso por trs

    Viso com

    Viso por fora

    Alm das definies j estudadas, em que o mais importante a ri-

    sar a distino definitiva existente entre narrador e autor, sendo o pri-

    meiro uma instncia ficcional mesmo que no aa parte da trama en-

    quanto personagem, o E-dicionrioapresenta ainda trs outras ormas

    de classificao do narrador, apresentadas por Gerard Genette na obra

    Discurso da narrativa:

    narrador autodiegticoa) : aquele que narra suas prprias expe-

    rincias, ou seja, o mesmo que narrador-personagem. o casodo narrador do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

    narrador heterodiegticob) : aquele que no faz parte da tra-

    ma. o caso dos narradores de Iracema, Triste fim de Policarpo

    Quaresmae O cortio.

    narrador homodiegticoc) : aquele que personagem da tra-

    ma, mas no o personagem principal.

    Para a prxima etapa, gostaria que voc lesse o segundo captulo dolivro de Ligia Chiappini, intitulado O foco narrativo, ou seja, o captulo

    A tipologia de Norman Friedman, e o artigo de Silviano Santiago intitu-

    lado Retrica da verossimilhana, que se encontra no livro Uma literatu-

    ra nos trpicos. Este ltimo um estudo do romance Dom Casmurrode

    Machado de Assis que demonstra de orma brilhante a importncia do

    oco narrativo para a compreenso de um texto literrio.

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    2.2 O Foco Narrativo

    No segundo captulo de seu livro, Ligia Chiappini apresenta a tipo-

    logia a partir da qual Norman Friedman conceitua as diversas ormas

    de narrador:

    narrador onisciente intrusoa)

    narrador onisciente neutrob)

    eu como testemunhac)

    narrador-protagonistad)

    oniscincia seletiva mltiplae)

    oniscincia seletivaf)

    Vamos abordar primeiro os tpicos a, b, eef, reerentes noo de

    oniscinciae s ormas de narrador que lhe so correspondentes.

    A distino entre o narrador onisciente intrusoe o narrador onis-

    ciente neutro que o primeiro tece comentrios sobre as personagens, os

    costumes, a moral, etc. e o segundo se limita a apresentar os atos, evitando

    qualquer tipo de intromisso. A subjetividade do narrador onisciente neutro escamoteada ao mximo para que obtenha o eeito de objetividade.

    No caso da oniscincia seletiva mltiplao narrador onisciente ape-

    nas em relao a algumas personagens da trama. Esta estratgia permite,

    por exemplo, manter em segredo aspectos relativos a outras personagens

    cujas atitudes podem ser cruciais para o desenvolvimento da trama.

    J a oniscincia seletivadiz respeito a um narrador que oniscien-

    te apenas em relao a uma nica personagem. Neste caso, o narrador

    sabe mais que a personagem sobre si mesma e seu destino, mas apenas e

    to somente em relao a esta, mantendo-se cego em relao ao restante

    das personagens.

    O eu como testemunha um narrador em primeira pessoa, mas

    que no participa da trama. A utilizao da primeira pessoa neste caso

    tem, em geral, o objetivo de dar verossimilhana narrativa, j que o nar-

    rador se comporta como se tivesse sido testemunha daquilo que conta.

    A oniscincia diz respeitoa uma posio do sujeitoque se coloca acima dos

    acontecimentos. O narra-dor onisciente um nar-rador em terceira pessoaque sabe mais acerca da

    trama do que as persona-gens nela envolvidas.

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    O narrador-protagonista aquele que narra a partir de um centro

    fixo limitado a suas percepes e sentimentos. O mundo que se apresen-

    ta ao leitor um mundo parcial que se d como a representao deste

    nico ponto de vista.

    O artigo de Silviano Santiago, Retrica da verossimilhana, trata

    justamente da uno do narrador-personagem em Dom Casmurrode

    Machado de Assis. O objetivo do crtico demonstrar o equvoco de se

    considerar a obra de Machado como um simples derivado dos roman-

    ces do sculo XIX relacionados ao adultrio eminino, como Madame

    Bovaryde Flaubert e O Primo Basliode Ea de Queiroz.

    Silviano Santiago demonstra o quanto ingnua qualquer crtica que

    se atenha no tema do adultrio e o quanto erram aqueles que procuramno livro de Machado uma verdade acerca da infidelidade de Capitu.

    A partir de uma orte linha argumentativa que tentarei acompanhar,

    Silviano demonstra que Dom Casmurro um livro sobre o cime. O motivo

    desta crena reside no ato de que sendo o narrador a personagem central

    do livro e estando todos as outras personagens silenciadas, principalmente

    Capitu, os atos apresentados so aqueles selecionados e apresentados por

    um nico ponto de vista e este no o do marido trado, mas o do marido

    que se sente como tal, independente da verdade ou no da traio.

    A questo do ponto de vista ou do foco narrativo se une ao que

    aprendemos com Umberto Eco acerca do leitor-modelo, j que a crtica

    de Silviano Santiago permite que se perceba que Machado de Assis arqui-

    tetou sua narrativa de tal maneira que passa ser inegvel que h um leitor

    ideal capaz de perceber que, enquanto advogado, Dom Casmurro algum

    que domina a arte da retrica. Da o ttulo do artigo: Retrica da verossi-

    milhana. O discurso de Dom Casmurro no also ou verdadeiro, mas

    extremamente verossmil, j que o sexagenrio sabe se utilizar das palavras

    de orma a convencer o seu interlocutor. O ponto de vista em primeira

    pessoa , assim, uma artimanha utilizada pelo autor-modelode orma a

    tornar a abordagem do casamento e do tema da fidelidade um tanto mais

    complexa do que em romance anterior, Ressurreio, narrativa em terceira

    pessoa em que o narrador onisciente desvenda os atos para o leitor. Em

    Dom Casmurro, a primeira pessoa traz narrativa ambigidade.

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    Santiago demonstra que o narrador de Dom Casmurrose comporta

    como quem deende uma tese. Ele sabe o que comprovar para justificar

    seu comportamento diante da esposa e do filho. Entretanto, o autor deixa

    pistas ao azer com que, em alguns momentos, se perceba que h no livro

    o predomnio da imaginao sobre a memria. Neste sentido, as ques-

    tes relativas ao tempo, abordadas em captulo anterior, so de extrema

    valia. Perceba-se que o narrador, embora tenha vivido no passado que

    narra, ala em um suposto presente, diante do qual este passado j est

    distante. Para que este tempo j ido pudesse ser resgatado, o narrador

    teria, no mnimo, que ter uma grande memria. Mas Machado permite

    que se perceba que no o caso, ao azer com que o narrador demonstre

    dvida acerca da autoria de citaes das quais se utiliza, o que, para um

    homem letrado como Dom Casmurro, no de todo perdovel.

    Silviano Santiago vai ainda mais alm quando aponta para o ato de

    que, alm de ser uma narrativa sobre o cime, Dom Casmurrose confi-

    gura como uma crtica a uma sociedade que valoriza a retrica pratica-

    da amplamente por bacharis e jesutas. E a retrica uma arte que se

    pauta no provvel, no verossmil e no no verdadeiro, o que az com que

    a questo da personagem de Machado seja tica, j que precisa conven-

    cer o leitor da culpa de Capitu para inocentar a si mesmo.

    possvel perceber, portanto, que este artigo de Silviano Santiago

    demonstra o quanto o conhecimento dos elementos da narrativa e de

    suas unes capaz de promover uma leitura especializada, bem como

    possibilitar a atividade da anlise, atividade esta que exige a ultrapassa-

    gem de um nvel superficial de leitura e o conhecimento dos procedi-

    mentos eetivamente utilizados para a configurao de uma narrativa.

    O verbete ocalizaocita, ainda, o termoperspectivacomo apropria-

    do para designar a relao que o sujeito da narrativa mantm com o objetoque narra. O termo utilizado nas artes plsticas para designar a tcnica

    de pintura que permitiu, no sculo XV, que os quadros apresentassem uma

    iluso de proundidade, ou seja, trata-se de uma tcnica que possibilita re-

    produzir em uma supercie bidimensional a realidade tridimensional.

    A perspectiva um enmeno, portanto, relacionado percepo

    humana. Da a utilizao do termo na narrativa para designar a posio

    do narrador que tecnicamente construda e delineia a maneira como

    Consulte no E-dicionrio determos literrioso verbe-te intitulado focalizao,

    termo utilizado por GerardGenette para designar o

    mesmo que foco narrativoou ponto de vista: http://

    www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/F/focalizacao.htm

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    os objetos aparecem para o leitor. Assim como na pintura, a perspec-

    tiva define a maneira como se torna possvel visualizar os objetos de

    um quadro. Somente a perspectiva permite que um objeto parea, por

    exemplo, estar rente de outro, em uma supercie plana.

    Cabe ressaltar, ainda, que a perspectiva um enmeno da Idade

    Moderna e est relacionada com o prprio humanismo e com a neces-

    sidade de azer os objetos da realidade se relacionarem atravs do ele-

    mento humano. Antes, na Idade Mdia, no havia esta necessidade e os

    quadros podiam apresentar figuras independentes na tela, porque estas

    figuras estavam todas submetidas existncia divina.

    Para a prxima unidade, peo que leia o captulo Literatura e per-

    sonagem, do livroA personagem de fico, de Antonio Candido e outrosautores, e o terceiro captulo do livro de Beth Brait,A personagem.

    Referncias

    ALENCAR, Jos de. Iracema. So Paulo: tica, 1998.

    ANDRADE, Mrio de.Macunama. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.

    ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. So Paulo: FTD, 1999.BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 13 ed. So Paulo:tica, 1994.

    BARTHES, Roland. O rumor da lngua. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

    BENJAMIN, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica. 3 ed. So Paulo:Brasiliense, 1987.

    CHIAPPINI, Ligia. O foco narrativo. So Paulo: tica, 2006.

    ECO. Umberto. Seis passeios pelos bosques da fico. So Paulo: Compa-nhia das Letras, 1994.

    FOCAULT, Michel. O que um autor?. Lisboa: Vega, 1992.

    SANTIAGO, Silviano. Retrica da verossimilhana. In: Uma literaturanos trpicos. So Paulo, Perspectiva, 1978. p. 29-48.

    VILLALTA, Luis Carlos. O que se fala e o que se l . In: SOUZA, Laurade Mello e. Histria da vida privada, V. I. So Paulo: Companhia dasLetras1999, p. 331-386.

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    Leia mais!

    CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

    ROSA, Guimares. Grande Serto veredas. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 2005.

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    Unidade CA personagem e o enredo

    FIGURA - ABERTURADE UNIDADE

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    1 Fico, Linguagem ePersonagem

    Nos filmes que eu tento ver

    Nos livros que eu tento ler

    Voc sempre

    O personagem principal

    Que tem o beijo no final

    (Personagem, Carmem Silva)

    1.1 Personagem Como Sintoma Ficcional

    Creio que o ponto crucial do primeiro captulo do livro A persona-

    gem de ficoseja o de chamar a ateno para o ato de que a persona-

    gem e seu surgimento em uma narrativa possibilitam o imediato reco-

    nhecimento de seu carter ficcional. O captulo argumenta em torno do

    ato de que, a partir do tratamento dado pelo narrador personagem,

    possvel perceber a elaborao imaginria do discurso narrativo.

    claro que isto algo de que voc j tinha conhecimento, embora

    talvez nunca tenha refletido sobre o assunto. Na maioria das vezes, voc

    no costuma se enganar e sabe quando um livro ou no de narrativas de

    origem imaginria e quando est diante de tramas e personagens ficcio-

    nais, embora no saiba dizer exatamente o que levou voc a esta certeza.

    Talvez voc possa lembrar at que, algumas vezes, se conundiu e

    tomou como um texto de histria, por exemplo, uma obra de fico. Claro

    que voc pode, de ato, ter se equivocado. Mas isto pode ocorrer porquealguns autores se utilizam de convenes realistas: inscrevem narradores

    em terceira pessoa, ambientam suas personagens em eventos retirados da

    historiografia oficial e as mesclam com personagens histricas.

    Na fico histrica, por exemplo, comum a recriao ficcional de

    eventos e atos histricos, como ocorre com o romance Esae Jacde

    Machado de Assis, em que a oposio entre Repblica e Monarquia

    recriada atravs da narrativa em torno de dois irmos, Pedro e Paulo.

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    O que se est querendo afirmar? Que existem certos verbos, por

    exemplo, que s podem ser atribudos a personagens de fico, como

    aqueles reerentes a processos psquicos como refletir, pensar, re-

    cear, duvidar, imaginar, desejar. A presena de uma afirmativa do

    tipo: Joo refletiu por alguns segundos em silncio: valeria a pena arris-

    car-se a perder tudo que havia conquistado em tantos anos? se define

    como um sintoma da fico, na medida em que estados psquicos no

    podem ser percebidos e descritos por observadores externos, a no ser

    no plano do imaginrio.

    Logo no primeiro captulo de Vidas secas, ao apresentar a triste re-

    alidade vivenciada pelas personagens, o narrador expe ao leitor uma

    seqncia de pensamentos de Fabiano que testemunha a dimenso da

    crueldade da realidade vivida:

    O pirralho no se mexeu, e Fabiano desejou mat-lo. Tinha o

    corao grosso, queria responsabilizar algum pela sua desgraa.

    A seca aparecia-lhe como um fato necessrio e a obstinao da

    criana irritava-o. Certamente esse obstculo mido no era cul-

    pado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar,

    no sabia onde (...)

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    Pelo esprito atribulado do sertanejo passou a idia de abandonar

    o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, co-

    ou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinh

    Vitria estirou o beio indicando vagamente uma direo e afir-

    mou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteua faca na bainha, guardou-a no cinturo, acocorou-se, pegou no

    pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estma-

    go, frio como um defunto. A a clera desapareceu e Fabiano teve

    pena. Impossvel abandonar o anjinho aos bichos do mato.

    (RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 103. ed. Rio de Janeiro: Re-

    cord, 2007, p.10-11)

    Observe como o trecho citado tem como centro uma seqncia

    significativa de acontecimentos que no poderiam ser descritos por um

    observador externo, j que giram em torno de sentimentos, idias,

    sensaes e pensamentos internos a Fabiano. O trecho se torna, assim,

    na narrativa, um dos sintomas de fico porque, ao expor pensamentos,

    explicita sua origem imaginria. importante tambm perceber como a

    relao entre o narrador e a personagem crucial para delinear a fico.

    No caso, o narrador capaz de adentrar os pensamentos de Fabiano e,

    com isto, permitir que o leitor tambm tenha acesso a eles. No caso de

    um narrador em primeira pessoa, a viso se torna parcial e somente ospensamentos internos do prprio narrador podero ser acessados pelo

    leitor, e somente aqueles que o narrador inscrever em sua narrativa.

    Outro sintoma de fico est na relao com o passado. Embora

    uma narrativa ficcional possa se utilizar do pretrito, este perde seu ca-

    rter de pretrito porque o leitor passa a presenciar o passado junto com

    o narrador. Ou seja, o narrador presentifica o passado, pois narra como

    se osse testemunha ocular de um tempo que no o presente.

    Observe, a ttulo de exemplo, o incio do segundo captulo de Triste

    fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto:

    Havia bem dez dias que o Major Quaresma no saa de casa.

    Na sua meiga e sossegada casa de So Cristvo, enchia os dias

    da forma mais til e agradvel s necessidades do seu esprito e

    do seu temperamento. De manh, depois da toillette e do caf,

    sentava-se no div da sala principal e lia todos os jornais. Lia

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    diversos, porque sempre esperava encontrar num ou noutro uma

    notcia curiosa, a sugesto de uma idia til sua cara Ptria.

    Os seus hbitos burocrticos faziam-no almoar cedo, e, embora

    estivesse de frias, para os no perder, continuava a tomar a pri-

    meira refeio de garfo s nove e meia da manh

    Acabado o almoo, dava umas voltas pela chcara, chcara em

    que predominavam as fruteiras nacionais, recebendo a pitanga

    e o cambu os mais cuidadosos tratamentos aconselhados pela

    pomologia, como se fosse bem cerejas e figos.

    (BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 13. ed. So

    Paulo: tica, 1984, p. 30)

    importante ressaltar que o narrador az o leitor acompanhar empormenores os hbitos do Major Quaresma, atravs da apresentao de

    detalhes que aproximam a narrativa do tempo passado. Esta aproxima-

    o, por sua vez, explicita o carter ficcional da narrativa porque se atm

    a detalhes, como a contagem de dez dias sem sair de casa, diceis de se-

    rem apreendidos pela memria. Estes detalhes tornam evidente o car-

    ter imaginrio da configurao do passado, assim como a exposio da

    conscincia da personagem atravs de afirmaes como Lia diversos,

    porque sempre esperava encontrar num ou noutro uma notcia curiosa

    (...). Estes detalhes tornam o leitor no somente prximo do passado,

    mas prximo da prpria personagem, a quem poder acompanhar de

    orma minuciosa, passando a viver sua prpria experincia.

    Observe tambm como determinados detalhes, dos hbitos regula-

    res ao cultivo das ruteiras nacionais na chcara do Major Quaresma,

    so de extrema valia para a configurao de um quadro coerente acerca

    da personagem. Neste sentido, importante observar que, na narrativa

    ficcional, como orma de arte, todos os elementos se tornam uncionais.Assim, aquilo que figuraria numa narrativa histrica como mero suple-

    mento ou detalhe, adquire na fico a uno de configurar a coerncia

    do cenrio e das personagens.

    1.2 Personagem x Ser Humano

    Em relao personagem de fico, o captulo apresenta uma com-

    parao desta com os seres humanos reais e afirma que as personagens

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    so mais ricas porque so elaboradas com concentrao, seleo e den-

    sidade. Alm disto, na narrativa ficcional, as personagens so dadas

    observao e se tornam transparentes de uma orma impossvel aos

    seres humanos, como o caso de Fabiano e do Major Quaresma, nos

    trechos acima citados. Na medida em que h um nmero limitado de

    oraes em uma narrativa, as personagens apresentam um perfil muito

    mais definido e coerente do que as pessoais reais.

    Na fico, o ser humano tornado personagem no se separa dos

    significantes utilizados para descrev-lo e que so elaborados, antes de

    tudo, em nome do prazer esttico. Selecionei alguns trechos dos roman-

    ces que voc est lendo para que possamos examinar cuidadosamente

    esta relao estreita existente entre linguagem e personagem, ou melhor,compreender por que a personagem de fico um ser de linguagem.

    Iracema, a virgem dos lbios de mel, que tinha os cabelos maisa)

    negros que a asa da grana, e mais longos que seu talhe de pal-

    meira.

    O favo da jati no era doce como seu sorriso; nem a baunilha

    recendia no bosque como seu hlito perfumado. (ALENCAR,

    Jos de. Iracema. So Paulo: tica, 1998)

    Quaresma era um homem pequeno, magro, que usavab) pince-

    nez, olhava sempre baixo, mas, quando fixava algum ou al-

    guma coisa, os seus olhos tomavam, por detrs das lentes, um

    forte brilho de penetrao, e era como se ele quisesse ir alma

    da pessoa ou da coisa que fixava.

    Contudo, sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela pon-

    ta do cavanhaque que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre

    de fraque, preto, azul, ou de cinza, de pano listrado, mas sem-pre de fraque, e era raro que no se cobrisse com uma cartola

    de abas curtas e muito alta, feita segundo um figurino antigo de

    que ele sabia com preciso a poca. (BARRETO, Lima. Triste

    fim de Policarpo Quaresma. 13. ed. tica: 1984, p. 20)

    Zulmira tinha ento doze para treze anos e era o tipo acabadoc)

    da fluminense plida, magrinha, com pequeninas manchas ro-

    xas nas mucosas do nariz, das plpebras e dos lbios, faces leve-

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    mente pintalgadas de sardas. Respirava o tom mido das flores

    noturnas, uma brancura fria de magnlia; cabelos castanho-

    claros, mos quase transparentes, unhas moles e curtas, como

    as da me, dentes pouco mais claros do que a ctis do rosto,

    ps pequenos, quadril estreito, mas os olhos grandes, negros,

    vivos e maliciosos. (AZEVEDO, Aluzio de. O cortio. Chile, O

    Globo/Klick Editora, 1997, p. 25)

    Gostaria que voc observasse como as opes descritivas dos die-

    rentes narradores modelam as personagens de orma tal que estas no

    podem ser dissociadas da linguagem e do estilo com o qual so abor-

    dadas. Iracema no existe sem as analogias com a natureza e atravs

    delas que o narrador guia o leitor para configurar a imagem da herona

    romntica que se constitui atravs do estabelecimento de um contnuo

    entre sua beleza e o cenrio natural em que nasce, vive e morre.

    J o Major Quaresma, homem de hbitos regulares, descrito por

    um narrador contido, objetivo, atravs de oraes que se detm em de-

    talhes externos que ormam uma imagem visual da personagem. Neste

    trecho, ao contrrio do trecho de Iracema, quase no h analogias. En-

    tretanto, ao se ater ao hbito de Quaresma de olhar para baixo a maior

    parte do tempo e de demonstrar intensidade nas poucas vezes em quefixa o olhar em algum, o narrador oerece uma pista que permite entre-

    ver a personalidade da personagem, personalidade esta que ser reor-

    ada por suas aes ao longo do romance.

    Por sua vez, a menina Zulmira de O cortio indissocivel da lin-

    guagem objetiva de estilo naturalista e que se deixa entrever, por exem-

    plo, na utilizao da rase: manchas roxas nas mucosas do nariz, pre-

    sente na citao acima.

    Na narrativa ficcional, assim como em toda obra de arte, a orma

    indissocivel de seu contedo e o mesmo verdadeiro para a persona-

    gem ficcional, que no pode ser separada do discurso que a apresenta.

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    Basta que se pense na relao do narrador com a personagem. O

    seu nvel de oniscincia, seu ponto de vista vo definir o maior ou me-

    nor grau de transparncia da personagem. Exemplo disto a prpria

    personagem Capitu do romance Dom Casmurrode Machado de Assis.

    A personagem modelada diante do leitor atravs do ponto de vista do

    narrador em primeira pessoa. Nada se sabe de Capitu, ou mesmo de

    Escobar, que no seja definido pela representao discursiva do prprio

    Dom Casmurro.

    Independente da narrativa, entretanto, na medida em que se oe-

    rece a uma apreciao de ordem esttica, a personagem de fico apre-

    senta a complexidade humana de orma condensada, possibilitando ao

    prprio homem tornar-se observador de sua condio. Neste processo,a experincia ficcional possibilita simultaneamente a vivncia e a con-

    templao. Vivncia, na medida em que a percepo esttica se define

    como orma de experincia, e contemplao, na medida em que o leitor

    se torna observador de algo distinto de si.

    Ao tornar-se outro atravs doimaginrio, o ser humano pode experi-

    mentar papis dierenciados. Exemplo disto a relao j citada do leitor

    com a personagem Macunama, relao esta que pressupe a suspenso

    de valores morais para que o heri possa ser, em toda sua complexidade,percebido como sntese da prpria indefinio do carter do brasileiro.

    E como se d a suspenso destes valores? Primeiro, atravs da op-

    o pelo maravilhoso, ou seja, por uma narrativa que configura, desde

    sempre, um mundo que no regido pelas leis sicas do mundo em que

    vive o leitor.

    Ao ambientar a personagem em um mundo regido pela interven-

    o constante do elemento mgico, o narrador, desde j, aasta o leitor

    de suas crenas e valores, ou melhor, possibilita que o leitor suspenda

    pelo tempo de leitura as suas crenas e valores para se permitir visitar,

    atravs do imaginrio, um mundo outro.

    Outro ponto importante a orma de narrar atravs da qual a per-

    sonagem Macunama apresentada como inocente. Embora descreva

    atos de Macunama que poderiam ser considerados perversos ou erra-

    dos, o narrador no atribui intencionalidade ou finalidade a estes atos.

    Observe que utilizo a pala-vraimaginriono apenasem relao quele queescreve, mas tambm emrelao quele que l.

    Para se aprofundar nestetema, consulte a obraIntroduo literaturafantsticade Tzvetan

    Todorov.

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    Com isto, o elemento ldico prevalece ao longo da narrativa, unido ao

    elemento mgico, para criar no leitor a empatia com a personagem.

    Quando se l uma obra de fico, se adentra um mundo outro em que

    o leitor tambm se v orado a se reinventar. Isto permite entender porque possvel simpatizar com assassinos e viles, mesmo que estes sejam

    os sujeitos de aes condenveis na vida cotidiana. A relao que o leitor

    estabelece com as personagens de fico no a mesma que estabelece

    com os seres humanos. Na fico, em menor ou maior grau, dependendo

    do estilo da narrativa, o leitor levado a se aastar de sua realidade.

    Procure se lembrar de algum caso especfico em que isto ocorreu

    com voc ao ler um livro, ver um filme ou assistir a uma novela televi-

    siva. Alguma vez voc j se flagrou torcendo pelo bandido? Ou expres-sando, em relao ao mundo ficcional, valores completamente diversos

    daqueles que apresenta na vida cotidiana?

    Na verdade, o imaginrio possibilita a reelaborao dos elementos

    com os quais lidamos na vida cotidiana. A narrativa ficcional apresenta

    uma srie de estratgias para expor a prpria complexidade da vida e

    estas estratgias se do no nvel da prpria linguagem, que se configura

    como o elemento do qual se constitui a personagem de fico.

    Isto significa dizer que a personagem de fico no a representao

    do ser humano atravs da linguagem, pois isto corresponderia a afirmar

    que a narrativa teria um ponto de reerncia externo. Como procurei

    demonstrar atravs dos trechos retirados dos romances, as personagens

    de fico adquirem existncia no interior da prpria linguagem, da qual

    so indissociveis.

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    Em seu livroA personagem, Beth Brait mostra como o reconheci-

    mento e a compreenso da personagem como um ser de linguagem oi

    uma conquista de sculos e dependeu do prprio desenvolvimento dos

    estudos literrios. Logo no incio de seu livro, antes mesmo de come-

    ar a tratar dos posicionamentos da crtica, a terica mostra, atravs do

    exemplo da otografia, a distino entre pessoa e personagem. Brait su-

    gere que, mesmo em uma otografia 3x4, que tem o objetivo de retratar

    a pessoa de orma que esta possa ser reconhecida, h uma mediao que

    aasta a imagem da oto da complexidade da pessoa humana: a pose, o

    ngulo, a escolha do penteado determinam a personagem. O exemplo

    extremo da configurao de personagens atravs de otografias est nas

    otos artsticas capazes de criar auras em torno dos otograados.

    Para poder explicar melhor a dierena entre personagem e pessoa,

    Braith cita Iracema, o romance de Alencar, pois o escritor teve como

    base para sua narrativa um argumento histrico: a undao do Cear.

    Alencar tem, portanto, como reerncia, o testemunho de cronistas em

    torno das relaes entre o indgena e o portugus. Entretanto, o com-

    promisso de Alencar a configurao de uma criatura possvel, ou

    seja, uma criatura verossmil, dentro das convenes romnticas que

    modelam a linguagem do romancista.

    Neste sentido, importante lembrar que a relao com os docu-

    mentos histricos totalmente outra no caso de obras da historiografia

    como Retrato do Brasile Razes do Brasil. Estas narrativas tm compro-

    misso com reerncias externas a si mesmas. Isto no quer dizer, entre-

    tanto, que os atos da histria no sejam modelados pela linguagem. O

    historiador precisa alcanar um eeito de real para que sua narrativa

    possa ser tomada como verdadeira. Para tanto, ele se utiliza de conven-

    es realistas. Ou seja, dentro da obra historiogrfica, os seres humanos

    tambm vo se tornar personagens, como no caso do semeador e do

    ladrilhador da obra de Srgio Buarque de Holanda. Observe, neste

    caso, como as personagens so escolhidas para configurar uma oposi-

    o crucial para a prpria estruturao da obra, que opta por tratar as

    unes no singular para transorm-las em modelos, em personagens.

    Mas isto no nega a existncia no mundo e naquele tempo histrico de

    pessoas que exercessem aquelas atividades.

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    No primeiro semestre, voc estudou em Teoria da literatura I o

    conceito de mimesede Aristteles. Est apto, portanto, a compreender

    a noo que Beth Brait afirma ter vigorado at meados do sculo XVIII

    e que oi reorada pela idia de Horcio, de que as personagens so

    reprodues dos seres vivos e modelos a serem imitados. Isto porque a

    fico era vista em termos pedaggicos, da a nase nos aspectos mo-

    rais, veiculados, entre outros elementos, pelas personagens.

    Em meados do sculo XVIII, a personagem de fico deixa de ser

    compreendida como rplica do ser humano para ser tomada como

    projeo da psicologia do criador. A personagem continua, portanto,

    a estar relacionada ao humano, mas no como reproduo de modelos

    existentes no mundo exterior, mas como produto da psicologia do ar-

    tista. Esta compreenso coincide com transormaes inerentes pr-

    pria literatura, que com o Romantismo, estar cada vez mais apegada

    noo de obra de arte como produto do talento individual e expresso

    das paixes humanas.

    O reconhecimento do ser de fico como um ser de linguagem

    s vai se dar, de ato, com os ormalistas russos. Isto se deve prpria

    filiao do ormalismo Lingstica, que vai possibilitar que se com-

    preenda a obra como um sistema de signos. Da surge a demanda poruma compreenso dos elementos que compem o texto, o que leva os

    ormalistas aos conceitos defbulae trama. A primeira seria composta

    pelo